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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAO SOCIAL
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM MDIA E COTIDIANO
CAMILLE COSTA PERISS PEREIRA
COMUNICAO QUE SOBREVIVE: A BUSCA DE AUTOSSUSTENTO PARA UMA
MDIA AUTOGERIDA POR MORADORES DA CIDADE DE DEUS
Niteri
2015
I
Universidade Federal Fluminense
Instituto de Artes e Comunicao Social
Programa de Ps-Graduao em Mdia e Cotidiano
CAMILLE COSTA PERISS PEREIRA
COMUNICAO QUE SOBREVIVE:
A BUSCA DE AUTOSSUSTENTO PARA UMA MDIA AUTOGERIDA
POR MORADORES DA CIDADE DE DEUS
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em
Mdia e Cotidiano da Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Mdia
e Cotidiano.
rea de concentrao: Comunicao Social
Orientador: Prof. Dr. Patrcia Gonalves Saldanha
Niteri
2015
Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat
P436 Pereira, Camille Costa Periss Comunicao que sobrevive : a busca de autossustento para
uma mdia autogerida por moradores da Cidade de Deus / Camille
Costa Periss Pereira. 2015. 85 f.
Orientadora: Patrcia Gonalves Saldanha.
Dissertao (Mestrado em Mdia e Cotidiano) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e Comunicao Social, 2015.
Bibliografia: f. 53-54.
1. Meio de comunicao. 2. Publicidade. 3. Democratizao. 4. Favela; aspecto social. 5. Rio de Janeiro (RJ). I. Saldanha,
Patrcia Gonalves. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto
de Arte e Comunicao Social. III. Ttulo.
CDD 302.2308
II
Universidade Federal Fluminense
Instituto de Artes e Comunicao Social
Programa de Ps-Graduao em Mdia e Cotidiano
CAMILLE COSTA PERISS PEREIRA
COMUNICAO QUE SOBREVIVE:
A BUSCA DE AUTOSSUSTENTO PARA UMA MDIA AUTOGERIDA
POR MORADORES DA CIDADE DE DEUS
BANCA EXAMINADORA
................................................................. Prof. Dra. Patrcia Gonalves Saldanha
Universidade Federal Fluminense
.................................................................
Prof. Dra. Marco Schneider
Universidade Federal Fluminense
.................................................................
Prof. Dr. Igor Sacramento
Fundao Oswaldo Cruz
Niteri
MAIO 2015
III
Aos trabalhadores e comunicadores comunitrios.
IV
AGRADECIMENTOS
A todos que me acompanharam, mesmo que por um minuto, nesses dois anos de
trabalho, saibam que esse um momento simblico de encerramento de ciclos. O que me faz
ter a certeza de que nada deixado pra trs, pois j faz parte de mim, e de que h de haver
foras para se renovar e prosseguir. So muitos olhos, mos, braos e afetos que me do essa
energia a cada momento, e que marcam a minha memria e meu aprendizado. No
conseguirei nomear todos os seres que participaram desse processo aqui, mas esse trabalho
em gratido a todos eles. A ordem em que aparecem no hierrquica.
Agradeo minha orientadora Patrcia Saldanha, com toda a empatia e incentivo, e
aos professores queridos do PPGMC, Adilson, Ana Paula, Marco, Marcio, Farbiarz, Laura,
Denise e Renata, por acompanharem com ateno e responsabilidade essa etapa importante de
todos os primeiros formandos do programa. E, especialmente Cludia, que merece muito
mais que flores no dia dos servidores pblicos.
Aos moradores comunicadores da Cidade de Deus: Anglica, Cilene, Julcinara, Felipe,
Lanna, Rosalina, Socorro, Valria; pelos meus sbados mais alegres, pela sabedoria, pelo
acolhimento ao longo destes trs anos. Sim, j so trs anos com vocs! Passou voando, e
estou muito orgulhosa pelos laos feitos, pelos debates, pelos lanches e almoos, pela
sustentabilidade do jornal, pelas fotos desprevenidas, toda a atmosfera que vocs criam me
conforta muito e me faz saber que estou no lugar certo, trabalhando com amor por nossa
querida CDD.
Aos companheiros do Soltec, no tenho palavras para descrever o que aprendi com
vocs: desde sonhar, se decepcionar, lutar, transformar, amar. Marlia, Renata e Celso, vocs
se tornaram como minha famlia, alm de, academicamente, repassarem seu conhecimento
prvio da CDD e construrem outros junto comigo. Sinto que ainda temos muito o que trilhar
juntos. Amanda, Isis, Ana Pazo, Ana Castro, Lilian, Clara e Raquel, cada uma a seu modo,
vocs tambm participaram um pouco da minha trajetria, tambm acenderam uma chama em
meu peito. E em todos os outros projetos e espaos do ncleo, a presena de pessoas que se
tornaram queridas e amiga(o)s, como Alan, Douglas, Felipe, Camila, Jammal, Rosina,
V
Flavinho, Maressa, Lycia, Mait, Ricardo, Luiz Felipe, Jair, Thais(es), Augusto, Sido, Silvia,
Kellen, Diego (e ainda nem cheguei perto de nomear todos que conheci) me inspiraram e
deram foras.
minha famlia, agradeo de corao: minha me, Leila, meu pai, Srgio, meu irmo,
Yan, minhas tias Sonia, Mary e Katia, tios Fred e Nelson, avs Mila, Helio e Ruth, v Carlos,
em esprito, e primos Claudinha, Dudu, Flavinho, Rafaela, Gabriel, Gabriela, Larinha,
Marcinha, Julia. Mesmo de longe, ou de perto convivendo com meus defeitos, todos me
deram amor. No h como dimensionar o significado de poder contar com vocs: nada eu
seria sem isso. E posso incluir nessa famlia tambm uma criatura no humana, mas
orgulhosamente canina: Dara.
Amigo deriva no latim, amicus, de Amar, amore. Amiga(o) quem se ama. E
namorada(o)s e familiares podem se incluir nisso. Para mim, tanto os afetos de longos anos
quanto os novos encantos merecem reconhecimento, por isso to difcil pr os nomes
linearmente. Existem muito mais seres amados que convivi ou comecei a conhecer nesse ciclo
que est se fechando: s companheiras de curso que amo, especialmente as queridas Nat,
Karol e Tata,. A Victor, com sua ternura e o companheirismo: sou grata por todo amor e todas
as motivaes, toda a gua que regou meu pensamento crtico e meus sonhos por liberdade.
Aos irmos que me acompanham desde a escola: Marianne, Luis, Tainan, Guilherme, Gabi,
Patrcia, Bruna, Dafne, vocs so pra sempre. Aos que conheci nesse meio tempo entre
faculdade e mestrado e militncia: Elis, Celsovo, Mineiro, Cathe, Caio, Bruna, Raphael, Igor,
Luisinha, Mariana, Thamara, Diogo, Daniel, Charles, Thane, Dbora, Julia, Vinicius. toda
uma roda de afetos que me ajuda a viver, onde cada passo uma dana, cada voz uma
msica, cada dar de mos, uma ciranda.
VI
Volver a los diecisiete
despus de vivir un siglo
es como descifrar signos
sin ser sabio competente,
volver a ser de repente
tan frgil como un segundo,
volver a sentir profundo
como un nio frente a Dios,
eso es lo que siento yo
en este instante fecundo.
Se va enredando, enredando,
como en el muro la hiedra,
y va brotando, brotando,
como el musguito en la piedra
Como el musguito en la piedra
Ay,s, s s.
Violeta Parra
VII
RESUMO
A presente pesquisa se prope a analisar e avaliar como veculos de comunicao
comunitrios lidam com a necessidade e dificuldade de autossustento material e autonomia,
apontando novas estratgias a serem construdas com os organizadores de tais veculos. Parte-
se da premissa de que os veculos analisados se inserem em um contexto de profunda
concentrao de propriedade dos meios de comunicao, em que, no entanto, diferentes foras
seguem em disputa pela hegemonia. Essa compreenso se faz necessria para que os
resultados da pesquisa no sejam simplificados em microanlises. Alm da reviso
bibliogrfica, utiliza-se anlise documental e a metodologia de pesquisa participante. O estudo
se concentra na circulao de veculos comunitrios do bairro Cidade de Deus, no Rio de
Janeiro, especificamente um jornal comunitrio, conduzido, desde 2010, por moradores da
Cidade de Deus. A notcia por que vive foi construdo a partir de uma experincia anterior de
apropriao das mdias nesta comunidade O estudo busca relacionar Comunicao
Comunitria, sociedade civil e socializao da poltica, no intuito de expor as batalhas
cotidianas que se inserem dentro destes campos. Tambm so includas no trabalho reflexes
acerca do papel do Estado nas favelas e na promoo das mdias. Por fim, experincias pelas
quais o veculo em questo passou ao longo de sua trajetria no que tange arrecadao de
recursos - como a participao em editais, a campanha de crowdfunding e eventos locais - e
ao uso de publicidade sero reavaliadas e diagnosticadas, para que, em dilogo com os atores
sociais, ainda se possam encontrar possveis solues ticas para o problema da autonomia
financeira e sobrevivncia material.
Palavras-chave: Comunicao Comunitria; Democratizao da Comunicao;
Publicidade Comunitria; Cidade de Deus; A Notcia Por Quem Vive
VIII
ABSTRACT
This present research has the pretension to analyze e value how media of Community
Communication deal with the necessity and difficulty of material self-support and autonomy,
pointing new strategies to be constructed with the organizers of such Media. We start with the
premise of what these media analyzed are in a context of deep medias propertys concentration in which, however, different forces dispute hegemony. This comprehension is
necessary in order to the results of research not be simplified in microanalysis. In addition to
bibliographic review, we use documental analysis and Participatory Research Methods. The
study concentrates in media of Cidade de Deuss neighborhood, specifically a community journal conducted, since 2010, by locals. A notcia por quem vive was constructed from an
anterior experience of local media. The study tries to relate concepts such as Community
Communication civil society and politics socialization, in a way to expose the everyday
battles thats into these fields of knowledge. Also its included reflections about the relevance of State in communities and its promotion of media. The experiences through that these
medium has passed in its trajectory in which concerns resource collection such as public notices, the crowdfounding campain and the use of publicity will be reassessed and diagnosticated, in order to, in dialogue with social actors, possible solutions and goals be
founded to the problem of financial autonomy and material survival.
Keywords: Community Communication; Media democratization; Community Publicity; Cidade de Deus; A Notcia Por Quem Vive
IX
SSUUMMRRIIOO
INTRODUO _____________________________________________________________________ 1
1. COMUNICAO ENQUANTO CAMPO DE DISPUTAS _____________________________________ 9
1.1 AS NOVAS TECNOLOGIAS NO DESENVOLVIMENTO HISTRICO OCIDENTAL ____________________________ 10
1.2 SOCIEDADE CIVIL E OS APARELHOS PRIVADOS DE HEGEMONIA ___________________________________ 16
1.2.1 CONTRIBUIES DA TEORIA DE GRAMSCI _______________________________________________ 19
1.2.2 GUERRA DE POSIES E O PAPEL DA COMUNICAO________________________________________ 22
1.3 GANHOS E PERDAS NO PROCESSO DE DEMOCRATIZAO DA MDIA ________________________________ 24
1.3.1 AVANOS NOS DIREITOS SOCIAIS: MARCO CIVIL DA INTERNET E LEI DA RADCOM _____________________ 25
1.3.2 A COERO DO ESTADO: HERANAS DA DITADURA? ________________________________________ 29
2. CIDADE DE DEUS: VERIFICAES EMPRICAS _________________________________________ 33
2.1 O CONCEITO DE COMUNIDADE SOB UM VIS DA COMUNICAO _________________________________ 34
2.2 HISTRICO DO LOCAL ESTUDADO: CIDADE DE DEUS __________________________________________ 41
2.3 A UPP E A MDIA: QUESTES CENTRAIS PARA A CIDADE DE DEUS ________________________________ 46
2.4 HISTRICO DAS MDIAS COMUNITRIAS NA CDD ___________________________________________ 50
2.5 O ACOMPANHAMENTO NO TERRITRIO __________________________________________________ 56
3. VIDA LONGA E AUTNOMA COMUNICAO COMUNITRIA___________________________ 63
3.1 ENTRE A CATEGORIA ACADMICA E A PRTICA: A NOTCIA POR QUEM VIVE __________________________ 65
3.1.1 AUSNCIA DE FINS LUCRATIVOS E A GESTO E PROPRIEDADE COLETIVA ____________________________ 68
3.1.2 PROGRAMAO COMUNITRIA E NOVOS CRITRIOS DE NOTICIABILIDADE __________________________ 69
3.1.3 MANIFESTAES DA CULTURA LOCAL __________________________________________________ 71
3.1.4 INTERATIVIDADE OU PARTICIPAO__________________________________________________ 72
X
3.1.5 COMPROMISSO COM A CIDADANIA OU O AGIR PELA DEMOCRATIZAO DA COMUNICAO ____________ 74
3.2 FINANCIAMENTO PBLICO PARA MEIOS DE COMUNICAO COMUNITRIA __________________________ 75
3.3 PUBLICIDADE COMUNITRIA E SOCIAL ___________________________________________________ 79
3.3.1 PUBLICIDADE SOCIAL COMO MOBILIZAO EXTERNA _______________________________________ 82
3.3.2 PUBLICIDADE COMUNITRIA COMO MOBILIZAO INTERNA __________________________________ 87
3.4 COOPERAO, SOLIDARIEDADE E AUTOGESTO _____________________________________________ 89
3.5 REVOLUO, FILANTROPIA OU MERCADO? QUESTES TICAS PARA PROJETOS SOCIAIS __________________ 94
4. CONSIDERAES FINAIS _________________________________________________________ 99
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS _____________________________________________________ 105
ANEXOS _______________________________________________________________________ 109
ANEXO A - REGIMENTO INTERNO ________________________________________________________ 1
ANEXO B - DIRIO DE CAMPO __________________________________________________________ 5
ANEXO C - IMAGENS ________________________________________________________________ 35
XI
NDICE DE FIGURAS
Figura 1: Viso de satlite da Cidade de Deus..........................................................................43
Figura 2: Capa de A notcia por quem vive ed.n1....................................................................54
Figura 3: Capa em homenagem Dona Joana..........................................................................56
Figura 4: Logomarca do jornal feita pela LUPA.................................................................. .....59
Figura 5: Primeira Logomarca do jornal................................................................... ................81
Figura 6: Reunio de 13/04/2013: quando mostrado o vdeo com o adendo da homenagem a
Mestre Mido........................................................................................................................83
1
INTRODUO
A construo de uma Comunicao Comunitria no Brasil ainda um desafio que encontra
muitas condies adversas. Pode-se fazer uma analogia com uma terra infrtil em que se torna
difcil germinar espcies mais variadas e a tentativa de se restaurar uma flora exuberante
difcil. A Comunicao Comunitria foi uma semente plantada h anos atrs, que resistiu s
intempries, e ainda hoje seus gros do frutos, mas no se desenvolvem em toda sua
potencialidade. Isso mais por conta do ambiente: h alguns perodos de seca, outros de
alagamento, desequilbrios causados pela sociedade. Faltam nutrientes favorveis nessa terra,
assim como nas monoculturas agroindustriais, por exemplo, onde por tanto tempo se plantou
apenas um tipo de cereal, e as terras se tornaram secas e imprprias para uso em longo prazo.
Os nutrientes em questo para garantir uma vida longa e florida s mdias comunitrias so os
prprios recursos materiais da sociedade-terra em que elas esto plantadas. A partir da
concentrao de conglomerados empresariais, de leis e da tica que esto em conformidade
com o mercado, tais nutrientes no se apresentam totalmente disponveis a esse tipo de
comunicao que se acredita ser uma erva daninha, justamente por colocar em questo valores
capitalistas hegemnicos. A todas as pragas que podem prejudicar o crescimento abundante
das monoculturas latifundirias de mdias tradicionais de grande circulao, so lanados
agrotxicos, a fim de normalizar as cores, cheiros e frutos. Toda a cultura nessa lgica deveria
seguir o padro de qualidade. Porm, novos brotos crescem a cada dia, resistindo ao padro.
s vezes morrem cedo, mas deixam um legado, deixam suas sementes serem carregadas pelo
vento e germinar em outros lugares.
Ser visto aqui um pouco dessas experincias, de supostas ervas daninhas que na verdade
so girassis, ou so gardnias, so mata atlntica, selvagem: so uma pluralidade de vidas
que se diferem da monotonia dos cereais j to semeados. So a comunicao de grupos
desprivilegiados, de moradores da periferia, de favelas, e so tambm, ao mesmo tempo, a
comunicao de comunidades quilombolas, de pescadores, de trabalhadores rurais, de
mulheres. A Comunicao Comunitria uma flora heterognea que sobrevive, no importa
se a terra estiver seca. Porm, o intuito de se fazer uma pesquisa como essa o de perceber
como ela pode ir alm dessa sobrevivncia, como ela pode vicejar, aproveitar o mximo da
2
luz, gua e nutrientes ao redor, e conseguir crescer com mais exuberncia. Mantendo, claro,
certa autonomia e equilbrio para no virar mais uma daquelas dominantes, que no deixam
outras espcies se desenvolverem.
Dentro de todo um contexto de concentrao das mdias, h movimentos no sentido de
democratizar a comunicao, que gerou alguns frutos inclusive nas leis do Estado, apesar de
toda a violncia e represso. As novas tecnologias, inclusive, ainda esto dentro de um campo
de batalha que puxa, de um lado, essa terra da sociedade civil para a manuteno de
latifndios, e de outro, para assentamentos comunitrios. a partir dessa anlise de
conjuntura que se entra em um territrio especfico, Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, para
destrinchar o cotidiano da construo de uma mdia por seus moradores comunicadores. Isso
apenas foi possvel por um contato da pesquisadora com esse projeto desde antes da sua
iniciao no curso de mestrado, que a motivou a seguir pesquisando no campo da
Comunicao Comunitria.
O sentimento de empatia e a desconstruo de toda a simbologia disseminada pela mdia
tradicional j comeavam ali, nas primeiras idas a campo em abril de 2012. Em primeira
instncia, foi percebido que a Cidade de Deus, ou CDD, era um bairro at parecido com a
vizinhana perifrica das classes mdias do Rio de Janeiro, inclusive a da prpria
pesquisadora. H uma avenida principal e pequenas ruas e travessas que compem a parte
central da Cidade de Deus, carregando ainda o modelo de vila residencial quando foi
planejada em 1964, com a inteno de abrigar mo de obra para o desenvolvimento da zona
oeste, a nova rea nobre da cidade. Esse centro da CDD se limita mais ou menos entre a
Estrada Edgar Werneck e a margem direita do Rio Grande. As moradias nessa rea so
pequenas casas populares de um, dois e trs quartos, e residncias mistas que permitem a
pequenos comerciantes morarem em cima ou ao lado do prprio comrcio. A rua mais
movimentada de comrcio local a Josias. Alis, todos os logradouros nessa parte tambm
possuem nomes bblicos. Indo, porm, aos lugares mais afastados e pobres, como o Karat,
onde nem todas as ruas so asfaltadas, percebe-se uma segunda impresso: de que quem mora
na parte central da CDD possui uma condio social bem mais favorvel que os moradores de
outros setores da favela, onde h bem menos infraestrutura. Uma das construes mais
recentes e numa zona de precariedade a conhecida como os Apartamentos, que so
prdios verdes que j podem ser avistados desde a Linha Amarela. Nas chuvas fortes que j
ocorreram por ali, o rio e esgoto inundaram e deixaram muitas vtimas. Talvez por essa
3
desigualdade a Cidade de Deus no seja considerada pelo IBGE como favela em toda a sua
extenso, mas apenas em algumas regies fora dessa parte central. Essa descrio territorial
tambm ser detalhada co segundo captulo.
Em termos de convvio com as pessoas, foi observado primeiramente que a construo de um
jornal comunitrio organizado por moradores da Cidade de Deus teve como objetivo inicial
transmitir mensagens, notcias e opinies que mostrassem o lado daqueles que sempre foram
colocados como apenas objetos/receptores na veiculao miditica. Em um processo de
mobilizao e auto-organizao de atores locais, com longas reunies e estreita vinculao
com pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, nasceu um novo produto de
comunicao da Cidade Deus: o jornal A notcia por quem vive. Os moradores comunicadores
expressam nele o desejo de mudar o reconhecimento da identidade de um lugar que ficou
estigmatizado pela violncia, mas sempre foi um cenrio complexo de muitas experincias
culturais e sociais.
Esses moradores que frequentam as reunies do jornal so em maior parte mulheres de uma
gerao de faixa etria de 40 a 60 anos, e isso gera uma compreenso de que as lideranas
comunitrias podem ter caractersticas diferentes do que se espera, por uma sociedade liberal
e machista, de uma liderana poltica: e, nesse contexto, a memria local se torna uma frente
de luta, assim como saber adquirido pela experincia de viver as diferentes fases da CDD
desde os anos 1960 est em constante dilogo com os saberes mais tcnicos e acadmicos do
jornalismo, trazidos pela universidade. Esse o fundamento pelo qual se opta por desenvolver
uma pesquisa participante, em que h meu envolvimento pessoal com as atividades do jornal,
em vez de me posicionar como um sujeito distante ou observador. A relao informalmente
contratual que foi estabelecida nesse sentido, desde 2012, de uma pesquisadora participante,
que auxilia na organizao das reunies, pautas e diagramao. As visitas a campo j haviam
comeado antes do curso de mestrado, completando, ao final dessa pesquisa, trs anos. Essa
experincia mais longa foi fundamental para estabelecer uma relao de confiana e de
atuao em prol do futuro desse coletivo. E, a partir do incio dessa vivncia e das anotaes
em dirio de campo, gerou-se uma dvida que parte do particular para o mais universal:
Como a Comunicao Comunitria pode garantir sua continuidade em termos materiais, sem
perder de vista a sua autonomia e responsabilidade social, e sem colocar em xeque seu
compromisso tico?
4
O objetivo geral da reunio de um acervo de conhecimento nessa direo o de contribuir
com os saberes de comunicadores populares disseminando noes at agora pouco conhecidas
entre eles, como Publicidade Social e Comunitria e Economia Solidria, alm de aprimorar
prticas que j vem sendo feitas como as de mobilizao social e de busca por financiamento
pblico. Acredita-se que, ao agir em diversas frentes e com coeso interna na organizao, o
veculo consegue garantir sua continuidade com autonomia, e sem perder de vista seu esprito
comunitrio. Ou seja, para se nutrir e crescer no preciso sugar apenas o sal da terra, mas
tambm estar atento ao clima exterior, se protegendo coletivamente no mutualismo das
diferentes espcies e sabendo aproveitar os momentos de Sol e chuva.
Especificamente, com o corpus estabelecido de um grupo de comunicadores da Cidade de
Deus, se pretende fazer uma avaliao estratgica da maneira como suas mdias vm
sobrevivendo e possveis projees futuras. Posteriormente ao trabalho e como
consequncia dele, podero ser planejadas metas de ao, nos moldes metodolgicos da
pesquisa-ao, para dar continuidade pesquisa participante.
Desse modo, os captulos que se seguem sero organizados da seguinte maneira: em A
comunicao enquanto campo de disputas ser feita uma anlise de conjuntura poltica da
sociedade ocidental onde se inserem os meios de comunicao. No primeiro item, a sociedade
ps-industrial interpretada por Harvey (2011) como regime de acumulao flexvel ser
explorada com o vis crtico do desenvolvimento de novas tecnologias da informao e
comunicao (TIC). Tambm sero includas nesse contexto as anlises dos autores Hall
(2005) sobre os aspectos da modernidade tardia, Marcuse (1973) com a individualidade do
homem unidimensional, Sodr (2011) com a individualizao familiarizada da televiso e o
conceito de midiatizao, e Ianni (1999) com a interpretao conjuntural do Prncipe
Eletrnico.
Sero introduzidos, assim, conceitos importantes para o entendimento da teoria de Gramsci,
so eles: sociedade civil, aparelhos privados de hegemonia e guerra de posies.
Primeiramente, com Acanda (2006), as diferentes conotaes que sociedade civil ganhou ao
longo da histria sero expostas para, ento, dar prosseguimento com o entendimento
marxista e, mais especificamente, gramsciano do termo. Alm do autor original, Coutinho
(2007), entra como auxlio para o entendimento dessa teoria, que abarca o entendimento da
sociedade civil no interior do Estado ampliado e como palco da Guerra de Posies.
5
Com objetivo de comparar avanos e perdas no cenrio da luta pela democratizao da
comunicao, j que mdias comunitrias esto inseridas nele, ser visto no contexto
brasileiro de acordos e leis acerca da mdia, promulgados pelo Estado em conjuno com
atores da sociedade civil, o que comprova a relao orgnica entre Estado ampliado e a
Guerra de Posies. Durante todo o captulo e nos seguintes, a teoria de Heller (2008) acerca
da formao dos preconceitos tambm ser articulada.
Seguir-se- assim um captulo de verificao emprica da realidade imediata escolhida para
ser estudada: os comunicadores da Cidade de Deus. Em Cidade de Deus: verificaes
empricas haver um esforo para apreender a estrutura e a dinmica dessa realidade, no s
atravs do contato vivenciado no territrio, mas somado ao acmulo de conhecimento gerado
at ento sobre a conjuntura em que ele est inserido. Ser questionado o conceito de
comunidade atribudo s favelas cariocas, especialmente aps a instalao de Unidades de
Polcia Pacificadora (UPPs) nessas formaes urbanas, como demonstrar a anlise de
Baiense (2014).
Para um resgate terico mais histrico sobre comunidade, os autores Paiva (2003), Peruzzo
(2006) e Saldanha (2012) j fornecero importantes colocaes para servirem como base ao se
pensar em Cidade de Deus. Dessa forma, as premissas tericas sero articuladas com o
prprio histrico do territrio pesquisado, relatado tambm em Alvear (2008), Gonalves
(2010) e Tommasi & Velzco (2013). A heterogeneidade desse territrio ser importante para
entender o papel e as limitaes da comunicao l, onde o jornal A Notcia por quem Vive e o
portal comunitrio so protagonizados por grupos de moradores que j eram ativos em outras
instituies locais, e algumas vezes com divergncias internas. Assim, o captulo ser fechado
com uma descrio metodolgica e relato de experincia em campo, para se estabelecer uma
ligao com o prximo captulo, que expressar o objetivo central da pesquisa aplicando a
prtica teoria e vice-versa.
Foram utilizados dirio de campo, fotografia e gravaes a fim de registrar a vivncia em
campo. Esses dados, juntamente com as leituras proporcionadas pela reviso bibliogrfica
recortada para o tema, so importantes metodologicamente para a formao da teoria
formalmente apresentada neste trabalho, entendida aqui como o movimento real do objeto
transposto para o crebro do pesquisador o real reproduzido e interpretado no plano ideal
6
(do pensamento). (NETTO, 2011: 21). Considera-se que na pesquisa participante a
experincia emprica no territrio de onde se inicia o conhecimento: por isso no perdem a
importncia as primeiras, segundas e conseguintes impresses tidas ao longo do tempo.
Partindo-se desse nvel subjetivo da realidade, o norte alcanar um nvel mais objetivo ao
formular, teoricamente, a essncia dela. Por isso, o esforo de articulao entre o exerccio
reflexivo do pensamento e as impresses do cotidiano permeia todo o trabalho, visando
alcanar uma teoria dialtica.
Em Vida longa e autnoma Comunicao Comunitria a pesquisa ir aplicar-se pergunta
problema de fato: sobre a continuidade material de mdias comunitrias, frente ao risco de
perda de autonomia na busca por financiamento. Primeiramente, os critrios para uma
comunicao comunitria descritos em Paiva (2003) e Peruzzo (2007) sero interpostos com a
experincia em campo na organizao do jornal A notcia por quem vive. Em seguida, o
balano j feito na esfera das leis e a democratizao da comunicao enquanto reivindicao
pblica sero retomados, com base tambm em Moraes (2011) e Peruzzo (2006) e na
experincia do jornal com editais do Ministrio da Cultura.
O conceito-chave de Publicidade Social, de Saldanha (2012), dar base para pensar
Publicidade Social como ferramenta de mobilizao externa e combater argumentos
contrrios ao seu uso, assim como a Publicidade Comunitria pode ser uma estratgia de
mobilizao interna. Os relatos demonstraro que ambas j foram utilizadas no contexto do
jornal, mesmo que no se utilizasse esse nome para referir-se a elas. Do mesmo modo feita
uma breve pesquisa no campo do desenvolvimento local e Economia Solidria buscando
contribuies do cooperativismo e da autogesto para se pensar em uma frente de apoio
continuidade do veculo.
Por fim, tendo como base Sociedade civil, classes sociais e converso mercantil-filantrpica,
de Virgnia Fontes (2006), ser problematizada a autonomia das mdias comunitrias na
converso mercantil-filantrpica. Essa discusso tambm perpassa como tica pode se aplicar
Comunicao Comunitria enquanto prxis, se rearticulando, no ltimo item, com Sodr
(2007) e Heller (2008).
Todas essas questes demonstram que no simples o cultivo da Comunicao Comunitria.
necessrio seguir princpios para que ela no seja destruda pelo meio ambiente hostil ou
7
mesmo seja destruidora dele. Assim como as plantas, no interior de seu organismo h um
complexo funcionamento com rgos interdependentes; porm, diferente delas, esse
funcionamento orgnico da Comunicao Comunitria no pr-determinado biologicamente
e tampouco libera oxignio no ar: libera vozes humanas, de diferentes timbres e imprevisveis.
8
9
1. COMUNICAO ENQUANTO CAMPO DE DISPUTAS
vozes a mais
vozes a menos
a mquina em ns
que gera provrbios
a mesma que faz poemas,
somas com vida prpria
que pode mais que podemos
Paulo Leminski
O que comunicar nos tempos de hoje? O que significa ter voz em uma sociedade, e quem
tem? importante iniciar esta pesquisa com a considerao de que os diferentes interesses e
culturas humanos, que resultam em batalhas, negociaes, consensos e derrotas, interpassam
totalmente pelo campo da comunicao. Essas disputas se fazem presentes nos discursos, nas
imagens e no desenvolvimento de toda a tecnologia idealizada e empregada por seres
humanos: incluindo as novas e velhas mdias. Portanto, se faz necessria aqui uma anlise de
conjuntura da Comunicao Social.
Neste primeiro captulo, se pretende resgatar o debate poltico sobre a democratizao da
comunicao no sentido de multiplicao de vozes, em que situaes concretas de meios
comunitrios que primam por outra lgica contrria a interesses capitalistas e sociedade de
consumo emergem com urgncia na vida social cotidiana. Para tanto, a base ser em
referncias bibliogrficas e em exemplos para compreend-los em sua complexidade de
detalhes e em sua diversificao, explicitando a heterogeneidade em que ocorrem as
transformaes histricas.
Sero problematizadas a seguir as ambiguidades trazidas pelas novas tecnologias, j que
muito disseminada a ideia de que h conjunto de valores que vm se construindo a partir
delas. Nota-se que essa construo um movimento ondulatrio, como bem postula Heller
(2011), de possibilidades imanentes ao gnero humano que emergem das circunstncias
cotidianas, podendo se cristalizar em preconceitos ou elevar-se a valores humanos universais
10
(humano-genrico). Sero feitas leituras sobre Estado e sociedade civil e sobre o papel da
mdia na democracia.
1.1 AS NOVAS TECNOLOGIAS NO DESENVOLVIMENTO HISTRICO OCIDENTAL
No momento histrico atual, vivemos um perodo que tem suas razes na modernidade,
quando, na economia, o modelo fordista de produo deu lugar ao modo de acumulao
flexvel. Em Condio Ps-Moderna, de David Harvey (2011), colocada como uma das
consequncias da acumulao flexvel a acelerao do tempo de giro no mercado (o tempo de
produo da mercadoria associado com o tempo de circulao da troca). Isso implica novas
regras tanto nas relaes de trabalho quanto nas relaes culturais e formaes ideolgicas
dessa sociedade.
Como a circulao de mercadorias se d com avanos tecnolgicos numa velocidade cada vez
maior e o regime de acumulao se acelera, h uma intensificao e precarizao do trabalho
humano, assim como surgem novas qualidades a serem valorizadas, tais como a
instantaneidade e a capacidade de tornar coisas descartveis. Essa dinmica, segundo Harvey,
ficou mais evidente (ao menos nos Estados Unidos, de onde o autor analisa) depois dos anos
60:
Ela significa mais do que jogar fora bens produzidos (criando um
monumental problema sobre o que fazer com o lixo); significa tambm ser
capaz de atirar fora valores, estilos de vida, relacionamentos estveis, apego a coisas, edifcios, pessoas e modos adquiridos de agir e ser (HARVEY,
2011: 258).
H tambm uma grande tendncia fragmentao e a um pensamento a-histrico, apoltico.
Mas apesar destas serem tendncias globais, elas partem do desenvolvimento capitalista
ocidental, e nem todos os lugares do mundo esto no mesmo grau de insero nesta lgica.
Tampouco todos os lugares de uma cidade. A incapacidade de compreender essas
desigualdades muitas vezes resulta em um entusiasmo acrtico com as novas tecnologias da
informao e comunicao (TICs):
Assim como na esfera da economia a converso dos mais pobres teoria do
livre-mercado incrementa a cruel indiferena humana do economicismo, a
11
converso acrtica da sociedade ao ecossistema tecnolgico leva, na esfera da comunicao, ideia enganosa de que tudo o que humanamente importante
se acha na esfera hegemnica da mdia, sendo considerados socialmente
vlidos apenas os discursos legitimados pela articulao das instituies
hegemnicas com os dispositivos de informao. A aparente virtude democrtica dessa realidade contribui para ocultar o fato de que a real
liberdade de expresso e de ao consiste na possibilidade de se estar
tambm fora da midiatizao e de suas injunes simblicas. (PAIVA et. al, 2014: 4-5)
Segundo a pesquisa TIC Domiclios 20131, no Brasil o acesso Internet ainda est limitado a
48% dos domiclios na rea urbana e 15% na rea rural. No recorte de classes, o alcance de
98% na Classe A, e decresce a 80% na Classe B, 39% na Classe C e 8% na DE. Ou seja,
apesar desse nmero vir crescendo de ano a ano, a maioria da populao brasileira, por ser
pobre, nem sequer possui acesso ao medium que se acredita mais democrtico e relevante na
sociedade contempornea.
Do mesmo modo, nenhuma das caractersticas globalizantes foi acionada de repente, em um
s tempo e espao. Pode ser visto em Hall (2005) muitas tendncias j encontradas na histria
recente que nos antecede:
As transformaes associadas modernidade libertaram o indivduo de seus
apoios estveis nas tradies e nas estruturas. Antes se acreditava que essas
eram divinamente estabelecidas; no estavam sujeitas, portanto, a mudanas fundamentais. O status, a classificao e a posio de uma pessoa na "grande
cadeia do ser" a ordem secular e divina das coisas predominavam sobre qualquer sentimento de que a pessoa fosse um indivduo soberano. O nascimento do "indivduo soberano", entre o Humanismo Renascentista do
sculo XVI e o Iluminismo do sculo XVIII, representou uma ruptura
importante com o passado. Alguns argumentam que ele foi o motor que
colocou todo o sistema social da "modernidade" em movimento. (HALL, 2005: 25)
Para o autor, aps esse longo processo, a chegada da modernidade tardia surge com o
predomnio do carter da mudana, que, em outros termos, significa o processo de
globalizao: as mudanas adquirem um ritmo mais rpido e um alcance mais abrangente no
planeta. Tambm com base em Harvey, mas em articulao com Giddens e Laclau, ele afirma
que h descontinuidades nessas mudanas da ordem social. O que o serve de ponto de partida
para adentrar na sua questo central: as identidades, e seu processo de fragmentao ou
pluralizao.
1 Disponvel em: . Acesso em:
04/03/2015.
12
Giddens, Harvey e Laclau oferecem leituras um tanto diferentes da natureza
da mudana do mundo ps-moderno, mas suas nfases na descontinuidade,
na fragmentao, na ruptura e no deslocamento contm uma linha comum. Devemos ter isso em mente quando discutirmos o impacto da mudana
contempornea conhecida como "globalizao". (HALL, 2005: 18)
As teorias crticas da comunicao deram uma importante contribuio ao analisar a histria
moderna luz desse desenvolvimento de novas TICs, verificando como a indstria de massa
passa a interferir, inclusive, no tempo livre e criativo do homem. Um primeiro exemplo a
famosa vertente alem conhecida como Escola de Frankfurt, fundada em 1924 com
pesquisadores do Instituto para Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt que,
influenciados pelo marxismo, analisam a maneira como passam a ser feitas as artes e produtos
miditicos. Na primeira fase, at 1933, os autores relatam a ideia de um caos cultural, um
mundo entregue supremacia da tcnica, onde a racionalidade e a lgica mecnica dos
processos industriais teriam ultrapassado o mbito da produo fabril como ser visto um
pouco mais adiante e se estendido para diversos aspectos do cotidiano, consolidando a
dominao de um sistema, atravs da indstria cultural.
A partir das ameaas da Segunda Guerra Mundial, o instituto sofreu uma transio para
mover-se a universidades de outros pases, passando por Sua e Estados Unidos. Na fase da
reabertura do instituto na Alemanha, em 1953, Herbert Marcuse comea a se destacar, tendo
escrito o livro datado de 1964 A ideologia da sociedade industrial (O Homem
unidimensional), que aborda a racionalidade tcnica e instrumentalizao de coisas e
indivduos:
Marcuse, professor na Universidade da Califrnia, pretende desmascarar as novas formas de dominao poltica: sob a aparncia de um mundo cada vez
mais modelado pela tecnologia e pela cincia, manifesta-se a irracionalidade
de um modelo de organizao da sociedade que subjulga o indivduo, em vez de libert-lo. A racionalidade tcnica, a razo instrumental reduziram o
discurso e o pensamento a uma dimenso nica, que promove o acordo entre
a coisa e sua funo, entre a realidade e a aparncia, a essncia e a existncia (MATTELART, 2011: 81).
Assim como foi visto em Hall que a histria moderna remete instabilidade e a
transformaes (e isso transparece nos exemplos de muitas crises e grandes guerras e
revolues), para os frankfurtianos as mudanas estruturais na indstria e nos modos de
13
trabalho foram fundadoras de um tempo em que o mercado passa a ser cada vez menos
controlvel pelo homem, que, por sua vez, tambm vai se desumanizando Hoje, a
dominao se perpetua e se estende no apenas atravs da tecnologia, mas como tecnologia
(MARCUSE, 1973: 154). A ordem produzir mais, circular mais rpido, descartar e substituir
mais. No s bens materiais, como pessoas.
No mesmo sentido, ao analisar a televiso brasileira, Muniz Sodr (2010) categoriza o
processo de individualizao familiarizada. A individualizao, para ele, se d com a crena
ocidental no ego nico e dotado de livre escolha, mas, paradoxalmente, a tev
desindividualiza o sujeito, j que sua linguagem uniformizante. Na anlise da emisso,
Sodr observa que utilizada uma linguagem que simula um contato direto e individual com
os telespectadores, como se o jornalista ou apresentador estivesse emitindo sua mensagem a
apenas um deles, enquanto, na realidade, o est com todos ao mesmo tempo.
O aspecto familiar dessa individualizao se d, ao mesmo tempo, na recepo:
O receptor percebe a mensagem da tev como algo de natural no interior da sua casa. Caem as eventuais barreiras aos fenmenos de projeo e identificao, desde que a mensagem atenda s caractersticas de
naturalidade do veculo. Este finge ser o olho da famlia assestado para a espontaneidade dos acontecimentos do mundo, escondendo a sua condio de olhar hipntico e imobilizador do sistema. (SODR, 2010: 59)
Nessa tentativa de aproximar as relaes com o telespectador, a televiso criou uma diferena
importante, enquanto tecnologia audiovisual, em relao clssica fotogenia
cinematogrfica (SODR, 2010: 62). O cinema se utiliza de efeitos de imagem fascinantes,
que absorvem o pblico num mundo idealista e fantasioso, onde, por exemplo, atrizes tm
aspectos de divindades, inacessveis ao pblico. J a imagem televisiva busca imitar o
cotidiano familiar das imagens, o que faz com que o rosto televisionado no seja misterioso
ou impenetrvel, e sim acessvel, provocando a identificao. As duas linguagens tambm
expressam o espao e o tempo de maneiras distintas, j que a narrativa ficcional e o dilogo
cotidiano com o telespectador exigem montagens e ritmos diferentes. Sodr ainda indica que a
linguagem ftica da tev, ao ser basicamente a mesma que o jornalismo, se aproxima mais do
rdio que do cinema. Isso pode levar a pensar na influncia subjetiva que o jornalismo gera no
medium que significa canalizao, fluxo comunicacional, tanto televisivo quanto a internet,
por exemplo (SODR, 2011) implantando nele mais uma vez essa lgica
14
individualista/desumana sem que apenas as condies materiais industriais da sociedade
determinem essa tendncia.
Por ltimo, uma boa ponte entre essa discusso crtica sobre as tecnologias da comunicao e
o que ser analisado posteriormente em Gramsci O Prncipe Eletrnico, de Octvio Ianni.
Segundo ele, esse processo de globalizao vem a radicalizar as tendncias do capitalismo,
que, cada vez mais em nvel mundial, provoca grandes tenses na disputa por poder, sendo
consequncia a emergncia de novos grupos sociais, classes, novas acomodaes e lutas. Para
ele, as novas tecnologias fazem parte desse mesmo processo de radicalizao da condio
poltico-econmica e sociocultural do mundo, do que vem a utilizao do termo eletrnico
em seu conceito principal:
as instituies clssicas da poltica esto sendo desafiadas a remodelar-se, ou a ser substitudas, como anacronismos, j que outras e novas instituies e tcnicas da poltica esto sendo criadas, praticadas e teorizadas. Em lugar
de O prncipe de Maquiavel e de O moderno prncipe de Gramsci, assim
como de outros prncipes pensados e praticados no curso dos tempos modernos, cria-se O prncipe eletrnico, que simultaneamente subordina,
recria, absorve ou simplesmente ultrapassa os outros. (IANNI, 1999: 12)
No sendo mais um lder ou uma organizao como nos autores anteriores, O Prncipe (que
em todos os casos simboliza o poder poltico), para Ianni seria tambm a televiso, enquanto
entidade onipresente a partir da globalizao. Apesar da relativizao da sua hegemonia, a
qual dependeria dos intelectuais orgnicos (os quais ele qualifica como certos profissionais,
incluindo jornalistas, mas originalmente em Gramsci seriam pessoas representantes de um
pensamento de classe, no necessariamente graduados em tal saber), o prncipe eletrnico
expressa sobretudo a viso do mundo prevalecente nos blocos de poder predominantes, em
escala nacional, regional e mundial, habitualmente articulados (IANNI, 1999: 15). Para ele,
as produes intelectuais que representam classes e grupos sociais subalternos apenas
enriquecem o prncipe eletrnico, tornando-o mais sensvel ao que vai pelo mundo (id.,
ibid.).
Dessa forma, o autor conclui que sempre h interesses (no caso da indstria de massa,
corporativos) por trs do desenvolvimento tecnolgico e das mdias, e tais interesses impem-
se a todas as instituies polticas tambm. Mais uma vez aparece a ideia frankfurtiana de
indstria cultural.
15
O que singulariza a grande corporao da mdia que ela realiza limpidamente a metamorfose da mercadoria em ideologia, do mercado em
democracia, do consumismo em cidadania. Realiza limpidamente as
principais implicaes da indstria cultural, combinando a produo e a
reproduo cultural com a produo e reproduo do capital; e operando
decisivamente na formao de "mentes" e "coraes", em escala global. (id.,
ibid.).
A ideia falaciosa do jornalismo como atividade tcnica associada pura informao isenta de
valores faz parte da ideologia hegemnica (por ideologia como conceito marxiano, entende-se
velamento ou inverso do real) e se tornou consensual para alm dos jornalistas e donos da
mdia, j que h no comportamento humano em sociedade a norma do mnimo esforo: que
promove uma integrao sem conflitos com os interesses de nossa integrao social, pode
poupar pensamento individual e deciso individual (HELLER, 2008: 67). A notcia passa a
ser, tambm, uma mercadoria. No contedo do jornalismo, se tem feito um claro investimento
em temas espetaculares para chamar ateno da audincia, com recorrente apelo violncia,
esteretipos e sensacionalismos: A, tudo se espetaculariza e estetiza, de modo a recriar,
dissolver, acentuar e transfigurar tudo o que pode ser inquietante, problemtico, aflitivo.
(IANNI, 1999: 19)
Portanto, essas novas relaes materiais permitem, num plano mais subjetivo, novas
configuraes que regulam as experincias sociais. A mdia pode ser entendida no s como
tecnologia, mas como um sistema simblico que possui tanto contedo quanto modo de fazer
e contribui para a formao cultural de um senso comum, que seria, com base na
determinao gramsciana, a filosofia dos no filsofos ou seja, um conjunto de valores e
modos de interpretao que formam em sua coerncia algo que pode ser chamado de
ideologia mesmo que seja (coerentemente com a prpria lgica de acumulao flexvel)
uma ideologia caracterizada pelo apelo ao consumo, pela fragmentao e competitividade.
Assim, senso comum, categoria gramsciana semelhante de valores morais, que em Heller
(2008) o sistema das exigncias e costumes que permitem ao homem converter mais ou
menos intensamente em necessidade interior a elevao acima das necessidades imediatas
(p.17) objeto trabalhado diretamente pela mdia, passando nesse caso por um processo
especfico de mediao, chamado por Sodr (2011) de midiatizao.
uma ordem de mediaes socialmente realizadas no sentido da comunicao entendida como processo informacional, a reboque de
organizaes empresariais e com nfase num tipo particular de interao a
16
que poderamos chamar de tecnointerao -, caracterizada por uma espcie de prtese tecnolgica e mercadolgica da realidade sensvel, denominada
medium.
Existem mediaes que vo alm da mdia, e tambm trabalham com o senso comum: a arte,
a arquitetura e a prpria linguagem, considerada a mediao oficial. Ao mesmo tempo, as
instituies mediadoras esto inseridas no que se entende por sociedade civil e, por uma
concepo gramsciana, podem ser encaradas tambm como aparelhos privados de
hegemonia, o que ser explicado a seguir.
1.2 SOCIEDADE CIVIL E OS APARELHOS PRIVADOS DE HEGEMONIA
O termo sociedade civil j foi utilizado, ao longo do tempo, em diferentes aspectos, com
uma variedade de significados e conotaes ideolgicas. De acordo com Seligman (apud
Acanda, 2006), seus trs usos fundamentais so como slogan poltico, como conceito
sociolgico analtico ou como conceito filosfico normativo. O primeiro, utilizado como
ideologia, faz referncia ideia utpica de salvao ou reconstruo de uma sociedade ideal.
O segundo, atrelado a verificaes empricas de democracia e cidadania participativas, tem a
finalidade de expor casos de organizaes especficas por vezes ressaltando a necessidade
da comunidade e cooperao, por outras centrando-se no indivduo autnomo. O campo da
Comunicao Comunitria faz muito uso da sociedade civil nesse sentido sociolgico (com
realce a experincias de comunidades e cooperativismo). J o terceiro uso se constitui de
reflexes mais tericas no terreno das aes simblicas e formao de valores ticos.
Segundo Acanda, houve um retorno do primeiro uso, o slogan poltico, de sociedade civil a
partir do contexto poltico dos anos 1970, quando da ascenso liberal nos pases capitalistas
desenvolvidos que defendia a privatizao da economia e uma nfase sociedade civil em
detrimento do Estado, ao mesmo tempo em que certos setores nos pases comunistas do leste-
europeu rejeitavam um Estado ultracentralizador. Ao final dessa dcada, a esquerda latino-
americana tambm se apropriou do conceito na oposio s ditaduras-militares: seria uma
"nova fora capaz de exigir do Estado no somente a diminuio da represso como maior
responsabilidade social" (ACANDA, 2006: 22). Em todos esses casos, enfatiza o autor, h
uma raiz conceitual comum de dicotomia entre o Estado (entendido como sociedade poltica)
17
e sociedade civil. O que gera alguns problemas em sua aplicao.
A sociedade civil, vista nessa dualidade, se resumiria a uma funo reguladora em
substituio ao Estado, sendo o espao autnomo do no-poltico (ALEXANDER apud
ACANDA, 2006). Isso se explica por uma crise poltica que foi se instaurando em grande
parte dos pases depois da guerra fria, tanto capitalistas quanto comunistas: "uma clara crise
de identidade da poltica democrtica e das perplexidades que assolam os diferentes discursos
ideolgicos" (Valespin, 1996: 4). Tambm foi ganhando notoriedade, nesse contexto, o
mtodo de pensamento positivista, de oposies binrias, coisificante, que corrobora para tirar
da sociedade civil seu aspecto poltico. Ou seja, se pretendemos buscar um lugar ideal
solidrio e humano e desacreditamos que se possa encontrar tal lugar no espao do poltico,
estamos ento diante da dicotomia Estado x sociedade civil, que d fora ao senso comum de
que o poder corrompe. Acanda tambm percebe que hoje j se faz a separao em trs
dimenses: sociedade civil (voluntria e virtuosa), mercado (competitivo) e Estado
(burocracia).
De acordo com Meschkat (apud ACANDA, 2006: 40), o discurso da sociedade civil na
Amrica Latina tendeu a fortalecer a ideologia dominante, em trs sentidos: a) simplifica
Estado x Sociedade Civil, como se tudo que no dependa do Estado significasse um passo em
direo emancipao social; b) encobre a luta de classes, o poder econmico, os
monoplios, o capital transnacional, etc; c) difunde o conceito vago e ambguo de
Organizao No-Governamental (ONG), em que se diluem as enormes diferenas entre
aquelas de compromisso real com as organizaes populares e as que no promovem nenhum
tipo de transformao, apenas corroboram com a ordem j estabelecida e retiram a obrigao
do Estado de arcar com o social.
Fontes, ao analisar os movimentos sociais e ONGs dos anos 1980 no Brasil, bem como sua
relao com o recm-criado Partido dos Trabalhadores, tambm confirma que
Ocorria uma idealizao do conceito de sociedade civil como se esta se limitasse apenas ao mbito popular. A sociedade civil, assim encarada, seria o momento socialista da vida social, o momento virtuoso. Por seu turno, o
Estado seguia confundido, ora com a ditadura, ora com a ineficincia e
incompetncia, ora com seu patrimonialismo ou clientelismo, desconsiderada sua ntima articulao com a sociedade civil. (FONTES,
2006: 348)
18
Por conta dessa noo anistrica e antipoltica de sociedade civil que predominou no
pensamento moderno, houve certo repdio por parte de tericos socialistas marxistas
especialmente aqueles que vieram das burocracias no poder, da antiga Unio Sovitica e
outros pases comunistas do leste europeu, os quais Acanda enquadra como marxistas
dogmticos ou ps-marxistas exorcizando-a como fenmeno social objetivo - ao conceb-
la como antagnica ao Estado e sociedade socialista" (ACANDA, 2006: 20). Essa rejeio
tambm trouxe uma limitao para que se pudesse fazer novas interpretaes do conceito e
contribuir na construo do pensamento crtico.
Dessa forma, a sociedade civil surgiu na modernidade com srias simplificaes que a
impediram de se configurar como categoria que correspondesse s reais determinaes da
sociedade.
Penso que tudo isso nos permite afirmar estarmos diante de uma metfora, de
uma ideia, e no diante de um conceito ou categoria... A intensificao do
carter coisificado e alienante tanto dos Estados quanto do mercado capitalista fez o tradicional problema da relao entre indivduo e sociedade
ser proposto como o problema da relao entre o indivduo com os poderes
que estruturam a sociedade e a transformam num lugar hostil: o poder poltico e o poder econmico. Surgiu, assim, a necessidade de conceber um
espao intermedirio entre esses dois poderes, uma espcie de "refgio" no
qual o indivduo possa encontrar proteo contra essas foras que tudo tentam devorar. (ACANDA, 2006: 25-26)
Apesar desse histrico, ainda se pode encontrar nas apropriaes de sociedade civil alguma
teoria mais consistente e menos contraditria. De acordo com o autor, nos novos
movimentos de luta popular e de resistncia antiglobalizante, a referncia sociedade civil se
baseia na compreenso da existncia, no interior do social, de uma interao orgnica entre o
sistmico e o anti-sistmico (id., ibid.: 44). Essa relao dialtica a base da concepo
sociolgica e filosfica do terico Antonio Gramsci.
19
1.2.1 CONTRIBUIES DA TEORIA DE GRAMSCI
A teoria gramsciana faz um estudo sobre novas determinaes do capitalismo, em que o
homem, sua cultura e, consequentemente, os meios de comunicao se inserem. Utilizando-a
como fundamento, torna-se possvel compreender a realidade cotidiana em que diversas
tentativas de se construir comunicao alternativa e comunitria emergem. Gramsci buscou
compreender, no contexto do ps(2)-guerra, o motivo de haver pouca revolta contra a
violenta ordem vigente iniciando, ento, uma anlise sobre o capitalismo em sua fase
monopolista. At 1926 seus estudos assimilaram ideias bsicas de Lnin. E, assim, em sua
reflexo terica, ele no entende o leninismo (e o marxismo em geral) como um conjunto de
definies acabadas, mas como um mtodo para a descoberta de novas determinaes
(ACANDA, 2006: 84).
O Estado e a sociedade civil foram conceitos alvo de uma intensa crtica por Marx e Engels,
no sculo XIX. Eles demonstravam razes histricas do surgimento dos Estados, mais
especificamente o caso do Estado burgus capitalista. Desmantelaram a noo de pacto,
demonstrando que o Estado corresponderia, na verdade, necessidade de classes sociais
dominantes assegurarem a reproduo de sua dominao.
Assim, a separao entre Estado e sociedade seria falsa: ao contrrio, o Estado resultaria da
relao entre classes sociais e, portanto, esta seria sua razo de ser. De acordo com eles, a
aparncia de separao foi legitimada e reforada por filsofos que sustentavam a burguesia
em ascenso (principalmente a partir da revoluo francesa), chegando a se tornar senso
comum. Por esse motivo tal lgica de pensamento considerada por eles uma ideologia. Ao
fazer a separao dessas instncias, se justifica e se legitima a perpetuao dessa forma de
organizao da vida social, como se Estado e sociedade civil fossem entidades com vida
prpria e naturalmente necessrias.
Acanda observa que, mesmo depois de tais formulaes, grande parte dos estudiosos
marxistas se centrou apenas na crtica ao Estado, mas ignoraram a sociedade civil. Para ele:
bem verdade que, durante os setenta anos de sua existncia como ideologia especfica, o dogma criado pelos rgos oficiais de produo, difuso e
ensino do marxismo nos pases de 'socialismo real' inicialmente ignorou e
20
depois rejeitou esse termo como fez com o conceito de alienao e procurou ocultar sua importncia na histria do desenvolvimento do
pensamento marxiano e marxista. Mas isso no justifica deixar de lado a obra de Antonio Gramsci, que colocou o conceito e a questo da Sociedade
Civil no centro de sua reflexo terica. (ACANDA, 2006: 30)
Em seu perodo de priso no regime fascista italiano (1926 1937), Gramsci reinterpretou,
assim, a sociedade civil de acordo com as bases crticas lanadas por Marx e Engels. A
sociedade civil gramsciana seria um momento integrante da totalidade do Estado ampliado.
Suas reflexes partiram do momento em que o Estado capitalista desenvolvido incorporava
em seus direitos as conquistas das lutas populares, ainda que no perdesse sua dominao
sobre ela (isso seria, trazendo para reflexo mais recente com o pesquisador gramsciano
Carlos Nelson Coutinho, a socializao da poltica). Tais direitos adquiridos, ao mesmo
tempo em que eram fruto das lutas, as acalmavam e enfraqueciam.
Surge ento o conceito de aparelhos privados de hegemonia que so as formas concretas
de organizaes na sociedade civil: vises de mundo, conscincia, sociabilidade e cultura,
conforme determinados interesses. Da mesma forma que o Estado, a sociedade civil expressa
as contradies e os consensos feitos entre fraes da classe dominante e as demais. Vale
dizer que essa nova formao conjuntural tem muito a ver com a queda das monarquias,
sendo o que Gramsci chamava de sociedades de tipo ocidentais, j que nem todo o mundo
se desenvolvia nas mesmas condies.
A Igreja, as ONGs, as escolas, as empresas, a imprensa, os movimentos e sindicatos: todos
so aparelhos privados de hegemonia que disputam o consenso. No se pode, portanto,
atribuir a nenhuma dessas instncias a direo hegemnica ou contra-hegemnica
incondicionalmente: pois h pessoas por trs de cada uma delas com determinados interesses
e vises de mundo, explicitando as contradies presentes. Mas se pode analisar qual a
predominncia de interesses em cada uma, para que no se confunda a realidade com o
otimismo da vontade e no se insista em batalhas perdidas. Fontes j comea a vislumbrar as
inconsistncias estratgicas por parte dos novos movimentos socais e das ONGs em 1980,
quando os aparelhos privados de hegemonia se multiplicam e por vezes mascaram a luta de
classes:
As entidades empresariais atuavam corporativa e politicamente como
sociedade civil no sentido gramsciano, como aparelhos privados de hegemonia e participavam intimamente do Estado, inclusive no perodo ditatorial, mas apresentavam-se como sociedade no sentido liberal,
21
contrapondo-se ao Estado. Deslizavam facilmente de um a outro sentido, evidenciando como a luta atravessava a sociedade civil, atravs da expanso
de aparelhos privados de hegemonia de cunhos variados, cuja proximidade
com as classes fundamentais nem sempre era muito ntida (FONTES, 2006:
348)
Pode-se visualizar por a a quase transio em que o mercado passou a ser visto dissociado
tanto do Estado quanto da sociedade civil em um senso comum atual que separa o poltico
nas trs dimenses j citadas acima em Acanda: Sociedade Civil / Mercado / Estado. o
motivo que torna hoje em dia a teoria de Gramsci mal compreendida e usada at em contextos
equivocados, pois nela deve-se pressupor que tais instncias se articulam entre si.
Para Gramsci (2011), onde h Estado ampliado, h mais estratgias de convencimento nas
disputas ideolgicas, e no se exclui a violncia e coero. A sociedade civil entra como
mediadora do momento predominantemente consensual desse Estado o que, por sua vez,
facilita que os aparelhos privados de hegemonia ocupem postos na sua forma burocrtica e
coercitiva (o chamado Estado em sentido estrito), influenciando as leis, a agenda poltica e
tambm as medidas de coero. O grau de convencimento ou de violncia a ser utilizado em
um Estado ampliado para garantir uma hegemonia varia e pode gerar crises dependendo do
contexto poltico o grau de democratizao (socializao da poltica) de uma sociedade,
segundo Coutinho, uma das coisas que interfere nesse balano.
O fato de que um Estado seja mais hegemnico-consensual e menos
ditatorial, ou vice-versa, depende da autonomia relativa das esferas superestruturais, da predominncia de uma ou de outra, predominncia e autonomia que, por sua vez, dependem no apenas do grau de socializao
da poltica alcanado pela sociedade em questo, mas tambm da correlao
de foras entre as classes sociais que disputam entre si a supremacia. (COUTINHO, 2007: 131)
Dessa forma, o Estado est presente dentro e fora das instncias do governo, e preciso
discuti-lo em sua totalidade, fora dessas instncias tambm: inclusive nos trabalhos de
Comunicao Social. Gramsci considerava que a imprensa tinha papel de partidos polticos, o
que podemos estender hoje s mais variadas formas de mdia em suas novas tecnologias,
especialmente as de maior circulao, j que essas fariam parte da frente terica ou
ideolgica da classe dominante, enquanto as mdias comunitrias, como exemplo que ser
estudado aqui, geralmente fazem frente a outros grupos sociais, minoritrios.
A parte mais considervel e mais dinmica dessa frente o setor editorial em
22
geral: editoras (que tm um programa implcito e explcito e se apoiam em
determinada corrente), jornais polticos, revistas de todo o tipo, cientficas,
literrias, filolgicas, de divulgao etc., peridicos diversos at os boletins paroquiais (GRAMSCI, 2011b, 78-79)
Assim, se dirige e se organiza um consentimento, que, das fraes da classe dominante, pode
ser absorvido como ideologia pelas classes subalternas da se resulta certos valores e
opinies como senso comum. Os dissensos tendem a ser ocultados ou simplificados nele.
Nesse sentido, os meios de comunicao, que trabalham com o discurso e possuem
tecnologias de alto poder de alcance, so instrumentos importantes para homogeneizar o
pensamento e facilitar a hegemonia pelo consenso. Ou seja, o apelo para um debate poltico
visto primeira vista pelos seguidores do senso comum como um convite a uma
desinteressante pequena poltica, a qual seria uma reproduo de interesses individuais ou
de pequenos grupos orientados para o eu-particular, e no uma discusso de reconhecida
importncia orientada para o humano-genrico (HELLER, 2008). Os preconceitos
disseminados pela mdia burguesa contribuem, portanto, para dificultar o avano das
tentativas de setores oprimidos de adeso ideolgica na sociedade civil - tentativas que
passam pela mediao dos veculos de comunicao alternativos. Assim, os preconceitos
cumprem seu papel histrico de consolidar e manter a estabilidade e a coeso da integrao
dada.
1.2.2 GUERRA DE POSIES E O PAPEL DA COMUNICAO
O pensamento gramsciano prope que a conquista do poder nas sociedades atuais feita
gradualmente, sendo precedida por uma longa guerra pela hegemonia atravs das entidades
da sociedade civil, j que o consenso necessrio. Para ele, essa disputa s cessaria a partir do
momento em que houvesse uma reabsoro da sociedade poltica na sociedade civil,
desaparecendo progressivamente os mecanismos de coero, o governo e as burocracias do
Estado que passaria a ser tico: a sociedade regulada. O processo no qual isso ocorre
categorizado por Gramsci como catarse: quando os interesses econmico-corporativos so
superados por sujeitos polticos que se propem a defender interesses universais.
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Pode-se empregar a expresso catarse para indicar a passagem do momento meramente econmico (ou egostico-passional) ao momento tico-poltico,
isto , a elaborao superior da estrutura em superestrutura na conscincia
dos homens. Isto significa, tambm, a passagem do objetivo ao subjetivo e da necessidade liberdade. A estrutura, fora exterior que esmaga o homem, assimilando-o e o tornando passivo, transforma-se em meio de
liberdade, em instrumento para criar uma nova forma tico-poltica, em
origem de novas iniciativas. (GRAMSCI, 2011a: 314-315)
Para ele, a diviso entre governantes e governados at necessria em determinado nvel de
desenvolvimento social, porm no como uma perptua diviso do gnero humano, mas
apenas como um fato histrico, correspondente a certas condies (COUTINHO, 2007: 138).
Gramsci tambm criticou a construo stalinista do socialismo, e toda a linha da Internacional
Comunista de 1929 a 1943, que pressupe ser iminente o colapso do capitalismo e a crise para
haver um ataque frontal e sangrento entre as classes sociais. Esse ataque o que Gramsci
chama de Guerra de movimento. Ele no descarta essa possibilidade em alguns contextos,
mas no caso do Estado ampliado das democracias, a disputa necessria tambm se faz na
sociedade, e a essa disputa especfica se d o nome de Guerra de posio.
Portanto, na Guerra de Posio que atravessa uma crise de hegemonia,
preparando-a ou dando-lhe progressivamente soluo, no h lugar para a espera messinica do grande dia, para a passividade espontanesta que conta com desencadeamento de uma exploso de tipo catastrfico como
condio para o assalto ao poder (COUTINHO, 2007: 155).
Sua concepo de crise nessa situao de uma crise orgnica, que vai se instaurando na
medida em que a dominao questionada discursivamente e o senso comum comea a dar
lugar conscincia, sendo necessrio, a quem est no poder, um apelo mais drstico da
coero. Isso explica por que, mesmo em regimes democrticos, h s vezes a impresso de
haver mais controle que liberdade. Trazendo tais premissas para os exemplos mais prximos,
temos j certa desconfiana do pblico telespectador brasileiro com relao s informaes
que so veiculadas nos canais abertos (que emitem muito do senso comum), certa crise de
representatividade que leva busca por outras informaes na Internet, disseminao de
blogs, criao de mdias independentes. Esta crise tambm abrange os representantes polticos
executivos e parlamentares. Uma das discusses que se tm feito, por exemplo, acerca da
srie de manifestaes que ficou conhecida no Brasil como jornadas de junho (2013) de que
tal crise de representatividade a permeou, e ao mesmo tempo em que o senso comum e a
prpria mdia era questionada, a coero do Estado com seus aparatos militares aumentava
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contra os manifestantes.
Para resolver essa crise definitivamente, segundo Gramsci, preciso envolver cada vez a
maior parcela da populao explorada na soluo de seus prprios problemas, lutando
cotidianamente por conquistar espaos e posies de modo que a estrutura cada vez mais
desigual das relaes materiais tambm se transforme.
A guerra de posio exige enormes sacrifcios de massas imensas de populao; por isto, necessria uma concentrao inaudita da hegemonia e,
portanto, uma forma de governo mais intervencionista, que mais abertamente tome a ofensiva contra os opositores e organize permanentemente a impossibilidade de desagregao interna: controles de todo tipo, polticos, administrativos, etc., reforo das posies hegemnicas do grupo dominante, etc. Tudo isto indica que se entrou numa fase
culminante da situao poltico-histrica, porque na poltica a guerra de posio, uma vez vencida, definitivamente decisiva. (GRAMSCI, 2011b: 255)
O trabalho de campo a ser visto mais adiante na Cidade de Deus demonstra que, com as
ofensivas do Estado e sua nova poltica de segurana pblica (Unidades de Polcia
Pacificadora) dentro das favelas, est cada vez mais arriscado abordar assuntos livremente na
mdias comunitrias, e seus integrantes tm sido levados a medir palavras, enquanto os
confrontos armados continuam, direitos humanos so feridos e moradores perdem suas vidas.
Nesse sentido, os aparelhos privados de hegemonia da sociedade civil, uma vez que no so
todos de domnio exclusivo das fraes de classe dominante, tambm tm o papel importante
de desconstruir dada hegemonia, de promover uma real transformao. Na guerra de posio,
os aparelhos reconhecidamente atuantes por uma transformao social ou revoluo so
considerados (por leitores de Gramsci posteriormente) contra-hegemnicos. Vamos aqui nos
aprofundar na questo dos meios de comunicao, que, quando apropriados pelas fraes de
classe dominadas na medida em que ocupam espaos passam a ser potencialmente
instrumentos transformadores e questionadores (e no mais geradores de consenso). Ainda
ser visto nos prximos captulos os exemplos empricos na Cidade de Deus.
1.3 GANHOS E PERDAS NO PROCESSO DE DEMOCRATIZAO DA MDIA
Segundo a interpretao de Coutinho (2007), a conquista de espaos na guerra de posio a
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capacidade de fazer poltica, e a democracia, ainda que com moldes liberais, j uma
conquista que deve ser conservada e aprofundada ele fala da democratizao da economia
em A Democracia Como Valor Universal (1979), ao que se pode acrescentar agora a
democratizao da comunicao.
A proliferao de movimentos de massa caracterstica da modernidade do sculo XX, com o
fortalecimento e crescimento dos sindicatos, associaes profissionais, partidos polticos,
comits de bairros e de empresas, etc. Tais fatos novos mecanismos atravs dos quais essas
massas populares e em particular a classe operria se organizam de baixo para cima e
constituem aquilo que poderamos chamar de sujeitos polticos coletivos (COUTINHO,
1979: 37) j configuravam um processo de socializao da poltica, o que permite alguns
ganhos sociais, mas tambm no deixa de garantir a prpria hegemonia, por vias democrticas
e aparentemente apaziguadoras.
Portanto, a prpria reproduo capitalista enquanto fenmeno social global que impe essa crescente socializao da poltica, ou seja, a ampliao do
nmero de pessoas e de grupos empenhados politicamente na defesa dos
seus interesses especficos (COUTINHO, 1979: 37).
Essa ideia de democracia est intimamente ligada participao popular. medida que a
sociedade vai se democratizando, os movimentos de massa, as empresas e outras entidades da
sociedade civil ou seja, os aparelhos privados de hegemonia vo ganhando mais poder.
1.3.1 AVANOS NOS DIREITOS SOCIAIS: MARCO CIVIL DA INTERNET E LEI DA RADCOM
A ampliao dos espaos no mbito do Estado so conquistas populares que, segundo
Peruzzo, se do pelos movimentos sociais a partir do momento em que eles deixam de se
antagonizar radicalmente ao poder pblico, no final dos anos 1980. Isso se d num processo
de conscientizao e organizao em torno das noes de direitos sociais:
A satisfao de certas necessidades passa de sua apreenso enquanto direitos
individuais para sua compreenso como direitos da pessoa humana e de todos que esto na mesma situao. Por exemplo, a noo de direito ao
atendimento mdico conduz de direito sade e, da, de direito ao posto
de sade. As reivindicaes incorporam ento o conceito de direito:
moradia, terra, escola, vida, enfim. (PERUZZO, 1998: 61-62)
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Na esfera do poder pblico (em especial, o legislativo), pode-se visualizar bem a Guerra de
Posio entre os grandes conglomerados de empresas e os ativistas pela democratizao da
comunicao. Na Constituio Federal, foram estabelecidos princpios que se relacionam
comunicao, mas que se limitam formalidade, estando num primeiro momento distantes,
portanto, da prxis. O direito liberdade de opinio e expresso, por exemplo, no diz
respeito somente ao emissor no processo comunicacional: Qualquer cidado possui tanto o
direito ao acesso informao quanto ao de emitir sua prpria mensagem (Constituio
Federal, artigo 220). Porm, ao se tratar da Comunicao Social, a emisso apenas o
privilgio de alguns grupos poderosos na sociedade, cabendo s massas apenas o papel de
receptor. Dnis de Moraes j nos elucidou alguns dados sobre essa questo:
Segundo relatrio divulgado em agosto de 2007 pela Article 19, organizao
no-governamental voltada liberdade de expresso, aguda a concentrao da televiso aberta no Brasil: Seis empresas de mdia controlam o mercado de TV no Brasil, um mercado que gira mais de US$ 3 bilhes por ano. A
Rede Globo detm aproximadamente metade deste mercado, num total de
US$ 1,59 bilho. Estas seis principais empresas de mdia controlam, em conjunto com seus 138 grupos afiliados, um total de 668 veculos miditicos
(TVs, rdios e jornais) e 92% da audincia televisiva; a Globo, sozinha,
detm 54% da audincia da TV2. (MORAES, 2009: 112-113)
Porm, h algumas mudanas em curso na legislao que merecem ser analisadas, j que
representam o processo de democratizao, ou de socializao da poltica. Aqui sero dados
dois exemplos.
Em 1998 foi aprovada e publicada no Dirio Oficial da Unio uma lei que possibilitava que
rdios comunitrias existissem de forma legal (Lei n 9.612). So regras especficas para o
servio de radiodifuso comunitria, diferenciando-o, portanto, daquele prestado pelas
grandes empresas de comunicao, a radiodifuso comercial. Isto, porm, teria sido uma
vitria do movimento, se a lei no trouxesse mais entraves atuao das rdios.
A lei s permite que exista uma rdio comunitria por bairro e que alcance uma rea limitada
por um raio igual ou inferior a mil metros a partir da antena transmissora. Na prtica, isso
significa que um bairro como o de Jacarepagu, de grande extenso territorial localizado na
Zona Oeste do Rio de Janeiro, s pode ter uma rdio comunitria. A Cidade de Deus, com
2 Disponvel em: Acesso
em: 15/04/2014.
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seus 65 mil moradores e vrias subdivises, se encontra em Jacarepagu. Uma rdio com
alcance de um quilmetro de raio dentro da CDD no conseguiria atingir todo o territrio da
favela. Aqui se nota o discurso tcnico, como visto no primeiro item, se sobrepondo
necessidade cotidiana. Alis, os moradores j relataram existir uma rdio comunitria
aprovada no bairro vizinho de Curicica, comandada por um miliciano, razo pela qual foram
informados no poderem criar sua prpria rdio.
Tambm punvel com multa a publicidade comercial: apenas a notificao de apoio cultural
pode ser inserida na rdio, sem nenhuma especificidade sobre a atividade do anunciante, qual
o servio ou sua localizao. Isso dificulta ainda mais o sustento do veculo, que poderia
utilizar-se do comrcio local, contribuindo para a valorizao deste. Na prtica, so doaes e
trabalho voluntrio que cobrem os custos e demandas do veculo.
Para que a rdio atenda aos requisitos para pedir sua outorga, tambm necessrio que haja
cinco CNPJs de entidades sem fins lucrativos na comunidade, o que muitas vezes no
possvel. Alm disso, a lei determina que as rdios comunitrias funcionem em um nico e
especfico canal na faixa de frequncias, de potncia limitada a um mximo de 25 watts ERP
(effective radiated power)3 e altura do sistema irradiante no superior a trinta metros. Caso as
ondas da rdio RadCom criem qualquer interferncia de modo levemente perceptvel nas
rdios comerciais, ela pode ser fechada pela Anatel. No entanto, a lei afirma que nada ser
feito caso as ondas de uma rdio comercial interfiram na rdio comunitria:
As emissoras do Servio de Radiodifuso Comunitria operaro sem direito
a proteo contra eventuais interferncias causadas por emissoras de
quaisquer Servios de Telecomunicaes e Radiodifuso regularmente instaladas, condies estas que constaro do seu certificado de licena de
funcionamento. (Lei n 9.612, art. 22)
Com essas caractersticas, cabe questionar se a legislao veio para reconhecer ou dificultar a
atuao das rdios comunitrias. Ao contrrio do que se esperava de uma lei reguladora, ela
dificulta ainda mais o acesso ao direito de comunicar.
Outro exemplo mais recente a tramitao do Marco Civil da Internet (PL 2126/2011)4,
projeto de lei construdo coletivamente por diversos setores da sociedade. Aps trs anos de
3 Essas so medidas utilizadas para calcular a potncia das ondas de rdio emitidas.
4 Disponvel em: Acesso em: 15/04/2014.
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debates e peties on-line, o projeto de iniciativa popular foi aprovado na Cmara dos
Deputados em 25 de maro de 2014, passando a ser submetido ao Senado Federal sob o
nmero PLC 21 de 2014 sendo aprovado, ento, no dia 22 de abril pelo Senado e
sancionado no mesmo dia pela Presidenta Dilma Rousseff durante o evento NET Mundial5.
A justificativa de tal regulao se deu pela premissa de que a internet um meio democrtico
de circulao de informao e de liberdade de expresso, o oposto do que se tornaram outros
veculos, como os de radiodifuso. A neutralidade da rede e a privacidade dos usurios se
configuraram, dessa forma, como grandes pontos de discusso, gerando conflito entre alguns
setores da sociedade civil e as empresas de telecomunicaes.
Nos termos de privacidade de servios pretensamente gratuitos, como o Google e o Facebook,
as informaes pessoais dos internautas so colocadas como produtos a serem
mercantilizados, vendidos a empresas que se baseiam em padres de consumo para
desenvolverem suas mercadorias. Com a aprovao do Marco Civil, especialmente do art.7,
que define que fotos e textos que foram excludos pelos usurios sejam efetivamente
apagados, a privacidade tende a ser mais respeitada. Porm, no art. 15, que gerou mais
polmicas, havia na redao original a permisso a autoridades judicirias e administrativas
a requisitar as informaes de acesso do usurio que, pelo projeto, deveriam ser guardadas por
at seis meses o que, aps campanhas em prol do veto do artigo, foi alterado para apenas
delegados de polcia e o Ministrio Pblico. Alm disso, o projeto de lei define que os dados
s podero ser vendidos com a expressa autorizao dos usurios.
A partir dessas informaes, se transparece o movimento ondulatrio das conquistas
histricas, com avanos e retrocessos para os setores populares da sociedade civil. Quanto
maior o nvel de socializao da poltica, menos linear e mais contraditrio se torna esse
processo j que o esforo pelo consenso e a coero operam juntos, pondo em maior ou
menor risco a hegemonia j instituda.
5 Disponvel em: Acesso em: 15/04/2014.
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1.3.2 A COERO DO ESTADO: HERANAS DA DITADURA?
Enquanto a democratizao da comunicao vem ganhando espao dentro dos fruns e das
tentativas de regulamentao das mdias, a hegemonia dos meios de comunicao de grande
circulao ainda mantida pelas formas de burocracia e coero do Estado. Na sociedade
civil, j se vislumbra crises de representao que colocam em xeque o consenso, o que
reafirma ainda mais a necessidade de se tornar mais incisivo o apelo coero. Algumas leis
ainda mantidas desde o regime militar e algumas aes de rgos do Estado legitimam essa
dominao.
De acordo com o que define o Cdigo Brasileiro de Telecomunicaes (Lei n 4.117) de 1962
e alterado em 1967, qualquer organizao que pretenda administrar uma frequncia de rdio
(radiodifuso de som) ou de televiso (radiodifuso de som e imagem) precisa possuir uma
autorizao do Estado. A concesso dessas frequncias no depende de edital pblico e no
transparente: a responsabilidade pelo gerenciamento do espectro de radiodifuso no pas
atribuda Agncia Nacional de Telecomunicaes (Anatel). Ela , portanto, responsvel por
selecionar quem deve ou no ter o poder de administrar um meio de comunicao utilizando a
radiodifuso. As concesses tm validade de 10 (rdio) e 15 (TV) anos, renovveis.
H consideraes sobre o risco de formao de monoplio ou oligoplio dos meios. O decreto
n 236, de 1967, impede, em teoria, que haja demasiada concentrao de veculos de
comunicao no pas, determinando que uma mesma entidade tenha permisso para
administrar, no mximo: (a) dez estaes de rdio, quando locais; (b) seis estaes de rdio,
sendo at duas por estado, quando regionais; (c) quatro estaes de rdio, quando nacionais.
No so computadas, no entanto, as estaes retransmissoras de contedo: como exemplo, a
TV Oeste, no oeste da Bahia, ou a TV Amap, que retransmitem os principais programas
nacionais da Rede Globo, enquanto nos programas locais, fazem sua prpria cobertura. Com
essa falta de controle sobre as retransmisses, observa-se que uma mesma empresa pode deter
grande nmero de emissoras retransmitindo seu contedo com facilidade, como o caso da
Globo, que, contando com as afiliadas, possui 227 veculos. E, em um pas em que seis
empresas controlam 668 veculos, e 92% da audincia televisiva, como j foi visto acima em
Moraes, pode-se observar que no h um real impedimento formao de oligoplio.
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O Brasil tambm assinou tratados internacionais dentro de parmetros nos quais nossos
legisladores deveriam apoiar-se, mas e por diversas vezes os organismos internacionais j
denunciaram o no cumprimento desses acordos. O Cdigo de Telecomunicaes nunca foi
reformulado, e mesmo as novas leis, como a das Rdios Comunitrias, que esto submetidas a
esse Cdigo, no seguem os padres propostos. A Conveno Americana de Direitos
Humanos, ou Pacto de San Jos, assinada em 1969, conta com uma Relatoria Especial para a
Liberdade de Expresso. Essa relatoria apontou a necessidade de se garantir pluralidade nos
servios de comunicao, sendo uma parte dela referente regulao da radiodifuso e ao
servio de comunicao comunitria.
Entre os parmetros, consta que, nos pedidos de outorga, os critrios de avaliao no devem
se centrar prioritariamente no aspecto econmico. Porm, no Brasil, as condies financeiras
do proponente apresentadas em tais pedidos sempre levam vantagem nas avaliaes da
Anatel. Quanto maior o poder econmico ou poltico do grupo em questo, maior
probabilidade de manter a concesso. De acordo com Peruzzo, isso ocorre tambm nas
concesses das rdios comunitrias:
Acrescenta-se ainda a existncia de outras contradies no processo de
legalizao, pois o governo, com frequncia, autoriza o funcionamento de emissoras comunitrias ligadas a pessoas, igrejas ou a polticos em
detrimento de associaes comprovadamente constitudas com base em
entidades de cunho organizativo-comunitrio local, conforme exige a lei.
(PERUZZO, 2006b: 04)
Isso se confirma inclusive no territrio da Cidade de Deus: em reunio com alguns moradores
para discutir as metas de Comunicao e Cultura do Plano de Desenvolvimento Local6, eles
afirmaram que no seria possvel atingir a que correspondia criao de uma rdio
comunitria, pois j existiria a Rdio Curicica nas proximidades do bairro de Jacarepagu,
outorgada como RdCom pela Lei 9.612, mas que, segundo eles, seria comandada por um
policial envolvido com a prtica ilegal de milcia. Segundo a legislao, no pode haver
legalmente duas rdios comunitrias no mesmo bairro.
Na parte da relatoria da Comisin Interamericana de Derechos Humanos (CIDH) intitulada Sobre
los medios comunitarios de radiodifusin, tambm est indicada a possibilidade de utilizao
de publicidade para o sustento dos veculos comunitrios, o que j foi visto que no
6 Disponvel em: Acesso em: 15/04/2014.
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permitido na Lei n 9.612.
La Relatora Especial sostuvo que la normativa sobre radiodifusin
comunitaria debe reconocer las caractersticas especiales de estos medios y contener, como mnimo, los siguientes elementos: (a) la existencia de
procedimientos sencillos para la obtencin de licencias; (b) la no exigencia
de requisitos tecnolgicos severos que les impida, en la prctica, siquiera que puedan plantear al Estado una solicitud de espacio; y (c) la posibilidad
de que utilicen publicidad como medio de financiarse. (CIDH, 2010)7
A AMARC (Associao Mundial de Rdios Comunitrias), por sua vez, baseia-se tambm no
Direito Humano Liberdade de Expresso, e publicou em 2009 o documento Princpios para
um marco regulatrio democrtico sobre rdio e TV comunitria, apresentando 14 pontos
para articular um programa de legislao.
O trabalho mapeou experincias de regulamentos bem encaminhados em outros pases, em
uma anlise comparada efetuada por diversos especialistas. Os princpios expostos na
publicao abordam desde o reconhecimento e definio de rdios e TVs comunitrias at seu
financiamento e polticas pblicas de incentivo. A Associao defende que seja feito um
marco regulatrio que reconhea trs diferentes modalidades de radiodifuso: pblico/estatal,
comercial e social/sem fins lucrativos (Amarc, 2009: 02) - neste ltimo onde se incluem os
meios propriamente comunitrios. Tambm h a considerao do Acesso Universal, que se
contrape s limitaes da atual legislao brasileira:
06. Acesso universal: Todas as comu