Transcript of Cem bilhões de neurônios roberto lent
- 1. z=rrs CEM BILHES DE NEURONIOS? Conceitos Fundam entais de
Neurocincia 21Edio ROBERTO LENT Professor Titular do Instituto de
Cincias Biomdicas. Universidade Federal do Rio de Janeiro A theneu
u i
- 2. SUMRIO PARTE 1 - NEUROCINCIA CELULAR J Primeiros Conceitos
da Neurocincia 3 Uma apresentao do sistema nervoso 2 Nascimento,
Vida e Morte do Sistema Nervoso 33 Desenvolvimento embrionrio,
maturao ps-natal, envelhecimento e morte do sistema nervoso j As
Unidades do Sistema Nervoso 73 Forma e funo de neurnios e glicitos
4 Os Chips Neurais 111 Processamento de informao e transmisso de
mensagens atravs de sinapses 5 Os Neurnios se Transformam 147 Bases
biolgicas da neuroplasticidade Os Detectores do Ambiente 183
Receptores sensoriais e a transduo: primeiros estgios para a
percepo PARTE 2 - NEUROCINCIA SENSORIAL J Os Sentidos do Corpo 227
Estrutura e funo do sistema somestsico Os Sons do Mundo 265
Estrutura e funo do sistema auditivo Viso das Coisas 297 Estrutura
e funo do sistema visual
- 3. I Q Os Sentidos Qumicos 339 Estrutura e funo dos sistemas
olfatrio, gustatrio e outros sistemas de deteco qumica ENCARTE -
MINI-ATLAS DE NEUROANATOMlA 367 PARTE 3 - NEUROCINCIA DOS
MOVIMENTOS J l O Corpo se Move 385 Movimentos, msculos e reflexos 1
2 0 Alto Comando Motor 421 Estrutura e funo dos sistemas
supramedulares de comando e controle da motricidade PARTE 4 -
NEUROCINCIA DOS ESTADOS CORPORAIS J j Macro e Microambiente do
Sistema Nervoso 467 Espaos, cavidades, liquor e a circulao sangunea
do sistema nervoso 1 4 O Organismo sob Controle 499 0 sistema
nervoso autnomo e o controle das funes orgnicas 75 Motivao para
Sobreviver 533 Hipotlamo, homeastasia e o controle dos
comportamentos motivados J A Conscincia Regulada 573 Os nveis de
conscincia e os seus mecanismos de controle. 0 ciclo viglia-sono e
outros ritmos biolgicos
- 4. PARTE 5 - NEUROCINCIA DAS FUNES MENTAIS 1 7 As Portas da
Percepo 611 As bases neurais da percepo e da ateno Pessoas com
Histria 643 As bases neurais da memria e da aprendizagem J A
Linguagem e os Hemisfrios Especialistas 679 A neurobiologia da
linguagem e das funes lateralizadas 2 0 Mentes Emocionais, Mentes
Racionais 713 As bases neurais da emoo e da razo ndice Remissivo
747
- 5. SUMRIO DOS QUADROS Quadro 1.1 - Neurocincias,
Neurocientistas ...........................................
................................6 Quadro 1 .2 -A Geometria do
Sistema Nervoso............................................
............................10 Quadro 1.3-Quebrando Dogmas: Quantos
Neurnios tem um Crebro?...............................18 Roberto
Lent Quadro 1 .4 - Circuitos do Crebro Humano ao Vivo e em
Cores...........................................22 Fernanda
Tovar-Moll Quadro 1 .5 -
Neurotica...................................................................................
...........................25 Quadro 1.6 - A Frenologia e o
Nascimento da NeurocinciaExperimental............................
26 Suzana Herculano-Houzel Quadro 2.1 - Marcados para Morrer, mas
Salvos pelo Alvo: a Descoberta das
Neurotrofinas.........................................................................................................58
Suzana Herculano-Houzel Quadro 2.2 - Um Passo Frente para as
Clulas-tronco Embrionrias .,..............................62
Stevens K. Rehen Quadro 2.3 - Alzheimer: a Doena do
Esquecimento........... ................
.................................68 Fernanda De Felice Quadro 3.1 -
De que Feito o Crebro: Teia nica ou Clulas
Individuais?.........................80 Suzana Herculano-Houzel
Quadro 3.2 - Molculas em
Ao.............................................................................................94
Paulo Srgio L. Beiro Quadro 3.3 - Interaes Neurnio-glia: Quando a
Conversa com o Parceiro Determina a
Personalidade.....................................................................
.................................102 Flvia Carvalho Alcantara Gomes
Quadro 4.1 - Da Concepo Comprovao da
Sinapse.....................................................114
Suzana Herculano-Houzel Quadro 4.2 - Adenosina, um Neurotransmissor
Multifuncional........... ...............................126
Roberto Paes de Carvalho Quadro 4 .3 - Como se Estudam as Sinapses
e os Receptores?...........................................128
Quadro 4.4 - xido Ntrico, um Gs que d
Medo....................................
...........................138 Francisco S. Guimares
- 6. Quadro 5.1 - Da Degenerao Regenerao do Tecido
Nervoso.................................... 154 Ana Maria B.
Martinez Quadro 5.2 - Quando o Crebro no Esquece um Membro
Perdido......................................164 Suzana
Herculano-Houzel Quadro 6.1 - 0 Cdigo Binrio dos
Sentidos............................................................................198
Suzana Herculano-Houzel Quadro 6.2 - A Engenharia da
Natureza............................
......................................................205 Quadro
6.3 - rgos Receptores com Defeito....................
...................................................212 Quadro 6.4 -
Em Busca dos Circuitos Funcionais da
Retina.................................................. 214 Dnia
Emi Hamassaki Quadro 7.1 - Somestesia: da Evoluo aos
Neurnios-espelhos........................................ .232
Antonio A. Pereira Jr. Quadro 7.2 - Uma Alfinetada nas Velhas
Teorias da
Dor....................................................... 252
Suzana Herculano-Houzel Quadro 8.1 - Poluio
Sonora...................................................................................................273
Quadro 8.2 - Um Stradivarius no
Ouvido..................................................................................280
Suzana Herculano-Houzel Quadro 8.3 - Em Busca do Motor Molecular
para o Amplificador Coclear..........................286 Bechara
Kachar Quadro 9.1 - Pela Luz dos Olhos Teus.,.
......................................
.......................................... 302 Suzana
Herculano-Houzel Quadro 9.2 - Navegando no Espao de Cores.....
............................................. ....................
332 Luiz Carlos Lima Silveira Quadro 10.1 - Gostos Cheirosos,
Cheiros
Gostosos...............................................................342
Suzana Herculano-Houzel Quadro 10.2 - As Molculas que Captam os
Cheiros.............................................................
348 Bettina Malnic Quadro 10.3 - 0s Nervos
Cranianos........................
....................................................... .......356
Quadro 11.1 - A Produo de Energia nas Clulas
Musculares............................. ............. 394 Mauro
Sola-Penna Quadro 11.2 - Locomoo: Reflexos ou Ritmos
Intrnsecos?,......................... .................... 414
Suzana Herculano-Houzel Quadro 12.1 - Piramidal e Extrapiramidal: A
Queda dos Velhos Sistemas...........................427 Quadro 12.2
- Como o Crtex Motor Salvou Ferrier da
Priso..............................................440 Suzana
Herculano-Houzel
- 7. Quadro 12.3 - A Representao do Movimento no
Crebro................................................ 446 Claudia
D. Vargas Quadro 13.1 - A Mente Respira e Consome Energia:
Imagensdo Crebro em Ao.........480 Suzana Herculano-Houzel Quadro
13.2 - Neuroimagem por Ressonncia
Magntica...................................................484
Jorge Moll Neto lvanei E. Bramati Quadro 14.1 - Corpo, Crebro e
Mundo: um Equilbrio
Delicado.........................................502 Suzana
Herculano-Houzel Quadro 14.2 - Neuropeptdeos em todo o
Corpo........ ...........
............................................... 522 Jackson C.
Bittencourt Quadro 15.1 - No Fim da Trilha de Migalhas de Doce
tambm Est a Neurobiologia...... 552 Carla Dalmaz Quadro 15.2 - Um
Pouquinho mais de Eletricidade, por
Favor...............................................568 Suzana
Herculano-Houzel Quadro 16.1 - A Melatonina como Temporizador
Circadiano................................................582 Jos
Ctpolla Neto Quadro 16.2 - Ligar o Sono ou Desligar a
Viglia?.......
..........................................................585
Suzana Herculano-Houzel Quadro 16.3 - As Ondas do
Encfalo..........................
...................................... .....................592
Quadro 16.4 - Do Canto dos Pssaros ao Sono dos
Mamferos..........................................604 Sidarta
Ribeiro Quadro 17.1 - 0 Caso do Pintor
Indiferente...........................
................................................616 Quadro 17.2 -
Gestalt: Como 1 + 1 Pode no Ser Igual a 2
..................................................622 Suzana
Herculano-Houzel Quadro 17.3 - Sobre a Lua e as Iluses...........
......................................
................................632 Marcus Vincius Baldo Quadro
18.1 - Aprendizagem Hebbiana 30 Anos antes de
Hebb.......................................... 648 Suzana
Herculano-Houzel Quadro 18.2 - Memria, Evocao e
Esquecimento............................
..................................674 Martin Cammarota Quadro 19.1
- A Vingana de Gall: Broca e a Localizao Cortical da
Fala.........................682 Suzana Herculano-Houzel Quadro 1 9
. 2 - 0 Crebro das Aves que Aprendem o Canto 686 Claudio Mello
- 8. Quadro 12.3 - A Representao do Movimento no
Crebro................................................ 446 Claudia
D. Vargas Quadro 13.1 - A Mente Respira e Consome Energia:
Imagensdo Crebro em Ao.........480 Suzana Herculano-Houzel Quadro
13.2 - Neuroimagem por Ressonncia
Magntica...................................................484
Jorge Moll Neto Ivanei E. Bramati Quadro 14.1 - Corpo, Crebro e
Mundo: um Equilbrio
Delicado.........................................502 Suzana
Herculano-Houzel Quadro 14.2 - Neuropeptdeos em todo o
Corpo........ ...........
............................................... 522 Jackson C.
Bittencourt Quadro 15.1 - No Fim da Trilha de Migalhas de Doce
tambm Est a Neurobiologia...... 552 Carla Dalmaz Quadro 15.2 - Um
Pouquinho mais de Eletricidade, por
Favor...............................................568 Suzana
Herculano-Houzel Quadro 16.1 - A Melatonina como Temporizador
Circadiano................................................582 Jos
Ctpolla Neto Quadro 16.2 - Ligar o Sono ou Desligar a
Viglia?.......
..........................................................585
Suzana Herculano-Houzel Quadro 16.3 - As Ondas do
Encfalo..........................
...................................... .....................592
Quadro 16.4 - Do Canto dos Pssaros ao Sono dos
Mamferos..........................................604 Sidarta
Ribeiro Quadro 17.1 - 0 Caso do Pintor
Indiferente...........................
................................................616 Quadro 17.2 -
Gestalt: Como 1 + 1 Pode no Ser Igual a 2
..................................................622 Suzana
Herculano-Houzel Quadro 17.3 - Sobre a Lua e as Iluses...........
......................................
................................632 Marcus Vincius Baldo Quadro
18.1 - Aprendizagem Hebbiana 30 Anos antes de
Hebb.......................................... 648 Suzana
Herculano-Houzel Quadro 18.2 - Memria, Evocao e
Esquecimento............................
..................................674 Martin Cammarota Quadro 19.1
- A Vingana de Gall: Broca e a Localizao Cortical da
Fala.........................682 Suzana Herculano-Houzel Quadro 1 9
. 2 - 0 Crebro das Aves que Aprendem o Canto 686 Claudio Mello
- 9. Quadro 20.1 Quadro 20.2 Quadro 20.3 - Medo: uma Funo
Hipotalmica? Newton Ganteras - Psicocirurgia: um Bisturi Corta a
Mente Suzana Herculano-Houzel - Autobiografia de um
Instante.................. Ricardo de Oliveira Souza Jorge Moll
Neto XXVI
- 10. 1 Primeiros Conceitos da Neurocincia Uma Apresentao do
Sistema Nervoso
- 11. Saber o Pr in c ip a l Resumo Sistema nervoso central e
sistema nervoso perifrico so as duas principais divises do sistema
nervoso. O primeiro rene as estruturas situadas dentro do crnio e
da coluna vertebral, enquanto o segundo rene as estruturas
distribudas pelo organismo. Ambos so constitudos de dois tipos
celulares principais: neu rnios e glicitos. O neurnio a principal
unidade sinalizadora do sistema nervoso e exerce as suas funes com
a participao dos giicitos. uma clula cuja morfologia est adaptada
para as funes de transmisso e processamento de sinais: tem muitos
prolongamentos prximos ao corpo celular (os dendritos). que
funcionam como antenas para os sinais de outros neurnios, e um
prolongamento iongo que leva as mensagens do neurnio para stios
distantes (o axnio). Os neurnios comunicam-se atravs dc estruturas
chamadas sinapses, que consistem cada uma delas em uma zona de
contato entre dois neurnios, ou entre um neurnio e uma clula
muscular. A sinapse o chip do sistema nervoso; capaz no s de
transmitir mensagens entre duas clulas, mas tambm de bloque-las ou
modific-las inteiramente: realiza um verdadeiro processamento de
informao. O impulso nervoso o principal sinal de comunicao do
neurnio, um pulso eltrico gerado pela membrana, rpido e invarivel,
que se propaga com enorme velocidade ao longo do axnio. Ao chegar
extremidade do axnio, o impulso nervoso provoca a emisso de uma
mensagem qumica que leva a informao - intacta ou modificada para a
clula seguinte. Neuroglia o conjunto de clulas no neuronais, os
glicitos, to numerosos quanto os neurnios no crebro como um todo. e
que desempenham funes de infraestrutura. mas tambm de processamento
de informao: nutrem, do sus tentao mecnica, controlam o metabolismo
dos neurnios, ajudam a construir o tecido nervoso durante o
desenvolvimento, funcionam como clulas imunitrias, e de certo modo
regulam a transmisso sinptica entre os neurnios. No sistema
nervoso, os neurnios so agrupados em grandes conjuntos com
identidade funcional. Isso faz com que as diferentes funes sejam
localizadas em regies restritas, embora haja uma enorme
conectividade e interao entre elas. Cada regio faz a sua parte,
contribuindo para a integrao funcional do conjunto. Quando
conversamos com algum, ao mesmo tempo o vemos (viso), falamos
(linguagem), conservamos a postura (motricidade), temos emoes e
memrias etc. Cada uma dessas funes executada por uma parte do
sistema nervoso, mas todas as partes operam coordenadamente. Essa a
teoria da localizao de funes no sistema nervoso.
- 12. r Sa b er o Pr in c ip a l Resumo Sistema nervoso central e
sistema nervoso perifrico so as duas principais divises do sistema
nervoso. O primeiro rene as estruturas situadas dentro do crnio e
da coluna vertebral, enquanto o segundo rene as estruturas
distribudas pelo organismo. Ambos so constitudos de dois tipos
celulares principais: neu rnios e glicitos. O neurnio a principal
unidade sinalizadora do sistema nervoso e exerce as suas funes com
a participao dos glicitos. uma clula cuja morfologia est adaptada
para as funes de transmisso e processamento de sinais: tem muitos
prolongamentos prximos ao corpo celular (os dendritos), que
funcionam como antenas para os sinais de outros neurnios, e um
prolongamento longo que leva as mensagens do neurnio para stios
distantes (o axnio). Os neurnios comunicam-se atravs de estruturas
chamadas sinapses, que consistem cada uma delas em uma zona de
contato entre dois neurnios, ou entre um neurnio e uma clula
muscular. A sinapse o chip do sistema nervoso; capaz no s de
transmitir mensagens entre duas clulas, mas tambm de bloque-las ou
modific-las inteiramente: realiza um verdadeiro processamento de
informao. O impulso nervoso o principal sinal de comunicao do
neurnio, um pulso eltrico gerado pela membrana, rpido e invarivel,
que se propaga com norme velocidade ao longo do axnio. Ao chegar
extremidade do axnio, o impulso nervoso provoca a emisso de uma
mensagem qumica que leva a informao - intacta ou modificada - para
a clula seguinte. Neuroglia o conjunto de clulas no neuronais, os
glicitos. to numerosos quanto os neurnios no crebro como um todo, e
que desempenham funes de infraesrutura, mas tambm de processamento
de informao: nutrem, do sus tentao mecnica, controlam o metabolismo
dos neurnios, ajudam a construir o tecido nervoso durante o
desenvolvimento, funcionam como clulas imunitrias, e de certo modo
regulam a transmisso sinptica entre os neurnios. No sistema
nervoso, os neurnios so agrupados em grandes conjuntos com
identidade funcional. Isso faz com que as diferentes funes sejam
localizadas em regies restritas, embora haja uma enorme
conectividade e interao entre elas. Cada regio faz a sua parte,
contribuindo para a integrao funcional do conjunto. Quando
conversamos com algum, ao mesmo tempo o vemos (viso), falamos
(linguagem), conservamos a postura (motricidade), temos emoes e
memrias etc. Cada uma dessas fttnes executada por uma parte do
sistema nervoso, mas todas as partes operam coordenadamente. Essa a
teoria da localizao de funes no sistema nervoso.
V____________________________________________h ______J
- 13. H VRIAS MANEIRAS DE VERO CREBRO H muitas maneiras de ver o
crebro, como h muitas maneiras de ver o mundo. Um astrnomo, por
exemplo, pensa na Terra como uma esfera azulada que se move em
torno de seu prprio eixo e em torno do Sol. A Terra inteira parte
de um gigantesco conjunto de objetos semelhantes espalhados pelo
cosmos. O modo de ver de um gelogo diferente: ele v a Terra como
uma esfera mineral, constituda por diversas camadas de matria
sobrepostas umas s outras e dotadas de um lento mas constante
movimento tangencial. J o bilogo pensa apenas na camada mais
externa da Terra, aquela que aloja os milhes de formas vivas
vegetais e animais existentes em nosso planeta. Um modo de ver no
menos verda deiro que o outro. Cada um privilegia a sua abordagem,
mas preciso reconhecer que a Terra existe igualmente como planeta,
objeto mineral e macroecossistema. E de inmeros outros modos. Tambm
o sistema nervoso, e o crebro em particular, podem ser estudados de
vrias maneiras, todas verdadeiras e igualmente importantes (Quadro
1.1). Podemos encar- lo como um objeto desconhecido, mas capaz de
produzir comportamento e conscincia, e assim nos dedicar a estudar
apenas essas propriedades (ditas emergentes) do sistema nervoso. o
modo de ver dos psiclogos. Podemos tambm v-lo como um conjunto de
clulas que se tocam atravs de finos prolongamentos, formando
trilhes de complexos circuitos intercomunicantes. E a viso dos
neurobilogos celulares. Alternativamente, podemos pensar apenas nos
sinais eltricos produzidos pelos neurnios como elementos de
comunicao, como fazem os eletrofisiologistas. Ou ento nas reaes
qumicas que ocorrem entre as molculas existentes dentro e fora das
clulas nervosas, como fazem os neuroqumicos. E assim por diante.
Como se v, so muitos os modos (chamados nveis) de existncia do
sistema nervoso, abordados especificamente pelos diferentes espe
cialistas. E seriam ainda muitos mais, se considerssemos os pontos
de vista no cientificos. Os estudiosos sempre discutiram muito
acerca desses nveis cie existncia cio sistema nervoso, quase sempre
acreditando na prevalncia de um deles em detrimento dos demais. O
mais comum era acreditar que os fenmenos de cada nivel poderiam ser
mais bem explicados pelo nvel inferior: Os fenmenos psicolgicos
seriam, assim, reduzidos a suas manifestaes fisiolgicas, os
fenmenos fisiolgicos reduzidos a suas manifestaes celulares, e os
fenmenos celulares a suas manifestaes moleculares. Tudo, ento, se
resumiria s interaes entre as molculas componentes do sistema
nervoso. Uma frase tipica des sa abordagem : a conscincia uma
propriedade das molculas do crebro. Hoje est claro que esta atitude
reduconista no uma boa explicao, embora possa ser um bom mtodo de
estudo. Os nveis de existncia do sistema nervoso no so, uns,
consequncias dos outros; coexistem simultaneamente, em paralelo.
Neste captulo introdutrio, faremos um sobrevoo por esses vrios
nveis. Isso significa que eles sero con siderados de um modo muito
geral, apenas para os apre sentar. Em cada captulo subsequente, o
tema especfico ser abordado tambm levando em conta esses nveis, mas
com maior profundidade. O objetivo agora uma primeira apresentao do
nosso objeto de estudo-o sistema nervoso - desde a sua estrutura
macroscpica (o nivel anatmico), a organizao microscpica (o nvel
histolgico), at a forma dos seus constituintes unitrios, as clulas
e as organelas subcelulares (o nvel celular). Voc ver como esses
nveis se sobrepem amplamente, o que toma obrigatrio levar em conta
todos eles (ou muitos deles) para formar uma ideia re alista do
funcionamento do crebro. Depois disso, seremos apresentados tambm s
funes neurais mais abstratas e caracteristicamente humanas, como a
memria, a linguagem e a percepo (o nvel psicolgico), outras mais
concretas e mais frequentes entre os animais, como a motricidade e
as sensaes (o nvelfisiolgico), e ainda outras tpicas das clulas e
suas interaes moleculares (o nvel bioqumico, ou microfisiolgico).
Neste captulo, como ao longo do livro inteiro, a ideia ser sempre
analisar o sistema nervoso sob diferentes ngulos, como ele
realmente existe nos animais e no homem. 0 SISTEMA n e r v o s o
VISTO A OLHO NU Se voc examinar pela primeira vez o sistema nervoso
de um vertebrado, logo concluir que ele tem partes situadas dentro
do crnio e da coluna vertebral, e outras distribudas por todo o
organismo (Figura 1.1). As primeiras recebem 0 nome coletivo de
sistema nervoso central (SNC), e as ltimas, de sistema nervoso
perifrico (SNP). no siste ma nervoso central que est a grande
maioria das clulas nervosas, seus prolongamentos e os contatos que
fazem entre si. Ko sistema nerv o so perifrico ficam relativamente
poucas clulas, mas um grande nmero de prolongamentos chamados
fibras nervosas, agrupados em filetes alongados chamados nervos. j
Termo constante do glossrio aofina! do capitulo. 5
- 14. N e u r o c i n c i a C e l u l a r Quadro 1.1
Neurocincias, Neurocientistas que chamamos simplificadamente
Neurocin cia na verdade Neurocincias. No plural. Se assim, quais so
elas? E quem so os profissionais que lidam com elas? H muitos modos
de classific-las, de acordo com os nveis de abordagem que
mencionamos no incio do captulo. Um modo simples, mas esquemtico,
seria considerar cinco grandes disciplinas neurocientficas. A
Neurocincia molecular tem como objeto de estudo as diversas
molculas de importncia funcional no sistema nervoso, e suas
interaes. Pode ser tambm chamada de Neuroquraica ou Neurobiologia
molecular. A Neurocincia celular aborda as clulas que formam o
sistema nervoso, sua estrutura e sua firno. Pode ser chamada tambm
de Neurocitologia ou Neurobiologia celular. A Neurocincia sistmica
considera populaes de clulas nervosas situadas em diversas regies
do sis tema nervoso, que constituem sistemas funcionais como o
visual, o auditivo, o motor etc. Quando apresenta uma abordagem
mais morfolgica chamada Neuro-histo- logia ou Neuroanatomia, e
quando lida com aspectos funcionais chamada Neurofisiologia. A
Neurocincia comportemental dedica-se a estudaras estruturas neurais
que produzem comportamentos e outros fenmenos psicolgicos como o
sono, os comportamentos sexuais, emocionais, e muitos outros. s
vezes conhecida tam bm como Psicofisiologia ou Psicobiologia.
Finalmente, a Neurocincia cognitiva trata das capacidades mentais
mais complexas, geralmente tpicas do homem, como a linguagem, a
autoconscincia, a memria etc. Pode ser tambm chamada de
Neuropsicologia. E claro que os limites entre essas disciplinas no
so ntidos, o que nos obriga a saltar de um nvel a outro, ou seja,
de uma disciplina a outra, sempre que tentamos compreender o
funcionamento do sistema nervoso. Os profissionais que lidam com o
sistema nervoso so de dois tipos: os neurocientistas, cuja
atividade a pesquisa cientfica em Neurocincia; e os profissio nais
de sade, cujo objetivo preservar e restaurar o desempenho funcional
do sistema nervoso. Os neuro cientistas geralmente estudam em
alguma faculdade de biologia, cincias biomdicas ou cincias da sade,
depois cursam um programa de ps-graduaoj voltado especificamente
para o sistema nervoso, e finalmente so admitidos como professores
universitrios ou pes quisadores de instituies cientficas no
universitrias. Seu trabalho financiado por recursos governamentais
ou privados, e os resultados que obtm so publicados em revistas
cientficas especializadas. Voc conhecer alguns deles ao longo deste
livro. J os profissionais de sade incluem mdicos (especialmente os
neurologistas, neurocirurgies e psiquiatras), psiclogos, fisiotera
peutas, fonoaudilogos, enfermeiros etc. Sua formao passa pelas
faculdades correspondentes, e s vezes inclui alguns anos de
residncia ou especializao. Alguns desses profissionais se voltam
tambm para a pesquisa cientfica bsica ou clnica. Recentemente,
outros profissionais tm-se interes sado pelo sistema nervoso; o
caso dos engenheiros, especialmente aqueles voltados para a
informtica. Isso porque os computadores e alguns robs mais modernos
tm a arquitetura projetada de acordo com os conceitos originados
das Neurocincias. Tambm os artistas grficos e programadores visuais
tm-se apro ximado das Neurocincias, pois necessitam dominar
conceitos modernos sobre a percepo visual das cores, do movimento
etc. Da mesma forma, os educadores e pedagogos esto interessados em
saber como o sistema nervoso exerce a capacidade de selecionar e
armazenar informaes, atributo importante dos processos de
aprendizagem. Tanto na pesquisa cientfica como nas profisses da
sade, o trabalho se beneficia muito da interao mul- tidisciplinar,
envolvendo vrias das disciplinas citadas. Na verdade, a
multidisciplinaridade torna-se cada vez mais indispensvel, pois o
sistema nervoso tem vrios nveis de existncia, como j vimos, e
compreend-lo exige mltiplas abordagens. por isso que as equipes de
sade dos hospitais so geralmente multiespeciali- zadas, e por isso
tambm que os trabalhos cientficos modernos em Neurocincia envolvem
a colaborao de diferentes especialistas. 6
- 15. > Figura 1.1.0 sistema nervoso central do homem aloja a
imensa maioria dos neurnios, e est contido no interior da caixa
crania na' (o encfalo) e da coluna vertebral la medula espinhal ).
J o sistema nervoso perifrico constitudo de uma menorproporo de
neurnios, mas apresenta uma extensa rede de fibras nervosas
espalhadas por quase todos os rgos e tecidos do organismo. No
desenho, apenas a metade esquerda foi representada. 1 0 S is t e m
a N erv o so P e r if r ic o Os nervos, principais componentes do
sistema nervoso perifrico, podem ser encontrados em quase todas as
partes do coipo. Seguindo o trajeto de um nervo qualquer, percebe
-se que uma extremidade termina em um determinado rgo, enquanto a
extremidade oposta se insere no sistema nervoso central atravs de
orifcios no crnio e na coluna vertebral. Essa constatao permite
supor - como fizeram os primeiros anatomistas - que os nervos so
cabos de conexo entre o sistema nervoso central e os rgos. No incio
pensou-se - erradamente - que a mensagem nervosa era transmitida
pelo fluxo de um lquido no interior dos nervos. Depois se
esclareceu que a mensagem consistia em impulsos eltricos conduzidos
ao longo dos nervos. Em seu Estrutura encontrada no Miniatlas de
Neuroanatoma (p. 367). trajeto, alguns filetes nervosos se separam
do nervo, outros se juntam a ele. Isso ocorre no porque as fibras
nervosas individuais se ramifiquem ao longo do nervo, mas porque
grupos delas saem ou entram no tronco principal1. Geral mente,
perto do sistema nervoso central os nervos so mais calibrosos, pois
contm maior nmero de fibras. Prximo aos locais de terminao nos
rgos, como muitos filetes vo se separando no caminho, eles ficam
mais finos. Nesse ponto que as fibras nervosas individuais se
ramificara profusamente, at que cada ramo termina em estruturas
microscpicas especializadas. Nem s de nervos formado o sistema
nervoso peri frico. Existem clulas nervosas agrupadas em gngliosc
situados nas proximidades do sistema nervoso central (Fi gura 1.2),
ou prximo e at mesmo dentro das paredes das vsceras. Muitas fibras
nervosas que constituem os nervos tm sua origem em neurnios
ganglionares. Outras fibras tm origem em clulas nervosas situadas
dentro do sistema nervoso central. A organizao morfolgica do SNP
bastante comple xa e caracterstica de cada espcie. Em cada animal,
so centenas de filetes nervosos com origens, trajetos e locais de
terminao prprios, cada um deles com nomes especficos para sua
identificao. O estudo minucioso da morfologia dos nervos e dos
gnglios relevante para os profissionais de sade das diferentes
especialidades. Os cirurgies gerais e os fisioterapeutas precisam
conhecer detalhes dos trajetos dos nervos e da localizao dos
gnglios ein todo o corpo humano. Os dentistas e os fonoaudilogos
concentram-se na cabea e no pescoo. O estudo topogrfico da anatomia
dos nervos e gnglios no objeto deste capitulo. O fundamental aqui
compreender os grandes conceitos estruturais do sistema nervoso
perifrico. Maiores detalhes se encontram nos captulos subsequentes.
Esquematicamente, os nervos se dividem em espinhais, quando se unem
ao SNC atravs de orifcios na coluna vertebral (Figura 1.2), e
cranianos, quando o fazem atravs de orifcios existentes no crnio.
As duas classes podem veicular informaes sensitivas ou motoras,
somticas ou viscerais. Muitos nervos so mistos, isto , carreiam
mais de um desses tipos funcionais de informao. Como os nervos so
formados por fibras, e estas so, na verdade, prolongamentos de
neurnios, fundamental conhecer a localizao dos corpos celulares
destes. As fibras dos nervos espinhais podem ter sua origem em
neurnios situ ados dentro da meduia, ou ento em gnglios distribudos
fora dela, perto da coiuna vertebral. No caso das fibras dos Embora
no se ramifiquem durante o trajeto no interior dos nervos, asfibras
nervosas podem-se ramificar - s vezes bastante - quando atingem os
seits alvos riapele, nos rgos e dentro do crebro. Encfalo Sistema
nervoso central Meduia espinhal Sistema nervoso perifrico Nervos
7
- 16. N e u r o c i n c i a C e l u l a r Gnglios gBti I j I ** -
- Nervos espinhais Nervos perifricos Figura 1.2. Os nervos do
sistema nervoso perifrico podem emergir diretamente do encfalo
(nervos cranianos, exemplificados em A), inervando rgos e tecidos
da cabea. Ou ento emergem de cada segmento da medula (nervos
espinhais, exemplificados em B), formando os nervosperifricos que
se espalhampor todo o corpo (C). nervos cranianos ', a organizao
semelhante, s que os neurnios esto situados era ncleos0 do encfalo
ou em gnglios situados fora dele. nas proximidades do crnio. De
onde vm, por onde passam e onde terminam os nervos espinhais? Vamos
acompanhar, a ttulo de exemplo, a organizao de um dos nervos que
inervam as diversas regies do membro superior (Figura 1.3). Inervar
significa ratnificar-se profusamente em um territrio especfico do
corpo, seja para comandar os msculos, seja para veicular as sensaes
de tato, dor e outras, provenientes dos teci dos dessa regio. Cada
uma das muitas fibras nervosas sensitivas que inervam os diferentes
tecidos dos dedos e da mo (Figura 1.3B) vai se juntando a outras em
filetes nervosos que vo ficando mais e mais calibrosos. Na altura
do punho, os filetes j constituem um feixe calibroso que recebe o
nome de nervo mediano. O nervo mediano passa pelo antebrao e pelo
brao, recolhendo muitas fibras sensi tivas e motoras dessas regies
e, assim, tornando-se mais e mais calibroso. Na altura da axila,
algumas fibras do nervo mediano se separara e depois se juntam a
outras vindas de regies diferentes. Isso acontece vrias vezes, como
se v na Figura 1,3. Esse conjunto intrincado de fascculos e nervos
que se encontram e se separara chama-se plexo, e este que estamos
descrevendo recebe o nome de plexo braquial. Alguns nervos,
entretanto, no formam plexos, dirigindo-se diretamente medula
espinhal. J prximas coluna vertebral, onde se aloja a medula, as
fibras nervosas que emergem do plexo braquial aproximam-se da
medula atravs de orifcios na coluna vertebral. Nesse ponto, as
fibras sensitivas se separam das motoras formando dois grupos de
razes (Figura 1.3A), sendo as dorsais sensitivas e as ventrais,
motoras. Logo entrada das razes dorsais se encontram os chamados
gnglios das razes dorsais ou gnglios espinhais (Figura 1.3A), onde
ficam situados os neurnios sensitivos que recebem o tato, a dor e
outras sensaes vindas do membro superior. Os nervos cranianos tm
organizao semelhante dos nervos espinhais, mas so mais complexos e
variveis Razes Gnglio espinhal B Territrios Nervo mediano >
Figura 1.3. Os nervos perifricos espinhais, como o mediano, so
formados por inmeras fibras nervosas compactadas. Na sua insero
central eles se separam em finos fascculos que se abrem em leque,
formando as raizes (A) que se ligam medula espinhal, Ao longo do
trajeto, os nervos tambm se separam em fascculos que podem formar
plexos, como o braquial, ou dispersar-se em diferentes territrios
de inervao. Nos dedos da mo, por exemplo IB), muitos filetes vo se
separando do tronco principal e cada fibra nervosa finalmente se
ramifica em uma diminuta regio terminal. s
- 17. P r i m e i r o s c o n c e i t o s o a n e u r o c i n c i
a que estes. Suas terminaes distribuem-se geralmente (mas nem
sempre) nas diferentes partes da cabea, de onde vo se juntando em
filetes mais e mais calibrosos at constituir os nervos propriamente
ditos. Quando contm fibras sensitivas, os nervos cranianos ligam-se
a gnglios que so homlogos aos espinhais, onde se alo jam os corpos
celulares dessas fibras. Entretanto, em face dos dobramentos e
irregularidades do encfalo, que no apresenta a estrutura tubular
tpica da medula, os nervos cranianos no se dividem em razes dorsais
e ventrais, como os espinhais. Penetram no crnio atravs de ori
fcios especficos (chamados formes), e depois entram no encfalo em
diferentes pontos. Voc pode encontrar maiores detalhes sobre os
nervos cranianos no Miniatlas de Neuroanatomia (p. 367). Por
analogia com algumas mquinas, o sistema ner voso perifrico pode ser
compreendido como um conjunto de sensores, cabos e chips. Os
sensores distribuem-se por todos os tecidos do organismo: a pele,
os msculos, ossos e articulaes, as vsceras e outros tecidos. Sua
funo captar as vrias formas de energia (= informao) produ zidas no
ambiente ou no prprio organismo, e traduzi-las para a linguagem que
o sistema nervoso entende: impulsos bioeltricos. Os sensores
recebem o nome de receptores sensoriais, e ficam de algum modo
ligados s fibras nervo sas que constituem os nervos. Estes ltimos
so os cabos cuja funo conduzir os impulsos eltricos gerados pelos
receptores at o sistema nervoso central. Os cabos tambm conduzem
informaes no sentido oposto: impuisos el tricos produzidos no
sistema nervoso central so levados aos msculos esquelticos e
cardacos, aos msculos das paredes das vsceras e s glndulas. L, os
impulsos so transformados em aes que liberam energia: contrao
muscular ou secreo glandular. Finalmente, no devemos pensar que o
SNP tem funo exclusivamente condutora. Ele possui tambm chips
capazes de processar informao como pequenos computadores. Estes
chips so os contatos entre neurnios situados nos gnglios
sensitivos, j men cionados (gnglios espinhais), e nos gnglios
motores ou secretomotores, situados em vrias vsceras. Este o tema
do Captulo 4. 0 SISTEMA NERVOSO CENTRAL Sistema nervoso central
(SNC) um termo muito geral, que rene todas as estruturas neurais
situadas dentro do cr nio* e da coluna vertebral. E onde se situa a
grande maioria dos neurnios dos animais. Inicialmente, necessrio
que voc consiga visualizar" em trs dimenses as relaes entre as
grandes divises do SNC, para posteriormente esmiuar em detalhes a
estrutura de regies menores e mais restritas. Essa tarefa s pode
ser conseguida com o auxlio de ilustraes, pelo estudo repetido de
peas anatmicas ou atravs de programas de neuroanatomia para
computador (Quadro 1.2). Pode-se dividir o SNC, segundo critrios
exclusiva mente anatmicos, em grandes partes que obedecem a uma
hierarquia ascendente de complexidade, conforme a Tabela 1.1.
Denomina-se encfalo a parte do SNC contida no interior da caixa
craniana, e medula espinhal a parte que continua a partir do
encfalo no interior do canal da coluna vertebral (Figura 1.4). A
medula tem uma forma aproxima damente cilndrica ou tubular, no
centro da qual existe um canal estreito cheio de lquido; apresenta
funes motoras e sensitivas, principalmente, relacionadas ao
controle imediato do funcionamento do corpo. J o encfalo possui uma
forma irregular, cheia de dobraduras e salincias, o que permite
reconhecer nele diversas subdivises. As funes do encfalo so
bastante mais complexas que as da medula espinhal, possibilitando
toda a capacidade cog nitiva e afetiva dos seres humanos, e as
funes correlatas de que os animais no humanos so capazes. A
cavidade interna do encfalo acompanha as suas irregularidades de
forma, constituindo diferentes cmaras cheias de liquido, os
ventrculos '. Essa forma irregular do encfalo se deve ao enorme
crescimento que sofre a poro cranial do tubo neural primitivo (o
primrdio embrionrio do SNC), muito mais exuberante do que a poro
caudal, que d origem medula. Pode-se, ento, reconhecer trs partes
do encfalo: o crebro, constitudo por dois hemisfrios justapostos e
separados por um sulco profundo (Figura 1,4A); o cerebe- lo -, um
crebro em miniatura, tambm constitudo por TABELA 1.1. CLASSIFICAO
HIERRQUICA DAS GRANDES ESTRUTURAS NEUROANATMICAS SNC Encfalo Crebro
Cerebelo Tronco enceflico TelencfalD Piencfalo Crtex cerebelar
Ncleos profundos Mesencfalo Ponte Bulba Crtex cerebral Ncleos da
base Medula espinhal 9
- 18. Quadro 1.2 A Geometria do Sistema Nervoso m 'm ara
compreender a estrutura tridimensional do sistema nervoso preciso
visualiz-lo M mentalmente, e para isso preciso conhecer certos
pontos, linhas e planos usados como referncia, as chamadas
referncias anatmicas, A Figura 1mostra as principais referncias
anatmicas para o sistema nervoso de um co, e a Figura 2, as que so
usadas para o de um homem, No caso do co, se o vemos de lado, tudo
que est mais prximo ao focinho dito rostral ou anterior, enquanto o
que est mais para trs dito caudaI ou posterior. Do mesmo modo, tudo
que est para baixo dito ventral ou inferior, enquanto o que est
para cima dorsal ou superior. A nomenclatura acompanha a posio do
corpo do animal, que, por ser quadrpede, possui um sistema nervoso
organizado ao longo de um plano paralelo ao cho. Os termos, neste
caso, originam-se das partes do corpo do animal: o rosto, a cauda,
o ventre e o dorso. Essas referncias so todas relativas, e dependem
de planos mveis posicionados de diferentes modos. O plano coronal
(ou frontal) pode ser movido para frente e para trs, e permite
definir o que rostral e o que caudal. Por conveno, pode- se
escolher um determinado plano coronal para ser o plano zero e fazer
referncia aos demais segundo seu afastamento do plano zero, em
milmetros. Um segundo plano o horizontal, que pode ser movido para
cima e para bai xo, e portanto define o que dorsal e o que ventral.
Igualmente, pode-se considerar um determinado pla no horizontal
como plano zero e fazer referncia aos de mais em funo de seu
afastamento em milmetros. O plano mvel perpendicular aos dois prim
eiros chama-se parassa gital. Neste caso, o plano zero o que passa
exatam ente pelo meio do sistema nervoso, dividindo-o em duas m
etades aproximadamente si mtricas. Esse plano recebe o nome
especial de sagital. As estruturas que se situam prximo linha mdia,
onde est o plano sagital, so ditas mediais, enquanto as que esto
mais para os lados so ditas laterais. Em relao ao plano sagital, se
estivermos considerando um dos lados como referncia (seja o direito
ou o esquerdo), as estruturas situadas nesse mesmo lado so chamadas
ipsilaterais (ouhomolaterais), enquanto aquelas situadas no lado
oposto so chamadas contralaterais. A maioria das reas do sistema
nervoso central que comandam os msculos do lado direito, por
exemplo, encontra-se no lado esquerdo. Diz-se ento que o comando
motor, neste caso, contralateral. No caso do homem, que bpede, a
cabea e os olhos apresentam-se inclinados 90 em relao ao corpo
(Figura 2). Assim, para o encfalo as referncias so as mesmas
utilizadas para os mamferos quadrpedes. mais comum, entretanto,
utilizar superior e inferior em vez de dorsal e ventral. Para a
medula, as convenes so diferentes, por conta do ngulo de 90" entre
ela e o en cfalo. Anterior, no caso da medula humana, sinnimo de
ventral, enquanto posterior sinnimo de dorsal. O plano mvel que
define essas referncias para a medula chamado longitudinal. Por sua
vez, as estruturas mais prximas da cabea so ditas superiores, e
aquelas mais Dorsal Rostral Caudal Plano coronal Plano sagital ' S
i ^ y Plano horizontal Figura 1. Planos de referncia para o sistema
nervoso de um animal quadrpede. 10
- 19. N e u r o c i n c i a C e l u l a r Quadro 1.2 A Geometria
do Sistema Nervoso ~ W ^ ara compreender a estrutura tridimensional
- J do sistema nervoso preciso visualiz-lo M mentalmente, e para
isso preciso conhecer certos pontos, linhas e planos usados como
referncia, as chamadas referncias anatmicas. A Figura 1 mostra as
principais referncias anatmicas para o sistema nervoso de um co, e
a Figura 2, as que so usadas para o de um homem. No caso do co, se
o vemos de lado, tudo que est mais prximo ao focinho dito rostral
ou anterior, enquanto o que est mais para trs dito caudal ou
posterior. Do mesmo modo, tudo que est para baixo dito ventral ou
inferior, enquanto o que est para cima dorsal ou superior. A
nomenclatura acompanha a posio do corpo do animal, que, por ser
quadrpede, possui um sistema nervoso organizado ao longo de um
plano paralelo ao cho. Os termos, neste caso, originam-se das
partes do corpo do animai: o rosto, a cauda, o ventre e o dorso.
Essas referencias so todas relativas, e dependem de planos mveis
posicionados de diferentes modos. O plano coronal (ou frontal) pode
ser movido para frente e para trs, e permite definir o que rostral
e o que caudal. Por conveno, pode- se escolher um determinado plano
coronal para ser o plano zero e fazer referncia aos demais segundo
seu afastamento do plano zero, em milmetros. Um segundo piano o
horizontal, que pode ser movido para cima c para bai xo, e portanto
define o que dorsal e o que ventral. Igualmente, pode-se considerar
um determinado pla no horizontal como plano zero e fazer referncia
aos de mais em funo de seu afastamento em milmetros. O plano mvel
perpendicular aos dois prim eiros chama-se parassa- gital. Neste
caso, o plano zero o que passa exatam ente pelo meio do sistema
nervoso, dividindo-o em duas m etades aproximadamente si mtricas.
Esse plano recebe o nome especial de sagital. As estruturas que se
situam prximo linha mdia, onde est o plano sagital, so ditas
mediais, enquanto as que esto mais para os lados so ditas laterais.
Em relao ao plano sagital, se estivermos considerando um dos lados
como referncia (seja o direito ou o esquerdo), as estruturas
situadas nesse mesmo lado so chamadas ipsilaterais (ou
homolaterais), enquanto aquelas situadas no lado oposto so chamadas
contralaterais. A maioria das reas do sistema nervoso central que
comandam os msculos do lado direito, por exemplo, encontra-se no
lado esquerdo. Diz-se ento que o comando motor, neste caso,
contralateral. No caso do homem, que bpede, a cabea e os olhos
apresentam-se inclinados 90 em relao ao corpo (Figura 2). Assim,
para o encfalo as referncias so as mesmas utilizadas para os
mamferos quadrpedes. E mais comum, entretanto, utilizar superior e
inferior em vez de dorsal e ventral. Para a medula, as convenes so
diferentes, por conta do ngulo de 90uentre ela e o en cfalo.
Anterior, no caso da medula humana, sinnimo de ventral, enquanto
posterior sinnimo de dorsal. O plano mvel que define essas
referncias para a medula chamado longitudinal. Por sua vez, as
estruturas mais prximas da cabea so ditas superiores, e aquelas
mais Dorsal Rostral Caudal Piano horizontal _________ Plano coronal
Plano sagital > Figura 1. Planos de referncia para o sistema
nervoso de um animal quadrpede. 10
- 20. N E U R O C I N C I A C E L U L A R dois hemisfrios, mas
sem um claro sulco de separao (Figura 1.4B); e o tronco enceflico,
uma estrutura em forma de haste que se continua com a medula
espinhal inferiormente, escondendo-se por baixo do cerebelo e por
dentro do crebro superiormente (Figura 1A C ). No crebro, a
superfcie enrugada cheia de girosG e sulcos^' o crtex cerebral,
regio em que esto representadas as funes neurais e psquicas mais
complexas. Grandes regies do crebro, de delimitao s vezes pouco
precisa, so os chamados lobos (Figura 1.4C): frontal, parietal,
occipital, temporal e insularA(este ltimo situado em uma dobra mais
profunda de cada hemisfrio, portanto invisvel por fora). No
interior dos hemisfrios esto os ncleos da base (s vezes chamados
impropriamente de gnglios da base) e o diencfaloA, invisveis ao
exame superficial. No cerebelo, a superfcie tambm enrugada* mas os
giros so chamados de folhas e os sulcos de fissuras.
Semelhantemente ao crebro, no interior dos hemisfrios cerebelares
esto os ncleos profundos, invisveis ao exame de superfcie. O tronco
enceflico tambm se subdivide (Figura 1.4D): o mesencfalo a parte
mais rostral dele, que se continua com o diencfalo bem no centro do
crebro; a ponte'' uma estrutura intermediria; e o bulboAou medula
oblonga a parte mais caudal, que se continua com a medula espinhal.
E do tronco enceflico que emerge a maioria dos nervos cranianos
mencionados anteriormente. O cirurgio que abre o crnio de um
indivduo vivo e anestesiado para operar o encfalo depara-se,
primeiro, com um conjunto de membranas que formam um saco fechado
cheio de lquido, onde o encfalo praticamente flutua. A mesma
disposio encontrada na medula. As membranas so as meninges, e o
lquido que elas contm o liquor, ou lquido cefalorraquidiano. Esse
colcho lquido esquerdo direito Ventrculo Tronco enceflico Medula
espinhal Figura 1.4. Os dois hemisfrios cerebrais podem ser vistos
de cima (A) ou de trs IB), 0 cerebelo e o tronco enceflico so
visualizados por trs (B) ou de lado (C). E quando o encfalo
dividido ao meio no plano sagital (D), veem-se algumas das
estruturas internas como os ventrculos e a face medial dos
hemisfrios cerebrais, e estruturas parcialmente encobertaspelos
hemisfrios e o cerebelo, como o mesencfalo, a ponte e o bulbo.
12
- 21. p r i m e i r o s C o n c e i t o s d a N e u r o c i n c i
a que envolve o sistema nervoso central o protege mecanica mente
contra traumatismos que possam atingir a cabea, e tambm contribui
com a sua nutrio e a manuteno do meio bioqumico timo para o
funcionamento neural. Ao ultrapassar as meninges, o cirurgio
visualiza o encfalo, que tem uma cor rosada devido extensa rede de
capilares sanguneos do tecido e uma consistncia gelatinosa (Figura
1.5A). Na superfcie, podem-se ver os ramos maiores dos vasos
sanguneos cerebrais com seu trajeto tortuoso e sua dinmica pulstil.
bem diferente o que v o estudante de anatomia quando disseca o
crnio de um cadver, cujos tecidos so quimicamente preservados pelo
uso de substn cias fixadoras como o formol (Figura 1.5B). Neste
caso, o liquor e o sangue so substitudos pelo fixador. Os grandes
vasos podem ser ainda visveis (no na Figura 1.5B), de cor escura,
enquanto a consistncia do tecido enceflico mais slida e sua cor,
mais esbranquiada ou amarelada. Um estudante de anatomia pode
remover o crebro e a medula para estud-los melhor. Pode ainda
cort-los em fatias segundo diferentes planos de corte, para ver o
seu interior (Figura 1.6). Nesse caso, ver os ventrculos e tambm os
ncleos' e tratos(i que compem o telencfalo, o diencfalo e o tronco
enceflico. Ao examinar com cui dado as fatias, ver algumas regies
mais escuras e outras mais claras. As mais escuras receberam dos
primeiros anatomistas o nome de substncia ou matria cinzenta (que
na linguagem comum dita massa cinzenta), e as mais claras, o nome
de substncia ou matria branca. A substncia brancacomo se ver
adiante, uma regio de maior concentrao de fibras nervosas, muitas
delas pos suindo um envoltrio gorduroso esbranquiado que lhe d o
tom. A substncia cinzenta- ', ao contrrio, possui maior concentrao
de clulas nervosas e menor quantidade do envoltrio gorduroso. No
crtex cerebral e no crtex cere- belar, a substncia cinzenta externa
e a substncia branca intema. Em outras regies ocorre o oposto: a
substncia cinzenta interna em relao substncia branca. 0 SISTEMA
NERVOSO VISTO AO MICROSCPIO So limitadas as possibilidades de
compreenso da organizao estrutural do sistema nervoso, se ficarmos
restritos observao macroscpica. Por isso, necessrio estudar a
estrutura microscpica do tecido nervoso. Esse, alis, foi um passo
histrico da maior importncia para a Neurocincia, ocorrido ao final
do sculo 19, e que possi bilitou identificar as unidades
estruturais e funcionais do sistema nervoso - o neurnio e o glicito
(ou clula gial). Para estudar o sistema nervoso ao microscpio pre
ciso preparar o tecido adequadamente, o que feito pelos
histologistas e citologistas, e tambm pelos patologistas, estes
interessados nas alteraes estruturais do sistema I Figura 1.5. 0
encfalo vivo tem aspecto diferente do encfalo fixado em formol. Em
A vemos a superfcie do crtex cerebral de um indivduo vivo, tal como
se apresenta em um campo cirrgico. Pode-se ver uma das membranas de
cobertura, com aspecto leitoso eson^-ja e acima, bem como os vasos
sanguneos que irrigam o crtex cerebral. Em B, foto de um encfalo
fixado, com as membranas e os rasos removidos. Foto A cedida por
Jorge Marcondes, do Servio de Neurocirurgia do Hospital
Universitrio Ciementino Fraga Filho, da UFRJ. 13
- 22. N E U R O C I N C I A C E L U L A R > Figura 1.6. As
estruturas internas do encfalo podem ser mais bem observadas em
cortes, como no plano indicado no desenho esquerda. Nesses cortes
(A e B) pode-se diferenciar a substncia cinzenta da substncia
branca do crtex, cerebral, assim como os ventrculos e outras
estruturas. A foto B foi tirada de um encfalo fixado, em plano
prximo ao desenhado em A Foto cedida por Leila Chimelli, do
Departamento de Anatomia Patolgica da Faculdade de Medicina da
UFRJ. Plano de corte ; > > S u b s t n c ia branca cinzenta
nervoso doente. Embora muitas observaes possam ser feitas no homem
aps a morte, a maioria requer tcnicas especiais que, por razes
ticas, s podem ser realizadas em animais. O tecido neural deve ser
primeiramente pre servado com substncias fixadoras. Depois,
retira-se um pequeno bloco da regio a ser estudada e este cortado
em aparelhos especiais chamados micrtomos, de modo a obter fatias
(cortes) muito finas, com alguns micrmetros de espessura (lembrar
que 1micrmetro, ou 1 |nn, equivale a 0,001 mm), ou at menos, se a
inteno for utilizar um microscpio eletrnico. Esse procedimento
permite obter a transparncia necessria para que o tecido possa ser
atra vessado pelo feixe luminoso do microscpio (ou feixe de
eLtrons, no caso do microscpio eletrnico). No entanto, embora os
cortes sejam transparentes, os elementos do tecido s podem ser
vistos se forem tratados com corantes especficos que os destaquem
do resto da preparao. Isso feito a seguir, e os cortes so ento
montados em lminas de vidro ou gratculas especiais para a observao
ao microsc pio. As variantes tcnicas so inmeras e permitem marcar
seletivamente diferentes clulas, organelas snbcelulares e at mesmo
molculas especficas (Figura 1.7). Igualmente, inmeros tipos dc
microscpios disponveis atualmente permitem uma grande variedade de
formas de observao do tecido nervoso. Alm disso, aumentos bem
maiores podem ser obtidos utilizando o microscpio eletrnico em vez
do microscpio ptico. 1 0 N eu r n io Classicamente se considera o
neurnio (Figura 1.8) como a unidade morfouncional fundamental do
sistema nervoso, e o glicito como unidade de apoio. Isso porque se
verificou que a clula nervosa produz e veicula diminutos sinais
eltricos que so verdadeiros bits de informao, capazes de codificar
tudo o que percebemos a partir do mundo exterior e do interior do
organismo, os comandos que damos aos efeUiadores do nosso corpo
(como os msculos e as glndulas), e tudo o que sentimos e pensamos a
partir de nossa atividade mental. Por essa viso clssica, o glicito
seria encarregado apenas de alimentar e garantir a sade do neurnio.
Entretanto, a importncia dessas clulas de apoio cresceu muito em
tempos recentes, depois que se consta tou que elas lidam com sinais
tambm, embora de tipos diferentes - sinais qumicos de orientao do
crescimento 14
- 23. P r i m e i r o s c o n c e i t o s d a n e u r o c i n c i
a * Figura 1.7. A/o tecido nervoso, neurnios e glicitos coexistem
de um modo ordenado que favorece a sua interao funcional. 4s quatro
fotos representam o mesmo campo de um corte histolgico fino
passando atravs do crtex cerebral de um embrio de camundongo.
Utilizou-se um conjunto de marcadores fluorescentes especficos que
mostram: (A) os prolongamentos radiais dos glicitos, em verde; (B)
a presena de molculas de reconhecimento intercelular Iem vermelho)
nos neurnios jovens que migram sobre esses prolongamentos; (Cj os
ncleos de todas as clulas presentes na regio (em azul); e (D) a
sobreposio dos trs marcadores. Fotos de Marcelo F. Santiago, do
Instituto de Biofsica Carlos Chagas Filho, UFRJ. da migrao dos
neurnios durante o desenvolvimento, de comunicao entre eles durante
a vida adulta, de defesa e reconhecimento na vigncia de situaes
patolgicas e outras funes. Constatou-se mesmo que os glicitos inter
ferem na comunicao entre os neurnios, podendo assim modificar o
contedo da informao transmitida. Sendo unidades funcionais de
informao, os neurnios operam em grandes conjuntos, e no
isoladamente. H uma tendncia geral na evoluo - embora com excees de
selecionar animais com crebros cada vez maiores, dotados de um
nmero de neurnios e glicitos cada vez maior. Provavelmente isso
ocorre porque, sendo dotados de maior nmero de neurnios e glicitos,
os animais tornam-se capazes de comportamentos mais ricos e mais
adaptados aos diferentes ambientes que encontram na Terra. Veja no
Quadro 1.3 como se pode estimar o nmero de neurnios das diversas
espcies de animais, e descobrir as regras de acrscimo de unidades
celulares no desenvolvimento e na evoluo. Esses conjuntos de
neurnios associados forniam os chamados circuitos ou redes neurais.
Por exemplo, as clu las nervosas da retina, que captam as imagens
formadas pela luz do ambiente, s se tomam capazes de propiciar a
viso se veicularem os sinais eltricos que geram em resposta luz,
para outros neurnios localizados na prpria retina e depois no
crebro. Cada um deles realiza uma pequena paite do trabalho
cooperativo que ao final nos possibilitar 1er um livro, ver um
filme ou admirar uma tela de pintura. Do mesmo modo, no so apenas
os neurnios da medula espinhal, que inervam os msculos, os nicos
envolvidos 15
- 24. n e u r o c i n c i a c e l u l a r Figura 1.8. H muitos
tipos de neurnios, A figura mostra apenas dois exemplos: um neurnio
piramidal (A), e um neurnio estrelado IB) do crtex cerebral de um
macaco e de um rato, respectivamente. Em B, pode-se ver tambm um
capilar cerebral, na metade inferior da ilustrao. Foto A cedida por
Juliana Soares, do Instituto de Biofsica Carlos Chagas Filho, da
UFRJ; B por Marco Rocha Curado, do Instituto de Cincias Biomdicas
da UFRJ. na realizao do movimento. Antes de chegar at eles, os
sinais eltricos de comando muscular percorrem numerosos circuitos
de programao, preparao e controle da ao muscular, cujo resultado
poder ser o recital de um pianista, a carta que escrevemos, ou o
drible de um jogador de fu tebol. Os circuitos neurais sero
amplamente estudados ao longo do livro, em praticamente todos os
captulos. Nesta fase, entretanto, consideraremos o neurnio
isoladamente, apenas para apresentar sua. estrutura e suas
propriedades fundamentais. Como toda clula, o neurnio possui uma
membrana plasmtica que envolve um citoplasma contendo organelas que
desempenham diferentes funes: o ncleo, repositrio do material
gentico; as mitocndrias, usinas de energia para o funcionamento
celular; o retculo endoplasmtico, sistema de cisternas onde ocorre
a sntese e o armazenamen to de substncias que participam do
metabolismo celular; e muitas outras. O que diferencia os neurnios
das demais clulas do organismo animal a sua morfologia adaptada
para o processamento de informaes e a variedade de seus tipos
morfolgicos. A Figura 1.9 apresenta uma coleo de tipos de neur nios
encontrados em diferentes locais do sistema nervoso (confira tambm
a Figura 1.8). Pode-se observar que o 16 corpo neuronal ou soma
apresenta grande nmero de pro longamentos, ramificados mltiplas
vezes como pequenos arbustos; so os dendritos, palavra de origetn
grega que sig nifica pequenos ramos de rvore. E atravs dos
dendritos que cada neurnio recebe as informaes provenientes dos
demais neurnios a que se associa. O grande nmero de dendritos til
clula nervosa, pois permite multiplicar a rea disponvel para
receber as informaes aferentesc . Observando os prolongamentos que
emergem do soma, percebe-se que um deles mais longo e fino,
ramificando-se pouco no trajeto e muito na sua poro terminal: o
axnio, ou fibra nervosa. Cada neurnio tem um nico axnio, e por ele
que saem as informaes eferentesc dirigidas s outras clulas de um
circuito neural. A sada de informao da clula concentrada no axnio,
mas deve ser veiculada a muitos outros neurnios do circuito. por
essa razo que o axnio se ramifica profusamente na sua poro
terminal, formando um telodendro (palavra de origem grega para
ramos distantes) com inmeros botes de contato com os dendritos das
clulas seguintes. Axnios de neurnios semelhantes muitas vezes se
associam em tratos ou fexes(; tio SNC e em nervos no SNR Essas
estruturas so verda deiros cabos de comunicao entre neurnios
situados em diferentes regies neurais. Neles, o essencial conduzir
-
- 25. p r i m e i r o s C o n c e i t o s da N e u r o c i n c i
a Telodendro Axnio Bainha de mielina Figura 1.9. Os neurnios s
podem ser vistos ao microscpio, geralmente depois que se retira um
pequeno pedao do encfalo (acima, esquerda), levando-o ao micrtomo
para obter cortes bem finos. Estes podem ser corados com substncias
fluorescentes ou corantes visveis a iluminao comum, para mostrar os
neurnios com suas formas variadas na disposio dos dendritos e do
axnio (acima, direita). Os desenhos representam neurnios de
diversos tipos morfolgicos, localizados em diferentes regies do
sistema nervoso: pseudounipolar (A), estrelado (Bj, de Purkinje
(C), unipolar (D) e piramidal (E). A foto, ilustrando neurnios do
crtex cerebral de um macaco, foi cedida por Juliana Soares, do
Instituto de Biofsica Carlos Chagas Filho, UFRJ. sinais com a maior
velocidade possvel-. Por isso, muitas fibras nervosas se associam a
certas clulas gliais que es tabelecem em tomo da fibra uma espessa
camada isolante 'Para se ter uma ideia, em muitos axnios a
velocidade de con duo dos sinais eltricos dos neurniospode atingir
cerca de 20 m/s, o equivalente a 72 km/h. Isso significa que os
seus neu rnios morores da medula espinha!podem enviarum impulso de
COmandopara OSmsculos de seupolegar em aproximadamente 0,02 s, ou
20 milsimos de segundo. chamada bainha de mieliiia (Figura 1.10),
que possibilita a conduo ultrarrpida dos sinais eltricos produzidos
peios neurnios. A regio de contato entre um terminal de uma fibra
nervosa e um dendrito ou o corpo (mais raramente, um outro axnio)
de uma segunda clula, chama-se sinapse, e constitui uma regio
especializada fundamental para o processamento da informao pelo
sistema nervoso. Na sinapse, os sinais eltricos que chegam a um
neurnio
- 26. N e u r o c i n c i a C e l u l a r I N e u r o c i n c ia
em M o vim en to Quadro 1.3 Quebrando Dogmas: Quantos Neurnios tem
um Crebro? Roberto Lent* y v urante a elaborao da primeira edio
deste M livro, minha colega Suzana Herculano- ^ Houzel, tia poca
iniciando: sua carreira pro fissional de neurocientista, questionou
o ttulo que eu havia pensado para o livro: Cem Bilhes de Neurnios.
Quais as evidncias para esse nmero? - perguntou. A pergunta
instigante me pegou de jeito: embora todos os livros e artigos
admitissem esse nmero, no consegui mos encontrar quem houvesse
contado de fato o nmero absoluto de clulas existentes no sistema
nervoso. Discutimos intensamente, e conclumos que a razo para essa
falta de dados quantitativos absolutos consistia na dificuldade
tcnica de estimar o nmero de clulas cerebrais por amostragem, j que
o tecido nervoso bastante heterogneo e as amostras acabam contendo
nmeros muito pouco representativos. Suzana acabou inventando um
mtodo elegante e eficiente para resolver o problema, que chamamos
fracionador isotrpico. A heterogeneidade de densidades celulares no
crebro poderia ser contornada transformando quimiomecanica- mente o
tecido em uma sopa de ncleos. A sopa - produzida passando o tecido
nervoso em uma espcie de pilo e misturando-a constantemente -
apresentaria uma densidade muito mais homognea, permitindo realizar
a contagem de amostras com maior preciso. E como cada clula s tem
um ncleo, contando ncleos contamos clulas.Alm disso, os ncleos dos
neurnios podiam ser diferenciados dos demais pela reao
imunocitoqumica para uma protena especificamente neuronal. Testamos
o mtodo em ratos, e ele funcionou! Da para frente, uma profcua
linha de pesquisa se desenvolveu, rendendo resultados
surpreendentes e questionando uma srie de dogmas at ento ina-
balados. O primeiro deles era a concepo de que o crtex cerebral
seria o pinculo da evoluo - a regio do crebro que mais havia se
desenvolvido ao longo do tempo. Os dados para esse conceito eram
baseados nas medidas de volume (ou massa) das diferentes re gies
cerebrais em diversas espcies - quanto maior o crebro, maior a
proporo do seu volume ocupada pelo crtex. Contando neurnios,
entretanto, verifi camos que o campeo na verdade o cerebelo1, cujo
crescimento evolutivo (em nmero de neurnios) revelou-se bem maior
que o do crtex cerebral. Em termos numricos, inclusive, o crebro
humano no apresenta especial crescimento em relao aos demais
ENCFALO (1.51 Og) 170 bilhes da clulas: 86 bilhes de neurnios 84
bilhes de glicitos RESTANTE (110g) 8 bilhes de clulas; 700 milhes
de neurnios + 7 bilhes de glicitos CRTEX CEREBRAL (1,2S0g) 77
bilhes de clulas; 16 bilhes de neurnios 61 bilhes de glicitos
CEREBELO (150g) 85 bilhes de clulas: 69 bilhes de nsurnios 16
bilhes de glicitos Utilizando a tcnica do fracionador isotrpico,
foipossvel estimar com preciso o nmero de neurnios e glicitos do
crebro humano. Modificado de F.A.C. Azevedo e cois., Journal of
Comparative Neurology, vol. 513, pp. 530-541 (2009). 18
- 27. P r i m e i r o s C o n c e i t o s d a n e u r o c i n c i
a primatas - sua composio quantitativa o que seria de se esperar
para um primata com um crebro pesando 1,3 kg... E o cerebelo,
modestamente, aloja quase 80% dos neurnios do crebro humano! O
segundo dogma que abordamos foi a reiao entre o nmero de neurnios e
o nmero de glicitos. Os livros eram quase unnimes: o crebro tem
pelo menos dez vezes mais glicitos do que neurnios. Verificamos que
essa relao prxima do que encontramos para o crtex cerebral (um
neurnio para cada seis glicitos), mas no para o crebro como um todo
(1:1) e muito menos para Ocerebelo (cinco neurnios para cada
glicito). Um terceiro dogma da literatura neurocientfica abordava o
modo pelo qual durante a evoluo e ao longo do desenvolvimento - o
crebro cresce de ta manho. Considerava-se que isso ocorre pela adio
de mdulos gerados na vida embrionria, cada um deles com um nmero
constante de neurnios, independen temente da espcie ou da regio
considerada. No crtex cerebral, aceitava-se como verdadeiro o nmero
fixo de 150 mil neurnios em cada coluna com rea de 1 mm2 na
superfcie. Contando neurnios com o novo mtodo, entretanto,
constatamos uma variao de trs vezes entre diversas espcies de
macacos. Aprendemos que os mdulos existem, mas no tm nmero
constante de neurnios... Por fim, chegamos a um veredito sobre o
real nme ro de neurnios do crebro humano (Figura). Analisando
encfalos de homens entre 50 e 70 anos de idade, encon tramos um
nmero mdio de 85 bilhes de neurnios, um pouco menos que o nmero
mgico de cem bilhes. No sabemos ainda se esse nmero exclusivo dessa
faixa etria. De qualquer modo, a descoberta colocou-me um dilema:
devo ou no devo mudar o titulo do livro? J estava decidido a mudar,
quando lembrei de um perfeito libi para manter esse ttulo eufnico.
A composio celular do crebro de pessoas mais jovens talvez leve de
volta a composio absoluta do sistema nervoso humano aos cem bilhes
de neurnios... Ser? Bainha de mieiina Axnios Oligodendrcitos
Professor-titular do Instituto de Cincias Biomdicas da
UniversidadeFederal do Rio deJaneiro. Correio eletrnico:
rlent@anato.ufrj.br t Figura 1.10. Da mesma forma que os neurnios,
os glicitos tambm apresentam formas variadas quando vistos ao
microscpio. Os astrcitos e os oligodendrcitos tm somas maiores, e
por isso fazem parte da chamada macroglia. Os oligodendrcitos
tmpoucos prolongamentos, e cada um deles forma uma espiral de
membrana em torno dos axnios, a bainha de mieiina. Os microglicitos
- em conjunto, chamados microglia - so os representantes do sistema
imunitrio no sistema nervoso. 19
- 28. nem sempre passam sem alterao: muitas vezes so bloqueados,
parcial ou completamente, ou ento multi plicados. Isso significa
que esse um local de deciso no sistema nervoso, onde a informao no
apenas transferida de uma clula a outra, mas transformada na
passagem. Alm disso, como cada neurnio recebe mi lhares de
sinapses, toda essa volumosa informao3pode ser combinada
(integrada, como dizem os neurocientistas) para orientar os sinais
que o neurnio enviar adiante. Voc pode encontrar informaes mais
detalhadas sobre isso no Captulo 4. A mais importante das
propriedades da clula nervo sa, todos admitem, a produo de sinais
eltricos que funcionam como unidades (bits) de informao. Isso
possvel porque a membrana plasmtica do neurnio excitvel. Como se
pode supor, a membrana plasmtica de qualquer clula separa dois
compartimentos diferentes: o intracelular e o extracelular. Como a
composio inica desses compartimentos distinta, existe uma diferena
de potencial eltrico entre os dois lados da membrana, que se mantm
relativamente constante durante a vida da clula. O interior da
clula negativo em relao ao exterior. No caso da clula nervosa, como
tambm da muscular, certos estmulos externos, ou mesmo produzidos
dentro da prpria clula, podem provocar a abertura de canais
moleculares embutidos na membrana, que deixam passar seletivamente
certos ions de fora para dentro, e outros de dentro para o meio
extracelular. Os canais se abrem bruscamente, e logo depois se
fecham outra vez. Quan do isso ocorre, a diferena de potencial
entre uin lado e outro da membrana muda de valor, e at mesmo
inverte a sua polaridade, transitoriamente: o interior passa a ser
positivo em relao ao exterior. Tudo se passa em poucos milsimos de
segundo, pois a polaridade da membrana volta rapidamente ao seu
estado normal. Esse rapidssimo fenmeno bioeltrico caracterstico da
clula nervosa conhecido como impulso nervoso ou potencial de ao
(obtenha maiores informaes sobre o impulso nervoso no Captulo 3).
Como tudo ocorre muito rapidamente, o neurnio pode produzir vrias
centenas de impulsos em cada segundo, e a distribuio deles no tempo
serve como cdigo de comunicao, pois pode ser modi ficada em cada
momento de acordo com as necessidades. Esses impulsos so produzidos
no corpo do neurnio, e conduzidos ao longo do axnio at a sua poro
terminal, Mais dados numricos intrigantes para voc: sabe-se que o
sistema nervoso central humano tem quase cem bilhes (10n')de
neurnios, e acredita-se que cada um deles receba cerca de 10 mil
(IO4) sinapses, em mdia. Isso significa quepodem existirno nosso
sistemanervoso aproximadamente 1.000.000.000.000.000 (IO15ou 1
quatrilho) de circuitos neurais! Veja o Quadro 1.3 sobre alguns
desses nmeros. onde podero determinar fenmeno semelhante no neurnio
seguinte. Os neurnios da medula espinhal que comandam um msculo do
brao, por exemplo, disparam um grande nmero de potenciais de ao em
cada segundo, quando a necessidade obriga a uma forte contrao
muscular. O nmero cai se for necessria uma contrao mais fraca. Os
impulsos so originados dentro da medula, onde esto os corpos
celulares, mas emergem pelas fibras que formam os nervos espinhais,
e atravs delas so conduzidos at o msculo correspondente. Diz-se,
neste caso, que os impul sos nervosos dos neurnios motores da
medula codificam a fora muscular. De modo semelhante, o mesmo
processo ocorre para outras funes neurais, como a percepo de
intensidade luminosa ou da tonalidade de um som, a secreo de uma
certa quantidade de hormnio, a emisso de palavras faladas, um
comportamento de raiva ou de medo, e assim por diante. Desse modo,
os impulsos nervosos so considerados si nais de um cdigo, palavras
de uma linguagem, ou unidades de informao. E essa fantstica
capacidade de produzi-los justamente encarada como a principal
propriedade dos neurnios. I A NEUROGLIA Glia um termo que provm do
grego e significa cola. Neuroglia (ou neurglia, como preferem
alguns) seria cola neural.Isso porque os primeiros histologistas
consideraram que as clulas da neuroglia - os glicitos -
desempenhariam papel de agregao e sustentao entre os neurnios. O
conceito no est de todo errado luz dos conhecimentos atuais, mas
hoje se sabe qu as funes ds glicitos so muito mais complexas e
fundamentais que essa. Os glicitos so to numerosos quanto os
neurnios, no crebro como um todo (ver o Quadro 1.3), e apre sentam
tambm diferentes tipos morfolgicos (Figura 1.10). O corpo celular
geralmente menor que o dos neurnios, e o ncleo ocupa grande proporo
dele. Do corpo emergem inmeros prolongamentos que se eno velam e
ramificam-se nas proximidades. Os glicitos no apresentam axnios.
Seus prolongamentos podem contactar capilares sanguneos, clulas
nervosas e outros glicitos, estabelecendo entre eles uma ponte
metabli ca. Podem tambm englobar sinapses, formando cpsulas de
isolamento delas em relao ao meio extracelular. Nesses casos,
considera-se que os glicitos participam da regulao da concentrao de
ons, nutrientes e mensageiros qumicos nas proximidades do neurnio.
Frequentemente, prolongamentos de glicitos enrolam- se em tomo de
fibras nervosas para formar a bainha de mieiina, j mencionada,
importante na conduo dos impulsos nervosos. Finalmente, certos
glicitos so na 20
- 29. P r i m e i r o s c o n c e i t o s d a n e u r o c i n c i
a verdade representantes do sistema imunitrio no sistema nervoso.
Assim, desempenham funes de proteo contra agentes agressores, de
absoro de partes dos neurnios que eventualmente degeneram, e at de
arcabouo para a regenerao de fibras nervosas em casos de leso. OS
CIRCUITOS NEURAIS E SEU FUNCIONAMENTO So inmeros, e de incrvel
variedade funciona] e estrutural, os circuitos que os neurnios
estabelecem entre si. A morfologia desses circuitos j h muito tem
sido estu dada em animais de experimentao, e mais recentemente,
tambm em seres humanos (veja sobre isso o Quadro 1.4). Mas a
pergunta mais importante : de que modo esses circuitos funcionam?
Como so capazes de propiciar o funcionamento complexo do sistema
nervoso? Tomemos um primeiro exemplo. De que modo voc pode
verificar o significado de um termo existente no glos srio deste
captulo? Primeiro, voc identifica o smbolo [G] ao lado da palavra
desconhecida, utilizando os circuitos visuais, aqueles que envolvem
neurnios da retina. Esses neurnios se comunicam com certas regies
do crebro por uma cadeia de sinapses, que rapidamente detectam a
forma do smbolo e o associam palavra glossrio. Voc ento interpreta
o significado do smbolo, e agora aciona os neurnios das regies mais
frontais do crebro, onde se origina a sua curiosidade por
compreender a palavra desconhecida. Nova cadeia de sinapses leva a
informao a neurnios do citex cerebral que comandam os movimentos do
corpo, e estes planejam os movimentos dos dedos que so necessrios
para virar as pginas at o final do captulo, onde fica o glossrio. O
comando final para os movimentos produzido pelos neurnios que ficam
posicionados na me dula espinhal na altura do pescoo, cujos axnios
emergem do sistema nervoso central em direo ao brao, mo e aos
dedos. Os msculos correspondentes fazem o trabalho, e voc vira as
pginas at o glossrio. Um segundo exemplo. Distrado na leitura deste
cap tulo, subitamente voc ouve o barulho de uma freada de automvel,
seguido de um estrondo. Voc leva um susto, seu corao dispara, e voc
se pergunta se ter ocorrido um acidente de trnsito, e se algum se
feriu. Como ocorreram esses fenmenos em voc? Neste caso, ido comeou
no seu ouvido, que foi capaz de transformar em impulsos nervosos as
vibraes do ar correspondentes aos sons que voc ouviu. Um circuito
de neurnios conectando os seus ouvidos com as regies temporais do
crebro permitiu que voc percebes se perfeitamente os sons, e mais:
que voc os comparasse com o catlogo de sons armazenado em sua
memria, e os identificasse como barulhos de freada e de uma batida.
Os circuitos da audio e da memria estendem-se tambm a outras regies
cerebrais relacionadas s emoes, e voc apresenta reaes corporais
correspondentes, bem como os sentimentos negativos derivados de um
acidente desse tipo. Essas mesmas regies cerebrais emocionais
acionam neurnios que comandam seu corpo, em especial o corao, o que
o faz bater aceleradamente. Desses dois exemplos cotidianos,
podemos tirar con cluses importantes. H neurnios de diferentes
funes: visuais, motores, auditivos, neurnios que produzem emo es,
outros que comandam os msculos e os rgos como o corao, neurnios da
memria, outros que produzem pensamentos e vontades. Neurnios para
tudo! E mais: os conjuntos funcionais de neurnios so na verdade
subespe- cializados. Ou seja: dentre os neurnios visuais, b aqueles
que detectam cores, os que detectam movimento de algo no campo
visual, os que sinalizam as linhas de contraste da borda dos
objetos, e assim por diante. O mesmo para os neurnios auditivos:
alguns detectam sons graves, outros, sons agudos, outros sinalizam
sons musicais (cuja frequ ncia modulada de uma certa maneira que
identificamos como msica). At mesmo os neurnios mais complexos,
como aqueles que participam das emoes, so especializa dos: alguns
respondem a estmulos negativos e provocam tristeza, angstia, medo e
demais emoes com essa va lncia, enquanto outros respondem a
estmulos positivos e provocam sentimentos de amor, amizade, prazer
etc. A cada dia que passa, os neurocientistas descrevem um tipo
diferente de neurnio, participante de cada uma das infinitas
capacidades que o nosso crebro nos propicia. O esUido funcional dos
neurnios, individualmente ou em grupos, pode ser realizado em
animais experimentais ou mesmo em seres humanos, neste caso em
situaes teraputicas que envolvem alguma neurocirurgia. Como os
neurnios produzem atividade eltrica, que na verdade representa a
sua funo informacional, possvel capt-la utilizando finssimos fios
metlicos ou micropipetas de vidro contendo uma soluo inica, e
amplific-la com uma aparelhagem eletrnica ligada a computadores de
alto desempenho. Podendo registrar a atividade eltrica de um
neurnio (ou vrios), os neurocientistas tratam de des cobrir qual o
melhor modo de faz-lo(s) disparar impulsos nervosos. Por exemplo:
se querem saber se um neurnio visual, estimulam o sujeito
experimental (animal ou homem) com formas projetadas em uma tela
defronte aos olhos; se querem estudar um neurnio motor, observam o
seu disparo correlacionando-o aos movimentos que o animal executa.
Os neurnios relacionados a funes mais complexas so estudados por
meio de engenhosos expe rimentos que levam os sujeitos
experimentais a realizar tarefas complicadas como embrar-se de um
objeto, falar alguma frase ou emitir um som vocal caracterstico,
ser tomado por uma forte emoo, realizar um movimento composto, e
assim por diante. O estudo eletrofisiolgi- 21
- 30. N E U R O C I N C I A C E L U L A R QUESTO DE MTODO Quadro
1.4 Circuitos do Crebro Humano ao Vivo e em Cores Fernanda Tovar-M
oll* iversas funes cerebrais so mediadas peio m recrutamento de
reas corticais e subcor- ticais espacialmente distantes. Portanto,
o conhecimento detalhado das complexas interconexes cerebrais da
substncia branca (SB) fundamental para o entendimento do
funcionamento do crebro, tanto nas condies fisiolgicas como nas
patolgicas. No entanto, os modelos anatmicos de conectividade do
crebro humano foram construdos com base em achados de degenerao
walleriana em pacientes, disseco post mortem de grandes feixes, ou
comparaes com estudos anatmicos em animais. Contudo, os mtodos
robustos para o estudo da conectividade cerebral em animais no
podem ser aplicados a seres humanos, por serem inva- sivos, o que
limita at hoje o conhecimento anatmico refinado da conectividade do
crebro humano. Recentemente, no entanto, uma tcnica de resso nncia
magntica (RM) foi desenvolvida, chamada imagem do tensor de difuso
(DT1 - do ingls diffusion tensor imaging), que parece ser bastante
promissora para o estudo da conectividade do crebro humano em vida.
Medindo o sinal magntico emitido pelo movi mento das molculas de
gua presentes no crebro, e transformando-o em imagem, a RM permite
o estudo anatmico e funcional do crebro, bem como a deteco e o
acompanhamento de diversas patologias neurolgi cas. A tcnica de D T
1 vai alm, e capaz de detectar o grau de movimento direcional das
molculas de gua no crebro, possibilitando o estudo da
microestrutura e dos principais circuitos cerebrais. Como a gua se
difunde mais facilmente ao longo do que transversalmente aos
axnios, o movimento das molculas nos feixes de SB marcadamente
direcional (ou anisotrpico), ocorrendo predominantemente na direo
paralela s fibras (Figu ra 1). A DTI consegue captar tais informaes
e, por mtodos de computao grfica, reconstmir a trajetria de
conjuntos de fibras axonais. Este desdobramento da tcnica chama-se
fascigrafia, e representa o primeiro mtodo capaz de rastrear as
fibras da SB no crebro humano in vivo (Figura 2). Desta forma,
atualmente, sistemas de feixes da SB podem ser identificados no
crebro de indivduos vivos normais (Figura 3), e a falta ou
degenerao de feixes pode ser comprovada e quantificada em estados
patolgicos. Ainda, a DTI permite a identificao de alteraes
anatmicas ou feixes anmalos decorrentes da reorganizao plstica
cerebral que pode ocorrer frente a diversas patologias do
desenvolvimento humano. I Figura 1. informao anatmica conferida
pela DTl baseia-se no movimento das molculas da gua em cada ponto
do crebro, calculado (tensor) e representado por vetores. A
anisotropia mede o quanto a difuso em uma das direes lo vetor
maiorj preponderante em relao s outras. Existem vrios ndices de
anisotropia, sendo a anisotropia Iracional IFA, da expresso em
ingls) o ndice mais comumente usado. Em imagens de um indivduo
normal no plano transverso, os grandes feixes de SBpossuem
anisotropia alta e aparecem mais claros no mapa de FA (A). 0 mapa
pode ser tambm representado em cores segundo a orientao dos feixes:
fibras em disposio ltero-lateral em vermelho, fibras
ntero-posteriores em verde e fibras spero-inferiores em azul (B).
Para comparao, uma imagem comum de RM, na mesma localizao (C). CC:
corpo calosos-A; FCE: feixe crtico-espinhal. 22
- 31. P r i m e i r o s c o n c e i t o s d a n e u r o c i n c i
a A Figura 2. >4fascigrafia permite a construo, por computao
grfica, de linhas que representam os feixes de substncia branca in
vivo. Tais linhas so construdas obedecendo ao sentido principal de
difuso (ou vetor) e intensidade da anisotropia fracionai (FA) em
cada unidade cbica de volume (voxel) do tecido. 0 princpio da
fascigrafia compara as vias que possuem a maior coerncia possvel de
difuso, e inter liga pontos contguos de um feixe quando seus
vetores tm direo semelhante. A. Mapa de FA codificado em cores
segundo a orientao dos feixes em plano coronal. 0 quadro representa
a regio destacada em maior aumento em B e C. Em B mostra-se a
representao dos vetores principais (traos vermelhos) no interior de
cada voxel, sobrepostos em mapa de FA. setas indicam a interligao
de pontos que vo reconstruir alguns dos feixes: corpo caloso (CC,
setas amarelas) e feixe crtico-espinha (FCE, setas rosas). Em C,
fibras do CC e do FCE reconstrudas em sobreposio ao mapa de FA
codificado em cores, segundo a orientao dos feixes. t Figura 3.
Reconstruo de alguns circuitos de um indi vduo normal. A e B.
Feixes crtico-espinhais projetados em imagens dos planos trans
verso (A) e coronal (B). C e D representam fibras do corpo caloso
projetadas em imagens de ressonncia magntica nos planos sagital (C)
e transverso (D). Em o corpo caloso em detalhe. > A famlia Tovar
Moll. *Pesquisadora do Instituto D Or de Pesquisa e Ensino, Rio de
Janeiro. Correio eletrnico: tovarmollf@gmail.com
- 32. E U R O C I N C I A C E L U L A R co de neurnios isolados
levou ao estudo de conjuntos mutineuronais relacionados a funes
complexas, o que, pela anlise dos padres de atividade, tem
possibilitado visualizar o desenvolvimento futuro de neuroprteses
ou prteses inteligentes (Figura 1.11), movidas pelo pen samento da
pessoa. Veja as repercusses ticas dessa possibilidade no Quadro
1,5. Esse tipo de abordagem essencialmente reducionista, pois
pretende inferir as propriedades funcionais de uma re gio cerebral
com milhes de neurnios interconectados, a partir das propriedades
de cada um ou de um pequeno grupo deles. No entanto, apesar dessa
aparente impropriedade terica, a estratgia tem possibilitado
grandes avanos na compreenso do funcionamento do sistema nervoso.
Como mencionamos anteriormente, foram descobertos neurnios por uma
lista inumervel de funes. Esses e muitos outros estudos cientficos
tomaram irre- torquvel, nos dias de hoje, a concepo de que as funes
mentais so o resultado da atividade coordenada de popu laes
neuronais agrupadas em regies restritas do crebro. Cada um dos
neurnios tem um papel analtico determinado, se se tratar de uma
funo sensorial, ou um papel executor muito especfico, no caso de
uma funo motora. Como os neurnios se conectam profusamente, a
atividade de um de les influencia a atividade de milhares de outras
clulas. Por isso, fica evidente que os caminhos que a atividade
neural toma atravs dos mltiplos circuitos neurais existentes em uma
regio podem variar muito em cada momento. Da se origina a espantosa
variabilidade do comportamento, especialmente do comportamento
humano. AS GRANDES FUNES NEURAIS Mas afinal, tendo essa organizao
to complexa, de que modo o sistema nervoso funciona, considerado
como um todo? Como as suas funes esto representadas no tecido
cerebral? A histria da Neurocincia registra um confronto re
corrente entre defensores de concepes opostas. Em um campo de
discusso, de um lado ficavam os globalistas (ou holistas4, como
muitas vezes se diz), de outro os Iocaliza- cionistas (ver o Quadro
1.6). Neste caso, discutia-se se as funes neurais estariam
representadas simultaneamente em todas - ou pelo menos em muitas -
regies cerebrais, ou ento se cada uma deias estaria representada em
uma regio especfica. Em outro campo de discusso, de um lado se
colocavam os espiritualistas, de outro os materialistas (muitas
vezes chamados reducionistas). Os primeiros acha vam que as funes
mais complexas, como o pensamento, a emoo, a memria e outras
tantas, mesmo tendo relaes * Termo derivado da palavra grega holos,
que significa todo, conjunto. Figura 1.11. Neste experimento, os
pesquisadores captaram, por meio de microeletrdios inseridos no
crebro de um macaco (A), a atividade eltrica simultnea de grande
nmero de neurnios encarregados da programao motora do brao. Depois,
a atividade dessa populao de neurnios foi analisada por um
computador, e os padres obtidos foram utilizados para movimentar um
brao robtico capaz de coletar uma fruta colocada sua frente e
lev-la boca para comer. B mostra os trajetos do brao robtico no
espao (em vermelho), e os movimentos de preenso do alimento pela mo
rob tica (em azul). Trata-se de um experimento de neuroengenharia,
ramo aplicado da Neurocincia que pretende criar verdadeiras prteses
inteligentes que possam ser empregadas para ajudar pessoas com
doenas neurolgicas incapacitantes. Modiicado de S.K. Velliste e
cols. (2008) Nature vol. 453:pp. 109S-I10I.
- 33. p r i m e i r o s C o n c e i t o s d a n e u r o c i n c i
a Quadro 1.5 Neurotica / magine se voc pudesse tomar um comprimido
um pouco antes de uma prova, que a fizesse lembrar todo o contedo
da matria com a ra pidez de um raio. Imagine se fosse possvel
controlar o comportamento de um psicopata, colocando em seu crebro
um chip capaz de inibir suas manifestaes de extrema agressividade.
Imagine se uma pessoa parapl gica, cadeirante, pudesse utilizar o
prprio pensamento, atravs de um computador, para direcionar a
cadeira-de- rodas e locomover-se livremente pela casa on pela rua.
Imagine se fosse possvel prognosticar ao nascimento, pela anlise do
seu genoma, se voc seria propensa a desenvolver grave doena
neurodegenerativa quando se aproximasse dos 50 anos. Todas essas
possibilidades parecem fantasiosas, mas na verdade esto no
horizonte tecnolgico das prximas dcadas. O progresso vertiginoso da
Neurocincia aper feioa a cada dia as neurotecnologias capazes de
intervir no crebro e modific-lo, para o bem ou para o mal. o que se
chama atualmente tecnologias convergentes NBIC
(nano-bio-info-cogno), uma espcie de associao de nano e
biotecnologias com as tcnicas de informtica e aquelas que mimetizam
ou influenciam os processos cognitivos humanos. As possibilidades
desses desen volvimentos so espantosas, e interferiro em todos os
domnios da vida humana - na educao, na medicina, no trabalho, na
vida social. Isso significa que preciso discutir as implicaes ticas
desses procedimentos que se aproximam. A plula da memria, se for
possvel desenvolv-la, deveria ser consumida por quem? Por um
paciente com perda de memria? Parece razovel. Por um aluno na
vspera da prova? Nesse caso, seria talvez uma espcie de dopagem, no
mnimo um procedimento injusto com os demais que no teriam acesso ao
mesmo medicamen to. Haveria tambm um dilema social: alguns teriam
recursos para comprar o comprimido, outros no. O im plante de um
chip controlador do comportamento talvez sejustificasse em um caso
claro de psicopatologia grave - mas so tnues os limites entre uma
real patologia, um desvio de comportamento, e uma personalidade
rebel de. Correramos o risco de uso dessa tecnologia para o
controle de dissidentes polticos, por exemplo. Um cadeirante
obviamente se beneficiaria de uma cadeira- de-1'odas inteligente,
controlada pelo prprio crebro do usurio. Mas... e se uma empresa
exigisse de seus empregados o implante de chips que permitissem um
controle motor mais preciso de instrumentos e robs? E finalmente,
voc gostaria de saber que aos 50 anos estaria invlida pela morte
inexorvel dc uma parcela de seus neurnios? Se soubesse o mesmo a
respeito de seu filho, guardaria para si a informao, ou a revelaria
a ele em algum momento da vida? Se essa informao delicada fosse
dada a pblico, que seguradora de sade aceitaria dar-lhe cobertura?
Quem lhe ofereceria emprego? No prtico, porque seria ineficaz,
negar o de senvolvimento dessas novas descobertas e tecnologias. Ao
contrrio, a maioria dos analistas tem recebido com entusiasmo essa
nova onda de desenvolvimento tecno lgico que prenuncia suceder
revoluo das comuni caes que tem caracterizado a transio entre o
sculo 20 e o sculo 21. No entanto, todo novo conhecimento apresenta
desafios e suas aplicaes podem ser benficas ou no. Por isso,
indispensvel que todos discutamos, em sociedade, os desafios da
Neurotica. A discusso poderia comear por aqueles que lidam mais de
perto com esses temas, os neurocientistas, os profissionais de
sade, os estudantes e aqueles que se interessam pelo assunto. Mas,
na verdade, uma discusso que pertence a toda a sociedade. com o
crebro, seriam no entanto emergentes, ou seja, obedeceriam a uma
lgica prpria, independente dele. Os ltimos argumentavam que todas
as funes psicolgicas seriam originadas da atividade cerebral. Essa
discusso de natureza filosfica se estende at os dias de hoje,
estando ainda por serem resolvidos muitos de seus aspectos. O autor
deste livro considera que os localizacionistas e os materialistas
tm apresentado melhores argumentos do que os seus opositores, e que
suas teses constituem explicaes mais slidas para os dados obtidos
pela experimentao cientfica. A Lo c a liza o d a s Fu n es Um bom
exemplo - mas no o nico - de localizao cerebral de uma funo
neuropsicolgica complexa, tpica do homem, a linguagem. J no sculo
passado, neurolo gistas europeus descreveram casos de pacientes que
haviam perdido a capacidade de falar (afsicos, segundo a termi
nologia atual), e cujos crebros, observados aps a morte,
apresentavam sinais de leso em uma regio restrita do he misfrio
cerebral esquerdo (Figura 1.12). Alm disso, foram identificados a
seguir outros pacientes que haviam perdido 25
- 34. N e u r o c i n c i a C e l u l a r His t r ia e o u t r a
s His t r ia s Quadro 1.6 A Frenologia e o Nascimento da
Neurocincia Experimental Suzana Herculano-Houzel* O sculo 19 viu
grandes mudanas na apre ciao da existncia humana. E