Post on 14-Dec-2018
22
Parte I
Contextualização da Temática
Nesta parte inicial da tese, procuraremos identificar o terreno sobre o qual
iremos caminhar ao longo da nossa pesquisa. Serão apresentados os dados mais
significativos que configuram o contexto no qual emergiu a crise socioambiental,
a reação ética diante da problemática e os dois campos conceituais com que
iremos dialogar. Desta forma, esta primeira parte será constituída de três
capítulos.
O primeiro procurará identificar, no amplo quadro em que se deu a
emergência da crise socioambiental, as causas mais profundas da crise. No
segundo capítulo, serão mostrados de forma panorâmica os modelos de ética que
surgiram na tentativa de responder aos desafios da problemática ambiental. No
horizonte delineado pelo tema de nossa pesquisa, apresentaremos, no terceiro
capítulo, as duas mediações hermenêuticas -o paradigma ecológico e o conceito
geográfico de espaço, transformado em território - que nos parecem convergentes
com a nossa proposta ética.
23
1
A Emergência da Crise Socioambiental
Introdução
Em uma das teses que compõem o seu ensaio Sobre o conceito de História,
Walter Benjamim assim se expressa, referindo-se à marca deixada pelo tempo no
decurso de nossa existência: “Um encontro secreto está então marcado entre as
gerações passadas e a nossa. Fomos esperados sobre a terra. Nos foi dada, assim
como a cada geração que nos precedeu, uma fraca força messiânica”5. O olhar de
alcance profundo e longínquo sobre a História permitiu a Walter Benjamim
perceber a importância da rememoração do passado para uma compreenção mais
lúcida do presente em vista de uma ação eficaz e transformadora que possibilite a
construção de um futuro melhor.
A crise socioambiental dos nossos dias é bastante complexa nos seus efeitos
como também na variedade dos fatores que lhe deram origem. São causas que
deitam intrincadas raizes no solo em que emergiu o padrão civilizatório da
sociedade moderna sob os poderosos influxos da evolução científica, técnica e
industrial, compondo um cenário comum no qual se deu a atuação conjunta dos
diferentes atores. Para se compreender melhor a crise, portanto, necessário se faz a
abertura da cortina para se ver com clareza o pano de fundo em que se
desenvolvou a problemática. Numa palavra, é necessário conhecer o terreno
histórico do qual brotou a crise socioambiental.
O objetivo deste capítulo é situar, de forma panorâmcia, o contexto no qual
emergiu a problemática, objeto de nosso estudo. Serão apresentados os elementos
que consideramos mais determinantes na evolução da crise. No primeiro item,
será destacado o forte antropocentrismo que se robusteceu no alvorecer da
modernidade ocidental, favorecendo o surgimento do paradigma técnico-científico
com o consequente processo de objetivização (desencantamento) da natureza. No
segundo item, em conexão com o primeiro, abordaremos o tema da emergência do
5 W. BENJAMIM, citado por DUPAS, GILBERTO. O mito do progresso; ou progresso como ideologia. São Paulo: Editora Unesp, 2006, p. 61-62.
24
mito do progresso/desenvolvimento cujas implicações redundaram no debate atual
sobre a possibilidade de um desenvolvimento sustentável.
Ao longo deste nosso trabalho, o ambiente será compreendido como um
campo de interações entre o ser humano (a sociedade, a cultura) e a base físico-
biológica, daí porque a nossa temática será abordada como uma crise
socioambiental6.
1.1
Problema de fundo: O autocentramento humano na raiz da crise socioambiental
O modo como a nossa civilização técnico-industrial tem se relacionado com
o meio ambiente, que está na raiz da crise socioambiental, está ligado ao tipo de
compreensão que o ser humano tem de si mesmo e de sua posição frente à
natureza. Tal compreensão, hoje, é bastante criticada e questionada porque
assumiu uma posição extremamente arrogante de colocar-se sobre e não junto
com a natureza7. Autocentrado em si mesmo e considerando-se como o centro de
tudo e medida de todas as coisas, o ser humano já não se sente parte integrante da
natureza. Arrogantemente pretende superar sua dependência e sua ligação com
ela. Não somente se considera um ser à parte, mas também quer que a natureza
esteja a seu dispor e ao seu serviço para realizar seus projetos de crescimento
econômico. Esse antropocentrismo antiecológico, como bem observa J. R.
Jungues, “é apontado como responsável pela crise ambiental devido à atitude de
exploração da natureza em proveito próprio, cujo preço são o desequilíbrio e a
destruição do meio ambiente”8.
Essa separação ser humano–natureza, acompanhada do modelo utilitarista e
predatório com que nos relacionamos com ela, é tida como uma das expressões
6 O conceito geográfico de espaço (feito território), que será visto no capítulo terceiro, explicitará melhor essa compreensão de ambiente. 7 BOFF, L. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, R. de Janeiro: Sextante, 2004., p. 101. Cf. também RUBIO, A. G. Unidade na Pluralidade: o ser humano á luz da fé e da reflexão cristãs. S. Paulo: Paulus., 2001, p. 539-542; BATESON, G. Vers une Ecologie de l’Esprit. Paris, 1980, vol. 2, pp. 250-251. 8 JUNGES, J. R. Ecologia e Criação - Resposta cristã à crise ambiental. S. Paulo: Edições Loyola, 2001, p.10.
25
mais características do mundo moderno e ocidental, que se operou no bojo da
revolução científica a partir dos séculos XVI e XVII, cuja história, porém, pode
ser rastreada até um passado bem mais longínquo que chega até as fronteiras do
pensamento do mundo greco-romano9. Segundo J. de La Peña, na longa história
do relacionamento ser humano-natureza, um dos momentos determinantes foi a
mutação no próprio conceito de natureza. Enquanto que para os gregos, physis
compreendia toda a realidade existente (Natureza) – desde o cósmico até o divino,
passando pelo humano -, o termo latino natura (natureza) restringiu essa
significação, pondo em destaque os componentes da realidade que têm uma
gênese ou um nascimento. A natureza passou a ser vista, sobretudo, como a
natureza das coisas, e “as coisas são aquelas realidades das quais o homem pode
dispor ou sobre as quais tem algum poder”10. Ao longo deste trabalho, usaremos o
termo natureza, mas, como veremos no terceiro capítulo, buscando restaurar o
significado de totalidade ou de organismo vivo, do qual o ser humano é parte
integrante, segundo a compreensão do paradigma ecológico.
Por muitos séculos ainda, o Ocidente, sob a influência do humanismo grego
e da tradição bíblico-cristã, manteria uma atitude de reverência e de respeito ao
mundo natural, principalmente naquele ambiente pouco urbanizado onde o ser
humano se sentia estreitamente unido à natureza que lhe dava o sustento e cujos
ciclos orientavam significativamente o ritmo de vida e de organização das
comunidades humanas. Para o historiador das culturas e ecólogo norte-
americano, Thomas Berry, esse relacionamento sofreu uma profunda alteração
com o trauma provocado pela Peste Negra, que assolou a Europa de 1347-1349,
ocasionando a morte de aproximadamente um terço da população do Continente11.
Desconhecendo a existência de germes e micróbios, as pessoas não entendiam o
que se passava, aumentando ainda mais o medo e o pavor diante da ameaça de
9 É bom ter sempre presente que, para muitos estudiosos da ecologia, o comportamento antropocêntrico e arrogante frente à natureza já começa com a teologia judeu-cristã da criação que coloca o ser humano numa posição superior e acima do mundo criado. Cf. BERRY, Thomas. The Great Work, New York: Bell Tower, 1999, p. 136. Ver também a importante crítica de L. White em “The Historical Roots of Our Ecological Crisis”, Science, vol. 155, n. 3767 (1967), pp. 1203-1207. No capítulo 5 deste trabalho veremos como a teologia cristã tem se posicionado frente a esta crítica. 10 DE LA PEÑA, J.L. R. Crisis y Apología de la fé: Evangelio y nuevo milenio. Maliano: Editorial Sal Térrea, 1995., p. 250. 11 BERRY, Thomas. Op. cit., p.137: na cidade de Florença, no verão de 1348, restavam menos de 45.000 pessoas de um total de 90.000 habitantes que havia no começo do ano; em Sena, no mesmo ano, de um total de 42.000 habitantes, apenas 15.000 sobreviveram.
26
morte que vinha do misterioso mundo natural. Uma conclusão possível foi
interpretar a tragédia como uma punição divina a um mundo que se tornara
depravado e corrompido, merecendo ser desprezado pela humanidade que deveria
buscar refúgio e salvação somente na realidade espiritual e extra-mundana. Esse
contexto de medo frente ao desconhecido, representado pelo misterioso mundo
natural, marcou de tal forma a consciência da cultura do Ocidente ao ponto de
reforçar nos seres humanos a atitude de intervir cada vez mais na natureza para ter
controle, dominar, desvendar seus mistérios e modificá-la segundo seus próprios
interesses12. Dessa forma, começamos a enveredar por caminhos bem diferentes
daqueles que foram trilhados por pensadores que, fiéis a uma autêntica tradição
religiosa, viam o ser humano como parte de um todo criado pela bondade divina.
Era o que pensava, por exemplo, Tomás de Aquino, um século antes da Peste
Negra: “O universo inteiro participa da bondade divina e a representa mais
perfeitamente que uma criatura, qualquer que seja ela”13.
Apesar do impacto aterrador da Preste Negra, a natureza continuava
revestida de seu manto de sacralidade. O universo assim conhecido e
compreendido tinha um significado coextensivo à vida dos seres humanos os
quais se viam parte integrante dessa realidade - ao mesmo tempo fascinante em
sua beleza e desconhecida e temerosa em seus mistérios - sempre merecedora de
respeito e admiração. Pode-se dizer que, naquele contexto de interação com o
mundo físico, o ser humano encontrava-se a si mesmo na leitura que fazia do livro
do universo, do livro da vida, basicamente porque se sentia profundamente
integrado ao seu entorno natural, considerado inerente à natureza humana14. Essa
relação ainda harmoniosa dos seres humanos com a natureza vai sofrer uma
grande virada com o advento da modernidade que trouxe uma visão diferente de
mundo, uma concepção nova de como fazer ciência e um novo entendimento do
ser humano frente a si mesmo e à sua realidade circundante.
12 BERRY, T. Op. cit., p. 137-138. 13 S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, Q. 47, Art. 1. Citação da edição portuguesa: Suma Teológica II, São Paulo, Edições Loyola, 2002, p. 78. 14 Cf. BERRY, T. Op. cit., p. 15.
27
1.1.1
O novo paradigma técnico-científico e a natureza desencantada
Os caminhos da ruptura com a natureza receberam uma pavimentação
decisiva com a contribuição dos mestres fundadores do paradigma15 moderno de
nossa civilização técnico-industrial: Francis Bacon (1561-1626), Galileu Galilei
(1564-1642), René Descartes (1569-1650), Isaac Newton (1642-1727) e outros.
Com o surgimento das novas ciências e a expansão das fronteiras geográficas,
uma diferente cosmovisão foi sendo elaborada com a qual podia-se fazer um
paralelo entre o Ocidente cristão que - no período das grandes navegações partiam
do continente europeu rumo às longínquas terras desconhecidas - conquistava e
colonizava povos pagãos, e o homem que era chamado a conquistar e a dominar a
natureza. Criava-se, assim, um dualismo fundamental: um sujeito capaz de exercer
o conhecimento sobre um objeto, isto é, a humanidade (separada do resto de
outras formas de vida) chamada a dominar a natureza16.
O conhecimento, como forma de interpretar o mundo na ótica da relação
entre causa e efeito, segundo o método da nova ciência, torna-se como uma
“mania da modernidade”, na observação crítica de Bruseke17. A ciência passou,
assim, a ser concebida como poder, como acreditava Francis Bacon, conferindo ao
ser humano a capacidade de exercer o domínio sobre a natureza18. Com essa
mentalidade, F. Bacon poderia pensar a natureza como um objeto a ser subjugado
e, à semelhança de uma escrava, ser dominada para o nosso serviço19. Nas
palavras de D. Marcondes,
15 Segundo o sentido dado por Thomas Kuhn em sua obra A Estrutura das Revoluções Científicas (São Paulo: Perspectiva, 1991), ou seja, modelos e padrões de percepção, de explicação e de atuação sobre a sociedade e o mundo. Para um estudo aprofundado da passagem da concepção clássica de ciência para a concepção moderna, ver a obra de ALEXANDRE KOYRÉ, Estudos de história do pensamento científico, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. 16 Cf. SANTA ANA, Júlio de. O sistema Socioeconômico atual como causa do desequilíbrio e da pobreza. Concilium, 261 (1995), p. 17. 17 BRUSEKE, Franz Josef. “A crítica da técnica moderna”. Estudos Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro, CPDA/UFRRJ, nº 10, abril 1998, p. 18. 18 Essa relação entre conhecimento e poder no interesse de dominar a natureza aparece no seguinte trecho do Novo Organon: “Ciência e poder do homem coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada, frusta-se o efeito. Pois a natureza não se vence, se não quando se lhe obedece. E o que à contemplação apresenta-se como causa é regra na prática”. BACON, Francis. Novum Organum (1620). In: Os Pensadores: Francis Bacon. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 13. 19 Cf. MOLTMANN, J. Deus na Criação: Doutrina Ecológica da Criação, Petrópolis: Vozes, 1993, p. 51, nota 12.
28
“Bacon é um pensador da técnica, da ciência como tendo necessariamente uma aplicação técnica, sendo um saber instrumental... Surge desta forma uma nova concepção de ciência, oposta à dos gregos, que interage agora com a técnica. Surge igualmente uma nova concepção de relação do homem com o real, com o mundo que o cerca. A natureza não é mais essencialmente uma realidade a ser conhecida em si mesma – isto é, contemplada – mas uma realidade na qual o homem pode intervir em seu proveito”20.
O dualismo cartesiano da res cogitans e da res extensa passou a
compreender o mundo como um instrumento (objeto) a ser conhecido e
controlado pela razão humana (sujeito), aprofundando ainda mais o abismo entre
o ser humano e a natureza: o que verdadeiramente constitui o sujeito humano tem
uma realidade distinta da natureza. O mundo natural deve sua existência ao ser
humano na medida em que este, por sua capacidade de reflexão, descobre a
natureza, confere-lhe estatuto de verdade e a domina como “senhor e possuidor”.
Convém notar que esse dualismo cartesiano repercute também no próprio tecido
social, atingindo negativamente as relações entre os próprios seres humanos uma
vez que o “eu” humano, cartesianamente separado de sua corporeidade, também
se separa dos outros seres, criando condições favoráveis a um convívio social
marcado pelo individualismo, exacerbado subjetivismo e um injustificado uso do
poder para dominar os seus pares21.
Mas, voltemos ao mundo natural e assinalemos mais um ponto de
empobrecimento da natureza em decorrência desse reducionismo. Vista como
objeto, um mero recurso à disposição dos interesses humanos, e desprovida de
qualidade ontológica e axiológica, a natureza sofre um processo de
desencantamento imposto pelo antropocentrismo da cultura ocidental. A partir
deste quadro referencial e da imagem mecanicista do mundo, a natureza passa a
ser compreendida como espaço de domínio e lugar de exploração; generaliza-se a
convicção de que somente tem sentido aquilo que o ser humano recria,
transformando-o à sua medida e de acordo com o próprio interesse22. A “filosofia
prática”, anunciada por Descartes, que estimulava um audacioso programa de
desenvolvimento técnico-científico baseado no controle e uso do mundo natural,
20 MARCONDES, D. “Ciência, técnica e natureza: uma análise histórico-filosófica” in VVAA. Reflexão Cristã sobre o Meio Ambiente. São Paulo: Ed. Loyola, 1992, p. 36 21 Cf. RUBIO, A. G. Unidade na Pluralidade, p. 541. 22 GÓMEZ-HERAS, J. M.G. “El problema de uma ética del ‘medio ambiente’, in GÓMEZ-HERAS, J.M.G. Ética del Médio Ambiente: Problema, Perspectivas, História. Madrid: Tecnos, 2001, p.19.
29
não ocultava o seu objetivo de tornar a espécie humana senhora e possuidora da
natureza23. Assim, quanto mais se descortina este pano de fundo, ou seja, o
significado da quantificação e formalização matemática da res extensa – e a
conseqüente dessacralização da natureza - mais claramente a crise socioambiental
aparece em seu significado mais profundo.
As conseqüências deste trato meramente funcional e instrumental da
natureza, que em boa medida deveu-se à visão cartesiana de mundo24, foram
desastrosas. O mundo já não é mais apreciado na sua qualidade de “criação”, mas
como “objeto” do saber e do poder humanos. Em vez de cultivada, a natureza
passou a ser explorada. Perdeu a sua áurea de contemplação e respeito, como
denuncia Gerard Siegwalt: “Em vez de ser respeitada (‘cultura’ vem da mesma
raiz de ‘cultus’: ‘colere’ que significa ao mesmo tempo cultivar e honrar,
respeitar) em sua identidade, (...) ela é reduzida à sua funcionalidade”25. Uma
mudança radical no modo de compreender a natureza que se opera no momento
em que a razão moderna se afirma como fonte do conhecimento objetivo e
verdadeiro, dispensando qualquer outra fonte externa ao sujeito humano. Nas
palavras de I. Carvalho:
“Essa mudança de posição, que centrava o sujeito humano e a razão como fonte do conhecimento verdadeiro, inaugurou a chamada ‘revolução científica’ e, consequentemente, fundou a modernidade. A idéia de que o mundo era animado por uma ordem ou verdade transcendente à existência humana foi perdendo força. O mistério tendia a ser silenciado. As forças cósmicas e os deuses já não habitavam a natureza, e tudo o que existia devia ser submetido ao conhecimento racional”26.
23 “Pois elas me fizeram ver que é possível chegar a conhecimentos que sejam muito úteis à vida e, que, em vez dessa Filosofia especulativa que se ensina nas escolas, se pode encontrar uma outra prática, pela qual, conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente como conhecemos os diversos misteres de nossos artífices, poderíamos empregá-los da mesma maneira em todos os usos para os quais são próprios, e assim nos tornar como que senhores e possuidores da natureza”.DESCARTES, R. “Discurso do Método”. In: Os Pensadores: René Descartes. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 71. 24 É interessante notar que há vozes discordantes quanto à responsabilidade do dualismo cartesiano na objetivação da natureza. É o caso de A. Ganoczy que, mesmo reconhecendo um exagerado antropocentrismo no período da Ilustração, argumenta que “fazer de Descartes o bode expiatório para uma objetivação matemática muito fria de plantas, animais e matéria, debaixo da tirania da “res cogitans”, parece uma iniciativa que não possui fundamentação nos textos do filósofo”. Cf. GANOCZY, A. Perspectivas ecológicas na doutrina cristã da criação. Concilium 236 (1991), Petrópolis, Vozes, p. 57. 25 SIE GWALT, Gerard. Citado por AGOSTINI, Nilo. Ecologia e Vida Consagrada: por um testemunho ético-profético. Convergência, 373 (2004), p. 276. 26 CARVALHO, I. C. M. Educação Ambiental: a formação do sujeito ecológico. S. Paulo: Cortez Editora, 2004, p. 114.
30
Como observa Brusek, realizava-se assim o programa estabelecido pelo
iluminismo, isto é, o desencantamento do mundo pela luz da razão: “Seguindo o
raciocínio de Bacon e de outros iluministas, a razão deveria substituir a
superstição e erguer seu domínio sobre a natureza”27. O sujeito humano, sentindo-
se superior e destacado da natureza, e lançando mão dos avanços que a “Ciência
Nova” lhe proporcionava, passou a ter em suas mãos um poderoso instrumental
com que pensou encontrar o caminho que lhe conduziria a um nível de vida cada
vez melhor. Para tanto, bastava conhecer e dominar os segredos da natureza e dela
extrair os recursos com que produziria os patamares de progresso e de
desenvolvimento cada vez mais elevados segundo as satisfações e exigências do
consumismo humano.
1.2
O mito de progresso/desenvolvimento
Na avaliação de R. Burggraeve, essa compreensão da natureza – mero
recurso para satisfazer as necessidades humanas - resultou no “atual
antropocentrismo instrumentalista do Ocidente”, agora mundializado, que, no seu
modo de pensar em termos de racionalidade, de estratégia da economia visando à
utilidade e à eficiência, reduz todo o resto a um meio a serviço da tendência
emancipadora da identidade do eu”28. Com a cosmovisão positivista de A. Comte
(1798-1857) - segundo a qual a humanidade chegara a uma fase superior àquelas
dominadas pela religião e pela metafísica -, intensifica-se ainda mais o processo já
em andamento da objetivação da natureza, tendo como resultado o aceleramento
de sua exploração tecnológica29.
“Foi August Comte quem deu a colaboração mais decisiva à ideia de progresso como grande farol do caminho humano, criando uma lei que pertencia exclusivamente a uma “nova ciência”. Comte pretendia lançar as bases de uma nova sociedade baseada no positivismo, usando até a força – se necessário fosse. Com apenas 22 anos, publicou o Plano para as operações científicas necessárias para a reorganização da sociedade (1822) no qual esboçava sua filosofia
27 BRUSEKE, F. J., op. cit., p. 23. 28 BURGGRAEVE, J. Responsável por ‘um novo céu e uma nova terra’. Concilium, 236 (1991), Petrópolis: Vozes, p. 123. 29 SWIMME, Brian and BERRY, Thomas. The Universe Story, San Francisco: HarperSanFrancisco, 1992, p.236.
31
positivista e a lei dos três estágios. Todos os principais conceitos e avanços da humanidade passariam por três etapas: a teológica, em que a mente inventa; a metafísica, em que abstrai; e a científica, em que ela se submete aos fatos positivos. A prova incontestável do terceiro estágio seria o reconhecimento da invariabilidade das leis naturais”30.
Esse contexto positivista foi favorável ao surgimento do chamado mito ou
ideologia do crescimento ilimitado. Numa palavra, a fé no progresso substituiu a
fé na providência31. O instrumento que alavanca o progresso é a tecnologia que,
por sua vez, deriva do conhecimento científico com a sua racionalidade
instrumental-analítica, subjetivista, centrada apenas no ser humano,
desconsiderando o valor intrínseco dos seres da natureza e transformando-os em
meros meios para os fins da vontade humana, voltada principalmente para a
obtenção de riquezas e de bem-estar individual32. Acreditava-se, como nota G.
Dupas, que o aproveitamento pragmático do conhecimento científico por meio das
técnicas levaria a humanidade a um progresso, no sentido da ilustração e da
emancipação33.
Os métodos de pesquisa, para mais facilmente manipular o fenômeno da
vida, foram desenvolvidos com base em abstrações que devem ser mensuradas e
quantificadas de tal modo que, a natureza, reduzida a objeto de exploração, está aí
para ser aproveitada, usada e instrumentalizada. Esta manipulação não suscita
reservas nem escrúpulos porque, como bem afirma Julio de Santa Ana, “trata-se
de uma vida medida, uma vida sem mistério, sem dimensão sacramental”34. J.
Moltmann também denuncia este tipo de “progresso” que “parece entrar num
círculo vicioso, no qual ele mesmo não mais serve à vida, mas a morte”, e
criticamente nos questiona: “Será que a natureza não é outra coisa senão uma
‘terra sem dono’, da qual o ser humano pode se apropriar para fazer com o ela o
que quiser?”35.
30 DUPAS, G., op. cit., p. 52. 31 DE LA PEÑA, J. L. R. Op. cit., p. 251. Para um bom resumo da nova concepção de ciência e de tecnologia, no advento da modernidade, e a sua relação com a natureza, cf. DANILO, Marcondes. Ciência, técnica e natureza: uma análise histórico-filosófica. Op. Cit., p. 31-40. 32 A atual crise ecológica questiona essa concepção moderna de ciência que fragmenta a realidade em compartimentos isolados e analisa a natureza, reduzida a objeto, para submetê-la aos fins determinados pelo ser humano. Busca-se, hoje, uma postura epistemológica mais holística onde a realidade é compreendida em suas relações e inter-conexões e a natureza é respeitada enquanto portadora de sentido e fins intrínsecos. Cf. JUNGES, J.R. Ecologia e Criação, op. cit., p. 11. 33 DUPAS, G. Op. cit., p. 121. 34 SANTA ANA, Julio de. Op. cit., p. 16. 35 MOLTMANN, J. Op. cit., p. 53.
32
Este tipo de progresso, ou “racionalidade de resultados” na terminologia
usada por Max Weber36, segue o mesmo dinamismo que reduz a natureza à
condição de mero objeto e leva ao domínio e à exploração selvagem sobre ela e,
por conseguinte, tem provocado grandes estragos ao meio ambiente. É inegável,
contudo, a importância do conhecimento científico e das conquistas tecnológicas
para um progresso que se manifesta na melhoria da qualidade de vida. Como bem
observa J. Siqueira, “o que não se pode é dar uma ênfase exagerada à
racionalidade quantitativa, esquecendo que na relação com a natureza existe uma
outra racionalidade que não pode ser mensurada e quantificada, pois seus
fundamentos são a qualidade e os valores”37.
Convém observar, como nos recorda J.L. de La Peña, que esta visão da
natureza como material a ser explorado pelos humanos esteve no horizonte de
progresso que também orientou os modelos de desenvolvimento adotados pelo
projeto socialista-marxista. A denúncia da exploração do homem sobre o homem,
que Marx faz no Capital, não se estende à da exploração do ser humano sobre a
natureza. Antes, é pela mediação do trabalho que o ser humano se liberta às custas
da natureza, verificando-se, assim, uma transposição para o materialismo dialético
do modelo dualista cartesiano homem-senhor / natureza-escrava38.
Ao se estruturar ao redor do eixo tecnologia-economia, a sociedade moderna
nasce profundamente antiecológica, pois, tanto no modelo capitalista quanto na
versão socialista, visa à produção ilimitada de riqueza mediante a exploração do
mundo natural. Estes dois modelos de sociedade, reproduzindo a racionalidade
moderna de apropriação indiscriminada da natureza e seguindo uma lógica
produtivista, despiram a natureza de qualquer encantamento e reduziram-na a um
reservatório de “matérias-primas” e “recursos naturais” à disposição dos donos
dos meios de produção (o Estado ou o capital)39. W. Benjamim, um crítico
contundente da exploração capitalista da natureza, também foi capaz de perceber,
com muita lucidez, a ideologia do progresso de um certo socialismo “científíco”
36 Segundo M. Weber, esta “racionalidade de resultados”, que dá suporte aos conceitos modernos de progresso, bem-estar ou felicidade, está na origem do atual problema socio-ambiental. A este tipo de razão se opõe uma “racionalidade conforme valores”. Cf. GÓMEZ-HERAS, op. cit., p. 22. 37 SIQUEIRA, J. C. Ética e Meio Ambiente. São Paulo: Ed. Loyola, 2002, p. 11. 38 Cf. DE LA PEÑA, J. L. R. Op. cit., p. 252. 39 BOFF, L. Ecologia, op. cit., p. 98.
33
que reduz a natureza a uma “matéria-prima da indústria, a uma mercadoria
gratuita, a um objeto de dominação e de exploração ilimitada”40.
Depois da queda do Muro de Berlim, ficou evidente como a economia dos
países que seguiram o socialismo real, gerenciada pelo Estado, foi extremamente
agressiva ao meio ambiente, provocando um acentuado processo de poluição e
desequilíbrio ecológico41. No lado liberal-capitalista, tem ocorrido o mesmo sendo
que, nos países mais pobres, o quadro ainda é mais grave por apresentar, dentro da
degradação ambiental, uma poluição social que gera pobreza e miséria. Com
acerto afirmou J. Moltmann: “Para a natureza que sofre as ações é indiferente se
ela é destruída através da expansão capitalista ou através do aumento da
produtividade socialista. A civilização técnico-científica certamente é, para a
natureza, o pior monstro que já existiu sobre a face da terra”42. Para o escritor
norte-americano, Peter Drucker, cujo livro Innovation and Entrepreneurship é
largamente utilizado nas escolas de administração empresarial, o empresário é
quem cria recursos e valores; antes de serem adquiridos e usados, “cada planta é
apenas uma erva daninha e cada mineral é apenas uma rocha”43. Ou seja, para os
detentores do capital, o valor da natureza é reduzido à posse e ao uso que se pode
fazer dela.
Enfim, essa “doença antropológica” que contagiou a humanidade tem
gerado uma guerra sem trégua. Centrado em si mesmo, o ser humano se volta
contra o outro e contra a natureza. O enfoque dualista que caracteriza a cultura
antropocêntrica tem inerente uma lógica de dominação que atinge igualmente os
seres humanos e os demais componentes da biosfera. O problema socioambiental,
na verdade, tem uma significação bem mais ampla do que a contaminação do
meio ambiente; ele revela uma “crise de todo o sistema de vida do mundo
industrializado moderno”, no interior do qual a conquista do poder é vista como
um dos valores vigentes. Portanto, na chamada crise socioambiental, estão
incluídas também as crises sociais, de sentido e de valor da sociedade humana44.
40 DUPAS, G., op. cit., p. 253. 41 Cerca de 15% do território da ex-URSS e 13% da Polônia estavam em situação de catástrofe ecológica, após o regime totalitário nesses países. Cf. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, Igreja e a questão ecológica in Sedoc 25 (1992) n. 234, p. 213. 42 MOLTMANN, J. Deus na Criação, op. cit., p. 52. 43 DRUCKER, Peter. Innovation and Entrepreneurship: Practice and Principles. New York: Harper and Row, 1985, p. 38. 44 MOLTMANN, J. Deus na Criação, op. cit., p. 46-48.
34
Nas palavras de Clive S. Lewis, “o que chamamos de poder do ser humano
sobre a natureza vem a ser, na verdade, o poder exercido por alguns
homens/mulheres sobre outros homens/mulheres, utilizando a natureza como seu
instrumento”45. Como resultado, temos uma sociedade moderna que se apresenta
profundamente dualista e desigual: pessoa/natureza, homem/mulher,
masculino/feminino, Deus/mundo, corpo/espírito. E um dos pólos passa a dominar
o outro46. Vivemos, por conseguinte, uma “crise de dominação”. O “eu” humano,
tomado por um fechado subjetivismo e por um orgulhoso antropocentrismo,
desenvolveu um instrumental técnico muito poderoso, “capaz de dominar
predatoriamente e mesmo de destruir o mundo em que vive”47. O projeto de
civilização oriundo na modernidade, baseado numa racionalidade instrumental e
quantitativa, desenhou um espaço de vida no qual os traços mais característicos
denunciam uma realidade profundamente dualística, desigual e injusta. Tudo isso
vai desaguar na problemática socioambiental, vale dizer, ela é uma resultante de
um mal-estar gerado no interior mesmo da cultura moderna e industrial:
“Os problemas ecológicos questionam os próprios fundamentos da civilização moderna: individualismo, autonomia, ciência, técnica, industrialização, urbanização, consumismo e conforto. A compreensão do ser humano como referência e medida de todas as coisas está sendo criticada, porque criou um distanciamento e até uma oposição entre o humano e o natural. A humanidade não se sente parte integrante da natureza... O antropocentrismo da cultura moderna é apontado como responsável pela crise ecológica devido à atitude de exploração da natureza em proveito próprio, cujo preço são o desequilíbrio e a destruição do meio ambiente”48.
Assim, como bem observa Enrique Leff, a crise socioambiental dos nossos
dias aparece como sintoma de uma crise de civilização, marcada pelo modelo de
modernidade no qual há um domínio de um tipo de desenvolvimento que se apóia
na razão tecnológica em detrimento da organização da natureza49. Esse modelo
civilizatório, engendrado no seio da sociedade moderna e ocidental, tornou-se um
movimento mundializado, um verdadeiro processo de “ocidentalização do
45 Citado por BOFF, L. em Ecologia, Mundialização, Espiritualidade: A emergência de um novo paradigma. São Paulo: Editora Ática, 1993, p. 31. 46 Ibid. 47 RUBIO, A. Garcia. Unidade na pluralidade, op. cit., p. 541. 48 JUNGES, J. R. Ecologia e Criação, op. cit. p. 9 e 10. 49 LEFF, Henrique. Saber Ambiental. Sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 17.
35
mundo” – como o denominou S. Latouche50 – no qual se impõe a busca de um
desenvolvimento que segue uma lógica utilitarista, reduz a natureza a mero
recurso a ser transformado em riqueza, privilegia o econômico como eixo em
torno do qual se estruturam as outras dimensões constitutivas do espaço social, e
se expande por todas as partes do mundo pela imposição dos países ricos do
Ocidente. Para Rua, que vê esse movimento como um tipo de espiral capitalista
cuja intenção é integrar espaços e pessoas como produtores e consumidores,
“esse projeto societário levou a todas as partes do mundo (embora com intensidade diferenciada) não apenas a lógica industrial, produtivista, utilitarista e consumista do capitalismo mas a concepção dicotômica da relação homem/natureza, desenvolvida na modernidade ocidental”51.
Tal como “um magma de significações imaginárias”52 que institucionalizam
uma determinada ordem social a qual passa a ser percebida e aceita pelos
indivíduos, esse modelo de desenvolvimento engendrado pela modernidade
ocidental foi elevado ao topo da idealização, estabelecido como o progresso a ser
conseguido mediante o crescimento econômico. Torna-se assim, um modelo
dominante com pretensão de imposição global. O caráter heterônomo do
desenvolvimento foi contraditoriamente paralelo a um projeto anterior e mais
amplo de autonomia humana, isto é, um projeto de libertação do homem em
relação à natureza e em relação aos outros homens. Com o suporte da
racionalidade técnico-científica, buscou-se uma autonomia individual e social cujo
resultado foi, através da tríade capitalismo-liberalismo-movimento revolucionário,
conferir funcionalidade imaginária ao progresso (desenvolvimento) e ao
crescimento material. Estes seriam, então, fatores decisivos para a obtenção da
felicidade e emancipação humanas.
Resultados positivos, sem dúvida, foram obtidos com a ideologia do
desenvolvimento tecnológico, baseada na racionalidade instrumental e na
afirmação do sujeito moderno. Mas, como questiona H. Küng, “tudo deverá
continuar eternamente assim? Sem limites? Crescimento? Progresso ilimitado?”
50 LATOUCHE, Serge. A Ocidentalização do mundo. Petrópolis: Vozes, 1994. 51 RUA, João. “Desenvolvimento e Espaço Geográfico: uma contribuição à educação ambiental. In: SIQUEIRA, Josafá Carlos de (org.). Educação Ambiental. Valores éticos na formação de agentes multiplicadores. Rio de Janeiro: Ed. Loyola, 2001, p. 16. 52 CASTORIADIS, C. Los domínios del hombre. Las encrucijadas del laberinto. Barcelona: Gedisa, 1994, p. 68.
36
“Na realidade – responde H. Küng - , o progresso eterno, todo poderoso, válido para tudo e todos, este grande deus das modernas ideologias com seus rígidos mandamentos revelou suas duas caras fatais e a fé no progresso já perdeu a sua credibilidade. Tomou-se consciência de que o progresso econômico como objetivo em si mesmo produziu em toda parte do mundo conseqëncias desumanas. Estas conseqüencias, muitas vezes, são minimizadas por parte de cientistas que dizem tratar-se de ‘efeitos colaterais’ do progresso científico. Também economistas dizem ser ‘efeitos extremos do crescimento econômico’53.
Infelizmente, o que nos parece é que o almejado objetivo da autonomia e
felicidade humanas não foram logrados. “Para muitos autores, houve um fracasso
do desenvolvimento à maneira ocidental”54. Outros chegam mesmo a questionar
se tal modelo de desenvolvimento não seria um verdadeiro “cavalo de Tróia”,
oferecido falaciosamente pelos detentores do poder político e econômico, através
da sedução e da violência, às populações dos países pobres do mundo55.
No rastro dessa modernização, vista como crescimento econômico e
progresso tecnológico, homogeneizou-se uma visão da realidade, dentro de um
pensamento unidimensional e de um caminho que conduziu à globalização
econômica sob a égide absoluta do mercado. Nesse processo, “desconhece-se a
diversidade e a diferença como princípios constitutivos do ser e da vida, como
base de uma democracia plural e uma equidade social aberta à diversidade
cultural”, avalia criticamente Leff56.
Entrar na modernidade, com crescimento e progresso, passou a ser sinônimo
de ocidentalização, com o fechamento às diferenças culturais e à diversificação
das formas de desenvolvimento57. Um movimento, portanto, heterônomo que nega
o direito de cada povo a buscar seus próprios modelos de desenvolvimento.
Segundo Rua, em concordância com S. Latouche, “o Ocidente se transformou
numa máquina social incontrolável, que tem a certeza de ser universal por ser
reproduzível”58. Ademais, uma máquina controlada por uma razão submetida às
normas da racionalidade econômico-tecnológica, portanto, dominadora e
escravizadora. Se por um lado, foi capaz de produzir os ganhos do conhecimento
científico e suas melhorias para a vida humana, além do pensamento crítico, da
53 KUNG, H. Projeto de Ética Mundial. Uma moral ecumênica em vista da sobrevivência humana. S. Paulo: Paulinas, 2003, p. 33-34. 54 RUA, J. Op. cit. p. 17. 55 VERHELST, Thierry G. O Direito à Diferença. Identidades culturais e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1992. 56 LEFF, E. Op. cit. p. 347. 57 RUA, J. Ibid. 58 Ibid., p. 17.
37
liberdade e da democracia, conduziu também a humanidade pela “mão invisível”
e pelas leis cegas do mercado59, desencadeando um processo de brutal exploração
do homem pelo homem e de degradante pilhagem da natureza.
Como facilmente se pode perceber, a maioria dos países, compulsoriamente
convidados a acompanhar esse movimento de “ocidentalização”, mal conseguiu
chegar na ante-sala da mansão da modernidade onde reside soberbamente o
desenvolvimento/progresso. Na verdade, as sociedades “subdesenvolvidas” do
assim chamado “Terceiro Mundo” nem chegaram a entrar, ficaram de fora, porque
os lugares nesta mansão são determinados segundo modelos conservadores,
dominantes e socialmente excludentes. Estes modelos seguem uma lógica
desigualizadora, “privilegiando uns espaços em detrimento de outros”. De modo
que, embora reconhecendo-se a parcela positiva de contribuição à humanidade,
esse tipo de desenvolvimento tem produzido “desigualdades, desemprego,
pobreza, fome e insegurança no cotidiano”60.
1.2.1
Da impossibilidade de um desenvolvimento sustentável
Pouco antes da Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento, a Eco-92, João Paulo II assim se expressava,
mostrando a íntima conexão entre a problemática ambiental e o tipo de relações
intra-humanas:
“Este importante Encontro objetiva examinar em profundidade a relação entre a proteção do ambiente e o desenvolvimento dos povos. São problemas que, em suas raízes, apresentam uma profunda dimensão ética a qual envolve a pessoa humana... nos seus direitos concernentes à liberdade, que deriva da sua dignidade de ter sido feita à imagem de Deus, e com os deveres que cada pessoa tem para com as gerações futuras”61.
59 LEFF, E. Op. cit. p. 39. 60 RUA, J. “Desenvolvimento, espaço e sustentabilidades”. In: RUA, J. (org.). Paisagem, Espaço e Sustentabilidades: Uma perspectiva multidimensional da Geografia. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2007, p. 182. 61 JOÃO PAULO II. Mensagem na Praça de São Pedro, 31 de maio de 1992. In PONTIFICAL COUNCIL FOR JUSTICE AND PEACE, From Stockholm to Johannesburg: An historical Overview of the Concern of the Holy See for the Environment. 1972-2002.Vatican Press, 2002 p.45. A tradução é nossa.
38
Como foi visto anteriormente, o modelo de desenvolvimento no atual
estágio de globalização, espoliativo e em vista da obtenção de lucro, causa
manipulação e domínio tanto da natureza como dos seres humanos, de modo que a
pobreza e a crise ambiental estão relacionadas. Com efeito, a injusta separação
entre ricos e pobres em nossas sociedades já representa uma agressão ecológica
porque
“os ricos consomem bens em demasia, com grande desperdício e sem solidariedade com a geração atual e com a geração futura; para defender seu status de privilégio montaram uma máquina de morte, com a possibilidade técnica de guerras nucleares e químicas que podem implicar em seu limite, o biocídio, o ecocídio e até o genocídio; além disso defendem um sistema de produção que, por sua lógica interna, é depredador da natureza. Os pobres, vítimas dos ricos, consomem de menos e para sobreviver vivem em lugares insalubres, deflorestam, contaminam as águas e os solos, matam animais raros, etc. Com mais justiça social estariam em condições de realizar uma melhor justiça ambiental”62.
Na raiz do problema, como já foi sublinhado anteriormente, está uma lógica
perversa – alimentada por um subjetivismo autocentrado e egoísta – que leva a
explorar seres humanos, a espoliar nações inteiras e a depredar e destruir a
natureza63. É esta lógica, profundamente desumana, que gera uma brutal e injusta
desigualdade social e condena os pobres a uma morte prematura64. Ademais,
como mostra a análise de Eduardo Gydinas, as mesmas causas que oprimem os
pobres no âmbito social, econômico e político também os marginalizam
ecologicamente, forçando-os a ocupar e morar nos piores e mais impróprios
ambientes65. De modo que, “o necessário equilíbrio ecológico não será atingido
62 BOFF, L. ELIZONDO, V. Ecologia e pobreza: grito da Terra, grito dos pobres. Concilium 261(1995), p. 7-8. 63 Sobre a relação entre crise ambiental e pobreza tendo como causa comum o atual sistema sócio-econômico, cf. SANTA ANA, Júlio. O Sistema Sócio-Econômico Atual como Causa do Desequilíbrio e da Pobreza. Concilium 261 (1995), p. 9-19. Todo este número da Concilium trata do tema ecologia e pobreza. 64 Estima-se que 85% de toda a riqueza da Terra é consumida pelos países desenvolvidos (que têm aproximadamente 20% da população mundial). Somente os Estados Unidos, cuja população não ultrapassa 6% da população mundial, gastam mais de 30% da energia e dos recursos primários do planeta. Cf. AZPITARTE, E. L. Reconciliarse con la creación, resquebrajada por la avidez de los ricos. Sal Terrae, 86 (1997), p. 815. Ademais, segundo dados da ONU, no mundo, 15 milhões de crianças morrem antes de concluir o quinto dia de vida por causa da fome ou das doenças da fome; 150 milhões são subnutridas e 800 milhões de pessoas vivem permanentemente com fome. Na América Latina, a população abaixo da linha de pobreza aumentou de 41% do total em 1980 (136 milhões de pessoas) para 43% em 2000 (207 milhões); em 2003, já alcançava 44% (237 milhões). A população considerada indigente, em 2001, era 19%; em 2003, esse índice crescia para 20%. Cf. DUPAS, G. O mito do progresso, op. cit., p. 154-155. 65 GYDINAS, E. Ecologia Social na Perspectiva dos Pobres. Concilium 261 (1995), Petrópolis: Vozes, p. 130. Segundo dados da ONU, divulgados pelo Jornal do Brasil, edição de 7 de outubro de 2003, 31,6% da população do mundo vivem em favelas. Nos países em desenvolvimento, a
39
se não forem levadas em conta as formas estruturais de pobreza que existem em
todo o mundo”66. Ou seja, não haverá justiça ecológica – respeito ao meio
ambiente – se permanecem as injustiças e as desigualdades sociais.
O sistema econômico que predomina em nossa sociedade é duplamente anti-
ecológico pela injusta exploração a que submete tanto o ser humano como a
natureza, revelando uma falta de solidariedade que é inerente ao sistema. O
equilíbrio do ambiente não é levado em conta pela avidez desenfreada e a
ganância por um crescimento material ilimitado, comprometendo seriamente a
qualidade de vida humana e do ambiente natural, pois “a natureza pode satisfazer
todas as necessidades do homem, mas não sua ganância”67. De maneira que o
grito dos pobres – talvez a chaga mais dolorosa na problemática ecológica,
segundo López Azpitarte, porque é o resultado de uma brutal e injusta
desigualdade social – revela uma falta de comunhão e de solidariedade sem as
quais não há reconciliação com a natureza e com o ser humano. O problema
fundamental não está na limitação das fontes naturais, pois, admitindo-se a
hipótese da inesgotabilidade da natureza, esta nunca seria suficiente para
satisfazer os níveis de competição e de consumismo de uma sociedade que está
em constante antagonismo com as exigências da natureza e condena a maior parte
da humanidade a viver na miséria68.
Denuncia-se essa “economia de cowboy”69 que se sustenta na agressão ao
outro – natureza e ser humano – na busca do “ter sempre mais”, do lucro a todo
população que vive em zonas de miséria e pobreza representa 43% do total, enquanto que, nos países desenvolvidos, este número não passa de 6%. No Brasil, pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatisticas (IBGE), divulgada pelo Jornal O Globo, edição de 13 de novembro de 2003, mostra que, de 1999 para 2001, o número de domicílios cadastrados em favelas passou de 921 mil para 2,36 milhões, um crescimento de 156%. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o número de brasileiros que mora em assentamentos precários e moradias inadequadas, por falta de renda, aumentou consideravelmente nos últimos anos. Em 2007, a população que vive em cortiços, favelas, loteamentos irregulares ou nas ruas cresceu dois milhões e alcançou 54, 6 milhões de pessoas. Dessa população, 6,9 milhões de pessoas vivem em favelas e 7,3 milhões em invasões ou áreas com situação fundiária irregular. Isso representa 13,8 milhões de pessoas sem acesso a água potável e 30,1 milhões desprovidas de esgoto sanitário (cf. Jornal do Brasil, 22 de outubro de 2008). 66 JOÃO PAULO II. Mensagem do Dia Mundial da Paz, 1990, n. 11. In: PONTIFICAL COUNCIL FOR JUSTICE AND PEACE, p. 120. 67 M. GANDHI. Citado por RIBEIRO, Berta. “Consciência Ecológica na Amazônia: a experiência indígena. Concilium, 261 (1995), p. 20. 68 AZPITARTE, L. Reconciliarse com la creación, resquebrajada por la avidez d los ricos. Sal Terrae, 86 (1997), p. 815. 69 Expressão utilizada pelo economista Kenneth E. Boulding, referindo-se à economia capitalista baseada na presunção de invadir e explorar qualquer recurso natural ainda não ocupado pela
40
custo, sem se preocupar com o “ser sempre mais”, sem prestar atenção solidária
com os pobres e, por conseguinte, incapaz de realizar um autêntico e genuíno
desenvolvimento. Nas palavras de João Paulo II:
“Percebemos que os maiores problemas econômicos do nosso tempo não dependem da falta de recursos, mas no fato de que as atuais estrutu ras econômicas, sociais e culturais estão mal equipadas para atender as necessidades de um genuíno desenvolvimento. É com razão, portanto, que os pobres, tanto nos países em desenvolvimento quanto nos países prósperos e ricos, ‘exigem o direito de participar na partilha dos bens materiais e de fazer um bom uso de sua capacidade de trabalho, contribuindo, assim, para a formação de um mundo mais justo e mais próspero para todos’”70.
Percebe-se, assim, ser muito necessário re-examinar o conceito de
desenvolvimento sustentável, incorporado nos discursos ecológicos e adotado nos
documentos oficiais, como os das Nações Unidas nas conferências mundiais do
Rio (1992) e de Johannesburgo (2002)71. A principal crítica está na permanência
do fator econômico como gerador de desenvolvimento e como categoria base para
se pensar o social. O qualificativo sustentável não vem alterar a lógica econômica
subjacente ao modelo dominante de desenvolvimento de modo que,
permanecendo esse paradigma, não há lugar para o respeito nem pelo ser humano
nem pela natureza, como denuncia S. Latouche para quem “a incorporação de um
adjetivo não significa que realmente se questione a acumulação; no máximo,
significa acrescentar uma faceta social ou um componente ecológico ao
crescimento econômico72”. Outros autores, como Acselrad e Leroy, também
criticam a permanência do crescimento econômico que inviabiliza a busca da tão
desejada sustentabilidade: “O desenvolvimento sustentável não escapa à
hegemonia do mercado”73.
atividade humana, visando a obtenção do lucro desejado. Cf. BOFF, L. Social Ecology: Poverty and Misery. In: HALLMANN, D. G. (ed.). Op. cit., cit., p. 242 70 JOÃO PAULO II. Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2000. In: PONTIFICAL COUNCIL FOR JUSTICE AND PEACE, op. cit., p. 144. A tradução é nossa. 71 Sobre as restrições ao termo desenvolvimento sustentável há uma vasta literatura. No âmbito da Igreja Católica no Brasil, cf. o documento da CNBB “Igreja e questão ecológica”, op. cit., p. 214-216 e “Comunicado Final ao Seminário Ecologia e Desenvolvimento”, Ibid., p. 226-227. Ver também BOFF, L. Ética e Eco-espiritualidade, op. cit., p. 21-23; JUNGES, Ecologia e Criação, op. cit., p.84. 72 LATOUCHE, S. Citado por Rua, J. “Desenvolvimento e espaço geográfico”, op. cit. p. 19. 73 ACSELRAD, H. e LEROY, Jean-Pierre. Novas Premissas da Sustentabilidade Democrática. Rio de Janeiro: FASE, 2ª. Edição, 2003, p. 17-18.
41
Proposto pela famosa Comissão Brundtland74 como “aquele que atende às
necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras
atenderem a suas próprias necessidades”, o desenvolvimento sustentável surgiu
como uma estratégia capaz de conjugar o crescimento econômico com o progresso
técnico sem comprometer a permanência dos recursos naturais. Uma forma de
ambientalismo que não apresenta restrições aos processos de acumulação
mercantil.
“Um ambientalismo de livre mercado atraiu assim as formulações do pensamento dominante, procurando impedir que a questão ambiental pudesse dar argumentos a qualquer tipo de instrumento regulador não-mercantil que configurasse uma contracorrente da crise e desmontagem dos aparelhos redistributivos e de proteção social”75.
Segundo W. Sachs, o que parece é que esse ambientalismo atrelado à
economia e ao mercado – com o nome de desenvolvimento sustentável - veio para
dar um novo impulso à ideologia do desenvolvimento, após o fracasso do projeto
desenvolvimentista do pós-guerra de erradicar a pobreza e miséria no mundo.
Ideologia utilizada pelos detentores do poder, como o exercido pelos Estados
Unidos, para garantir a sua hegemonia76. Com efeito - como nota P. Layrargues -
o Relatório Brundtland incentiva o crescimento econômico, a utilização crescente
de inovações tecnológicas e o aquecimento do mercado77. Contudo, não toca nas
causas mais profundas geradoras da desigualdade internacional. Além do mais,
omite-se toda a questão da responsabilidade ambiental do consumo excessivo - a
“poluição da riqueza”, na expressão de P. Layrargues - dos países
industrializados.
Ao invés desse acento globalizado no crescimento econômico, uma proposta
mais equitativa seria a de um ecodesenvolvimento, apresentado por Strong em
1973, e desenvolvido por W. Sachs na década de 80, cuja plataforma programática
se baseava em três princípios: eficiência econômica, justiça social e prudência
ecológica. Entre outras proposições, na linha da justiça social, buscava-se:
74 Presidida pela norueguesa Gro Harlem Brundtland, a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU elaborou o famoso relatório Nosso Futuro Comum, publicado em 1987, no qual é introduzido o conceito de “desenvolvimento sustentável”. 75 ACSERALD, H. e LEROY, Jean-Pierre, op. cit., p. 24. 76 Ibid., p. 25. 77LAYRARGUES, P. P. “Do Ecodesenvolvimento ao Desenvolvimento Sustentável: Evolução de um Conceito? Proposta, FASE, Rio de Janeiro, ano 25, n. 71, 1997, p. 5-10.
42
“[Uma equivalência] entre o Norte e o Sul, a partir da árdua mas necessária definição de quais seriam as necessidades básicas e comuns a todas as sociedades para que possam ser equitativamente partilhadas, embora respeitando a diversidade cultural, determinante dos diferentes padrões de consumo”78.
Com isso haveria um nivelamento médio entre os países industrializados e
os subdesenvolvidos, de modo que, enquanto o padrão de consumo dos países
pobres aumentasse, ocorreria o inverso com os países desenvolvidos. Ora, é
exatamente essa equivalência que o desenvolvimento sustentável não contempla.
Ademais, enquanto o ecodesenvolvimento baseava-se na valorização das
potencialidades locais, reconhecendo os limites da tecnologia moderna e
restringindo a livre atuação do mercado, as indicações da Comissão Brandtland
seguiam exatamennte na direção oposta. Não é de se admirar, pois, que a proposta
do desenvolvimento sustentável consagrou-se nos círculos de debate sobre a
sustentabilidade ambiental – sobretudo a partir da Conferência Rio-92 – em
detrimento de outros conceitos como o de ecodesenvolvimento. Nas palavras de P.
Layrargues:
“O mecanismo cujo funcionamento é dependente da lógica do mercado, sequer foi abalado, ou melhor, saiu até mais fortalecido... O problema é acreditar que a proposta do desenvolvimento sustentável pretende preservar o meio ambiente, quando na verdade preocupa-se tão somente em preservar a ideologia hegemônica”79.
Herman E. Daly, que até 1994 foi economista senior do Departamento
Ambiental do Banco Mundial, também questiona seriamente a possibilidade de
um verdadeiro desenvolvimento sustentável quando este está atrelado ao conceito
de crescimento econômico. O seu argumento parte da diferenciação quantitativa e
qualitativa que está implicada na própria significação dos termos relacionados:
crescer significa ‘aumentar naturalmente em tamanho pela adição de material
através de assimilação ou acréscimo’, enquanto que desenvolver-se quer dizer
‘expandir ou realizar os potenciais de, trazer gradualmente a um estado mais
completo, maior ou melhor’. Alguma coisa pode ficar maior ou menor segundo a
categoria do crescimento. Mas, quando uma coisa se desenvolve, torna-se
diferente. Portanto, na opinião de Herman E. Daly, pensar desenvolvimento
enquanto crescimento implica uma contradição interna, pois os ecossistemas são
78 Ibid., p. 10. 79 Ibid.
43
finitos, limitados e não-crescentes. Um dado ecossistema pode evoluir,
desenvolver-se, mas não cresce. Já a economia pode e deve parar de crescer,
mesmo continuando a se desenvolver80.
Somos hoje uma civilização cada vez mais entregue ao consumismo,
estimulado pelo voraz apetite da criação de necessidades. Do consumo, segue-se
um grande desperdício. A biosfera já deu sinais de cansaço e de esgotamento.
Nestas condições, a vida humana, juntamente com toda a comunidade planetária,
sente-se estremecida pela ação tempestiva da poluição ambiental, da desordem
climática, da possibilidade de redução das fontes hídricas, da escassez de
alimentos, e de eventuais danos biogenéticos que não só podem reduzir como
também alterar drasticamente a biodiversidade. Mantendo-se nesse modo de vida,
uma sociedade que busca a todo custo o desenvolvimento – na lógica do
crescimento econômico – não pode ser uma sociedade sustentável porque estará
transgredindo os limites dos ecossistemas e esgotando as capacidades da nossa
biosfera.
Um instrumental indicativo do impacto do nosso modo de vida sobre a
biosfera é o chamado Ecological Footprint Method, que pode ser traduzido por
“pegada ecológica”, utilizado por estudiosos do meio ambiente para mensurar até
que ponto os imperativos do crescimento já atingiram índices perigosos que
podem comprometer à sustentabilidade do nosso planeta. A avaliação é feita pela
organização internacional Global Footprint Network81 e permite calcular qual é a
área, em hectare, necessária para produzir tudo aquilo que é consumido e também
o que é necessário para absorver os resíduos desses processos (do lixo à emissão
de CO2 na atmosfera), no período de um ano. Os cálculos consideram toda a
quantidade de espaço físico e de água necessária para as atividades agricolas,
pecuárias, de pesca, etc., isto é, a “biocapacidade” do planeta: a capacidade dos
ecossistemas de gerar recursos e absorver resíduos. A “pegada ecológica” indica o
quanto uma determinada população tem se apropriado da capacidade de carga de
um determinado sistema, isto é, representa a área de ecossistema necessária para
assegurar a sobrevivência de determinada população.
80 DALY, HERMAN E. “Crescimento sustentável? Não, obrigado. “Ambiente & Sociedade, v. VII, n. 2, 2004, p. 197-201, aqui 198. 81 Cf. www.footprintnetwork.org
44
Quanto maior for a “pegada ecológica” de uma população, maior o espaço
de ecossistema requerido para a sua sobrevivência. O índice revela, por
conseguinte, tanto os níveis de consumo da população mensurada quanto o
impacto na biosfera. Os dados mostram o quanto a situação é crítica, pois uma
civilização sustentável deveria limitar-se a 1,4 hectares, mas atualmente já
atingimos o índice de 1,8 hectares em média. O Brasil tem uma pegada ecológica
média de 2,1 hectares por habitante por ano. Uma leitura apressada poderia dar a
impressão de que ainda estamos numa faixa tolerável, um pouco acima da faixa de
sustentabilidade. Entretanto, quando se considera o modo de vida dos países ricos
do Norte, o quadro muda de gravidade: um cidadão norte-americano consome em
média 9,6 hectares, um canadense 7,2 e um europeu médio 4,5 hectares82. Uma
média que já ultrapassa em muito a capacidade de tolerância e regeneração da
biosfera83. Ademais, fica evidente a falta de equidade entre os países na utilização
das riquezas naturais. O seleto grupo dos mais ricos é também o que mais gasta,
consome, desperdiça e polui.
Considerando um país como a China, cuja economia - tal como a voracidade
de um tigre - tem crescido em velocidade alarmante84, podemos imaginar o que
pode acontecer com a sustentablidade do nosso planeta se outros países
conseguirem atingir os patamares do crescimento chinês. Com outras palavras:
diante do desafio de superar a pobreza que grassa em muitos lugares do mundo,
seria possível as sociedades ditas sub-desenvolvidas ou em vias de
desenvolvimento atingir o mesmo modo de vida (economia de crescimento) dos
países ricos do Norte? É bastante plausível a previsão de especialistas como S.
Latouche, Ivan Illich, François Partant e outros que afirmam que o planeta não
seria suficiente. Este tipo de desenvolvimento é impossível. Precisaríamos de três
a seis planetas para generalizar o modo de vida ocidental e mais de trinta, no
horizonte de 2050, considerando-se o crescimento previsível da população e se a
82 BOLOGNA, GIANFRANCO, citado por LATOUCHE, S. “O decrescimento como condição de uma sociedade convivial”. In: Cadernos IHU idéias, ano 4, n. 56, 2006, p. 3. 83 Segundo os dados da Global Footprint Network, quando os cálculos da “pegada ecológica” começaram a ser feitos, em 1961, a população humana já usava 70% da capacidade produtiva da Terra. Em 1987, começou a haver um excedente de consumo (“overshoot”), ou seja, a população em um ano consumiu mais recursos do que o planeta era capaz de renovar. De acordo com o relatório “Living Planet Report 2006”, publicado pelo World WildLife Fund (www.footprintnetwork.org/download.php?id=300), em 2003 esse déficit ecológico já era de 25%, comprometendo seriamente a integridade dos sistemas naturais. 84 A uma taxa anual de 10,7%. Cf., United Nations Economic and Social Commission for Asia and the Pacific (www.unescap.org); consulta feita em 4/11/2008.
45
média de crescimento mundial se mantiver num índice de 2% 85. Como se vê,
desenvolvimento sustentável, enquanto atrelado ao crescimento econômico -
mesmo na roupagem de um crescimento sustentável – soa como um slogan vazio
e desvinculado da realidade86.
Recentemente, a indústria petrolífera no Brasil foi autorizada pela própria
legislação federal a poluir mais os ecossistemas marinhos, ficando permitido jogar
um volume muito maior de óleo e graxa nas águas do mar (de 20 para 29
miligramas por litro)87. Uma decisão tomada sob a pressão de critérios
econômicos, já que foi alegado que os custos poderiam comprometer o índice de
produção: “Ou mudávamos o padrão ou a industria seria obrigada a reduzir seu
volume de produção”, segundo confessou a assessora ambiental do CONAMA
(Conselho Nacional do Meio Ambiente)88, que aprovou a medida. Essa resolução
foi contrária ao posicionamento dos técnicos do IBAMA (Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis) cujo embate em torno da política
desenvolvimentista do governo federal tem levado a posições opostas, sobretudo
depois do lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) pelo
governo. Segundo a avaliação do Ministério da Saúde, também contrário à decisão
do aumento, “é preciso criar instrumentos de política pública com critérios
técnicos e não econômicos”. Paradoxalmente, a Petrobrás, que tem apregoado o
discurso do desenvolvimento sustentável e investido recursos consideráveis em
programas de educação e preservação ambiental, foi um peso decisivo para que o
CONAMA fizesse a balança pender para o lado da insustentabilidade ambiental.
Uma amostra perigosa do quanto é contraditório o caminho de quem busca o
desenvolvimento seguindo os critérios do crescimento econômico.
Outro ponto limitante e comprometedor do chamado desenvolvimento
sustentável está relacionado com o militarismo. Como se sabe, a indústria bélica
faz circular muito dinheiro na produção e venda de armas e artefatos militares
que, além de comprometer a estabilidade financeira dos orçamentos públicos,
85 LATOUCHE, S. Ibid., p. 3. 86 Economistas como Herman Daly postulam um “desenvolvimento qualitativo”, isto é, que melhora a vida das pessoas sem aumentar o impacto sobre o ambiente. Para tanto é necessário, entre outros requisitos, um controle demográfico e a redistribuição das riquezas. Cf. DALY, HERMAN, op. cit., p. 199. 87 Cf. Jornal O Globo, quarta-feira, 18 de julho de 2007 (Economia, p. 25). 88 O CONOMA tem a função de assessorar o governo na definição de políticas ambientais. É composto por representantes de todos os ministérios, órgãos do governo (como o Ibama) e entidades ambientais, suas decisões passam por um conselho composto por 110 representantes.
46
causam um fortíssimo impacto na biosfera com graves e danosos efeitos
poluentes. Estudos da Universidade de Toronto, Canadá, mostram que as
atividades militares são uma das maiores fontes de degradação ambiental e uma
das principais emissoras de gases causadores do efeito estufa. Nos Estados Unidos
o Pentágono lidera o consumo interno de combustível, quase inteiramente voltado
para uso militar. Em menos de meia hora um avião caça F-16 consome mais
combustível do que a média gasta por um cidadão norte-americano em um ano.
Quase um quarto de todo o combustível usado na aviação aérea do mundo é
destinada a fins militares. Nove por cento do consumo mundial de aço e ferro é
feito pelas forças armadas. As fábricas de armas e artefatos militares produzem
em torno de dois terços de CFC , um dos maiores destruidores da camada de
ozônio e causador do aquecimento global89.
Apesar de todo esse impacto nocivo, curiosamente a questão armamentista
não tem sido alvo de pronunciamento por parte dos organismos oficiais que
promovem debates e encontros sobre desenvolvimento sustentável. Silêncio
notado, sobretudo, nas discussões da Conferência das Nações Unidas sobre
Desenvolvimento e Ambiente. Numa das reuniões preparatórias para a
Conferência de 1992 (Rio 92 ), foi apresentado um rascunho da Carta da Terra,
elaborado por países em desenvolvimento, no qual se classificava como “crimes
de guerra” as operações militares que degradam o ambiente. Mas, por pressão dos
representantes de poderosos países do Norte, incluindo os Estados Unidos,
nenhuma referência sobre esse assunto foi aceita90. Ora, quando não há renúncia
(ou denúncia) a esses excessivos e exorbitantes gastos militares – uma corrida na
qual, infelizmente, os países pobres também entram na disputa -, a retórica do
desenvolvimento sustentável torna-se discurso vazio e inócuo à semelhança do
que ocorre quando está associado ao crescimento econômico. Aliás, o poder
militar e o econômico estruturalmente se articulam e, ao longo da história,
souberam fazer alianças duradouras e mortalmente eficazes.
Ora, modelos satisfatórios de crescimento, que não se expressam no
domínio e na exploração das forças humanas e naturais, só são possíveis dentro de
parâmetros éticos e políticos que garantam uma ordem social justa, respeito à vida
89 “Taking Stock: The Impact of Militarism on Development”, University of Toronto. Citado por HALLMAN, D. “Ethics and Sustainable Development”, in: HALLMAN, D. (ed.) Ecology: voices from South and North. New York: Orbis Books, 1994, p. 270. 90 Ibid.
47
e o reconhecimento dos direitos sociais. Dito de outro modo, o desenvolvimento
não pode ser ditado pelo poder – seja o do crescimento econômico ou o do
militarismo. Antes, deve ser um processo completo, integral, de modo a promover
o bem da pessoa toda e de toda a humanidade. Para tanto:
“É absolutamente necessário dar prioridade à erradicação da pobreza em virtude da dignidade humana e da solidariedade. Um elemento necessário na afirmação da dignidade humana é a garantia de que o pobre seja visto como um participante ativo nos esforços de erradicação da pobreza. Em vez de serem considerados simplesmente um problema, os pobres devem ser vistos como atores potencialmente produtivos e criativos na sociedade”91.
Os pobres vistos nessa ótica serão um critério indispensável na busca de
autênticos modelos de desenvolvimento. Desenvolvimento sem visar acima de
tudo o crescimento econômico, como sugere Herman Daly, desenvolvimento que
promova uma distribuição mais eqüitativa das riquezas e uma melhora qualitativa
na vida das pessoas, sem aumentar os danos ao ambiente natural.
Tal foi o modelo seguido na Amazônia Brasileira por Chico Mendes, ao
conciliar um manejo ecologicamente correto da floresta com as necessidades de
desenvolvimento da população, sendo capaz, ao mesmo tempo, de identificar e
resistir ao sistema espoliativo que submetia os seringueiros e a natureza a uma
brutal degradação. Sem abrir mão do amor e respeito ao entorno natural, ele soube
organizar e conscientizar os trabalhadores, incorporar novas técnicas de produção
e manter a estabilidade e o equilíbrio ecológicos.
Ao seguirmos aqui a terminologia “modelo sustentável de
desenvolvimento” ou “autêntico desenvolvimento”, o fazemos na ótica da crítica
pontuada anteriormente, isto é, na rejeição do discurso heterônomo e etnocêntrico.
Considerando as diversidades culturais e priorizando a autodeterminação de cada
povo, melhor seria falar em desenvolvimentos, enquanto seriam resultados de um
processo multidimensional nos quais cada sociedade, em articulação com níveis
mais globais, pode ser capaz de superar as assimetrias do poder e, dessa forma,
elaborar e seguir um modelo que melhor corresponderia às suas necessidades.
Sem dúvida, esta é uma problemática muito ampla e complexa e que tem sido
tópico de estudos e objeto de teorias não raro díspares, mostrando uma grande
91 Mensagem da Santa Sé para a IV Reunião da Comissão Preparatória da Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Joanesburgo (reunião realizada na Indonésia, 27 de maio – 7 de junho de 2002) in PONTIFICAL COUCIL FOR JUSTICE AND PEACE, op. cit., p. 143. A tradução é nossa.
48
diversidade de visões sobre o desenvolvimento92. No debate aberto pela
contestação de um discurso homogeneizador e etnocêntrico que apregoa um
desenvolvimento segundo uma racionalidade econômico-tecnológica, é muito
salutar quando se levantam posicionamentos críticos a esse tipo de
desenvolvimento e quando são apresentadas pistas e orientações que levem a
caminhos alterntivos:
“de uma interpenetração sujeito/objeto (homem/natureza) e uma revisão dos parâmetros que têm balisado tal relação. E também se retorna a uma visão menos racional (ou não racional) da relação sociedade/natureza mediatizada pelo desenvolvimento (com outro sentido), onde se valoriza uma volta à interrogação filosófica e onde as sedutoras formulações neo-maltusianas não se apresentam com a lucidez a elas atribuídas”93.
Numa palavra, seguindo esse horizonte poderemos chegar a uma auto-
compreensão que supere a míope visão de um antropocentrismo autocentrado e
arrogante que, como vimos no início, pavimentou o chão histórico sobre o qual
ainda caminha a nossa civilização moderna marcada pelo dualismo, pelo
poder/domínio sobre o diferente (o outro, a natureza) e pelas injustificadas
desigualdades.
92 Entre a vastíssima bibliografia sobre o tema, os seguintes títulos são bastante úteis na perspectiva que aqui queremos enfocar: COWEN, M. P. & Shenton, R. W. Doctrines of Development. Londres, Routledge, 1996; ESCOBAR, A. Encountering Development. The Making and Unmaking of the Third World. Princeton: Princeton University Press, 1995; REDCLIFT, M Sustainable Development: Exploring the Contradictions. Londres: Routledge, 1992; Dos Santos, Th. Economia Mundial. Integração Regional e desenvolvimento sustentável. Petrópolis: Vozes, 1993; IVERN, F. “O Desenvolvimento ainda é o novo nome da paz?” In: Reflexão Cristã sobre o Meio Ambiente. VVAA, S. Paulo: Loyola, 1992; SACHS, Ignacy. Estratégias de transição para o século XXI, desenvolvimento e meio ambiente. São Paulo: Studio Nobel/Fundap, 1993; Ibid., Desenvolvimento includente, sustentável, sustentado. Rio de Janeiro: Garamond, 2004; Ibid., Rumo à Ecossocioeconomia. Teoria e prática do desenvolvimento. Paulo Freire Vieira (org.). São Paulo: Cortez Editora, 2007; GUIMARÃES, Roberto P. “Desenvolvimento sustentável: da retórica à formulação de políticas públicas. In: BECKER, B; MIRANDA, Mariana (Orgs). A geografia política do desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997; SOUZA M. L. de, “O subdesenvolvimento das teorias do desenvolvimento”. In: Princípios, n. 35. São Paulo, 1994, p. 27-33; Ibd. “A teorização sobre o desenvolvimento em uma época de fadiga teórica, ou: sobre a necessidade de uma ‘teoria aberta’ do desenvolvimento sócio-espacial”. Território, n. 1, v.1, Rio de Janeiro, 1996, p. 5-22; Ibd. “Algumas notas sobre a importância do espaço para o desenvolvimento social”. Território, n.3, Rio de Janeiro, 1997, p. 13-36. 93 RUA, J. “Desenvolvimento e espaço geográfico”, op. cit. p. 22.
49
Conclusão
As múltiplas manifestações dos problemas ambientais, hoje perceptíveis em
dimensão planetária, podem ser consideradas como sintomas de um mal-estar
gerado no interior mesmo do abrangente processo histórico que forneceu as bases
em que se firmou a civilização ocidental moderna.
Na base desse processo – como foi visto ao longo deste capítulo – está uma
visão de mundo que coloca o ser humano como o centro de tudo e a medida de
todas as coisas, uma posição destacada e acima do mundo natural. Essa
autocompreensão, chamada antropocentrismo, radicalizou-se com a afirmação da
racionalidade moderna que centraliza o sujeito humano e a razão como fontes de
conheciemnto e, por conseguinte, de constituição do mundo real. O advento da
Nova Ciência trouxe consigo um dualismo que aprofunda a distância entre o ser
humano e a natureza: a natureza é vista como um instrumento (objeto) passivo de
conhecimento e controlado pela razão humana (sujeito). Esse dualismo cartesiano
repecurtiu na própria organização social uma vez que o forte acento no
subjetivismo favorece o afrouxamento dos laços comunitários, propiciando o
individualismo e o uso do poder para o domínio do outro. A separação entre
sujeito e objeto desdobrou-se em outras visões dicotômicas excludentes, como
natureza e cultura, corpo e mente, razão e emoção, o eu e o outro.
Uma das consequências foi a configuração de uma imagem mecânica do
mundo e da natureza. À semelhança de uma máquina, como o relógio, a natureza
podia ser compreendida e manipulada como uma engrenagem a serviço dos
interesses humanos. O mundo perdeu o seu encanto. Reduzida a objeto do saber e
do poder, a natureza passou a ter uma valorização meramente funcional, como
fornecedora dos recursos necessários para o desenvolvimento/progresso cujo
processo produtivo, impulsionado pelos avanços da tecno-ciência, acreditava-se
ser contínuo e ilimitado. Surgiu, assim, uma fé exacerbada no progresso que,
como vimos, perdeu grande parte de sua credibilidade em vista das consequências
profundamente desumanas que acarretou por toda parte. Uma dessas
consequencias foi o domínio e a exploração da natureza e do próprio ser humano.
Por tudo o que vimos, fica claro que não se nega, por princípio, o valor e
mesmo a necessidade do progresso. O que fica, isto sim, é a pertinência e validade
de um sério questionamento da ideologia de um desenvolvimento progressivo-
50
tecnológico ilimitado, que se mostrou profundamente danoso tanto ao ambiente
humano quanto ao natural. Como nos adverte H. Küng: “É questionável o fato de
que, em grandes partes da América, do Japão e da Europa, o progresso técnico-
industrial se transformou num valor absoluto, num ídolo, no que se cria
incondicionalmente”94.
Viu-se também que o modelo de desenvolvimento predominante, atrelado
ao mercado, baseado na exploração predatória e no consumismo, tem sido fator da
degradação da natureza e também da marginalização das maiorias empobrecidas.
Nesse sentido, o próprio conceito de desenvolvimento sustentável – um tema hoje
nuclear na discussão de uma ética ambiental - é duramente criticado por reduzir a
natureza a seu valor econômico e, por conseguinte, mantê-la como mero
instrumento e recurso, além de atrelar o conceito de desenvolvimento à logica
mercantil e aos interesses hegemônicos. Permanecendo nesses parâmetros, a
proposta de se alcançar a sustentabilidade revela-se incoerente e inaceitável.
O capitulo foi introduzido com a assertiva de Walter Benjamim de que,
assim como a cada geração que nos precedeu, foi-nos dada “uma fraca força
messiânica”. O exercício de contextualização da crise socioambiental – esforço
necessário de rememoração – nos coloca mais conscientemente diante da
realiadade da crise, quando percebemos as causas e a urgência dos desafios a que
somos chamados a enfrentar. Cada geração pode construir a sua história. E o faz
partindo de suas forças, aparentemetne frágeis em face dos desafios, mas eficazes
pela conjunção dos esforços. Esperamos que a nossa também possa fazê-lo. Os
capítulos seguintes deste trabalho foram escritos acreditando nessa possibilidade.
94 H. Küng, op. cit., p. 36.