Post on 23-Jan-2019
Cartografia e Políticas Científicas: uma experimentação
teórico-metodológica com a Historiografia das Ciências no
Brasil Império
Daniel Maia Amaral (MAIA, D.)
email: danielmaiahist@gmail.com
Programa de Pós-graduação em História das Ciências, das Técnicas e Epistemologia
(HCTE). Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Resumo:
Concentrados na formalização e afirmação disciplinar da História desde o século XIX,
os historiadores estabeleceram fronteiras epistemológicas mais seguras para analisar o
processo de desenvolvimento das civilizações no tempo. No entanto, com o
desenvolvimento científico e tecnológico, mudanças profundas surgiram no seio das
sociedades ditas modernas. Desde a psicanálise freudiana, passando pela mecânica
quântica com estudos na dimensão subatômica das partículas, como também o
progresso da historiografia dos Annales, em direção à fragmentação dos domínios
teóricos culminando na Nova História, lugar também das Mentalidades. É necessário
nos perguntarmos como o desenvolvimento tecnológico e científico condicionou nossos
modos de pensar e agir, e no presente trabalho em particular, a partir das produções de
instituições científicas como o Museu Nacional e os agentes participantes e promotores
de saberes. Considerando uma dupla função institucional do Museu, enquanto lugar de
ciências e de política, pude elaborar uma proposta teórico-metodológica transdisciplinar
que busca analisar os processos fundamentais da produção de saberes e a formação de
uma rede científica composta por sujeitos e instituições que atravessaram o período final
do Império e viram o surgimento da República. Tal análise tem como objetivo
descortinar novos olhares sobre as ciências praticadas no Brasil, notadamente a Corte,
compreender as relações que os sujeitos e instituições estabeleciam com a classe política
na elaboração de políticas públicas científicas e, por fim, criar um modelo
computacional-imagético que revele as rupturas e continuidades desse processo de
elaboração de políticas científicas que atravessou o período crítico na historiografia
brasileira entre os anos de 1870 e 1920. Lanço mão de um conjunto de métodos
exógenos aos domínios da História, notadamente a Teoria dos Grafos, mais comumente
presente na Matemática e na Computação, e algumas propriedades intrínsecas a
compreensão da dinâmica de grupos. Também estabeleço uma relação análoga ao
conceito de agenciamento e rizoma, elaborados por Gilles Deleuze e Félix Guattari em
Mil Platôs para representar elementos dentro de um campo de forças de relações entre
sujeitos e instituições e por fim, no que tange ao manejo com a documentação histórica,
recorro a uma métrica de fontes primárias provenientes do Museu Nacional/UFRJ na
tentativa de analisar os campos de saberes desenvolvidos na instituição no referido
período.
Introdução
O processo de institucionalização das ciências no Brasil ocorreu a partir de um
cenário de reestruturação político-administrativa com a vinda da Família Real
Portuguesa, instalando a Corte no Rio de Janeiro e consequentemente, fundando
academias literárias, sociedades científicas, museus, entre outros. A partir desse espaço
condensado de cultura, política e atividade científica, percebeu-se, a partir de uma
análise cartográfica das instituições instaladas, a formação de um fluxo de saberes
entre os agentes participantes dessas instituições, ou seja, a formação de uma rede de
subjetividades político-científicas. Não por acaso muitos desses participantes atuavam
em várias instituições ao mesmo tempo, o que nos leva a considerar a influência dos
estudos científicos na elaboração de políticas de desenvolvimento, mesmo no período
de crise política que culminou no ocaso do Império e descortinou a Proclamação da
República. Utilizar uma análise metodológica que se aproprie de um ferramental
exógeno à ciência histórica tem sido possível apenas atualmente com uma abordagem
transdisciplinar, fazendo aproximações com a área da estatística computacional e a
ciência dos dados a partir de softwares de visualização.
É importante mencionar o período específico que se analisa na presente pesquisa.
Entre os anos de 1870 à 1920 verificou-se uma intensa e diversa atividade
político-científica na Corte, e tomando como epicentro dessa atividade o Museu
Nacional no Paço de São Cristóvão, tendo à frente da direção o Dr. Ladislau de Souza
Mello e Netto (entre 1874 à 1893) e o próprio Dom Pedro II como maior incentivador,
cria-se aí a) uma espécie de vértice de circulação de saberes e b) de decisões políticas. O
primeiro aspecto porque foi a partir da reestruturação do Museu Nacional e da atuação
de Ladislau Netto que o Brasil pôde direcionar suas políticas desenvolvimentistas tendo
como base as atividades científicas, tanto no âmbito nacional como internacional, por
meio de explorações no território brasileiro e com exposições internacionais
demonstrando a riqueza natural e o desenvolvimento científico do Império. O segundo
aspecto porque o próprio Dom Pedro II juntamente com a Imperatriz Teresa Cristina
atuavam como os principais fomentadores do desenvolvimento político-científico do
pais, tendo requisitado a presença e o trabalho de pesquisadores europeus, para
desbravar o território do Império Brasileiro no intuito de explorar as riquezas naturais,
uma nítida ação estratégica que teve como consequência também o desenvolvimento de
diversos campos do conhecimento. Para GOMES1, o final do séc. XIX foi marcante
para o desenvolvimento das atividades científicas no Brasil em diversas áreas, boa parte
tendo como incentivador principal o governo imperial e com a Proclamação da
República, os governos estaduais. Desde a década de 1870 2 vinha ocorrendo um
movimento de transformação cultural e de modernização no Brasil, provocando
modificações nas esferas política, econômica e social. Paralelo a isso o Brasil vinha
enfrentando um clima de incerteza com o crescente movimento abolicionista e as
classes dominantes prevendo insurreições dos libertos e o desequilíbrio de poder. É
preciso um olhar mais apurado sobre as relações que se estabeleciam entre a atividade
científica e o cenário político daquele momento, desse modo, tenta-se enxergar a
formação de uma rede de agenciamentos político-científicos utilizando ferramental
1 GOMES, Ana Carolina Vimieiro. Uma ciência moderna e imperial: a fisiologia brasileira no
final do séc. XIX (1880-1889). 2 Um dos casos emblemáticos de afirmação científica no período foi o Laboratório de
Physiologia Experimental do Museu Nacional, que funcionou entre 1880 e 1889. Ainda que as pesquisas
realizadas no referido laboratório servissem de pano de fundo para diversos setores em desenvolvimento,
o laboratório não resistiu também ao fim do Império, visto que era justamente o governo imperial a
principal fonte de investimentos como parte da institucionalização das ciências no país. O que não reflete
o quadro geral com o advento da república: devido a descentralização administrativa os governos
estaduais estimularam a criação de várias escolas profissionais.
exógeno à metodologia tradicional da ciência histórica. Adotar um método
computacional para analisar documentação histórica, fora de padrões binários com
capacidade de indexação só será possível com a adoção de medidas compensatórias
num esforço futuro, mas por enquanto, usa-se elementos de ordem transdisciplinar para
a transcrição desses agenciamentos para um imagem de grafo.
O recorte temporal correspondente aos anos 1870 à 1920 foi feito com base na
hipótese de que o contexto político, de transição entre Império e República, tenha
influenciado a dinâmica das relações institucionais, as práticas científicas e as políticas
de fomento adotadas tanto pelo governo imperial como pelo republicano, ainda pleno de
tensões e incertezas.
Sendo a Corte o núcleo das produções científicas do Império, e o Museu
Nacional uma das principais instituições científicas e também o lugar em que Dom
Pedro II tomou como centro de negociações e encontros políticos3, a escolha pelas
produções da instituição, mais especificamente os artigos publicados nos Archivos do
Museu Nacional, são de extrema relevância para identificar uma rede de agenciamentos
com outras instituições e agentes produtores e promotores de ciências. O conteúdo
científico das referidas publicações se concentra na área de História Natural,
especialidade do Museu, mas também contem estudos em Botânica, Zoologia,
Paleontologia Brasileira, Geologia, e outros. É importante analisar a variedade de
estudos para termos uma ideia de como se deu a dinâmica na produção científica e o
alcance que esses estudos tiveram na comunidade científica nacional e mesmo
internacional.
Numa investida transdisciplinar que é desafiadora do ponto de vista
metodológico, lanço mão de uma experimentação computacional-imagética de
transcrição das informações contidas nos referidos artigos para dados computáveis. No
momento atual, o processamento dessas informações é custosa para a pesquisa,
requerendo uma aproximação alternativa para construir um modelo analítico que revele
de forma clara a formação de uma rede de agenciamentos entre os sujeitos e instituições
científicas como também a formulação de políticas para a área. A utilização de
softwares modernos de processamento e visualização é exigida para a análise de dados
qualitativos e a verificação de uma subjetividade dos fatos “objetivos”, presentes nas
produções científicas e as políticas científicas inerentes a determinado campo. Acredito
que essa premissa também seja necessária na análise de documentos históricos, quando
ainda não estavam inseridos num sistema de referenciamento mais preciso.
Cartografando os Processos Fundamentais de Produção de
Saberes
Constituir uma memória gloriosa e instituir uma cultura de excelência no Brasil
foi um projeto político e econômico que visava dirimir as desconfianças que ainda
pairavam pelo jovem império, e foi assim que, a partir dos anos 1850, Dom Pedro II
passaria a tomar parte desse projeto. Mesmo antes desse período já se verificava o
agenciamento político-científico, com a criação do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (1838), o qual o Imperador era frequentador assíduo já em sua juventude e
patrono da instituição.
Nos anos seguintes o IHGB se firmaria como uma instituição de excelência,
funcionando como um elo entre os intelectuais e os meios oficiais, tendo o Imperador
instituído até mesmo prêmios pelos melhores trabalhos apresentados na instituição. É
notório o interesse do monarca pelas ciências de um modo geral por meio de sua
participação direta, não só no financiamento de pesquisas das instituições como também
presidindo várias sessões do IHGB comparado à sua presença na Câmara, a qual só
aparecia duas vezes por ano. Essa característica de monarca-intelectual-mecenas é de
extrema relevância para constituir a análise teórico-metodológica ora apresentada, visto
que se estabelece uma rede egocentrada no Imperador. Lilia Schwarcz4 reforça essa
ideia ao afirmar que “por meio do financiamento direto, do incentivo ou do auxílio a
poetas, músicos, pintores e cientistas, D. Pedro II tomava parte de um grande projeto
que implicava, além do fortalecimento da monarquia e do Estado, a própria unificação
nacional, que também seria obrigatoriamente cultural”.
No âmbito do Museu Nacional verificou-se uma reestruturação a partir de 1870
que colocou a instituição no chamado “movimento dos museus”, consistindo na
3 O Museu Nacional foi transferido para o Paço de São Cristóvão apenas em 1892. 4 SCHWARCZ, L. M. As barbas do imperador D. Pedro II, um monarca nos tro picos.
Tradução . Sao Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 127.
formação de uma organização profissional no estabelecimento de uma rede de
comunicações internacional, provocando uma expansão sem precedentes. Tal mudança
se reflete a partir do Regulamento Interno de 1876, referente ao art. 20 da lei nº 2640 de
22 de setembro do mesmo ano sob o ministério de Thomaz José Coelho de Almeida, nos
Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, que estabelecia uma nova divisão
nas seções de pesquisa do Museu Nacional, descrevendo as finalidades da instituição,
modos de ingresso para os seus quadros e suas competências, como também estabelecia
a criação da Revista Archivos do Museu Nacional. Participaram da comissão de
elaboração e publicação da revista além de Ladislau Netto, também Charles Frederic
Hartt, João Batista de Lacerda, João Joaquim Pizarro, Orville Adalbert Derby, Nicolau
Joaquim Moreira, Carlos Luiz Salles Jr. e Francisco José de Freitas. No entanto, era de
Ladislau o papel principal na elaboração da revista, seja por sua presença permanente na
comissão, ou mesmo porque a edição da revista cabia particularmente a ele. Essas
atribuições centralizadas em Ladislau Netto demonstram mais um elemento da rede
egocentrada, exercendo uma influência condicionante na dinâmica da produção de
saberes científicos e decisões políticas estratégicas. Os prefácios elaborados por
Ladislau Netto tinham como objetivo a inserção do Museu na comunidade científica
nacional e internacional, estabelecendo um diálogo entre diversos atores do processo de
desenvolvimento científico e político do Brasil e validando as práticas desenvolvidas
naquele espaço.
Consta entre uma de suas publicações um volume de 580 páginas, dedicado à
descrição de aspectos geopolíticos, econômicos, científicos e técnicos do Império,
apresentado na Exposição Universal de 1876, realizada na Filadélfia. No referido
volume o Museu Nacional figura como o primeiro museu de história natural da América
do Sul, contando com três seções: a 1ª de Antropologia, Zoologia Geral e Aplicada e
Paleontologia sob a direção de João Joaquim Pizarro; a 2ª de Botânica Geral e Aplicada
e Paleontologia Vegetal, sob direção do próprio Ladislau Netto; e a 3ª de Ciências
Físicas - Mineralogia, Geologia e Paleontologia Geral, sob direção de Carl Frederic
Hartt. Essas classificações disciplinares muito provavelmente refletiam a formalização
das áreas correspondentes no cenário internacional, a exemplo da Antropologia, da
Geologia e da Botânica, e num movimento de modernização das ciências o jovem
império brasileiro na figura de Dom Pedro II, dentro de suas perspectivas
político-científicas, vinha acompanhando a evolução das pesquisas e publicações dos
centros de excelência científica ao redor do mundo, seja realizando, como dito
anteriormente, expedições no território (o que no período analisado veio a formalizar a
criação da Comissão Geológica do Império do Brasil) como também a participação do
Brasil nas Exposições Internacionais e trocas frequentes de correspondências diretas
entre o Imperador e pesquisadores e instituições estrangeiras.
Experimentos Teórico-metodológicos em Redes de
Agenciamento Científico
Mergulhar no território de incertezas da transdisciplinaridade requer a adoção de
regras metodológicas epistemologicamente fluidas, permitindo um atravessamento entre
o sujeito e o que se supõe ser o objeto de sua pesquisa. Me permiti tomar de empréstimo
os “delírios” constituídos na obra Mil Platôs, numa simbiose entre Gilles Deleuze e
Félix Guattari, sobre o conceito de agenciamento. Para os dois autores, esse processo de
agenciamento se constitui a partir da articulação entre uma territorialidade dos conceitos
e seus movimentos de fuga, de desterritorialização. Não podemos, nessa perspectiva,
negligenciar a exterioridade de suas relações. Significa compreender o fluxo dos
campos de força (internos e externos) atuando na formação de um agenciamento em
rede. É não constituir uma diferença entre um sujeito cientista, orgânico para com seu
meio, e a ciência produzida a partir do agenciamento que se estabelece com esse mesmo
meio. O rizoma, numa complementaridade multidirecional, quebra com a ideia de
rigidez dualista e linear de uma epistemologia das ciências, e ainda que relembre
minimamente uma estrutura há uma flexibilização na adoção de métodos e teorias
transdisciplinares. Há que se romper com a ideia de um dualismo epistemológico que
separe sujeito e objeto. É artificial condensar e objetificar um conceito, ainda que um
sujeito se coloque distante daquele para triunfar sobre ele, tê-lo sob seu domínio. A
proposta de um positivismo radical pode ser justamente superar esse afastamento,
reaproximar o sujeito (também o cientista) de si mesmo e fazê-lo experimentar os
campos de força que o envolvem e o atravessam na produção de saberes.
Foi com essa ideia de experimentação radical que abracei as possibilidades de
uma metodologia transdisciplinar na análise da historiografia das ciências sobre o
período final do Império e a Proclamação da República. Tendo me aproximado de
leituras que teorizavam o fenômeno das redes, sendo Manuel Castells um expoente na
sociologia, pude elaborar meu próprio caminho e agregar conceitos análogos, como a
Teoria dos Grafos e o Espaço de Fluxos.
Constituindo uma Poética dos Números
Uma simbiose pós-moderna entre a geometria combinatória e uma cartografia
dos afetos científicos. É assim que penso essa poesia: um fluxo interacional de
elementos de teorias espaciais da matemática e das humanidades. É a partir desses
fluxos que valido a presente experimentação na constituição dos sujeitos e instituições
científicas.
Para Castells5 o espaço de fluxos “é a organização material das práticas sociais
de tempo compartilhado que funcionam por meio de fluxos, (...) sequências intencionais,
repetitivas e programáveis de intercâmbio e interação entre posições fisicamente
desarticuladas, mantidas por atores sociais nas estruturas econômica, política e
simbólica da sociedade”. A partir dessa definição de fluxo, pude racionalizar ideia
semelhante com a realidade da estruturação das ciências a partir de 1808, quando a
Família Real Portuguesa veio para o Brasil. Foi inevitável que, com um Império
transplantado, houvesse uma institucionalização das ciências (europeias) no Brasil. Com
Dom Pedro II esse fluxo das práticas sociais científicas se reflete com a intensa
comunicação entre intelectuais brasileiros e europeus, principalmente a partir de 1870,
período em que o já citado movimento dos Museus permitiu ao Império Brasileiro
estabelecer relações político-científicas mais concretas. Ainda segundo Castells, “numa
rede, nenhum lugar existe por si mesmo, já que as posições são definidas pelos
intercâmbios de fluxos de rede”. No contexto do Museu Nacional, a instituição só teve e
tem a devida importância por fazer parte de uma rede de comunicações que é sua
configuração espacial fundamental, não fazendo desaparecer o lugar físico
necessariamente, mas a sua lógica e seu significado são absorvidos pela rede. Sinal disto
foi a mudança do Museu do Campo de Santana para o Paço de São Cristóvão, sem, no
entanto, ter suas funções e missão político-científica alterada drasticamente, mesmo
com o ocaso do Império. Outro ponto importante nesse processo análogo da teoria das
redes é considerar o Museu Nacional como um “nó” ou “vértice” por ser um lugar de
função estratégica ao produzir saberes, sendo assim um ponto chave da rede
político-científica. Cada nó da rede possui uma hierarquia funcional, um peso de
influência e dependendo da evolução das dinâmicas interacionais entre os nós da rede
ou entre múltiplas redes, essa hierarquia pode mudar o comportamento dos nós ou
mesmo fazê-los desaparecer. Na história do Museu Nacional verifica-se tal fenômeno
com o Laboratório de Physiologia Experimental do Museu Nacional, que funcionou de
1880 à 1889, tendo seu campo de saberes sendo paulatinamente suplantado pela
ascensão da microbiologia6. Outros exemplos se verificam também com o falecimento
de pesquisadores ligados ao Museu, a exemplo de Charles Hartt e Carlos Luiz de Saules
Jr, mortos no mesmo ano de 1878 em exercício da pesquisa científica, o que pode
significar uma lacuna insubstituível e a mudança completa da dinâmica de uma rede
político-científica.
A analogia que Castells estabelece entre as Redes do Mercado Financeiro (com
suas funções administrativas estruturadas) e às industrias de alta tecnologia me fez
perceber também uma divisão político-científica semelhante na produção de saberes.
Tendo o Imperador Dom Pedro II a prerrogativa governamental, estabeleceu-se como nó
egocentrado de toda a rede (no âmbito do território nacional) definindo funções à outros
nós, como por exemplo, o Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, que
por sua vez foi responsável pela organização administrativa do Museu Nacional entre
1868 e 1890. Como citado no início do presente trabalho o Museu Nacional sofrera uma
reestruturação administrativa-disciplinar, dividindo suas atividades científicas em três
seções. No intuito de constituir uma cartografia das relações cientificas do museu, me
valho de documentação primária onde encontra-se a descrição dessa nova divisão e a
participação de diversos pesquisadores que transitaram e/ou colaboraram com as
atividades no Museu Nacional. Sob direção do Dr. Ladislau Netto o Museu Nacional se
estabeleceu como instituição chave na política de promoção do desenvolvimento
5 CASTELLS, M. A sociedade em rede. Traducao . Sa o Paulo: Paz e Terra, 1999. p.501 6 GOMES, Ana Carolina Vimieiro. op.cit. p. 120-131.
nacional, passando também a publicar periodicamente sua revista, já mencionada, os
Archivos do Museu Nacional. Parte do processo de elaboração da presente proposta
metodológica foi a identificação dos sujeitos participantes na atividade administrativa e
científica do Museu Nacional a partir de uma análise bibliométrica do periódico. Com
essa identificação de sujeitos pude estabelecer algumas correlações com as seções
reorganizadas do Museu. Abaixo uma breve lista7 dos correspondentes, nacionais e
estrangeiros, da instituição:
- Henri Ernest Baillon (Calais, 30 de Novembro de 1827 — Paris, 19 de Julho
de 1895). Foi um botânico e médico francês. Escreveu o capítulo sobre as
Dichapetaleae incluído no volume 12 da edição de 1886 da obra "Flora
brasiliensis" de Carl Friedrich Philipp von Martius.
- José Vicente Barbosa du Bocage (Funchal, 2 de Maio de 1823 — Lisboa, 3
de novembro de 1907). Foi um zoólogo e político português. Foi curador de
zoologia do Museu de História Natural de Lisboa. Publicou extensa obra sobre
mamíferos, aves e peixes. Na década de 1880 foi Ministro da Marinha e mais
tarde Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal.
- Henrique Pedro Carlos de Beaurepaire-Rohan, primeiro e único visconde
com grandeza de Beaurepaire-Rohan, (Niterói, 12 de maio de 1812 — Rio de
Janeiro, 19 de julho de 1894) foi um nobre, militar e político brasileiro. Bacharel
em física e matemática, foi membro do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. Escreveu a
Corografia da Província da Paraíba do Norte, publicada na Revista do Instituto
Histórico da Paraíba, em 1911.
- George Bentham (Stoke em Devon, 22 de setembro de 1800 — Londres, 10
de setembro de 1884). Foi um botânico inglês. Considerado por muitos o maior
sistemata do século XIX. Também colaborou com von Martius na Flora
brasiliensis.
- Visconde do Bom Retiro - Luís Pedreira do Couto Ferraz, primeiro e único
Visconde do Bom Retiro (Rio de Janeiro, 7 de maio de 1818 — Rio de Janeiro,
12 de agosto de 1886) foi um advogado e político brasileiro. Ministro e
7 Essa lista pode ser encontrada no início de variados volumes do periódico, a descrição
aqui presente foi retirada de fonte secundária da Wikipedia lusófona.
Secretário de Estado dos Negócios do Império entre Setembro de 1853 e Maio
de 1857. Foi o responsável pela metodização e oficialização do ensino primário,
reforma do ensino secundário, das escolas de medicina, o conservatório de
música, a academia de belas artes, e criador do Imperial Instituto dos Cegos.
- Alphonse Louis Pierre Pyrame de Candolle (Paris, 28 de Outubro de 1806
— Genebra 4 de Abril de 1893). Foi um botânico franco-suíço, filho de Augustin
Pyrame de Candolle, de quem foi o continuador da obra científica, coordenando
a publicação dos últimos volumes do monumental Prodromus systematis
naturalis regni vegetabilis.
- Tomás José Coelho de Almeida (Campos dos Goytacazes, 27 de dezembro
de 1838 — 20 de setembro de 1895). Foi um proprietário rural, magistrado e
político brasileiro. Foi vereador, deputado provincial, deputado geral, ministro
da Marinha, ministro da Guerra e senador do Império do Brasil de 1887 a 1889.
É considerado também criador do Colégio Militar do Rio de Janeiro.
- Charles Robert Darwin (Shrewsbury, 12 de fevereiro de 1809 — Downe,
Kent, 19 de abril de 1882). Foi um naturalista britânico que alcançou fama ao
convencer a comunidade científica da ocorrência da evolução e propor uma
teoria para explicar como ela se dá por meio da seleção natural e sexual. Esta
teoria culminou no que é, agora, considerado o paradigma central para
explicação de diversos fenômenos na biologia. Foi laureado com a medalha
Wollaston concedida pela Sociedade Geológica de Londres, em 1859.
- Domingos Soares Ferreira Penna (Mariana, Minas Gerais, 6 de junho de
1818 - Belém, Pará, 1888). Foi um naturalista brasileiro, fundador do Museu
Paraense Emílio Goeldi. Em duas cartas-relatório publicadas pelo Museu
Nacional (1876; 1877), registrou suas considerações sobre os sambaquis
instalados nas regiões “sombrias e pantanosas” da costa oriental do Pará, que
ele escavou, mediu, topografou e cartografou, fazendo anotações sobre seu
estado de conservação e principais ocorrências arqueológicas do sítio - ossos
humanos, artefatos líticos e cerâmicos - descrevendo-as e localizando-as em suas
camadas estratigráficas. Em 1882, colaborou com Ladislau Netto na organização
da Exposição Antropológica Nacional, levando-o em excursões científicas aos
sítios arqueológicos da Ilha de Marajó e às aldeias indígenas no interior da
província.
- Auguste François Marie Glaziou (Lannion, Bretanha, 30 de agosto de 1833
— Bordeaux,? de 1906). Foi um engenheiro e paisagista francês. Veio para o
Brasil em 1858, a convite do Imperador D. Pedro II, para coordenar a Diretoria
de Parques e Jardins da Casa Imperial, no Rio de Janeiro, sendo oficialmente
nomeado para o cargo apenas em 1869.
- Claude-Henri Gorceix (1842 — 1919) foi um mineralogista francês que
nasceu em 1842 em Saint-Denis-des-Murs. De 1862 até 1866, ele estudou na
Escola Normal Superior de Paris e recebeu o título de Bacharel em Física e
Matemática. Depois foi professor na Escola Francesa de Atenas. Em 1876 ele
fundou a Escola de Minas de Ouro Preto no Brasil e foi o seu primeiro diretor. A
Escola de Minas oferecia cursos em Mineralogia, Geologia, Física e Química.
Em 1896 ele foi convidado pelo governo de Minas Gerais para ajudar no
desenvolvimento da educação agrícola do estado.
- Charles Frederick Hartt (23 Agosto de 1840, Fredericton, New Brunswick -
18 Março de 1878, Rio de Janeiro) foi um geólogo canadense-americano.
Acompanhou Louis Agassiz, de quem foi aluno, em sua viagem ao Brasil.
Durante esta expedição, explorou o litoral brasileiro, entre a Bahia e o Rio de
Janeiro, reunindo grande coleção zoológica e tornando-se autoridade em História
Natural da América do Sul. A partir de 1876, exerceu o cargo de diretor do
museu Nacional do Rio de Janeiro, ao qual doou sua importantíssima coleção
geológica. Durante os anos de 1875 e 1877, Hartt foi coordenador da Comissão
Geológica do Império do Brasil, que foi constituída pelo Imperador D. Pedro II e
tinha como enfoque preliminar o estudo da Geologia, da Paleontologia e das
minas brasileiras.
Note-se que os campos de saberes dos correspondentes giram em torno da
botânica, geologia, física, matemática, mas também encontramos personagens da vida
política do país e também da elite agrária. Essa multiplicidade de atores constitui uma
rede extremamente dinâmica em sua produção de saberes, motivações e no
gerenciamento do fluxo de informações provenientes dessa interação. Assim, o Museu
Nacional se destacou como uma das principais instituições do Império, atuando como
órgão consultivo, promovendo intercâmbios entre pesquisadores, e coletando elementos
naturais da flora e fauna de todo o território brasileiro. Numa publicação comemorativa
intitulada Fastos do Museu Nacional, já sob a direção de João Batista de Lacerda
(1895-1915), compilou-se vários feitos da instituição ao longo de sua atuação política e
produção científica em conjunto com outras instituições de semelhante importância,
como o Laboratório de Physiologia Experimental, aqui já citado, e que acabou se
desvinculando administrativamente do Museu Nacional. Ao período da direção do Dr.
Ladislau Netto são dedicadas boa parte da obra, reforçando a importância do período
como sendo a idade de ouro do Museu Nacional, tendo o mesmo organizado a
Exposição Antropológica de 1882 com elementos da cultura brasileira. Segundo o
Fastos, a Exposição encontro apoio incondicional das classes dirigentes do país, tendo
Ladislau conseguido apoio financeiro e partindo para o Norte do Brasil a fim de “colher
a maior somma possivel de objectos para a exposição e explorar os depositos
ceramicos da ilha Marajó”.
Um detalhe interessante sobre as relações político-científicas que se encontram
relatadas também na obra é a extração de exemplares fósseis, minerais, de fauna e flora,
por exploradores estrangeiros sem deixar para a nação a qual pertencem uma duplicata
das coleções. Desconfortos interinstitucionais como esse fizeram a Argentina criar uma
lei que proibiu tais apropriações “indevidas”, e, na opinião de Lacerda, tal iniciativa
legal também seria de bom grado ao Brasil.
Com o alvorecer da República seguiu-se, segundo as próprias palavras de
Lacerda, “uma mudança radical em todas as repartições administrativas do país”, tendo
sido ele mesmo recebido pelo Ministro do Exterior, Quintino Bocaiuva, que, pelo que se
pôde entender, foi o idealizador da transferência do Museu até o Palácio da Quinta da
Boa Vista, tendo Ladislau também atuado fortemente para a realização dessa
transferência. Lacerda corrobora a visão construída por José Murilo de Carvalho na
análise da passagem da Monarquia à República: o povo estava bestializado com a
celeridade das transformações que ocorriam no final do séc. XIX. No que concerne ao
Museu Nacional, passada a Constituinte de 1891, aquele se encontrava totalmente
realocado para o Paço de São Cristóvão em 1892 e em 1895 tomava posse como novo
diretor João Batista de Lacerda. Sob sua direção, Lacerda requisitou reformas
administrativas para o Museu, como a revisão do então vigente regulamento datado de
1876, restaurando, por exemplo, as conferências públicas realizadas por professores e
assistentes a fim de instruir o público sobre as coleções expostas na instituição, fazendo
com que o Museu recupere prestígio não apenas diante do povo, mas também da
imprensa. É notória a vontade de Lacerda em manter a rede de colaboradores externos
do Museu, notadamente os pesquisadores estrangeiros, mas o regulamento de 1876
impedia um vínculo público não fosse por contrato ou abstenção da nacionalidade
originária do pesquisador em favor da brasileira. Há um tom meritocrático nas palavras
de Lacerda, ainda que a ciência nacional se encontrasse num estágio de
desenvolvimento identitário e recorresse muitas vezes ao mimetismo científico
eurocentrado.
Em conclusão à essa análise bibliométrica, a obra Fastos do Museu Nacional
apresenta uma lista de instituições, de todo o mundo, as quais o Museu Nacional
mantinha intercâmbio de publicações científicas. Um recurso primordial para dar mais
clareza nessa experimentação metodológica que me presto a realizar. Como última parte
do presente trabalho apresento a aplicação dessa experimentação teórico-metodológica,
resultando numa representação computacional-imagética das redes político-científicas
estabelecidas a partir do contexto do Museu Nacional. Tal representação tem como base
teórica a geometria combinatória, mais especificamente a Teoria de Grafos, que tem em
seu espectro de representação características como a conectividade, proximidade e
agrupamento por cores. Conceitos que condicionam o modo como o grafo é constituído,
revelando a formação de comunidades, a ocorrência de fenômenos sócio-científicos e a
dinâmica dos campos de forças nas decisões sobre políticas científicas.
Por uma Poética da Rede8
Conclusão
8 O grafo foi produzido a partir do software Gephi, com a inserção de dados coletados de fontes
primárias das publicações do Museu Nacional.
O presente trabalho tratou de explorar novas possibilidades metodológicas na
compreensão da historiografia das ciências brasileiras no final do séc. XIX. Levei em
consideração a disponibilidade de fontes primárias e obras consagradas para a
constituição de dados computáveis para a elaboração de um mapa que pudesse
interpretar a formação de uma rede político-científica. O próprio processo de aquisição,
leitura e identificação das fontes é o que se pretende por cartografia, um empréstimo da
leitura de Mil Platôs do Gilles Deleuze.
Também fiz uso, ainda que exploratório, de teorias sociais ao descortinar as
redes de agenciamento científico, juntamente com a Teoria dos Grafos, um recurso
matemático utilizado para complementar o entendimento sobre os espaços de ciências
no Brasil, suas instituições e sujeitos.
O caminho para a elaboração de um estudo transdisciplinar é longo e custoso,
mas ao percorrê-lo encontramos toda uma poética na interação entre sujeitos e os
campos de saber que os transpassam. E foi essa a minha intenção.
Fontes
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Industrial, 1876.
O Imperio do Brazil na Exposicao Universal de 1876 em Philadelphia. Traducao .
Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1875.
Relatório Anual do Museu Nacional de 1874. Rio de Janeiro: Typografia da Gazeta
Juridica, 1874.
Relatório Anual do Museu Nacional de 1875. Rio de Janeiro: Typografia do Diario do
Rio de Janeiro, 1875.
Relatório Anual do Museu Nacional de 1877. Rio de Janeiro: Typografia de João
Ignacio da Silva, 1877.
Referências
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