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Cobertura ao Vivo em Televisão: o Improviso e o Testemunho em Situações de Tragédia1
Juliana Motta2 Anelise Rublescki3
Universidade Federal de Santa Maria Resumo Desenvolve uma análise comparativa entre as rotinas produtivas do jornalismo televisivo diário e a cobertura ao vivo em situações de tragédia. Destaca a importância das fontes testemunhais como sinal de marcação de realidade e aborda diferentes aspectos do improviso do tempo real. Metodologicamente, é um artigo teórico-empírico, que verticaliza a discussão sobre o trabalho do repórter de televisão em coberturas ao vivo de tragédias, através de revisão da literatura e de um estudo de caso do incêndio na boate Kiss, em janeiro de 2013, em Santa Maria, RS. Palavras-chave Televisão cobertura ao vivo; tragédia; fontes testemunhais; improviso.
Introdução
“A gente segue com o número de 245 mortos e agora à tarde continua o trabalho de reconhecimento.” (Globo Notícia – 27/01- 13h30 min)
“A impressão que eu tenho é que as pessoas não acreditam em tudo o que ocorreu: 233 mortos” (Domingão do Faustão – 27/01- 17 horas)
O jornalismo tem como premissa básica fornecer informações corretas e bem apuradas.
Nesse sentido, o que as duas citações acima demonstram é um paradoxo, que retrata
uma característica das coberturas ao vivo de tragédias: a dificuldade de apurar e
conseguir informação em um ambiente de desordem onde nem as fontes oficiais têm
dados confiáveis.
1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Estudos em jornalismo do IV SIPECOM - Seminário Internacional de Pesquisa em Comunicação 2 Jornalista, aluna especial no programa de Pós-graduação da UFSM, repórter da RBS TV e editora do RBS Notícias. julianamottadeoliveira@hotmail.com 3 Jornalista, doutora em Comunicação e Informação (UFRGS), pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação (UFSM). Bolsista Capes-Fapergs. E-mail: anelise_sr@hotmail.com.
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Pressionados pela urgência de novas informações a cada entrada ao vivo e sem poder
contar e/ou esperar pela confirmação das autoridades, os jornalistas buscam subsídios
no depoimento das fontes testemunhais. Trata-se de uma abordagem jornalística que
subverte a apuração das notícias, onde o “ao vivo” é pautado pela experiência imediata,
num primeiro momento ainda desprovido de análise e contextualização.
O objetivo do artigo é verticalizar a discussão sobre o trabalho do repórter de televisão
em cobertura ao vivo de tragédias. Além da abordagem sobre os testemunhos, o artigo
também analisa o uso do improviso, recurso que se contrapõe à característica da
televisão - onde segundos são contados - mas que se faz necessário frente à sequência
de muitas participações ao vivo. Para dar materialidade à análise proposta, o artigo
apresenta um estudo de caso sobre o incêndio da boate Kiss, ocorrido no dia 27 de
janeiro de 2013, em Santa Maria, RS.
Um início “ao vivo”
O primeiro telejornal, chamado “Imagem do Dia”, foi exibido em 19 de setembro de
1950 pela TV Tupi de São Paulo. Nesse dia, os ainda poucos telespectadores
acompanharam as primeiras notícias narradas por um locutor. Isso porque as câmeras
cinematográficas da RCA norte-americana já ofereciam a possibilidade de exibição
direta dos acontecimentos, com entradas ao vivo e em tempo real.
Nas três horas de programação diária, havia filmes, espetáculos de auditório e noticiário, sempre com a programação em tempo real. Para que isso fosse possível, as emissoras utilizavam a experiência dos profissionais de rádio acostumados a uma narrativa constante (MORAES, 2006, p.31).
A alternativa à transmissão ao vivo implicava numa exibição mais trabalhosa e tardia,
pois era preciso revelar os filmes, montá-los e sonorizá-los para só depois serem
veiculados (CAVENAGHI, EMERIM, 2012). Assim, pode-se dizer que a exibição dos
fatos “ao vivo” está presente desde o princípio da televisão. No entanto, a partir da
década de 60, com a chegada do videotape no país, o caráter “instantâneo” do meio foi
perdendo espaço ao ser, gradativamente, substituído por uma novidade tecnológica da
época: a gravação, com outro modo de se fazer e de levar novos conteúdos ao público.
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A ideia de que as grandes produções poderiam ser gravadas previamente não mais sendo veiculadas ao vivo apenas uma única vez, que poderiam ser veiculadas mais de uma vez em locais diferentes, levadas de emissora em emissora pelo País inteiro, através de fitas portáteis e transportáveis modificaria totalmente o cenário da televisão brasileira. A transformação afetaria a grade de programação cotidiana, alteraria o perfil dos profissionais necessários para manter uma televisão no ar, traria as modificações profundas no cenário comercial e na expectativa do público telespectador (BERGESH4, 2010 apud CAVENAGUI, EMERIM, 2012, p. 6).
Contudo, apesar dessa redução da programação “ao vivo”, é preciso destacar o
crescimento e salto de qualidade do veículo a partir da gravação de programas e,
posteriormente, ao uso de equipamentos de edição de imagens. Para Cavenaghi e
Emerim (2012), a consolidação do videotape ainda provocou outra conseqüência, desta
vez no público: a dificuldade de diferenciar os conceitos de ao vivo (transmissão direta)
e de gravação ao vivo. Conceitualmente e como rotinas produtivas no jornalismo
televisivo, são modalidades distintas.
A partir da reflexão de Fechine (2008)5, Cavenaghi e Emerin (2012) definem
“transmissão direta” como sendo aquela em que exibição dos acontecimentos é ao vivo,
sem cortes e em tempo real, ou seja, simultaneamente à ocorrência do fato. Já o termo
“gravação ao vivo” (gravado direto) refere-se “a um tipo de procedimento de registro e
que pode ou não ser editado, mas mantém a sintaxe de uma exibição simultânea a
ocorrência do acontecimento registrado.”
Dessa forma, convém esclarecer que o objeto deste artigo é a cobertura ao vivo do
incêndio na Boate Kiss e dos desdobramentos da tragédia e não das gravações ao vivo.
O “ao vivo” - em situações de normalidade
O “ao vivo” é bastante utilizado na televisão para dar a ideia de agilidade e de
imediatismo ao mostrar o fato no momento em que ele está ocorrendo.
[...] Observa-se uma tendência à utilização cada vez maior da transmissão direta pelos telejornais tanto para a produção de um
4 BERGESH, Walmor. Os televisionários. Porto Alegre: Ardotempo, 2010. 5 FECHINI, Yvana. Televisão e presença. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2008.
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efeito de atualidade na divulgação da informação quanto para a construção de um sentido de presença entre os sujeitos envolvidos na comunicação (FECHINE, 2006, p. 1).
Na prática, nos telejornais, o recurso pode ser usado em diversas situações, como para
atualizar informações obtidas após a edição da reportagem. Assim, a maior parte dos
fatos - com suas contextualizações e consequências - é retratada na reportagem e, então
ao vivo, são transmitidos os últimos detalhes da apuração, aqueles que ocorreram há
pouco tempo ou estão ocorrendo no momento. Isso é feito pelo repórter que,
geralmente, está no local do fato (pode estar, também, em um “fundo neutro6”). Além
de transmitir as novas informações, o repórter ainda pode “chamar a reportagem”, ou
seja, ele é questionado pelo apresentador do telejornal, informa a situação atual do
assunto e, em seguida, “chama”, introduz a exibição da reportagem que ele mesmo - ou
outro colega- fez sobre o fato.
Outra possibilidade muito comum é apenas a entrada, ao vivo, do repórter no telejornal
com “ilustra de imagens”, isto é, enquanto ele passa as informações ao telespectador são
veiculadas imagens do fato que já ocorreu. Essa modalidade, normalmente, é empregada
quando não há tempo hábil para a produção de uma reportagem ou, por uma avaliação
editorial, não cabe fazê-la.
Após a apresentação desses exemplos é pertinente lembrar a diferença entre tempo real
e tempo atual. Nas situações acima citadas - em que o fato não está ocorrendo no
momento exato da transmissão - estamos falando em tempo atual, ou seja, o repórter
está falando ao vivo, mas sobre acontecimentos que ocorreram no passado.
Como a maioria dos fatos noticiados por um telejornal não ocorre enquanto o programa está no ar, a transmissão direta passa a ser parte as estratégias que visam simular uma proximidade temporal entre a sua ocorrência e a sua transmissão pelo telejornal. A configuração de tempo atual está associada a essas situações nas quais um repórter entre “ao vivo” para falar de algo que ele próprio situa em um momento anterior (passado) em relação ao presente do telejornal e, consequentemente, não concomitante com o agora de sua transmissão (FECHINE, 2006, p. 2).
6 Entende-se por “fundo neutro” o local que não faz referência a nenhum tema específico, por isso pode ser usado como cenário para qualquer assunto.
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Ou seja, em situações de normalidade predomina o tempo atual nas entradas “ao vivo” e
nas situações de cobertura de tragédia, a cobertura inicial é em tempo real, com as
transmissões (ao vivo) do acontecimento no exato momento em que ele se desenvolve.
A entrada “ao vivo” também é, frequentemente, usada para antecipar um fato que ainda
vai ocorrer. Por exemplo: antes de uma partida de futebol, o repórter mostra a
movimentação ao redor do estádio, as filas para a entrada, o trânsito. Cabe lembrar
ainda, que a apresentação dos telejornais nas grandes redes de televisão é sempre ao
vivo, justamente, para veicular a informação mais atualizada possível. Além disso,
observa-se que a cobertura ao vivo do local do acontecimento serve como efeito de
realidade para o jornalismo.
Em situações normais de trabalho, a entrada ao vivo é “imprevisível” apenas no aspecto
de sua realização no local. Por estar ao vivo, em tempo real, o repórter e a transmissão
estão sujeitos a falhas de som, na locução do jornalista, de algum veículo ou alguém não
previsto passar ao fundo; enfim, algo não planejado poder ocorrer. Contudo, em
coberturas ao vivo em situações de normalidade, geralmente, tudo é programado.
O profissional tem condições para apurar as informações, consultar fontes, definir
previamente o que será falado, redigir o texto e até mesmo “decorá-lo”. Como o tempo
no telejornal é extremamente rígido, nas redações usa-se um programa de computador
para calcular os segundos que serão gastos para falar determinado texto, de acordo com
o ritmo e velocidade de narração de cada pessoa. Assim, muitas vezes, o repórter redige
a fala neste programa para ter a noção de quantos segundos vai precisar para a entrada
ao vivo. Se o tempo disponível for menor, o texto é diminuído. Esse mesmo recurso é
usado pelos âncoras dos telejornais que ainda têm a facilidade de outro equipamento- o
teleprompter - com o qual é possível ler o texto durante a apresentação. Até mesmo os
comentários que parecem naturais e espontâneos são, muitas vezes, lidos. Geralmente,
não há lugar para o improviso nas entradas ao vivo em situações de normalidade. É uma
prática profissional totalmente diversa da cobertura de tragédias.
O “ao vivo”- em situações de tragédia
Antes de abordarmos as características das entradas ao vivo em situações de tragédia é
conveniente salientar o que autores entendem por tragédia e catástrofes. Amaral (2013)
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cita Lozano Ascêncio (2002) para exprimir a visão sobre o tema: “a catástrofe subverte
a ordem e o relato da catástrofe estabiliza a ordem.” A ideia é complementada com
“uma catástrofe só existe se destrói.” Delevati (2012) também lembra o autor para
explicar que “o que diferencia um acontecimento catastrófico de um não catastrófico
seria a maneira como os sujeitos percebem e referenciam o acontecimento que mexe
com sua estabilidade habitual” (DELEVATI, 2012, p. 49).
A desorganização da ordem normal provocada pela catástrofe atinge toda a sociedade
que, de alguma maneira, está envolvida no fato. O conceito de catástrofe está associado
ao de desastre, podendo ser natural, como um tsunami, ou provocada pelo homem,
como uma guerra, por exemplo. Já o termo tragédia, embora também possa estar
associado com uma catástrofe, refere-se, normalmente, a um crime passional ou a um
acontecimento com numerosas vítimas.
Em uma situação de tragédia, como a do incêndio da boate Kiss, o cenário costuma ser
de caos absoluto, principalmente nas primeiras horas. Em casos assim, a grande
dificuldade do jornalista é conseguir apurar as informações em um momento em que as
fontes oficiais - bombeiros, polícias civil e militar, defesa civil – as quais, em tese, têm
as informações confiáveis, trabalham para socorrer vítimas e isolar a área; não sabendo,
ainda, ao certo o que ocorreu. A necessidade de informar, cada vez mais rápido, não
permite que o repórter espere o ambiente ser “normalizado” e nem que as autoridades
terminem o seu trabalho e tenham tempo para explicar os fatos. Cabe ao repórter achar
meios que possibilitem a ele próprio e aos telespectadores entenderem, pelo menos em
parte, o que ocorreu. Entre as alterações nas rotinas produtivas usuais no jornalismo
observa-se o uso de fontes testemunhais em substituição às fontes oficiais, o que se
aborda a seguir.
Fontes testemunhais e improviso: mudanças nas rotinas produtivas
Em uma das mais tradicionais classificações de fontes, Nilson Lage (2001) as aborda
sob três critérios distintos. A primeira, que toma como critério o lugar de fala da fonte,
as conceitua como oficiais (falam em nome da organização à qual pertencem), oficiosas
(reconhecidamente ligadas a uma entidade ou indivíduo, mas não autorizadas a falar em
nome dela ou dele) e as independentes.
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Uma segunda diferenciação feita pelo autor, com o critério a origem dos dados,
classifica as fontes em primárias e secundárias. São consideradas como primárias
aquelas em que o jornalista se baseia para colher o essencial de uma matéria; as que
fornecem fatos, versões e números. As fontes secundárias são consultadas para a
preparação de uma pauta ou a construção das premissas genéricas ou contextos
ambientais
Por último e especialmente relevante neste artigo, o autor diferencia as fontes sob outro
ângulo, classificando-as como experts (geralmente fontes secundárias, especialistas no
assunto e aptas para analisar um fato) e testemunhas. O autor ressalta a importância de
as testemunhas serem ouvidas o mais rápido possível para garantir a veracidade do
relato, já que “o testemunho é normalmente colorido pela emotividade e modificado
pela perspectiva” (LAGE, 2001, p.68).
Em um cenário como o incêndio da boate Kiss, observa-se que as fontes testemunhais
tornam-se imprescindíveis na apuração do acontecimento, mesmo que sejam relatos
fragmentados, emotivos e individuais. Baseada em Gomes (2000), Amaral afirma que
“os testemunhos funcionam como sinal de marcação de realidade. Trata-se de um
exercício de referencialidade, de remetência a um real de suposta plenitude.” Rodrigues,
citado por Amaral, complementa a ideia de testemunho:
É a comunicação que existe entre alguém que teve a experiência directa e imediata de um acontecimento ou de um fenômeno que a comunica a outra pessoa que não teve a mesma experiência directa e imediata (RODRIGUES, 19977, apud AMARAL, 2013, p. 78).
É com base no relato dessas fontes testemunhais que o repórter vai reconstruindo a
história e, ao mesmo tempo, transmitindo-a ao telespectador. A “reconstrução” ocorre
aos poucos, à medida que novos detalhes vão sendo apurados. Concorda-se com Amaral
(2013a) quando pondera a autora sobre a necessidade de passar do “singular” para o
7 RODRIGUES, Adriano Duarte. Comunicação e experiência. 1997. Online. Disponível em: <http://bocc.ubi.pt>. Acesso em: 6 ago 2013.
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“particular” das notícias8, para, através da contextualização, as matérias possam,
efetivamente, gerar conhecimento e evitar a espetacularização do relato jornalístico.
É a partir do relato singular que a informação jornalística constrói o mundo público. Cada veículo elege um aspecto singular para enquadrar a notícia e necessita, com o amadurecimento da apuração, realizar a contextualização, ou seja, aprofundar os aspectos particulares, mostrar o que aquele fato tem em comum com outros e em que cadeia de acontecimentos ele se localiza. Percebe-se que passados os primeiros momentos da tragédia, o jornalismo busca o particular. (...) Quando a cobertura jornalística retarda na apuração dos fatos, a particularização não se realiza imediatamente e as notícias ficam circunscritas ao singular e, portanto, ao aspectos sensacionais. Ou seja, os aspectos dramáticos são próprios de fatos como esses, mas não podem presidir a cobertura por demasiado tempo, por mais complexo que seja seu aprofundamento (AMARAL, 2013a, online.).
É importante salientar também, outro aspecto do trabalho do repórter que é modificado
durante uma cobertura de tragédia, ao vivo: o texto e a forma de apresentá-lo ao
público. Conforme mencionado anteriormente, em situações de normalidade, a entrada
ao vivo é planejada em todos os sentidos: o horário da participação e o tempo disponível
são definidos previamente, assim como o texto é redigido e memorizado com
antecedência. Já nas coberturas de tragédias, dificilmente é possível ter planejamento
rigoroso. No caso da Kiss, as entradas ao vivo foram inúmeras e não só em programas
jornalísticos, mas de entretenimento e até mesmo durante os intervalos comerciais.
Torna-se latente a dificuldade de elaborar um texto da maneira ideal e ainda diferente
para cada participação. O que se observa, nesses casos, é que o repórter se vê obrigado a
improvisar a sua fala. No entanto, quando se fala em improviso, não se está defendendo
a falta de conteúdo e a subjetividade. Apesar de não se ter um texto fixo, é preciso
continuar seguindo os preceitos básicos do jornalismo: objetividade, clareza, correção.
Heródoto Barbeiro, âncora da TV Cultura, faz uma reflexão sobre o improviso:
[...] a gente não pode entender o improviso como sendo a “encheção de lingüiça”, ou seja, quando você começa a falar aleatoriamente um
8 Refere-se a autora a arquitetura teórica proposta por Adelmo Genro Filho no livro O segredo da pirâmide, no qual o jornalismo como forma de conhecimento é analisado pelas categorias do “singular”, “particular” e “universal”. GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide. Porto-Alegre: Tchê, 1987.
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monte de coisa apenas para ocupar um determinado espaço no ar que precisa ser preenchido por algum ruído e o seu ruído é o improviso. (...) o improviso é o seguinte: é quando eu não tenho o texto escrito, mas eu tenho as informações, elas foram checadas, elas têm a acurácea e eu sou capaz de elaborar mentalmente e depois traduzir isso oralmente em cima de fatos reais e de fatos acontecidos. Então eu acho que esse é o bom improviso (BARBEIRO, 20069 apud MORAES, 2006, p.121).
O improviso é utilizado não só em situações em que não há tempo para redigir o texto,
mas também quando o repórter precisa descrever o que está acontecendo naquele
determinado instante da transmissão. O improviso ainda é uma forma de deixar a fala do
repórter mais coloquial, o que resulta na aproximação com o telespectador. Bara,
Coutinho e Vargas (2012) afirmam que a informalidade da transmissão direta promove
uma maior identificação com o público, promovendo o sentido e o efeito de presença,
uma espécie de “co-presença” entre todos os sujeitos envolvidos na comunicação.
Na sequência, evidenciam-se estas características da cobertura ao vivo na tragédia da
boate Kiss.
Estudo de caso: a tragédia da boate Kiss 27 de janeiro de 2013. Rio Grande do Sul, Santa Maria.
Uma cidade de aproximadamente 280 mil habitantes e com forte característica
universitária - são sete instituições de ensino superior - é despertada, ainda na
madrugada de domingo, por uma tragédia: o incêndio na boate Kiss. Na frente da casa
noturna, o caos: fumaça; jovens correndo e caindo desacordados; pessoas sendo
reanimadas na calçada; corpos no chão; ambulâncias e caminhões de combate ao fogo;
bombeiros e voluntários entrando, a todo momento, na boate para resgatar vítimas;
paredes sendo quebradas a marretadas para ventilar o prédio- sem janelas e com uma
única porta.
Esse foi o cenário que os primeiros jornalistas ao chegarem ao local encontraram. Uma
cena de guerra. O primeiro grande desafio- dos muitos que viriam ao longo do dia - para
os profissionais era entender o que estava ocorrendo. Como confirmar informações em
uma situação como essa? Seria correto retardar a transmissão tendo em vista a
9 Em entrevista com o autor, em 12/07/2005.
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dificuldade de apuração? Como ignorar as centenas de pessoas que, nas horas seguintes,
buscavam informações? E o compromisso com o telespectador?
A tragédia começou a ser esclarecida pelos próprios sobreviventes. Foram os jovens que
começaram a contar o que se passou dentro da boate. Uma das primeiras entrevistas
gravadas pela equipe da RBS TV de Santa Maria (afiliada da Rede Globo) foi com um
dos seguranças da boate que trabalhava naquela noite. Rodrigo Moura conseguiu sair do
local e retornou outras vezes para o interior da casa noturna para salvar vítimas. Ele
resgatou, pelo menos, três pessoas. E quando não havia mais chances de retirar ninguém
com vida, contou como a tragédia começou:
Tava acontecendo a festa com o show da Gurizada Fandangueira quando pegaram uma... show pirotécnico com fogos e aí a faisqueira começou a pegar fogo no teto. A gente foi pegar o extintor para ver se apagava e quando vi já tomou conta do local. E a gente pediu pras pessoas, pras vítimas saírem, daí no meio do tumulto começaram a se pisotear, teve gente que não teve tempo de sair. Eu consegui resgatar umas pessoas, levar lá na UPA ( unidade de pronto atendimento). Filme de terror10.
Foram depoimentos como esse que serviram de base para as primeiras informações
veiculadas pela televisão. Nas horas seguintes, a quadra da boate foi isolada e carros da
polícia colocados de maneira a interromper a rua, o que prejudicava a visão dos
jornalistas. Do cordão de isolamento era possível visualizar os caminhões em que eram
colocadas as dezenas de corpos dos jovens, mas não era possível quantificar o número.
Assim, os repórteres conseguiam novas informações quando os delegados de polícia
atendiam aos chamados da imprensa, ou quando alguma das pessoas envolvidas na
operação precisava deixar o local e passar pelos jornalistas.
Ainda sem condições técnicas de entrar ao vivo e tendo em vista a urgência de mostrar
ao telespectador o que estava ocorrendo em Santa Maria, a equipe da RBS TV gravou
um stand up 11 ilustrado com imagens gravadas na madrugada com as informações
básicas até o momento:
A movimentação aqui em frente à boate Kiss, em Santa Maria, ainda é bastante grande. A área está isolada. Um incêndio começou na boate, por volta das duas e meia da madrugada. Segundo depoimentos de testemunhas, o fogo teria começado quando um dos integrantes da banda segurava um artefato luminoso que liberou uma faísca e
10 Testemunho dado no local à equipe da RBS TV. 11 Texto falado pelo repórter que pode ou não ser coberto com imagens; também chamado de flash
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atingiu o teto. Os corpos ainda estão sendo retirados e levados em caminhões ao Centro Desportivo Municipal. Até agora, segundo a polícia, são 80 mortos, mas esse número deve aumentar. (repórter Juliana Motta, veiculado em nível estadual na RBS TV).
Cabe destacar que, no momento da gravação do stand up, a equipe tinha a informação
extra-oficial de que o número de mortos passaria de 120. No entanto, como em
situações de tragédia, os boatos e as informações desencontradas são comuns, os
jornalistas envolvidos até então na cobertura da tragédia, decidiram divulgar o dado
oficial da Polícia Civil, que era de 80 mortos. A contagem foi sendo atualizada à medida
que novas vitimas eram confirmadas pelas autoridades.
Já a primeira entrada ao vivo foi, por telefone, para o canal fechado e de abrangência
nacional Globo News. A participação durou cerca de 10 minutos e foi feita quando a
equipe saía do local da tragédia e se dirigia de carro até o Centro Desportivo Municipal
(CDM), para onde eram levados os corpos. No relato, foram passadas as informações
iniciais de como o fogo começara , o número de mortos que já havia subido para 90, o
resgate das vítimas e a mobilização no local: pais em busca dos filhos, jovens
procurando amigos, ambulâncias para socorrer familiares que passavam mal. Era
necessário, também, apurar rapidamente informações sobre a cidade. A equipe era
questionada sobre questões como população, o grande número de jovens de outras
regiões e estados que moram em Santa Maria para estudar na Universidade Federal,
bem como características das festas universitárias no local.
A primeira entrada em que a repórter apareceu ao vivo (com áudio e imagem) também
ocorreu no canal Globo News, por volta das 10 horas da manhã. A participação foi feita
da sede da emissora da RBS TV e contou com a primeira entrevista, ao vivo, de uma
autoridade sobre o caso. O comandante Geral dos Bombeiros do Rio Grande do Sul
passou informações sobre a lotação da boate: a capacidade seria para cerca de mil
pessoas, mas quase duas mil estariam no local naquela noite. O dado da capacidade,
posteriormente, foi corrigido pela própria corporação para 690 pessoas. Isso demonstra
a dificuldade de obter informações corretas em uma tragédia, pois até as fontes oficiais
que, nesse caso específico, têm a responsabilidade de estipular a capacidade e controlar
a documentação da casa noturna, passam dados errados. Ainda é importante lembrar que
essa informação foi reproduzida inúmeras vezes até ser corrigida - depois de um dia -
pelos Bombeiros. Outra informação equivocada foi em relação ao número de mortos.
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Em uma entrevista coletiva, ainda durante a manhã, as autoridades afirmaram que o
incêndio havia provocado 245 mortes. À tarde, o número foi corrigido para 231 e para o
público foi explicado que a informação havia sido passada erroneamente por Bombeiros
e Polícia.
Já a primeira entrada ao vivo, em um canal aberto de televisão e em rede nacional,
ocorreu no Esporte Espetacular. O programa, como o nome diz, dedicado ao esporte
cancelou grande parte da programação prevista para aquele domingo e abriu espaço para
falar sobre a tragédia. Além da entrevista com o comandante dos Bombeiros, a repórter
abordou as informações iniciais da tragédia e, mais uma vez, foi questionada sobre as
características da cidade. Uma tentativa clara de tentar compreender, de alguma forma,
o que ocorrera. Em uma situação como essa, não é exagero dizer que os jornalistas
tentam entender o fato, ao mesmo tempo em que transmitem a informação. Um exemplo
disso, ainda durante o Esporte Espetacular, ocorreu quando a apresentadora do
programa perguntou se a repórter já havia frequentado a boate. A resposta foi não. Caso
contrário, a própria repórter, com base na sua experiência pessoal, (isto é, como uma
fonte testemunhal) poderia esclarecer questões, por exemplo, se era difícil sair da boate,
se existiam obstáculos e se havia sinalização da saída de emergência. No programa,
também foram feitas entrevistas ao vivo, por telefone, com sobreviventes do incêndio.
O que reforça, mais uma vez, a importância das fontes testemunhais.
A partir do início da tarde, as entradas ao vivo seguiram da frente do CDM, local para
onde foram levados os corpos e no qual ocorreriam os reconhecimentos pelos
familiares. A RBS TV fez um programa especial ancorado por jornalistas em Porto
Alegre sobre a tragédia. Além das participações ao vivo de Santa Maria, foram exibidas
reportagens e entrevistas sobre a mobilização na cidade, a investigação policial, o
trabalho nos hospitais para atender às vítimas, a remoção dos pacientes para a capital, a
peregrinação dos pais em busca dos filhos, entre outros aspectos. As participações ao
vivo mostraram o “aspecto ambiental”, ou seja, o que estava ocorrendo naquele
momento no CDM, como a fila dos parentes à espera do reconhecimento, o atendimento
médico e psicológico às famílias e o trabalho dos profissionais de diferentes áreas que
se apresentaram como voluntários para ajudar. A cobertura ganhou ainda uma nova
abordagem: a solidariedade e a prestação de serviço ao divulgar os materiais (água,
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luvas, medicamentos) que precisavam ser doados para ser mantida a estrutura de
atendimento, como mostra a decupagem12 da entrada ao vivo no programa Globo
Notícia:
Apresentadora: Renata Ceribelli: Boa tarde. Voltamos a falar da tragédia da boate Kiss em Santa Maria. Vamos falar com a repórter Juliana Motta que tem informações sobre a visita da presidente Dilma Roussef. Boa tarde, Juliana.
Repórter: Boa tarde, neste momento todos os familiares e parentes das vítimas já foram encaminhados para fazer o reconhecimento. Uma grande fila se formou aqui em frente ao Centro Desportivo Municipal..., mas todos já foram encaminhados. A gente segue com o número de 245 mortos e agora, à tarde, continua o trabalho de reconhecimento. Uma informação das equipes de atendimento é a dificuldade em identificar as vítimas mulheres, porque as mulheres, geralmente, né, carregam os documentos em bolsas, e no tumulto acabaram perdendo essas bolsas. A maior dificuldade, então é para a de identificação das mulheres, os homens já foram todos identificados. As equipes de atendimento também fazem um apelo para quem puder doar determinados materiais como: papel higiênico, água e medicamentos, como calmantes. A situação é bastante dramática aqui, muito angustiante. São muitas pessoas em busca de informações, e por enquanto, não há uma lista oficial de mortos, apenas esse reconhecimento visual. O que temos de informação da policia é de que o proprietário da boate Kiss se apresentou na delegacia nesta tarde. Também temos a informação de que a presidente Dilma Roussef já está na cidade, mas por enquanto ainda não chegou aqui no CDM.
Paralelamente ao programa especial da RBS TV, foram feitas entradas ao vivo para a
Globo News e à Rede Globo (Globo Notícia e Domingão do Faustão). Em uma
sequência de tantas participações é difícil seguir a prática, comum de situações de
normalidade, de redigir o texto e memorizá-lo. Neste dia, foram tantas entradas que era
preciso encerrar a intervenção em um veículo para entrar em outro. Isso era necessário
porque a equipe que estava no CDM estava atendendo três canais simultaneamente:
RBS TV, Rede Globo e Globo News. Na decupagem acima, fica clara a ausência de um
texto fixo e a falta de “combinação” entre as equipes de estúdio e as de externa em
virtude do tempo. A apresentadora começa perguntando sobre a visita da presidente
Dilma Roussef, a repórter dá outras informações, afirmando, apenas no final que a
presidente estava em Santa Maria mas ainda não chegara ao CDM. O improviso pode
ser percebido ao longo da decupagem em diversos momentos, por exemplo, quando a
informação é repetida de maneiras diferentes: “neste momento todos os familiares e
parentes das vítimas já foram encaminhados para fazer o reconhecimento. Uma grande
fila se formou aqui em frente ao Centro Desportivo Municipal..., mas todos já foram
12 Aqui, usa-se “decupagem” no sentido de transcrição literal do texto falado pelo repórter.
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encaminhados.” O improviso, além de uma necessidade em situações de tragédia,
também é uma forma de deixar o relato mais informal e natural, como se fosse uma
conversa com ao telespectador, promovendo assim, uma aproximação com o público.
Note-se também, nessa transcrição, que o número errado, fornecido pela polícia e
bombeiros, de 245 mortos continuava sendo o divulgado. A informação foi corrigida,
em rede nacional, apenas a partir do programa Domingão Faustão:
O clima aqui é de uma extrema angústia. Eu acredito que seja praticamente impossível descrever essa situação. A impressão que eu tenho é que as pessoas não acreditam em tudo o que ocorreu: 233 mortos.
Apesar de todas as adversidades, a entrada ao vivo em situações de tragédia possibilita
um grande teste e também um aprendizado aos profissionais envolvidos. É nesse tipo de
cobertura que o repórter exercita e coloca em prática todo o conhecimento adquirido até
então. É uma prática de responsabilidade na decisão sobre quais informações devem ser
veiculadas, na seleção de fontes para diminuir os erros e de humildade em corrigi-los.
Considerações Finais
O sonho (e a responsabilidade) de qualquer repórter é ter tempo para apurar as
informações, conversar com fontes confiáveis (e sempre à disposição) e só entrar no ar
no momento em que julgue ter esgotado todas as possibilidades de apuração. Numa
situação de tragédia, a realidade se afasta do ideal. Isso não significa, contudo, que
rotinas produtivas e enquadramento das notícias possam prescindir dos preceitos
jornalísticos estabelecidos.
O artigo evidenciou o improviso como um dos requisitos necessários para uma
cobertura ao vivo de tragédias, lembrando que sua ocorrência não significa falta
conteúdo. Trata-se de uma alteração nas rotinas produtivas de elaboração do texto; a
única alternativa na falta de tempo e de intervalo entre uma entrada ao vivo e outra. Se,
por um lado, não raro resulta na repetição das informações, por outro, o improviso
possibilita um relato mais natural e espontâneo que gera um efeito de proximidade com
o telespectador.
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Numa situação na qual autoridades oficiais não têm dados corretos para fornecer, os
testemunhos são um meio para obter elementos que ajudem a reconstruir a história. No
estudo de caso sobre o incêndio da boate Kiss, eles foram fundamentais.
Por fim, mas de especial interesse para o jornalismo, é necessário que a cobertura da
tragédia, com suas rotinas produtivas próprias e centradas no singular, seja substituída
nos dias subsequentes pela contextualização e análise do fato, para que o jornalismo se
afaste da tendência do sensacionalismo propiciado por uma situação extrema.
Bibliografia
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