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8/18/2019 CONSTANT, Benjamin. Escritos de Política - Capítulos 4 a 14
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Escritos de política
Benjamin Constant
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ES RITOS
DE POLÍTI
enjamin onstant
Tradução
EDUARDO BRANDÃO
Edição, introdução e notas
CÉLLA N GALVÃO QUlRINO
artin s on tes
São Paulo 2005
I
I
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_Títulos dos originais franceses: PR1NClPES DE POLlTlQUE e
REFLEXIONS SUR LES CONSTlTUTlONS ET lES GARANTIES.
Copyright © 2005, Livraria Marfins Fontes Editora LIda
São Paulo, para a presente edição. '
edição
2005
Tradução
EDUARDO BRANDÃO
Acompanhamento editorial
Luzia Aparecida dos Santos
Revisões gráficas
Ana Maria de
O. M.
Barbosa
Letic ia Castelo Branco BrQ/H1
Sanara Garcia Cortes
Dínarte Zorzanelli da Silva
Produção gráfica
Gemido Alues
Paginação
Moacir Katsumi tvíntsusaki
Dados lntcmacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
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I
XII. Do poder municipal, das autoridades locais e de
um novo gênero de federalismo 102
XIII. Do direito de paz e de guerra : 108
XT V
Da organização da força armada em um Estado
constitucional 110
xv.
Da i~violabilidade das propriedades 116
XVI. Da l~berdade de imprensa 131
XVII. Da liberdade religiosa 134
XVIII. Da liberdade individual.. 153
XIX. Das garantias judiciárias 161
XX. Ultimas considerações 169
Notas
173
REFLEXÕES SOBRE AS CONSTITUIÇÕES
EAS GARANTIAS
Advertência do autor
:: ~~~~~lcia .
o .
193
195
197
I. Dos poderes constitucionais 203
Il. Das prerrogativas reais ::::::::::::::::::: 208
III. Do poder executivo ou dos ministros 221
TV
Do poder representativo :::::::::::::::::::226
v.
Do poder judiciário ········· ·· ····· ··· ··· ·· ·· ·· ···· ····· 265
VI. Da força armada
VII. Dos direitos políti~~~·:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::·274
VIII. Dos direitos individuais . 281
IX. Do que não é constituci~~~i·:::::::::::::::::::::::::::::::::: ~~~
Notas
303
I
I
I
Introdução
Não se lêem mais os escritos políticos de Benjamin
Constant. Assim, em 1980, Marcel Gauchet inicia o seu
prefácio a uma seleção das obras políticas desse autor'. No
Brasil, pouquíssimos dos textos políticos de Constant foram
traduzidos, embora por ocasião da Independência a leitura
dos
Princípios de política
tenha sido muito difundida .
Mas esse esquecimento, essa falta de publicação das
obras políticas ocorreu também nos países de língua ingle-
sa. Biancamaria Fontana, ao traduzir e editar uma seleção dos
escritos políticos de Constant, em 1988, comenta, com sur-
presa, ser essa a primeira tradução e publicação nessa lín-
gua'. Tzvetan Todorov, em sua obra sobre Constant, declara
espantado: Como é possível, na história das letras france-
sas, que Benjamin Constant não ocupe o lugar que lhe per-
1. Gauchet, M. Benjamin Constant - Écrits politiques, Paris, Gallimard,
1997.
2. Os Princípios de política de Benjamin Constant foram pela primeira
vez, e ao que parece última, traduzidos e publicados em um jornal do Riode
Janeiro, O Regulador Brasileiro. O periódico teve vida breve, saiu apenas de ou-
tubro de 1822 a março de 1823. O jornal era semanal e a publicação da obra de
Constant, em capítulos, ocorreu apenas no mês de novembro de 1822. (Verin-
formação mais detalhada nos vários trabalhos e mais recentes teses acadêmi-
cas sobre o poder moderador.)
3.Fontana, B.
Benjamin Constant Politica l Writings,
Cambridge, Cambrid-
ge University Press, 1988.
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Capítulo IV
De uma assembléia
heredit ária:
e da
necessidade de não limitar
o
número
de seus membros
Numa monarquia hereditária, a hereditariedade de
uma classe é indispensáveL É impossível conceber como,
num país em que toda distinção de nascimento fosse rejei-
tada, esse privilégio seria consagrado para a transmissão
mais importante, a da função que concerne mais essencial-
mente à tranqüilidade pública e à vida dos cidadãos. Para
que o governo de um só subsista sem classe hereditária, tem
de ser um puro despotismo. Tudo pode funcionar por certo
tempo sob o despotismo, que não é mais que a força. Mas
tudo o que se mantém pelo despotismo corre riscos, isto
é,
está ameaçado de ser derrubado. Os elementos do governo
de um só, sem classe hereditária, são: um homem que co-
manda, soldados que executam, um povo que obedece. Para
proporcionar outros apoios à monarquia, é necessário um
corpo intermediário: Montesquieu o exige, inclusive na mo-
narquia eletiva . Onde quer que você coloque um só ho-
mem em tal grau de elevação, se se quiser dispensá
-10
de
estar sempre com a espada na mão, ter-se-a de rodeá-Io de
outros homens que tenham um interesse a defender. A ex-
periência concorre aqui com o raciocínio. Os publicistas de
todos os partidos haviam previsto, já em 1791, o resultado
Benjamin Constant tornou várias vezes a essa questão da hereditarie-
dade do senado ou dos pares, sem se dissimular que a opinião pública estava
contra ele. (E.L.)
PRINC PIOS
DE
POLfTlCA
da abolição da nobreza na França, embora a nobreza não
fosse revestida de nenhuma prerrogativa política, e nenhum
inglês acreditaria um só instante na estabilida,de, da monar-
quia inglesa se a Câmara dos Pares fosse supr~mI~a,
A
Os que disputam a hereditariedade na pnmelra camar~
acaso gostariam de deixar subsistir a nobreza ao la?o e ,a
parte dessa primeira câmara e dar soment: ~ :sta carater_Vl-
talício? Mas o que seria uma nobreza hereditana sem f1:nç~es,
ao lado de uma magistratura vitalícia revestida de funçoes Im-
portantes? Era assim a nobreza, na ~ranç~, nos últin:os anos
que precederam a Revolução, e fOIpre~Isamente ISSOque
preparou sua perda, Não se via nela mais q,ue uma d~cora-
ção brilhante, porém sem finalidade precisa: agradavel_ a
seus possuidores, ligeiramente humilhante para os que na?
a possuíam, mas sem meios reais e s:m ~orça: Sua preemI-
nência tinha se tomado quase negativa, ISto e, ela se com-
punha muito mais de exclusões para a classe, pleb~ia ?~que
de vantagens positivas para a classe pr,e,f~nda, Ela m~tava
sem conter. Não era um corpo intermediário que mantíves-
se o povo na ordem e que zelasse por, sua liberdade; ~ra
uma corporação sem base e sem lugar fixo no corpo, sO~lal.
Tudo concorria para debilitá-Ia, até as luzes e a supenonda-
de individual dos seus próprios membros, Separada ~a fe~-
dalidade pelo progresso das idéias, era a, lembrança indefi-
nível de um sistema em boa parte destruido.
Em nosso século, a nobreza necessita vincular-se a
prerrogativas constitucionais e determinad_as, Essas prerro-
gativas são menos ofensivas para os ,que nao as possuem e,
ao mesmo tempo, proporcionam mais força aos que as,pos-
suem, O paria to, se optarmos por esse nome para designar
a primeira câmara, será uma magistratura ao mesmo tempo
que uma dignidade; será menos exposto a ser atacado e
mais passível de ser defendido. .. A _
Notem, além disso, que, se essa pnmelra camara nao
for hereditária será necessário determinar um modo de re-
, d 7 U
novar seus componentes. Será por nom~ação, o rei: ma
câmara, nomeada vitaliciamente pelo
rei,
sera forte o bas-
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ESCRiTOSDE POLfTICA
tante para contrabalançar outra assembléia, emanada da
eleição popular? No pariato hereditário, os pares se tornam
fortes graças à independência que adquirem imediatamen-
te após sua nomeação; eles assumem aos olhos do povo um
caráter diferente do de simples delegados da Coroa. Querer
duas câmaras, uma nomeada pelo rei, a outra pelo povo,
sem uma diferença fundamental (porque eleições vitalícias
se assemelham demais a qualquer outra espécie de eleição),
é pôr face a face os dois poderes entre os quais, precisamen-
te, é necessário um intermediário: isto é, entre o poder do
rei e o poder do povo.
Permaneçamos fiéis à experiência. Vemos o pariato he-
reditário na Grã-Bretanha compatível com um alto grau de
liberdade civil e política; todos os cidadãos que se distin-
guem podem ascender a ele . Ele não possui a única carac-
terística odiosa da hereditariedade: a exclusividade. No ins-
tante seguinte
à
nomeação de um simples cidadão ao paria-
to, ele passa a desfrutar dos mesmos privilégios legais do
mais antigo dos pares. Os ramos mais recentes das primei-
ras Casas da Inglaterra entram na massa do povo e formam
um vínculo entre o pariato e a nação, assim como
Q
próprio
pariato forma um vínculo entre a nação e o trono.
Mas por que, dizem, não limitar o número de membros
da câmara hereditária? Nenhum dos que propuseram essa
limitação notou qual seria o seu resultado.
Essa câmara hereditária é um corpo que o povo não
tem o direito de eleger e que o governo não tem o direito de
dissolver. Se o número de membros desse corpo for limita-
do, pode se formar um partido em seu seio, e esse partido,
sem se apoiar nem no assentimento do governo, nem no do
povo, só pode entretanto ser derrubado pela derrubada da
própria Constituição.
Uma época notável nos anais do Parlamento britânico
porá em evidência a importância dessa consideração. Em
1783, o rei da Inglaterra exonerou dos seus conselhos a coa-
lizão do lorde North e de mr. Fox. O Parlamento quase todo
era favorável a essa coalizão; o povo inglês era de uma opi-
~-
39
PRlNcipIOS DE POLfTICA
. d povo pela dissolu-
nião diferente. Tendo o rei convoca o o ..'
ão da Câmara dos Comuns, uma imensa malOr~a_Vel.o
ç . . . t é 26 Mas suponha que a coalizão
ti-
apOlar o novo mll1lSeno . . - di
vesse a seu favor a Câmara dos Pares, q~e o ,re.ln:~op~o~~
dissolver; é evidente que, se a ~re;og~tlva :~~mero sufi-
vesse investido o rei da faculd~ e .e.cnar u o tem o
ciente de novos pares, a coalizao reJeltada ao me~m 'to ~e
pelo monarca e pela nação teria ~~nservado, a espel
um e ~a ?utra, a,direçã~~OpSa~eesg~~l~~enadores seria criar
Limitar o r:
umero
. , deria vir a enfrentar o
uma aristocraCla formídável. que po. _ t sse tal
príncipe e os
súditos .
Toda ConstltUlçao que :~~=erre-
e
rro não demoraria a ser rasgada, porque e co . do
, . d d ' cipe e os anseies
za necessano que. a :,onta e _ op~m desobedecidos; e,
do cOll1Cldem, nao
sejam
~~~~dJ~~a coisa necessária não pod:
=
~perar pela Cons-
tituição, ela s~ opera apesar ddaCO~;~%~~~~ do pariato com
Se me objetarem alegan o o a .' único
criações demasiado multipl~ca?as de ~~~~ee~~:a;~ed~gnida-
remédio é o interesse d? pnnClpe em S le se afastar desse
de do corpo que o rodela e o suste;,ta. e e
interesse, a experiência logo o trara de volta.
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CapítuloV
Da eleição das assembléias
representativas
A Constituição* manteve os colégios eleitorais** com
apenas duas melhorias, uma das quais consiste em ordenar
que esses colégios sejam completados por meio de eleições
anuais, ~
aAou.tra, em tirar do governo o direito de nomear
~ua
presidência.
A. r:ecessidade de dar prontamente órgãos
a naçao nao perrrunu rever e corrigir essa parte importante
do ~~sso Ato. Constitucional, mas é, incontestavelmente, a
~~IS írnperfeíra. Os colégios eleitorais, escolhidos por vita-
h~Ied~de mas :xpostAos
à
dissolução (porque essa disposi-
çao nao e refenda), tem todos os inconvenientes das anti-
gas assembléia:, eleitorais e nenhuma das suas vantagens.
Essas assembleias, emanadas de uma fonte e criadas no
msta~te em que as nomeações deviam ocorrer, podiam ser
consideradas como representando de uma maneira mais
o~_menos exa,ta a opinião dos seus mandantes. Essa opi-
mao~ ao contrano, so penetra nos colégios eleitorais lenta e
parcíalmenn-.
?la nunca é majoritária neles e, quando se
torna a do col,egio, quase sempre cessou de ser a do povo.
a pequeno numero de eleitores exerce assim sobre a natu-
reza das escolhas uma influência nefasta. As assembléias
encarregadas de eleger a representação nacional devem ser
Isto
é,
o Ato Adicional. (E.L.)
d Estabelecidos pela Constituição do ano VIII, artigo 9, e encarregados
e apresentar ao senado uma lista de elegíveis. (E.L.)
I
PRINclPIOS
DE
PoLfTICA
4
tão numerosas quanto for compatível com a boa ordem. Na
Inglaterra, os candidatos, do alto de uma tribuna, no meio
de uma praça pública ou de uma esplanada coberta por
uma imensa multidão, discursam aos eleitores que os ro-
deiam. Em nossos colégios eleitorais, o número é restrito e
as formas, severas; um silêncio rigoroso é ordenado. Não se
apresenta nenhuma questão que possa agitar as almas e
subjugar momentaneamente o egoísmo individual. Ne-
nhum arrebatamento é possível. Ora, os homens vulgares
só são justos quando são arrebatados; e só são arrebatados
quando, reunidos em multidão, agem e reagem uns sobre
os outros. Só se cativam os olhares de vários milhares de
cidadãos por meio de uma grande opulência ou com uma
difundida reputação. Algumas relações domésticas contro-
lam uma maioria numa reunião de duzentos ou trezentos.
Para ser nomeado pelo povo, é preciso ter partidários situa-
dos além dos arredores costumeiros. Para ser escolhido por
alguns eleitores, basta não ter inimigos. A vantagem é por
inteiro das qualidades negativas, e a chance é idêntica con-
tra o talento. Por isso, entre nós, a representação nacional
foi freqüentemente menos avançada do que a opinião pú-
blica sobre muitos objetos .
Se quisermos, uma vez, desfrutar completamente na
França dos benefícios do governo representativo, devemos
adotar a eleição direta. É ela que, desde 1788, leva à Câmara
dos Comuns britânica todos os homens esclarecidos. Seria
difícil citar um inglês, distinguido por seus talentos políticos,
que não tenha sido honrado com a eleição, se a disputou.
Somente a eleição direta pode dotar a representação
nacional de uma verdadeira força e lhe proporcionar raízes
profundas na opinião. O representante nomeado por qual-
quer outro modo não encontra em parte alguma uma voz que
reconheça a sua. Nenhuma fração do povo leva em conta
sua coragem, porque todas estão desencorajadas pela longa
Nãoestou falando das questões de partido, sobre as quais, no meio das
comoções, asluzes não influem; estou falando dos objetos de economia política.
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4
ESCRiTOS DE POLÍTICA
tramitação nos meandros da qual seu sufrágio foi desnatu-
rado ou
desapareceu .
. Se muitos temem o c~ráter francês, impetuoso e impa-
ciente CO~lo Jugo ?a lei, direi que somos assim unicamente
porque nao contralmos o hábito de nos reprimir a nós
rnes-
mos. V~le para as eleições o mesmo que para tudo o que se
refere a boa ordem. Com precauções inúteis, causa-se ou
aumenta-se a desordem. Na França, nossos espetáculos
n~ssas festas são eriçados de guardas e de baionetas. Parec'
ate que três cidadãos não podem se encontrar sem ser pre~
CISOdOIs soldados para apartá-Ios Na Inglaterra, 20 mil ho-
mens se reúnem e nenhum soldado aparece entre eles: a
segurança de cada um é confiada
à
razão e ao interesse de
ca.~~ um, e :ssa multidão, sentindo-se depositária da tran-
quilidade publica e particular, zela com escrúpulo por esse
deposito. E possível, aliás, por uma organização mais com-
phcada que a das eleições britânicas, levar uma maior calma
ao exercício desse direito do povo. Um autor ilustre por
mais de um motivo, como escritor eloqüente, como político
engenhoso, como amigo incansável da liberdade e da mo-
ral, o sr._Necker , propôs, numa das suas obras, um modo
de el; Içao que pareceu obter a aprovação geral. Cem pro-
p:letanos nomeados por seus pares apresentariam, em cada
distrito, a todos os cidadãos com direito de voto, cinco can-
dIdato: entre os quais esses cidadãos escolheriam. Esse
modo e preferível aos que experimentamos até este dia: to-
dos os cidadãos concorreriam diretamente
à
nomeação de
seus mandatários.
Há todavia um inconveniente: se você confiar a cem
homens a pri.meira proposição, certo indivíduo, que tivesse
em s:u d istr ito uma grande popularidade, poderia se ver
exclujdo da lista: ora, essa exclusão bastaria para desinteres-
sar os votantes, chamados a escolher entre cinco candida-
=
entre os quais não estaria o objeto dos seus desejos
reais e da sua verdadeira preferência.
Eu gostaria, concedendo ao povo a escolha definitiva
de também lhe dar a primeira iniciativa. Gostaria que, em
PRINC PIOS DE POLfTICA
43
cada distrito, todos os cidadãos com direito de voto fizes-
sem uma primeira lista de cinqüenta; formariam em segui-
da uma assembléia de cem, encarregados de apresentar cin-
co desses cinqüenta, e a escolha se faria de novo entre esses
cinco por todos os cidadãos.
Assim, os cem indivíduos a que a apresentação seria
confiada não poderiam ser levados, devido
à
sua parcialida-
de em relação a um candidato, a apresentar junto com este
concorrentes impossíveis de ser eleitos. E não me venham
dizer que esse perigo é imaginário: vimos o Conselho dos
500 recorrer a esse estratagema para forçar a composição do
Diretório.
O direito de apresentar equivale muitas vezes ao
de excluir.
Esse inconveniente seria diminuído pela modificação
que proponho: 1~a assembléia que apresentaria seria força-
da a escolher seus candidatos entre os homens já investidos
da aprovação popular, possuindo todos, por conseguinte,
certo grau de crédito e de consideração entre seus concida-
dãos; 2~se na primeira lista houvesse um homem cuja vasta
reputação lhe teria valido a grande maioria dos sufrágios, os
cem eleitores dificilmente se dispensariam de apresentá-lo,
ao passo que, ao contrário, se tivessem a liberdade de formar
uma lista, sem que a aprovação do povo se houvesse mani-
festado previamente, motivos de simpatia ou inveja pode-
riam
levá-los
a excluir aquele que essa aprovação designaria,
mas não teria meio de revesti-lo de uma indicação legal.
De resto, é só por deferência para com a opinião domi-.
nante que transijo sobre a eleição imediata. Testemunha das
desordens aparentes que agitam na Inglaterra as eleições
contestadas, vi como o quadro dessas desordens é exagera-
do. Vi sem dúvida as eleições acompanhadas de rixas, cla-
mores, disputas violentas; apesar disso, a escolha recaía so-
bre homens distinguidos, seja por seu talento, seja por sua
fortuna; e, terminada a eleição, tudo voltava à regra costu-
meira. Os eleitores da classe inferior, pouco antes obstina-
dos e turbulentos, tornavam a ser laboriosos, dóceis, respei-
tosos até. Satisfeitos por ter exercido seus direitos, eles se
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ESCRITOS DE POL TICA
dobravam tanto mais facilmente às superioridades e às con-
venções sociais quanto mais tinham, assim agindo, a cons-
cIenCI~ de obedecer ao cálculo sensato do seu interesse es-
clarecido
~o.dia seguinte a uma eleição, não restava mais o
menor vestígío da agitação da véspera. O povo havia reto-
mado seus trabalhos, mas o espírito público havia recebido
o salutar abalo, tão necessário para reanimá-Io.
Al~ns hon:ens .esclarecidos criticam a conservação
?OS colegIOs eleitorais, por motivos diretamente opostos
a~uel~s em. qu~ me apóio. Eles lamentam que as eleições
nao sao mais feI~aspor um corpo único e aludem, em apoio
a~suas lam:ntaçoes, argumentos que é bom refutar, porque
tem um que de plausível.
c
P?vO'~ dizem eles, é absolutamente incapaz de
apropnar a~ dIve:sas partes do estabelecimento público os
h~mens cujo cara ter e cujos talentos melhor convêm. Ele
na? de:e f~zer diretamente nenhuma escolha: os corpos
eleitorais ~ao devem ser instituídos na base, mas no topo do
estabe~eclI~ento; as escolhas não devem partir de baixo,
on: e sao feitas necessariamente mal, mas de cima, onde se
farao necessariamente bem. Porque os eleitores terão sem-
pre
m~ior interesse na manutenção da ordem e da liberda-
de
públicas,
n~ ~stabilidade das instituições e no progresso
das idéias, .na fixidez dos bons princípios e na melhoria gra-
dual.= l:lS e da administração. Quando as nomeações dos
funcíonãríos, por designação especial de funções, são feitas
pelo povo, as escolhas são, em geral, essencialmente ruins*.
~e s~ trata de magistraturas eminentes, os corpos eleitorais
mfenores. escolhem muito mal. Então, é só por uma espécie
de casualIdade que alguns homens de mérito são de quando
em quando chamados. As nomeações para o corpo legislati-
.* Não posso me impedir de aproximar dessa asserção o sentimento de
~aqulaVel e de Montes' Uleu. Os homens, diz o primeiro, sujeitos embora a se
. ganar sobre o geral, nao se enganam sobre o particular. O povo é admirável
dIZ osegundo, para escolher aqueles a quem deve confiar uma parte da sua
autondade. E to.?o o resto do parágrafo demonstra que Montesquieu se refere
a uma deslgnaçao especial, a uma função determinada.
PRINcfpIOS DE POLfTICA
45
vo, por exemplo, só podem ser feitas de forma conveniente
por homens que conhecem bem o objeto ou o objetivo geral
de toda legislação, que estejam a par do estado presente dos
negócios e dos espíritos, que, correndo os olhos por todas as
divisões do território, possam designar com mão segura a
elite dos talentos, das virtudes e das luzes. Quando um povo
nomeia seus mandatários principais sem intermediário e
quando ele é numeroso e disseminado por um vasto territó-
rio, essa operação obriga-o inevitavelmente a se dividir em
seções; essas seções são postas em distâncias que não lhes
permitem nem comunicação nem acordo recíproco. Resul-
tam daí escolhas seccionais. É necessário buscar a unidade
das eleições na unidade do poder eleitoral. *30
Esses raciocínios repousam numa idéia por demais exa-
gerada do interesse geral, do objetivo geral, da legislação ge-
ral, de todas as coisas a que esse epíteto se aplica. O que é
o interesse geral, senão a transação que se efetua entre os in-
teresses particulares? O que é a representação geral, senão a
representação de todos os interesses parciais que devem
transigir sobre todos os objetos que lhes são comuns? O in-
teresse geral é, sem dúvida, distinto dos interesses particula-
res, mas não é contrário a eles. Sempre se fala como se um
ganhasse com o que os outros perdem, mas esse um não
passa do resultado desses interesses combinados: só difere
deles como um corpo difere das suas partes. Os interesses
individuais são os que mais interessam aos indivíduos; os
interesses seccionais, os que mais interessam às seções. Ora,
são os indivíduos, são as seções que compõem o corpo polí-
tico, são por conseguinte os interesses desses indivíduos e
dessas seções que devem ser protegidos: se protegermos a
Estas palavras são do senador Cabanis. É o sistema da Constituição .?O
ano
VIII
que ele defende. Sustentava-se então que, antes dessa
Constituição,
não tinha havido representação verdadeira na França. Os deputados de 1789,
dizia-se seriamente, não representavam a França, mas apenas seções particu-
lares e interesses locais. Ao contrário, graças ao senado, verdadeiro órgão da
França, oscandidatos recebiam um caráter público, geral, e se tornavam depu-
tados de todo o império. Sabe-se qual foi a independência do corpo legíslatívo
e do tribunato: esse belo sistema foi julgado por seus efeitos. (E.L.)
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46
ESCRITOS
DE
POLfTICA
todos, retiraremos por isso mesmo de cada um o que ele
contém de nocivo aos outros, e somente daí pode resultar o
verdadeiro interesse público. Esse interesse público nada
mais é que os interesses individuais postos na impossibilida-
de de se prejudicarem reciprocamente. Cem deputados no-
meados por cem seções de um Estado levam à assembléia os
interesses particulares, as prevenções locais dos seus man-
dantes. Essa base lhes é útil: forçados a deliberar em conjun-
to, eles logo percebem os sacrifícios mútuos que são indis-
pensáveis; eles se esforçam para diminuir a extensão desses
sacrifícios, e é essa uma das grandes vantagens do seu modo
de nomeação. A necessidade sempre acaba por reuni-los
numa transação comum, e, quanto mais as escolhas forem
seccionais, mais a representação alcança seu objetivo geral.
Invertendo-se a gradação natural, coloca-se o corpo eleitoral
no topo do edifício, aqueles que ele nomear serão chamados
a se pronunciar sobre um interesse público cujos elementos
não conhecem, e serão encarregados de pactuar em nome
de partes cujas necessidades ignoram ou desdenham. É bom
que o representante de uma seção seja o órgão dessa seção; que
ele não abandone nenhum dos direitos reais ou imaginários
desta antes de tê-Ios defendido; que seja parcial pela seção
de que é mandatário, porque, se cada um for parcial para os
seus mandantes, a parcialidade de cada um, reunida e conci-
liada, terá as van tagens da imparcialidade de todos.
As assembléias, por mais seccional que possa ser sua
composição, têm uma propensão acentuada a contrair um
esprit de corps
que as isola da nação. Situados na capital, lon-
ge da porção do povo que os nomeou, os representantes
perdem de vista os usos, as necessidades, a maneira de ser
do departamento que representam; tornam-se desdenhosos
e pródigos nessas coisas. Que acontecerá se esses órgãos das
necessidades públicas se virem livres de qualquer responsa-
bilidade local . postos para sempre acima dos sufrágios dos
Nota-se claramente que, aqui, pela palavra responsabilidade não en-
tendo uma responsabilidade legal, mas uma responsabilidade de opinião.
47
PRINCiPIOS DE POLiTICA
seus concidadãos e escolhidos por um corpo situado, como
querem que seja, no topo do edifício c~nstitucional? .
Quanto maior um Estado e mais forte a a~t~ndade
central, mais um corpo eleitoral único é inadmlsslv~l e a
eleição direta indispensáveL Um pov?a~o de 100 mil ho-
mens poderia investir um sena?o do dlrel O de no~ear.seus
deputados; repúblicas federativas ta.:nbem P?d~nam. sua
administração interior pelo menos nao co~rena nsco~. Mas
em todo governo que tende à unidade, pnvar as fraçoes _do
Estado de intérpretes nomeados por ela é criar corporaçoes
que deliberam no vago e deduz.em, _dasu~ indiferença pelos
interesses particulares, sua dedicação ao mte::ess
e
geral.
Não é o único inconveniente da nomeaçao dos manda-
tários do povo por um senado. .
Esse modo destrói, primeiro, uma das maiores van~a-
gens do governo representativo, que é est.abelecer relaçoe~
freqüentes entre as diversas classes da soc:edade. E~s~van
tagem só pode resultar da eleição direta. E ess,: eleição q~e
necessita, de parte das classes poderosas, deferenCl~s conti-
nuadas para com as classes inferiores. Ela força a nquez~ a
dissimular sua arrogância, o poder a moderar sua ~ça?,
pondo no sufrágio da parte menos opulenta dos propne~a-
rios uma recompensa para a justiça e a b~ndad~, um castigo
contra a opressão. Não se deve renunCIar le~anamente a
esse meio cotidiano de felicidade e de narmorua. nem des-
denhar esse motivo de benfeitoria, que no começo. pode.
não passar de um cálculo, mas que logo se torna uma Virtude
de hábito. .
Queixam-se de que as riquezas se conce~tram na c,apl-
tal e de que os campos são exauridos pelo tnbut~ :.ont~nuo
que pagam a esta e que nunca lhes retoma. A elelçao dlre.ta
segura os proprietários em suas propriedades, das ~UaIS,
sem ela se afastariam. Quando eles não dão impor~anc a
aos suf;ágioS do povo, seu cálculo se li~ita ~ extrair da~
suas terras o produto mais elevado. A el:lç,a? direta lhe~ su
gere um cálculo mais nobre e muito mais ú til aos qU,eVivem
sob sua dependência. Sem a eleição popular, eles so neces-
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ESCRITOS
D E
POLÍTICA
sitam de crédito, e essa necessidade os reúne em torno da
autoridade central. A eleição popular lhes dá a necessidade
da popularidade e os leva de volta à sua fonte, fixando as
raízes da sua existência política nas suas posses .
Uma ou outra vez, gabaram-se dos benefícios do feu-
dalismo, que retinha o senhor no meio de seus vassalos e
repartia igualmente a opulência entre todas as partes do
território. A eleição popular tem o mesmo efeito desejável,
sem acarretar os mesmos abusos.
Fala-se o tempo todo de incentivar, de honrar a agri-
cultura e o trabalho. Tentam-se gratificações, distribuídas
caprichosamente, e condecorações, que a opinião contesta.
Seria mais simples dar importância às classes agrícolas, mas
essa importância não se cria por decretos. Sua base deve es-
t~r situada no interesse de todas as esperanças em reconhe-
ce-Ia, de todas as ambições em diferenciá-Ia.
Err:..segundo lugar, a nomeação por um senado para
as funçoes representativas tende a corromper ou, pelo me-
nos, a enfraquecer o caráter dos aspirantes a essas funções
errunerites.
Qualquer que seja o descrédito que se lance sobre os
conluios, sobre os esforços que são necessários para conquis-
tar a multidão, essas coisas têm efeitos menos danosos do
que as tentativas enviesadas que são necessárias para conci-
liar a simpatia de um pequeno número de homens no poder.
O conluio
b-:igue] , diz Montesquieu, é perigoso
em um senado, e pengoso em um corpo de nobres: não o é
no povo, cuja natureza é agir por paixão. *
O que se faz para conseguir uma união numerosa deve
transparecer à luz do dia, e o pudor modera as ações públi-
cas '. Mas quem se inclina diante de alguns homens, aos
quais Implora isoladamente, prosterna-se à sombra e os in-
divíduos poderosos são demasiado propensos a desfrutar
da humildade dos pedidos e das súplicas obsequiosas.
* Eesprit des lois, Il, 2. (Trad. bras. O espírito das leis, São Paulo, Martins
Fontes, 2~ed., 1996.)
PRINCÍPIOS D E POLfTICA
49
Há épocas em que se teme tudo o que se parece com a
energia: é quando a tirania quer se estabelecer e quando a
servidão ainda crê dela aproveitar. Gaba-se então a brandu-
ra, a docilidade, os talentos ocultos, as qualidades privadas,
mas são épocas de debilitação moral. Que os talentos ocul-
tos se dêem a conhecer, que as qualidades privadas encon-
trem sua recompensa na felicidade doméstica, que a docili-
dade e a brandura obtenham os favores dos grandes Aos
homens que comandam a atenção, que atraem o respeito,
que adquiriram direitos à estima, à confiança, ao
reconheci-
mento do povo, cabem as escolhas desse povo, e esses ho-
mens mais enérgicos também serão mais moderados.
Costuma-se sempre representar a mediocridade como
pacífica, mas ela só é pacífica quando é impotente. Quando
o acaso reúne muitos homens medíocres e os investe de al-
guma força, amediocridade deles é mais agitada, mais inve-
josa, mais convulsiva em sua marcha que o talento, mesmo
quando as paixões o levam a se perder. As luzes a~almam as
paixões, atenuam o egoísmo, tranqüilizando a v~I?ade ..
Um dos motivos que aleguei contra os colégios eleito-
rais milita com igual força contra o modo de renovação q~e,
até aqui, era de uso para nossas assembléias e que, feliz-
mente, a Constituição atual acaba de abolir. Refiro-me a
essa introdução periódica de um terço ou um quinto, devida
à
qual os recém-chegados nos corpos representativos sem-
pre se encontravam em minoria. .._
A renovação das assembléias tem por objetivo nao
apenas impedir que os representantes da nação form~m
uma classe
à
parte, separada do resto do povo, mas tambem
proporcionar intérpretes fiéis às melhorias._que d~ uma
eleição aoutra, puderam produzir-se na opmlao
pública.
Se
supusermos as eleições bem organizadas, os eleitos de uma
época representarão a opinião mais fielmente do que os
das épocas precedentes. . ._ .
Não é um absurdo pôr os órgãos da oprruao eXlsten~e
em minoria diante da opinião que não existe mais? A estab~-
lidade é sem dúvida desejável, por isso não se deve aproXl-
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ESCRITOS DE POLfTICA
~ar excessivamente essas épocas de renovação, porque é
I~a~~en~e absurdo tornar as eleições tão freqüentes que a
oplmao n~,o se possa esclarecer no intervalo que as separa.
Temos,
aliás,
uma assembléia hereditária que representa a
duração. Não ponhamos elementos de discórdia na assem-
bléia eletiva que representa a melhoria. A luta entre o espíri-
to conservador e o espírito progressista é mais útil entre
duas assembléias do que no âmbito de uma só. Não há en-
tão minoria que se constitua conquistadora. Suas violências
na assembléia de que faz parte fracassam diante da calma
daquela que sanciona ou rejeita suas resoluções. A irregula-
ridade, a ameaça, não são mais meios do domínio sobre uma
maioria que se atemoriza, mas causas de desconsideração e
de descrédito aos olhos dos juízes que devem sentenciar.
A renovação por um terço ou por um quinto tem in-
convenientes graves, tanto para a nação inteira como para a
própria assembléia.
Embora um terço ou somente um quinto possa ser no-
meado, mesmo assim todas as esperanças são postas em
movimento. Não é a multiplicidade das chances, mas a
existência de uma só, que desperta todas as ambições, e a
própria dificuldade torna essas ambições mais invejosas e
mais hos~is. O povo é agitado pela eleição de um terço ou
de um qumto, tanto como por uma renovação total. Nas as-
sembléias, os recém -chegados são oprimidos no primeiro
ano, mas logo depois se tornam opressores. Essa verdade
foi demonstrada por quatro experiências sucessivas+ .
A lembrança das nossas assembléias sem contrapeso
nos
mquieta
e nos desnorteia sem cessar. Cremos perceber
em toda assembléia uma causa de desordem, e essa causa
nos parece mais poderosa numa assembléia renovada por
completo. No entanto, quanto mais real possa ser o perigo,
mais
devemos ser escrupulosos quanto
à
natureza das pre-
O terço do ano IV 1796) foi suprimido. O terço do ano V 1797) foi es-
corraçado. O terço do ano VI 1798) foi repelido. O terço do ano VII 1799) foi
VItOrIOSOe destruidor.
PRINC PIOS DE POLfTICA
5
cauções. Devemos adotar unicamente aquelas cuja utilida-
de está constatada e o sucesso, garantido.
A única
vantagem
da renovação por um terço ou um
quinto fica mais completa e livre de qualquer inconveniente
na reeleição indefinida que nossa Constituição possibilita e
que as Constituições precedentes cometiam o erro de excluir.
A impossibilidade da reeleição é, sob todos os pontos
de vista, um grande erro. Somente a possibilidade de uma
reeleição ininterrupta oferece ao mérito uma recompensa
digna dele e forma num
povo
uma massa de nomes impo-
nentes e respeitados. A influência dos indivíduos não é des-
truída por instituições invejosas. O que, em cada época, su-
bisiste naturalmente dessa influência é necessário a essa
época. Não despojemos o talento por meio de leis invejosas.
Não se ganha nada, afastando assim os homens distintos: a
natureza quis que eles tomassem lugar à frente das associa-
ções humanas; a arte das Constituições está em lhes atribuir
esse lugar, sem que, para tanto, elas necessitem perturbar a
paz pública.
Nada é mais contrário à liberdade e mais favorável, ao
mesmo tempo, à desordem do que a exclusão forçada dos
representantes do
povo
após o termo das suas funções.
Tanto há, nas assembléias, homens que não podem ser ree-
leitos, como
haverá
homens fracos que quererão fazer o mí-
nimo possível de inimigos, a fimde obter compensações ou
viver em paz no seu refúgio. Se são colocados obstáculos à
reeleição indefinida, frustra-se o gênio e a coragem do prê-
mio que lhes é devido; preparam-se consolações e um
triunfo à covardia e à inépcia; colocam-se na mesma linha o
homem que falou de acordo com sua consciência e o que
serviu as facções por sua audácia ou a arbitrariedade por sua
complacência. As funções vitalícias, observa Montesquieu .
têm a vantagem de poupar aos que as exercem esses inter-
valos de pusilanimidade e de fraqueza, que precedem, nos
homens destinados a entrar para a classe dos simples cida-
o es pírit o das leis,
V 7.
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ESC RITOS
DE
POLfTICA
dãos, a expiração do seu poder. A reeleição indefinida tem a
mesma vantagem: ela favorece os cálculos da moral. Só es-
ses cálculos têm um sucesso duradouro; mas, para obtê-lo,
necessitam tempo.
Aliás, são os homens íntegros, intrépidos, experientes
nos negócios tão numerosos para que se deva repelir volun-
tariamente os que mereceram a estima geral? Os novos ta-
lentos também terão êxito; a tendência do povo é acolhê-Ios.
Não imponham a ele, sob esse aspecto, nenhuma limitação,
não o obriguem, a cada eleição, a escolher recém-chegados
que terão sua fortuna de amor-próprio a fazer e a celebrida-
de a conquistar. Nada é mais caro para uma nação que as re-
putações a criar. Sigam os grandes exemplos. Vejam a Amé-
rica: lá, os sufrágios do povo não cessaram de coroar os fun-
dadores da sua independência; vejam a Inglaterra: lá, nomes
ilustrados por reeleições ininterruptas tornaram-se de certo
modo uma propriedade popular. Felizes as nações fiéis e que
sabem estimar por muito tempo'
Enfim, nossa nova Constituição aproximou-se dos ver-
dadeiros princípios, substituindo o salário concedido até
hoje aos ,representantes da nação por um subsídio mais
módico. E livrando de todo cálculo de interesse as funções
que requerem mais nobreza de alma que se elevará a Câ-
mara dos Representantes ao nível que lhe é destinado em
nossa organização constitucional. Todo salário, vinculado às
funç~es repn:sentativas, logo se torna o objeto principal. Os
candrdaros veem nessas funções augustas somente ocasiões
para aumentar ou arranjar sua fortuna, facilidades de movi-
mentação, vantagens econômicas. Os próprios eleitores se
deixam levar a uma espécie de piedade de conventículo,
que os induz a beneficiar o noivo que quer se casar, o pai
pouco afortunado que quer criar os filhos ou casar as filhas
na capital. Os credores nomeiam seus devedores; os ricos,
os parentes, que preferem ajudar às expensas do Estado do
que às suas próprias. Feita a nomeação, cumpre conservar o
que f~i obtido, e os meios se assemelham aos fins. A espe-
culaçao termma com a flexibilidade ou o silêncio.
PR IN C P IOS
DE
PO LfTICA
53
Pagar os representantes do povo não é lhes dar um inte-
resse para exercer suas funções com escrúpulo, é apenas inte-
ressá-los a se conservar no exercício dessas funções.
Outras considerações me ocorrem.
Não gosto das fortes condições de propriedade para o
exercício das funções políticas. A independência é muito re-
lativa: assim que um homem tem o necessário, só p;-ecisa de
ter elevação na alma para prescindir do supérfluo. E desejá-
vel, entretanto, que as funções representativas sejam ocupa-
das, em geral, por homens, se não da classe opulenta, pelo
menos remediado. Seu ponto de partida é mais vantajoso,
sua educação mais cuidadosa, seu espírito mais livre, sua
inteligência mais bem preparada para as luzes. A pobreza
tem seus preconceitos, assim como a ignorância. Ora, se
seus representantes não receberem nenhum salário, vocês
colocarão a potência na propriedade e darão uma oportuni-
dade equitativa às exceções legítimas.
Combinem de tal modo suas instituições e suas leis, diz
Aristóteles, que os empregos não possam ser objeto de um
cálculo interessado; se assim não for, a multidão, que, aliás,
é pouco afetada pela sua exclusão dos cargos eminentes,
porque prefere tratar dos seus assuntos, invejará as honra-
rias e o proveito. Todas as precauções serão apropriadas se
as magistraturas não tentarem a avidez. Os pobres preferi-
rão ocupações lucrativas a funções difíceis e não remunera-
das. Os ricos ocuparão as magistraturas, porque não neces-
sitarão de subsídios*.
Esses princípios não são aplicáveis a todos os usos nos
estados modernos. Alguns há que requerem uma fortuna
acima de toda fortuna particular, mas nada impede sejam
aplicados às funções representativas.
Os cartagineses já tinham feito essa distinção: todas as
magistraturas nomeadas pelo povo eram exerci das sem
subsídios. As outras eram assalariadas.
Aristóteles, Política, liv. V, cap o VII.
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ESCRIT OS DE PO LfTIC A
Numa Constituição em que os não-proprietários não
tivessem direitos políticos, a ausência de salário para os re-
presentantes da nação me parece natural. Não é uma con-
tradição ultrajante e ridícula repelir o pobre da representa-
ção nacional, como se somente o rico devesse representá-lo
e fazer-lhe pagar seus representantes, como se esses repre-
sentantes fossem pobres?
A corrupção que nasce de pretensões ambiciosas é
muito menos funesta do que a que resulta de cálculos ignó-
beis. A ambição é compatível com mil qualidades engenho-
sas: a probidade, a coragem, o desinteresse, a independên-
cia. A avareza não poderia coexistir com nenhuma dessas
qualidades. Não se pode afastar dos empregos os homens
ambiciosos; afastemos deles pelo menos os homens ávidos,
e assim diminuiremos consideravelmente o número dos
concorrentes, e os que afastaremos serão precisamente os
menos estimáveis.
Mas uma condição é necessária para que as funções re-
presentativas possam ser gratuitas: que elas sejam importan-
tes, pois ninguém iria querer exercer gratuitamente funções
pueris por sua insignificância, e que seriam vergonhosas se
deixassem de ser pueris. Mas também, numa Constituição as-
sim, melhor seria que não houvesse funções representativas.
I
CapítuloVI
s condições de
propriedade
Nossa Constituição não pronunciou nada sobre as
condições de propriedade requeridas para o exercício dos
direitos políticos, porque esses direitos, confiados a ~ol~~os
eleitorais, estão por isso mesmo nas mãos dos propnetanos.
Mas, se esses colégios fossem substituídos pela eleição dire-
ta, certas condições de propriedade seriam indispensáveis.
Nenhum povo considerou como membros do Estado
todos os indivíduos residentes, de uma maneira ou de ou-
tra em seu território. Não se trata, aqui, das distinções que,
entre os antigos, separavam os escravos dos homens livres e
que, entre os modernos, separam os nobres dos plebeus. A
democracia mais absoluta estabelece duas classes: numa
são relegados os estrangeiros e os que nã~ alcanç~ram a
idade prescrita pela lei para exercer os díreítos de cidada-
nia :
a outra
é
composta pelos homens que chegaram a
essa idade e nasceram no país . Existe pois um princípio se-
gundo o qual, entre indivíduos reunido_snum território, al-
guns são membros do Estado, outros nao.
Esse princípio é evidentemente o de que, para ser mem-
bro de uma associação,
é
preciso ter certo grau de luzes e um
Às crianças, cumpre acrescentar as mulheres, isto é, a metade da nação.
Assim, o sufrágio universal sempre foi exercido por apenas ~ma n;mona d~s
cidadãos. O que prova, com toda evidência, que
é
uma funçao política. e nao
um direito natural. (E.L.)
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ESCRITOS DE POL TICA
Em todos os países que têm assembléias representativas,
é indispensável que essas assembléias, qualquer que seja sua
organização ulterior, aliás, sejam compostas de proprietários.
Um indivíduo, por um mérito notável, pode cativar a multi-
dão, mas os corpos precisam, para conquistar a confiança, ter
interesses evidentemente conformes a seus deveres. Uma
nação sempre presume que homens reunidos são guiados
por seus interesses. Ela se crê segura de que o amor à ordem,
à justiça e à conservação terá a maioria entre os proprietários.
Eles, portanto, não são úteis apenas pelas qualidades que
lhes são próprias; eles o são também pelas qualidades que lhes
são atribuídas, pela prudência que se supõe tenham e pelas
prevenções favoráveis que inspiram. Ponha não-proprietá-
rios entre os legisladores. Por mais bem intencionados que
sejam, a inquietude dos proprietários bloqueará todas as me-
didas por eles tomadas. As leis mais sábias serão alvo de sus-
peita e, por conseguinte, desobedecidas, enquanto a organi-
zação oposta teria granjeado o assentimento popular, mesmo
para um governo defeituoso sob certos aspectos.
Durante nossa Revolução, os proprietários, é verdade,
colaboraram com os não-proprietários na elaboração de leis
absurdas e espoliadoras. É que os proprietários tinham
medo dos não-proprietários revestidos do poder. Eles que-
riam fazer perdoar sua propriedade. O medo de perder o
que tem torna o possuidor pusilânime, e então ele passa a
imitar o furor dos que querem adquirir o que não têm. As
faltas ou os crimes dos proprietários foram uma conseqüên-
cia da influência dos não-proprietários.
Mas quais são as condições de propriedade que é equi-
tativo estabelecer?
Uma propriedade pode ser tão restrita que quem a pos-
sui seja proprietário apenas aparentemente. Quem não tem
em renda territorial a soma suficiente para existir durante o
ano, sem ser obrigado a trabalhar para outrem, diz um es-
critor que tratou à perfeição essa matéria*, não é inteira-
Garnier (Germain Garnier, tradutor e anotador de Adarn Srnith). (E.L.)
PRINC[PIOS DE POLfTICA
mente proprietário. Ele se encontra, quanto à porção de
propriedade que lhe falta, na classe dos assalanados. Os pro-
prietários são senhores da existência dele,. porque podem
lhe recusar trabalho. Somente quem pOSSUIa renda neces-
sária para existir, independentemer:te de qualquer von~a~e
alheia, pode exercer os direitos de cidadania ..1 ma condlç.ao
de propriedade inferior é ilusória; uma condição de propne-
dade mais elevada é injusta. .
Creio entretanto que deve ser reconhecido como pro-
prietário quem tiver arrendado por ~o.ngoprazo uma fazen-
da que proporcione uma renda suficiente. No esta~o atual
das propriedades na França, o arr~n~a~ário que na~ po~e
ser expulso é realmente mais propnetano do 9ue o cidadão
que só aparentemente o é de um bem que da em arr~n?a-
mento. E justo portanto conceder a.um os mesmos direitos
que ao outro. Se se objetar que, no fim ~o ,:o.ntrato, o arren~
datário perde sua qualidade de propnetano, responder~1
que, por mil acidentes, cada proprietário pode, de um dia
para o outro, perder sua propriedade.. ., .
Note-se que falo unicamente da propnedade fur:dlana e
observe-se que talvez existam várias classes de propned~de.e
que a do solo não é mais que uma, d.essas .classes.A propna
Constituição reconhece esse princípio, pOlS:on~~de ,repre-
sentantes não apenas ao território, mas tambem a l 'dustna.
Confesso que, se o resultado dessa disposição tivesse
sido igualar pro~riedade fu~~ii~ria3; propnedade industrial,
eu não teria hesitado em
criticá
-Ia . , .
A propriedade industrial carece de vanas vantagens da
propriedade fundiária, e essas van.tagens são preClSamen e
aquelas de que se compõe o espínto conservador, necessa-
rio às associações políticas. ,.
A propriedade fundiária influi sobre o ca:ater e o desti-
no do homem, pela natureza mesma ~os cuidados que re-
quer. O cultivador se entrega a ocupaçoes constantes : ~ro-
gressivas. Contrai assim uma regularidade em seus hábitos.
O acaso que, em moral, é uma grande fonte de desorde~,
nunca está alheio à vida do agricultor. Qualquer
mterrupçao
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ESCR ITOS DE POLfT ICA
lhe é nociva; qualquer imprudência lhe é uma perda certa.
Seus sucessos são lentos. Ele não pode
apressá-los
nem au-
mentá-los por felizes temeridades. Ele está na dependência
da natureza e na independência dos homens. Todas essas
coisas lhe dão uma disposição calma, uma sensação de se-
gurança, um espírito de ordem que o prendem à vocação a
que deve tanto seu descanso como sua subsistência.
A propriedade industrial só influi sobre o homem pelo
ganho positivo que lhe proporciona ou lhe promete. Ela põe
em sua vida menos regularidade. Ela é mais factícia e me-
nos imutável do que a propriedade fundiária. As operações
de que se compõe consistem muitas vezes em transações for-
tuitas; seus sucessos são mais rápidos, mas o acaso conta
muito. Ela não tem por elemento necessário essa progres-
são lenta e segura que cria o hábito e, logo, a necessidade da
uniformidade. Ela não torna o homem independente dos
outros homens; ao contrário, coloca-o na dependência de-
les. A vaidade, esse germe fecundo de agitações políticas, é
ferida com muita freqüência no proprietário industrial; qua-
se nunca no agricultor*. Este último calcula em paz a ordem
das estações, a natureza do solo, o caráter do clima. O outro
calcula as fantasias, o orgulho, o luxo dos ricos. Uma fazen-
da
é
uma pátria em pequena escala. Você nasce nela, é criado
nela, cresce nela com as árvores que a rodeiam. Na proprie-
dade industrial, nada fala à imaginação, nada às lembran-
ças, nada à parte moral do homem. Diz-se o campo dos
~eus an~estrais, a cabana dos meus pais. Nunca ninguém
dl~se a loja ou a oficina dos meus pais. As melhorias na pro-
pnedade territorial não podem se separar do solo que as re-
cebe e de que elas se tornam parte. A propriedade industrial
não é passível de melhoria. mas de aumento apenas, e essa
melhoria pode se transportar à vontade.
Do ponto de vista das faculdades intelectuais, o agri-
cultor tem sobre o artesão uma grande superioridade. A
. Pius questus, stabilissimus, minimeque invidiosus, minimeque rnale
cogitantes qUI in eo studio occupati surit , diz Catão, o Antigo, da agricultura.
PR IN C[P IOS DE POLfTICA
6
agricultura requer uma série de observações, de experiên-
cias, que formam e desenvolvem o julgamento : daí, nos
camponeses, esse senso justo e reto que nos surpreende. As
profissões industriais muitas vezes se limitam, pela divisão
do trabalho, a operações mecânicas .
Apropriedade fundiária acorrenta o homem ao lugar em
que mora, cerca seus deslocamentos de obstáculos, cria o pa-
triotismo por interesse. A indústria torna todos os lugares
mais ou menos iguais, facilita os deslocamentos, separa o
interesse do patriotismo. Essa vantagem da propriedade fun-
diária, essa desvantagem da propriedade industrial sob o as-
pecto político aumentam na medida em que o valor da pro-
priedade diminui. Um artesão não perde quase nada ao se
deslocar. Um pequeno proprietário fundiário se arruína ao se
expatriar. Ora, é sobretudo pelas classes inferiores dos pro-
prietários que se deve julgar osefeitos das diferentes espécies
de propriedade, pois essas classes constituem a maioria.
Independentemente dessa preeminência moral da pro-
priedade fundiária. ela é favorável à ordem pública, pela
própria situação em que coloca seus possuidores. Os arte-
sãos amontoados nas cidades estão à mercê dos facciosos;
os agricultores dispersos nos campos, é quase impossível
reuni-Ios e, por conseguinte, sublevá-los.
Essas verdades foram sentidas por Aristóteles. Ele sa-
lienta, com muito vigor, as características distintivas das
classes agrícolas e das classes mercantis, e decidiu em favor
das primeiras**.
Sem dúvida a propriedade industrial tem grandes van-
tagens. A indústria e o comércio criaram para a liber~~~e
um novo meio de defesa, o crédito. A propriedade fundlana
garante a estabilidade das instituições; a propriedade in-
dustrial assegura a independência dos indivíduos.
Smith, A. A riq uez a das na çõ es, r 10.
Aristóteles, Política, VI, 2.Ao citar Aristóteles, Benjamin Constant esque-
ce que os antigos não tinham nada parecido com a indústria moderna.
C :
0mo
o
trabalho era servil, só estimavam o agricultor. O que convinha a Atenas nao con-
vém mais às nossas sociedades modernas, que vivem da indústria. (E.L.)
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.
i r
6
ESCRITOS DE POLÍTICA
Assim, a recusa dos direitos políticos a esses comercian-
tes, cuja atividade e opulência dobram a prosperidade do
país que habitam, seria uma injustiça e, além disso, uma im-
prudência, porque seria pôr a riqueza em oposição ao poder.
Mas, se pensarmos melhor, perceberemos facilmente
que a exclusão não alcança aqueles proprietários industriais
que seria danoso excluir: quase todos eles são, ao mesmo
tempo, proprietários fundiários. Quanto aos que não têm
o_utra propriedade, além da sua indústria, fadados que es-
tao. por uma necessidade que nenhuma instituição dobrará
jamais, a ocupações mecânicas, estes são privados de qual-
quer meio de se instruir e podem, com a mais pura das in-
tenções, penalizar o Estado por seus inevitáveis erros. Esses
homens, cumpre respeitá-Ios, protegê-los. garanti-los con-
tra qualquer humilhação de parte do rico, afastar todas as
travas que pesam sobre seus trabalhos, aplainar, na medida
do possível, sua laboriosa carreira, mas não transportá-Ios a
uma nova esfera, a que seu destino não chama, em que seu
concurso é inútil, em que suas paixões seriam ameaçadoras
e sua ignorância, perigosa.
ossa Constituição, entretanto, quis levar ao excesso
sua solicitude para com a indústria. Criou para ela uma re-
presentação especial, mas limitou sabiamente o número
dos representantes dessa classe a um vinte e sete avos,
aproximadamente, da representação geral.
Alguns publicistas pensaram reconhecer que havia
uI:,a terceira espécie de propriedade. Eles a chamaram pro-
pnedade intelectual, e defenderam sua opinião de maneira
ass~z engenhosa. Um homem que se distingue numa pro-
~Issao liberal, disseram, um jurisconsulto, por exemplo, não
e preso ~'lenos fortemente à terra em que mora do que o
propnetano territorial. E mais fácil para este último alienar
seu pa tr mônio do que seria para o primeiro transportar sua
reputação a outro lugar. Sua fortuna está na confiança que
msptra. Essa confiança se deve a vários anos de trabalho, de
inteligência, de habilidade, aos serviços que prestou, ao cos-
tume que os outros contraíram de recorrer a ele em circuns-
tâncias difíceis, aos conhecimentos locais que sua longa ex-
PRINciPIaS DE POLfTICA
63
periência
reuniu. A expatriação o privaria dessas vantagens.
Ele seria arruinado pelo simples fato de que se apresentaria
desconhecido numa terra estranha.
Mas essa propriedade dita intelectual reside apenas na
opinião. Se a todos é permitido atribuí-Ia a si, todos sem
dúvida a reclamarão, porque os direitos políticos se torna-
rão não apenas uma prerrogativa social, mas um atestado
de talento, e recusar uma e outro a si próprio seria um raro
ato de desinteresse e de modéstia, ao mesmo tempo. Se é a
opinião dos outros que deve conferir essa propriedade inte-
lectual, essa opinião dos outros só se manifesta pelo suces-
so e pela fortuna que é o resultado necessário deste. Então,
a propriedade será naturalmente o quinhão dos homens
distinguidos em todos os gêneros.
Mas há considerações de mais alta relevância a encarecer.
As profissões liberais, talvez mais que todas as outras, necessi-
tam estar reunidas à propriedade, para que sua influência não
seja funesta nas discussões políticas. Essas profissões, tão re-
comendáveis sob tantos aspectos, nem sempre contam entre
suas vantagens a de colocar nas idéias essa justeza prática, ne-
cessária para se pronunciar sobre os interesses positivos dos
homens. Vimos, em nossa Revolução, literatos, matemáticos,
químicos, entregarem -se às opiniões mais exageradas, o que
não quer dizer que, sob outros aspectos, eles fossem esclareci-
dos e estimáveis. Mas eles haviam vivido longe dos homens:
uns tinham se acostumado a se abandonar à sua imaginação;
outros a só levar em conta a evidência rigorosa; os terceiros a
ver a natureza, na reprodução dos seres, antecipar a destrui-
ção. Eles tinham chegado por caminhos diferentes ao mesmo
resultado, o de desdenhar as considerações tiradas dos fatos,
de desprezar o mundo real e sensível e de raciocinar sobre o
estado social como entusiastas, sobre as paixões como geô-
metras, sobre as dores humanas como médicos .
Se esses erros foram o quinhão de homens superiores,
quais não serão os desgarres dos candidatos subalternos, dos
pretendentes infelizes? Quão urgente é pôr um freio nos
amores-próprios feridos, nas vaidades exasperadas, em todas
essas causas de amargo r, de agitação, de descontentamento
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8/18/2019 CONSTANT, Benjamin. Escritos de Política - Capítulos 4 a 14
19/44
64
ESCRITOS
DE
POLfTICA
contra uma sociedade na qual o descontente se sente desloca-
do, de ódio contra homens que parecem injustos avaliadores
Todos os trabalhos intelectuais são honrosos, não resta dúvi-
da; todos devem ser respeitados. Nosso primeiro atributo,
nossa faculdade distintiva, é o pensamento. Quem dele faz
uso, tem direito
à
nossa estima, independentemente do su-
cesso. Quem o ultraja ou o repele, abdica do nome de homem
e se coloca fora da espécie humana. No entanto, cada ciência
dá ao espírito de quem a cultiva uma direção exclusiva que se
torna perigosa nos negócios políticos, a não ser que seja con-
trabaIançada. Ora, o contrapeso só pode estar na propriedade.
Somente ela estabelece vínculos uniformes entre os homens.
Ela os acautela contra o sacrifício imprudente da felicidade e
da tranqüilidade dos outros, envolvendo nesse sacrifício seu
próprio bem-estar e obrigando-os a calcular por si mesmos.
Ela os faz descer do alto das teorias quiméricas e dos exageros
inaplicáveis, estabelecendo entre eles e o resto dos membros
da associação relações numerosas e interesses comuns.
E não creiam que essa precaução seja útil apenas para a
manutenção da ordem; ela não o é menos para a manuten-
ção da liberdade. Por uma reunião bizarra, as ciências que,
nas agitações políticas, às vezes dispõem os homens a idéias
de liberdade impossíveis, outras vezes os tornam indiferentes
e servis sob o despotismo. Os homens de ciência propria-
mente ditos raramente são prejudicados pelo poder, inclusive
pelo poder injusto. O poder só odeia o pensamento. Ele apre··
cia sobremaneira as ciências como meio para os governantes
e as belas-artes como distrações para os governados. Assim,
estando garantidos pela carreira que seguem contra as vexa-
ções de uma autoridade que nunca vê neles seus rivais, os
homens cujos estudos não têm relação alguma com os inte-
resses ativos da vida costumam se indignar muito pouco com
os abusos de poder que pesam sobre outras classes : .
Benjamin Constant voltou atrás na idéia demasiado absoluta que só
concedia direitos eleitorais aos proprietários fundiários. Ele modificou este ca-
pítulo na segunda edição das suas
Reflexões sobre as Constituições e as garantias,
capoVII, pp. 281
55.
desta edição. (E.L.).
CapítuloVII
discussão n s ssembléi s
represent tiv s
Devemos à Constituição atual um aprimoramento im-
portante, o restabelecimento da discussão pública nas as-
sembléias. ,
A Constituição do ano
VlII
39
a vedava: a Cart':. real so a
permitia com muitas restrições, para uma das ~a~~ras, e
cercava todas as deliberações da outra de um mIsten? 9.u
e
nenhum motivo razoável podia explicar. Voltamos a idéias
simples. Sentimos que os mandatários só se reuniam na ,e~-
perança de se entender, que para se entender era necessar2°
falar e que, salvo algumas exceções raras e breves, ele~ n~o
eram autorizados a disputar com seus mandantes o direito
de saber como tratavam seus interesses. .
Um artigo, que a princípio parece minucio.so ~,que foi
criticado na Constituição que vai nos reger, contribuirá pode-
rosamente para que as
discussões
s~jam úteis. E aquele que
defende os discursos escritos. E
mais
regulamentar do que
constitucional, admito; mas o abuso desses discursos teve
tanta influência e desnaturou tanto o andamento ~a:, nossas
assembléias, que é bom que se lhes dê enfim remedlO.
É só quando os oradores são o~rigad
8/18/2019 CONSTANT, Benjamin. Escritos de Política - Capítulos 4 a 14
20/44
66
ESCRITOS DE POLÍTICA
sua memória: as idéias que ouviram se amalgamam com as
que eles têm, modificam-nas e lhes sugerem respostas que
apresentam as questões sob seus diversos pontos de vista.
Quando os oradores se limitam a ler o que escreveram
no silêncio do seu gabinete, não discutem mais, amplificam;
não ouvem mais, porque o que ouvirem não pode mudar
em nada o que vão dizer. Eles esperam que o orador a que
devem suceder termine, não examinam a opinião que este
defende, contam o tempo que ele gasta e que lhes parece
um atraso. Então não há mais discussão, cada um reproduz
objeções já refutadas, cada um deixa de lado tudo o que não
previu, tudo o que atrapalhe seu arrazoado preparado de
antemão. Os oradores se sucedem sem se encontrar; se re-
futam, é mero acaso. Parecem dois exércitos que desfilassem
em sentido oposto, um ao lado do outro, mal se perceben-
do, evitando até se entreolhar, por medo de sair do caminho
irreversivelmente traçado.
Esse inconveniente de uma discussão que se compõe
de discursos escritos não é nem o único, nem o mais temí-
vel. Há um muito mais grave.
O que, entre nós, mais ameaça a ordem e a liberdade
não é o exagero, não é o erro, não é a ignorância, embora
todas essas coisas não nos façam falta: é a necessidade de
fazer efeit? Essa necessidade, que degenera numa espécie
de furor, e tanto mais perigosa por não ter sua origem na
natureza do homem, mas ser uma criação social, fruto tar-
?io e factício de uma velha civilização e de uma capital
Imensa. Em conseqüência, ela não se modera por si só,
como todas as paixões naturais que a própria duração des-
gasta. O sentimento não a detém, porque ela não tem nada
em comum com o sentimento; a razão nada pode contra
ela, porque não se trata de ser convencido, mas de conven-
c:r. O próprio cansaço não a acalma, porque quem a sente
nao consulta suas próprias sensações, mas observa as que
produz em outros. Opiniões, eloqüência, emoções, tudo é
meio. e o próprio homem se metamorfoseia num instru-
mento da sua própria vaidade.
PRINciPIas DE POLfTICA
67
Numa nação assim disposta, é necessário fazer que a
mediocridade perca o máximo possível a esperança de pro-
duzir um efeito qualquer, pelos meios que tem ao seu al-
cance. Digo um efeito qualquer, porque nossa vaidade é hu-
milde, ao mesmo tempo que é desenfreada: ela aspira a
tudo e se contenta com pouco. Ao vê-Ia expor suas preten-
sões, imaginá-Ia-íamos insaciável; ao vê-Ia deleitar-se com
os mais ínfimos sucessos, admiramos sua frugalidade.
Apliquemos essas verdades ao nosso tema. Querem
que nossas assembléias representativas sejam sensatas?
Imponham aos homens que nela querem brilhar a necessi-
dade de ter talento. A maioria se refugiará na razão, na pior
das hipóteses; mas se vocês abrirem para essa maioria uma
carreira em que cada um possa dar alguns passos, ninguém
quererá recusar tal vantagem. Cada um se dará seu dia de
eloqüência e sua hora de celebridade. Se cada um puder fa-
zer um discurso escrito ou encomendá-lo. pretenderá dei-
xar uma marca em sua existência legislativa, e as assem-
bléias se tornarão academias, com a diferença de que as
arengas acadêmicas nelas decidirão da sorte, das proprieda-
des e até da vida dos cidadãos.
Recuso-me a citar provas incríveis desse desejo de fa-
zer efeito, nas épocas mais deploráveis da nossa Revolução.
Vi representantes buscarem temas de discurso para que seu
nome não ficasse alheio aos grandes movimentos que se
haviam produzido; encontrado o tema, escrito o discurso, o
resultado era indiferente. Banindo os discursos escritos,
criaremos em nossas assembléias o que sempre lhes faltou:
essa maioria silenciosa que, disciplinada, por assim dizer,
pela superioridade dos homens talentosos, é reduzida a
ouvi-los, na impossibilidade de poder falar em seu lugar;
que se esclarece, por ser condenada a ser modesta e que se
torna sensata, calando-se .
Na Inglaterra, o usoparlamentar veda os discursos escritos, sendo per-
mitido apenas consultar notas para ajudar a memória. Não é o único emprés-
timo que seria desejável tomar doParlamento inglês. Nada é mais sensato que
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68
ESCRITOS DE POLfTICA
A presença dos ministros nas assembléias acabará dan-
do às discussões o caráter que elas devem adquirir. Os pró-
prios ministros discutirão os decretos necessários à admi-
nistração; eles trarão conhecimentos de fato que somente o
exercício do governo pode proporcionar. A oposição não
parecerá uma hostilidade, a persistência não degenerará em
obstinação. Cedendo às objeções razoáveis, o governo
emendará as proposições sancionadas, explicará as reda-
ções obscuras. A autoridade poderá, sem se comprometer,
prestar uma justa homenagem à razão e defender-se ela
própria pelas armas do raciocínio.
Todavia, nossas assembléias só alcançarão o grau de
perfeição de que o sistema representativo é passível quando
os ministros, em vez de assistirem a elas como ministros,
forem seus membros pela eleição nacional. Era um grande
erro das nossas Constituições precedentes essa incompati-
bilidade estabelecida entre o ministério e a representação.
Se os representantes do povo nunca podem participar
do poder, é de se temer que eles o considerem como seu
inimigo natural. Se, ao contrário, os ministros puderem ser
escolhidos dentro das assembléias, os ambiciosos só dirigi-
rão seus esforços contra os homens e respeitarão a institui-
ção. Como os ataques só visarão os indivíduos, serão menos
perigosos para o conjunto. Ninguém vai querer destruir um
instrumento cujo uso poderá conquistar, e quem procuraria
diminuir a força do poder executivo, se essa força devesse
lhe permanecer sempre estranha, irá poupá-Ia, se ela puder
se tornar um dia propriedade sua.
Vemos o exemplo disso na Inglaterra. Os inimigos do
ministério contemplam, no poder deste, sua força e sua au-
toridade futura. A oposição poupa as prerrogativas do go-
verno como sua herança e respeita seus meios vindouros
em seus adversários presentes.
É
um grande vício, numa
as medidas estabelecidas para que os debates não se afastem da conveniência
e da verdade. O leitor pode consultar a esse respeito o erudito tratado de May,
T. E., A Practical Treatise of the Lato, Prioileges. Proceedings, and Usage of Parlia-
ment Londres. 1859, capoXI. (E.L.)
PRINcfpIOS DE POLfTICA
69
Constituição, estar situada entre os partidos, de. m~r:eira
que um só possa chegar ao outro através da Constituição. E
no entanto é o que acontece quando o poder executivo,
posto fora do alcance dos legisladores, é para eles sempre
um obstáculo e jamais uma esperança.
Não pode gabar-se de excluir as facções de uma orga-
nização política quem quiser conservar as vantagens da li-
berdade. É preciso, portanto, trabalhar para tornar essas
facções o mais possível inocentes e, como às vezes elas se-
rão vitoriosas, é necessário de antemão prevenir ou atenuar
os inconvenientes da sua vitória.
Quando os ministros são membros das assembléias,
é
mais fácil atacá-los se são culpados, porque, sem que seja
necessário denunciá -los. basta responder-lhes; eles tam-
bém se desculpam mais facilmente, se são inocentes, pois
podem explicar e motivar sua conduta a tod~ instante.
Reunindo os indivíduos, sem parar de distinguir os po-
deres, constitui-se um govemo em harmonia, em vez de criar
dois campos sob as armas. .
Daí resulta também que um ministro inepto ou suspei-
to não pode conservar sua potência. Na Inglaterra, o minis-
tro perde de fato seu posto se estiver em minoria .
Pitt foi uma exceção a essa regra durante dois meses. em 1784. Mas é
que anação inteira era afavordo seu ministério,contra aCâmara dos Comuns.
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Capítulo VIII
Da iniciativa
~oi r:'al compreendido, parece-me, o sentido do artigo
constItucIOnal referente à iniciativa. A Carta real a recusava
q~ase inteiramente às câmaras que ela própria havia criado.
So por uma extensão, por assim dizer ilegal, é que os depu-
ta?os se apoderaram da faculdade de desenvolver em
pú-
blico suas propostas e que os ministros anunciavam o pro-
jeto de lhes disputar esse privilégio. Quando uma proposta
era acolhida, formas lentas e embaraçadas entravavam seu
~n~a:nento. Numa palavra, o direito de proposta, na Cons-
tituiçâo de 1814, era um recurso insuficiente, contrário à in-
tenção da própria Constituição e sempre correndo o risco
de ser suprimido por uma interpretação mais rigorosa dessa
Constituição.
Em nosso Ato Constitucional, ao contrário, uma só di-
ferença distingue a iniciativa das câmaras daquela de que o
~arlar:'ento da Inglaterra é investido: o chefe de Estado não
e obngado a pronunciar seu veto: o silêncio faz as vezes
deste. Mas, quando a opinião pública reclama a adoção de
uma pr~posta popular, um governo representativo pode lhe
opor /sIlencIO. ~or muito tempo? O caráter de tal governo
nao e ser dmgIdo pela opinião? Portanto a iniciativa é, de
fato, entregu.e con:pletamente aos representantes da nação,
que .p~odem inclusive reproduzir suas propostas com tanta
frequencIa quanto julgarem conveniente, direito que o arti-
go 21 da Carta reallhes tomara.
PRINClpIOS DE POLfTICA
7
Minha opinião sobre a iniciativa não mudou, em abso-
luto. Ela me parece, como há um ano, parte necessária das
atribuições da representação nacional . Ela não ~od~, sem
dúvida, ser recusada aos ministros. Cabe a eles indicar os
desejos do governo, assim como os deputados indicam a
aspiração do povo; mas acontecerá naturalmente q~e. o go-
verno quase nunca exercerá sua iniciativa. Os mI~Istros,
tendo assento na câmara entre os representantes, farao nes-
sa qualidade as propostas que as circunstâncias. C : U as ne-
cessidades do Estado exigirem. O governo
sentirá
que faz
parte da sua dignidade mais esperar do que antece~er.
Quando propõe projetos de lei, é ele que se submete ao Jul-
gamento das câmaras; quando aguarda a proposta das ca-
maras, torna-se juiz destas.
Deixemos, durante esses primeiros momentos, nosso
mecanismo constitucional se estabelecer e se simplificar
pelo uso e o costume. Multiplicam-se as dificuldades imagi-
nando preveni-Ias; criam-se dificuldades ao transformar em
dano incertezas que se devem à inexperiência. Ponha~os
com boa-fé a Constituição em atividade. Em vez de abala-Ia
com modificações prematuras, vejamos se o emprego do
que existe não nos oferece as me~~a~ vantagen,s ..Enquanto
não se experimentar uma Constituição pela pratica, as fo~-
mas são letra morta: somente a prática demonstra seu efei-
to e determina seu sentido. J á abatemos demasiadas vezes o
edifício a pretexto de reconstruí-Io: aprov.eitemos.doravante
as luzes que somente pelos fatos se adquirem, a flI~ ?-epro-
ver gradativamente a todas as n.ec_essidades ~arClaIS, com
medida, com sabedoria, com lentidão, com a ajuda do tem-
po; o mais ameno e mais poderoso de todos os auxiliares.
*
Reflexões sobre as Constituições e as garantias,
capo IV ,
§
4.
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Capítulo IX
Da responsabilidade dos ministros
A Constituição atual talvez tenha sido a única a estabe-
lecer sobre a responsabilidade dos ministros princípios per-
feitamente aplicáveis e suficientemente amplos.
Os ministros podem sofrer acusação e merecer ser pro-
cessados de três maneiras:
1~- Por abuso ou mau uso do seu poder legal;
2~- por atos ilegais, prejudiciais ao interesse público,
sem relação direta com os particulares;
3~- por atentados contra a liberdade, a segurança e a
propriedade individual.
Provei, numa obra que veio a público há três meses ,
que, como esta última espécie de delito não tem relação al-
guma com as atribuições de que os ministros são legalmen-
te investidos, eles se incluíam, sob esse aspecto, na classe
dos
cidadãos
e deviam ser julgados por tribunais ordinários.
Ecerto que, se um ministro, num acesso de paixão, rap-
tasse uma mulher ou se, num acesso de cólera, matasse um
homem, não deveria ser acusado como ministro, de manei-
ra particular, mas ser alvo, como violador das leis comuns,
das ações judiciais a que seu crime estaria exposto pelas leis
comuns, e nas formas prescritas por estas.
Ora, aplica-se a todos os atos que a lei reprova o mes-
mo que ao rapto e ao homicídio. Um ministro que atente
* De Ia responsabilité des ministres, Paris, 1815, capo I.
PRINCÍPIOS DE POLÍTICA
73
ilegalmente contra a liberdade ou a propriedade de um ci-
dadão não peca como ministro, porque nenhuma das suas
atribuições lhe dá o direito de atentar ilegalmente contra a
liberdade ou a propriedade de um indivíduo. Ele se inclui
portanto na classe dos outros culpados e deve ser processa-
do e punido como eles.
Cumpre notar que depende de cada um de nós atentar
para a liberdade individual. Não é um privilégio particular
dos ministros. Eu posso, se quiser, contratar quatro homens
para esperar meu inimigo numa esquina e arrastá-lo para
um reduto obscuro, em que o mantenha encerrado sem
ninguém saber. O ministro que manda raptar um cidadão,
sem ter sido autorizado para tanto pela lei, comete o mes-
mo crime. Sua qualidade de ministro é alheia a esse ato,
cuja natureza em nada altera. Porque, mais uma vez, como
essa qualidade não lhe dá o direito de deter os cidadãos, em
desacato à lei e contra suas disposições formais, o delito que
ele comete se inclui na mesma classe que o homicídio, o
rapto ou qualquer outro crime privado.
Sem dúvida o poder legítimo do ministro lhe facilita os
meios de cometer atos ilegítimos; mas esse emprego da sua
potência é apenas mais um delito. É como se um indivíduo
forjasse uma nomeação de ministro para se impor a seus
agentes. Esse indivíduo suporia uma missão e se arrogaria
um poder de que não seria investido. O ministro que orde-
na um ato ilegal também se pretende investido de uma au-
toridade que não lhe foi conferida. Em conseqüência, em
todos os delitos de que os indivíduos são vítimas, eles de-
vem mover uma ação direta contra os ministros.
Quis-se contestar aos tribunais ordinários o direito de
se pronunciar sobre as acusações dessa natureza. Alegou-se
sucessivamente a fraqueza dos tribunais, que temeriam
condenar homens poderosos, e o inconveniente de confiar
a esses tribunais o que se chamou segredos de Esta?o.
Esta última objeção se prende a velhas idéias. E um re-
síduo do sistema em que se admitia que a segurança do Es-
tado podia exigir atos arbitrários. Então, como a arbitrarie-
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74
ESCRITOS DE POL TICA
dade não pode ser justificada. já que supõe a ausência dos
fatos e das provas que teriam tornado suficiente a lei, pre-
tende-se que o segredo é indispensável. Quando um minis-
tro manda prender e deter ilegalmente um cidadão, é sim-
ples para os seus apologistas atribuírem essa humilhação a
razões secretas, que são do conhecimento apenas do minis-
tro e,qu.e ele não pode revelar sem comprometer a seguran-
ça
pública.
Quanto a mim, não conheço segurança pública
sem garantia individual. Creio que a segurança pública é
comprometida principalmente quando os cidadãos vêem
na autoridade um perigo, em vez de uma salvaguarda. Creio
q~e ~ arbitrariedade é o verdadeiro inimigo da segurança
pública: que as trevas com que a arbitrariedade se envolve
apenas agravam seus perigos; que não há segurança
públi-
c~ sen,ão .na jus_tiça,que não há justiça senão pelas leis, que
nao ha leis senao pelas formas. Creio que a liberdade de um
só cidadão interessa suficientemente o corpo social para
que a causa de todo rigor exercido contra ele deva ser conhe-
ci~a ~or seus juízes naturais. Creio que é esse o objetivo
pri
noipa],
o objetivo sagrado de toda instituição política e
que, como nenhuma Constituição pode encontrar fora daí
uma legitimidade completa, em vão ela procuraria fora
dai
uma
força e uma duração cer