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7/25/2019 Cinema e Indstria - Andr Arajo
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIAINSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CINCIASPROFESSOR MILTON SANTOS
PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PS-GRADUAO EMCULTURA E SOCIEDADE
ANDR RICARDO ARAUJO VIRGENS
CINEMA E INDSTRIA: a experincia dos polos de produo cinematogrfica brasileiros
SALVADOR2014
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ANDR RICARDO ARAUJO VIRGENS
CINEMA E INDSTRIA: a experincia dos polos de produo cinematogrfica brasileiros
Dissertao apresentada ao ProgramaMultidisciplinar de Ps-graduao em Culturae Sociedade do Instituto de Humanidades,Artes e Cincias Professor Milton Santos,como parte dos requisitos para obteno dograu de Mestre.
Orientadora: Prof. Dra. ClarissaBittencourt de Pinho e Braga
SALVADOR2014
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Sistema de Bibliotecas da UFBA
Virgens, Andr Ricardo Araujo.Cinema e indstria: a experincia dos polos de produo cinematogrfica brasileiros / Andr
Ricardo Araujo Virgens. - 2015.129 f.: il.
Orientadora: Prof. Dr. Clarissa Bittencourt de Pinho e Braga.Dissertao (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades, Artes e
Cincias Professor Milton Santos, Salvador, 2014.
1. Indstria cinematogrfica - Brasil. 2. Cinema - Brasil. 3. Cinema - Produo e direo.4. Indstria cultural. I. Braga, Clarissa Bittencourt de Pinho e. II. Universidade Federal da Bahia.Instituto de Humanidades, Artes e Cincias Professor Milton Santos. III. Ttulo.
CDD - 791.430981CDU - 791.43(81)
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RESUMO
Na tentativa de estruturar um modelo de produo em larga escala de cinema no Brasil, nosltimos anos, o pas tem presenciado a expanso de um formato de incentivo produo
audiovisual com a criao de polos locais, que visam, entre outros objetivos, aliar oincremento da produo com a adoo de polticas de fomento concentradas em determinadoterritrio (municpio ou conjunto integrado de municpios). Assim, este trabalho tem comoobjetivo aprofundar as discusses sobre esse fenmeno em trs etapas: em primeiro lugar,localizando-o em torno da relao cinema e indstria; em segundo, traando um brevehistrico dos modelos de produo j adotados no pas; e, por fim, a partir desse panoramahistrico, discutir experincias contemporneas no Brasil, que tentam consolidar uma
produo em larga escala a partir de estruturao de polos locais. Para tal, analisamos asexperincias adotadas nas cidades do Rio de Janeiro-RJ, de Braslia-DF e de Paulnia - SP.
Palavras-chave: Indstria cultural. Economia da cultura. Cinema brasileiro. Polos de
produo cinematogrfica.
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ABSTRACT
Within the context of an attempt to structure a model for large-scale production of cinema inBrazil, in recent years, the country has witnessed the expansion of a format to encourage
audiovisual production from the creation of local centers. They try to combine increasedproduction with the adoption of developing politicals in a specifical territory. Thus, this studyaims to deepen discussions on this phenomenon in three stages: first, locating them around therelationship film and industry. In second place, tracing a brief history of production modelsalready adopted in the country. And finally, from this historical overview, discuss the mostcontemporary experiences created in Brazil, that try to consolidate a large-scale productionfrom structuring local poles. To this, we analyze the experiences adopted in the cities of Riode Janeiro, Brasilia and Paulnia.
Keywords: Cultural industry. Economy of culture. Brazilian cinema. Cinematographicproduction poles.
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LISTA DE ILUSTRAES
Grfico 01 Filmes produzidos no Brasil 1901-1920................................ 46
Grfico 02 Filmes produzidos no Brasil 1921-1930................................ 47
Grfico 03 Produo de longas-metragens no Brasil 1921-1960............ 57
Grfico 04 Produo de longas-metragens no Brasil 1951-1960............ 58
Grfico 05Evoluo anual na produo de filmes brasileiros porestado da Federao entre 1995 e 2012 (produocinematogrfica regional)...................................................... 70
Figura 01 Banner de divulgao da RioFilme...................................... 90
Figura 02Polo Cinematogrfico do Rio de Janeiro: estruturainstitucional de fomento........................................................ 92
Figura 03Polo Cinematogrfico de Braslia/Sobradinho: estruturainstitucional de fomento........................................................ 104
Figura 04 Fachada do Theatro Municipal de Paulnia Paulo Gracindo. 107
Figura 05 Fachada do Pao Municipal de Paulnia................................ 108
Figura 06 Vista geral do Rodoshopping.............................................. 108
Figura 07Polo Cinematogrfico de Paulnia: estrutura institucionalde fomento.......................................................................... 119
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LISTA DE TABELAS
Tabela 01 Quadro analtico da pesquisa................................................. 18
Tabela 02Participao da Embrafilme no mercado de cinema
brasileiro................................................................................ 62
Tabela 03Quadro comparativo da produo de filmes entreEmbrafilme e Boca do Lixo.................................................. 64
Tabela 04Produo de filmes brasileiros por estado da federaoentre 1995 e 2012.................................................................. 70
Tabela 05 Marco legal Polo audiovisual do Rio de Janeiro................ 80
Tabela 06 Marco legal Polo de cinema e vdeo do Distrito Federal... 97
Tabela 07Evoluo demogrfica do municpio de Paulnia e RegioMetropolitana de Campinas................................................. 106
Tabela 08 Marco legal Polo Cinematogrfico de Paulnia.................. 112
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABPITV Associao Brasileira de Produtoras Independentes de Televiso
ABRAFIC Associao Brasileira deFilm Comissions
ANCINE Agncia Nacional do Cinema
BsbFC BrasliaFilm Comission
CONCIVI/DF Conselho Diretor do Programa de Desenvolvimento do Polo deCinema e Vdeo do Distrito Federal
DF Distrito Federal
EMBRAFILME Empresa Brasileira de Filmes S.A.
FAC Fundo de Apoio Cultura do Distrito Federal
FGV Fundao Getlio Vargas
FSA Fundo Setorial do Audiovisual
GEIC Grupo de Estudos da Indstria Cinematogrfica
GEICINE Grupo Executivo da Indstria Cinematogrfica
IDHM ndice de Desenvolvimento Humano Municipal
INC Instituto Nacional de Cinema
INCE Instituto Nacional de Cinema Educativo
IPTU Imposto sobre Propriedade Predial e Territorial Urbana
LATC Latin-america Training Center
MINC Ministrio da Cultura
MPAA Motion Pictures Association of America
MPEAA Motion Picture Export Association of America
OMC Organizao Mundial do Comrcio
PPP Parceria Pblico/Privada
PNUD Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento
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REPLAN Refinaria de Paulnia
UNESCO Organizao das Naes Unidas para Educao, Cincia e Cultura
SAV/Minc Secretaria do Audiovisual do Ministrio da Cultura
SEBRAE Servio Brasileiro de Apoio s Micro e Pequenas Empresas
SENAC Servio Nacional de Aprendizagem Comercial
SENAI Servio Nacional de Aprendizagem Industrial
SICAV Sindicato Interestadual da Indstria Audiovisual
SICAV-RJ Sindicato da Indstria do Audiovisual do Rio de Janeiro
TCE-SP Tribunal de Contas do Estado de So Paulo
TSE Tribunal Superior Eleitoral
UFF Universidade Federal Fluminense
UnB Universidade de Braslia
USP Universidade de So Paulo
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SUMRIO
1. INTRODUO ............................................................................................... 11
2. METODOLOGIA........................................................................................... 14
3. CULTURA, INDSTRIA E ECONOMIA................................................... 19
3.1. OS PRIMRDIOS DA RELAO CULTURA E MERCADO .................. 20
3.2. CINEMA, INDSTRIA E MERCADO: REFLEXES SOBRE ESSASRELAES .......................................................................................................... 27
3.3.AN AMERICAN DREAM: O SONHO HOLLYWOODIANO .. 33
4. CINEMA INDUSTRIAL BRASILEIRO: UTOPIA OU REALIDADE.... 414.1. O PARADIGMA DA INDSTRIA NO CINEMA BRASILEIRO .............. 41
4.2. OS PRIMRDIOS ......................................................................................... 44
4.3. OS ESTDIOS .............................................................................................. 48
4.4. A ERA DOS EXTREMOS: DO ESTADO BOCA DO LIXO .................. 59
4.5. O MODELO NEOLIBERAL ......................................................................... 65
4.6. CONCLUSES INICIAIS............................................................................. 71
5. AS NOVAS HOLLYWOODS BRASILEIRAS ............................................ 74
5.1. RIO DE JANEIRO CAPITAL AUDIOVISUAL DA AMRICALATINA ..............................................................................................................
75
5.1.1. Contexto ..................................................................................................... 75
5.1.2. Histrico ..................................................................................................... 76
5.1.3. Natureza ..................................................................................................... 81
5.1.4. Informantes ................................................................................................ 87
5.1.5. Concluses iniciais .................................................................................... 89
5.2. BRASLIA A CAPITAL DO TURISMO CINEMATOGRFICO ...... 935.2.1. Contexto ..................................................................................................... 93
5.2.2. Histrico ..................................................................................................... 93
5.2.3. Natureza ..................................................................................................... 98
5.2.4. Informantes. ............................................................................................... 101
5.2.5. Concluses iniciais ................................................................................... 103
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5.3. PAULNIA A NOVA HOLLYWOOD BRASILEIRA ......................... 105
5.3.1. Contexto ..................................................................................................... 105
5.3.2. Histrico ..................................................................................................... 109
5.3.3. Natureza ..................................................................................................... 113
5.3.4. Festival de cinema .................................................................................... 115
5.3.4. Informantes ................................................................................................ 116
5.3.5. Concluses iniciais ................................................................................... 117
6. CONCLUSES ............................................................................................... 120
REFERNCIAS ............................................................................................. 123
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1 INTRODUO
Quando comparado com outras artes e apesar de seu pouco tempo de surgimento e de
configurao como tal, o cinema foi uma das primeiras expresses culturais a se enquadrar em
padres industriais de produo, com sua posterior insero na cadeia de produo e
circulao de mercadorias.
Quando o rdio se estabelece como mdia, durante a dcada de 20, o cinemaj havia consolidado o seu status de indstria com operaes em escalaplanetria e a formao dos primeiros grandes imprios que controlavam asreas de produo distribuio e exibio. (SILVA, 2009, p. 52)
Apesar de se reconhecer a importncia desse fenmeno, essa uma questo ainda
pouco problematizada, especialmente no campo da produo. Diversas pesquisas apontam a
importncia do setor cinematogrfico como gerador e disseminador de smbolos e ideologias,
entretanto, a configurao concreta da cadeia cinematogrfica um campo de estudos que
ainda carece de discusses mais aprofundadas.
Num contexto de hegemonia das prticas adotadas por Hollywoodiano, tanto do ponto
de vista do modo de produo, quanto da construo de linguagem e expresso, diversos
pases tm buscado, historicamente, assegurar uma posio privilegiada para suas
cinematografias nacionais, tendo em vista a importncia cada vez maior do audiovisual na
construo de valores e bens simblicos e na gerao de divisas comerciais. No Brasil, no foi
diferente.
um fato que o pas nunca conseguiu construir uma indstria slida, entretanto,
diversas experincias surgiram com essa finalidade. A primeira delas data do incio do Sculo
XX, com a produo incentivada pelos donos de salas de exibio e que originou a chamada
Bela poca do cinema nacional. Posteriormente, com a criao de estdios privados, como
a Cindia, a Atlntida e a Vera Cruz, entre os anos 30 e 50. Em seguida, com a atuao direta
do Estado atravs da criao da Embrafilme Empresa Brasileira de Filmes S/A ou, mais
recentemente, com o advento das leis de incentivo e com uma interseco cada vez mais forte
entre televiso e cinema.
Nesse contexto, um novo fenmeno tem sido percebido no pas, com a criao de
Polos Cinematogrficos1, especialmente em cidades pequenas e mdias. Numa pesquisa
1Ou polos de audiovisual, a depender da abrangncia da proposta, mas importante salientar que focaremosnossa anlise na produo cinematogrfica, tendo em vista que o campo audiovisual, no qual se inserem aproduo televisiva e outras mdias, tornariam o escopo deste trabalho bastante amplo.
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prvia, realizada ainda no momento de escrita do projeto que originou esta pesquisa,
mapeamos iniciativas dessa natureza em implementao em trs regies: Paulnia - SP,
Cataguases - MG - e Viamo -RS. Somadas a elas, inclumos a cidade do Rio de Janeiro, que
sedia o mais antigo polo de produo do pas, datado de 1986, e o Distrito Federal (com aes
nas cidades de Braslia e Sobradinho), concebido no incio dos anos 90.
Importante ressaltar que esses locais foram listados a partir de um critrio que levou
em considerao o mapeamento daquelas cidades/ regies onde o desenvolvimento dessas
experincias se processa com a adoo de polticas institucionalizadas no campo
cinematogrfico. Consideramos que essa institucionalizao se apresenta de duas formas: com
a existncia de uma estrutura organizacional, que responsvel pela manuteno/gesto desse
polo local, com a criao e a vigncia de marcos legais fundacionais e reguladores de sua
dinmica de funcionamento e de planejamentos operacionais e relatrios de gesto.Interessa-nos, aqui, pensar no apenas sobre o desenvolvimento de aes para o
fomento ao audiovisual regional, mas tambm entender como esse fenmeno acontece quando
sua estruturao ganha corpo de poltica pblica reconhecida e mediada por governos
(municipais, estaduais e/ou municipais), pelo mercado e por agentes do campo audiovisual.
Essa opo metodolgica denota, tambm, uma posio do autor sobre o que poderia ser
entendido como um polo de produo cinematogrfica. Consideramos que essa uma
reflexo importante, pois, nos ltimos anos, tem sido cada vez mais comum surgirem notcias
e relatos sobre a constituio de novos polos de produo no pas. Entretanto, para alm darealizao de aes pontuais, partimos de uma ideia, a priori, de que a constituio de um
polo perpassa a conjuno de uma srie de aes estratgicas e continuadas. Isso significa que
ele se constitui dentro de uma poltica de longo prazo, cuja caracterstica fundadora a
existncia de marcos legais desse processo.
Assim, no optamos por discutir sobre outros centros de produo importantes do pas,
tais como So Paulo-SP, Recife-PE, Salvador-BA e Fortaleza-CE (apenas para citar alguns
exemplos) que, apesar de fazer investimentos importantes no campo audiovisual, atravs de
editais de fomento especficos, no tm, em nossa opinio apriorstica, uma polticaestratgica-institucional de fomento ao audiovisual que contemple os dois critrios citados
antes: estrutura de gesto e marcos de planejamento, regulao e gerenciamento.
Importante frisar que, das cinco iniciativas listadas, optamos por aprofundar as
discusses em torno de trs delas: Rio de Janeiro - RJ; Sobradinho - DF - e Paulnia - SP.
Optamos por esse recorte para que pudssemos analisar as trs experincias que esto h mais
tempo em funcionamento no pas e /ou que tenham mais subsdios para debate, tendo em vista
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que, devido ao prazo e aos limites deste trabalho, no conseguiramos debater, de forma
satisfatria, os cinco exemplos citados.
Para fazer essas reflexes, dividimos a pesquisa em trs etapas (que se configuram,
tambm, nos trs captulos desta dissertao). Na primeira, discutimos sobre como se
desenvolveu a relao entre cultura e mercado, a partir das contribuies de autores como
Raymond Williams, Pierre Bourdieu, Theodor Adorno, dentre outros; na segunda, fizemos
um recorte especfico sobre a relao do campo cinematogrfico com a economia e
discutimos sobre como se deu sua configurao como mercado; e na terceira, apresentamos
um panorama do surgimento e do desenvolvimento de Hollywood, que se configurou como
parmetro para discusses e prticas em torno da construo/ manuteno de um padro
hegemnico de produo cinematogrfica.
Partindo para o segundo captulo, abordamos, especificamente, atravs de pesquisahistoriogrfica, a estruturao do campo cinematogrfico no Brasil. Mas, como estamos nos
atendo a uma discusso sobre modelos de produo, apresentamos os principais marcos da
produo cinematogrfica a partir das diferentes experincias que tentaram dotar o pas de
uma produo sistemtica e consistente.
Por fim, o terceiro captulo foca o estudo de casos mltiplos a que se prope este
trabalho, apresentando a concepo de estruturao de um polo de produo tendo como
marco inicial a criao da experincia do Rio de Janeiro, nos anos 80, e como essa concepo
se espalhou pelo pas nos anos 90 e 2000. Tambm localizamos esse fenmeno daconstituio de polos como mais um captulo, na tentativa de consolidar um modelo de
produo em larga escala no pas.
A forma como fizemos essa abordagem e como cada campo terico foi apropriado
para a realizao dessas reflexes sero mais bem abordados no captulo seguinte, que
apresenta a metodologia adotada nesta pesquisa.
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2 METODOLOGIA
Devido natureza e ao objeto de reflexo deste trabalho, ele se enquadra, do ponto de
vista metodolgico, em uma estratgia de anlise de estudo de casos mltiplos, ou de caso
coletivo (discutiremos com mais detalhes sobre essa terminologia a seguir). Yin (2001, p. 32 e
33) refere que o estudo de caso aquele que
investiga um fenmeno contemporneo dentro de seu contexto da vida real,especialmente quando os limites entre o fenmeno e o contexto no estoclaramente definidos. (...) Em outras palavras, o estudo de caso comoestratgia de pesquisa compreende um mtodo que abrange tudo - com algica de planejamento incorporando abordagens especficas coleta dedados e anlise de dados.
Nesse contexto, o estudo de caso coletivo surge como uma forma de se estudarem
casos diversos em conjunto, podendo, ou no, subsidiar generalizaes tericas e replicaes
para outros estudos a partir de seus resultados.
No contexto dos casos coletivos (ou mltiplos), Yin (2001, p. 69) salienta a
importncia de os objetos de estudo serem escolhidos com base numa lgica de
replicabilidade. Ou seja,
cada caso deve ser cuidadosamente selecionado de forma a: a) prever
resultados semelhantes (uma replicao literal); ou b) produzir resultadoscontrastantes apenas por razes previsveis (uma replicao terica). (...) Seos casos forem, de alguma forma, contraditrios, as proposies iniciaisdevero ser revisadas e testadas novamente com outro conjunto de casos.
Por fim, ele divide o andamento de uma pesquisa de estudo de caso em trs grandes
momentos: em primeiro lugar, definio e planejamento, que engloba o processo de
desenvolvimento da teoria, da seleo de casos e da definio de protocolos de anlise; em
segundo, o processo de preparao, coleta e anlise, que engloba a conduo de coleta de
dados dos estudos de caso e realizao de seus respectivos relatrios individuais; e o processode anlise e concluso, com o cruzamento das concluses entre os casos, sua replicao na
reviso terica, a reflexo das implicaes polticas dos resultados e a produo de um
relatrio final dos dados cruzados. justamente esse passo a passo que adotamos para o
andamento desta pesquisa.
Em relao ao primeiro passo - definio e planejamento - realizamos o mesmo
durante o processo de construo e reviso do projeto de pesquisa, a partir do recorte do
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problema a ser estudado os polos de produo cinematogrfica no Brasil os campos
tericos que deram base para essas reflexes como a sociologia da cultura, a economia da
cultura e a histria do cinema brasileiro e a delimitao da metodologia de trabalho a partir
de uma concepo desse trabalho como estudo de casos mltiplos.
Para o processo de coleta e anlise, lanamos mo de uma busca bibliogrfica de
produes cujo objeto de pesquisa fossem temas correlatos e/ou que integrassem o campo da
economia do audiovisual, com foco no campo cinematogrfico, com pesquisas e dados
coletados por instituies pblicas e privadas, como o Ministrio da Cultura e seus rgos
vinculados; o Ita Cultural; o SEBRAE; a Filme B e a FGV. Alm disso, Tambm
procuramos dados produzidos pelos rgos responsveis pela gesto dos polos pesquisados,
como secretarias de cultura,film comissionse seus respectivos planos e relatrios de gesto,
alm de informaes oficiais contidas em documentos pblicos, como os dirios oficiais dosmunicpios.
Por fim, buscamos dados complementares atravs de visitas de campo, aproveitando,
especialmente, perodos de realizao de festivais e eventos organizados nas prprias cidades
escolhidas para o desenvolvimento deste estudo. Para tal, participamos do 45 Festival de
Braslia do Cinema Brasileiro e do Seminrio Estratgias para o Desenvolvimento das
Pequenas Empresas do Audiovisual Brasileiro, que integrou sua programao oficial em
setembro de 2013 e, do Festival do Rio, em outubro de 2013, do workshop Film
Comissions, realizado noRio Market, brao do festival voltado para os negcios no campoaudiovisual, e do RioContentMarket, evento voltado para o mercado de televiso e mdias
digitais, realizado no Rio de Janeiro entre 12 e 14 de maro de 2014.
Como no havia previso de realizao do Festival de Cinema de Paulnia em 2013,
fizemos uma visita tcnica cidade, nos dias 04 e 05 de abril daquele ano, quando pudemos
conhecer a infraestrutura implantada na regio e dialogar com Cntia Santos, representante da
Secretaria de Cultura.
E, por fim, na etapa de anlise e concluso, buscamos dar unidade a esse processo a
partir do mtodo da triangulao de dados. Yin aponta que
(...) a triangulao consiste em fundamento lgico para se utilizar vriasfontes de evidncia, permitindo o desenvolvimento de linhas convergentesde investigao e que os dados obtidos luz de sua anlise se tornem maisacurados e convincentes. (Yin, 2005 apudBOEHS e MAFFEZZOLLI, 2008,p. 103).
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Nesse contexto, Boehs e MAFFEZZOLLI (2008, p. 103), a partir de reviso de
literatura, apontam que o processo de triangulao pode ocorrer de quatro formas:
triangulao de dados (confrontao de dados de fontes diversas); triangulao de
investigadores (com a confrontao da viso de diferentes pesquisadores sobre um mesmo
tema); triangulao terica (confrontao do fenmeno pesquisado por diferentes campos
tericos); e a triangulao metodolgica (com a utilizao de diferentes mtodos de pesquisa e
o domnio de suas respectivas aplicaes).
Com base nessas reflexes sobre a ideia de triangulao, poderamos dizer que a
triangulao metodolgica j intrnseca gnese do trabalho, tendo em vista que, desde sua
concepo original, j apontvamos para a utilizao (e confrontao/ complementao) de
diferentes mtodos de pesquisa, como o historiogrfico, o bibliogrfico e a coleta de
informaes em campo. Isso, por conseguinte, gera a triangulao de dados, a partir dasinformaes coletadas por esses diferentes mtodos que sero sintetizados no decorrer da
anlise. Entretanto, vale enfatizar a importncia das outras trs triangulaes: a terica, a de
investigadores e a de dados.
Quanto triangulao terica, importante salientar que este trabalho, que se localiza
na discusso sobre a relao entre cultura e economia, foi realizado com base na discusso a
partir de dois campos de estudos: a economia poltica da comunicao e da cultura e a
economia da cultura. O primeiro campo foi escolhido por j desenvolver, desde os seus
primrdios, reflexes em torno da relao mercado e cultura. Com forte influncia marxista.Foi em se mbito que se desenvolveram leituras crticas sobre essa relao, com o
desenvolvimento, por exemplo, da noo de indstria cultural por Adorno e Horkheimer, ou
da relao entre arte e reprodutibilidade de Benjamin, mas que tambm tm sido repensadas
por autores como Frederic Jameson.
De forma complementar, tambm lanamos mo das reflexes de Raymond Williams
e sua tentativa de estruturar uma sociologia da cultura por meio de discusses sobre os modos
de se produzir a arte no decorrer da histria, numa perspectiva materialista que dialoga com a
corrente da economia poltica.J o campo da economia da cultura mais recente, pois surgiu a partir dos anos 90, na
tentativa de superar a noo clssica de indstria cultural e de reflexo da relao entre cultura
e mercado, a partir de novos marcos, como a culturalizao da mercadoria, e desenvolvendo
conceitos como indstria criativa e economia criativa. Essa uma discusso que tem sido
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fortemente fomentada por organizaes governamentais - como o British Counsil2, e
multilaterais - como a Organizao das Naes Unidas para Educao, Cincia e Cultura
(UNESCO).
Adotamos a estratgia da triangulao de investigadores, especialmente, porque, na
segunda parte do trabalho, discutiremos sobre como a relao entre o cinema e a indstria
vem sendo discutida teoricamente, sobretudo no contexto brasileiro. Para isso,
confrontaremos autores como Jean Claude Bernadet, Arthur Autran, Lia Bahia Cesrio e
Daniella Pffeiffer, apenas para citar alguns exemplos de autores que que tm se debruado
sobre esse tema e trazido diferentes enfoques sobre a questo. Ou seja, fizemos uma anlise
panormica sobre como essa corrente de estudos vem se desenvolvendo no Brasil. A
triangulao de dados ser feita por meio da sistematizao dos dados obtidos durante a
primeira e a segunda etapa do trabalho.Em relao caracterizao dos estudos de caso, Stake comenta que, em geral, eles
analisam determinado fenmeno considerando cinco aspectos principais: sua natureza; seu
histrico; seu contexto (fsico, econmico, poltico, legal, esttico etc.); os outros casos pelos
quais reconhecido; e os informantes pelos quais pode ser reconhecido.
Tendo em vista esses aspectos, estruturamos categorias de anlise que norteiam o
processo de coleta de dados a partir das diferentes tcnicas e fontes de pesquisa adotadas
(relatrios de gesto, materiais informativos, pesquisas e estudos etc.) e que servem como
norte para sistematizar e apresentar as informaes obtidas.
2
Instituio vinculada ao governo do Reino Unido,responsvel por aes de cooperao internacional nas reasde educao e cultura. Fonte: .
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Tabela 01 Quadro analtico da pesquisa
1) Contextoa) Contexto geral das regies analisadas (polticas, sociais,
econmicas e culturais);
2) Histrico
b) Histrico (origem e desenvolvimento do polo/ contexto
histrico de criao);
c) Marco legal
3) Natureza
d) Arranjo institucional/ modelo de gesto;
e) Infraestrutura construda;
f) Projetos implementados;
g) Montante investido;
h) Relao com outros elos da cadeia;
i) Resultados auferidos (nmero de filmes produzidos e de
pessoas envolvidas etc.).
4) Informantes j) Agentes envolvidos (pblicos, privados e do terceiro setor);
5) Outros casos pelos quais reconhecido
No se aplica, tendo em vista que os outros casos so,justamente, os objetos da anlise de mltiplos casos.
Assim, a partir desses parmetros, pudemos analisar cada caso separadamente e
perceber traos que aproximam e afastam essas diferentes experincias contemporneas de
produo cinematogrfica no Brasil.
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3 CULTURA, INDSTRIA E ECONOMIA
Neste captulo, apresentamos um panorama histrico e conceitual das correntes
tericas que tentaram refletir sobre as relaes entre economia, indstria e cultura. Essa
discusso feita, especialmente, a partir de dois campos do conhecimento: a economia
poltica da comunicao, com o desenvolvimento e a crtica ao conceito de indstria cultural,
e o campo mais recente da economia da cultura.
Em seguida, focamos as discusses, especificamente, a partir de tericos que discutem
sobre a conformao do cinema como indstria, algo que, para alguns atores, faz parte de sua
prpria gnese. E, por fim, fazemos uma abordagem sobre o modelo hollywoodiano como
modelo hegemnico, representando o melhor exemplo da relao entre cinema e modelo
industrial de produo.No recente a tentativa de discutir sobre as implicaes trazidas por uma
aproximao entre o campo cultural com as esferas da economia e do mercado. Essas
reflexes deram origem a importantes temas e conceitos como o mais conhecido, indstria
cultural, ou outros mais recentes, como a indstria criativa e a economia criativa ou
economia da cultura. Entretanto, durante o processo de realizao de pesquisa sobre como
essas noes so tratadas, especificamente no campo do cinema, percebemos a existncia de
uma forte lacuna, porque os principais estudos sobre a ideia de uma industrializao do
cinema brasileiro fazem mais um panorama histrico dos diferentes modos de produoexperimentados no pas, ao invs de discutir, a priori e conceitualmente, sobre o que
representaria um modelo industrial de produo cinematogrfica e como esse fenmeno
teria se dado (ou no) no Brasil.
Em uma tentativa de fomentar essas discusses, acreditamos ser necessrio avanar
para alm do senso comum, que entende a noo de indstria somente a partir de
marcadores como produo em larga escala e relao estreita com o mercado. Esse no
um conceito homogneo e sofreu, durante as diferentes etapas do desenvolvimento do modo
de produo capitalista, influncia de diferentes vertentes e concepes de atuao, como ofordismo, o taylorismo, o toyotismo, entre outros. Essa precisa distino conceitual no o
foco do nosso trabalho, mas, certamente, vamos retomar essa problemtica durante as
reflexes apresentadas nesta pesquisa.
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3.1 OS PRIMRDIOS DA RELAO ENTRE CULTURA E MERCADO
Como este um trabalho que traz em seu escopo discusses sobre a economia do
cinema, consideramos importante, num primeiro momento, apresentar um panorama histrico
de como essas discusses se desenvolveram no apenas na rea audiovisual, mas no campo
cultural como um todo. Nesse sentido, interessam-nos as concepes desenvolvidas pela
sociologia da cultura e que estariam, conforme aponta Raymond Williams (1992), necessria
e fundamentalmente preocupada com as prticas e produes culturais manifestas. Para isso,
esse campo de estudos requereria
novos tipos de anlise social de instituies e formaes especificamenteculturais, e o estudo das relaes concretas entre essas e os meios materiais
de produo cultural, por um lado, e, por outro, as formas culturais concretas(WILLIAMS, 1992, p. 14)
Historicamente, a relao entre artistas, patronato e mercado se constituram de
diferentes maneiras at o desenvolvimento das formas contemporneas em que artistas,
produtores, Estado, mercado e pblicos constituem um emaranhado complexo de relaes e
tenses.
Do ponto de vista da relao entre os artistas e o patronato (mantenedores), Williams
fala do desenvolvimento entre eles a partir de cinco posies distintas: uma forma inicial de
vinculao a uma famlia com base em valores como responsabilidade e honra; relaes de
contratao e encomenda, em que o artista era comissionado individualmente como um
trabalhador profissional; proteo e manuteno, em que a relao se estabelecia por meio de
troca de valores, como manuteno e honra; patrocnio, entendido como a gnese das formas
comerciais modernas de mercado que se tornaram predominantes; e, por fim, um tipo de
relao do pblico como patrono e que remonta gnese da discusso da arte como poltica
pblica3.
J do ponto de vista da relao entre artistas e mercado, a constituio histrica
percebida de quatro tipos diferentes de estabelecimento dessa relao. Em primeiro lugar,
uma relao artesanal, em que a obra permanece sob o controle do artista em todas as etapas
de feitura; a ps-artesanal, em que surge a figura do distribuidor, como por exemplo, no
3 Importante salientar que Raymond Williams no acreditava numa evoluo linear dessas relaes. Devido aisso, ele desenvolveu as ideias de dominante, residual e emergente fazendo referncias, respectivamente, aformas culturais hegemnicas; a formas culturais j existentes e que mantm vestgios e traos juntamente comas formas hegemnicas; e as emergentes como formas culturais novas.
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campo da literatura, em que os livreiros se transformam em editores; o profissional de
mercado4, com o desenvolvimento de formas comerciais mais complexas de circulao de
produtos culturais, intensificao da capitalizao e o surgimento das noes de copyrighte
royalty; e, por fim, o profissional de mercado, com o desenvolvimento deencomendas diretas,
o surgimento de conglomerados produtivos, a constituio dos meios de comunicao de
massa e a intensificao do fenmeno da propaganda.
Antes de Williams tentar construir as bases desse campo, que seria denominado de
sociologia da cultura, Adorno, Horkheimer e outros autores da chamada Teoria Crtica
desenvolveriam, j nos anos 30, reflexes que abordavam, diretamente, a relao entre
capitalismo e cultura, discutindo sobre o fato de as implicaes da produo cultural serem
cada vez mais mediadas por relaes comerciais de venda e troca. nesse contexto em que
eles desenvolvem a noo de indstria cultural, discutindo sobre as implicaes trazidas poressas relaes, tanto do ponto de vista da produo quanto da fruio.
Por um lado, do ponto de vista da produo, Adorno (2002, p 23) defende que
os modernos trustes culturais so o lugar econmico onde continua,provisoriamente, a sobreviver, com os tipos correspondentes de empresrios,uma parte da esfera tradicional da circulao, em vias de aniquilamento norestante da sociedade.
Ressalte-se, porm, que em relao aos consumidores, ou fruidores, que a crtica de
Adorno recai de maneira mais forte, pois, para esse autor,
quanto mais slidas se tornam as posies da indstria cultural, tanto maisbrutalmente essa pode agir sobre as necessidades dos consumidores,produzi-las, gui-las e disciplin-las, retirar-lhes at o divertimento. (...) Aindstria cultural perfidamente realizou o homem como ser genrico. Cadaum apenas aquilo que qualquer outro pode substituir: coisa fungvel, umexemplar. (ADORNO, 2002, p. 41-43)
Conforme salienta Paulo Miguez (2002), a gnese do fenmeno da indstria cultural
estaria diretamente relacionada Revoluo Industrial, que se desenvolveu a partir do final
4 aqui que Williams percebe o surgimento de uma dicotomia que se transformaria num dos grandes paradigmas
das relaes sociais a partir do campo artstico, que a distino entre a existncia de formas autnticas e deformas comerciais. As formas autnticas seriam aquelas do que se chamaria alta cultura, e as formascomerciais eram constantemente associadas s formas culturais populares. Ou seja, a gnese dessa distinosurgiu num contexto em que a burguesia industrial buscava se distinguir e se legitimar como classe,relacionando, ento, distino cultural e distino de classe. desse perodo, tambm, que remonta a ideia deliberdade criadora, ou seja, a reivindicao de parte da classe artstica de que a arte deveria ser produzida deforma autnoma s demandas do mercado.
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do Sculo XVIII na Europa. E, de forma complementar, mas no menos importante, tambm
teve relao direta com o desenvolvimento do modo capitalista de produo. A partir da, o
mercado passou a desempenhar a funo de intermediao entre pblico consumidor e
criadores culturais (MIGUEZ, 2002, p. 211).
Ainda em relao problemtica do consumo, Pierre Bourdieu (2007) apresenta essa
questo a partir de outros marcos. Para ele, seria possvel falar que os produtos da indstria
cultural, que ele chama de cultura ou arte mdia, so destinados a um pblico, muitas
vezes, qualificado de mdio. Para o autor, seria possvel falar de uma cultura mdia para
fazer referncia aos bens culturais produzidos passveis de atingir um pblico socialmente
heterogneo, seja de maneira imediata ou no. Alm disso, essas obras produzidas para seu
pblico encontram-se inteiramente definidas por ele (...) submetida s sanes do mercado
(BOURDIEU, 2007, p. 136) e a uma demanda externa.Nesse contexto, defende que eles obedecem aos imperativos da concorrncia pela
conquista de mercado, ao passo que a estrutura de seu produto decorre das condies
econmicas e sociais de sua produo. Ou seja, as caractersticas principais dessa chamada
arte mdia resultariam dessas condies sociais que se relacionam com a produo desse
tipo de bem simblico, alm da conjuno de outros fatores como a procura pela
rentabilidade dos investimentos, da extenso mxima do pblico e o resultado de transaes
entre as diferentes categorias de agentes envolvidos em um campo de produo tcnica e
socialmente diferenciada (BOURDIEU, 2007, p. 137).Walter Benjamin (2011), ainda no campo da teoria crtica, coloca novos elementos
para debate, quando analisa esse novo momento da produo da cultura a partir de um
elemento central: o da reprodutibilidade. Seu principal objetivo era o de discutir como a
reprodutibilidade modificou o estatuto da arte e inaugurou novos paradigmas nesse processo
de produo-circulao-fruio. Se, inicialmente, o estatuto da arte se dava por critrios de
unicidade e autenticidade que lhe conferiam uma aura, essa noo colocada em cheque
com o advento das tcnicas de reproduo.
O autor afirma que as tcnicas de reproduo seriam um fenmeno completamentenovo, que se desenvolveu ao longo da histria. Se, antes, os gregos s conheciam duas
tcnicas de produo de cpias (a fundio e o relevo por presso), historicamente, outras
foram inventadas, utilizadas e inutilizadas em diferentes perodos histricos. Entretanto, com
o desenvolvimento tcnico cada vez mais intenso, no Sculo XX, elas atingiram tal ponto que
esse fenmeno passou a provocar mudanas importantes no campo artstico. Reproduzem-se,
cada vez mais, obras de arte que foram feitas para ser reproduzidas (BENJAMIN, 2011, p.
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253). Ento, a reproduo passou a fazer parte do prprio processo de produo e consumo
artsticos (mesmo que Benjamin no aborde o termo consumo). E essa uma das razes
pelas quais ele coloca a arte cinematogrfica como pea fundamental para modificar esse
status da arte, aspecto que aprofundaremos mais adiante.
Nesse contexto, o autor, para alm de uma viso negativa desse processo, percebe um
potencial democratizante com o desenvolvimento dos mecanismos de reproduo tcnica da
arte. Mas, nem por isso, ele deixa de fazer crticas experincia de vida moderna, em ensaios
como O Narrador e Experincia e Pobreza.
Jameson outro autor que traz contribuies para essa discusso, apresentando
concordncias e discordncias com os tericos crticos. De um lado, ele enfatiza os processos
de mercantilizao (transformao em mercadoria) e reificao (crescente instrumentalizao,
racionalizao e, especialmente, diferenciao entre meios e fins) como intrnsecos ao mundocapitalista que tambm teria afetado o campo cultural e introduzido a estrutura mercantil na
prpria forma e no contedo da obra de arte em si mesma (JAMESON, 1995, p. 12). De
outro, acaba considerando que
o que insatisfatrio na posio da Escola de Frankfut no o seu aparatonegativo e crtico, e sim o valor positivo do qual depende, notadamente avalorizao da alta arte modernista tradicional como o lcus de umaproduo esttica autnoma, genuinamente crtica e subversiva(JAMESON, 1995, p. 14).
Com isso, Jameson no critica somente essa crena inicial de alguns autores da teoria
crtica (mesmo que Adorno, por exemplo, tenha mudado de posio mais adiante) sobre a
valorizao de determinada expresso, como alta cultura e, por conseguinte, com maior
valor cultural, mas tambm um processo de reflexo que coloca em polos opostos a alta
cultura e a cultura de massa, porquanto entende que esses fenmenos devem ser
compreendidos, histrica e dialeticamente, relacionados um com o outro. Mesmo fazendo
uma anlise crtica da apropriao do campo cultural pelo modelo capitalista de produo, ele
se diferencia em sua anlise, pois ainda enxerga um carter utpico dentro da cultura demassa. O autor
nos possibilita apreender a cultura de massa no enquanto distrao vazia oumera falsa conscincia, mas sobretudo como um trabalho transformadorsobre angstias e imaginaes sociais e polticas (...) (JAMESON, 1995, p.25 e 26).
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Assim, ele nos ajuda a ampliar as discusses sobre esse fenmeno, para que evitemos
posies maniquestas e o enxerguemos como palco de tenses, conflitos e paradoxos
constantes.
Contemporaneamente, conforme evidencia Rubim (2007, p. 144), estamos vivendo um
novo fenmeno que complexifica ainda mais esse universo, com o crescente papel de
componentes simblicos na determinao do valor das mercadorias, mesmo sob o formato de
bens materiais, dotando produtos tidos como meramente utilitrios de forte carga simblica a
partir do maior peso de campos como o design, a moda e a publicidade dentro do seu processo
de feitura, que ele denomina de culturalizao da mercadoria, exemplificando-o da seguinte
forma:
Hoje, em um automvel importa o design, a marca ou outros elementossimblicos que do distino e prestgio ao produto e, por contgio, ao seuusurio-consumidor. Os aspectos estritamente fsico-tecnolgicos de suacapacidade maqunica de transportar pessoas encontra-se em um planonitidamente secundrio. (RUBIM, 2007, p. 144 e 145)
Por fim, novos termos e concepes tm sido desenvolvidos para tratar dessa questo,
por meio de ideias como indstrias criativas, e economia criativa, numa atualizao dessa
discusso da arte e da cultura como produtos e geradores de divisas. Entretanto, importante
salientar que esses termos no so sinnimos e remetem a concepes diferenciadas sobre
como acontece a relao entre cultura e mercado.O termo indstria criativa, segundo Ana Carla Fonseca Reis (2008), teria surgido com
o projeto Creative Nation, desenvolvido na Austrlia a partir de 1994. A autora esclarece que,
entre outros elementos, esse defendia a importncia do trabalho criativo, suacontribuio para a economia do pas e o papel das tecnologias como aliadasda poltica cultural, dando margem posterior insero de setorestecnolgicos no rol das indstrias criativas. (REIS, 2008, p. 16)
Ento, a partir da, ele passou a ser reapropriado, especialmente na Inglaterra, com
uma forte atuao do British Councilnesse debate. Assim, esse foi o conceito desenvolvido
pelo grupo de trabalho Creative Industries Mapping Document5:
5
Documento elaborado pelo Departamento para Cultura, Mdia e Esporte do governo britnico, com osresultados de um primeiro mapeamento das indstrias criativas na regio e abrangendo as reas deAntiguidades, Arquitetura, Artesanato, Artes Cnicas, Cinema, Design, Jogos eletrnicos, Mercado Editorial,Moda, Msica, Publicidade, Softwares e TV e Rdio.
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Em suma, as indstrias criativas so definidas por duas caractersticasfundamentais: so concebidas como atividades baseadas na criatividadeindividual quanto a sua capacidade de gerar propriedade intelectual (que exportvel) junto com o aproveitamento dessas como base para criao deriqueza e emprego. (SCHLESSINGER apudBOLAO, 2011, P. 70)
No que diz respeito a essas concepes desenvolvidas na Austrlia e na Inglaterra,
Bolao (2011) aponta que, de forma geral, o que se percebe uma tentativa de afastar a noo
clssica de indstria cultural. Alm disso, existe uma ampliao das atividades que
comporiam a economia do campo cultural, entendendo como indstria criativa, tambm,
ramos como a publicidade, softwares, games e moda, mas sem se afastar da noo tradicional
de propriedade intelectual.
Entendemos, ento, que, nessa primeira concepo de indstria criativa, as
imbricaes entre cultura e economia so naturais e as vinculam a uma nova vertente dedesenvolvimento e ampliao de mercados, mas ainda dentro de marcos econmicos
tradicionais. A partir da, uma srie de concepes alternativas comearam a ser
desenvolvidas e resultaram em outros termos, como economia criativa. Essas mudanas e
disputas conceituais tm buscado, muitas vezes, vincular a ideia de uma economia do campo
cultural ou do campo da criatividade a partir de marcos diferenciados. O governo brasileiro,
por exemplo, a partir da criao da Secretaria da Economia Criativa, vinculada ao Ministrio
da Cultura e sob a gesto de Cludia Leito, passou a adotar o seguinte conceito:
Os setores criativos so aqueles cujas atividades produtivas tm comoprocesso principal um ato criativo gerador de um produto, bem ou servio,cuja dimenso simblica determinante do seu valor, resultando emproduo de riqueza cultural, econmica e social (MINISTRIO DACULTURA, 2011).
Outras vertentes adotam um conceito ainda mais diferenciado, com o fim de vincular a
ideia de economia criativa ao estmulo produo em redes colaborativas e em marcos da
chamada cultura livre e que questionam, diretamente, a noo de propriedade intelectual e
direito de autor.
Nos ltimos anos, algumas concepes foram desdobradas a partir da, como a ideia
de cidade criativa, que relaciona a ideia de economia criativa dinmica urbana. Conforme
aponta Ana Carla Fonseca Reis (2011), uma possvel definio para essa noo seria
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cidades que se caracterizam por processos contnuos de inovao, das maisdiversas ordens. Elas se baseiam em conexes (de ideias, pessoas, regies,intra e extraurbanas, com o mundo, entre o pblico e o privado, entre reasde saber) e tm na cultura (identidade, fluxo de produo, circulao econsumo, infraestrutura, ambiente) grande fonte de criatividade e diferencialsocial, econmico e urbano (REIS, 2011, p. 70).
Ressalte-se, entretanto, que, sob nosso ponto de vista, todas essas concepes
contemporneas ainda carecem de amadurecimento conceitual, o que, no raras vezes, resulta
em conceitos frgeis e/ou que aparentam ter apenas apelo mercadolgico/marketing, ou
mesmo com forte teor subjetivo (Como mensurar e/ou apontar que uma cidade criativa?
possvel ter indicadores? E com quais parmetros de inovao e criatividade estaramos
trabalhando? Parmetros importados dos grandes centros urbanos de pases desenvolvidos ou
de realidades distintas delas?). Alm disso, mencionamos outro ponto de reflexo importante:
o que diferenciaria, concretamente, a ideia de cidade criativa da ideia de citymarketing6?
Mesmo que suas fontes de reflexo sejam distintas, seus parmetros de reflexo no seriam os
mesmos? No queremos dizer que essas reflexes sejam inteis ou desnecessrias. Ao
contrrio, apontamos apenas a necessidade de trabalhar essas noes de forma mais objetiva,
sem a dureza das cincias exatas e sem uma subjetividade tamanha que no consigamos
avaliar e discutir com base em dados mais concretos.
Assim, apesar do esforo de analisar e de conceituar diferentes pesquisadores nos
ltimos anos, esse um fenmeno que ainda carece de sistematizao e de estudos
especficos, tanto do ponto de vista conceitual e econmico quanto da anlise do circuito de
produo, distribuio e consumo de bens simblicos. A srie de trabalhos j desenvolvidos
na rea no elimina a fragilidade em torno do conceito ou as disputas internas que ainda
existem sobre esse processo de maturao analtica. E numa tentativa de incentivar o
desenvolvimento dessas discusses, numa perspectiva multidisciplinar, este trabalho foi
desenvolvido.
6 Maria Isabel Branco (2011) enuncia que o Citymarketingconfigura uma das maneiras de tornar a cidade umamercadoria e pode ser aplicado tanto no setor pblico quanto no privado, pois aumenta a arrecadao e o lucro.Vrias cidades no mundo e do Brasil encontraram e ainda encontram, na renovao das reas centrais, umaestratgia para atrair atividades competitivas associadas informao, tecnologia, finanas, lazer e turismo(BRANCO, 20011, p. 49). Alm disso, ela complementa que essa noo tambm est vinculada adoo demegaprojetos, utilizados como estratgia de divulgao da cidade, e tambm como mais forma detransformao da cidade em mercadoria. Nesse sentido, destaca o papel da mdia nesse processo (nadisseminao dessa concepo e no processo de divulgao de projetos dessa natureza).
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3.2 CINEMA, INDSTRIA E MERCADO: REFLEXES SOBRE ESSAS RELAES
O mercado cinematogrfico, conforme conhecemos hoje, comeou a se consolidar
ainda em meados do Sculo XX. Inicialmente hegemonizado por produes europeias,
especialmente francesas, italianas e alems, a I Guerra Mundial provocou, tambm, uma
mudana desse cenrio e fez com que os EUA despontassem como principal produtor e
exportador de filmes no mundo (MATTA, 2008).
Com o aperfeioamento do modelo de produo em maior escala, surgiu, na Frana, a
partir de realizadores como Georges Mlis e Charles Path, o perodo de ascenso
econmica norte-americana, e o desenvolvimento do fordismo, como um modelo de
produo, logo chegou produo cinematogrfica, que teria sede em Hollywood7. Organizar
e dominar os demais elos da cadeia foi apenas uma questo de tempo.Em relao ao desenvolvimento do modelo capitalista de produo e sua posterior
apropriao do campo da cultura, Joo Paulo Matta (2008) aponta a indstria
cinematogrfica como precursora da indstria de entretenimento moderna. Isso porque,
quando comparado com outras artes e apesar de seu pouco tempo de surgimento e
configurao como tal, o cinema teria sido uma das primeiras expresses culturais a se
enquadrar em padres industriais de produo e com sua posterior insero na cadeia de
produo e circulao de mercadorias. Martin-Barbero refere que o cinema teria se
configurado como o primeiro meio massivo de uma cultura transnacional (MARTIN-BARBERO, 2009, p. 206).
Isso significa que estudar as bases de configurao da indstria cinematogrfica e de
seus consequentes impactos sociais, econmicos e culturais nos ajuda a refletir sobre como se
configurou, durante o Sculo XX, toda uma cadeia voltada para a comunicao de massa e
para o entretenimento, que viram no cinema (hollywoodiano, vale ressaltar) suas bases
iniciais.
Continuando essa anlise, Martin-Barbero (2009) aponta duas razes principais
responsveis por essa universalizao dos cdigos do cinema produzido nos Estados Unidos:o desenvolvimento do star system8 e a produo de um novo tipo de mediao entre os
espectadores e os mitos. A identificao com a estrela foi o lugar desse afianamento, pois
7 Vale lembrar que os primrdios da produo, nos EUA, surgiram na costa leste, em Nova Iorque. Entretanto,uma grande leva de produtores migrou para a costa oeste, na tentativa de fugir das taxaes e impostos locais(MATTA, 2008).8Sistema de construo de estrelas e celebridades, em que as personalidades (dos atores e das atrizes, porexemplo) ganham notoriedade e se transformam num chamariz de pblico com a construo da ideia de f.
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ali se produzia a transposio da fascinao onrica, na sala de cinema, para a idealizao de
valores e comportamentos fora da sala na vida cotidiana (MARTIN-BARBERO, 2009, p.
204). Essa mediao teria na tela um dispositivo principal: a utilizao do primeiro plano, que
geraria aproximao e fascnio. O segundo seria pelo desenvolvimento dos gneros
cinematogrficos, que o autor sintetiza da seguinte forma:
Assim, um gnero ser no s um registro temtico, um repertrioiconogrfico, um cdigo de ao e um campo de verossimilhana, mastambm um registro da concorrncia cinematogrfica, e mesmo umaoportunidade de especializao para as casas produtoras. Na poca doesplendor de Hollywood, a Warner Bros. se especializou em cinema degngsteres, a Universal, em terror e a Metro, em dramas psicolgicos ehagiografias (MARTIN-BARBERO, 2009, p. 205).
Mais do que uma forma de contar histrias, os gneros se configuraram como ummodo de produo que contribui para a especializao dos trabalhos dos grandes estdios e
para a criao de determinado tipo de expectativa no pblico que se fidelizava tanto pelo
gnero quanto pelos artistas. Dois gneros teriam sido importantes nesse primeiro momento e
contriburam para sua popularizao e universalizao: o westerne o melodrama.
Alm dessas questes apontadas por Martin-Barbero, que nos ajudam a refletir sobre
os fatores que aproximaram mais essas obras de seu pblico e justificam seu xito, no
podemos deixar de salientar que o cinema passou a se configurar como campo econmico a
partir do momento em que desenvolveu e aperfeioou, internamente, a cadeia de produo
que ainda lhe d sustentao, baseado na trade produo distribuio exibio e que
passou a adotar o formato longa-metragem como o produtor, por excelncia, das salas de
exibio (MOURA, 1987).
Conforme aponta Anatol Rosenfeld (2002), o fechamento dessa cadeia s se tornou
possvel quando o cinema se transformou numa arte de fruio coletiva, ou seja, com a
inveno da projeo que teria sido a base do consumo coletivo e simultneo e, a partir
dele, desenvolveu-se o espetculo cinematogrfico (ROSENFELD, 2002, p. 64). Esse um
ponto importante a ser salientado, porque foi com esse modelo de fruio que o cinema
obteve, durante muito tempo, sua principal fonte de receitas diretas (bilheteria). Esse o
momento, utilizando uma categoria marxista, em que o filme se converte em mercadoria.
O filme uma mercadoria e, portanto, requer investimento. O investimento realizado no por artistas e sim por empresrios (na melhor das hipteses,por um artista-empresrio, que deve ser um empresrio como qualquer outro,
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isto , deve estar submetido aos ditames do mercado, seno a falncia resultado inevitvel) (VIANA, 2009, p. 59).
Nesse momento, vale a pena retomar algumas das discusses trazidas por Walter
Benjamin sobre o cinema, pois exatamente no momento histrico, de sua consolidaocomo campo social, que ele produz suas principais contribuies tericas. Na discusso que
prope a ideia de reprodutibilidade no campo da arte, Benjamin afirma que esse processo,
iniciado de maneira mais forte com a litografia e com a fotografia, teria encontrado no cinema
o agente mais eficaz nesse processo de quebra da aura da arte, como uma liquidao do
elemento tradicional da herana cultural.
As tcnicas de reproduo tambm teriam modificado a atitude da massa diante da
arte, o que indica que, no cinema, o pblico no separaria a crtica do processo de fruio. O
autor assevera, tambm, que essa recepo das massas ao cinema tambm colocou em chequea ideia de aura j que, pelo senso comum (burgus), as massas buscavam diverso,
enquanto a arte exigia recolhimento. Essa forma de recepo mediante divertimento, afirma
Benjamin, um sintoma de importantes modificaes nos modos de percepo, e que
acabou encontrando no cinema seu melhor campo de experincia (BENJAMIN, 2011).
Entretanto, um aspecto importante sobre o campo cinematogrfico que,
medida que restringe o papel da aura, o cinema constri, artificialmente,fora do estdio, a personalidade do ator: o culto da estrela, que favorece ocapitalismo dos produtores cinematogrficos, protege essa magia dapersonalidade, que h muito j est reduzida ao encanto podre de seu valormercantil (BENJAMIN, 2011).
Nesse contexto, tambm critica o modo de produo cinematogrfica instaurado na
Europa ocidental9 em que, para ele, se recusa satisfazer as pretenses do homem
contemporneo de ver sua imagem reproduzida10.
Aos poucos, a cadeia do cinema foi se tornando cada vez mais especializada e
complexa, devido s mediaes de interesses que envolviam os agentes que compem os trs
9 Desde os seus primrdios, diferentes formas de fazer cinema foram experimentadas pelo mundo. Um bomexemplo que ilustra a pluralidade de modelos existentes, antes de Hollywood se tornar hegemnico, foram asvanguardas europeias, como o expressionismo alemo, o impressionismo francs ou o construtivismo russo.Cada uma delas trazia, em sua gnese, especificidades quanto construo da linguagem e ao modo de produzir.E, mesmo com a emergncia de Hollywood como modelo hegemnico, outras iniciativas que o criticavam, emmaior ou menor escala, sempre existiram, como o neorrealismo italiano, o cinema novo brasileiro e o terceirocinema na Amrica Latina, apenas para citar alguns exemplos.10Esse um ponto que Benjamin aprofunda em outro ensaio, chamado O Autor como produtor. Dentre outrasquestes trazidas pelo texto, ele aponta a necessidade de quebrar fronteiras entre autores e pblico, para que,cada vez mais, elas no sejam categorias isoladas.
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elos principais desse trip e que passaram a envolver operaes comerciais de alto risco, pelo
montante investido e o retorno nem sempre existente.
At aqui, apresentamos as bases iniciais com as quais o cinema se configurou como
atividade econmica, entretanto, ainda consideramos importante avanar numa discusso que
se complementa com as anteriores, mas que deve apontar outras questes: o que caracteriza,,
de forma mais precisa, um modelo industrial de produo cinematogrfica?
Alguns autores, como Authur Autran, Jean-Claude Bernadet e Joo Paulo Matta,
listam algumas caractersticas que servem como norte inicial para essa reflexo. Eles indicam
questes como a concentrao dos elos da cadeia produtiva em torno de poucos agentes; a
utilizao de instrumentos de marketinge merchandising atravs da estratgia, por exemplo,
do star system; a existncia de poucas produtoras e com forte tendncia verticalizao
(domnio de mais de um elo da cadeia produtiva); os grandes estdios como base de produoe a prpria movimentao dessa cadeia, com a comercializao dos produtos
cinematogrficos em diferentes suportes (AUTRAN, 2008; BERNADET, 2001; e MATTA,
2008).
Com um esforo semelhante, De Luca (apud FERNANDES, 2010) apresenta duas
condicionantes que poderiam caracterizar o cinema atividade industrial:
1) a sua dinmica cadeia produtiva cuja atuao dos elos de produo,distribuio e exibio, fundamental para viabilizar e movimentar o seu
funcionamento dentro de uma lgica de diviso do trabalho; 2) acomercializao das cpias reproduzidas, que resultaria por sua vez naremunerao de toda a cadeia produtiva, de uma ponta outra.(FERNANDES, 2010, p. 49)
Complementando essa questo e complexificando os elementos que configuram a
indstria cinematogrfica, George Ydice afirma:
O que comeamos a ver , assim, o modelo de maquiladora na indstriaflmica tambm presente em todas as outras indstrias nas quais a
acumulao baseada nos direitos de propriedade intelectual e no conceitomais difuso dos direitos de propriedade cultural (YDICE, 2006, p. 37).
Nesse contexto, ao fazer essa discusso sobre a industrializao do cinema, George
Ydice vai alm e afirma que o modelo desenvolvido a partir de Hollywood teria sido a base
para a economia que gira em torno dos direitos de propriedade intelectual de bens culturais
como conhecemos hoje. Assim,
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o lucro obtido na possesso (ou, como diria Storper, criao) dos direitosde propriedade; os que no tm esses direitos ou os que perderam devido aplicao de leis concebidas para favorecer os interesses das corporaes sorelegados ao trabalho de provedores de servio e de contedo. (YDICE,2006, p. 37)
Pensando no contexto contemporneo, impossvel no incluirmos o processo de
digitalizao como pea fundamental que interfere nos rumos da indstria cinematogrfica (e
audiovisual). Se, de um lado, percebe-se o barateamento de custos com uma massificao de
equipamentos e formatos, de outro, poucas mudanas estruturais ainda acontecem na cadeia
(referente aos principais agentes envolvidos e queles que concentram maior poder nesse
circuito tradicional de comercializao de produtos cinematogrficos).
importante observarmos no apenas o processo de digitalizao, mas tambm o
processo de convergncia, com a existncia de barreiras cada vez menos ntidas entrediferentes mdias/suportes. Nesse contexto,
(...) o investimento em estratgias de distribuio e convergncia entretelecomunicaes, informtica e audiovisual seriam tendncias gerais dosmodelos econmicos da produo cultural contempornea, assim como arenovao e a extenso do processo de industrializao da informao e dacultura (MIEGE apudBRITTOS e KALIKOSKE, 2009, p. 103).
Sem a inteno de querer esgotar essa discusso e tentando sintetizar todas essas
vises sobre um conceito mais preciso de como entendemos um modo industrial de produocinematogrfica, devemos levar em considerao algumas questes: em primeiro lugar,
entender que a ideia de indstria no datada, apenas, do Sculo XVIII e que,
historicamente, esse modo de produo foi se aperfeioando (e se modificando); em segundo,
que, apesar de estarmos nos referindo ao processo de produo, todos os elos que
retroalimentam e impulsionam a cadeia de produo tambm devem ser levados em
considerao.
Podemos, ento, perceber, com base nos diferentes fatores enumerados, como uma
mentalidade tcnico-racionalizante - entendendo esses termos dentro do marco da crtica
materialista - foi se apropriando do campo cinematogrfico e permitiu que se construsse o
modelo hegemnico de produo que temos hoje, a partir de configuraes complexas entre o
campo cultural e o campo econmico e poltico. Entretanto, mesmo no tendo sido o foco
desta dissertao, compreendemos que esse um modelo limitante e que pode (e deve) ser
alvo de crticas.
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Por que, ento, essas questes so importantes? Porque acreditamos que o modelo que
se convencionou chamar de industrial, apropriado e aperfeioado por Hollywood,
representa o modelo que se tornou hegemnico no mundo ou, utilizando termos de Guy
Hennebelle (1978), deu origem a uma concepo de cinema atualmente dominante, tanto em
padres estticos, quanto na forma de lidar com meios, processos e foras produtivas.
Raymond Williams argumenta que,
em qualquer perodo especfico h um sistema central de prticas,significados e valores que podemos chamar apropriadamente de dominante eeficaz. Isto no implica nenhuma presuno sobre seu valor. O que estoudizendo que ele central. (WILLIAMS, 2011, p. 53)
Ao mesmo tempo, tambm seria possvel atestar, segundo o autor, a existncia de
posies alternativas e posies de oposio a esse sistema dominante do Brasil11. Ou seja,
com base na noo de hegemonia, seria possvel pensar processos sociais por meio de
modelos complexos que abarcariam, tambm, processos de alternativas e mudanas. Se, de
um lado, praticamente um consenso que se deve reconhecer a importncia do audiovisual na
construo de valores e de bens simblicos e na gerao de divisas comerciais, de outro, deve-
se questionar o poderio que a indstria cinematogrfica atingiu no mundo 12 e se esse , de
fato, o nico modo possvel de fazer cinema.
Voltando ao objeto desta dissertao, importante deixar claro que no fazemos uma
defesa poltica desse tipo de produo dominante, mas partimos desse modo de pensar e de
produzir para refletir sobre o fazer cinema. Por isso mesmo, no vamos dar ateno, nesse
momento, a modelos alternativos e/ou opositores, pois estamos discutindo sobre a
constituio desse modelo hegemnico para compreender suas formas de produzir e de
reproduzir.
De toda forma, embora nossa inteno no seja de esgotar a questo, entendemos,
inicialmente, a noo de cinema industrial como uma ideologia hegemnica baseada na
fetichizao de quatro elementos principais: os estdios, como locais de trabalho; as grandes
estrelas (star system), como uma das principais estratgias de marketing e atrao de pblico;
o formato longa-metragem (em especial os blockbusters), como principal produto de
11 Reymond Williams aponta a existncia de foras dominantes, residuais e emergentes dentro do campo culturalem um processo de disputa por hegemonia. A fora dominante a que detm a hegemonia em determinadomomento histrico; a residual so os resqucios que permanecem de foras anteriores em certo momento; e asemergentes dizem respeito a foras novas que entram nesse processo de disputa (WILLIAMS, 2002).12Conforme sintetiza Janet Wasko (2007), o mercado americano controlaria 75% do mercado de distribuio nomundo, tendo filmes exibidos em 150 pases e produtos televisivos circulando em 125 mercados.
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comercializao e fonte de lucros; e as salas de exibio, como um modo (inicial) de fruio,
sobretudo como um sistema em que todos os elos tambm trabalham com esses princpios
como norteadores. Ou seja, o cinema se tornou indstria quando no s os produtores, como
tambm os distribuidores e os exibidores passaram a adotar esses preceitos como ideologia de
trabalho e modo de produo.
Assim, longe de querer fazer uma apologia ou defender o modelo holywoodiano como
um modelo a ser seguido, reconhecemos que o formato caracterizado anteriormente se tornou
hegemnico e que tambm marcado por limites e presses que o questionam desde sua
constituio. Por isso, no prximo tpico, vamos apresentar um breve histrico de como esse
padro hollywoodiano se desenvolveu e se tornou hegemnico desde meados do Sculo XX.
3.3 AN AMERICAN DREAM: O SONHO HOLLYWOODIANO
A pesquisadora Janet Wasko (2007), ao analisar, de forma geral, as razes que
levaram supremacia americana nesse mercado, em escala mundial, aponta para fatores
culturais, econmicos, histricos e polticos. Os primeiros estariam ligados ao fato de ter
conseguido exportar e transformar em padro os cdigos e a linguagem desenvolvida dentro
do modelo narrativo, que se convencionaria chamar de clssico; os econmicos, por terem
conseguido estruturar forte mercado domstico e por consolidar mecanismos de distribuio
em larga escala; os histricos, por causa da orientao comercial da produo, da distribuioe da exibio americanas desde os seus primrdios, alm dos benefcios econmicos trazidos
pelas duas grandes guerras mundiais para o pas; por fim, do ponto de vista poltico, devido ao
capital acumulado pelaMotion Picture Association of America(MPAA) e ao prprio papel do
Estado americano na implementao de polticas (protecionistas) de apoio ao setor, interna e
externamente (WASKO, 2007, p. 32-40).
Assim, partindo do ponto de vista dos cdigos e da linguagem que se tornou
hegemnica, Adorno (2002, p. 15) aponta que
a velha experincia do espectador cinematogrfico, para quem a rua l defora parece a continuao do espetculo que acabou de ver pois esse querreproduzir de modo exato o mundo percebido cotidianamente tornou-se ocritrio da produo.
Aqui, ele faz referncia narrativa clssica desenvolvida em filmes como O
Nascimento de uma Nao, de D.W. Griffith (1915), precursor da ideia de dotar o filme de
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uma impresso de realidade, de uma montagem transparente, para fazer o espectador imergir
naquele universo.
J do ponto de vista do modus operandi, por meio de uma forte estratgia de
consolidao do mercado interno e de insero em outros mercados nacionais, o xito
hollywoodianose configurou, em pouco tempo, como um modelo a ser seguido. Assim, o
mundo assistiu ao crescimento e continuidade da supremacia norte-americana dentro desse
setor e viu seu modelo de produo e distribuio ser exportado para quase todos os pases do
mundo, tanto pela injeo direta de capital em outros mercados mundiais, quanto pela
exportao do modelo em si. Isso tambm aconteceu em alguns pases que conseguem manter
um alto nvel de produo nacional, como a ndia, por exemplo.
Avaliando o processo histrico de consolidao da indstria cinematogrfica
americana, as duas Guerras Mundiais e o perodo imediatamente posterior a cada uma delasforam fundamentais nesse processo. A partir de 1914, por exemplo, com a I Guerra Mundial
assolando a Europa at ento, principal mercado produtor de filmes do mundo a produo
dos EUA comeou a ocupar esse espao deixado em aberto. Isso perdurou no perodo entre
guerras, tendo em vista que a Europa ainda passou por um longo perodo de recuperao e que
os Estados Unidos passaram a adotar polticas externas agressivas para manter esse quadro.
Coincidentemente ou no, o citado filme O Nascimento de uma Nao foi lanado
em 1915. Ou seja, o cinema norte-americano, seja no mercado interno, seja no mercado
externo, desenvolveu-se maciamente justamente no perodo em que a linguagemcinematogrfica ainda vinha se desenvolvendo. Logo, no seria exagero afirmar que o modelo
aperfeioado por Grifith acabou a partir desse filme e teve mais chance de se tornar, de fato,
hegemnico. Afinal, era o modelo que logo se tornaria o mais visto e o mais incorporado ao
hbito de se ver um filme.
Ainda nessa poca, o governo americano teve grande importncia como impulsionador
da insero de filmes americanos em mercados estrangeiros, que estava associada, muitas
vezes, a barganhas e a negociaes comerciais (WASKO, 2007). Mas, conforme
complementa Guy Hennebelle (1978), quatro teriam sido as grandes razes que justificariam aguinada na participao dos EUA no mercado mundial de cinema depois da I Guerra Mundial.
A primeira seria a prtica do chamado brain drain, ou atrao de crebros, quando uma
srie de artistas e diretores europeus (especialmente da Inglaterra, Frana e Sucia) passou a
residir em Hollywood13. Em segundo lugar, a criao da Motion Pictures Association of
13 Um exemplo notvel o da atriz Greta Garbo, natural da Sucia, e que se tornou cone no cinema norte-americano.
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America (MPAA) em 1925, que passou a representar os interesses do setor de forma mais
organizada e que logo se configurou como um importante agente lobista. O terceiro fator seria
uma espcie de inundao dos mercados externos, com exportao macia de filmes
(especialmente para Europa). Por fim, o aparecimento do cinema falado, como diferencial
tecnolgico/de mercado.
H que se ressaltar que o desenvolvimento dos talkies - como ficaram conhecidos,
inicialmente, os filmes falados - trouxe implicaes diretas para o mercado de cinema. No
foi por coincidncia que, nesse perodo, diversos pases comearam a questionar, de forma
mais sistemtica, a penetrao da produo hollywoodiana em seus respectivos mercados e
questionar no s o papel econmico, mas tambm o papel cultural que essas produes
desempenhavam. Assim, a possibilidade no s se se ver, mas, especialmente, de se ouvir
fizeram ganhar fora, inclusive no Brasil, movimentos pela adoo de polticas protecionistas.Liciane T. de Mamede aponta que
foi o momento em que o mundo se perguntou se seus filmes (das grandescompanhias cinematogrficas americanas) poderiam continuar a penetrar nomundo inteiro sem nenhuma resistncia do pblico. (...) Enquanto isso, emlugares onde os filmes americanos haviam inibido ou impossibilitado odesenvolvimento de uma indstria cinematogrfica nacional, esse fatosignificou um momento de expectativa de mudanas (MAMEDE, 2012, p.02).
De fato, diversos pases, como a Alemanha, ainda em 1925, a Inglaterra, a Frana, a
Itlia ou, at, o Brasil, entre o final dos anos 20 e o incio dos anos 30, passaram a adotar
medidas protecionistas, entre elas, aes como a cota de tela14 e o investimento direto em
produo, aes adotadas por diferentes Estados Nacionais at hoje. Nesse contexto, as
cinematogrficas europeias se reergueriam de forma mais efetiva a partir da, mas, nem por
isso, o domnio americano ficou muito abalado. Assim, o desenvolvimento e o
aperfeioamento de tcnicas de dublagem fizeram Hollywood se tornar poliglota.
O pesquisador Edward Jay Epstein (apud FERNANDES, 2010) aponta, ainda, que,
nessa poca (anos 30), houve um aumento na rigidez do processo de produo dos filmes.
Segundo ele, os executivos da atividade cinematogrfica controlavam rigidamente os custos
de seus filmes (...) chegando inclusive a estipular por contrato a quantidade de pginas do
roteiro que os diretores deveriam filmar por dia.
14 Mecanismo adotado por diversos pases, a partir da dcada de 20, quando foi estipulada a quantidade mnimade dias e/ou de produes que deveriam ser exibidas, compulsoriamente, pelo circuito de salas de exibio.
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Mais do que isso, importante salientar que o modelo americano se desenvolveu com
fortes bases monopolistas e verticais, ou seja, poucas empresas acabavam concentrando a
maior parte das atividades do setor. Elas tinham grandes negcios nos trs elos da cadeia:
produzindo, distribuindo e sendo proprietrias de salas de exibio (SILVA, 2009). Isso s se
modificaria no final dos anos 30, quando as principais empresas do setor comearam a ser
julgadas por violar a Lei Antitruste americana e foram obrigadas a limitar suas atuaes aos
elos da produo e da distribuio15.
Asseguradas a construo do modelo e a consolidao do mercado interno e visando
potencializar a estratgia de expanso do mercado externo, foi criada, em 1946, a Motion
Picture Export Association of America(MPEAA), que surgiu em um conjunto de tticas de
insero dessas produes no mercado externo, rgo que tinha um capital poltico
extremamente forte, como acentua Guy Hennebelle:
A MPEAA , por fim, o nico setor da economia dos Estados Unidoshabilitado a tratar diretamente com governos estrangeiros. Foi, portanto,chamada com justia de Ministrio do Exterior ou PequenoDepartamento de Estado da MPAA. (HENNEBELLE, 1978, p. 32)
Nem tudo, todavia, foram flores na histria do desenvolvimento da cinematografia
americana. Um trao forte da indstria hollywoodiana foi, tambm, a necessidade de superar e
encontrar formas de fugir de crises. A primeira delas no final dos anos 20, com a crise
econmica que assolou os EUA a partir do crack da bolsa de Nova Iorque em 1929. Esse
momento coincidiu (no por acaso) com a ampliao do uso do som nos filmes (o boomdo
cinema falado).
Outra crise importante sofrida pelo cinema se deu com o surgimento da televiso, nos
anos 50, com uma reduo drstica na quantidade de ingressos vendidos no incio dos anos
50. Em resposta a isso, mais uma vez, Hollywood apostou no aperfeioamento do aparato
tcnico e adotou telas maiores para exibio (cinemascope) e a cores (technicolor) e no filo
dos blockbusters, diminuindo a quantidade de filmes produzidos, mas aumentando
consideravelmente seus custos de produo e as verbas publicitrias para sua divulgao
massiva. Segundo avaliaes da indstria cinematogrfica, os custos mdios de produo
para um filme aumentaram quatro vezes desde a Segunda Guerra Mundial (PROKOP, 1986,
15 Elas foram acusadas de limitar o comrcio cinematogrfico e de monopolizar os trs setores da indstriacinematogrfica. Depois de oito anos de processo, as empresas foram condenadas, em 1946, a abandonar osistema de vendas em bloco (bem como outras formas semelhantes) e a separarem-se de suas respectivas redesde cinema (PROKOP, 1986, p. 29)
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p. 32). Esse modelo trouxe resultados positivos por um perodo, mas logo teria de ser
reaprimorado.
A partir dos anos 70, segundo Armand Mattelart, houve uma aproximao cada vez
mais forte do cinema com a televiso (no Brasil, s aconteceria no final dos anos 90). O autor
acrescenta que, nesse perodo, houve a ampliao de algo que sempre foi marca da indstria
cinematogrfica americana: sua incorporao por empresas que atuam em diferentes setores
da economia, os grandes conglomerados da economia mundial. Mas, aqui, foram inseridos
novos agentes nessa cadeia.
Nesse sentido, ele enuncia que
a crise de Hollywood, precipitada em grande parte pelos altos custos dassuperprodues, forou os empresrios cinematogrficos a redefinir-se em
duas direes: por um lado, a adoo de uma linha de produo menoscustosa; por outro, a adaptao da cinematografia s exigncia da televiso.(MATTELART, 1976, p. 65)
Isso foi facilitado por esse processo de incorporao das empresas de cinema por
outras empresas e passou a integrar grandes conglomerados. Exemplo disso trazido por
Dieter Prokop, quando aponta o papel dos grupos financeiros Morgan e Rockefeller nesse
processo.
O grupo Morgan controla a American Telephone and Telegraph Co.; eRockefeller (Chase National Bank), a General Eletric Co. A AmericanTelephone and Telegraph e a General Eletric dispe no somente das oitomais importantes empresas cinematogrficas, mas tambm das trs maiores emais importantes empresas de televiso: a National Broadcasting Company(NBC), a American Broadcasting Company (ABC) e a ColumbiaBroadcasting System (CBS) (BATZ, 1966 apudPROKOP, 1986, p. 34).
Desde ento, j se discutia sobre a necessidade de criar novos sistemas de distribuio,
visando ampliar o mercado e as janelas de exibio. Sobre isso, Mattelart cita como exemplo
o caso da MGM, que, em 1972, associou-se com empresas visando oferecer hotis e hospitais
para a venda de filmes e equipamentos de exibio, como os videocassetes (MATTELART,
1976). Entretanto, importante frisar que, desde os seus primrdios,
o capital cinematogrfico segue a lgica do capitalista de concentrao ecentralizao do capital e, por conseguinte, a produo cinematogrfica concentrada e centralizada. Sem dvida, existem as excees, mas elasdificilmente conseguem competir em igualdade de condies e ter a mesma
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ressonncia em matria de lucro, divulgao e pblico. (VIANA, 2009, p.60)
Ele complementa afirmando que a hegemonia mundial de Hollywood produto dessa
concentrao e centralizao do capital cinematogrfico.Segundo a Motion Pictures Association of America (MPAA), o setor de produo e
distribuio de filmes e de programas televisivos movimentou, em 2011, nos Estados Unidos,
cerca de U$ 104 bilhes e empregou, direta e indiretamente, cerca de 1,9 milho de pessoas.
Esses dados colocam o pas como o maior centro de produo e distribuio de produtos
audiovisuais do mundo. Entretanto, essa uma questo que no pode ser vista apenas por um
vis economicista. Silva (2009, p. 60) assevera que
a hegemonia do audiovisual norte-americano, na indstria culturalglobalizada, a grande fora que atravessa o Sculo 20 ameaando no s aexpresso das originalidades nacionais, mas a prpria existncia dasindstrias cinematogrficas, tanto de pases ps-industrializados como dosemergentes.
importante enfatizar que reconhecer a importncia do setor audiovisual no pode ser
somente uma estratgia de gerao de divisas, mas tambm como pea fundamental para
fortalecer as identidades locais e construir dilogos num mundo globalizado, mediado, cada
vez mais, pelas plataformas audiovisuais e digitais. Por essa razo, so importantes as
discusses realizadas em organismos multilaterais como a Organizao das Naes Unidas
para Educao, Cincia e Cultura (UNESCO) e a Organizao Mundial do Comrcio (OMC),
que consideram o audiovisual como um produto que deve ser regulado pelas regras de
comrcio internacional (via OMC) ou como exceo, em virtude de seu carter
eminentemente cultural (via UNESCO). Nesse contexto, diferentes pases travam batalhas,
como os EUA e a Austrlia, que defendem a regulao via OMC, e a Frana e o Brasil, o
carter cultural do audiovisual via UNESCO.
Dentre outras razes, essas tenses tambm estimularam, em algum nvel, a criao da
declarao sobre diversidade cultural em 2001 e da Conveno sobre a proteo e a promoo
da Diversidade das Expresses Culturais em 2006, ambas pela UNESCO. Apesar de ser feita
apenas uma meno direta ao cinema no documento, ela aparece no Artigo 14, que trata
justamente da cooperao para o desenvolvimento:
As partes procuraro apoiar a cooperao para o desenvolvimentosustentvel e a reduo da pobreza, especialmente em relao s
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necessidades especficas dos pases em desenvolvimento, com vistas afavorecer a emergncia de um setor cultural dinmico pelos seguintes meios,entre outros:
(a) o fortalecimento das indstrias culturais em pases em desenvolvimento:
(i) criando e fortalecendo as capacidades de produo e distribuio culturaisnos pases em desenvolvimento;(ii) facilitando um maior acesso de suas atividades, bens e servios culturaisao mercado global e aos circuitos internacionais de distribuio;(iii) permitindo a emergncia de mercados regionais e locais viveis;(iv) adotando, sempre que possvel, medidas apropriadas nos pasesdesenvolvidos com vistas a facilitar o acesso ao seu territrio das atividades,bens e servios culturais dos pases em desenvolvimento;(v) apoiando o trabalho criativo e facilitando, na medida do possvel, amobilidade dos artistas dos pases em desenvolvimento;(vi) encorajando uma apropriada colaborao entre pases desenvolvidos eem desenvolvimento, em particular nas reas da msica e do cinema.(grifo nosso)
Chama a ateno o fato de serem mencionadas, em especfico, as reas da msica e do
cinema, o que no deve ter sido por acaso, tendo em vista que elas correspondem a duas das
maiores indstrias culturais em funcionamento no mundo e das que tm mais intercmbios
(culturais e comerciais) entre pases. Essa discusso pode trazer implicaes mais srias do
que se imagina, pois, se esse campo entendido como exceo, estaria sendo justificada a
insero do poder pblico na adoo de medidas de proteo de sua produo interna. Mas, se
o campo audiovisual passa a ser completamente regulado via OMC, ela passaria a ser
regulada via regras de comrcio internacional, e poderiam ser questionadas medidas
protecionistas para beneficiar pases com indstrias slidas como os EUA.
Ainda assim, o paradigma hollywoodiano acabou servindo como ideal a ser atingido
por diferentes contextos e foi propagado (e estimulado), historicamente, por diferentes setores
do campo cinematogrfico em diferentes pases, incluindo o Brasil. Nesse sentido,
compreender como se configurou o modelo hollywoodiano e seu modo de produo (e
reproduo) aparece como algo fundamental para entender como se configura a cadeia
cinematogrfica no mundo.
E mesmo que a comparao entre o modelo adotado nos Estados Unidos e o(s)
adotado(s) no Brasil seja feita com ressalvas, Hollywood surge como um marco fundamental
para o raciocnio que desenvolvemos aqui, porque foi a primeira iniciativa que associou a
noo de produo cinematogrfica a partir de um polo de produo. Isso significa dotar
determinada regio de infraestrutura tcnica e de mo de obra especializada para o
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desenvolvimento de uma atividade econmica. Esse teria sido um dos fatores que
contriburam para sua hegemonia, conforme aponta Silva (2009, p. 61).
Tal condio hegemnica deve ser entendida como resultado do modelo
industrial adotado em Hollywood, atravs da concentrao sistemtica deinsumos, recursos artsticos e tcnicos, somados a grandes aportes de capital,dispostos num mesmo local para as mesmas atividades, possibilitandooperaes de produo-distribuio em grande escala mundial.
No prximo tpico, discutiremos sobre como essas concepes de produo foram
importadas para o Brasil e como o nosso campo cinematogrfico foi se constituindo durante
os Sculos XX e XXI e se espelhando nesse modelo