Post on 20-May-2020
Departamento de Comunicação Social
Cinema e literatura na era digital: interseções
Aluna: Carolina Taveira Callegari
Orientador: Vera Lúcia Follain de Figueiredo
Introdução
As relações entre literatura e cinema brasileiro são bastante antigas e esse
diálogo a cada momento teve feição específica. O Cinema Novo muitas vezes foi buscar
na literatura modernista a base para seus roteiros. Vidas secas, obra de Graciliano
Ramos de 1938, é a adaptação mais representativa desse período. Em 1963, o clássico
foi para as telas com a direção de Nelson Pereira dos Santos, que justificou a escolha da
literatura dos anos 30 a ser adaptada por ter quebrado a idealização trazida pelo
Romantismo. O olhar europeizado foi posto de lado na busca de dar expressão aos
problemas do povo. O cinema queria fazer uso de uma linguagem próxima à realidade
da população, adquirindo representatividade cultural.
Na contemporaneidade a relação de migração de suporte se realiza de outro
modo. Com o desenvolvimento tecnológico surgiram novos meios de comunicação e
com eles surgiram novas plataformas para as quais os textos deslizam. Dos folhetins à
internet, o escritor teve que se modificar para acompanhar essas mudanças. Aurélio Orth
de Aragão resume essa evolução e seu efeito:
No que diz respeito especificamente à relação entre cinema e literatura, ou
entre imagem e texto, há uma radical transformação com a entrada de outros
atores em cena. A televisão, a publicidade, os quadrinhos e a internet
transformam os sinais da equação que antes tinha como termos essenciais
apenas o cinema e a literatura (ARAGÂO, 2010, p.27).
Além da maior possibilidade de adaptação, novas relações se estabelecem.
Se nos anos 60 o cinema buscava a consagrada literatura modernista, agora a obra
literária que inspira a criação do filme pode nem mesmo estar finalizada, sendo os dois
textos escritos ao mesmo tempo.
Esse novo modo de ver a adaptação reforça a importância de usar o texto
inicial apenas como base, e não ter obrigação de segui-lo perfeitamente. Cada
plataforma tem suas particularidades, que devem ser ponderadas e exploradas. José
Carlos Avellar considera necessário não se prender a detalhes da obra literária e deixar
que ocorram modificações para melhor fazer o filme.
É só deixar-se estimular pelo livro, pelo prazer da leitura, e deste prazer tirar
um filme. Mas “é preciso deixar a cabeça solta”, não filmar o texto ao pé da
letra. “Por um lado você fica muito preso ao livro, mas, por outro, é
importante desligar um pouco, deixar as ideias brotarem, ficar atento às
associações feitas por acaso, às imagens que surgem” (AVELLAR, 2007,
pág. 47).
O escritor transformou-se junto com a tecnologia da comunicação e
aprendeu a produzir o mesmo conteúdo para as diferentes plataformas. A possibilidade
de escrever um roteiro e um livro ao mesmo tempo impulsionou o surgimento do
escritor multimídia. Segundo Aurélio de Aragão “aquele que antes seria o autor literário
hoje transita com impressionante fluidez entre livros, quadrinhos, cinema, televisão,
publicidade e teatro” (2010, pág. 27). A era da internet fez nascer, então, um novo tipo
de escritor, que vê no mundo online uma linguagem própria, um espaço de produção e
publicação. Partindo desse novo meio e da migração de seu conteúdo para o livro e para
o cinema, buscou-se refletir, nesta pesquisa, sobre a maior fluidez da fronteira entre as
diversas plataformas, tomando como objeto de estudo o livro Os Famosos E Os
Duendes Da Morte, de Ismael Caneppele, e o filme homônimo, de Esmir Filho, assim
como o filme Nome Próprio, de Murilo Salles, e o blog oficial do longa-metragem.
O primeiro conjunto de obras é exemplo da adaptação atual. O livro estava
inacabado quando o roteiro começou a ser escrito. Ismael trabalhou nas duas
plataformas simultaneamente – retrato do escritor multimídia - e admitiu que escrever
para o cinema influenciou na finalização do texto literário.
Já pertencentes à geração do computador, Ismael e Esmir usaram a internet
como elemento primordial na realização do filme. Os atores escolhidos também fazem
parte dessa nova geração e foram encontrados online. Henrique Larré, que interpreta o
protagonista, e Tuane Eggers, que faz o papel da menina Jingle Jangle, tinham contato
com esse mundo virtual e disponibilizavam conteúdos próprios em blogs e fotologs.
A proximidade dos atores com a internet foi primordial, já que o recente
meio de comunicação é um dos pontos centrais da narrativa. Larré e Eggers
reproduzem, como personagens, suas atuações no universo online: publicar fotos e
textos próprios. Assim também foi com a trilha sonora, criada pelo cantor gaúcho Nelo
Johann, que divulga seu trabalho em sites, e foi descoberto por Esmir.
A mediação feita com a internet é constante nas duas obras. Como já citado,
cada plataforma tem suas limitações e cabe a elas aproveitarem suas vantagens.
Enquanto o filme mostra os vídeos que o protagonista assiste no computador, o livro
traz o endereço eletrônico – link – para que o leitor possa acessar, por exemplo.
O filme Nome Próprio seguiu um caminho diferente até chegar aos cinemas.
A escritora Clarah Averbuck, autora do livro Máquina de Pinball, vendeu os direitos de
adaptação de sua obra a Murilo Salles e não participou do desenvolvimento do roteiro
do longa-metragem. Considerada uma das blogueiras mais conhecidas e influentes do
Brasil, sendo uma das precursoras deste estilo de escrita na internet, Clarah também viu
textos de seus blogs embasarem o material usado na narrativa ficcional da personagem
Camila.
O diretor Murilo Salles fez nove versões do roteiro até conseguir finalizá-lo
e tirou proveito da temática abordada – a internet – para levar a obra para além do
cinema. Com o site oficial em formato de blog, Murilo conseguiu dar continuidade ao
projeto no meio virtual. Em outra plataforma ganhou espaço para colocar o que não
coube nas grandes telas.
A escolha de ter um blog como site oficial não se restringiu ao uso de um
novo suporte do texto, mas iniciou a busca pela aproximação com o público,
estimulando a participação no espaço. Se o baixo orçamento impôs limites à produção
cinematográfica, a internet permitiu ampliar a fluidez das fronteiras da adaptação.
O livro virou filme e o filme virou livro
A obra literária Os Famosos E Os Duendes Da Morte foi adaptada para o
cinema antes de estar concluída. O diretor e roteirista Esmir Filho se interessou pelos
romances de Ismael Caneppele após ler o livro de estreia Música Para Quando As
Luzes Se Apagam. Depois de ler os rascunhos inconclusos de Os Famosos E Os
Duendes Da Morte, Esmir Filho propôs que o texto fosse finalizado junto com a
produção do roteiro, que seria escrito em parceria pelos dois.
Embora a produção do material para as duas plataformas tenha sido
simultânea, o livro tem um adesivo na capa em que é afirmado que o texto literário “deu
origem ao filme de Esmir Filho”. Em contrapartida, para mostrar a influência da obra
cinematográfica sobre a literária, na capa estão Ismael Caneppele – que interpreta
Julian, o misterioso namorado de Jingle Jangle – e Tuane Eggers – que interpreta a
menina (anexo 1).
Para desenvolver os dois textos, Esmir Filho e Ismael Caneppele moraram
durante nove meses na pequena cidade de influência alemã, no Rio Grande do Sul. Ficar
no lugar para concluir as obras era fundamental para que Caneppele voltasse à
adolescência que o inspirou e para que Esmir Filho conseguisse observar os costumes
de uma parte do Brasil tão pouco retratada pelo cinema nacional, que dá destaque ao
cotidiano das grandes metrópoles.
O contato com os moradores do lugar foi tão importante que muitos tiveram
papéis no longa, interpretando os amigos, parentes e vizinhos. Conviver com os
adolescentes que moram na cidade ajudou a moldar o característico perfil da geração Y
– ou geração da internet – que é desenvolvido através do protagonista e da menina dos
vídeos que é sua paixão platônica.
Na contracapa do livro a nota assinada por Esmir Filho traz a explicação de
que o livro e o filme se complementam e que não são um mero processo de adaptação
do texto. A temática sobre o comportamento do adolescente de hoje é tão complexa que
são necessários vários recursos, nas diversas plataformas, para representar esse cenário.
O seguinte trecho da nota resume a pretensão da obra em estar presente nas
plataformas:
(...) A ideia não era adaptá-lo, e sim criar um diálogo entre as palavras do
livro e as imagens do filme, buscando sentimentos análogos para o
leitor/espectador. É por isso que não existe essa bobeira de ler o livro
primeiro, para depois ver o filme, ou saber o final, etc. É mais do que isso.
Tudo dialoga e se complementa. Um retrato das inquietações do adolescente
atual e sua relação com a internet, na eterna busca de uma identidade, onde os
pixels são uma realidade e vida real não tem fronteiras (FILHO in
CANEPPELE, 2010, contra capa).
Fluidez entre as telas do cinema e do computador
Murilo Salles tomou conhecimento da obra de Clarah Averbuck ao ler uma
entrevista com a escritora sobre o lançamento de seu primeiro livro, Máquina de
Pinball. O texto com características da blogosfera despertou interesse no diretor para
adaptá-lo ao cinema. A escrita do roteiro do longa-metragem Nome Próprio demorou
seis anos para chegar à versão final. Ao longo do tempo, o material dos blogs pessoais
de Clarah – brasileira!preta e adiós lounge – ajudaram a construir a personalidade da
protagonista Camila e a entender o universo da escrita online.
A internet como temática rendeu mais frutos do que o esperado. O ambiente
formado por pixels foi aproveitado como plataforma de interação com o público
espectador, antes e após a estreia. Divergindo do modelo tradicional de sites oficiais de
filme, Murilo optou por um blog. Para romper com o padrão, a página, homônima ao
filme, não era usada somente para divulgação. Conteúdos exclusivos, como fotos de
bastidores, textos escritos pela equipe acerca do projeto e, até mesmo, cenas excluídas
no último momento de edição, dialogavam com a obra cinematográfica ao
complementá-la.
Em entrevista, o diretor de arte do projeto Pedro Paulo de Souza, ganhador o
prêmio de Direção de Arte em Gramado pelo longa-metragem, falou sobre a forma de
abordar as particularidades do espaço virtual em Nome Próprio, que retoma o começo
da blogosfera no início dos anos 2000.
“Nome Próprio” também discute formato – o filme não tem película, a
captação foi toda direta em HD; discute plataforma de comunicação... foi um
filme lançado através de um blog, em que pudemos construir uma conversa e
passar adiante a discussão que tivemos. Foi além da projeção na tela e isso
tem a ver com internet, linguagem e suporte. Tivemos esse cuidado desde o
início.1
No espaço de discussão aberto nos comentários dos posts ressurgiu o debate
sobre a adaptação fiel de um texto para outros suportes. Leitores da Clarah
argumentavam que a obra havia sido descaracterizada por não incluir alguns
personagens e não seguir diálogos à risca, por exemplo, enquanto, em contrapartida,
espectadores de Murilo defendiam que a forma de narrativa é adequada para o cinema e
que o uso de determinados elementos, como sons do teclar no computador e as palavras
que se sobrepunham às imagens, como forma de expressão da blogosfera.
A escritora ganhou espaço no blog Nome Próprio e publicou um texto em
que expressa sua opinião sobre a adaptação da obra. Para Clarah, o filme ganhou
dimensões maiores durante o processo de construção da personagem Camila, encenada
pela atriz Leandra Leal. Todos os envolvidos no projeto influenciaram, aos menos um
1 Entrevista com o diretor de arte de Nome Próprio, Pedro Paulo de Souza:
http://nomepropriofilme.blogspot.com.br/2008/08/entrevista-com-pedro-paulo-de-souza.html. Acessado
em julho de 2012.
pouco, a personalidade da protagonista e, o próprio espectador, destaca determinadas
características que geram identificação.
Esse filme não é meu, mas é claro que eu estou lá. E a minha Camila
também, junto com outras pessoas, outras Camilas, tantas Camilas que
existem por aí, junto com a direção de arte, com a trilha, com a fotografia.
Este filme se chama ‘Nome Próprio’ e tem sua vida própria, que não é minha,
nem do diretor, nem de ninguém. É dele. E eu espero que vocês gostem.2
Vale ressaltar que Máquina de Pinball, lançado em 2002, pode ser adquirido
gratuitamente no site da editora Conrad que o disponibilizou o texto integral do
romance de estreia de Clarah Averbuck. Para ter acesso à obra, o leitor deve se cadastrar
no site da editora e logo em seguida tem o direito de fazer o download do arquivo em
formato PDF. Embora esteja à venda em sites e livrarias o livro é acessível de graça,
não sendo uma cópia ilegal, o que, de certo modo, reforça o modelo de blog, em que o
material fica disponível para que qualquer um o visualize. O novo tipo de escritor,
proveniente de outras plataformas, interfere nos meios tradicionais de leitura, assim
como afirma Vera Figueiredo:
(...) a atual revolução dos suportes, modificando a maneira de ler, afeta o
modo de escrever, pois os próprios autores de livros estão inseridos nesse
novo contexto em que se transformam de modo radical as formas de recepção
dos textos, e toda uma tradição da prática da leitura cede lugar a outros
modos de ler (FIGUEIREDO, 2010, pág.15).
Fronteiras diluídas e o avanço com a internet
A adaptação de textos literários para o cinema não é um fenômeno recente.
Atendo-se apenas ao Brasil da segunda metade do século passado, o exemplo mais
marcante é o livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos, de 1938, adaptado pelo diretor
Nelson Pereira dos Santos, em 1963. Além do esforço da produção cinematográfica
manter ao máximo a fidelidade aos detalhes do livro, outro ponto de contraste do que
hoje se vê é a busca da literatura canonizada para ser adaptada. O modernismo literário
deu o embasamento necessário aos diretores brasileiros quando decidiram começar a
retratar o verdadeiro Brasil.
2 Texto do diretor Murilo Salles: http://nomepropriofilme.blogspot.com.br/2008/05/um-
nome-que-no-meu.html. Acessado em julho de 2012.
O cinema procurava na literatura aquilo que faltava em si. A linguagem do
cinema francês não era a direção certa para a construção de um modelo tipicamente
brasileiro. José Carlos Avellar explica essa relação fortalecida entre o Cinema Novo e a
literatura modernista, em que um tentava encontrar no outro o que faltava:
Para compreender melhor o entrelaçamento entre cinema (em especial o que
começamos a fazer na década de 1960) e a literatura (em especial a que
começamos a fazer na década de 1920), talvez seja possível imaginar um
processo (cujo ponto de partida é difícil de localizar com precisão) em que os
filmes buscavam nos livros temas e modos de narrar que os livros apanharam
em filmes; em que os escritores apanham nos filmes o que os cineastas foram
buscar nos livros; em que os filmes tiram da literatura o que ela tirou do
cinema; em que os livros voltam aos filmes e os filmes aos livros numa
conversa jamais interrompida (AVELLAR, 2007, pág. 8).
Assim, pouco a pouco, deixou-se de lado a pretensão de que fazer uma boa
adaptação era sinônimo de respeitar todos os detalhes da obra - sem modificar ou
excluir elementos da trama. A perfeita repetição dos mínimos detalhes não permite que
o cinema consiga usufruir de seus recursos específicos da melhor maneira possível.
Cada plataforma tem modos únicos de expor o texto e isso deve ser aproveitado. Deixar
a obra imóvel pode prejudicar a boa adaptação por não conseguir extrair o máximo dos
recursos do meio que a transmite. Temer que a obra fique descaracterizada e evitar que
fuja do texto original limita o trabalho de desenvolvimento. O diretor ou escritor deve
poder, e saber, trabalhar dando ênfase aos pontos em que certos momentos não foram
bem explorados devido às limitações da plataforma em que estava. José Carlos Avellar
resume essa outra forma de pensar a adaptação: “Apenas parte do que se expressa num
texto (e não necessariamente o mais importante) está nas ações e objetos descritos com
maior ou menor quantidade de detalhes” (AVELLAR, 2007, pág. 55).
Os Famosos E Os Duendes Da Morte mostra que cada plataforma deu foco
a determinados pontos da narrativa para usar recursos a seu favor, possibilitando a
melhor forma de expressar o conteúdo fazendo uso de suas características únicas.
No livro, o autor Ismael Caneppele descreve longamente a importância e a
história de como somente um adesivo de estrela sobrou no teto do quarto. O
protagonista se detém a explicar como antes era o sentimento de vergonha quando
levava os amigos em casa, o temor de ser caçoado por causa dos adesivos, a decisão de
tirar todas as estrelas coladas no teto, a dúvida sobre se foi ou não a escolha certa e a
lembrança constante do pai falecido ao ver que sobrou somente uma pequena estrela.
Enquanto na literatura essa história é contada com detalhes, no filme o
menino apaga e acende, várias vezes, a luminária do quarto. O personagem tem o olhar
fixo no teto, que tem marcas das estrelas que não estão mais coladas. Para o espectador
que não leu o livro, a falta de conhecimento sobre os adesivos não interfere na
compreensão da cena. O longa não perde qualidade por não trazer esse detalhe. O filme
e o livro, inúmeras vezes, se complementam conversando entre si.
O diretor Esmir Filho admite que é necessário construir um diálogo entre as
duas obras. Na atualidade, o texto circula, estimulando-se o público a ir para outro
suporte em busca de desdobramentos da narrativa primeira, assim como define Vera
Figueiredo: “Merece atenção especial o fenômeno de deslizamento das narrativas de um
meio para outro, de um suporte para outro – o processo contínuo de reciclagem das
intrigas ficcionais, recriadas para circular por diferentes plataformas” (FIGUEIREDO,
2010, pág. 11).
O filme consegue aproveitar muito bem o recurso de imagem de que dispõe.
O livro por vezes traz o endereço eletrônico – link – a que o protagonista assiste no
computador. Já no longa, o espectador vê, junto com o ator, os vídeos da menina Jingle
Jangle.
Tanto o livro como o filme estimulam o público a procurar o conteúdo na
internet. Enquanto a obra literária traz o link, o filme mostra a página do site, e por
vezes deixa aparecer os nomes, permitindo que o espectador consiga encontrar o
material no meio online. As fotos e vídeos que aparecem no longa ainda podem ser
encontrados no Flickr de Tuane Eggers e no canal do YouTube feito para a personagem
Jingle Jangles. O público se sente estimulado a buscar por novas informações sobre o
romance no meio virtual.
Esmir Filho define Os Famosos E Os Duendes Da Morte não como um
simples trabalho, mas como um movimento, por conseguir integrar diversas plataformas
que não só repetem o conteúdo, mas complementam a narrativa de modo que um
suporte dê espaço para o outro ter um desenvolvimento da melhor forma.
Não só a literatura e o cinema conseguem manter um diálogo nesse caso,
mas também a internet – elemento mais recente no campo de adaptação de conteúdo. O
site oficial do filme traz uma parte de interação, além de conter os links para as páginas
pessoais da atriz Tuane Eggers e do cantor e compositor Nelo Johann que foram
encontrados na plataforma virtual.
A internet teve papel fundamental, não só por ser a temática do romance,
como por ser o caminho para encontrar o elenco principal e o responsável pela trilha
sonora e conseguir material que influenciou na produção do filme. O modelo de
fotografia e vídeo feito por Tuane Eggers foi aproveitado, e ela é a responsável pela
gravação das partes em que aparece. Os vídeos usados para representar aquilo que
circula no meio virtual são totalmente inspirados no trabalho amador de Eggers. A
entrada dessa nova plataforma, que trouxe um número bem maior de possibilidades,
facilitou o deslizamento do texto para outros suportes.
Um pequeno trecho do filme é dividido em partes que podem ter a ordem
alterada no site oficial, proporcionando que o público monte do modo que desejar. O
vídeo disponível para a interação é produzido em baixa qualidade, do mesmo modo dos
que são usados no longa para dar a sensação de que foi realmente feito de forma caseira
para ser disponibilizado na internet, assim como os que o protagonista visualiza.
As fronteiras entre os campos da produção cultural não são rígidas,
permitindo que haja, além da troca de informação entre os meios, a complementação do
texto que migra de uma plataforma para a outra, como resume Vera Figueiredo: “Assim,
um dos efeitos da atuação do mercado como grande mediador, intensificado com os
avanços da tecnologia da comunicação, é o embaralhamento das linhas divisórias entre
os diversos campos da produção cultural” (FIGUEIREDO, 2010, pág. 52).
O texto nas duas plataformas é trabalhado de maneira diferente. Enquanto
na literatura ele é mais descritivo, abordando os detalhes, no filme o diretor Esmir Filho
faz uso de planos longos, parados, sem som. O expectador tem a chance de analisar o
momento de um modo subjetivo. O cinema faz uso da imagem para conseguir o instante
de reflexão que o escritor Ismael Caneppele consegue através das palavras. O modo de
abordagem é diferente já que os suportes não são iguais e apresentam características
únicas, assim como explica Vera Figueiredo:
O estudo da relação entre narrativas literárias e cinematográficas, portanto,
não se restringe ao campo do que se convencionou chamar de ‘adaptação’,
não se limita à análise dos procedimentos formais utilizados para recriar,
através de uma arte mista como o cinema, uma intriga inicialmente tecida
apenas com palavras, embora a quantidade de filmes baseados em obras
literárias seja praticamente incontável. O fenômeno de leitura/reescritura de
textos literários pelo cinema tem permitido várias abordagens, que, por
diferentes vias, contribuíram não só para que se pensassem os pontos de
contato entre as duas artes, mas também suas particularidades
(FIGUEIREDO, 2010, pág. 18).
Há momentos em que o livro deixa subentendido quando o personagem está
publicando no blog. A formatação do texto é diferente da do corpo narrativo. No filme,
o recurso sonoro é bem aproveitado, sendo, por vezes, mais expressivo do que a
imagem. Na medida em que o menino fala o texto que escreve, mesmo sem aparecer a
tela do computador ou o texto sendo digitado, é possível ouvir o barulho das teclas.
Somente depois aparece parte do texto sendo finalizado, escrito ao mesmo tempo em
que o menino fala; logo em seguida, o botão “Publicar” é mostrado e selecionado.
As conversas no programa de mensagem instantânea também são
exploradas de melhor maneira com o recurso visual do cinema. No livro, o leitor tem
que ficar atendo ao contexto. Na página 51, o início da conversa é sinalizado com o
trecho: “O canto do monitor piscou”, em referência ao funcionamento do programa para
conversas online. Em outro exemplo, na página 61, o leitor percebe que o diálogo
acontece no computador por causa da estrutura com que é apresentado. Não há
marcação de que a conversa é no computador, sendo antecedida pela frase “Entrei em
casa e fui direto para o meu quarto ‘E.F.’ estava lá.”.
Já no filme, é simples compreender quando é o menino que se comunica
com alguém no computador. A janela do programa aparece com as frases que cada um
escreve. A imagem facilita o entendimento do diálogo. Além do som que é ouvido
quando cada mensagem chega de um amigo de longe.
A música Mr. Tambourine Man, de Bob Dylan, é um dos elementos
primordiais do filme. Além do recurso de tocá-la em diversos momentos, a menina
Jingle Jangle aparece cantando um pequeno trecho, o protagonista adota o nome da
canção como apelido na internet - que é focalizado em diversos momentos - e alguns
versos aparecem escritos na prova de química que o menino faz na escola.
O livro faz muitas referências ao cantor do folk americano já que tem mais
liberdade de fazer menção ao artista. Um dos exemplos é a citação “How does it feel?”,
na página 70, quando o menino escuta um casal tendo relações em uma das cabines do
banheiro em que ele está. Essa é a frase inicial do refrão da música Like A Rolling
Stones. A continuação do trecho, que não está escrito, “How does it feel / To be without
a home / Like a complete unknown / Like a rolling stone?” define como o menino se
sente ao ver o casal junto enquanto ele, em todo o momento do romance, se sente só.
Outra alusão ao cantor é a última frase do livro: “The answer is blowing in
the wind.”. O trecho faz referência à música Blowin’ In The Wind, que foi gravada em
julho de 1962. A canção trata de questionamentos sobre o que ainda é necessário fazer
para conseguir o que se quer alcançar. No fim do romance, o menino decide, enfim, sair
da cidade e vai embora.
No longa, houve limitações devido ao alto valor cobrado pelos direitos
autorais. O diretor Esmir Filho, em entrevista ao programa televisivo Notícias MTV,
declarou que totalizou o gasto de 70 mil reais nos momentos em que há alusão ao
músico, como nos exemplos citados anteriormente.
Para contornar a situação da falta de recursos para pagar mais por direitos
autorais pelo trabalho de Bob Dylan, a solução encontrada foi adotar como trilha sonora
as canções do músico gaúcho Nelo Johann, que tem um estilo parecido com o do cantor
americano. Assim como os atores principais, Johann foi convidado a integrar a equipe
do filme após Ismael Caneppele ter encontrado o material disponível na internet.
Uma característica muito forte, não só dos atores e de Nelo Johann, mas
também de Ismael Caneppele e Esmir Filho é o fato pertencerem à geração Y – ou
geração da internet. O conhecimento e a interação cotidiana com o meio virtual
permitiram que o diálogo do livro e do filme com a recente plataforma fosse feito de
maneira natural.
A resistência à adaptação não literal
Embora seja cada vez mais comum a liberdade com que se trabalha a
adaptação de um texto da literatura para o cinema, tendo flexibilidade em modificar
elementos que compõem a narrativa inicial, parte do público ainda se mostra resistente a
esse modelo de adequação da obra para outro suporte. José Carlos Avellar explica,
tomando como exemplo Vidas secas, o que é, na verdade, o processo de adaptação de
um material literário para o cinema.
Digamos mais uma vez: um filme não se reduz a transpor e ilustrar o livro em
que se inspira (“adaptação não é uma cadeia, é uma referência que faz chegar
a grandes descobertas”), nem mesmo quando, como em Vidas secas, os fatos
narrados são exatamente aqueles contados no livro (“permanecer com estas
referências, a essência do livro e sua estrutura narrativa, é um estímulo. Mas
transformar um livro em filme significa recriar o universo do autor em outra
forma de expressão”). O que Nelson faz a partir de Graciliano é uma livre
invenção de imagens cinematográficas a partir da leitura e compreensão do
texto. Invenção livre e em perfeita sintonia com o romance porque a relação
viva entre a literatura e o cinema (como qualquer relação viva entre duas
diferentes formas de arte) só se realiza quando uma estimula e desafia a outra
a se fazer por si própria (AVELLAR, 2007, pág. 54).
Antes que Máquina de Pinball chegasse aos cinemas e voltasse para a
internet, Clarah Averbuck viu seu livro adaptado para o teatro. Roteirizado por Antônio
Abujamra – que teve grande interesse no texto e, inclusive, escreveu seu prefácio – e
Alan Castelo, o espetáculo homônimo, que estreou em 2003, reafirmou a fluidez das
fronteiras nas diferentes plataformas. Mesmo sem poder usar elementos trabalhados em
outros suportes, Máquina de Pinball chegou aos palcos. O fato remete ao processo de
adaptação feito antes do surgimento de novas tecnologias, como afirma Vera
Figueiredo:
Ao abordar as interseções entre diferentes campos da produção cultural,
assim como o trânsito de narrativas por vários meios e suportes, não se deixa
de levar em conta, entretanto, que tais fenômenos não são novos embora
tenham chegado ao paroxismo com as tecnologias digitais (FIGUEIREDO,
2010, pág. 12).
Atualmente, os cruzamentos entre os meios artísticos passam a acontecer de
maneira ainda mais intensa. A entrada de novas plataformas, como a internet,
reconfiguraram as possibilidades de deslizamento dos textos, permitindo que a obra seja
trabalhada de diversas maneiras, podendo desdobrar-se e ampliar seu espaço de
desenvolvimento narrativo. O texto inicial é reconstruído de acordo com o que de
melhor se pode aproveitar do suporte em que será veiculado.
O diretor Murilo Salles expandiu Máquina de Pinball não somente para o
cinema, mas para a internet também, através do blog oficial. Murilo percebeu que a
história da personagem Camila não se esgotava no livro, nem no filme e nem nos blogs
de Clarah. Novos elementos, que não cabiam nos suportes citados, foram
implementados ao espaço virtual. Além da divulgação do longa-metragem, o endereço
online traz fotos, prévia de algumas cenas, assim como material exclusivo que não
compõe a versão final. E, o que merece maior destaque na maneira com que a narrativa
continua online, é a interação com o público, que se mantém em contato com a equipe
de produção – responsável pela manutenção e alimentação da página com material novo
–, e em constante diálogo através dos comentários. Além de promoções realizadas no
blog para ganhar ingressos da pré-estreia de Nome Próprio, usuários do site MySpace
tiveram a oportunidade de assistir no site, gratuitamente, o filme antes da estreia em
circuito nacional, no dia 18 de julho de 2008. A narrativa que ganha espaço nas grandes
telas tem a chance de crescer ainda mais no espaço virtual, assim como afirma Vera
Figueiredo:
Textos deslizam para as telas, ameaçando a centralidade do suporte impresso,
filmes são finalizados no computador e distribuídos em DVD ou pela
internet. Enfim, Toda produção midiática moderna converge para o
computador, que, funcionando como um metameio, a armazena e distribui.
Trazidos em dados numéricos, filmes, fotografias, textos e músicas inserem-
se numa rede não hierárquica de circulação. Como o sentido de uma obra
depende de seus aspectos materiais, formais e de conteúdo, que são
indissociáveis, ao serem liberados dos suportes físicos tradicionais, como, por
exemplo, o papel e a película, as formas culturais pré-digitais passam por
transformações que as reconfiguram (FIGUEIREDO, 2010, pág. 18).
A trilha sonora do filme, composta e tocada por artistas brasileiros, recebeu
o maior número de reclamações dos fãs da literatura de Clarah Averbuck. A influência
do rock n’ roll tanto no cotidiano da personagem Camila como na vida e obra da autora,
não teve destaque no cinema. O motivo: o baixo orçamento. Com verba de R$ 1,2
milhão, a equipe optou por não pagar direitos autorais a bandas estrangeiras, nem
mesmo para os americanos do The Strokes, grupo que apareceu até na dedicatória do
livro Máquina de Pinball. A alternativa foi disponibilizar no blog uma lista de músicas
de acordo com o que Camila ouviria. Nomes importantes como The Beatles, Rolling
Stones, The Clash e Janis Joplin fazem parte do repertório. Na obra literária, trechos de
músicas, sempre em inglês, antecedem os capítulos, como uma pequena introdução ao
assunto a ser tratado.
Durante entrevista com Murilo Salles sobre a elaboração do roteiro, o
jornalista Felipe Messina afirmou que as sequências de imagens deixam uma série de
‘lacunas’, em que o espectador não tem tudo explicado, podendo criar, por si mesmo, o
que não foi dito. Murilo respondeu que o filme foi pensado de modo que estivesse de
acordo com o universo da trama. O público do cinema recebe o mesmo tratamento que o
leitor do blog: o roteiro, assim como o texto, apresenta recortes de acordo com o ponto
de vista de uma pessoa, a história não é totalmente destrinchada. Assim como nos textos
de Camila, algumas partes ficam implícitas.
Mas, eu concordo: poderíamos ter ordenado esse filme de diversas formas.
Só acho que aprendi com esse filme que quando escolho uma palavra, uma
cena, estou fazendo uma opção de recorte, um recorte pessoal daquele
universo. O que tomei mais cuidado no roteiro foi para construir uma
narrativa de uma narrativa. Não filmamos com esse intuito, isso não foi
inventado na montagem.3
3 Segunda parte da entrevista do jornalista Felipe Messina com o diretor Murilo Salles:
http://nomepropriofilme.blogspot.com.br/2008/08/2-pergunta-murilo-salles.html. Acessado em julho de
2012.
Esse recorte estimula a busca do preenchimento das lacunas nos outros
suportes, a fim de entender a totalidade da obra. O que foi omitido na narrativa não pode
criar um abismo, prejudicando o entendimento de parte da trama. Devem ser supridos
detalhes que enriquecem a obra e não que sejam essenciais para seu entendimento.
Para Murilo, a opção de lançar um blog do filme – e não um site oficial nos
padrões convencionais – era a oportunidade perfeita para aproveitar as vantagens da
plataforma e permitir que a obra continuasse fora das telas.
Foi junto com o Beto que percebi que a pertinência do lançamento desse
filme era ter essa unidade de linguagem; de fazer o filme continuar num blog,
dele se perpetuar no relato e na relação direta com as pessoas. Foi nessa
época que eu assumi e comprei a idéia de lançar o filme inteiramente através
do blog.4
Aproveitando o espaço de interação, no dia 20 de maio de 2008, a
publicação Roteiro5 trazia o link da primeira tentativa de adaptação feita pela roteirista
Elena Soárez. O arquivo ainda está disponível para visualização e cópia no site Box6. No
dia 2 de junho de 2008, pouco mais de um mês antes do lançamento em circuito
nacional, a equipe do blog divulgou o roteiro final, na publicação 9º tratamento: roteiro
filmado. No texto, a equipe explicava o porquê da decisão de divulgarem a parte escrita
do projeto. Rendeu tanto que resolvemos disponibilizar agora a última versão do roteiro,
a nona, escrita pelo Murilo. Essa foi a que foi filmada mesmo, pra que vocês
possam comparar agora o que existia no papel e o que ficou no filme. É super
interessante ver como as palavras viraram imagem, e no caso desse filme,
como elas continuaram palavras mesmo – só que escritas na tela.7
Atualmente, o endereço eletrônico no site Lcweb8 em que constava a versão
final do roteiro está fora do ar, não sendo acessível para leitura ou cópia.
O final do filme pode ser considerado o ponto alto da boa adaptação da
literatura para o cinema. Murilo fez uso da dúvida que Clarah deixa no final do livro. Na
última página, ela escreveu: “É mentira, mas é tudo verdade. Qualquer semelhança com
a realidade não terá sido mera coincidência” (2002, pág. 79). A escritora tenta confundir
o leitor, fazendo-o perguntar-se sobre a veracidade daquilo que acabou de ler: o que, na
4 Quarta parte da entrevista do jornalista Felipe Messina com o diretor Murilo Salles:
http://nomepropriofilme.blogspot.com.br/2008/08/4-pergunta-murilo-salles.html. Acessado em julho de
2012.
5 Publicação Roteiro, em blog Nome Próprio:
http://nomepropriofilme.blogspot.com.br/2008/05/roteiros.html/. Acessado em julho de 2012. 6 Primeira versão do roteiro Nome Próprio disponível para leitura e cópia:
https://www.box.com/shared/o2q2iao00w. Acessado em julho de 2012. 7 Publicação A última versão do roteiro, no blog Nome Próprio:
http://nomepropriofilme.blogspot.com.br/2008/06/ltima-verso-do-roteiro.html. Acessado em julho de
2012.
8 Endereço eletrônico em que estava disponível a última versão do roteiro do filme Nome Próprio:
http://www.lcweb.com.br/nomeproprio/roteiro_filmado.doc. Acessado em julho de 2012.
obra, é ficcional e o que realmente aconteceu? No site da editora Conrad, um
questionamento inicia o resumo sobre o livro: “Tudo começa quando a personagem
Camila (ou seria a própria Clarah?) (...)”.
Alter-ego, ou não, da autora, a personagem Camila de Murilo Salles
também deixa dúvidas quanto ao que o espectador acabou de assistir. Nos momentos
finais da trama, pela primeira vez o texto que aparece escrito sobreposto à imagem está
em terceira pessoa e se refere à protagonista:
Camila foi embora da festa tentando disfarçar sua dor. Logo que ficou
sozinha, chorou. Chorou no elevador, chorou no corredor e na rua. Caminhou
até o ponto de ônibus mais próximo. Pegou o primeiro que a deixasse mais
perto de casa. Chorou no ônibus. Em casa, sentou-se, e acolhida pelo pufe,
aquietou.9
Quando a personagem entra em seu apartamento, o ambiente está
modificado, tendo mais mobílias. Uma mulher, igual a ela, está no computador e digita
o texto citado acima enquanto observa Camila se movimentar pela sala. As duas ficam
lado a lado olhando para a câmera e, então, o filme acaba. O jogo de imagem, com as
personagens idênticas, representa a relação entre o escritor e a personagem por ele
criada, na qual se desdobra.
Murilo fala sobre o ato de se entregar à obra, de descobrir durante o
processo de adaptação que ele tinha que se identificar com a personagem, encontrar o
que dela tinha nele para então poder dirigir o longa. A Camila da história também é uma
parte do que está dentro dele: “(...) com muito esforço e concentração, me tornei a
melhor Camila. Eu sou a melhor Camila. Tinha que estar no filme, só assim viraria uma
história real, ia ganhar sentido, identidade”.10
Geração Y e a internet como plataforma
A internet trouxe um novo jeito de pensar, de agir. A chamada geração Y –
composta por pessoas que nasceram entre a década de 1980 e início dos anos 90 – está
inserida no acelerado processo de atualização dos meios de comunicação. Essa geração
se comporta de maneira diferente das outras, tendo facilidade com o uso de tecnologia,
9 Trecho do filme Nome Próprio (2008), de Murilo Salles.
10 Em http://nomepropriofilme.blogspot.com.br/2008/05/no-incio-o-verbo.html
linguagem própria – influenciada fortemente pela internet –, acesso a maior rede de
referências culturais, individualismo, imediatismo e busca de significado.11
Segundo Vera Figueiredo, “O computador é, então, algo mais que um
simples atravessador, ou operador de passagens, é o ponto de partida para a constituição
de uma cultura eletrônica com características próprias” (2010, pág. 18). O surgimento
do computador não só proporciona uma nova plataforma de suporte para o texto. Com o
aparecimento da internet, uma geração é influenciada pelo novo meio, que tornou a
comunicação mais rápida e inovadora.
A facilidade trazida pelo recente meio de comunicação proporcionou a
ampliação da carga de informações que era impossível de conseguir em qualquer outro
suporte. Por isso, a geração Y tem amplo acesso a referências culturais de procedência
diversa. Essa característica fica muito explícita na obra Os Famosos E Os Duendes Da
Morte com a relação criada entre o menino e o ídolo Bob Dylan. O músico, que
começou a carreira em 1959, é dos Estados Unidos.
O menino adota como apelido na internet, o nome de uma das músicas de
Dylan. O protagonista fica empolgado com o show que o cantor fará em uma cidade
maior. Há também a preocupação, e dúvida, sobre o que fazer para conseguir ir ao
evento. A todo o tempo o amigo de longe, que se comunica através do computador,
instiga o menino a viajar para realizar o sonho de ver o ídolo tocar ao vivo.
Um dos exemplos de referências culturais é a cena do filme em que o
“amigo de longe” envia um vídeo para o protagonista. No material enviado, há menção
ao clipe Subterranean Homesick Blues, de Bob Dylan, em que o cantor segura cartazes
com a letra da música. No vídeo que o menino assiste, ao invés da canção, o que
aparece escrito é o convite para ele viajar para assistir ao show fora da pequena cidade.
Como acontece na internet, na obra Os Famosos E Os Duendes Da Morte
Ismael Caneppele e Esmir Filho não se inspiram somente em grandes artistas. Como já
citado, Tuane Eggers é quem faz os vídeos em que aparece. Como já tinha
conhecimento sobre como produzir o material, pois já fazia antes em sua página pessoal
no site Flickr, ela foi convidada a também ter essa função, além de atuar.
11
Dados retirados de http://www.administradores.com.br/informe-se/informativo/a-geracao-y-chega-ao-
mercado-de-trabalho/19461/ Acessado em julho de 2011.
Na página pessoal, Eggers adotou o nome de Jingle Jangle, assim como no
canal do YouTube, onde o público pode assistir aos vídeos mostrados no filme, que são
os mesmos dos links que estão no livro. O material tinha que parecer ter sido feito de
forma amadora para a internet. Por isso são tremidos, granulados (de baixa qualidade) e
com enquadramentos ruins. No filme, essa queda na qualidade dos vídeos é, também,
para diferenciar, dentro da narrativa, o que é virtual e o que é real. O espectador
consegue diferenciar os vídeos que, junto ao protagonista, os visualiza no computador.
O fato de Ismael Caneppele ter convidado Tuane Eggers para atuar e gravar
os vídeos vai contra a opinião da professora do protagonista que não vê a internet como
um meio confiável de conseguir informações:
O texto terminou. Os últimos garotos pararam de rir. O eco triste da minha
voz ainda desafinava os ouvidos quando a professora perguntou o nome do
autor.
- Jingle Jangle.
- Quem é Jingle Jangle?
- Não sei.
- Como não sabe? O que falava sobre o autor na orelha do livro?
- Esse texto não é de um livro. É da internet.
- Da próxima vez pesquisa mais sobre autores de internet. Talvez eles nem
existam. De qualquer forma eu preciso do nome completo dos autores lidos
em conselho.
O que mais importa para as pessoas de lá é o nome completo (CANEPPELE,
2010, pág. 13).
O diálogo entre o menino e a professora questiona a legitimidade do
material, principalmente o textual, encontrado na internet. A professora desconfia da
autenticidade do texto por ser assinado por uma pessoa que usa um apelido no meio
virtual e que não disponibiliza informações a seu respeito.
A conversa confirma o lugar superior que a literatura conseguiu alcançar e a
internet não. Se na escrita de livros os autores podem usar pseudônimos, permitindo que
eles não sejam identificados, sem gerar desconfiança, no meio virtual não há esse
mesmo espaço. O texto publicado em um livro alcança um lugar mais alto na hierarquia
das plataformas de suporte.
Uma característica da geração Y, bem expressada pelo protagonista é o
conforto que, em certa medida, sente com as pessoas com que se comunica no meio
virtual em contrapartida com o desconforto que sente quando está próximo da própria
família.
O menino por vezes se sente deslocado durante os diálogos com a mãe, que
lhe pergunta sobre assuntos comum como, por exemplo, sobre a rotina na escola ou os
relacionamentos com garotas. O protagonista grava um vídeo para se comunicar com os
“amigos de longe” sobre a ausência que sente do pai que morreu. No momento em que
ele faz isso, a mãe dele está dormindo. Ele não consegue estabelecer uma conversa com
a mãe, mas fala com “E.F.” sobre os sentimentos que tem quanto a sair da pequena
cidade e sobre a ausência de sentido na vida.
Há uma valoração da amizade entre o protagonista e os “amigos de longe”,
que quando não é correspondida também causa desconforto. O menino deposita
confiança na relação que construiu com as pessoas do mundo virtual, mas reconhece
que esta não é semelhante ao sentimento que a mãe tem por ele, como na passagem: “Li
os recados deixados para “E.F.” na sua página e outras pessoas também queriam saber
detalhes sobre o show. Fiquei com ciúmes porque eu não era o único. Eu nunca seria.
Menos para a minha mãe” (CANEPPELE, 2010, pág. 51).
O sentimento de não pertencer a nenhum lugar caracteriza o personagem,
que vive a todo o tempo incomodado com a sensação de não pertencimento à pequena
cidade, mas algumas vezes também não se sente confortável por ser diferente dos
amigos da internet. Esse sentimento é demonstrado no fragmento: “Não havia nenhuma
resposta de “E.F.”, nem de ninguém. Minha mãe esperava por mim. Eles eram os meus
amigos e nenhum deles me dava resposta, pista, indício de que poderia ser. Eles não
dividiam. O mundo deles não era o meu” (CANEPPELE, 2010, pág. 50).
O protagonista se sente deslocado tanto do mundo real a sua volta como do
mundo virtual que conheceu através do computador. Essas pessoas têm rotinas
diferentes, dão a entender que são mais livres por não viverem aprisionados à
monotonia da pequena cidade de descendentes alemães. A vida das pessoas de longe
cativa e é vista como um bom modelo a ser seguido, como no trecho:
Quando liguei o computador, o vento frio entrou pelas frestas da janela e
ninguém estava do outro lado. Era cedo e as pessoas do longe dormem
durante o dia para poder viver à noite. É isso o que eles me. Era assim que
eles. Devia ser essa a lógica na vida deles e deveria ser essa a lógica da
minha vida se eu não morasse longe deles. Eu também tentava viver durante
o dia (CANEPPELE, 2010, pág. 41).
O personagem recebe tanta influência desse mundo externo ao dele que não
sente vontade de participar da típica festa junina ao estilo alemão. Ao mesmo tempo,
conhece o trabalho do cantor e compositor Bob Dylan, se inspirando na música Mr.
Tambourine Man, gravada em 1965. O menino se sente perdido ao ser convidado pelos
“amigos de longe” para ir ao show, enquanto o único amigo da cidade não está disposto
a deixar a cidade para acompanhá-lo ao evento.
Para poder tentar fazer parte do estilo de vida que os amigos de longe têm,
era necessário passar de uma fase para outra. Era preciso crescer e abrir mão de coisas e
pessoas que seriam deixadas para trás. A ponte, onde ocorre o suicídio das pessoas da
cidade, é como um personagem devido à importância que recebe em quase personificar
a travessia que é necessário fazer.
A ponte é uma metáfora que representa o caminho que as pessoas devem
seguir. É necessário deixar um lugar para trás para que se possa encontrar outro
caminho. Quem tenta atravessar e não consegue acaba ficando fora de si, e cometendo
suicídio. As pessoas que se jogam da ponte param na parte mais alta, que fica no meio
da travessia. Quem se arrisca a trilhar um caminho de direção diferente deve ter certeza
que não vai desistir durante o trajeto. O protagonista, quando decide ir embora tem que
atravessar a ponte e o faz de modo determinado, ao sumir em meio à neblina.
Já no site, a janela da ponte traz o link dos sites pessoais da atriz Tuane
Eggers e do cantor e compositor Nelo Johann, onde eles foram encontrados. A página
na internet faz a conexão entre realidade e ficção do trabalho de adaptação da obra. O
filme se entrelaça com a temática e com o seu próprio desenvolvimento.
Para conseguir fazer a ligação da realidade de quem costuma viver na
internet, do modo típico da geração Y, com o personagem criado por Ismael Caneppele,
Esmir Filho, ao encontrar Henrique Larré e Tuane Eggers, conversou com eles durante
um período somente através do computador para depois encontrá-los pessoalmente. O
diretor afirmou - durante entrevista ao programa televisivo Notícias MTV - que queria
ter o choque, para comprovar, que essa geração parece viver em dois mundos diferentes,
ora o virtual, ora o real – fora da internet – e que cada lugar tem suas particularidades.
Esmir Filho buscou tão a fundo as características da geração Y que é ele
mesmo quem conversa online com o protagonista, por isso o “amigo de longe” tem o
apelido de E.F., as iniciais do diretor. O livro traz esse mesmo apelido para o amigo da
internet, sendo mais uma comprovação de que a obra literária foi influenciada pelo
roteiro.
O diretor Murilo Salles, de Nome Próprio, justificou o uso do blog como
ferramenta de integração com seu público, a geração y, que está inserida no universo da
blogosfera. Acostumados à linguagem do ciberespaço, Murilo sentiu necessidade de
dialogar com esse grupo específico fora do cinema.
Um blog, não um site, pra gente poder trocar, bater papo, levantar questões,
tudo vivo, ativo, quente.
Vai ser assim: aqui no blog você vai poder ver trechos exclusivos do filme,
ler textos escritos especialmente pra cá pelas pessoas ligadas à produção,
saber em primeira mão das novidades, se cadastrar pra assistir a sessões do
filme e até fazer a sua própria versão do trailer!12
A equipe de produção do longa-metragem seguiu um rumo diferente com o
tratamento dado aos leitores do blog Nome Próprio, enquanto as páginas da personagem
Camila e da escritora não tinham espaço para comentários, não permitindo o diálogo
com o público. No caso de Clarah, que criou a protagonista, o site é usado como uma
espécie de diário, servindo para registrar pensamentos e desabafos, por isso ela não
espera, e nem deseja, interagir. Em contrapartida, a equipe do filme estimula tanto a
participação que pede para que as pessoas enviem textos de autoria própria ao estilo dos
que são publicados por Camila na trama. Pierre Lévy fala sobre a mudança no
comportamento online:
Enfim, o suporte digital permite novos tipos de leituras (e de escritas)
coletivas. Um continuum variado se estende assim entre a leitura individual
de um texto preciso e a navegação em vastas redes digitais no interior das
quais um grande número de pessoas anota, aumenta, conecta os textos uns
aos outros por meio de ligações hipertextuais (LÉVY, 1996, pág. 43).
Além de promoções para assistir gratuitamente a sessões do filme, o blog,
no dia 2 de junho de 2008 trouxe a competição13
em que o internauta poderia montar
um trailer, de até 2 minutos, a partir de cena escolhidas do longa e de sua trilha sonora,
cedidas através de links para download. Os três melhores vídeos podiam ser assistidos
no blog e recebiam votos do público. O vídeo que ficasse em primeiro lugar na votação
entraria como material extra no DVD do filme.
Para o concurso foi oferecido um passo a passo explicando as etapas a
serem seguidas para participar.
1) Baixe as imagens em http://sharebee.com/a15a5614
12
Trecho da publicação Nome Próprio, o blog, em blog Nome Próprio:
http://nomepropriofilme.blogspot.com.br/2008/05/nome-prprio-o-blog.html. Acessado em julho de 2012.
13 Anúncio da competição de melhor trailer feito pelo público, em blog Nome Próprio:
http://nomepropriofilme.blogspot.com.br/2008/06/monte-seu-trailer.html. Acessado em julho de 2012.
2) Baixe as músicas em http://sharebee.com/c625598a
3) Monte um trailer de até 2 minutos em seu software preferido
4) Publique o vídeo em http://vids.myspace.com
5) Mande o link e seus dados completos para nomeproprio.filme@gmail.com até o dia
15 de junho
6) O resultado sai no dia 20 de junho.
O blog procurou integrar seu público motivando a participação por meio de
uma tarefa em que as pessoas já estão acostumadas a realizar: o uso de programas de
edição para vídeos caseiros. De acordo com a perspectiva cinematográfica dos
participantes os vídeos eram sendo reorganizados de formas diversas. Essa cooperação
dos fãs comprova a possibilidade da constante releitura das obras, assim como afirma
Vera Figueiredo:
Cada vez mais a ideia de uma obra-prima acabada, fechada em sua perfeição,
cede espaço para a do texto em contínua reelaboração, que se quer flexível,
de modo a facilitar o deslizamento por diferentes meios e suportes. O artista,
cuja formação tende a ser multimídia, torna-se um orquestrador, trabalhando
com mensagens de diversas séries: literárias, visuais, musicais
(FIGUEIREDO, 2010, pág. 45)
Para Murilo, o blog tinha que ser tomado como um local de discussão, não
somente sobre a obra em si, mas o que ela retrata e representa: o escritor online e a
criação de vínculos com quem está distante. O que é falado e escrito ganha corpo, as
letras que surgem na tela sobrepõem-se à imagem, não a deixando totalmente legível. A
palavra ganha destaque, quase ocultando a personagem.
Murilo Salles, em um jogo de câmera, por vezes põe o espectador junto de
Camila em seu pequeno apartamento, ao filmar o computador tempo suficiente para
que se leia, junto com ela, os e-mails recebidos. A personagem está inserida de uma
maneira tão rígida no ambiente virtual que, até mesmo, quando está escrevendo seus
textos à mão, é possível ouvir o barulho de digitação. Na crítica publicada na Revista
Cinética, a escrita no ambiente virtual e seus colaboradores, tanto o autor como o leitor,
ganham destaque:
No entanto, o fato é que Nome Próprio talvez seja um dos melhores filmes
nacionais a se voltar para os personagens jovens em muito tempo, criando ao
mesmo tempo um mergulho radical numa subjetividade sem estereótipos (ou,
pelo menos, sem mais do que o tanto deles que nós mesmos acabamos
vivenciando no dia a dia) e uma capacidade de traçar um painel de
personagens que nunca soa como “exemplificante”, e sim um universo
particular.14
A internet, o virtual e o real
Por tratar da internet, a obra Os Famosos E Os Duendes Da Morte faz, a
todo o tempo, referência a essa plataforma. Por vezes o significado de virtual aparece
como o oposto de real, diferentemente da definição deste vocábulo apresentada por
Pierre Lévy:
Consideramos, para começar, a oposição fácil e enganosa entre real e virtual.
No uso corrente, a palavra virtual é empregada com frequência para significar
a pura e simples ausência de existência, a “realidade” supondo uma efetuação
material, uma presença tangível. O real seria da ordem do “tenho”, enquanto
o virtual seria da ordem do “terás”, ou da ilusão, o que permite geralmente o
uso de uma ironia fácil para evocar as diversas formas de virtualização
(LÉVY, 1996, pág. 15).
Dessa maneira, o virtual estaria em oposição com o que é atual, à medida
que é algo ainda a ser conquistado. No trecho abaixo, o menino reflete sobre a internet
ser uma maneira de fugir da realidade da pequena cidade em que vive. Ele vê que estar
conectado, em contato com as pessoas que moram longe, faz com que ele se desprenda,
um pouco, do que vive. No momento em que essas pessoas deixam o mundo virtual ao
se desconectarem, a idealização de ter outro lugar termina no mesmo instante:
Estar perto não era físico, mas eles não conseguiam entender. Não entendiam
os que precisavam se isolar da cidade para sair da realidade ou para conhecer
um instante de vida, mesmo que ele terminasse assim que a conexão caísse
ou que o nome passasse do verde para o vermelho e a janela indicasse off line
(CANEPPELE, 2010, pág. 11).
Mesmo dividido entre os dois mundos, o menino não deixa de manifestar,
em vários momentos, um forte sentimento de pertencimento ao mundo que conheceu na
internet, sentindo-se deslocado na pequena cidade onde vive. Em algumas passagens, o
protagonista adota o universo da internet como sua realidade de tão forte que é a relação
com as pessoas desse espaço. A falta de interação com o meio em que realmente vive
quase inclui a cidade em um plano imaginário, fazendo-o duvidar sobre sua existência,
14
Crítica publicada na Revista Cinética: http://www.revistacinetica.com.br/nomeproprio.htm. Acessado
em julho de 2012.
como no trecho a seguir: “Passam comigo a noite para eu não me sentir sozinho nas
manhãs, quando a cidade fica ainda mais gelada, pequena e tão longe do mundo real que
eu chego a me perguntar se ela existe de verdade” (CANEPPELE, 2010, pág. 15).
O mundo virtual da internet pode ser sentido tão presente que não parece
constituído do que ainda virá a ser. É como se esse espaço fosse o real, o que realmente
acontece. Um modelo de vida é criado e adotado, assim como descrito na crítica do site
Cineweb, “Tal qual praticamente toda a sua geração, a janela para o mundo é formada
por pixels e bites (...).”
A janela para o mundo é a tela do computador. O mundo real a ser vivido é
o que foi criado dentro da internet, o que pode ser notado, por exemplo, no trecho “O
Diego fumando devagar como se toda a vida não esperasse por nós dentro dos
computadores” (CANEPPELE, 2010, pág. 25). O menino tem o sentimento de
pertencimento a esse espaço.
A constante visualização dos vídeos de Jingle Jangle mantém a história da
menina e o sentimento que o protagonista tem por ela. O personagem se sente tão
próximo dela que ele a trata como se ela ainda estivesse viva. Jingle Jangle não parece
pertencer ao passado, sua presença é forte ao longo da trama, como na passagem: “Tu
sorrindo para mim, dentro do monitor, era eu sabendo de tudo sem precisar viver. Estar
perto não é físico. Nunca foi. Nunca será” (CANEPPELE, 2010, pág. 74).
A lembrança da menina através dos vídeos é real. Embora sejam de
momentos passados, as gravações estão disponíveis para serem visualizadas. A qualquer
momento o material pode ser acessado. A menina, em si, não mais existe. Ela está
morta, não faz parte do presente e nem pode se concretizar no futuro, como na lógica do
virtual, de algo que venha a ser. A ausência de Jingle Jangle pode ser definida no trecho
em que Pierre Lévy descreve o que pode estar além do real e do virtual: “Assim que a
subjetividade, a significação e a pertinência entram em jogo, não se pode mais
considerar uma única extensão ou uma cronologia uniforme, mas uma quantidade de
tipos de espacialidade e de duração” (LÉVY, 1996, pág. 22).
Os vídeos da menina a tornam virtual. Há diferença entre ela em si existir e
a imagem dela estar presente na plataforma. Embora Jingle Jangle tenha morrido, ainda
pode ser vista porque foi virtualizada. As gravações não seguem a mesma lógica do
espaço e tempo do mundo real, sendo possível acessá-las quando quiser, até o momento
em que elas ainda estiverem disponíveis online. A desterritorialização no virtual é
definida por Pierre Lévy:
Quando uma pessoa, uma coletividade, um ato, uma informação se
virtualizam, eles se tornam “não-presentes”, se desterritorializam. Uma
espécie de desengate os separa do espaço físico ou geográfico ordinários e da
temporalidade do relógio e do calendário. É verdade que não são totalmente
independentes do espaço-tempo de referência, uma vez que devem sempre se
inserir em suportes físicos e se atualizar aqui ou alhures, agora ou mais tarde
(LÉVY, 1996, pág. 21).
Na virtualização, outro universo é criado de forma completa. Como o virtual
é algo a ser materializado ele é construído por vários fatores. O lugar idealizado pelo
menino é a internet. O personagem fala do meio como se fosse um espaço físico, de
tanto que crê ser o real. No fragmento o menino fala do computador – o outro lado da
tela - como uma fronteira para chegar ao mundo que ele imagina:
Eu devia ter ido embora naquela hora. Naquela noite. Eles me esperavam do
outro lado da tela. Textos do blogue. Janelas piscando. Notícias de longe.
Eles esperavam do outro lado. Fotografias de lugares distantes. Confissões.
Segredos. Webcamn. Eles. Tu. Tu sem eu saber que também estava lá
(CANEPPELE, 2010, pág. 25).
Pierre Lévy descreve toda a estrutura criada para dar embasamento ao
virtual que é criado para futuramente se concretizar:
A virtualização não é uma desrealização (a transformação de uma realidade
num conjunto de possíveis), mas uma mutação de identidade, um
deslocamento do centro de gravidade ontológico do objeto considerado: em
vez de se definir principalmente por sua atualidade (uma “solução”), a
entidade passa a encontrar sua consistência essencial num campo
problemático (LÉVY, 1996, pág. 17).
A distância que separa o menino dos amigos virtuais não é um empecilho
para a relação de afetividade e confiança que é criada. O personagem faz da frase “Estar
perto não é físico.” uma marca para o entendimento do sentimento que ele constrói com
as pessoas que estão longe, mas parecem próximas por causa da sensação de
encurtamento da distância que a internet traz. A recente plataforma consegue juntar as
características dos outros meios de comunicação. É possível se comunicar através de
textos, como nas cartas, por meio de voz, como no telefone, e por vídeo, que dá melhor
percepção de proximidade.
A relação no meio virtual se constitui de maneira tão forte que o público não
sabe o nome ou apelido dos personagens principais. O menino na internet tem o apelido
de Mr. Tambourine Man e a menina, de Jingle Jangle. Embora pseudônimos adotados
por eles, pelo menos é uma identidade adquirida. Na vida real dos personagens não há
indícios de qualquer identificação, de quem eles realmente são. Há uma inversão de
valores em que na internet os dois personagens conseguem ser únicos, mas fora, eles
não são nem ao menos nomeados, como se não houvesse importância de diferenciá-los
de outras pessoas.
Em Nome Próprio, o computador ganha importância de grandes dimensões,
quase se transformando em um personagem. É na internet, ainda discada no início dos
anos 2000, que Camila busca refúgio para seus desabafos e suas desavenças amorosas.
Constantemente repetido que a protagonista é feita de palavras, é no blog pessoal que
encontra espaço para expressar suas angústias em forma de escrita. Nenhuma ação
escapa aos dedos que transformam em pixel os pensamentos do cotidiano. Não colocar
para fora, em formato de texto, é como se as coisas não fossem concretas, reais. Durante
o longa-metragem, Camila afirma: “Os dias passam, meu corpo apodrece. Corpos
apodrecem. Por isso nada sua se não palavras. Quando escrevo, me afirmo. Quando
falo, ganho sentido. Quando penso, ganho corpo. Meu corpo é letra e linha. Meu corpo
palavra”.
Na música tema, homônima ao filme, composta pela banda brasileira Porcas
Borboletas, o trecho “Quando você tira a roupa algo se revela” expressa o ato de se
mostrar, de não tentar se esconder. A atriz Leandra Leal declarou que durante as
filmagens, mesmo quando estava vestida, sentia-se nua ao encenar a personagem pelo
grau de exposição através das palavras. A escrita é o despir-se, mesmo que não registre
somente verdades. Durante o processo o escritor põe muito de si no papel, ou no
computador. Na capa do DVD (anexo 2), a atriz Leandra Leal está nua, mas diversas
frases impedem que seu corpo seja visto claramente. O texto escrito na capa de maneira
desconexa e embaralhada é o mesmo que aparece ao longo do filme sobre as cenas.
A publicação do blog oficial, intitulado Nem virtual, nem real, para dentro,
traz a mistura de espaços em que o espectador acompanha Camila.
Real, virtual e mental se confundem, trocam de lugar, se revezam. Pulamos
de um para o outro a cada mudança de parágrafo. Estamos na dimensão do
pensamento, da linguagem, da palavra.
Vemos a Camila ou vemos o que ela escreve?
Não importa.
Estamos sempre nem e no mesmo lugar, na cabeça de Camila.15
15
Trecho da publicação Nem virtual, nem real, para dentro, em blog Nome Próprio:
http://nomepropriofilme.blogspot.com.br/2008/07/nem-virtual-nem-real-para-dentro.html. Acessado em
julho de 2012.
Durante uma entrevista com Murilo Salles, o jornalista Felipe Messina faz
uma reflexão sobre ‘os espaços construídos no filme’, em que estão ‘o espaço das
relações pessoais, o espaço da criação artística e o espaço físico do mundo e seus
cubículos de cimento’. O diretor então explica:
Como você mesmo coloca, Felipe, essa é uma parábola da
contemporaneidade; uma falsa sensação de universalidade que a gente tem
através da Internet. Esse paradoxo acaba criando uma clausura de verdade.
Nós somos obrigados a estar fixados à tela do computador para estarmos
conectados com o mundo, e isso é um paradoxo. Hoje em dia, com a internet
mudando para o celular, talvez isso mude. Mas, no momento em que o filme
se passa, em 2001, não havia jeito, para ganhar a liberdade virtual você tinha
que perder a real, tinha que ficar confinado.
Para Pierre Lévy, o avanço das tecnologias proporciona sensações tão reais
de proximidade física que há maior percepção e interação com o que está longe do que
com o que está realmente próximo:
Graças às máquinas fotográficas, às câmeras e aos gravadores, podemos
perceber as sensações de outra pessoa, em outro momento e outro lugar. Os
sistemas ditos de realidade virtual nos permitem experimentar, além disso,
uma integração dinâmica de diferentes modalidades perceptivas. Podemos
quase reviver a experiência sensorial completa de outra pessoa (LÉVY, 1996,
pág. 28).
A personagem cria um espaço de fuga através da escrita online. Em diversos
momentos ela recebe e-mail com elogios ao blog e declaração de pessoas que se
identificam e admiram sua trajetória de vida contada online. Segundo Pierre Lévy, uma
comunidade se forma também virtualmente por causa de um interesse em comum.
Mesmo sem terem contato direto, as pessoas partilham dos mesmos sentimentos e
tendem a se ‘reunirem’ para expressá-los:
Uma comunidade virtual pode, por exemplo, organizar-se sobre uma base de
afinidade por intermédio de sistemas de comunicação telemáticos. Seus
membros estão reunidos pelos mesmos problemas: a geografia, contingente,
não é mais nem um ponto de partida, nem uma coerção. Apesar de “não-
presente”, essa comunidade está repleta de paixões e de projetos, de conflitos
e de amizades. Ela vive sem lugar de referência estável: em toda parte onde
se encontrem seus membros móveis... ou em parte alguma (LÉVY, 1996,
pág. 20).
Conclusão
Como já tratado, a internet criou uma nova cultura, que traz consigo suas
particularidades expressas pela geração Y. A liberdade, que o meio oferece, de todos
serem o que quiserem deixa maior espaço para as pessoas interagirem entre si e criarem,
naturalmente, um lugar de convívio com regras próprias. Pierre Lévy defende que essa
nova cultura é nômade, já que o território virtual é descentralizado devido às suas
características: “A virtualização reinventa uma cultura nômade, não por uma volta ao
paleolítico nem às antigas civilizações de pastores, mas fazendo surgir um meio de
interações sociais onde as relações se reconfiguram com o mínimo de inércia” (LÉVY,
1996, pág. 20).
A possibilidade de ser quem se deseja na internet abre espaço para que a
pessoa represente o que pensa que é realmente e que não demonstraria na vida real. O
personagem do romance reflete sobre o jeito como deseja agir no espaço de total
liberdade, onde não há represálias: “Assim passavam as horas: deitado na cama,
olhando para o teto e escolhendo, entre todos os eus, aquele que melhor eu seria. (...)
Aquele era o meu segredo: permanecer imóvel para viver o que não existia – o que
ainda não e o que nunca mais” (CANEPPELE, 2010, pág. 20).
Na cultura nômade, tudo se desloca incessantemente, inclusive as narrativas,
e as identidades nada mais são que narrativas. É esse deslocamento contínuo que
imprime novas configurações às relações entre cinema e literatura.
Se antes era necessário se apoiar na literatura consagrada para fazer uma boa
adaptação, a ideia de pegar o livro inacabado e criar o roteiro junto à finalização do
texto era impensável. O espelho usado pelo cinema deveria ser uma obra que já tivesse
alcançado lugar de destaque na hierarquia de valores no campo literário.
Abandonar a visão de que a adaptação deveria ser a cópia fiel do texto
inicial proporcionou que cada plataforma explorasse ao máximo suas características
únicas para reproduzir a obra. A percepção de que os suportes deveriam se
complementar permitiu que a narrativa se desdobrasse, por ter mais espaço e recursos
para serem trabalhados. O livro não é necessariamente o suporte central, mas uma das
plataformas de apresentação da narrativa que é veiculada em outros meios. O cinema
passa a ser parte do processo de desenvolvimento e não somente mero reprodutor do
texto inicial.
A liberdade de poder explorar determinadas partes da narrativa na literatura
mais do que no cinema, e vice e versa, possibilitou que cada suporte conseguisse
desenvolver o que há de melhor. O fato de não estar preso a um modelo inalterável
permite que o público se sinta motivado a buscar por mais informações em outros
meios. Não é mais aplicada a lógica de que ler o livro ou ver o filme é o suficiente para
entender a narrativa. Pensar que o livro conta o final da história e por isso não há
motivo para assistir ao filme é um erro. Tanto a obra literária como a cinematográfica
conversam entre si para que cada uma possa explorar detalhes que ficaram
subentendidos na outra plataforma.
A rapidez com que é feita a adaptação também é um elemento novo. A obra
nem está acabada e já é pensada e produzida para diversos meios. Como no caso
apresentado do desenvolvimento de Os Famosos E Os Duendes Da Morte, à medida
que o livro era finalizado, o roteiro também era escrito. E quando o longa estava sendo
filmado, as páginas virtuais relacionadas à sua produção eram alimentadas com
conteúdos textuais e vídeos.
A mudança na velocidade com que o texto desliza nas plataformas é
fundamental para o processo de intercâmbio entre as produções. No momento em que a
narrativa está sendo criada, já se pensa em como conseguir fazê-la dialogar com os
outros meios. Em Os Famosos E Os Duendes Da Morte, os vídeos mostrados no filme
são os mesmos dos links presentes no livro, que antes da conclusão da obra literária já
tinham que estar postados na internet. A obra é apresentada como tendo sido iniciada na
literatura, mas, claramente, deixou-se influenciar pelos outros suportes que a
constituem.
Para conseguir criar essa rede de ligações, em que um meio completa o
outro é fundamental ter o autor e o diretor trabalhando juntos. Embora cada um seja
responsável por levar o texto a uma plataforma, é primordial que o escritor,
independente do suporte, possa transitar de um meio para o outro, por isso é tão
importante a figura do escritor multimídia. O entrosamento do autor e do cineasta foi
essencial para criar as duas obras em conjunto.
Já o caso da adaptação do livro Máquina de Pinball, de Clarah Averbuck,
mostrou que a narrativa pode ser constantemente reciclada, a fim de deslizar para outras
plataformas. Inspirado no material de um blog, transformado em literatura, ocupando os
palcos e sendo exibido nas telas de cinema antes de voltar para a internet, o texto passou
por um processo de deslocamento que pretendíamos examinar nesta pesquisa.
O uso de novos recursos, rompendo com modelos tradicionais de
reprodução, reinventa, então, não só o desencadear da narrativa como também a forma
como o público recebe o conteúdo. A criação de um blog oficial expandiu, ainda mais, o
alcance da obra de Murilo Salles, que não se encerrou no espaço do cinema. O público
que ficou motivado a buscar por mais elementos teve à disposição um leque maior de
opções que se somaram ao texto inicial.
Bibliografia
ARAGÃO, Aurélio Orth de. Por onde anda o autor? A trama da autoria entre cinema e
a literatura brasileiros contemporâneos. Rio de Janeiro: PUC, 2010. Dissertação
de Mestrado.
AVELLAR, José Carlos. O chão da palavra: cinema e literatura no Brasil. Rio de
Janeiro: Rocco, 2007.
AVERBUCK, Clarah. Máquina de Pinball. São Paulo: Conrad, 2002.
CANEPPELE, Ismael. Os Famosos E Os Duendes Da Morte. São Paulo: Illuminuras,
2010.
FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Narrativas migrantes: literatura, roteiro e
cinema. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: 7Letras, 2010.
LÉVY, Pierre. O que é o virtual?. São Paulo: Ed. 34, 1996.
Filmografia
Os Famosos E Os Duendes Da Morte. Esmir Filho, 2009. 101mim.
Nome Próprio. Murilo Salles, 2008. 120mim.
Fontes
Site oficial do filme Os Famosos e Os Duendes Da Morte:
http://wwws.br.warnerbros.com/osfamososeosduendesdamorte/
Flickr de Tuane Eggers: http://www.flickr.com/photos/uncolortv/
Canal do YouTube de J. Jingle Jangle: http://www.youtube.com/user/JJingleJangle
Perfil de Nelo Johann no site Last.fm:
http://wwws.br.warnerbros.com/osfamososeosduendesdamorte/ponte.php?url=lastfm
Perfil de Nelo Johann no site MySpace: http://www.myspace.com/bangbangjesus
Entrevista de Esmir Filho no programa televisivo Notícias MTV, exibido em 9 de abril
de 2010: http://mtv.uol.com.br/noticiasmtv/entrevistas/noticias-mtv-090410-caze-
entrevista-o-cineasta-esmir-filho-confira Acessado em junho de 2011.
Texto de Ismael Caneppele, publicado por Mr. Fork em Colherada Cultural:
http://www.colheradacultural.com.br/content/20091028013330.000.9-C.php Acessado
em junho de 2011.
Blog oficial do filme Nome Próprio: http://nomepropriofilme.blogspot.com.br/
Primeiro blog da Clarah Averbuck: http://www.brazileirapreta.blogspot.com.br/
Segundo blog da Clarah Averbuck: http://adioslounge.blogspot.com.br/
Myspace do filme. http://www.myspace.com/nomepropriofilme
Editora Conrad:
http://www.lojaconrad.com.br/lojas/conrad/__Detalhes.cfm?produto=RQ19374
Gazeta Do Povo:
http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/conteudo.phtml?id=798346
Entrevista com Clarah:
http://revistamarieclaire.globo.com/Marieclaire/0,6993,EML1683662-1740,00.html
Blog da banda ‘Porcas Borboletas’ (música tema):
http://porcasborboletas.blogspot.com.br/