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Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8
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Considerações sobre o populismo econômico: explicação ou distorção histórica?
Felipe Pereira Loureiro*
Poucos foram os conceitos tão extensivamente utilizados por cientistas sociais
para compreender as transformações históricas da América Latina no século XX quanto
o de populismo. A partir dele, muitos interpretaram a crescente participação dos setores
populares na política latino-americana à luz de uma perspectiva que contrapunha um
Estado forte a uma fraca sociedade civil. A existência de lideranças carismáticas e com
forte apelo ao povo, o fomento à criação de organizações sindicais de cunho
corporativista e a concessão de benefícios aos trabalhadores sem modificar a estrutura
socioeconômica vigente foram considerados como os principais mecanismos desse
controle dos grupos populares pelo Estado1.
A tentativa de abarcar as complexas e multifacetadas experiências sociais,
econômicas e políticas da América Latina por meio desse conceito vem suscitando, no
entanto, debates quanto às suas supostas insuficiências e, principalmente, quanto à
validez da sua utilização2. Essas discussões se embasam em trabalhos cujas evidências
empíricas estão demonstrando, entre outros aspectos, a necessidade de se relativizar a
tese de que os movimentos dos trabalhadores teriam sido plenamente dominados pelos
governos ditos populistas. Por meio de estudos monográficos sobre comissões de
fábricas, greves e sindicatos regionais, percebeu-se, por exemplo, que a dominação
governamental sobre as classes obreiras teria sido bem menor do que se imaginara3.
Apesar de todas as críticas apresentadas por essa literatura, muitos têm sido os
trabalhos que ainda se mantêm fiéis a uma conceituação genérica e, ao mesmo tempo,
monolítica de populismo, principalmente no que se refere à sua variante mais recente: a
econômica. Formulada de modo mais concreto por Dornbusch e Edwards (1992), esta
se baseia na idéia de que governos populistas, para além de outras características
comuns, apresentariam uma forte tendência para elaborar políticas macroeconômicas
semelhantes. Tais políticas, segundo essa visão, valorizariam a redistribuição de renda
*doutorando em História Econômica / FFLCH-USP / Bolsista CNPq 1 Um dos trabalhos que melhor exemplifica essa perspectiva é o de WEFFORT (1980). 2 Para uma boa discussão sobre as limitações e a pertinência da manutenção do uso da noção de populismo, ver FERREIRA (2001), KNIGHT (1998) e VIGUERA (1993). 3 Para exemplos de trabalhos nesse sentido, ver COLISTETE (2001), DANIEL (1978), FRENCH (1995), HOROWITZ (1983) e RANCAÑO (1992)
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em prol dos grupos sociais mais pobres, sem terem, todavia, preocupações com seus
custos em termos de desequilíbrios fiscais, monetários e/ou externos.
É dentro desse contexto historiográfico que visa discutir a validade histórica do
conceito de populismo que este artigo se insere. Objetiva-se, aqui, considerar a
pertinência e a eficácia analíticas do uso da noção de populismo econômico para a
compreensão das políticas econômicas latino-americanas a partir da década de 1930.
Para tanto, escolheu-se como objeto de estudo as experiências históricas dos
governantes considerados pela literatura como os mais exemplificativos do chamado
Estado Populista: Juan Domingos Perón (Argentina, 1946-1955) e Getúlio Vargas
(Brasil, 1951-1954)4. Por meio da análise de dados macroeconômicos extraídos de
estatísticas oficiais desses países e de fontes secundárias diversas, argumentar-se-á que
o conceito apresenta pequeno alcance explicativo. Em alguns casos, nota-se certa
correspondência entre aquilo que fora estabelecido pelo modelo teórico e a experiência
histórica, mas, em muitos outros, percebeu-se que aquele mais distorcia do que
efetivamente explicava e clarificava o passado. No saldo final entre ganhos e perdas,
portanto, considerou-se mais interessante prescindir da utilização do conceito a fim de
não comprometer a fidedignidade histórica.
Para além desta introdução, dividiu-se o artigo em quatro seções: na primeira,
serão apresentadas as principais características do conceito de populismo econômico;
nas segunda e terceira, analisar-se-ão, respectivamente, os desempenhos das políticas
econômicas peronista e varguista; e, na última, sugerem-se algumas conclusões.
1. O Conceito de Populismo Econômico
Segundo a interpretação de Dornbusch e Edwards, o populismo apresenta um tipo
de governabilidade autodestrutiva. Esse seu caráter de auto-aniquilamento se deveria às
contradições existentes no arranjo de forças sociais que dão embasamento e
legitimidade a esse tipo de liderança. Na medida em que esta recebe apoios
significativos tanto de setores das elites como de grupos populares, ocorreriam,
inevitavelmente, sérios impedimentos para a efetivação de políticas públicas que
satisfizessem a todos esses atores sociais ao mesmo tempo. Disso resultaria, conforme
tais estudiosos, um conjunto de ações estatais pouco sustentáveis para serem mantidas
4 Apesar de as administrações de Perón e de Vargas não terem sido circunscritas aos intervalos acima citados, decidiu-se privilegiar apenas os períodos considerados “clássicos” de ambos os governos.
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no longo prazo, devido a essa vã tentativa de conjugar interesses díspares. No início,
estes até seriam compatibilizados; porém, depois, isso não se mostrava mais viável,
fazendo com que tais políticas fossem abandonadas (DORNBUSCH e EDWARDS, p.
15-6).
É dentro dessa perspectiva que os autores afirmam que as políticas econômicas
dos governos populistas apresentam muitas similaridades entre si e que, por isso, se
deveria pensar em uma verdadeira “macroeconomia do populismo na América Latina”.
Como elemento chave dessas políticas, destacar-se-ia o impulso dado por esses
governantes às medidas fomentadoras do crescimento econômico imediato e da
distribuição de renda, sem que fossem concedidas as atenções necessárias aos impactos
dessas ações em termos de riscos inflacionários, desequilíbrios internos e externos
(déficits público e da balança de pagamentos) e reação dos agentes econômicos diante
de ações que fossem por eles consideradas agressivas às liberdades de mercado.
Os autores vão além e chegam até a distinguir fases comuns na “grande maioria”
das experiências populistas latino-americanas no que condiz à evolução da política
econômica. Segundo tais estudiosos, na primeira etapa, o Estado aplicaria medidas
monetárias expansivas, patrocinaria significativos aumentos salariais para os
trabalhadores, permitiria a realização de importações para além das possibilidades
domésticas e aumentaria consideravelmente sua participação no produto nacional como
produtor de bens e serviços. Como conseqüência dessas ações, haveria elevação real dos
salários, forte crescimento econômico e melhora dos níveis de distribuição de renda.
Além disso, a grande disponibilidade da oferta de bens – seja devido às importações
ascendentes, seja em razão da existência de capacidade ociosa em certos setores da
economia – e os diversos mecanismos de controle de preços garantiriam baixas taxas
inflacionárias.
Na segunda fase, segundo os autores, essa “idade de ouro” do desempenho
macroeconômico populista chegaria ao fim. A significativa expansão da demanda,
inflada por políticas creditícias liberalizantes e aumentos reais de salários, geraria, em
poucos anos, diversos pontos de estrangulamento na economia. Não apenas a
capacidade ociosa por ventura existente em alguns setores seria exaurida, como também
a manutenção do fluxo vigente de importações se mostraria cada vez inviável devido
aos desequilíbrios do setor externo e ao rápido esgotamento das reservas internacionais.
Para piorar, a política indiscriminada de gastos públicos seria responsável por altos
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déficits governamentais. Como resultado, haveria diminuição dos ritmos de crescimento
do produto e dos salários reais, e aumento das taxas de inflação. A fim de controlar tais
efeitos, o Estado populista realizaria a primeira guinada em sua política econômica:
elevaria os controles de preços e estruturaria mecanismos de limitação à entrada de bens
importados (tais como sistemas múltiplos de câmbio, controles cambiais diretos e/ou
protecionismo alfandegário). Apesar disso, o radicalismo dessas mudanças ainda seria
reduzido. Exemplo disso estaria no fato, segundo os autores, de que não se alterariam
fundamentalmente as diretrizes das políticas monetária e fiscal, que se manteriam
expansivas.
Na terceira fase, a situação econômica do país pioraria significativamente. De um
lado, haveria estagnação do produto, bem como decréscimo dos salários reais e fuga de
capitais externos; do outro, a inflação, o déficit público e os desequilíbrios da balança
de pagamentos atingiriam níveis quase insuportáveis. A fim de retomar as rédeas da
situação, o líder populista tenderia, conforme os autores, a enveredar rumo a uma
política econômica mais conservadora, que priorizasse metas fiscais e monetárias
restritivas e que criasse mecanismos capazes de fomentar um melhor desempenho das
exportações (desvalorização cambial e/ou subsídios). A realização dessas mudanças
geraria consideráveis instabilidades políticas e oposições ao regime, esgarçando a já
frágil aliança de forças sociais que dava sustentação à governabilidade populista. Como
decorrência desses conflitos, e na tentativa de impedir a perda de seus apoiadores,
algumas das medidas dessa política de estabilização tenderiam a ser relaxadas, levando
a uma piora ainda maior do quadro econômico doméstico.
Por fim, a quarta fase, protagonizada comumente pela administração pós-
populista, se caracterizaria pela aplicação de uma política de estabilização ortodoxa.
Esta, porém, devido à profundidade dos desequilíbrios macroeconômicos acumulados,
não seria capaz de debelar a recessão rapidamente. Ao final de todo o processo, os
salários reais se encontrariam a níveis menores do que aqueles vigentes antes da
experiência política populista. Todo o esforço, portanto, não apenas teria sido em vão,
como também seria responsável pela piora das condições de vida dos trabalhadores.
Segundo as palavras dos próprios estudiosos: “o capital é móvel através das fronteiras,
porém a mão-de-obra não é. O capital pode fugir dos males políticos, porém os
trabalhadores estão presos” (DORNBUSCH e EDWARDS, 1992, p. 21).
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A receptividade do conceito de populismo econômico no meio acadêmico foi
bastante considerável. Os trabalhos de Bazdresch e Levy (1992), Pereira (1992) e
Cardoso (1993) foram alguns dos seus adeptos. Nos últimos anos, talvez inflado pela
onda de estudos referentes à emergência de governos “neopopulistas” na América
Latina, o conceito voltou a balizar as análises sobre a região – vide, por exemplo, os
textos de Hawkins (2003) e Carneiro (2005)5. Deve-se perguntar, no entanto, se esse
modelo teria condições, de fato, de examinar fidedignamente as políticas econômicas
das administrações latino-americanas. Para verificar isso, serão analisadas, nas próximas
seções, as medidas aplicadas por alguns dos governos mais tradicionalmente rotulados
como populistas (Juan Domingos Perón na Argentina e Getúlio Vargas no Brasil).
Como se trabalharão com administrações populistas interpretadas como “clássicas”, é
de se esperar que, ao menos nestas, o conceito consiga contemplá-las de maneira
satisfatória; caso contrário, tornar-se-á difícil defendê-lo.
2. A Política Econômica Peronista
De uma maneira geral, divide-se a política econômica peronista em quatro fases,
correspondentes aos seguintes períodos: (i) 1946-48, (ii) 1949-51, (iii) 1952, e (iv)
1953-556. Apresentam-se, a seguir, suas principais características.
A primeira dessas etapas foi simbolizada pelo lançamento do Primeiro Plano
Qüinqüenal (1946-1951), cuja principal meta fora a de incentivar o crescimento
industrial argentino mediante fomento do mercado doméstico. Entre as ações aplicadas
pelo governo nesse sentido, destacaram-se, por exemplo, as políticas de expansão
creditícia para setores considerados estratégicos (notadamente o fabril); a imposição de
significativas barreiras à entrada de bens estrangeiros concorrentes aos nacionais; o
deslocamento de renda dos setores de exportação para aqueles voltados para o mercado
local; a política de concessão de aumentos reais de salários para os trabalhadores; e a
crescente intervenção estatal na economia, seja via subsídios, seja por meio de inúmeros
investimentos diretos (RAPOPORT, 2005, p. 322-3). Em razão da importância dessas
medidas, é preciso se verticalizar um pouco mais em cada uma delas.
5 Para uma discussão sobre o conceito de “neopopulismo” quando da formulação original, ver VIGUERA (1993). 6 Para boas análises sobre a política econômica peronista, ver DE RIZ e TORRE (1993), GERCHUNOFF e LLACH (1998), RAPOPORT (2005) e ROMERO (2001). As informações relatadas a seguir foram extraídas essencialmente dessas obras.
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No que se refere à política creditícia, o governo se utilizou da nacionalização do
Banco Central da República Argentina – promovida pela administração Farrell (1944-
46) – para canalizar empréstimos dessa instituição para os setores por ele considerados
prioritários. Além disso, apertaram-se as condições de redesconto das entidades
bancárias privadas junto ao Banco Central. A lógica era a de permitir tais operações
apenas para os bancos que estivessem sintonizados com as metas de expansão creditícia
estipuladas pelo governo.
No que condiz à política comercial, além da transformação das tarifas
alfandegárias de absolutas em ad valorem, o governo aumentou as alíquotas para bens
estrangeiros, criou um sistema cambial múltiplo e estabeleceu controles diretos de
câmbio. Visava-se, com isso, dificultar a importação de bens que pudessem fazer
concorrência aqueles produzidos domesticamente e estimular a compra de produtos
essenciais para o crescimento da economia argentina. Além disso, monopolizaram-se as
operações de compra e venda de bens para o exterior por meio do Instituto Argentino de
Promoción del Intercambio (IAPI). Pagavam-se, assim, valores monetários fixos pelos
bens produzidos aos exportadores e vendiam-se tais produtos pelos seus preços
internacionais. Como no final dos anos 1940 os termos de intercâmbio externos se
encontravam absolutamente favoráveis à Argentina, o IAPI acabou concentrando um
considerável excedente de divisas em seu poder. Estas foram canalizadas, em sua maior
parte, para investimentos públicos diretos ou para setores privados locais mediante, por
exemplo, empréstimos às indústrias (DE RIZ e TORRE, 1993, p. 250).
Quanto à política salarial, destacaram-se a institucionalização dos contratos
coletivos de trabalho, das férias remuneradas, do salário mínimo e dos “salários anuais
complementares” (equivalentes ao 13° Salário no Brasil). Como resultado disso, houve
um aumento da participação da renda dos trabalhadores no produto agregado local
(Tabela 1).
Tabela 1 – Participação dos Assalariados na Renda Nacional Argentina como Porcentagem do Produto Interno Bruto, 1945‐1955 (%)
(1) (2) (3) (4)
1945 46,7 * * * 1946 46,8 * 40,1 * 1947 47,9 * 39,5 * 1948 52,4 * 43,5 * 1949 59,4 * 49,0 *
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1950 60,9 51,9 49,6 47,5 1951 * 49,2 45,2 45,2 1952 * 51,8 50,5 47,8 1953 * 51,9 48,9 47,6 1954 * 53,2 49,9 49,0 1955 * 49,8 47,0 46,4
Legenda: Base de dados conforme: (1) – Secretaria de Assuntos Econômicos (SAE); (2) – Banco Central da República Argentina (BCRA); (3) – Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL); e (4) – Héctor Diégues e Alberto Petrecolla. Fonte:
RAPOPORT (2005, p. 348)
Sobre a política de investimentos públicos, salientaram-se as nacionalizações das
empresas ferroviárias, telefônicas, navais e de gás, além da encampação de uma
pequena companhia aérea nacional - a qual, ampliada posteriormente, se transformaria
nas Aerolíneas Argentinas. O Estado começou também a subsidiar vários preços de
bens e de serviços de primeira necessidade, onerando ainda mais os cofres públicos,
porém garantindo, por outro lado, maior poder de compra aos assalariados
(RAPOPORT, 2005, p. 336-42).
Os resultados dessa primeira fase da política econômica peronista foram
impressionantes. O produto interno bruto cresceu, em média, 8,5% entre 1946 e 1948.
Deve-se destacar o desempenho do ano de 1947 (11,1%). A demanda por bens de
consumo e os investimentos públicos e privados foram os grandes carreadores dessa
ascensão. A industrialização substitutiva de importações, especialmente no que se refere
aos setores leves, se aprofundou com grande intensidade. Além disso, os salários reais
cresceram mais de 66% nesse mesmo período (RAPOPORT, 2005, p. 314 e 349).
Segundo cálculos da Secretaria de Assuntos Econômicos (SAE), os trabalhadores
aumentaram em mais de 30% sua participação na renda agregada nacional (Tabela 1).
Tabela 2 – Setor Público Consolidado Argentino – Milhões de Pesos de 1950 (1945‐1955)
Despesas Receitas Déficit Déficit (% PIB)
1945 12.494 9.171 3.323 7,23 1946 12.567 9.383 3.184 6,36 1947 17.047 13.376 3.671 6,60 1948 24.687 14.227 10.460 17,87 1949 17.002 14.224 2.778 4,76 1950 17.236 15.152 2.084 3,56 1951 17.424 16.028 1.396 2,31 1952 16.896 15.726 1.170 2,07 1953 18.363 16.848 1.515 2,55 1954 10.053 7.110 2.943 4,74 1955 18.234 15.648 2.586 4,00
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Fonte: RAPOPORT (2005, p. 342)
Por outro lado, os efeitos colaterais dessa política também já se mostravam
evidentes. Devido à grande expansão das importações e ao crescimento mais lento das
exportações – resultantes, em parte, da política comercial estabelecida pelo governo –,
os grandes superávits mercantis do final da II Guerra Mundial desapareceram. O maior
problema, no entanto, fora o fato de o país acumular déficits com os Estados Unidos e
superávits com nações cujas moedas não eram conversíveis em dólar. O resultado disso
foi o brusco decréscimo das reservas internacionais argentinas. Apenas entre 1946 a
1948, o país perdeu mais de U$S 1 bilhão – o que representava 60% das reservas
acumuladas ao longo do período da guerra (RAPOPORT, 2005, p. 360). Além disso, o
déficit público atingiu patamares significativos, especialmente em 1948, quando ele
ultrapassou mais de 17% do valor do produto doméstico (Tabela 2). Por fim, inflada
pela considerável expansão dos meios de pagamento (média de 30% ao ano no
interregno 1946-48) e pelos pontos de estrangulamento que foram surgindo na
economia ao longo desse surto de crescimento (tais como a da limitação da capacidade
de importação), o Índice Geral de Preços ascendeu de 3,6% para mais de 15% entre
1947 e 1948 (Tabela 3).
Tabela 3 – Taxas de Crescimento dos Meios de Pagamento, do Índice Geral de Preços e da Depreciação Cambial Dólar – Peso na Argentina, em % (1946‐1955)
Meios de Pagamento Índice Geral de Preços Depreciação Cambial (Peso‐Dólar)
1946 32,1 15,9 1,5 1947 25,3 3,6 10,7 1948 30,2 15,3 54,1 1949 19,8 23,1 67,8 1950 20,3 20,4 36,5 1951 18,3 49,0 48,5 1952 11,6 31,2 ‐3,4 1953 22,9 11,6 ‐1,7 1954 20,0 3,1 12,1 1955 18,5 8,9 20,5
Fonte: RAPOPORT (2005, p. 347 e 390)
Em 1949, devido à crescente deterioração dos termos de troca no comércio
internacional e aos desequilíbrios externos e internos, o governo peronista decidiu
alterar algumas diretrizes da sua política econômica. Iniciava-se, assim, aquilo que se
denominou como a segunda fase dessa política. A partir de então, tentar-se-iam
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conciliar medidas de estabilização junto com ações que visavam garantir a continuidade
do crescimento. De um lado, realizou-se uma moderada desvalorização cambial,
diminuíram-se a expansão creditícia e as despesas públicas, e estabeleceram-se
controles quantitativos mais rígidos com relação às importações (Tabelas 2 a 4); do
outro, todavia, as taxas de juros para empréstimos ainda permaneceram negativas em
termos reais e se mantiveram políticas de altos reajustes salariais para os trabalhadores
(DE RIZ e TORRE, p. 258; Tabela 1).
Como resultado dessa política econômica ambígua e da mudança da situação
internacional no que tange aos termos de troca (Tabela 4), iniciou-se, em 1949, uma
recessão econômica no país. Entre 1949 e 1951, o PIB argentino cresceu, em média,
apenas 1,18%, sendo que, em 1949, o crescimento fora negativo (-1,4%; RAPOPORT,
2005, p. 314). Nesse mesmo ano, o Índice Geral de Preços ultrapassou a casa dos 20%.
A balança comercial, por sua vez, continuava apresentando desempenhos ruins, apesar
da contenção de importações feita pelo governo. Um dos poucos aspectos positivos
resultantes das ações governamentais foi o da significativa diminuição do desequilíbrio
financeiro do setor público entre 1948 e 1949 (Tabela 3).
Tabela 4 – Evolução da Balança Comercial Argentina (em milhões de dólares) e Índices dos Termos de Troca (1935‐1939 = 100), 1946‐1955
Milhões de Dólares Índice (1935‐39 = 100)
Exportações (X) Importações (I) Saldo Termos de Troca 1946 1.175 675 500 112,2 1947 1.614 1.585 30 134,1 1948 1.627 1.590 36 132,2 1949 934 1.073 ‐139 109,9 1950 1.168 1.045 122 93,3 1951 1.169 1.480 ‐311 102,1 1952 688 1.179 ‐492 81,9 1953 1.125 795 330 92,5 1954 1.027 979 48 86,2 1955 929 1.173 ‐244 88,3
Fonte: RAPOPORT (2005, p. 357, 361 e 396)
Tendo em vista a continuidade e até o agravamento de certos problemas
econômicos durante o interregno 1949-51, o governo decidiu intensificar as medidas
ortodoxas. O símbolo dessa terceira mudança da política econômica peronista foi o
Plano de Estabilização, apresentado em 1952. Neste, estabeleceu-se um congelamento
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de preços e de salários por dois anos. Os reajustes salariais só seriam concedidos, a
partir de então, de acordo com os acréscimos dos índices de produtividade do trabalho.
Além disso, foram retirados subsídios incidentes sobre inúmeros produtos de consumo
popular; reajustaram-se taxas de serviços públicos; e se extinguiu o congelamento dos
arrendamentos rurais.
Junto com o Plano de Estabilização, apresentou-se também o Segundo Plano
Qüinqüenal (1952-1957). Com este, inverteram-se as prioridades estabelecidas
inicialmente pela política econômica peronista: ao invés da indústria, privilegiar-se-ia a
agricultura; ao contrário do mercado interno, o externo; e, em detrimento do
investimento público, a inversão privada, inclusive a estrangeira. Entre as medidas mais
importantes previstas pelo plano, destacaram-se a utilização do IAPI como instrumento
garantidor de preços mínimos e de subsídios para os principais bens de exportação
argentina; a concessão de créditos ao setor agrário visando sua modernização e o
aumento de sua produtividade; a facilitação da importação de máquinas, tratores e
insumos agrícolas para os empresários rurais; e a concessão de benefícios aos
investimentos privados externos no país.
Quanto aos incentivos à entrada de investimentos estrangeiros, salienta-se a
aprovação da lei n° 14.222, em agosto de 1953, que liberalizou as normas referentes às
remessas de lucros e isentou de tarifas alfandegárias as máquinas e insumos importados
por esses empreendimentos. Não foi à toa que, entre 1953 e 1955, quatorze empresas
internacionais instalaram seus parques produtivos na Argentina, entre as quais a Fiat e a
Kaiser (RAPOPORT, 2005, p. 398-9). Até as relações com os Estados Unidos, que
foram caracterizadas por fortes tensões durante os primeiros anos da administração
peronista, melhoraram. Símbolo disso foi o fechamento de um contrato entre o governo
argentino e a Standard Oil Company, em 1954, autorizando essa empresa a explorar
uma área de 40 mil hectares na Província de Santa Cruz com finalidades de prospecção
petrolífera (ROMERO, 2001, p. 124). Além disso, na mesma época, aprovou-se um
crédito de U$S 60 milhões do Eximbank para financiar uma indústria siderúrgica na
Argentina, a qual só seria inaugurada, porém, após o golpe que derrubaria Perón em
setembro de 1955 (RAPOPORT, 2005, p. 371).
Os resultados das modificações realizadas na política econômica apareceram em
pouco tempo. Inflada por um crescimento de 63% no valor das exportações, a balança
comercial fechou o ano de 1953 com o maior superávit desde 1946 (Tabela 4). O Índice
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Geral de Preços caiu de 49% para 31% no intervalo 1951-52. O déficit público e a taxa
de expansão dos meios de pagamento alcançados em 1952 foram os menores do
decálogo peronista (Tabela 3). Por outro lado, essa rígida política de estabilização
proporcionou, nesse mesmo ano, uma queda considerável no PIB (-5,1%).
Em 1952, a explosão de greves e de outras tensões sociais – produtos, em grande
parte, da desaceleração econômica e do congelamento dos salários – talvez tenham
concedido uma indicação ao governo de que não haveria espaço para manter normas tão
draconianas de expansão creditícia e de contenção fiscal para os anos seguintes. Como
resultante, mantiveram-se as diretrizes de fomento às exportações agrícolas e de
incentivo ao capital estrangeiro estabelecidas no Segundo Plano Qüinqüenal, mas se
afrouxaram as metas financeiras ortodoxas existentes no Plano de Estabilização. A
expansão dos meios de pagamento entre 1953 e 1955 (média de 20,4%) e o
afrouxamento do controle sobre os déficits públicos (Tabela 3) comprovam que, pela
quarta vez, Perón modificaria as balizas de sua política econômica.
No geral, os resultados alcançados foram bastante positivos. A inflação atingiu,
em 1954, seu nível mais baixo durante todo governo peronista (apenas 3,1%). O
produto doméstico voltou a crescer a taxas razoáveis no interregno 1953-1955 (média
de 5,5%). Os investimentos estrangeiros estavam entrando no país como nunca o
fizeram desde a ascensão de Perón (DE RIZ e TORRE, 1993, p. 260). É nesse sentido
que se deve entender o razoável consenso existente na historiografia argentina quanto ao
fato de que teriam sido muito mais questões políticas do que econômicas as que teriam
levado ao golpe de setembro de 1955 contra Perón (RAPOPORT, 2005, p. 373-4).
Após toda essa apresentação da política econômica peronista, é de se perguntar se
ela corresponderia à conceituação formulada por Dornbusch e Edwards. As
características daquilo que esse modelo caracteriza como a “primeira fase da política
econômica populista” coincidem, de fato, salvo algumas pequenas modificações, com as
medidas iniciais aplicadas pelo governo Perón (redistribuição de renda em prol dos
trabalhadores, despreocupação para com os desequilíbrios gerados nos setores público e
externo, entre outros aspectos). No entanto, a política de estabilização ortodoxa aplicada
por Perón em 1952, que foi tão ou até mais rígida do que as que seriam realizadas por
administrações posteriores na Argentina, não é contemplada de modo satisfatória pelo
modelo. Além disso, diferentemente do que Dornbusch e Edwards assinalam, Perón foi
bem sucedido no controle da inflação e no dos desequilíbrios públicos ao final de seu
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governo. É de se reconhecer, também, que os déficits fiscais médios ocorridos durante o
decálogo peronista representaram 6,2% do PIB, enquanto os da década de 1930 e os do
interregno militar (1976-1983), mais de 10% (RAPOPORT, 2005, p. 342 e 665). Não se
poderia, portanto, atribuir somente aos governantes argentinos considerados como
“populistas” a responsabilidade por gastar dos cofres públicos mais do que neles se
arrecadaram. Outras administrações também o fizeram, e em níveis até mais altos. Em
suma: apesar de o conceito de populismo econômico ter conseguido explicar algumas
características da política econômica de Perón, ele não foi capaz, por outro lado, de
clarificá-la na sua totalidade. Com isso, um estudioso que utilizasse à risca essa noção
para compreender as medidas peronistas mais distorceria do que compreenderia, no
compito geral, tal realidade histórica.
3. A Política Econômica Varguista
Se o modelo formulado por Dornbusch e Edwards não se mostrou capaz de
contemplar a política econômica peronista em sua totalidade, pode-se dizer que ele o faz
de modo ainda mais insuficiente quando o objeto a ser analisado é o programa
econômico do segundo governo Vargas (1951-1954).
Apesar das inúmeras controvérsias referentes à natureza da política econômica
varguista, é fato que, em seus primeiros anos, o Estado buscou equilibrar o orçamento
do setor público, a fim de conter o processo inflacionário. Alguns interpretaram essa
meta como reflexo das incoerências e contradições latentes ao próprio arranjo de forças
que embasava o governo (ARAÚJO, 1982, p. 160); outros, por sua vez, viram-na
apenas como uma primeira fase da política econômica de Getúlio, cujo fim último seria
o de propiciar condições financeiras ao Estado e aos agentes privados para, no médio
prazo, realizarem investimentos de modo não-inflacionário (VIANNA, 1990, p. 123-4).
Há ainda alguns estudiosos que chegaram a negar tanto essa concepção de incoerência,
quanto a da suposta existência de “fases” no programa varguista, assinalando que o
projeto de se equilibrar o orçamento público correspondia a apenas uma dimensão da
política econômica do governo. O outro lado dessa política, de acordo com essa terceira
interpretação, estaria no incentivo à elevação da produtividade econômica nacional, que
se daria, principalmente, por meio de concessões creditícias aos setores considerados
estratégicos pelo Estado para estimular o crescimento (BASTOS, 2005, p. 6).
Tabela 5 – Receitas e Despesas da União – Brasil, milhares de Cr$ (1949‐55)
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Nominais Reais Anos Receitas Despesas Saldo Receitas Despesas Saldo 1949 17.916.540 20.726.712 - 2.810.172 17.916.540 20.726.712 ‐2.810.172 1950 19.372.788 23.669.854 -4.297.066 17.740.648 21.675.690 ‐3.935.042 1951 27.428.004 24.609.329 2.818.675 21.759.654 19.523.494 2.236.160 1952 30.739.617 28.460.745 2.278.872 23.038.381 21.330.438 1.707.943 1953 37.057.229 39.925.491 -2.868.262 25.775.262 27.770.290 ‐1.995.028 1954 46.539.009 49.250.117 -2.711.108 28.618.256 30.285.399 ‐1.667.143 1955 55.670.936 63.286.949 -7.616.013 32.771.478 37.254.751 ‐4.483.273
Fonte: IBGE. Estatísticas Econômicas do Século XX / * Deflacionados pelo deflator implícito do PIB, ABREU (1990, p. 403)
Independentemente do viés que se considere mais apropriado, é quase que um
consenso entre os estudiosos o fato de o segundo governo Vargas ter aplicado, ao menos
no seu início, uma política orçamentária que visava o equilíbrio das contas públicas7. O
Plano Lafer (1951-1952), cujo nome faz menção ao Ministro da Fazenda que o
encabeçou, seria o meio pelo qual esse programa de austeridade financeira se
transformaria em realidade. Os dados apresentados na Tabela 5 ratificam que o governo
se esforçou em aplicá-lo. Vê-se que, de um déficit real superior a Cr$ 4 bilhões e 900
milhões no último ano da administração Dutra, passou-se, em 1951, para um superávit
de Cr$ 2 bilhões e 236 milhões. Apesar de o saldo real de 1952 não ter sido tão
considerável, obteve-se, porém, nesse ano, um superávit orçamentário global do setor
público, algo que não acontecia desde 1926 (VIANNA, 1990, p. 129)8. Na segunda
metade do mandato varguista, porém – quando, de acordo com o modelo de Dornbusch
e Edwards, se poderiam esperar medidas fiscais mais austeras –, deu-se exatamente o
contrário, vide os déficits apresentados em 1953 e 1954 (Tabela 5).
Tabela 6 – Balança de Pagamentos – Brasil, milhões de U$S (1949‐1955)
1949 1950 1951 1952 1953 1954 1955 Exportações 1.100 1.359 1.171 1.416 1.540 1.558 1.419
Importações 947 934 1.703 1.702 1.116 1.410 1.099
Balança Comercial 153 425 ‐532 ‐286 424 148 320
Balança de Serviços ‐232 ‐283 ‐469 ‐336 ‐355 ‐338 ‐308
Conta de Capitais ‐74 ‐65 ‐11 35 59 ‐18 3
Superávit (+) ou Déficit ‐74 52 ‐291 ‐615 16 ‐203 17
7 Essa constatação pode ser verificada também nos trabalhos de JAGUARIBE (1953), SKIDMORE (1967) e LESSA e FIORI (1991). Uma das poucas exceções é a obra de DRAIBE (9999), que, ao ressaltar o caráter nacionalista e popular da administração varguista, quase não faz referências a tais metas orçamentárias. 8 O orçamento global agrega as contas da União com as de todos os Estados e municípios da Federação.
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(‐)
Fonte: IBGE. Estatísticas Históricas do Século XX.
Vários aspectos contribuíram para essa alteração orçamentária. Em primeiro lugar,
o fato de a Guerra da Coréia não ter se transformado em um conflito mais longo e de
maior amplitude, tal como os membros do governo temeram inicialmente. A
significativa liberalidade concedida às importações de máquinas e insumos fabris entre
1951 e 1952 (Tabela 6), muito em razão desses temores, gerou déficits comerciais que
não poderiam ser facilmente compensados, a menos, talvez, que a guerra tivesse se
generalizado de fato. Em segundo, a queda dos preços dos principais bens de exportação
brasileiros, que agravou ainda mais os desequilíbrios do setor externo nacional no
intervalo 1951-53. O café, por exemplo, que apresentou uma elevação superior a 22%
no quantum exportado entre 1951 e 52, proporcionou, nesse período, apenas 5,9% de
divisas internacionais extras ao país. Não foi à toa que os termos de troca domésticos se
deterioraram em mais de 17% nesses anos (ABREU, 1990, p. 403-7). Em terceiro lugar,
a vitória dos republicanos nos Estados Unidos no final de 1952, que diminuiu
consideravelmente as chances de concessão de empréstimos oficiais norte-americanos
ao Brasil. As promessas do democrata Harry Truman, dirigidas nesse sentido, foram
substituídas pela retórica da administração Eisenhower, cujo foco residia no incentivo
ao fluxo de investimentos privados para a região (CERVO e BUENO, 1986, p. 75-6).
Em quarto, o acirramento das lutas sociais, simbolizada pela greve dos 300 mil,
ocorrida em março de 1953. Nesta, os trabalhadores paulistas reivindicaram, entre
outras medidas, maiores reajustes salariais, a fim de impedir a corrosão dos seus
ordenados pela inflação ascendente (DELGADO, 1989, p. 129-30). Por último,
menciona-se a pressão dos grupos empresariais junto ao Estado por maiores concessões
de créditos. A atuação dos representantes fabris via Comissão de Desenvolvimento
Industrial (CDI) teria sido, para alguns autores, muito importante nesse sentido
(LEOPOLDI, 2000, p. 221-35).
Todos esses fatores dificultaram sobremaneira as tentativas do governo em manter
o equilíbrio das contas públicas entre 1953 e 1954. É de se destacar, porém, a ocorrência
dessas tentativas. Em junho de 1953, quando Horácio Lafer deixou o Ministério da
Fazenda, o novo ocupante, Osvaldo Aranha, anunciou a aplicação de um plano que
previa a manutenção da política de equilíbrio orçamentário. O mesmo ministro
encabeçou a aplicação de uma reforma cambial em outubro, metaforizada pela
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publicação da Instrução nº 70 da SUMOC, que extinguiu o regime de controle
quantitativo de importações e criou o sistema de leilões cambiais. No geral, essa
reforma, que sinalizou para uma liberalização relativamente maior da taxa de câmbio,
tinha como uma das suas finalidades tornar o país mais atraente para investimentos
estrangeiros. A entrada de capitais externos no Brasil fora vista, por alguns técnicos do
governo, como uma das únicas saídas para equilibrar a balança de pagamentos, tendo
em vista os déficits comerciais e de serviços e a diminuta possibilidade de chegada de
investimentos oficiais estadunidenses no montante necessário para saldar os débitos
(VIANNA, 1990, p. 139-41). Apesar do esforço, o resultado foi pouco significativo: os
desequilíbrios dos setores público e externo permaneceram (com a exceção de um
modesto saldo da balança de pagamentos apresentado em 1953) e a inflação cresceu
ainda mais nos dois últimos anos do governo (Tabelas 5, 6 e 7).
Tabela 7 – Meios de Pagamento e Taxas de Inflação ‐ Brasil, crescimento em % (1950‐55)
Anos (1) (2) (3) (4) (5) (6) (7)
1950 29,9 32,2 31,4 24,5 11,34 12,41 11,16 1951 12,7 18,4 16,4 14,1 17,44 12,34 10,81 1952 10,9 17,7 15,4 17,6 9,37 12,72 20,83 1953 20,3 18,9 19,3 16,7 25,00 20,51 16,75 1954 16,3 20,9 23,7 24,5 22,09 25,86 26,24 1955 23,8 16,3 16,4 15,8 16,31 12,15 19,07
Legenda: (1) Papel moeda em poder do público; (2) Depósitos à vista; (3) Meios de Pagamento; (4) Base Monetária; (5) IPA-DI (FGV); (6) IGP-DI (FGV); (7) IPC – FGV / Fonte: ABREU (1990, p. 403-7)
A observação da evolução da oferta monetária durante a administração varguista
demonstra tendência semelhante a das finanças federais. No interregno 1951-52, os
meios de pagamento, a base monetária, o papel moeda em poder do público e os
depósitos à vista se expandiram de modo muito mais modesto do que no final do
governo Dutra (Tabela 7). Apesar dessa contração da oferta monetária feita por Vargas,
é de se notar a resistência à queda por parte da inflação. Entre 1950 e 1951, o Índice
Geral de Preços (IGP-DI) praticamente não apresentou descenso; o Índice de Preços ao
Consumidor (IPC-FGV), por sua vez, sofreu leve decréscimo (-3,1%); e o Índice de
Preços ao Atacado (IPA-DI), diferentemente, cresceu de modo significativo, talvez
motivado pelo encarecimento das importações decorrente do início da Guerra da Coréia.
A considerável elevação do IPC-FGV em 1952 (20,83%) demonstra que o crescimento
dos preços do atacado ocorrido no ano anterior fora repassado ao varejo. Assim, apesar
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de o IPA-DI ter caído nos anos de 1951 e 1952, o IGP-DI manteve-se, nesse período,
praticamente nos mesmos níveis que antes.
A partir de 1953, no entanto, tal como ocorrera com as finanças públicas, houve
uma mudança de tendência. A oferta de moeda doméstica passou a crescer a taxas mais
altas. Com exceção da base monetária agregada, todas as demais variáveis apresentaram
maiores elevações percentuais entre 1952 e 1953. Essa tendência ainda se manteria em
1954, salvo no que condizia à expansão do papel moeda, que apresentou leve retração.
Entende-se, assim, o porquê de a inflação ter crescido tanto em tal período. Ao final do
governo Vargas, todos os índices de preços situavam-se em patamares muito superiores
aos do último ano da administração Dutra (Tabela 7). Não foi à toa que, no mesmo
contexto, acirraram-se as tensões sociais e as reivindicações dos trabalhadores por
maiores reajustes salariais.
Pode-se argumentar, por outro lado, que, apesar de ter ocorrido uma queda do
crescimento da oferta monetária durante o início da administração varguista, essa
contração ainda teria sido muito pequena tendo em base o sucesso obtido na eliminação
do déficit público federal entre 1951 e 1952. Em outras palavras: como é que, com um
aumento nominal de arrecadação de Cr$ 8 bilhões em 1951, agregado a um crescimento
de apenas Cr$ 1 bilhão de despesas, a base monetária teria ainda crescido mais de 17%
nesse mesmo ano? A observação das Tabelas 8 e 9 talvez ajude a elucidar melhor esse
problema.
Tabela 8 – Empréstimos bancários reais e nominais, milhões de Cr$ (1949‐55)*
Nominais Reais
Anos Bancos Comerciais Banco do Brasil Total Bancos Comerciais Banco do Brasil Total 1949 68.644 39.981 108.625 68.644 39.981 108.625 1950 87.329 57.343 144.672 79.972 52.512 132.484 1951 104.787 83.372 188.159 81.046 64.483 145.529 1952 121.958 102.735 224.693 86.301 72.698 158.999 1953 142.038 139.054 281.092 88.322 86.466 174.788 1954 185.166 195.997 381.163 90.590 95.889 186.478 1955 404.799 458.204 863.003 177.139 200.509 377.649
Fonte: IBGE. Estatísticas Históricas do Século XX / * Deflacionado pelo deflator implícito do PIB; ABREU (1990, p. 403‐7)
Vê-se que, apesar da desaceleração de seu ritmo de crescimento entre 1950 e
1952, os empréstimos nominais continuaram se expandindo a taxas bastante
consideráveis nesse período, especialmente no ano de 1951 (30,1%). É de se salientar o
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aumento nominal da concessão de créditos por parte do Banco do Brasil, que chegou a
superar, em 1951, até a ascensão ocorrida no último ano da administração Dutra (45,4%
contra 43,4%, respectivamente).
Ao se deflacionar esses valores, percebe-se, porém, que a ascensão da oferta real
de moeda diminuiu durante o governo Vargas. Apesar disso, não se pode negligenciar a
vultuosidade da expansão nominal do crédito nesse período. Os embates que ocorreram
no intervalo 1951-53 entre o então Ministro da Fazenda, Horácio Lafer, defensor de
uma expansão mais seletiva e gradual dos empréstimos, e o Presidente do Banco do
Brasil, Ricardo Jafet, cuja política sinalizava para uma política creditícia bem mais
liberal, são exemplos do quanto essa questão fora importante (BASTOS, 2005, p. 08)9.
Tabela 9 – Taxas de crescimento dos empréstimos bancários reais e nominais, % (1949‐55)
Nominais Reais Anos Bancos Comerciais Banco do Brasil Total Bancos Comerciais Banco do Brasil Total
1950 27,2 43,4 33,2 16,5 31,3 22,0 1951 20,0 45,4 30,1 1,3 22,8 9,8 1952 16,4 23,2 19,4 6,5 12,7 9,3 1953 16,5 35,4 25,1 2,3 18,9 9,9 1954 30,4 41,0 35,6 2,6 10,9 6,7 1955 118,6 133,8 126,4 95,5 109,1 102,5
Fonte: Tabela 8
Independentemente de a política creditícia do governo Vargas ter sido mais liberal
do que as diretrizes monetárias estipuladas pelo Ministério da Fazenda, o fato é que não
se pode afirmar que essa administração tenha realizado, como o modelo de Dornbusch e
Edwards assinala, um programa orçamentário deliberadamente deficitário. Mesmo nos
dois últimos anos do governo, quando não se conseguiu manter mais o equilíbrio das
contas públicas, houve políticas que visaram impedir a ocorrência desses desajustes, tais
como as medidas previstas no Plano Aranha.
É de se perguntar, por outro lado, se a política varguista buscou, ao menos,
redistribuir renda em prol dos trabalhadores – outra das características contidas em um
programa populista-econômico, tal como Dornbusch e Edwards o definiram.
9 É de se ressaltar que alguns estudiosos não compartilham dessa tese de Bastos. Para Vianna (1990) e Araújo (2007), por exemplo, o conflito Lafer-Jafet teria ocorrido não devido às suas incompatibilidades ideológicas concernentes ao modo de expansão do crédito, mas, sim, em razão da visão ortodoxa de política monetária advogada pelo Ministro da Fazenda.
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Vê-se, inicialmente, que o salário mínimo real apresentou grande instabilidade
durante o período varguista. Momentos de alta (1951 e 1953) oscilaram com anos de
forte baixa (1952 e 1954). Estes, porém, superaram os primeiros, vide o decréscimo real
do salário mínimo ao longo dos quatro anos da administração de Vargas (-56,7%).
Pode-se argumentar, no entanto, e com razão, que esse dado não deve ser interpretado
como um indicativo confiável para o estudo da evolução dos ordenados dos
trabalhadores nesse período, já que muitos destes, sejam formais ou não, obtinham
aumentos em seus ganhos por meio de outros tipos de mecanismos, tais como, no caso
dos profissionais com carteira assinada, via reajustes coletivos. Assim sendo, o
decréscimo dos níveis reais do salário mínimo, ocorrido durante o período do governo
getulista, não necessariamente indicaria uma piora na distribuição de renda para a
maioria dos trabalhadores.
Tabela 10 – Salário Mínimo Real (crescimento percentual) e Salários Reais do Setor Manufatureiro Doméstico (valores médios anuais em Cr$ 1.000), 1950‐55
Salário Mínimo Real
Salários (IPC ‐ Mtb)*
Salários (IPC‐Sp)†
Salários (IPA‐DI)††
Produtividade do Trabalho
Anos
(a) (b) (1) (2) (1) (2) (1) (2) (1) (2) 1950 9,4 100,0 14.793 100,0 15.002 100,0 14.923 100,0 62.459 100,0 1951 12,8 112,8 15.785 106,7 15.896 106,0 15.854 106,2 63.798 102,1 1952 ‐63,0 41,7 16.843 113,9 16.843 112,3 16.843 112,9 65.165 104,3 1953 14,4 47,7 15.249 103,1 14.151 94,3 14.965 100,3 64.149 102,7 1954 ‐17,2 39,5 17.406 117,7 16.196 108,0 16.228 108,7 68.342 109,4 1955 ‐9,5 43,3 17.590 118,9 16.570 110,5 16.615 111,3 70.428 112,8
Legendas: (a) Crescimento percentual; (b) Índice do crescimento percentual; (1) Valor médio anual (Cr$ 1.000,00); (2) Índice de crescimento do valor médio anual; * Salários do setor manufatureiro deflacionados pelo IPC‐Mtb; † Salários do setor manufatureiro deflacionados pelo IPC‐Sp; e †† Salários do setor manufatureiro deflacionados pelo IPA‐DI / Fontes: Para coluna 1, ABREU (1990, p. 403‐7) e para colunas 2, 3 e 4, COLISTETE (2008, p. 25).
A crítica se enfraquece, porém, quando se incorporam os trabalhadores do setor
manufatureiro na amostra. Apesar de estes estarem longe de abarcar o universo de
trabalhadores do país – já que a maioria da população brasileira nesse período ainda
vivia no campo –, eles representam um indício bem mais confiável para se observar a
distribuição de renda entre capital e trabalho durante o período getulista. Percebe-se, por
meio da Tabela 10, que nos dois primeiros anos do governo Vargas os salários reais não
apenas ascenderam, como também ficaram acima do índice de produtividade do
trabalho. Em outras palavras: o trabalho estava recebendo mais renda do que o capital
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entre 1951 e 1952. A partir de 1953, no entanto, a tendência se altera: os salários caem
bruscamente e a produtividade sobe. No ano seguinte, apesar de os salários terem se
recuperado significativamente, a diferença entre as variáveis, mesmo que menor, ainda
se manteve. Exceção apenas se deu com os salários deflacionados pelo Índice de Preços
ao Consumidor do Ministério do Trabalho (IPC-Mtb), os quais chegaram a ultrapassar
as taxas de crescimento da produtividade no interregno 1953-54. Como, porém, existem
muitos problemas metodológicos nesse índice, considera-se mais pertinente balizar as
conclusões por meio do Índice de Preços ao Consumidor de São Paulo (IPC-Sp) apesar
de ser um indicador de cobertura regional10.
Assim, no que se refere à evolução dos salários manufatureiros, pode-se dizer que
o modelo de Dornbusch e Edwards se coaduna parcialmente com a realidade. Houve, de
fato, uma distribuição de renda favorável aos trabalhadores fabris no início do governo
de Vargas e, depois, um retrocesso. Do ponto de vista da distribuição funcional da
renda, portanto, o capital saiu favorecido ao final da administração varguista. O
problema é que os salários reais de 1954 estavam, em média, 3,74% maiores do que os
de 1950. Mesmo que estes tenham perdido espaço no produto doméstico em relação aos
lucros dos empresários industriais, não se pode dizer, como o modelo Dornbusch e
Edwards prevê, que a situação dos trabalhadores estava pior do que no início do
mandato getulista.
Alguns, porém, poderiam questionar: e se se tomasse como base para a
distribuição de renda na sociedade a evolução do salário mínimo, e não mais a dos
salários no setor manufatureiro? Seria possível dizer que a situação dos trabalhadores
que recebiam seus ordenados com base no mínimo era melhor em 1954 do que em
1950? Apesar dos problemas já discutidos com a adoção de tal hipótese, a resposta,
nesse caso, seria não. A utilização dessa premissa, todavia, invalida uma tese básica do
modelo de Dornbusch e Edwards: a de que o governante populista, nos primeiros anos
de sua administração, adotaria políticas fiscais e monetárias expansivas com o intuito de
redistribuir renda em favor dos trabalhadores. Não apenas Vargas aplicou um programa
econômico que visava o equilíbrio das contas públicas em seus dois anos iniciais na
presidência, como também não realizou, entre 1951 e 1952, reajustes períodos no
mínimo a fim de impedir que seu valor fosse corroído pela inflação. Em 1952, por 10 Para uma discussão mais detalhada sobre as diferenças entre esses índices e os problemas metodológicos referentes às fontes de salários manufatureiros no Brasil, ver COLISTETE (2008, p. 05-10).
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exemplo, o salário mínimo real situava-se quase que a 70% abaixo dos níveis do de
1950 (Tabela 10). De uma maneira ou de outra, portanto, a evolução dos salários no
período varguista não consegue ser plenamente explicada pelo conceito de populismo
econômico.
Por fim, deve-se saber se, ao menos, a administração getulista pôs em prática um
programa que visava ao fortalecimento do Estado na economia, tal como uma típica
plataforma populista-econômica, na visão de Dornbusch e Edwards, o faria. Alguns
autores chegaram a dizer, sem o suficiente embasamento empírico para tanto, que
Vargas planejara criar um modelo de desenvolvimento econômico nacionalista e
popular, cujo foco seria o de garantir privilégios às empresas nacionais, notadamente
públicas, em detrimento das estrangeiras (DRAIBE, 1985, p. 179-191).
Trabalhos mais recentes, como Lessa e Fiori (1991) e Corsi (2007), vêm
contestando essa perspectiva. Segundo esses estudiosos, os grandes símbolos do suposto
nacionalismo estatizante de Vargas – os projetos da Petrobrás e da Eletrobrás,
elaborados pela Assessoria Econômica do Gabinete Civil da Presidência – não
dispensaram, originalmente, a participação do capital externo. A Petrobrás, por
exemplo, ganhou um viés mais nacionalista em razão dos problemas vinculados à
negativa de financiamentos oficiais estadunidenses, ao frenesi que o tema suscitou em
setores da sociedade civil e à modificação do projeto original por setores congressistas
que consideravam fundamental garantir à nação o monopólio petrolífero (LESSA, 1991,
p. 16). O Plano Nacional de Eletrificação, por sua vez, também não vetava a
participação de capitais estrangeiros na distribuição a varejo de energia – que era, por
sinal, o ramo mais lucrativo desse setor, diferentemente dos de geração e transmissão
energéticas. Além disso, segundo Lessa, a negação desse projeto pelo Congresso teria se
dado muito mais em razão das resistências dos governos paulista e mineiro, que não
queriam perder o controle das concessionárias estaduais de energia para a congênere
nacional a ser criada (Eletrobrás), do que por causa das empresas estrangeiras (LESSA,
1991, p. 14).
Da mesma maneira, portanto, que não há indícios incontestáveis quanto a
existência de uma política de redistribuição de renda feita por Vargas no início de seu
governo, não existe também fontes que corroborem a perspectiva de que Getúlio visava
fomentar um desenvolvimento econômico centrado em empresas nacionais,
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especialmente em públicas. Nesse caso, ao contrário, os indícios indicam muito mais
um nacionalismo pragmático, que teria fechado portas para o capital estrangeiro.
4. Conclusões
A análise das políticas econômicas de Perón e de Vargas realizada pelo artigo
mostrou que estas foram por demais ricas, do ponto de vista histórico, para se
enquadrarem no conceito de populismo econômico. Apesar de alguns de seus aspectos
terem sido contemplados pelo modelo de Dornbusch e Edwards, outras de suas
importantes características foram negligenciadas ou simplesmente distorcidas por ele.
Isso significa que uma utilização mecanicista e acrítica desse conceito pode levar a
inferências absolutamente dissonantes com os traços da realidade histórica latino-
americana.
Essa conclusão não pode ser interpretada, por outro lado, como uma apologia à
desconstrução de teorias ou de modelos em História. Ao contrário: hoje, o crescimento
exponencial da capacidade de armazenamento de informações sobre sociedades
pretéritas tornou requisito básico que o historiador tenha ferramentas e instrumentos
teóricos capazes de sistematizar e analisar as fontes por ele recolhidas. Sem isso, pode-
se ingressar em um verdadeiro “mar de dados”, sem que se consiga trabalhar de modo
coerente e substancial com os mesmos. Esse seria o modo sadio e necessário de
utilização de teorias em um trabalho científico sobre História. O problema, porém, é
quando se petrifica um determinado modelo, obrigando a realidade a se adequar a ele, e
não o contrário. Nesse caso, ao invés de o modelo ser uma ferramenta para a
compreensão do passado, ele se transforma na própria explicação desse passado,
moldando suas características conforme a necessidade, tal como na famosa cama de
Procusto. O trabalho junto às fontes, portanto, se converte apenas em uma maneira de
ilustrar concepções e teses já definidas previamente.
Para evitar isso, é preciso fazer que o modelo “navegue em águas empíricas”
constantemente, a fim de que ele possa ser retocado, aperfeiçoado e lapidado com
freqüência, de acordo com os indícios do passado (BRAUDEL, 1972, p. 52-3). Antes de
esse processo de ajuste ocorrer, no entanto, o modelo necessita ser testado nas
realidades históricas que ele se diz capaz de explicar. Caso não consiga suportar o teste,
tem-se que partir ou para construção de outros, mais aptos para suportar tal tarefa, ou
para a elaboração de estudos embasados em novas perspectivas, reconhecendo-se,
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assim, que o caminho originalmente traçado não se mostrou viável para atingir uma
compreensão mais fiel da realidade que se planejara estudar.
Assim, o que se tentou fazer neste artigo foi simplesmente testar a capacidade do
modelo de Dornbusch e Edwards de navegar em águas que, na teoria, seriam
genuinamente suas: as dos governos populistas de Perón e de Vargas. Caso ele se
mostrasse capaz de contemplar as políticas econômicas dessas duas administrações,
vistas com as mais representativas do chamado “Estado Populista” na América Latina,
poder-se-ia, então, partir para a análise de outros líderes também considerados como
tais, sejam “protopopulistas” ou até “neopopulistas” (VILLAS, 1988).
A conclusão que se sugere, no entanto, é a de que o conceito de Dornbusch e
Edwards não se mostrou capaz nem de clarificar, satisfatoriamente, as próprias políticas
econômicas peronista e varguista. Ao longo do artigo, argumentou-se que se, por um
lado, Perón aplicou, nos primeiros anos de sua administração, um programa que
privilegiava o crescimento econômico imediato e a redistribuição de renda em prol dos
trabalhadores, por outro, ele realizou, em 1952, uma das políticas ortodoxas mais
rígidas da história argentina, diminuindo significativamente os desequilíbrios do setor
público e a inflação ao final de seu governo. O primeiro conjunto de medidas peronistas
foi, de fato, contemplado pelo modelo de Dornbusch e Edwards, mas o segundo, tão
importante quanto, não o fora. Da mesma maneira, se durante o início do governo
varguista, houve melhora da situação econômica dos trabalhadores manufatureiros
(apesar de o salário mínimo real ter caído e de a produtividade do trabalho ter sido, no
geral, maior do que o crescimento dos salários entre 1950 e 1954), Getúlio implementou
uma política que visava o equilíbrio das contas públicas e a contenção inflacionária.
Como afirmar, portanto, tendo em vista esses indícios, que uma política econômica
populista seria incapaz de aplicar programas de estabilização ortodoxos, ou de atingir
um equilíbrio orçamentário público, como Dornbusch e Edwards o fizeram em seu
modelo? Um estudioso que siga à risca essa concepção, como Cardoso e Helwege
fizeram em seu trabalho, estaria não apenas negligenciando aspectos centrais dos
governos peronista e varguista, mas, também, distorcendo-os (CARDOSO e
HELWEGE, 1993, P. 223-4).
Além disso, da mesma maneira que não há condições de se enquadrar totalmente
as características das políticas econômicas de Perón e de Vargas no conceito de
populismo econômico, é de se perguntar se outros governantes, sejam latino-americanos
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ou não, vistos como antíteses desse tipo de liderança, não poderiam promover muitas
dessas medidas, especialmente durante períodos eleitorais. Em outras palavras: até que
ponto a realização de políticas que almejam a uma melhor distribuição de renda e ao
crescimento econômico imediato da sociedade, em detrimento de programas que
favoreçam a austeridade fiscal e monetária, seriam atributos exclusivos de líderes
populistas? Como bem assinala Alan Knight, a idéia de que políticas fomentadoras de
renda e de emprego na Europa após a Segunda Guerra seriam “keynesianas” e de que
políticas semelhantes aplicadas em alguns dos países latino-americanos seriam,
diferentemente, “populistas”, parece um argumento “perigosamente parcial” (KNIGHT,
1998, p. 243).
A elaboração de modelos capazes de auxiliar na organização e na análise de fontes
referentes à história latino-americana não é só uma tarefa necessária, mas também
difícil. No entanto, aceitar de maneira acrítica aqueles já existentes, como muitos
fizeram e ainda vêm fazendo com os conceitos de populismo e populismo econômico,
talvez seja até pior do que iniciar um trabalho de pesquisa sem qualquer tipo de apoio
teórico-metodológico.
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