Post on 10-Apr-2022
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Carlos Luís Melo Bichuetti
A mão que alivia e a dor da escuta:
a interconsulta sob o olhar da Psicologia Analítica.
MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
São Paulo
2019
Carlos Luís Melo Bichuetti
A mão que alivia e a dor da escuta:
a interconsulta sob o olhar da Psicologia Analítica.
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre
em Psicologia Clínica, sob orientação da
Prof.ª Dr.ª Liliana Liviano Wahba.
São Paulo
2019
Carlos Luís Melo Bichuetti
A mão que alivia e a dor da escuta:
a interconsulta sob o olhar da Psicologia Analítica.
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre
em Psicologia Clínica, sob orientação da
Prof.ª Dr.ª Liliana Liviano Wahba.
Aprovada em: __/__/___
Prof.ª Dr.ª Liliana Liviano Wahba– PUC-SP
Prof. Dr. Durval Luiz de Faria – PUC-SP
Prof.ª Dr.ª Sandra de Azevedo Pinheiro – UFTM
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) - Código de Financiamento
88887.163107/2018-00.
AGRADECIMENTOS
Ao meu pai, Milton Jorge Bichuetti (In memoriam), pelo exemplo de vida. À
minha mãe, Hilca de Sousa Melo Bichuetti, por seu amor incondicional.
À Prof.ª Dr.ª Liliana Liviano Wahba, pelo carinho e atenção, bálsamo de luz no
aprendizado junguiano.
Ao Prof. Dr. Durval Luiz de Faria, pelas reflexões que favoreceram meu
amadurecimento pessoal.
À Prof.ª Dr.ª Edna Maria Peters Kahhale, pelas orientações seguras.
À Prof.ª Dr.ª Sandra de Azevedo Pinheiro, pela generosidade de estar comigo
nesse percurso.
A Prof.ª Dr.ª Maria Célia Borges, pelo incentivo constante.
À psicóloga Helena C. Lyrio de Carvalho. Muito além de ser uma revisora de
textos, uma alma querida.
Aos amigos do mestrado, especialmente a Ana Paula, Denis Mendes, Ezequiel
Braga, Fabio Rezeck, Julieta Haddad e Sofia Ulisses.
Aos homens de branco que aliviam o sofrimento.
Aos homens de preto que vencem as masmorras de vício.
Aos meus amigos que, silenciosamente, estiveram do meu lado me inspirando.
À minha família, sentido do meu viver.
Ao médico Por certo, nem te lembras (tão criança eras naquele tempo...) e no entretanto um homem, quanta vez, mudou o pranto de teus pais em sorriso de bonança! Por certo, nem te lembras (já te cansa a memória, talvez...) um dia, entanto, esse homem terá sido mais que um santo, salvando o filho teu, tua esperança! O bem que se recebe a gente esquece... Somente a dor jamais é esquecida: Aquele que a criou... desaparece! Mas se este poema acaso te enternece Ama teu médico através da vida. Lembra-te dele, ao menos numa prece!
(Álvaro de Albuquerque)
RESUMO
BICHUETTI, C. L. M. A mão que alivia e a dor da escuta: a interconsulta sob o
olhar da Psicologia Analítica. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica).
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.
Este estudo teve como objetivo explorar a interconsulta psiquiátrica, investigando as
razões que levam os não-psiquiatras a solicitá-la e identificando as emoções relatadas
pelos médicos em suas relações interpessoais com o paciente e com o interconsultor
dentro do universo hospitalar. Foi desenvolvida uma pesquisa qualitativa utilizando
entrevistas semiestruturadas como ferramenta de pesquisa. A análise baseou-se no
referencial teórico proposto por Michael Balint, Carl Gustav Jung e outros autores
junguianos. Os participantes foram oito médicos que trabalham em um hospital geral
e solicitam interconsulta rotineiramente. Os resultados sugerem que a interconsulta
psiquiátrica seja como uma alavanca que favorece a relação médico-paciente,
auxiliando no manejo de situações conflituosas que surgem entre médicos e
pacientes, familiares e instituição. Os achados também apontam para o papel dos
complexos afetivos e das emoções do médico como fatores que interferem na relação
com os pacientes, o que requer que o interconsultor auxilie o colega a lidar com suas
emoções. Os participantes apontaram que um acesso mais fácil e uma melhor
comunicação com o interconsultor seriam melhorias a serem trabalhadas na relação
médico-médico. Espera-se que este estudo contribua para que a interconsulta seja
vista como uma ação que auxilie a compreensão das emoções em jogo com o intuito
de promover um melhor relacionamento entre médicos e pacientes.
Palavras-chave: Interconsulta psiquiátrica. Psiquiatria no hospital geral. Emoções do
médico. Relação médico-paciente. Psicologia analítica.
ABSTRACT
BICHUETTI, C. L. M. The hand that soothes and the pain of listening: medical
interconsultation from the perspective of Analytical Psychology. Dissertation
(Master in Clinical Psychology). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo, 2019.
This study aimed at exploring the psychiatric interconsultation, by investigating the
reasons that lead non-psychiatrists to request it and identifying physicians’ reported
emotions in their interpersonal relations with the patient and with the interconsultor
within the hospital universe. A qualitative research study was developed using semi-
structured interviews as research tool. Analysis were based on the theoretical
framework proposed by Michael Balint, Carl Gustav Jung and other Jungian authors.
Participants were eight physicians who work at a general hospital and routinely request
interconsultation. The results suggest that psychiatric interconsultation could be
performed as a means to improve doctor-patient relationship, assisting the
management of conflicting situations that arise between physicians and their patients,
families and the institution. Findings also point to the role of the physician’s affective
complexes and emotions as factors that interfere with the relationship with patients,
which requires the interconsultor to assist the colleague in dealing with his/her
emotions. Participants pointed that an easier access and a better communication with
the interconsultor would be improvements to be worked out in the doctor-physician
relationship. We expect that this study contribute to make interconsultation be seen as
an activity that also contributes to the comprehension of the emotions at play, and by
doing so helps to foster doctor-patient relationships.
Key words: Psychiatric interconsultation. Psychiatry at the general hospital.
Physician’s emotions. Doctor-patient relationship. Analytical psychology.
LISTA DE QUADROS E TABELAS
TABELA 1 – Caracterização dos participantes .................................................. 61
QUADRO 1 – Grupos temáticos e temas ............................................................. 63
QUADRO 2 – Exemplos de frases do grupo temático: a emoção em relação à
profissão .......................................................................................... 64
QUADRO 3 – Exemplos de frases do grupo temático: a emoção em relação à
instituição ........................................................................................ 67
QUADRO 4 – Exemplos de frases do grupo temático: a emoção na relação
médico-paciente .............................................................................. 69
QUADRO 5 – Exemplos de frases do grupo temático: motivos de
encaminhamento para o interconsultor ........................................ 75
QUADRO 6 – Exemplos de frases do grupo temático: relação com o
interconsultor .................................................................................. 80
SUMÁRIO
PRÓLOGO ................................................................................................................ 12
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 15
2 OBJETIVOS ........................................................................................................... 19
2.1 Objetivo geral .................................................................................................... 19
2.2 Objetivos específicos ........................................................................................ 19
3 REVISÃO DE PESQUISAS ................................................................................... 20
4 INTERCONSULTA ................................................................................................. 25
4.1 Interconsulta psiquiátrica: nasce uma subespecialidade ............................. 25
4.2 Interconsulta no Brasil ...................................................................................... 26
4.3 Caracterização da interconsulta ...................................................................... 28
4.4 A solicitação de interconsulta .......................................................................... 30
4.5 Benefícios da interconsulta .............................................................................. 31
4.6 Contribuições de Isaac Luchina e seu grupo ................................................. 32
5 DE JUNG A BALINT – CONTRIBUIÇÕES PARA A RELAÇÃO MÉDICO-
PACIENTE .............................................................................................................. 35
5.1 As contribuições de Jung ................................................................................. 35
5.1.1 Afetos e complexos .......................................................................................... 36
5.1.2 A mediação da interconsulta ............................................................................ 38
5.2 As contribuições de Balint ............................................................................... 39
5.2.1 Os grupos ......................................................................................................... 40
5.2.2 O médico como droga ...................................................................................... 41
5.2.3 Aproximação aos complexos: a organização e oferta da doença .................... 41
5.2.3.1 Conluio do anonimato .................................................................................... 42
5.2.3.2 A função apostólica ....................................................................................... 43
6 AFETIVIDADE NO CURADOR FERIDO ............................................................... 45
6.1 O mito de Asclépio (Esculápio) ........................................................................ 46
6.2 O médico como o curador ferido ..................................................................... 48
6.3 A dinâmica da relação médico-paciente – a relação transferencial.............. 49
7 MÉTODO ................................................................................................................ 52
7.1 Características do estudo ................................................................................. 52
7.2 Participantes ...................................................................................................... 52
7.3.1 Entrevista semiestruturada ............................................................................... 53
7.3.2 Gravador .......................................................................................................... 54
7.4 Procedimentos .................................................................................................. 55
7.4.2 Entrevista-piloto ................................................................................................ 55
7.4.3 Seleção de participantes .................................................................................. 55
7.4.5 Procedimento de análise de dados .................................................................. 57
7.4.6 Procedimentos éticos ....................................................................................... 58
8 ANÁLISE DOS RESULTADOS ............................................................................. 60
8.1 Descrição dos participantes ............................................................................. 60
8.2 Análise temática ................................................................................................ 62
8.2.1 Grupo temático – A emoção em relação à profissão. ....................................... 63
8.2.2 Grupo temático – A emoção em relação com a instituição ............................... 67
8.2.3 Grupo temático – A emoção na relação médico-paciente ................................ 69
8.2.4 Motivos do encaminhamento ............................................................................ 75
8.2.5 Relação com o interconsultor ........................................................................... 79
8.4 Análise das entrevistas ..................................................................................... 83
8.4.1 Sarah – a missionária ....................................................................................... 83
8.4.2 Esther – a poderosa ......................................................................................... 88
8.4.2 Hazael – o pensador ........................................................................................ 92
9 DISCUSSÃO .......................................................................................................... 97
10 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 106
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 109
APÊNDICE A – Folheto de Divulgação de Pesquisa .......................................... 116
ANEXO A – Termo de compromisso do pesquisador responsável .................. 117
ANEXO B – Liberação do responsável pela instituição ..................................... 118
ANEXO C – Termo de consentimento livre e esclarecido .................................. 119
ANEXO D – Parecer consubstanciado do Comitê de Ética ............................... 121
12
PRÓLOGO
A formação médica é longa e penosa, pois exige um árduo treinamento para o
desenvolvimento de raciocínio específico e de habilidades técnicas, construídos por
meio de sacrifícios que não se limitam ao período de estudos. Pelo contrário, as
renúncias permanecem uma constante no cotidiano do médico. Aos poucos, o
profissional da área vai aprendendo a conviver com a vida e a morte, lado a lado, e
oscila entre momentos de alegria e estados de dor que burilam a sua competência. E,
assim como no cascalho é possível encontrar pedras preciosas, o curso de medicina
funciona como uma peneira, um crivo que procura identificar o diamante existencial
em cada jovem que se propôs a salvar vidas.
É dessa maneira que vários alunos de medicina vão se descobrindo em um
aprimoramento contínuo que depende em grande parte dos mestres. Ao longo de suas
jornadas, terão que aprender a lidar com a dor, com a perda, com o luto e com o
fracasso. Descortinarão momentos de alegria seguidos de instantes de fadiga e
vivenciarão situações em que o estresse se transforma em vitória e outros em que a
conquista se torna um pesadelo. Para sobreviver a essa verdadeira roda-viva, passam
horas em leituras sem fim e enfrentam experiências que proporcionam
amadurecimento profissional.
À medida que o tempo passa, o médico corre o risco de o convívio com a dor
tornar-se rotina, algo natural e cotidiano. A naturalização desse sofrimento pode
transformar o médico em um técnico privado de emoção. Sem afetos, a vida deixa de
se expressar, perde-se a graça e o sabor dos momentos. Foi o que identifiquei em
uma das vivências que a vida me proporcionou como médico.
O fato se deu na internação em unidade intensiva de parente próximo que havia
sofrido uma queda e apresentou um hematoma subdural. A cirurgia foi tranquila, mas
a recuperação se mostrou lenta e difícil. Como médico, acompanhava os passos dos
colegas. Como familiar, convivia com o sofrimento da família e com sentimentos
mistos de esperança e medo. A preocupação era diária, pois a evolução caminhava
para um desfecho infeliz e, à medida que o quadro se agravava, percebia a dificuldade
dos colegas em estabelecer o diálogo, com respostas monossilábicas e
manifestações de dúvidas diante de um futuro tão incerto.
Procurar manter a esperança diante da incerteza dos colegas médicos perdeu
o sentido quando proferiram a sentença de uma provável sequela. A relação sofreu
13
um esfriamento. A família, que aguardava ansiosa o horário de visita, passou a ficar
mais temerosa e agressiva. O relacionamento com os médicos como que perdia o
encanto. A cada visita, os familiares buscavam respostas com os técnicos de
enfermagem que, receosos, educadamente se distanciavam. Chegou um momento
em que a angústia tomou conta. Com a constatação de que ainda haveria muito
sofrimento a ser enfrentado, uma ferida emocional se abriu, exigindo muita prudência
e cautela para sua cicatrização.
Nesse momento, optei por ser apenas um familiar e confiar na conduta dos
colegas. Notei que o voto de confiança funcionava como um alento precioso que, de
certa forma, renovou a esperança. Logo veio a transferência para a enfermaria e,
gradativamente, os ânimos foram serenando.
Tal vivência abriu uma ferida no cerne da minha alma, e uma preocupação se
instalou: como cuidar do cuidador, de que forma poderia aprimorar a relação e
fortalecer os laços entre os envolvidos no processo da cura?
Os anos passaram, o familiar apresentou notável recuperação, mas a ferida
emocional permanecia aberta. E seu processo de cicatrização foi se
consubstanciando na medida em que me permitia sentir a dor que invadia a alma das
pessoas adoecidas.
Nesse processo de aprendizado constante como cuidador e na qualidade de
interconsultor, passei a trabalhar em hospital de clínicas universitário, a partir da
década de 1990. Certa vez, ao chegar ao corredor, a equipe de enfermagem me
abordou preocupada com a agressividade verbal de um determinado paciente. Não
tardou e o serviço social se fez presente, perguntando se eu iria encaminhar tal
pessoa. Notava-se uma expressão de perplexidade na equipe. Entregaram-me o
pedido de interconsulta e, não podendo conversar com o médico assistente, que se
encontrava em um atendimento de urgência, dirigi-me até o paciente.
Qual não foi a minha surpresa ao reconhecê-lo do serviço ambulatorial. Ele me
olhou e sorriu, dizendo: “agora sim, estou salvo!”. A mudança de atitude foi
notável, pois a postura agressiva deu lugar à disposição para estabelecer o diálogo.
Compreendi que a agitação do paciente havia se originado no contexto familiar e que
o fato de ele ter sido trazido à força havia levado ao descontrole que gerou toda a
agressividade e os sentimentos persecutórios incialmente apresentados.
A abordagem se realizou a contento, com o paciente aceitando a medicação, e
facilitou a atuação da equipe que, então, com a presença do médico assistente,
14
mostrava-se ansiosa pelo desdobramento do caso. Ficou claro que a alteração
emocional de todos havia impedido que se adotassem medidas mais adequadas e os
aspectos relacionais do atendimento fossem contemplados.
Nesse momento, relembrei Balint com seus famosos grupos e consegui reunir
a equipe, ajudando-os a falar sobre a vivência e os sentimentos envolvidos,
procurando auxiliá-los a entender os fatores que geraram toda a dificuldade no
atendimento. Para minha surpresa, à medida que eles teciam comentários, minha
ferida cicatrizava e percebia que muitas das dúvidas e dificuldades emocionais que a
equipe relatava eram chagas abertas em busca de cuidados.
Tais vivências ficaram registradas de forma profunda, modificando
interiormente o meu olhar acerca da relação médico-paciente e suscitando uma série
de questionamentos sobre a prática médica e as dificuldades em lidar com os
pacientes em situações mais complexas, tanto na clínica médica quanto na
psiquiátrica. A oportunidade de cursar o mestrado favoreceu que eu ponderasse sobre
essas questões e me levaram a elegê-las como tema do presente estudo.
15
1 INTRODUÇÃO
Toda doença é também o veículo de um pedido de amor e de atenção. (BALINT, 1988, p. 240)
Ao caminhar por um hospital, observa-se um ambiente paradoxal, onde saúde
e doença se contrapõem diariamente, numa luta pela vida, gerando tensão entre a
esperança de cura e a desesperança da morte. Ocupando uma posição de destaque
no contexto hospitalar, tem-se, na figura do médico, a representação de um saber que
o capacita a lidar com a doença e o eleva à posição de agente da cura.
A proposta de cura e alívio atrai o indivíduo adoecido, afetado biológica e
psiquicamente, que chega ao hospital à procura de uma solução para o seu mal-estar,
na expectativa de encontrar os recursos necessários para sua melhora.
Esse contato entre o doente e seu provável “salvador” é marcado por uma troca
de emoções. O médico, além de ter que usar sua capacidade técnico-científica,
amparado pelo uso da razão para fazer o diagnóstico preciso e aplicar a terapêutica
correta, precisará lidar com as transferências emocionais do paciente e da família.
Tal encontro se dá entre dois indivíduos com características próprias e
circunstâncias particulares. O médico, segundo pesquisa do Conselho Federal de
Medicina (2018), tem-se sentido desgastado e sobrecarregado em suas atividades
diárias. Situações de estresse têm sido vinculadas ao serviço médico, causando
prejuízo no atendimento, afirmam Lipp (2000) e Nogueira-Martins (2003). Segundo
Carvalho (2007) e Dias (2015), o trabalho repetitivo, o tempo de jornada e as poucas
folgas têm sido apontados como alguns dos fatores de estresse que mais agravam o
dia a dia do médico. Por outro lado, o doente e sua família, esperançosos e mais
informados pelos meios de comunicação, têm abandonado uma posição de
passividade e passam a ativamente buscar respostas e esclarecimentos.
Na relação médico-paciente, os procedimentos para a cura da enfermidade é
perpassada pelo processo de comunicação e interação interpessoal que, segundo
Grosseman e Patrício (2004) e Simões (2011), é de difícil construção e demanda
esforços de ambas as partes. Tal relacionamento é repleto de idealizações,
questionamentos e emoções, em um encontro de dois seres humanos em que os
afetos se fazem presentes influenciando toda a tomada de decisão na clínica, segundo
Croskerry, Abbas e Wu (2008).
16
Se, diante da questão biológica, o médico tem todo um arsenal tecnológico,
com exames os mais sofisticados possíveis, que lhe possibilitam com segurança
diagnosticar a doença, o mesmo não ocorre no campo psíquico. Nessa esfera, o
médico necessita lançar mão, além do seu referencial teórico-cientifico, de recursos
próprios: sua história, sua personalidade, sua emoção. É aí que ele enfrenta as
maiores dificuldades.
Segundo Balint, na relação médico-paciente, o paciente espera por respostas,
e qualquer posicionamento tomado pelo médico poderá influenciar decisivamente a
relação estabelecida: “a personalidade do médico e os interesses subjetivos podem
exercer uma influência decisiva naquilo que ele nota e registra a respeito de seus
pacientes” (BALINT, 1988, p. 47). Para Jung (2016a), essa relação é marcada pelo
encontro de dois seres humanos, dois interlocutores que precisam dialogar. Se o
médico tem algo a dizer, o doente também o tem. E, ao falar, o paciente traz uma
mensagem cheia de significados na esperança de tocar o médico e, com isso,
encontrar as respostas necessárias para suas mazelas.
Buscar compreender as emoções do médico e a maneira como ele lida com as
dificuldades psíquicas do paciente, no mecanismo de contratransferência, é de grande
valor no sentido de ajudá-lo a suportar as demandas que lhe são trazidas e, conforme
aponta Balint (1988), na medida em que a personalidade do médico se adequa à sua
atividade, a melhorar sua relação com o paciente. Caberia, ainda, ao médico,
segundo Strickler (2009) e Del Piccolo et al. (2014), vencer qualquer desconforto
psicológico e desenvolver condições para que o paciente consiga expressar e nomear
o que sente, melhorando a comunicação interpessoal. Groopmam (2008) reforça essa
visão ao afirmar que desenvolver a capacidade de tornar conscientes suas emoções
permitiria ao médico uma melhor capacidade de escuta e de raciocínio, melhorando
efetivamente sua prática e sua relação interpessoal.
Todavia, observam Balint (op. cit.), Groopmam (2008), Croskerry (2002) e Mello
Filho (2006), o médico, por vezes, ao procurar lidar com situações de estresse e com
o sofrimento humano, evita as emoções, acreditando assim suportar melhor sua
profissão. Essa atitude precisa ser repensada, segundo Castelhano (2015), pois a
negação constante por parte do médico das suas reações emocionais afeta a
compreensão da dor alheia e a tomada de decisão. Balint (op. cit.), por sua vez,
identificou que os médicos apresentam dificuldades em lidar com pacientes que
demandam mais tempo de atenção, gerando irritação, ansiedade ou frustração.
17
Desse modo, quando em um contexto em que o médico se sinta afetado por
seu paciente, precisará buscar uma maneira de ser ajudado nas decisões que precisa
tomar, ou seja, tenderá a solicitar ajuda para continuar a prestar uma assistência
qualificada. Dito de outro modo, quando um conflito se faz presente, ou diante de
pacientes que geram problemas no relacionamento – percebidos como pacientes
difíceis, que não aderem a normas – o médico, sentindo-se desafiado ou questionado
em seu saber e com dificuldades de lidar com o psiquismo do paciente, solicita um
pedido de interconsulta, que pode ser definida como a presença do médico psiquiatra
em um serviço médico geral atendendo à solicitação de um colega de outra
especialidade.
Evidencia-se, segundo Ferrari, Luchina e Luchina (1977), que a interconsulta
surge de uma dificuldade na relação médico-paciente, na qual emerge um conflito que
sofre a influência de fatores pessoais, familiares, culturais e institucionais, o que
exigiria uma abordagem psicanalítica para o manejo e a resolução.
Diante de situações nas quais o médico tem dificuldades de lidar com o
psíquico1 do paciente, a presença do interconsultor se apresenta, segundo Strain
(1996), como algo pontual, como uma breve incursão, na tentativa de orientar o
diagnóstico e o tratamento, o que Botega (2002) corrobora em parte, sumarizando que
a interconsulta se aplica a dois tipos de atividade: a de consultoria psiquiátrica, que é
episódica e responde a uma questão específica, e a de psiquiatria de ligação, em que
o profissional de interconsulta atua de forma contínua, com maior participação e
interação com a equipe profissional. Segundo esse autor, além de melhorar a atenção
dada ao paciente e às suas necessidades, seria um dos objetivos da interconsulta
modificar o olhar voltado à doença para um olhar centrado no paciente, identificando
as demandas que emergem da relação do doente com os profissionais envolvidos no
atendimento e valorizando o relacionamento médico-paciente. Smith (1995), de outra
parte, considera que auxiliar o médico a melhorar seu relacionamento interpessoal e
a lidar com suas emoções torna-se um fator prioritário no atendimento do
interconsultor, uma vez que os afetos comprometem de forma ímpar o desempenho
médico.
Segundo Bastos (2002), o estudo da interconsulta psiquiátrica se apresentava
como um dos campos promissores de ação da psicologia médica. No entanto, a
1 Para Jung, a psique ou o psíquico representa a totalidade dos processos psíquicos conscientes e
inconscientes. (HARK, 2000).
18
perspectiva de crescimento não se confirmou. De acordo com Wood e Wand (2014),
existe uma nítida escassez de estudos recentes referentes à interconsulta psiquiátrica,
o que demostra a importância da realização de pesquisas nessa área.
O presente estudo procurará identificar o que leva o médico a solicitar a
interconsulta psiquiátrica, estudando suas emoções e dificuldades no manejo com
seus pacientes, com base no arcabouço teórico da psicologia analítica.
Entendendo que “a base essencial da nossa personalidade é afetividade;
pensamento e ação são, como se fossem, apenas sintomas da afetividade” (JUNG,
1907/2016b, par. 78), fica clara a importância das emoções nas relações
interpessoais, depreendendo-se que sua identificação poderia contribuir para que o
médico entenda e lide melhor com o paciente.
Justifica-se, assim, este trabalho em razão de as emoções fazerem parte da
vida do médico, sendo fortemente ativadas em um contexto que envolve expectativas
de cura e alívio, as quais podem interferir em seu relacionamento com seus pacientes.
Acredita-se que falhas na compreensão das emoções podem desencadear conflitos e
dificuldade na tomada de decisões, prejudicando a relação médico-paciente e
tornando necessária a presença do interconsultor. Compreender essas questões
auxiliará uma melhor adequação do relacionamento do médico com os pacientes,
ajudando-o a ter maior serenidade diante do sofrimento do outro e a desenvolver
meios de melhorar a sua habilidade de comunicação.
Para a apresentação da pesquisa, o tema foi desenvolvido e organizado da
seguinte maneira: após o Prólogo e esta Introdução, são apresentados, no capítulo 2,
os objetivos gerais e específicos que nortearam a pesquisa; o capítulo 3 apresenta a
revisão de pesquisas que contemplam a temática da interconsulta, com um olhar para
as dificuldades do médico ao lidar com seu paciente; o capítulo 4 – Interconsulta –
narra o surgimento dessa prática, suas características e o estágio em que se encontra
no cotidiano do hospital geral, pontuando os principais dados referentes ao médico
em sua relação com o paciente; o capítulo 5 – De Jung a Balint – aprofunda a reflexão
acerca das dificuldades do médico na lida com seu paciente; o capítulo 6 – Afetividade
– aborda o arquétipo do curador ferido para compreender a dinâmica da relação
médico-paciente; no capítulo 7, descreve-se o método qualitativo empregado nesta
pesquisa; no capítulo 8 é apresentada a análise de resultados e, em seguida, no
capítulo 9 a discussão a partir da teoria de base; o capítulo 10 traz as considerações
finais sobre este estudo.
19
2 OBJETIVOS
2.1 Objetivo geral
Compreender a solicitação do médico não psiquiatra de interconsulta
psiquiátrica para seu paciente.
2.2 Objetivos específicos
Identificar os motivos que levam os médicos a solicitarem interconsulta
psiquiátrica.
Identificar, a partir do relato de médicos, as emoções que surgem em relação à
atividade clínica e no relacionamento interpessoal com os pacientes encaminhados.
Identificar como os médicos entendem sua relação com o interconsultor.
20
3 REVISÃO DE PESQUISAS
O levantamento de artigos, dissertações e teses relacionados ao tema desta
pesquisa foi realizado por meio da busca nas plataformas a seguir listadas:
Biblioteca Virtual de Saúde (Bireme), que permite o acesso às seguintes
bases de dados: Medline, Lilacs, Ciência da Saúde e Ciências Sociais em
geral;
Portal de Periódicos da Capes;
Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações, disponível em:
<http://bdtd.ibict.br/vufind/>;
PubMed, disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed>;
Web of Science;
Bibliotecas de dissertações e teses da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP), da Universidade de São Paulo (USP) e da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Foram utilizadas as seguintes palavras-chaves, com seus correlatos em inglês:
interconsulta psiquiátrica; psiquiatria no hospital geral; emoção do médico; relação
médico-paciente; psicologia junguiana. O período abrangido refere-se,
prioritariamente, aos últimos cinco anos, de 2014 a 2019.
Até onde nos foi dado pesquisar, há uma carência de estudos publicados que
utilizam o olhar da psicologia junguiana para compreender as questões relacionadas
à interconsulta. A maioria dos artigos encontrados sobre essa temática adotam um
viés não junguiano. No Brasil, o maior número de trabalhos ocorreu na década de 80,
frequência essa que se arrefeceu com o passar dos anos, e, nos últimos cinco anos,
apenas duas dissertações e seis estudos foram escritos, utilizando os descritores
mencionados. Diferentemente, em outras áreas do mundo, essa produção foi maior,
no período considerado. Houve a publicação de 100 artigos sobre a temática na Web
of Science e de 290 na Pub Med, em sua maioria com foco em patologias clínicas. O
desenvolvimento do tema proposto no presente trabalho terá como base os estudos
que focalizaram a interconsulta psiquiátrica e os trabalhos clássicos sobre essa
temática.
A prática da interconsulta foi objeto de estudo de Neury José Botega em sua
tese de doutorado pela Unicamp em 1989, trabalho que foi o embrião do livro Prática
psiquiátrica no Hospital Geral: Interconsulta e emergência, atualmente em sua 4a
21
edição. O autor identifica que os encaminhamentos não se baseiam apenas nas
necessidades dos pacientes e que é fundamental conhecer os médicos e os
problemas institucionais. Em sua obra, Botega indica que alguns médicos ficam muito
incomodados com as demandas emocionais trazidas pelos pacientes, o que tem
levado muitos profissionais a desenvolver verdadeiras “couraças protetoras”
(BOTEGA, 2012, p. 39), escondendo-se atrás da tecnicidade e usando vários
mecanismos de defesa, como evitação, isolamento de emoções, racionalização e
ironia, mecanismos esses que dessensibilizam o médico e reduzem sua capacidade
de utilizar suas reações emocionais como instrumento semiológico.
De Giorgio et al. (2015) realizaram no Hospital Geral de Perugia, Itália, um
estudo em que avaliaram 1.098 consultas psiquiátricas no período entre 1º de julho
de 2009 e 30 de junho de 2010. Perceberam que a hospitalização é um evento
estressante que pode perturbar o equilíbrio mental, em alguns casos, e agravar a
condição clínica dos pacientes. A interconsulta psiquiátrica é capaz de aumentar a
conscientização da equipe assistente e melhorar a detecção de problemas
psicológicos dos pacientes, facilitando uma intervenção precoce. Na medida em que
se amplia e aprimora a investigação física e psicológica realizada pelas equipes
médica e de enfermagem, observa-se uma promoção da remissão da doença e do
bem-estar geral do paciente.
Por sua vez, Nakabayashi (2012), em sua tese de doutorado, realizou o
primeiro estudo longitudinal no Brasil, que analisou consecutivamente trinta anos da
população assistida pelo serviço de Interconsulta (IC) do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Segundo a
autora, os transtornos neuróticos, somatoformes e relacionados ao estresse foram os
diagnósticos psiquiátricos mais comuns entre as mulheres e homens, seguidos por
transtornos de humor e transtornos orgânicos, nas mulheres, e transtornos mentais
orgânicos, nos homens. As principais condutas sugeridas pelos interconsultores
foram: atendimento individual, orientação à equipe e prescrição de fármacos. Em seu
estudo, a autora detectou que a baixa taxa de encaminhamentos por parte de clínicos
e cirurgiões ao psiquiatra ocorria em razão da dificuldade daqueles em reconhecer os
transtornos mentais. Ao longo dos anos, o tratamento se tornou complexo e
abrangente, com um aumento discreto do encaminhamento para o tratamento
ambulatorial, o que levou a pesquisadora a sugerir o uso de instrumentos de
22
rastreamento de transtornos psiquiátricos e de treinamento para as equipes, visando
um reconhecimento mais rápido de comorbidades psiquiátricas.
Em relação à solicitação de avaliação psiquiátrica, Cassorla (1994) sugeriu que
a heterogeneidade dos termos usados para solicitar avaliação psiquiátrica estaria
vinculada à dificuldade dos clínicos em lidar com os transtornos mentais e do
comportamento. Acredita-se que tal circunstância tem levado a um aumento das
solicitações de interconsulta (IC) para avaliação dos sintomas apresentados,
motivação que havia sido levantada por Cerqueira e Smaira (1992, apud SMAIRA;
KERR-CORRÊA; CONTEL, 2003), determinando que muitos pedidos de interconsulta
poderiam ocorrer devido à dificuldade da equipe no trato com o paciente psiquiátrico,
seja em razão de algum sintoma específico que este apresenta, seja por conta das
suas reações diante do adoecimento.
De Marco (2012) aponta a importância, para a melhora do processo de cura, da
emoção e da comunicação na relação médico-paciente. No caso do médico, apreender a
reconhecer as próprias emoções e desenvolver a habilidade de comunicação têm-se
mostrado fatores de melhor resposta e aceitação do tratamento por parte do paciente. Essa
é uma realidade verificada também por Orom et al. (2018), estudioso do Departamento de
Saúde Comunitária da University at Buffalo, EUA, em sua pesquisa com pacientes
portadores de câncer de próstata. O estudo compreendeu o levantamento de 1.116
prontuários, e a realização de análises prospectivas e transversais, com dados coletados
de julho de 2010 a agosto de 2014 em dois centros de tratamento oncológico e em três
instalações comunitárias. Os resultados permitem concluir que a melhora na relação
médico-paciente – com um olhar centrado no paciente, aprimoramento do feedback e
ampliação da confiança – favoreceu uma melhor adesão ao tratamento e uma mais efetiva
resolução do caso.
A forma como as emoções são reveladas durante as consultas psiquiátricas e como
a habilidade de comunicação pode contribuir para facilitar sua expressão foram objetos da
pesquisa de Del Piccolo et al. (2014), apresentado em artigo intitulado “How psychiatrist’s
communication skills and patient’s diagnosis affect emotions disclosure during first
diagnostic consultation”. As autoras, pesquisadoras do Departamento de Saúde Pública e
Medicina Comunitária da Universidade de Verona, Itália, realizaram um estudo descritivo-
naturalístico, analisando as primeiras consultas de dezesseis psiquiatras em uma amostra
de 104 pacientes. As autoras concluíram que encorajar a comunicação dos pacientes, para
que eles possam verbalizar seus sentimentos, facilita a regulação emocional e aumenta a
23
colaboração, o que se torna viável com a ajuda de um clínico sensível. O estudo identificou
que as expressões mais frequentes de emoção foram relacionadas com aspectos
psicofisiológicos e cognitivos da ansiedade, tais como medo e preocupações. Notou-se que
os pacientes com transtorno de humor apresentavam maior facilidade de relatar seus
sentimentos do que aqueles de outros grupos de diagnóstico. A pesquisa sugere a
necessidade de criar um espaço usando as habilidades de escuta ativa para descobrir as
emoções do paciente e auxiliá-lo a torná-las conscientes.
Segundo Chen, Evans e Larkins (2016), apesar das evidências dos benefícios da
interconsulta psiquiátrica para pacientes com comorbidades psiquiátricas, ainda existem
muitas barreiras ao encaminhamento de pacientes internados ao serviço de interconsulta
psiquiátrica. Procurando entender os fatores que influenciam o encaminhamento dos
pacientes à IC, os autores realizaram uma revisão sistemática em que são considerados
todos os artigos publicados entre 1º de janeiro de 1965 e 30 de setembro de 2015. Além
desses, todos os artigos escritos em inglês que pudesse contribuir para a compreensão
das barreiras ao encaminhamento à CLP (consultoria e psiquiatria de ligação)2 foram
incluídos. Os autores levantaram os seguintes fatores que diminuíram os
encaminhamentos: o estigma, a má relação com o psiquiatra, a comunicação deficitária, a
crença do médico de que pode lidar com a situação tão bem quanto o psiquiatra e obter
resultados semelhantes, bem como a falta de reconhecimento da doença mental. Como
fator positivo, descreveram a presença de um serviço de IC ativo e comprometido. Para os
estudiosos, embora as pesquisas auxiliem na compreensão das barreiras ao
encaminhamento dos pacientes, ainda existe uma carência de pesquisas qualitativas que
abordem o ponto de vista dos médicos que solicitam a IC e o relacionamento do médico
com o paciente e com o interconsultor.
Em resumo, as pesquisas aqui apresentadas apontaram que as dificuldades no
relacionamento médico-paciente têm motivado a solicitação de interconsulta psiquiátrica
por parte do médico não especialista. Nota-se que os fatores emocionais incomodam os
médicos, favorecendo ou impedindo a solicitação de interconsulta psiquiátrica. Essa
observação conduz à conclusão de que muitas das solicitações de interconsulta ocorrem
em razão de questões pessoais e institucionais, e não apenas por motivos referentes aos
pacientes.
2 A sigla remete ao termo em inglês Consultation-liaison psychiatry.
24
Os estudos sugerem que médicos e pacientes estão envolvidos em um intricado
relacionamento que ainda merece ser mais profundamente analisado, o que reforça a
importância do presente trabalho, que tem por objetivo detectar as motivações que levam
os médicos a solicitarem a interconsulta.
25
4 INTERCONSULTA
4.1 Interconsulta psiquiátrica: nasce uma subespecialidade
Durante muitos anos, a psiquiatria permaneceu dentro dos asilos e distanciada
da medicina, com momentos de aproximação e outros de isolamento total. Essa
relação foi caracterizada por enfrentamentos e dificuldades, e uma maior interação só
começa a existir após a 2a Guerra Mundial. Em razão das experiências com os
pacientes combatentes naquele conflito, que precisavam ter uma melhora rápida, com
internações curtas que possibilitassem o seu retorno ao campo de batalha, surge uma
nova perspectiva de tratamento, que integrava a assistência psiquiátrica à intervenção
médica. No contexto da saúde mental, Botega (2006) esclarece que, com a
implantação de unidades de internação psiquiátrica em hospital geral como alternativa
ao tratamento vigente, asilar e estigmatizante do doente mental, inicia-se uma nova
abordagem terapêutica.
As condições para a atividade da interconsulta, que surge nos Estados Unidos,
na década de 1930, começam a se delinear com a criação de unidades de psiquiatria
em Hospitais Gerais (UPHG), tendo a primeira unidade sido estabelecida em 1902,
no Albany Medical Center em Nova Iorque. Temos, também, que o advento do
movimento de medicina psicossomática, favoreceu a aproximação, ainda que lenta e
tardia, entre a psiquiatria, que se encontrava confinada aos asilos, a clínica e o meio
acadêmico (DE MARCO, 2003). A atividade do psiquiatra auxiliando o médico de outra
especialidade tornou-se conhecida como interconsulta psiquiátrica.
Dois eventos marcam a história da interconsulta psiquiátrica: a publicação do
artigo “Some modern aspects of psychiatry in general hospital practice”, no American
Journal of Psychiatry de 1929, em que o autor, George W. Henry, assinala a
importância de os hospitais gerais terem em seu quadro médicos psiquiatras, e a
previsão feita, em 1934, por Helen Flanders Dunbar, pioneira do movimento
psicossomático, de que no futuro todas as enfermarias clínicas contariam com a
presença de psiquiatras (LIPOWSKI, 1986).
Zbigniew J. Lipowsky (1967), um profícuo estudioso da interconsulta
psiquiátrica, informa que, em 1932, Edward G. Billings montou no Colorado General
Hospital o primeiro serviço de interconsulta e, em 1939, criou o termo “psiquiatria de
ligação” (consultation-liaision psychiatry). Baseou-se, para tanto, no entendimento que
26
a participação do psiquiatra no hospital geral favorece uma melhora do diagnóstico e
no tratamento do paciente, possibilitando um tempo de internação menor, com menor
custo para a comunidade (LIPOWSKI, 1986).
As pesquisas sobre o tema levaram, nos anos de 1970, à publicação dos
primeiros periódicos dedicados à interconsulta psiquiátrica, um deles o Psychiatry in
Medicine. Nove anos depois, um segundo periódico, General Hospital Psychiatry, é
editado (BLUMENFIELD; STRAIN, 2006). Estudos epidemiológicos, já na década de
80, realizados por Lipowsky (1986), evidenciaram a importância do psiquiatra e do
psicólogo no hospital geral, indicando que de 30 a 60 % dos pacientes internados
apresentavam algum sofrimento mental.
As UPHG tornaram-se um fenômeno mundial, levando à redução de leitos e
internações em hospitais psiquiátricos e favorecendo a criação de vários serviços de
interconsulta. Após a Segunda Grande Guerra, chega-se à marca de 1.358 unidades
em 1984, nos EUA, graças, segundo Wood e Wand (2006), ao incentivo dado pela
Fundação Rockefeller e pelo instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos
(NIMH). Para Lipowski (op. cit.), a interconsulta psiquiátrica se consolida como uma
subespecialidade da psiquiatria voltada para a assistência, ensino e pesquisa diante
da interface entre a psiquiatria e a medicina, consolidando-se nos Estados Unidos em
2003 como subespecialidade pela American Board of Specialties.
Em síntese, a partir desses desenvolvimentos, a interconsulta3 psiquiátrica
pode ser conceituada como uma subespecialidade da psiquiatria voltada para a
assistência, ensino e pesquisa na interface entre a psiquiatria e as demais
especialidades da medicina.
4.2 Interconsulta no Brasil
No Brasil, os grandes hospitais psiquiátricos com características asilares se
mantinham como referência no tratamento do sofrimento mental desde a criação do
primeiro hospício brasileiro, em 1852, no Rio de Janeiro (FIGUEIREDO, 1996). De
forma incipiente, na década de 50, instalam-se as primeiras enfermarias de psiquiatria
no hospital geral, em 1954, no Hospital das Clínicas da Universidade da Bahia,
seguidas da criação de unidades no Hospital dos Comerciários de São Paulo, em
3 Interconsulta psiquiátrica lato sensu se refere à presença do psiquiatra auxiliando um médico de
outra especialidade. (SHAVITT; BUSATTO FILHO; MIGUEL FILHO, 1989)
27
1957, e no Hospital Pedro II da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de
Pernambuco (DALGALARRONDO, 1990). Enquanto no mundo as UPHG e os
serviços de interconsulta se desenvolveram de forma intensa, no Brasil observou-se
um avanço tímido e restrito ao meio acadêmico, com produções insulares e
gradativas.
De acordo com Eksterman (2010), o movimento psicossomático, que teve em
Danilo Perestrello seu grande incentivador no Brasil, tornar-se-ia o agente de
facilitação para a entrada da psiquiatria no hospital geral. Criador do Departamento
de Medicina Psicossomática na UFRJ, em 1958, o Professor Perestrello aborda, em
sua tese de livre-docência, o tema “A Psiquiatria atual como psicobiologia”. Ele, Júlio
de Mello Filho e Abram Eksterman consolidam o movimento psicossomático
fundando, em 1965, a Associação Psicossomática do Brasil. Em 1967, com a
presença do psicanalista Michael Balint, realizam a primeira reunião Nacional de
Medicina Psicossomática. Para Botega (2012), os trabalhos do Professor Mello Filho
no Hospital Geral e sua concepção de doença psicossomática capacitam-no a ser
chamado de patrono da interconsulta no Brasil.
É nesse cenário que, na década de 70, especificamente em 1977, no
Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Escola Paulista de Medicina,
surge o primeiro serviço de interconsulta (IC), estruturado como treinamento no
programa de Residência Médica em Psiquiatria (Nogueira-Martins, 2010).
No Brasil, os serviços de IC se formaram sob a orientação dos psicanalistas
argentinos Hector Ferrari, Isaac L. Luchina e Noemi Luchina. Luchina participou de
vários encontros no Brasil com a finalidade de formar interconsultores, e suas obras
se tornaram referência para a atuação do psiquiatra. Esses autores utilizaram a
expressão “interconsulta médico-psicológica”, explorando o campo dinâmico da
relação médico-paciente, em que conflitos emergiam na vivência entre os pacientes,
familiares, médicos e a instituição. Postularam o manejo das crises com base no
referencial psicanalítico, teoria predominante na interconsulta médico-psicológica
daquele período (FERRARI; LUCHINA; LUCHINA,1977).
A década de 80 foi marcada por um momento de apogeu, com a realização de
dois grandes encontros: o I Congresso Brasileiro de Psiquiatria e Medicina Interna,
em 1987, e o I Encontro Brasileiro de Interconsulta Psiquiátrica, em 1989, realizados
pelo Departamento e Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP). Os trabalhos apresentados
28
nesse segundo congresso foram catalogados pelo Professor Eurípedes Constantino
Miguel Filho e colaboradores e se transformaram no livro Interconsulta Psiquiátrica no
Brasil, publicado em 1990. Na mesma década de 1980, surgem as primeiras teses
sobre interconsulta psiquiátrica no hospital Geral, particularmente a de doutorado do
Professor Neury José Botega, em 1989, pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), e que se tornaria referência no estudo da interconsulta no Brasil.
Em 1997, um censo nacional registrou o avanço alcançado na década de 80,
apontando que 86% de 63 hospitais gerais que possuíam enfermaria de psiquiatria
contavam com um serviço de interconsulta psiquiátrica (BOTEGA; SCHECHTMAN,
1997). Atualmente, entretanto, segundo Scherer, Scherer e Labate (2002) não há uma
estimativa oficial do número de serviços de interconsulta psiquiátrica no Brasil, ainda
que exista a percepção de que a maioria dos serviços se encontra no meio acadêmico
e nos hospitais-escolas, o que estaria aquém do potencial de utilização desse serviço.
4.3 Caracterização da interconsulta
A aproximação do profissional de saúde mental no meio hospitalar, segundo
Botega (1995), tem possibilitado que a interconsulta seja utilizada como uma
ferramenta metodológica que auxilia na compreensão dos problemas que envolvem a
assistência médica e no desenvolvimento de critérios para aprimorar o tratamento.
No Brasil, a palavra “interconsulta” é utilizada abrangendo duas formas de
atuação: a consultoria e a psiquiatria de ligação. Em inglês e na literatura
internacional, tem prevalecido o termo proposto por Lipowski em 1967, consultation-
liaision psychiatry, ao se referir às práticas de consultoria e psiquiatria de ligação.
Na consultoria, a presença do psiquiatra é episódica e se dá nos casos em que
ele é chamado para resolver uma questão pontual. Sua ação é limitada e específica e
visa responder aos questionamentos da equipe de saúde. De maneira geral, o
psiquiatra é chamado para avaliar e indicar um tratamento para o paciente,
esclarecendo e aconselhando o médico consultante sobre a questão formulada. Este
poderá ou não seguir a orientação apresentada pelo colega.
Diferentemente, na psiquiatria de ligação (liaison psychiatry), a atuação do
psiquiatra torna-se constante. Como membro efetivo da equipe, tem livre acesso a
todos os pacientes, atendendo e interagindo com a equipe, participando de reuniões
e lidando com os aspectos da relação entre médico, equipe e paciente.
29
Em termos práticos, as duas maneiras de atuar são complementares e trazem
como objetivos orientar o diagnóstico e o tratamento de pacientes com distúrbios
psiquiátricos; capacitar o médico consultante a lidar com conflitos psicológicos de seus
pacientes e dos familiares; instruir o médico de outra especialidade no uso de
psicofármacos; melhorar a compreensão do paciente no seu contexto biopsicossocial,
facilitando a integração das ações terapêuticas; desenvolver a capacidade reflexiva
sobre o dia a dia da instituição e sua prática assistencial , detectando os entraves no
seu funcionamento; enfim, melhorar a qualidade do atendimento ao paciente,
favorecendo um olhar da equipe dirigido a todos os aspectos relacionados com o
estar doente e hospitalizado (NOGUEIRA-MARTINS; BOTEGA, 1998).
Segundo Lipowski (1986) e Shavitt, Busatto Filho e Miguel Filho (1989), em prol
de uma melhora na qualidade de atenção ao paciente, três possíveis abordagens
direcionam a atuação do interconsultor:
1. O centro da atenção é o paciente. Para tanto, realiza-se entrevista e
levantamento dos dados clínicos, de personalidade e psicossociais e faz-
se a revisão das medicações em uso e a solicitação de exames
complementares, que visam à formulação de um diagnóstico e à orientação
do médico assistente em relação à melhor conduta a ser adotada.
2. O centro de atenção é o médico consultante. A prioridade recai sobre os
conflitos da relação médico-paciente. Essa é uma abordagem com
características educativas, que se baseia na identificação das questões
psicológicas que tenham atropelado a relação, dificultando a compreensão
e o manejo do paciente.
3. O centro da atenção é a situação resultante da interação do paciente com
a equipe médica e com a instituição. O paciente revela um problema na
relação com a equipe médica ou com a instituição. Nessa situação, a
demanda do paciente funciona como uma lente que possibilita uma visão
mais abrangente dos meios pelos quais a equipe e a instituição podem
aprimorar o atendimento.
O presente trabalho se concentrará na segunda abordagem descrita por
Lipowski, procurando investigar os aspectos emocionais que afetam o médico diante
de um conflito na relação com seu paciente e compreender as dificuldades que
interferem nesse relacionamento.
30
Conforme Zavaschi, Lima e Palma (2000), a familiarização do interconsultor
com a dinâmica do serviço hospitalar facilita sua atuação na promoção de encontros
com a equipe e a família, com vistas a melhorar as reações estressantes que se
manifestam por mecanismos de defesa cuja finalidade é proteger do sofrimento
psíquico. Sob esse aspecto, apoia-se em Botega, quando esse autor descreve que o
objetivo último da interconsulta desde Billings, o criador do termo consultation-liaison
psychiatry, “é melhorar a qualidade da atenção ao paciente, auxiliando na provisão de
cuidados a todos os aspectos envolvidos na situação de estar doente e hospitalizado”
(BOTEGA, 2012, p. 27).
4.4 A solicitação de interconsulta
Em torno de 50% dos pacientes internados em hospitais gerais apresentam
algum quadro psiquiátrico. Esse percentual pode variar a depender da população
estudada e do método empregado nas pesquisas sobre o assunto. Os transtornos
mentais se dividem em casos de um problema mental crônico, de manifestação
psiquiátrica relacionada a um quadro clínico de base, ou de reações agudas à doença,
ao tratamento ou à hospitalização (BOTEGA, 1995, 2002, 2006). Nogueira-Martins
(2010, p. 227) enumera os principais diagnósticos psiquiátricos encontrados em
hospitais gerais:
a) reações de ajustamento ao adoecer e à internação com sintomatologia
predominantemente depressiva;
b) estados confusionais agudos associados a quadros cérebro-orgânicos
decorrentes de:
quadros infecciosos (encefalites, meningites, toxoplasmose cerebral,
abscessos cerebrais, AIDS, septicemia etc.);
distúrbios metabólicos (diabetes, insuficiência renal, insuficiência
hepática etc.);
intoxicações exógenas (acidentes, uso de drogas, tentativas de suicídio);
alcoolismo (síndrome de abstinência, Wernicke-KorsaKoff);
vasculopatias cerebrais (hipertensão, diabetes, arteriosclerose, vasculite
por lúpus etc.).
31
No ambiente hospitalar, as solicitações de interconsulta são numerosas. No
entanto, Lipowski (1967) delimita os pedidos que requerem uma atenção especial aos
casos em que ocorre alguma alteração psicológica associada à doença orgânica,
alguma complicação psiquiátrica de doenças orgânicas, reações somáticas
relacionadas a problemas psicológicos e distúrbios classicamente psicológicos.
Por sua vez, Botega (2002), em pesquisa realizada na UNICAMP, percebeu
que a maioria dos pedidos de interconsulta se originou das especialidades da clínica
médica, demandando do psiquiatra: ajudar na avaliação do quadro mental do
paciente; colaborar no diagnóstico diferencial; atender casos de tentativa de suicídio;
prover apoio para a equipe e pacientes diante de situações traumatizantes e outras
em que o paciente se apresentasse com atitudes inadequadas ao tratamento, ou
recusasse a realização de tratamentos adequados; ser mediador em comunicações
dolorosas.
Nogueira-Martins et al. (1991) refere-se a duas situações em que os serviços
de interconsulta se tornam fundamentais: distúrbios psiquiátricos no hospital geral e
dilemas éticos. Nesse último caso, o autor menciona situações de desajustes e
conflitos na relação entre a equipe assistencial e pacientes ou familiares, tais como: a
resistência a uma intervenção mutiladora inadiável, a dificuldade de aderência ao
tratamento (quimioterapia, hemodiálise, transfusões de sangue por motivos
religiosos), solicitações de alta, óbito de familiares durante a internação e
comunicações dolorosas. Tais eventos exigem do interconsultor que melhore os
canais de comunicação para resgatar a relação médico-paciente.
Cerqueira (1994) considera que a interconsulta obtém êxito quando é capaz de
diagnosticar o bloqueio da relação médico-paciente, restaurando o vínculo,
favorecendo o restabelecimento da comunicação, o que certamente possibilitará ao
médico continuar sua tarefa e, desse modo, propiciando maior benefício para o
paciente.
4.5 Benefícios da interconsulta
O adoecer, levando à necessidade de hospitalização, constitui uma vivência
estressante, em que o paciente é colocado longe de seus familiares e da sua vida
cotidiana, o que cria desafios para a sua capacidade de adaptação, desafios esses
32
que, segundo Scherer, Scherer e Labate (2002), promovem, a longo prazo, alterações
em termos da autoimagem, do estilo de vida e da dinâmica sociofamiliar.
Conforme Andreoli e Mari (2002), o tempo de permanência do paciente no
hospital tende a se prolongar a depender de seu quadro clínico estar ou não associado
a quadros psicológicos e psiquiátricos não diagnosticados, e das relações
desajustadas estabelecidas no meio hospitalar, o que agrava seu comportamento e
resposta à terapêutica. Para Ferrari, Luchina e Luchina (1979), as internações se
prolongam devido à conjugação de fatores psicossociais dos pacientes associados à
dificuldade da equipe em identificar essas questões e lidar com elas.
A interconsulta psiquiátrica, ao melhorar as reações mal adaptadas e a
interação do paciente com a equipe de saúde, promove um encurtamento no tempo
de internação. Tal crença é antiga entre os psiquiatras que trabalham em hospitais
gerais, pois há a percepção de que a intervenção do interconsultor melhora a
qualidade do atendimento e a resposta do paciente ao tratamento, permitindo uma
alta mais rápida (HALES, 1985; NOGUEIRA-MARTINS, 1995). Também para
Zavaschi, Lima e Palma (2000), a presença do interconsultor, dando suporte ao
médico generalista e à equipe responsável em situações estressoras, oferecendo
intervenções focais na terapêutica e auxiliando nas relações estabelecidas entre a
família, o paciente e a equipe, possibilita uma melhora na capacidade dos
profissionais envolvidos de conduzir e tomar as decisões necessárias em relação ao
paciente. Reiteram Carvalho e Lustosa (2008) que a interconsulta se faz efetiva ao
melhorar a humanização do atendimento e o foco no paciente em seu contexto
biopsicossocial. Cabe ao interconsultor construir uma visão global do paciente,
auxiliando o médico a lidar com as demandas surgidas em razão da
contratransferência e promovendo uma melhora na relação médico-paciente.
4.6 Contribuições de Isaac Luchina e seu grupo
Isaac Luchina, psiquiatra argentino, trabalhava em um hospital geral de Buenos
Aires como consultor psiquiátrico. Na Argentina, a psiquiatria de ligação e
interconsulta é muito desenvolvida, com forte influência de autores psicanalistas como
Freud, Melaine Klein, Garma, Rascovsky e Pichon-Rivière, tendo se tornado uma
verdadeira psiquiatria dinâmica (MELLO FILHO, 2003). Abalizado pelos pressupostos
psicanalíticos, Luchina se orienta para o estudo dos conflitos mentais, refletindo sobre
33
a questão da angústia e preferindo não discutir a “enfermidade”, mas sim o “estar
enfermo”.
Segundo Ferrari, Luchina e Luchina (1977,1980), inicialmente os serviços de
psiquiatria aconteciam fora do hospital geral, com o encaminhamento dos pacientes
para os hospitais psiquiátricos ou ambulatórios. Com a prática da interconsulta, o
psiquiatra chega ao hospital geral com uma psiquiatria renovada, amparada por
conhecimentos psicanalíticos e pela psicologia social, que é reintroduzida naquele
contexto com um potencial terapêutico operante.
Ferrari, Luchina e Luchina também observam que são inúmeras as variáveis
que podem desviar o médico de sua tarefa de curar, uma vez que ele é incapaz de
agir apenas como um técnico que procura realizar uma “medicina de doenças, e não
de doentes”, em razão dos vínculos que o ligam à sua profissão (FERRARI; LUCHINA;
LUCHINA, 1979). Dentre essas variáveis está o fato de o médico estabelecer uma
relação complexa e profunda, a relação médico-paciente, a qual o afeta
profundamente. O médico comum, acostumado com uma medicina que dissociava o
doente da doença e a mente do corpo, na medida em que se esforça para estabelecer
um contato com o paciente, passa a enfrentar dificuldades de cunho emocional,
ligadas ao mecanismo de identificação (idem, 1977), que o levam a empregar defesas
profissionais que possam proteger o homem que há no médico (idem, 1980). Esses
estudiosos concluem que são as crises da relação médico-paciente ou médico-
instituição que motivam as interconsultas (idem, 1977). Torna-se, portanto, função do
interconsultor aprofundar a avaliação do campo dinâmico da relação médico-paciente,
buscando entender como ocorreu a organização da enfermidade e a forma como o
tratamento foi conduzido. Entendem os autores por organização da doença a forma
especial que adotam as forças do campo da relação médico-paciente, o que contém
sua família e amigos, ou o modo como todos os fatos correspondentes atuam no
âmbito institucional. Desse modo, a partir da observação de como se dava a interação
da organização da doença e a condução do tratamento, aprimorou-se a técnica de
interconsulta, chamada de interconsulta médico-psicológica.
Segundo Ferrari, Luchina e Luchina (1979), o médico, ao solicitar um pedido
de interconsulta, manifesta uma mensagem ambígua, cheia de conteúdos latentes
que necessitam ser desvendados e que podem ser mais bem entendidos ao se
compreender a dinâmica profunda da relação médico-paciente. A interconsulta passa
a ter um caráter educativo e psicoterápico, orientando e aliviando a ansiedade do
34
médico. Num primeiro momento, o interconsultor levanta todos os dados e
informações acerca do caso. Em seguida, busca entender e esclarecer a situação e,
por fim, devolve a informação de modo a promover a reorganização do problema em
questão.
É interessante observar que, ao passo que o interconsultor psiquiatra lança
mão de conhecimentos fisiopatológicos na tentativa de identificar a possibilidade de
algum transtorno mental, a interconsulta psicológica utiliza uma abordagem
psicodinâmica, ao procurar compreender a subjetividade dos atores envolvidos no
universo hospitalar. Ferrari e Luchina (1979), ao lançarem mão do termo interconsulta
médico-psicológica, promove uma aproximação entre esses dois enfoques, de modo
que à perspectiva psicopatológica se acrescentem os aspectos psicológicos, sempre
levando em conta o contexto social do qual a instituição faz parte.
Conclui-se, por essa rápida exposição, que a interconsulta se tornou uma
ferramenta muito utilizada por psiquiatras que visavam atender ao chamado de
colegas médicos diante de ocorrências psiquiátricas e procuravam atuar de maneira
a melhorar a assistência ao paciente. Por outro lado, o interconsultor psiquiatra, ao
adentrar o hospital geral, abraça, além da função assistencial, a educacional, ao
procurar auxiliar e esclarecer o médico sobre as tensões surgidas na relação médico-
paciente.
Como visto, a relação médico-paciente se apresenta como um ponto
fundamental a ser estudado no intuito de ajudar o médico a compreender suas
emoções e os impactos destas quando ele se encontra diante de seus pacientes. Para
dar conta desse estudo, a seguir serão apresentadas algumas contribuições de
estudiosos no campo da emoção e da relação médico-paciente.
35
5 DE JUNG A BALINT – CONTRIBUIÇÕES PARA A RELAÇÃO MÉDICO-
PACIENTE
5.1 As contribuições de Jung
Pensador erudito, médico psiquiatra de formação, Carl Gustav Jung produziu
uma vasta obra literária que abrange temas de várias áreas, como arte, religião,
ciência, literatura, medicina e psicologia. A sua experiência psiquiátrica no Hospital
Burghölzli levou-o a questionar o que se passava na psique de um doente mental. Em
sua obra, Memórias, sonhos e reflexões (2016a), descreve o quanto o incomodava
perceber que os seus colegas não se interessavam por saber o que os pacientes
tinham a dizer, e sim por fazer um diagnóstico. Se, para muitos, a função de rotular
com um diagnóstico se mostrava satisfatória, para Jung isso não era suficiente.
Entendia Jung (2016a, p. 195) que “o ponto decisivo é a história do doente, pois revela
o fundo humano, o sofrimento humano e somente aí pode intervir a terapia do médico”.
A falha em compreender o sentido era do médico. Para Jung, o paciente não era um
número ou um rótulo, mas um ser humano que precisa de outro ser humano, o que o
levou a afirmar:
O fato decisivo é que, enquanto ser humano, me encontro diante de outro ser humano. A análise é um diálogo que tem a necessidade de dois interlocutores. O analista e o doente se encontram, face a face, olhos nos olhos. O médico tem alguma coisa a dizer, mas o doente também. (JUNG, 2016a, p. 204).
O paciente em crise não era tão distante de Jung, pois ele próprio passou, ao
longo da vida, por momentos críticos que o levaram a imergir em si mesmo, realizando
uma viagem repleta de fantasias e transformações procurando recuperar-se e
ampliando sua capacidade curativa.
Acreditando que o médico não deveria se esconder atrás de sua autoridade
nem fugir do drama trazido pelo paciente, Jung sentava-se na frente de seus
pacientes, mantendo uma comunicação direta de um ser humano para outro ser
humano que espera ser tocado, pois “só o ferido cura” (JUNG, 2016a, p. 207).
À medida que o médico elabora sua ferida, um novo processo se instala, fruto
da luta transcorrida que deixa profundas marcas em seu âmago. Quanto mais
profundas forem suas feridas, maiores serão as cicatrizes, símbolos da superação
36
ante os reveses da vida. A forma como o médico percebe suas cicatrizes e lida com
elas será fundamental para o seu desempenho, pois, quando for “tocado” pelo
paciente, expressará uma reação proporcional ao afeto que carrega.
Dessa forma, é inevitável que o médico seja influenciado pelo paciente, pois,
ao compartilhar seu sofrimento, fica comprometido e, na medida em que se envolve
com o mal-estar do paciente, pode ter sua própria saúde afetada.
5.1.1 Afetos e complexos
A temática da emoção foi objeto de estudo de Jung (1907/2016b) em seu texto
“O conceito de complexo de tonalidade afetiva e seus efeitos gerais sobre a psique”
no qual ressalta a importância da afetividade, que entende ser “não apenas os afetos
em sentido próprio, mas também os sentimentos leves ou as tonalidades sentimentais
de prazer e desprazer” (BLEULER apud JUNG, 1921/2016c, par. 750). Esclarece que
emprega o termo afeto como sinônimo de emoção e os conceitua, “por um lado, como
estado psíquico de sentimento e, por outro, como estado fisiológico de inervações,
tendo cada qual efeito cumulativo e recíproco sobre o outro” (JUNG, 1921/2016c, par.
751).
Assim o afeto/emoção apresenta um componente fisiológico que se manifesta
por meio de inervações, produzindo reações abruptas, involuntárias e difíceis de
controlar, que irrompem inconscientemente e promovem alterações no corpo e no
pensamento. Por outro lado, os sentimentos se caracterizam por serem uma função
voluntariamente disponível, possível de ser registrada pela razão e desprovida de
inervações corporais perceptíveis, sendo, assim, uma experiência consciente.
Sumariamente, poder-se-ia dizer que todo sentimento é um afeto/emoção, mas nem
todo afeto/emoção é um sentimento, uma vez que é preciso que o afeto/emoção sejam
reconhecidos e se tornem conscientes para se transformarem em sentimento.
Posto isso, é fundamental para o médico, relata Jung (1934/2016d, par. 330),
“conhecer sua equação pessoal para não violentar seu paciente”, ou seja, aprender a
reconhecer suas cicatrizes e lidar melhor com suas emoções e afetos, por vezes
associadas ao que Jung conceituou como complexo.
Quando os afetos/emoção eclodem, manifestando-se involuntariamente em
resposta a alguma provocação, algo desconhecido é apresentado à consciência,
como constatou Jung (1934/2016d) durante a realização do Teste de Associação de
37
Palavras. Tais eventos carregados de afeto/emoção que se revelavam de forma
autônoma foram denominados por Jung complexos afetivos:
Complexo afetivo é a imagem de uma determinada situação psíquica de forte carga emocional, além disso, incompatível com as disposições ou atitudes habituais da consciência. Esta imagem é dotada de poderosa coerência interior e tem sua totalidade própria e goza de um grau relativamente elevado de autonomia, vale dizer: está sujeita ao controle das disposições da consciência até um certo limite, por isto, comporta-se, na esfera do consciente, como um corpus alienum
(corpo estranho), animado de vida própria. (JUNG, 1934/2016d, par. 201)
Para Kast (2017), os complexos são centros de energia, construídos em torno
de um núcleo de significado afetivo, supostamente deflagrado por algum embate
doloroso do indivíduo com uma exigência para a qual não estava preparado. Toda vez
que o indivíduo passa por um evento semelhante, o complexo é reforçado ou
intensificado, formando uma verdadeira “rede” ou “trama” de significações vinculadas
à situação primária que deu origem ao complexo. Jung chama esse processo de
“constelação” e utiliza a expressão “estar constelado” para indicar que o indivíduo
adotou uma atitude preparatória e de expectativa, com base na qual reagirá de forma
inteiramente definida (JUNG, op. cit.). Assim, se o complexo for tocado, observar-se-
á uma reação emocional, automática, que ninguém pode deter por própria vontade.
Temos assim que, na teoria junguiana, o conceito de complexo pode ser
entendido como um conjunto de representações mentais que são mantidas no
inconsciente unidas pela emoção. Constituídos por um aglomerado de fortes imagens,
vivências e experiências emocionais aparentemente cicatrizadas, os complexos
permanecem como que dormentes no inconsciente. Todavia, esses núcleos
carregados de afeto são dotados de energia psíquica e se manifestam de modo
autônomo, revelando-se independentemente do controle consciente. Quando o
indivíduo se vê diante de situações de tonalidade afetiva semelhante à das
circunstâncias que geraram o complexo, as emoções manifestam-se de maneira
exagerada, como se um gigante adormecido reclamasse espaço e atenção. Ao se
constelar um complexo, a pessoa tende a reagir como se estivesse não apenas diante
da situação atual, mas sim respondendo àquelas vivências que deram origem ao
complexo e estão registradas em seu inconsciente. Em grande parte das vezes,
ocorre uma mudança brusca na forma de agir do indivíduo como se surgisse uma
38
segunda personalidade. Ou, como assinala Jung, essa verdadeira rede de conteúdos
carregados de emoção e organizada a partir de experiências afetivamente
significativas pode afetar a capacidade do indivíduo de tomar atitudes e decisões
adequadas ao momento presente (JUNG, 1934/2016d).
Ao ser “tocado” em sua ferida ou cicatriz emocional, o indivíduo pode reagir de
modo complexado e, assustado com o tamanho da reação, perceber que algo se
encontra encapsulado no seu mundo íntimo exigindo reparo. De certa forma, todo
mundo tem que lidar com complexos, particularmente o médico diante de seu
paciente. Isto porque, à medida que cria um vínculo e passa a se interessar pelo
sofrimento do paciente, o médico fica exposto aos conteúdos inconscientes, ou seja,
médico e paciente se encontram ligados numa relação fundada na inconsciência
mútua, amplificada pela confiança entre ambos. Os complexos manifestados na
relação médico-paciente trazem à tona reações ora agradáveis e prazerosas, ora
desagradáveis ou dolorosas, que deveriam ser identificadas e, se possível,
trabalhadas.
Entende-se que a base primária de todas as emoções é constituída por prazer
e desprazer. Sobre essa fundação, todos os outros estados emocionais irão surgir e
darão origem às classificações mais comuns das emoções como negativa ou positiva
e agradável ou desagradável (MARTINS, 2004). Nesse sentido, Ballone reitera:
O termo emoções negativas se refere às emoções que produzem uma experiência vivencial desagradável, tais como a ansiedade, a raiva, a angústia, o medo, a tristeza... As emoções positivas são aquelas que geram uma experiência agradável, como a alegria, a felicidade, o amor, o prazer [...] (BALLONE, 2002, p. 68)
5.1.2 A mediação da interconsulta
Jung (1957/1987), ao estudar Paracelso, reflete sobre a importância do médico
compreender que aquilo que fala ao doente provém de sua própria natureza, devendo
conhecer seu coração, pois, se for falso, também será um falso médico e dificilmente
conseguirá manter uma atitude salutar. Referindo-se basicamente à atividade do
psiquiatra, Jung entendia, no entanto, que esse raciocínio poderia ser estendido aos
médicos em geral. Assim, o autor reflete que a “relação médico-paciente é uma
relação pessoal dentro de uma relação impessoal” (JUNG, 1957/1987, par. 163), em
39
que a personalidade do médico e do paciente são tão ou mais importantes que a
própria doença em questão. Trata-se de um encontro entre dois seres humanos
singulares e com particularidades, que, ao reagirem entre si, iniciam um processo em
que ambos se transformam.
Em momentos em que o médico, diante do seu paciente, vê-se atordoado e
perdido em suas emoções, pode surgir a figura do interconsultor. Como Hermes, o
deus mensageiro, capaz de realizar profundas conexões, o interconsultor se propõe a
realizar um diálogo entre as duas psiques envolvidas, promovendo um
reconhecimento dos aspectos inconscientes, na tentativa de contribuir para uma
melhora terapêutica.
5.2 As contribuições de Balint
A importância conferida por Jung à personalidade do médico em seu
relacionamento com o paciente, seria desenvolvida, sob outra perspectiva, pelo
renomado psicanalista, Michel Balint, que transformou o entendimento da relação
médico-paciente. Suas pesquisas, realizadas na Tavistock Clinic da Inglaterra, após
o término da 2a Grande Guerra, em 1950, tornaram-se o marco de uma mudança
paradigmática que permeou a compreensão da medicina e da psicanálise, visando a
um melhor entendimento do encontro entre o médico, na qualidade de agente de cura,
e o paciente, o doente em questão. Consagrado como um dos pioneiros na área da
psicologia médica, seu trabalho foi uma construção ao longo dos anos. Como médico
e psicanalista, foi analisado e supervisionado por Ferenczi, que se alinhava à
descoberta da contratransferência assinalada por Jung, mais tarde adotada e
conceituada por Freud. Após o falecimento do seu supervisor, manteve suas
pesquisas sobre pacientes considerados “difíceis” e o campo da transferência e da
contratransferência, estudos esses que culminaram na proposta da existência de um
estado no psiquismo chamado de falta básica, derivado de um período na vida em
que a linguagem do mundo adulto não teria sido ainda adquirida e na qual
prevaleceriam os elementos afetivos (BALINT, 1993).
Embasado na teoria das relações objetais, desenvolveu com os clínicos gerais
o que viria ser chamado de “os grupos Balint” e que provocaria uma profunda mudança
na medicina. Ao estabelecer um modelo de grupo, Balint buscou pontos de contato na
maneira de lidar do médico com seu paciente, trazendo à tona os conceitos de skill
40
(administrar o objeto-mãe a distância) e as formas ocnofílica (tendência do bebê de
querer manter a mãe-objeto junto de si) e filobática (procura de controle do objeto) na
relação que se construía. Avaliou que o paciente, ao relatar sua demanda para o
médico, poderia se encontrar em diferentes fases que chamou de zonas: edipiana,
que envolveria três pessoas e estaria sob o domínio da linguagem; falha básica, que
envolveria duas pessoas e estaria no domínio do pré-verbal e de criação, na qual o
sujeito se encontra sozinho exigindo do médico novas formas de lidar.
A forma como o médico pensava, sentia e reagia ante seus pacientes, já
conhecida no meio analítico como contratransferência, tornou-se um material de
estudo e aprimoramento dos Grupos Balint, que buscaram entendê-la visando
aprimorar a relação médico-paciente.
5.2.1 Os grupos
Os seminários com os clínicos eram compostos por oito a dez médicos e um a
dois psiquiatras que se reuniam uma vez por semana, durante dois a três anos. Um
médico narrava seu caso clínico, não se prendendo à doença em si e sim ampliando
seu relato para abarcar a história clínica vivenciada pela dupla médico-paciente. A
narrativa abrangia dados da vida do paciente, sua história de vida, sua inserção na
doença, na instituição e seu convívio familiar na sociedade. Uma vez terminado o
relato, de imediato Balint incentivava cada participante do grupo a dar sua opinião e a
comentar os sentimentos que conseguiram perceber entre o paciente e o médico
(transferência) e os sentimentos do médico para com o paciente (contratransferência).
Nos grupos de discussão, os médicos iam aprendendo a entender suas reações
diante do sofrimento expresso pelos pacientes. Além de compreender que, quando
uma pessoa adoece, mais do que um órgão afetado, é todo o seu ser que está
consumido pela doença, o médico aprendia que estava envolvido emocionalmente
nesse processo. O grupo funcionava sob o compromisso de um sigilo absoluto e de
confiança mútua e, após o treinamento, observava-se uma melhora na relação
médico-paciente, com os médicos se sentindo menos ameaçados e apresentando
uma melhora na capacidade de cumprir as funções delegadas.
Em 1957, essa experiência, impressionante pelo seu pioneirismo, transformou-
se em um livro, em que vários temas da relação médico-paciente e da psicoterapia
são abordados. O livro intitulado The doctor, his patient and the illness tornou-se um
41
clássico que amplia a visão de doença para a medicina da pessoa, relacionando várias
categorias a respeito da relação médico-paciente, tais como: o médico como droga, a
organização e oferta da doença, o conluio do anonimato e a função apostólica, com
profundas reflexões acerca dos temas de transferência e contratransferência.
5.2.2 O médico como droga
À medida que Balint realizava os grupos de discussão com os clínicos, pôde
perceber “que a droga mais utilizada na clínica era o próprio médico, isto é, que não
apenas importava o frasco de remédio ou a caixa de pílulas, mas o modo como o
médico os oferecia” (BALINT, 1988, p. 1).
Visto que a atitude do médico influencia o processo de melhora do paciente, e
seguindo os passos de Ferenczi, que considerava a personalidade do analista capaz
de funcionar como instrumento de cura, Balint (op. cit.) reitera a ideia de que o médico
pode ser treinado e se tornar muito sensível para captar o que o paciente de fato
“oferece” em sua doença, facilitando a comunicação e o alívio de seus sintomas. Para
esse autor, era fundamental que o médico desenvolvesse sua capacidade emocional,
aprimorando o quanto de si poderia dar, pois, na “dosagem certa”, curaria ou aliviaria
o paciente, mas o desconhecimento da posologia correta acarretaria verdadeiras
alergias, causando malefício ao paciente. “E um dos mais importantes efeitos
colaterais – se não o principal efeito – da substância ‘médico’ é sua resposta às ofertas
do paciente” (BALINT, op. cit., p. 16).
5.2.3 Aproximação aos complexos: a organização e oferta da doença
Ao investigar as “ofertas” de doenças trazidas ao médico pelo paciente, Balint
notou que muitas não apresentavam patologia orgânica, exigindo uma escuta mais
ampla, pois muitas pessoas, diante dos problemas do dia a dia, apelavam para o
adoecimento, buscando alguém disposto a conversar e escutar suas dificuldades e
conflitos perante a vida. O médico era procurado como válvula de escape, em uma
situação na qual a doença era descrita por meio de várias queixas, sem que se
pudesse determinar quais as mais importantes. Caso o médico não conseguisse
trabalhar a proposta desorganizada e confusa da doença nessa fase, prescrevendo
um pouco de si próprio, ela tenderia a evoluir, como explica Balint:
42
Se o médico tem oportunidade de vê-los nas primeiras fases de seu tornar-se doente, isto é, antes que se acomodem numa doença definitivamente “organizada”, ele pode observar que esses pacientes, por assim dizer, oferecem ou propõem várias doenças, e que eles precisam continuar oferecendo novas doenças até que entre o médico e o paciente possa ser alcançado um acordo que resulte na aceitação por ambos de uma das doenças como bem fundamentadas. (BALINT, 1988, p. 15)
A doença organiza-se baseada na individualidade de cada um, limitada pela
história pessoal, posição social, vida emocional, medos conscientes e inconscientes
e fantasias, sempre ímpar em cada pessoa. Ao ser ofertada, constitui um pedido de
ajuda ao médico, expressa por meio das dores que a constituem. A hipótese é que,
quanto antes o médico conseguir entender essa demanda, maiores serão as chances
de reduzir o desenvolvimento da enfermidade. Para tanto, importa aceitar tal pedido
de ajuda, já que há a tendência do quadro de se agravar estaria fundado na
expectativa do paciente de ser ouvido. Seria, portanto, o grito por meio da
exacerbação dos sintomas na esperança de que percebam o processo que o levou a
adoecer.
Se, por um lado, o paciente regredido, em franco sofrimento, procura o serviço
de saúde e “oferece” uma doença, concomitantemente estará transferindo uma carga
de afetos muitas vezes mobilizadas por ansiedade primitiva, que exigirá do médico
uma reação que favoreça a comunicação e possibilite a construção de uma aliança
terapêutica.
5.2.3.1 Conluio do anonimato
Balint observa que, muitas vezes, diante de uma doença muito organizada, o
médico, ao se sentir incapaz de assumir o tratamento, encaminha seu paciente a
especialistas com a finalidade de diluir a responsabilidade, evitando um maior contato
com o paciente e promovendo o que o autor chama de conluio do anonimato. Na
maioria das vezes, o especialista acaba por solicitar inúmeros exames sem permitir
que o paciente expresse suas queixas. O risco de o paciente perder o médico de
referência é o de perder sua voz, sendo emudecido pelo sistema que promove
encontros parciais que privilegiam o diagnóstico e esquecem de escutar aquele que
está doente. De fato, quando as razões do encaminhamento são afastar-se do
43
paciente, é urgente que médico assistente procure entender do que tem medo, a fim
de diminuir sua atitude iatrogênica e melhorar sua relação com os pacientes, no intuito
de aliviar o sofrimento daqueles que o procuram como um missionário da cura.
5.2.3.2 A função apostólica
Apesar do receio de alguns médicos de cuidar, Balint percebeu que muitos
clínicos apresentavam o desejo de serem úteis e, usando o bom-senso, se
posicionavam esclarecendo as dúvidas dos pacientes. Em razão da imensa vontade
de fazer o bem, tornavam-se conselheiros de primeira hora, exercendo aquilo que
Balint chamou de “função apostólica”, ou seja:
A missão ou função apostólica significa, em primeiro lugar, que todo médico tem uma vaga, mas quase inabalável ideia sobre o modo como deve se comportar o paciente quando está doente. Embora este conceito pouco tenha de concreto e de explícito, é imensamente poderoso e influi, segundo podemos comprová-lo, praticamente em todos os detalhes do trabalho do médico com seu paciente. (BALINT,1988, p. 186).
Existe uma confiança recíproca entre médico e paciente, com base na qual o
médico se habilita a agir na figura de um conselheiro ou educador, fornecendo ao
paciente as normas necessárias para que os procedimentos sejam realizados a
contento. Contudo, é imprescindível que o médico evite transmitir uma imagem ao
paciente de “bonzinho” ou de “salvador” em busca de créditos pessoais, pois, o que
se procura, ao compreender o paciente, é ajudá-lo a entender as razões da sua dor.
Concluindo este capítulo, para Balint, como visto, muitos pacientes
apresentavam uma falha no seu desenvolvimento inicial e, ao procurarem ajuda,
chegavam a um estado de profunda regressão, pois sofriam de alguma privação
emocional básica, o que Jung já havia assinalado propondo uma atitude tolerante e
positiva com relação à regressão. Tanto Balint como Jung creditavam à regressão um
movimento em busca de resolução do processo a partir da ferida do paciente. As
emoções primitivas afetam o médico que atende, tanto na psiquiatria como na
medicina geral e, portanto, este necessita reconhecê-las. Jung antecipou a
importância do reconhecimento da contratransferência para a ação terapêutica e
44
Balint estendeu essa compreensão à atividade médica em geral, ainda que sua função
não fosse psicoterapêutica.
A noção de “poder cicatrizante da relação” (BALINT, 1993, p. 147) contribui
para revelar a subjetividade do adoecer e incentiva o médico a aprimorar sua escuta,
a fim de compreender e aceitar seu paciente. Desse modo, cria-se uma atmosfera de
confiança entre eles que será fundamental para o prosseguimento do tratamento e
para auxiliar o paciente a suportar a dor de sua condição.
45
6 AFETIVIDADE NO CURADOR FERIDO
Aprendi [em Burghölzli] que só o médico que se sente profundamente afetado por seus pacientes pode curar. Só quando o médico fala do centro de sua psique, transitoriamente considerada “normal”, para psique doente que está diante dele é que pode esperar chegar à cura [...] Enfim, só o médico ferido cura, e mesmo ele, em última análise, não pode curar além do que curou a si mesmo. (JUNG apud VAN DER POST, 1992, p. 185)
Jung (1957/1987, par. 239) lança mão do mitologema grego do médico ferido,
ao refletir acerca da relação médico-paciente. Para o pensador, essa interação terá
maior sucesso na medida em que existir um vínculo de confiança entre médico e
paciente, com base no qual, é possível a construção de um relacionamento em que
ambos se sintam seguros e que permita o encontro de duas personalidades humanas,
sem artificialismo ou impessoalidade.
Ao procurar auxílio, o paciente expõe suas feridas na expectativa de encontrar
alguém que se importe com o seu sofrimento e lhe traga algum alívio ante a dor que
o consome, ou seja, um curador-médico que se sinta tocado por seu sofrer e se
debruce sobre seu leito à procura da cura. É nesse contexto que Jung reafirma:
Enquanto médico, sempre me pergunto que mensagem traz o doente. O que significa ele para mim? Se nada significa, não tenho um ponto de apoio. O médico só age onde é tocado. “Só o ferido cura”. Mas quando o médico tem uma persona, uma máscara que lhe serve de couraça, não tem eficácia. Levo meus doentes a sério. Talvez esteja exatamente como eles diante de um problema. (JUNG, 2016a, p. 207)
Ao ser sensibilizado diante de um paciente e sua doença, o médico é convidado
a se autoexaminar, a olhar para dentro de si, a perguntar qual o significado de ter sido
afetado. Esse questionamento frequentemente expõe uma ferida não curada, exigindo
esforço de reflexão interno para sua solução. Portanto, a proposta de compreensão
da imagem arquetípica do médico ferido torna-se de grande relevância, uma vez que
permite a elaboração dos processos emocionais que afetam as relações interpessoais
estabelecidas entre o médico e seu paciente. Nesse sentido vejamos os exemplos
dados pelos mitos dos médicos arquetípicos, Quíron e Asclépio.
46
6.1 O mito de Asclépio (Esculápio)
Foi na Grécia Antiga que nasceu o menino que se fez deus, Asclépio, em um
período dominado pelo mito, em que deuses se faziam presentes na vida diária dos
seres humanos. Nesse tempo remoto, encontraremos a presença do filho de Zeus,
Apolo. Dotado do poder de cura, Apolo ficara conhecido como o deus que tinha o
poder de dar ou retirar a saúde conforme a sua vontade. Ambas, saúde e doença, não
eram vistos como valores absolutos e sim como forças purificadoras usadas por Apolo
para manter a ordem do Kósmos.
A ação de Apolo é retratada em A Ilíada (HOMERUS, Ilíada, Livro I, 69), em
especial no trecho que relata o momento em que os gregos sequestram os sacerdotes
troianos de Apolo e logo passam a sofrer as consequências de tal atitude. A peste é
enviada por Apolo e vários soldados morrem devido à regra que fora quebrada.
Somente após a percepção dos gregos do seu equívoco e a realização do reparo
exigido pelo deus através de seu oráculo, é que a normalidade é restaurada. Para os
gregos fica claro que a divindade, por conhecer o caminho da doença, igualmente
conhecia o caminho da cura, ficando registrado pelos oráculos de Apolo: “Aquele que
fere também cura” (MEIER, 1999, p. 5).
Certa feita, segundo Feitosa (2014), quando Corônis, filha do rei Flégias,
encontrava-se na região de Epidauro, impressionou profundamente o deus Apolo com
sua rara beleza. Apaixonado, Apolo se une a Corônis vindo engravidá-la de um filho
que foi chamado pelo deus de Asclépio. Receosa do que as pessoas poderiam pensar
a seu respeito, Corônis esconde sua gravidez de todos e tem um caso de amor com
um mortal, chamado Isquias, a fim de legitimar sua gravidez. Apolo, que havia
ordenada a um corvo – os corvos nessa época eram brancos – que vigiasse a amada,
ao saber da traição se vê dominado pela raiva. Furioso, mata sua amada Corônis e
torna negros todos os corvos. Todavia, ao ver o corpo de Corônis na pira funerária, o
deus é dominado pelo arrependimento, o que o faz realizar uma cesariana divina, não
permitindo que seu filho tenha o mesmo fim que a mãe. Esse fato reforça o poder
atribuído a essa divindade: “Aquele que envia a morte, dá também a vida”.
Ao nascer, Asclépio é entregue ao centauro Quíron, para ser educado.
Abandonado pelo pai e sem o aconchego de uma mãe, Asclépio é reconhecido como
o curador- ferido, pois, apesar de sua história trágica, desenvolve a habilidade de
cuidar do sofrimento humano, acolhendo e aliviando a todos que procurassem seus
47
préstimos. Assim, se Asclépio herdara a luminosidade divina de seu pai Apolo e toda
sua capacidade racional, não é menos verdade que, ao ser entregue a Quíron,
Asclépio aprenderia a lidar com tudo que fosse obscuro e irracional.
Na mitologia grega, os centauros eram criaturas com cabeça e tronco humanos
e o resto do corpo é equino. Possuidores de dupla natureza, humana e animal, ficaram
conhecidos por suas reações violentas e agressivas. Dotados de grande energia,
envolviam-se, com frequência, em guerras contra os Titãs. Quíron, no entanto,
destacou-se por sua afabilidade, doçura e diplomacia, uma vez que, diferentemente
dos demais centauros, possuía também uma natureza divina e imortal, pois era filho
de Cronos (Saturno) e da ninfa Filiria.
A história de Quíron é repleta de nuances, tendo sido ele o mentor de
numerosos heróis famosos da Grécia, como Jasão, Aquiles, Héracles e Asclépio, aos
quais ensinava desde as artes da guerra e da medicina até ética, música e artes em
geral. Segundo Brandão (1987), em um dos episódios em que Quíron se vê envolvido,
intitulado “o massacre dos centauros por Héracles”, iremos encontrar Héracles e
Quíron lutando lado a lado. Em meio à luta, uma das flechas envenenadas de Héracles
atinge seu amigo Quíron, causando-lhe uma ferida incurável que o martirizaria por
toda sua vida.
Dominado por uma dor sem fim, Quíron começa a procurar a cura, mas, como
afirma Groesbeck “o detalhe trágico é que a ferida de Quíron era incurável”
(GROESBECK, 1983, p. 75). Invariavelmente, porém, na busca da medicação eficaz
para sua chaga, Quíron vai encontrando soluções para as dores alheias. O seu
sofrimento o leva a desenvolver o dom de curar, ainda que sofra eternamente com
sua ferida aberta. A ironia da história de Quíron transforma-se em mensagem viva do
arquétipo do curador ferido: “aquele que está sempre curando permanece
eternamente doente” (GROESBECK, op. cit., p. 77). Assim é retratado Quíron que,
por ser imortal, não podia morrer e tão pouco curar sua chaga. E, na medida em que
busca a cura, amplia sua capacidade de compreender e de ajudar o sofrimento alheio.
Quíron pode ser visto, então, como o precursor do médico-divino, o mentor de
Asclépio, aquele que abre para o filho de Apolo as portas do conhecimento médico e
se torna o exemplo vivo de uma jornada na busca da própria cura, ensinando o jovem
discípulo a confrontar suas dores e encontrar o alívio. Asclépio se espelha em Quíron,
exercitando-se na arte de curar. O mestre, longe de ser perfeito, apresentava-se como
um igual, na medida em que ambos precisavam apreender a lidar com suas feridas
48
abertas. É desse encontro que surge, resplandecente, a figura do deus da cura,
Asclépio, “o bom, o simples, o filantropo”, como o chamavam os gregos.
Segundo Brandão (1987), é nas cercanias de Epidauro que Asclépio constrói
uma verdadeira escola de medicina, um santuário que se imortalizou nas gerações
futuras. Nesse ambiente sagrado, logo na entrada do recinto do antigo hierón do deus
da “nooterapia”, isto é, da cura pela mente, estava gravada a mensagem que
sintetizava o grande segredo das curas da medicina de Asclépio: “Puro deve ser
aquele que entra no templo perfumado. E pureza significa ter pensamentos sadios”
(BRANDÃO, 1987, p. 94). Assim, em um primeiro momento, tornava-se fundamental
olhar para dentro de si, procurando limpar a mente e clarificar tudo que se sentisse.
Na medida em que o homem conhecesse seus pensamentos e despertasse para sua
identidade real, enfrentando suas feridas, a pacificação da mente se reverteria no
alívio do corpo.
6.2 O médico como o curador ferido
Asclépio, o filho do deus-sol Apolo, torna-se o herói que enfrenta a escuridão,
a doença e a morte. Hillman (2016) esclarece que a figura do médico como
representante do deus Asclépio se tornou o símbolo vivo desse combate. Luta que se
repete cada vez que o médico se prontifica a tratar, a fazer algo para aliviar o paciente
que se encontra preso nas trevas e receoso das garras da morte. Vulnerável, o
paciente busca um salvador, alguém que lhe dê esperança e se interesse pela sua
batalha entre a vida e a morte. Assim, surge o médico como um combatente ante o
flagelo que assola o doente, um herói que traz a luz e desperta a esperança, o curador
interno que vive dentro de cada ser humano.
Esse seria o segredo do poder do médico, que confere ao médico sua
numinosidade e torna efetivo seu tratamento. Como sugere Guggenbühl-Craig, todas
as vezes que um paciente procura um médico despertaria o arquétipo “médico-
paciente” (GUGGENBÜHL-CRAIG, 2004, p. 84). Ou seja, o paciente, ao procurar um
médico, ativaria um fator interno de cura que poderia ser chamado de o “médico
interior” ou “curador interno”. Mas, se é verdade que o paciente possui um fator
curador interno, ou médico interior, não menos verdadeira é a existência de um
paciente interior no médico. Desse modo, o médico, ao entrar em contato com o
paciente, ativaria seu lado paciente, ou melhor, suas feridas ainda não resolvidas, o
49
que torna fundamental que médico conheça a si próprio, entre em contato com seu
lado ferido que, a exemplo de Quíron, atuará de forma mais adequada na medida em
que busca sua própria cura. A temática do cuidador ferido é, portanto, um convite para
o médico voltar seu olhar para dentro de si e tentar entender os motivos que o deixam
ser afetado na relação interpessoal com o paciente, pois é na medida em que
reconhece suas próprias feridas que o médico promove o alívio tão esperado.
Cabe ao curador ferido, ciente de suas cicatrizes, aprender a lidar com a
demanda afetiva, para que, ao ser confrontado com uma nova situação, não tenha a
sua habilidade de curador comprometida. Haverá aquelas cicatrizes das quais o
médico poderá se orgulhar, registrando-as como marcas de vitórias e alcance do fim
da jornada. Haverá outras que teimam em permanecer abertas, exigindo do médico,
diante do seu paciente, a humildade de rever suas dores e reorientar seus afetos.
Ao carregar a imagem do curador, o médico enfrentará a escuridão, os males
trazidos pelo paciente ansioso por sua salvação. É inevitável, esclarece Jung “que o
médico seja de certa forma influenciado, e que a sua saúde nervosa sofra alguma
perturbação ou dano. Ele assume, por assim dizer, o mal do paciente, compartilhando-
o com ele” (JUNG, 2016a, p. 54). Ocorre, nesse caso, toda uma dinâmica que
tradicionalmente ficou registrada como o processo de transferência-
contratransferência que será abordado a seguir.
6.3 A dinâmica da relação médico-paciente – a relação transferencial
Jung (1957/1987), ao se debruçar sobre o estudo da transferência, percebe se
tratar de um fenômeno natural a ser observado em toda parte e encontrado em
qualquer relacionamento humano. Toda relação entre duas pessoas é recheada por
vivências transferenciais, em que ambos projetam um sobre o outro seus conteúdos
afetivos, independentemente da vontade e da atenção. A esse movimento, em que
um transfere inconscientemente e o outro responde, ou melhor, contratransfere, deu-
se o nome de relação transferencial.
Em seu estudo, Jung percebe que a transferência sobre o médico o leva a
entrar em contato com os complexos inconscientes do seu paciente, ainda que de
forma indesejada. Isso lhe possibilita, todavia, adquirir um conhecimento acerca do
que o paciente está experimentando emocionalmente. Como a transferência se dá de
50
forma inconsciente, é inevitável que venha a ocorrer, restando ao médico utilizá-la
como matéria-prima a ser trabalhada a favor da relação médico-paciente.
Wahba (2001) sintetiza que, no fenômeno de transferência-contratransferência,
ocorre uma intensificação de projeções mútuas, ativadas pelos complexos
inconscientes dos envolvidos, entendendo por projeção um processo inconsciente
automático, por meio do qual um conteúdo inconsciente do sujeito é transferido para
o objeto. (JUNG, 1934/2012). Como é um movimento bidirecional, ou seja, pode se
dar nos dois sentidos, ficou historicamente conhecido como transferência ao se dar
do paciente para o médico, e contratransferência quando ocorre do médico para o
paciente. Kast (2017) afirma entender a transferência como uma forma específica de
projeção e concebe contratransferência como as reações emocionais do analista em
relação a seus pacientes, sobretudo a reação emocional à transferência. Portanto,
quando médico e paciente se encontram numa relação terapêutica, as emoções de
ambos os envolvidos desempenham um papel central, uma vez que a emoção é a
base de toda a experiência (KAST, op. cit.). O que torna fundamental que o terapeuta
– e o médico – reconheça as próprias emoções na contratransferência, pois isso lhe
possibilita compreender melhor o paciente e ajudá-lo em seu desenvolvimento.
Ao estudar a relação humana pelo viés da projeção, Von Franz (2011) ressalta
que o mundo todo é efetivamente uma projeção. Para essa autora, a projeção dos
conteúdos psíquicos dos quais ainda não se tem consciência ocorre de forma não
intencional. Ressalta, no entanto, que o inconsciente não escolhe simplesmente
qualquer objeto ao acaso e sim aqueles que contêm alguma das características da
propriedade projetada. Compreende que, perante o fenômeno da projeção, as
pessoas estão sujeitas a se sentirem perturbadas, com manifestações de intenso
afeto, como uma emoção exagerada e por vezes de difícil contenção. Evidencia-se
assim a importância da compreensão do fenômeno para o esclarecimento de
desagravos e desentendimentos. A necessidade de compreender a dinâmica
relacional é ponto de estudo de autores como Gambini (1988) e Castelhano (2015)
que refletiram acerca dos conteúdos carregados de emoção na projeção, assinalando
sua influência nos atos de cognição e percepção.
Uma vez que o encontro entre médico e paciente é marcado pela presença das
emoções relacionada aos conteúdos projetados, é importante que o médico entenda
que não está isento de ser afetado e que, ao ser contagiado, precisa olhar para si
próprio num processo de autoexame e tentar identificar quais conteúdos latentes no
51
seu mundo subjetivo foram ativados. Ao identificar a ferida-emoção do paciente dentro
de si, terá que enfrentar vivências de prazer ou desprazer e, ao trabalhá-las,
apresentar-se como um curador que conhece a ferida de quem bate às portas de seu
consultório. A compreensão desse fato possibilitaria ao médico desenvolver uma
melhor atitude diante de seu paciente, pois, conforme Jung (1957/1987), o médico só
conseguirá ajudar a organizar no paciente aquilo que está resolvido dentro de si
mesmo, justificando o significado do mitologema do médico ferido.
O paciente, ao procurar o médico, o faz na posição de quem está ferido à
procura de sua cura. Segundo Whitmont (1995), para que o encontro se viabilize, é
preciso que ocorra uma identificação com um mínimo de empatia entre os dois, sem
a qual o relacionamento estará fadado ao insucesso. Mas apenas desde que a
empatia e o carisma de quem se propõe a curar contribua para estabelecer a
confiança entre ambos. Com isso, o paciente terá seu curador interno ativado, ou seja,
passa a acreditar no tratamento expressando desejo de melhorar e de se transformar.
A esse respeito, Jung (1957/1987) registra a importância da atitude mental do
médico na construção da relação terapêutica e credita o poder curativo à
personalidade do médico. Com o que concorda Balint, ao advertir que “o mais
importante material de nosso método de ensino é o ponto que o médico utiliza sua
personalidade, suas convicções, seus conhecimentos, seus padrões habituais de
reações” (BALINT, 1988, p. 265). Se para Jung (1934/2016f) “a personalidade do
doente exige a personalidade do médico”, em Balint (1988) a relação médico-paciente
apresenta um melhor desenvolvimento quando o envolvimento de ambos permite “um
investimento mútuo” por meio do qual ambos se conhecem e percebem suas
influências. Citando Paracelso em seu “método de Theorica”, Jung (1941/2016e)
destaca que o poder curador do médico reside em sua capacidade de induzir no
paciente a força para suportar a ferida e lutar pela recuperação. Mas, para que tal
evento se concretize, o médico teria que ser autêntico e, ao falar com o paciente,
transmitir de fato o que possui em sua natureza. De modo semelhante à exigência de
pureza dos pensamentos, registrada nos portais do templo de Asclépio, Paracelso
afirma que o médico é “o instrumento por cujo intermédio a natureza é levada à obra...
e o exercício desta arte [cura] está no coração: sendo teu coração falso, também será
falso o médico dentro de ti. [...] (PARACELSO apud JUNG, 1941/2016e, par. 42).
Assim, à medida que a confiança se faça presente, curador e ferido se fortalecem num
esforço único em busca do alívio, e se possível, da cura.
52
7 MÉTODO
7.1 Características do estudo
O caminho delineado para realizar uma pesquisa nem sempre é de fácil
escolha, principalmente quando se pretende estudar uma realidade na qual o
pesquisador se encontra inserido. Assim, optou-se pelo método qualitativo, por
permitir uma abordagem compreensiva e interpretativa da realidade pesquisada,
visando identificar seus significados e finalidades (TURATO, 2000; PENNA, 2004,
2009).
A pesquisa fundamentada no método qualitativo, de acordo com González-Rey
(2005), envolve a imersão do pesquisador no cenário social no qual o estudo é
realizado, possibilitando o acesso a temas íntimos e sensíveis para a pessoa
pesquisada. Portanto, nesse caso, o pesquisador é coparticipante da pesquisa, uma
vez que está no ambiente em que a investigação é realizada. Tal situação possibilita
contatos face a face, interações pessoais que mobilizam trocas afetivas, e favorece
que o pesquisador alcance uma visão aprofundada da dinâmica vivida pelo
pesquisado. O pesquisador, nesse contexto, passa a atuar como instrumento da
coleta e registro dos dados na medida em que se mostra receptivo, acolhendo os
depoimentos dos participantes (TURATO, 2000).
Nessa perspectiva, o método qualitativo, ao priorizar os aspectos subjetivos
inerentes aos fenômenos e processos observados, vem ao encontro do paradigma
junguiano, segundo o qual o conhecimento é resultado de processos dinâmicos que
fluem dialeticamente, e tanto a objetividade quanto a subjetividade são consideradas.
7.2 Participantes
Participaram desta pesquisa oito médicos não psiquiatras, de diversas
especialidades, que solicitaram interconsulta psiquiátrica para seus pacientes.
53
7.3 Instrumentos
Dentro da metodologia qualitativa, um dos instrumentos básicos para se chegar
aos objetivos propostos é a entrevista semiestruturada. Segundo Ludke e André
(2015), a entrevista proporciona uma relação de interação e de influências recíprocas
entre quem pergunta e quem responde, particularmente nas entrevistas não
totalmente estruturadas, permitindo que as informações fluam de maneira natural e
autêntica, desde que haja um clima de estímulo e aceitação mútua. Em razão disso,
o pesquisador escolheu como instrumento de sua pesquisa a entrevista
semiestruturada.
7.3.1 Entrevista semiestruturada
Entrevista elaborada exclusivamente para esta pesquisa, composta de
questões abertas. Utilizaram-se como modelo para a construção das perguntas os
trabalhos de Castelhano (2015) e Botega (1989). A seguir, o roteiro utilizado.
Identificação
- Idade:
- Sexo:
- Estado civil:
- Filhos:
- Ano de formatura:
- Especialidade:
- Titulação:
- Tempo de atividade no hospital escola:
Entrevista
1 Como é sua atividade médica?
1a Quais as maiores dificuldades no relacionamento com os pacientes que você atende?
1b O que estimula e o que desestimula a relação?
2 Em razão de qual motivo você solicita interconsulta?
2a Você recorda um dos casos que mais o marcou para o qual procurou interconsulta? Ou
algum que o marcou, mas não procurou interconsulta?
2b Em que a interconsulta contribuiu ou pode contribuir?
2c O que esperava dela?
54
3 Qual a maior dificuldade que você sente diante de um paciente em sofrimento psíquico?
3a Como ele o afeta? O que você sente?
3b Descreva um exemplo de ter sido afetado.
3c Como você lida com as emoções que percebe nos pacientes?
4 Como você interage com paciente em sofrimento psíquico?
4a Como você avalia sua interação e relacionamento com esse paciente? 4c O que acha de sua técnica para atender esses casos? 4d O que mais o estressa nesses pacientes? 4e Nota alguma resposta emocional a esse paciente? Como lida com ela?
5 Como é a relação com o psiquiatra da Interconsulta?
5a O que você espera dessa relação? 5b Quais são os pontos positivos e negativos dessa relação?
6 Em relação ao paciente que você encaminha para interconsulta, consegue identificá-lo com:
6a Uma metáfora ou filme? Qual? 6b Imagem? Descreva. 6c Já sonhou com algum paciente que havia encaminhado?
7 Como se sentiu nesta entrevista?
7a Teve alguma lembrança? 7b Do que mais gostou e menos gostou dela? Por quê?
8 Gostaria de acrescentar ou complementar algo em relação à entrevista?
7.3.2 Gravador
Optou-se por gravar as entrevistas dos participantes, uma vez que, conforme
apontam Ludke e André (2015, p. 43), “a gravação tem a vantagem de registrar todas
as expressões orais, imediatamente, deixando o entrevistador livre para prestar toda
a sua atenção ao entrevistado”. Para tal utilizou-se um smartphone do pesquisador,
da marca Samsung Galaxy J7, para as gravações das entrevistas por meio de um
aplicativo de gravação de áudio. Esses registros foram posteriormente transcritos
para permitir a análise das informações obtidas e ficarão armazenados em arquivo do
pesquisador pelo prazo de cinco anos após a realização do trabalho, à disposição do
CEP (Comitê de Ética de Pesquisa). Após os cinco anos serão apagados.
55
7.4 Procedimentos
7.4.1 Local
A pesquisa foi realizada em um hospital de clinicas universitário.
7.4.2 Entrevista-piloto
Realizou-se uma entrevista-piloto, antes de iniciar a seleção dos participantes
da pesquisa, com o objetivo de testar o roteiro de entrevista semiestruturada,
avaliando a clareza e a inteligibilidade das perguntas e as reações emocionais que
poderiam ser mobilizadas pelas questões. Convidou-se um colega médico que atua
no hospital mencionado, seguindo os mesmos procedimentos éticos utilizados para
os demais participantes. A entrevista realizada contribuiu para o ajuste das perguntas
e validação do instrumento como recurso adequado para esta pesquisa.
7.4.3 Seleção de participantes
Os participantes desta pesquisa foram médicos que trabalham em um mesmo
hospital de clínicas e que rotineiramente solicitam interconsulta psiquiátrica. Por se
tratar de uma amostragem intencional, em que a escolha é deliberada pelo
pesquisador visando obter melhores fontes de informação (TURATO, 2003), optou-se
por escolher informantes-chave, que “são aqueles sujeitos capazes de prover
informações relevantes que, em determinadas ocasiões, são altamente singulares em
relação ao problema estudado” (GONZÁLEZ- REY, 2005, p. 111). Neste estudo, foram
considerados informantes-chave aqueles que frequentemente solicitaram
interconsulta.
A princípio, foram convidados a participar da pesquisa médicos considerados
informantes-chave. O convite, cujo teor consta do “Folheto de Divulgação de
Pesquisa” (Apêndice A) foi enviado por meio de e-mail, de mensagens enviadas por
WhatsApp, sendo também realizado em contatos pessoais, abrangendo a rede de
relacionamentos do pesquisador.
Foram escolhidos os dois primeiros médicos que aceitaram o convite divulgado
e que cumpriram os requisitos da pesquisa. Os demais participantes foram escolhidos
56
utilizando o procedimento da “bola de neve” (snowball sampling), descrito por Bardin
e Munhoz (2011). Os participantes escolhidos identificaram outro participante que se
encaixava no perfil da pesquisa e, assim sucessivamente, até que se atingiu o número
de participantes almejado pelo estudo.
Para seleção dos participantes, foram observados os seguintes critérios de
inclusão:
a) atuar no hospital de clínicas escolhido;
b) ter solicitado interconsulta para seus pacientes;
c) ser médico não psiquiatra;
d) estar disposto a ser entrevistado.
Ser paciente do pesquisador foi o critério de exclusão considerado.
7.4.4 Procedimento de intervenção
Agendaram-se as entrevistas com os participantes que haviam aceitado
participar da pesquisa e atendiam aos critérios de inclusão. As entrevistas foram
realizadas individual e presencialmente em consultório do referido hospital, com
ventilação e iluminação adequadas e condições de privacidade e sigilo dos
depoimentos dos participantes.
No primeiro momento, foram esclarecidos os objetivos e outras informações de
caráter geral relacionadas à pesquisa, tais como a manutenção da confidencialidade
e o direito do participante de se retirar do estudo a qualquer momento. A seguir, foi
entregue o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Anexo C), em duas cópias,
que foram lidas e assinadas pelo pesquisador e pelo participante. Após o aceite das
condições previstas, foi realizada a entrevista semiestruturada.
A entrevista ocorreu em encontros com duração de 60 minutos, tendo sido
conduzidas como uma conversa informal. Iniciou-se com perguntas simples,
procurando, no decorrer do tempo, apresentar questões que permitissem captar
conteúdos conscientes e, na medida do possível, inconscientes (PENNA, 2004). Ao
final da entrevista, explicou-se ao participante que seu relato gravado seria ouvido
exclusivamente pelo pesquisador, solicitando dele a disponibilidade para um segundo
encontro, a fim de esclarecer eventuais dúvidas. Todos os participantes se mostraram
dispostos, mas não houve necessidade desse novo encontro com nenhum dos
participantes. Foi oferecido encaminhamento terapêutico, caso o participante se
57
sentisse afetado por suas narrativas, mas não houve esse pedido. Terminou-se a
pesquisa com o agradecimento ao participante pela disposição em auxiliar na
pesquisa.
Após o término da entrevista, as gravações foram transcritas digitalmente pelo
pesquisador, assim como foram anotadas as observações do encontro, a forma como
se deu a comunicação e as expressões corporais observadas.
Considera-se que, por meio da entrevista semiestruturada foi possível o
estabelecimento de uma interação que proporcionou um aprofundamento dos
objetivos propostos e permitiu que os participantes se manifestassem de forma livre,
relatando as emoções e os significados de suas vivências pessoais.
7.4.5 Procedimento de análise de dados
Para análise dos dados obtidos foi escolhido o método de análise referendado
por Bardin (1977) e adaptado por Faria (2003). Segundo Bardin, “a análise de
conteúdo é um conjunto de técnicas de análise das comunicações” (BARDIN, 2010,
p. 33), que “utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo
das mensagens” (idem, ibidem, p.40). Assim, a análise de conteúdo pode ser
considerada uma análise dos “significados”, a exemplo da análise temática, que
possibilita que o observador realize inferências e deduções lógicas. A análise
proposta por Bardin, segundo Faria (2003), permite ainda uma aproximação com a
leitura junguiana:
[...] uma vez que possibilita, em primeiro lugar, uma leitura dos fenômenos tendo como referência a totalidade do discurso, que aparece pelo dito e pelo não dito, mas manifestado pela contradição. Esse método de análise possibilita também uma aproximação tanto intuitiva, simbólica, como conceitual, no modo de ser e tratar o material colhido. (FARIA, 2003, p. 275)
Desse modo, a análise de dados iniciou com a transcrição das entrevistas que
foram ouvidas e lidas diversas vezes, de forma intuitiva, despertando no pesquisador
suas primeiras impressões. O conteúdo expresso pelos participantes foi transformado
sistematicamente, primeiro organizado em tópicos que, na sequência, foram
agrupados em unidades de significação, ou seja, em temas.
58
Segundo Berelson apud Bardin (2010, p.131), por tema deve-se entender “uma
frase, ou uma frase composta, habitualmente um resumo, ou uma frase condensada,
por influência da qual pode ser afetado um vasto conjunto de formulações singulares”.
A análise dos temas permite a identificação dos “núcleos de sentido” que compõem o
discurso e traz um significado para o objetivo analítico em estudo. A partir dos temas
levantados, foram identificados os grupos temáticos, que serão apresentados no
capítulo “Analise de Resultados”, com a articulação de frases que qualificam o estudo
e a tema em estudo.
Em seguida, com vistas a compor a análise de resultados, foi realizada uma
análise de narrativas com base no método proposto por Ezzy (2002). Segundo esse
autor, a análise narrativa identifica a estrutura interpretativa mais ampla que as
pessoas utilizam para transformar eventos sem sentido em episódios significativos,
que são parte de uma história que leva ao passado e ao futuro. De cunho
hermenêutico, a análise narrativa permite ir além do simples registro de fatos e
identificar os significados atribuídos pelos participantes às suas próprias experiências.
Assim foram elaboradas três narrativas, a partir dos depoimentos dos
participantes, que foram articuladas com os pressupostos teóricos da psicologia
analítica e mantidas em consonância com os objetivos da pesquisa. O pesquisador
priorizou as narrativas em que a leitura do significado expressava os dizeres da
maioria dos participantes e estavam em consonância com os objetivos da pesquisa.
7.4.6 Procedimentos éticos
A pesquisa foi realizada de acordo com os requerimentos éticos em pesquisa
envolvendo seres humanos preconizados pela Resolução CONEP 466/2012 do
Conselho Nacional de Saúde, pela Resolução CNS/MS 510/2016 e pelo Regime dos
Comitês de Ética em Pesquisa da PUC-SP.
O projeto de pesquisa foi apresentado e aprovado pelo Comitê de Ética em
pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – Sede Campos Monte
Alegre, com protocolo de pesquisa número: 2.485.060. Constam anexos o Termo de
Compromisso do Pesquisador Responsável (Anexo A), o termo de Liberação do
Responsável pelo hospital de clínicas para realização da pesquisa (Anexo B), o Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido (Anexo C) e o Parecer Consubstanciado do
59
Comitê de Ética com a aprovação desta pesquisa (Anexo D), e o Folheto de
Divulgação de Pesquisa (Apêndice A).
Com a finalidade de realizar a análise das entrevistas foram feitas transcrições
na íntegra que precisaram ser omitidas desta dissertação, a fim de preservar as
identidades dos participantes e o sigilo das informações. Somente tiveram acesso às
transcrições integrais os componentes da banca julgadora da presente dissertação
para fins de avaliação.
60
8 ANÁLISE DOS RESULTADOS
Neste capítulo são apresentados os resultados desta pesquisa. Inicialmente,
será feita a descrição dos participantes e, em seguida, relacionados os grupos
temáticos e os temas levantados, com a respectiva análise e compreensão à luz da
psicologia analítica, de modo a atender aos objetivos propostos.
Por fim, será desenvolvida a análise de três narrativas, com o intuito de alcançar
a compreensão hermenêutica do relato como um todo. A leitura compreensiva das
narrativas totais possibilitou, aos olhos do pesquisador, a identificação de três
tendências relacionadas ao modo de ser e agir dos médicos participantes deste
estudo. Cada narrativa escolhida para compor este capítulo representa uma dessas
tendências.
8.1 Descrição dos participantes
Todos os que participaram desta pesquisa fazem parte do corpo clínico do
hospital de clínicas. Foram entrevistados oito profissionais, com idade entre 41 e 54
anos, sendo quatro médicas e quatro médicos. Em relação à formação acadêmica,
quatro dos participantes têm doutorado (D), um possui mestrado (M) e os demais são
especialistas (E) em suas áreas de atuação. Quanto ao tempo de serviço, a maioria
atua há vinte ou mais anos, com exceção de um dos médicos, que está em atividade
há apenas cinco anos.
Por questões éticas, visando preservar a identidade dos médicos e garantir o
necessário sigilo, a tabela de descrição está exposta em ordem crescente de idade
sem a identificação do profissional e sem delimitar a especialidade.
61
TABELA 1 – Caracterização dos participantes
Idade
(anos) 41 51 51 51 53 53 54 54
Sexo Masc. Masc. Masc. Fem. Fem. Fem. Masc. Fem.
Tempo de
serviço
(anos)
5 20 23 24 29 26 23 30
Titulação E D E D D E M E
A seguir, apresenta-se breve descrição dos participantes, identificados por
nomes fictícios, em sequência que não corresponde à adotada na Tabela 1.
Jacob – Solteiro e pai de um filho. Formou-se em 1990. É médico cirurgião, com uma
carga horária intensa.
Hazael – Casado e pai de três filhos. Formou-se em 1991. Atua como médico clínico.
Esther – Casada e mãe de um filho. Formou-se em 1992. Atua na área de medicina
fetal.
Moisés – Casado e pai de dois filhos. Formou-se em 1989. Sua carga horária gira em
torno de 30 horas semanais. Atua na área de clínica geral.
Sarah – Casada e mãe de dois filhos. Formou-se em 1989. Atua como médica clínica.
Samuel – Casado e pai de duas filhas. Formou-se em 2003. Atua na área cirúrgica.
Rute – Casada e mãe de uma filha. Formou-se em 1987. Atua na área de clínica
infantil, tendo uma carga horária de 40 horas semanais.
Rebeca – Divorciada e mãe de um filho. Formou-se em 1988. Atua na área clínica e
de gestão.
62
8.2 Análise temática
Os agrupamentos temáticos foram estabelecidos em razão dos objetivos,
possibilitando a identificação de temas não excludentes entre si. A partir da análise
temática proposta por Faria (2003), encontraram-se três grupos temáticos que reúnem
os temas referentes às emoções do médico, um grupo temático referente aos motivos
de encaminhamento e um grupo temático referente à relação com o interconsultor.
A seguir, listam-se os agrupamentos temáticos identificados.
a) A emoção em relação à profissão: consideram-se, nesse agrupamento, as
emoções que o médico refere em relação à sua profissão;
b) A emoção em relação à instituição: consideram-se, nesse agrupamento, as
emoções que o médico refere na sua relação com a instituição;
c) A emoção na relação médico-paciente: consideram-se, nesse
agrupamento, as emoções que o médico relata sentir quando diante do
paciente em sofrimento psíquico;
d) Motivos de encaminhamento: consideram-se, nesse agrupamento, os
motivos referidos pelos médicos para solicitarem a interconsulta
psiquiátrica;
e) Relação com interconsultor: considera-se, nesse agrupamento, a relação
médico-médico, entre o médico não psiquiatra e o psiquiatra interconsultor.
O quadro 1, a seguir, apresenta os grupos temáticos e os temas a eles
associados.
63
QUADRO 1 – Grupos temáticos e temas
GRUPOS TEMÁTICOS TEMAS
Emoção em relação à profissão
Tema 1: Expectativa relativa ao ato de cuidar Tema 2: Temor do erro médico Tema 3: Sobrecarga de trabalho e estudo
Emoção em relação à instituição
Tema 1: Burocracia e rotina Tema 2: Usuários sem recursos Tema 3: Ambiência
Emoção na relação médico-paciente
Tema 1: Acolhimento versus neutralidade. Tema 2: Demandas laboriosas do paciente/dificuldades
de manejo Tema 3: Reconhecimento versus desprestígio Tema 4: Impotência versus onipotência
Motivos de encaminhamento
Tema 1: Auxílio no diagnóstico e tratamento de pacientes Tema 2: Dificuldades de lidar com o paciente ou com a
família Tema 3: Dificuldades de conciliar aspectos bióticos
Relação com o interconsultor
Tema 1: Comunicação Tema 2: Expectativas versus dissonâncias
Na sequência, apresentam-se exemplos de narrativa para cada tema, seguidos
da análise correspondente.
8.2.1 Grupo temático – A emoção em relação à profissão.
O quadro a seguir reúne frases retiradas das narrativas dos participantes, que
exemplificam como os médicos se referem à emoção em relação à sua profissão.
64
QUADRO 2 – Exemplos de frases do grupo temático: a emoção em relação à profissão
TEMAS EXEMPLOS DE FRASES
Tema 1
Expectativa relativa ao ato de cuidar
Porque a gente quer que o paciente saia bem, a gente quer que o paciente fique feliz. O maior prazer meu é ver que deu certo. Então isso é uma coisa que estimula bastante. É ver o paciente melhorar, ver que a gente pode fazer alguma coisa por ele. Eu acho muito bom cuidar, ter uma resposta no final, mesmo que eu não consiga trazer a cura ou a melhora. Eu vou falar uma coisa pra você, eu amo o que eu faço. [...] Então, cada paciente que entra é uma emoção. É a emoção de querer fazer o melhor por ele. Eu saio do hospital todo dia feliz, cantando... É como se eu fosse explodir de felicidade. Missão cumprida.
Tema 2 Temor do erro médico
E hoje em dia a gente vive sobre pressão, é muito desgastante, né? A qualquer hora você pode estar tomando um processo aí. O que gera uma ansiedade muito grande, porque você se cobra muito, você tenta fazer o melhor. Muitas vezes não consegue o resultado esperado. E assim você fica imaginando: será que vou ser processado? Isso gera uma ansiedade muito grande. Então isso daí, hoje em dia, essa judicialização da medicina, eu acho que é o que mais desgasta a gente. Quanto ao risco de processo ou medo de processo, isso sempre foi uma constante... O medo maior de erro diagnóstico e tratamento. Isso sim eu acho que sempre foi preocupante.
[...] ficar pensando. Pensando no sentido de algum erro, de alguma coisa que não deveria ter feito ou deveria fazer. É um medo no sentido de responsabilidade, medo de processo, culpa de estar errado. Nossa! Acontece demais da conta. [...] quando um rapaz suicidou, eu fiquei vários dias pensando e sonhando. Acordava e falava: “meu Deus! Onde foi que eu errei? Eu devia ter percebido”. “Olha, isso aqui é uma corda bamba. Nós estamos andando tentando equilibrar, entre você e o neném, para escolher o melhor momento de tirar”.
65
QUADRO 2 – Exemplos de frases do grupo temático: a emoção em relação à
profissão – cont.
Tema 3
Sobrecarga de trabalho e estudo
Tenho uma carga horária muito grande... Atendo muitos pacientes e opero todos os dias. Toda vez que tenho uma cirurgia no dia seguinte, que eu sei que será estressante e pesada para mim, eu durmo mal na noite anterior. Faço plantões. São 40 horas semanais. Faço também um plantão de 24 horas aos sábados e em um fim de semana. Além dos plantões, faço consultório, geralmente 6 horas por dia. Geralmente, eu faço 12 a 13 horas de consultório. Cuido de vários ambulatórios e faço pós-graduação. Então, quer dizer, a semana [é] toda lotada e puxada. Eu me cobro muito. Eu tenho que estar sempre estudando. Eu tenho que estar sempre sabendo o que eu podia ter feito de melhor, o que eu deveria ter feito, o que tem de novidade para gente poder melhorar.
Nota-se que todos os entrevistados vincularam a capacidade de curar e ser útil
a sentimentos agradáveis. Para os médicos, a emoção sentida quando percebem que
conseguiram ajudar seus pacientes marca os momentos mais gratificantes da
profissão. A boa resposta do paciente ao tratamento proposto os estimula e lhes
proporciona satisfação com seu trabalho. Tal experiência emocional parece revelar o
quanto o olhar do médico se volta para o outro e sua recuperação.
Para alguns participantes, a relação com a profissão adquire um significado
ainda maior, constituindo-se em uma atitude de entrega. O exercício da medicina é
encarado como “uma missão a ser cumprida”, e a melhora do paciente promove
sentimentos positivos associados ao cumprimento de um dever.
Em síntese, pode-se entender que, para os participantes, em relação ao tema
“expectativa relativa ao ato de cuidar”, a principal intenção é aliviar o sofrimento
daquele que procura o cuidado médico. Os discursos colhidos revelam que, quando
esse objetivo é alcançado, a profissão se torna fonte de alegria e satisfação.
De outra parte, percebe-se uma preocupação constante refletida no tema
“temor do erro médico”. A possibilidade de falhar é, para os entrevistados, um
elemento que gera forte ansiedade provavelmente decorrente do medo de ser
responsabilizado por possíveis erros, seja no diagnóstico seja no tratamento. Além
disso, os participantes falam que a “judicialização da medicina” os tem levado a se
66
sentirem inseguros e a atuarem defensivamente. A sensação referida de “estar numa
corda bamba” revela tal insegurança e o receio dos médicos de dar passos e tomar
decisões que, além de terem o potencial de abalar sua autoconfiança, levem a
acusações judiciais. O sentimento de culpa parece ser uma constante nos relatos de
situações em que o cuidado não promoveu o resultado esperado. Esses fatores
conjugados aumentam a tensão a que os médicos estão submetidos diariamente,
exigindo deles um alto grau de concentração em suas atividades.
Quanto ao tema “Sobrecarga do horário e estudo”, vale lembrar que o estresse
é uma reação natural do organismo a situações de perigo que exigem respostas
adaptativas e que, segundo Lipp (2000), pode se desenrolar em duas fases. Em um
primeiro momento, ocorre a liberação dos hormônios do estresse que levam a pessoa
a se sentir mais preparada para as mudanças necessárias e mais motivada a agir. No
entanto, a autora observa que, se o processo do estresse se prolonga, a sobrecarga
provocada no organismo promove queda de resistência e aumenta o risco de
enfermidades.
Neste estudo, todos os médicos relataram a ansiedade vivida em razão de um
cotidiano estressante. A jornada de trabalho é descrita como exaustiva – muitos
referiram profundo cansaço ao chegar em casa – e houve menções a adoecimentos
provavelmente associados à grande carga de trabalho. Os relacionamentos próximos
também parecem ser atingidos, pois o ritmo de trabalho exige longos períodos de
dedicação em detrimento da própria família.
Outro fator de estresse diz respeito à necessidade constante de atualização.
Para os participantes, a medicina é uma profissão em permanente evolução, o que
exige deles que estejam sempre estudando. Se, de um lado, o estudo dos avanços
ocorridos na área facilita a tomada de decisão, de outro, é visto como uma obrigação
inescapável, o que eleva o nível de cobrança a que os médicos se sentem submetidos.
Em síntese, para os participantes, ainda que o exercício da medicina
proporcione momentos de satisfação, de alegria e de sensação de dever cumprido, o
peso da responsabilidade, o alto grau de cobrança e um cotidiano estressante elevam
o nível de ansiedade, fomentam a culpa e o medo de errar e, muitas vezes, levam à
exaustão.
67
8.2.2 Grupo temático – A emoção em relação com a instituição
Para os participantes, os resultados do seu trabalho não procedem apenas do
atendimento médico realizado, pois tanto o médico como o paciente dependem do
funcionamento da instituição e da capacidade de seus gestores para resolver as
questões necessárias à assistência.
Desse modo, esse agrupamento reúne temas que se referem à identificação
das emoções vividas pelos participantes com relação à instituição.
QUADRO 3 – Exemplos de frases do grupo temático: a emoção em relação à instituição
TEMAS EXEMPLOS DE FRASES
Tema1
Burocracia e rotina
[...] É muito moroso o sistema. Até eu conseguir que o paciente faça o exame, isso demora um tempão... Eu fico angustiada com isso. Não consigo separar e pensar: “poxa, mas isso é um problema do governo, não é problema meu”. A rotina é muito importante para poder padronizar o atendimento e as condutas, mas existe uma limitação estrutural. A simples falta de um medicamento desestrutura o atendimento. As tecnologias aumentaram, mas as dificuldades operacionais também. [...] O que desestimula é a burocracia, a dificuldade com exames, a dificuldade social do paciente para conseguir a medicação. [...] Apesar de ter sido criada uma rede paralela entre os colegas. A gente acaba se ajudando, furando a rotina do burocrata, do gestor e a gente acaba fazendo com que o paciente tenha um atendimento até bom.
Tema 2
Usuários sem recursos
[...] O nosso cliente é muito carente. Eles têm falta de tudo: falta dinheiro, falta família para cuidar, falta comida em casa, falta instrução, falta orientação e ele precisa ser mais acolhido. [...] Aqui no hospital, ela tinha comida, ela tinha enfermagem que ia perguntar toda hora se ela estava bem... Às vezes, é difícil. Você acolhe e tem que ser dura. Mas, de vez em quando, você está comprando remédio, tentando ajudar, perguntando “você comeu hoje?”. “Não, não comi porque não tinha dinheiro”. Aí, você acaba dando dinheiro para o paciente comer depois da consulta.
68
QUADRO 3 – Exemplos de frases do grupo temático: a emoção em relação à instituição – cont.
Tema 3
Ambiência [...] Você entra na enfermaria e não tem um lugar para você conversar com essa paciente. Então, eu acho que falta criar um ambiente onde possa conversar mais, criar um horário [durante o qual] a gente possa discutir, criar uma acessibilidade maior. [...] A gente não tem um local de interação. Eu sinto falta de comunicação entre os profissionais e, talvez, entre os próprios pacientes. Eu acho que por a gente estar numa escola, falta muita essa interação. [...] É preciso ter o apoio institucional, criar estruturas para evitarmos os isolamentos. É preciso de um espaço para termos troca de informações com os colegas, a gente já tem um grupo no WhatsApp,
mas é preciso estruturar a comunicação. [...] É um ambiente [UTI] de muita tensão, muita tensão entre os profissionais do setor. A gente vê a dificuldades que eles têm para lidar com isso. Então, é uma coisa recorrente, essa falta de apoio e sobrecarga emocional da equipe. Saber lidar com essas questões das emoções no momento, ali, de forma técnica, eu não acho tão simples, talvez seja onde a gente precisaria de um treinamento.
Apontam os participantes que suas maiores dificuldades com relação à
instituição se dão em razão de uma demanda crescente, o que tem gerado problemas
como o aumento do tempo do atendimento e a falta de espaços adequados. Percebem
que a instituição se encontra presa a processos burocráticos e morosos, que travam
o fluxo do atendimento a uma população cada vez mais carente e dependente, o que
tem favorecido a presença de emoções desagradáveis.
A dificuldade em lidar com questões de cunho social, como quando os
pacientes estão privados do básico para sua subsistência e procuram a instituição
como casa de caridade, também é apontada como uma das situações que permeiam
o atendimento diário. Para os participantes, muitos dos pacientes procuram o hospital
motivados pela acolhida social, ou seja, buscando o atendimento a necessidades
básicas que vai além do tratamento médico oferecido.
Alguns médicos relatam profundo constrangimento diante da precariedade da
situação dos pacientes, chegando a comprar os remédios do próprio bolso ou a
mobilizar ações sociais para ajudá-los, tamanho o sofrimento e carência dos usuários.
Descrevem o ambiente institucional como insalubre e burocrático, no qual o
maior desafio reside em construir espaços de interação que permitam momentos de
69
confraternização e troca de ideias. Urge, para os participantes, a criação de um
espaço de interatividade que seja mais aconchegante e possibilite que pacientes e
equipe de saúde possam interagir, construindo um ambiente acolhedor e humanizado.
8.2.3 Grupo temático – A emoção na relação médico-paciente
Esse grupo abarca os temas extraídos dos relatos dos médicos que
participaram desta pesquisa ao se referirem à vivência de emoções na relação com
seus pacientes.
QUADRO 4 – Exemplos de frases do grupo temático: a emoção na relação médico-paciente
TEMA EXEMPLOS DE FRASES
Tema 1
Acolhimento (recepção) versus neutralidade
O fato de você estar disponível para esse paciente, para ele falar, para ele perguntar ou, em muitas das vezes, é só ele falar e você ouvir e não recriminar. E, com isso, acaba tendo um resultado relativamente bom. Eu acho que a melhor técnica da gente é ouvir o paciente. É muito bom cuidar. Eu acho muito bom cuidar, ter uma resposta no final, mesmo que eu não consiga trazer a cura ou a melhora. Mas que a pessoa compreenda o seu problema e a relação que ela faz comigo. [...] Eu consigo atualmente, não 100% das vezes, mas consigo controlar um pouco mais. Consigo ser um pouco mais objetiva sem deixar de ser emotiva. Controlando, tendo um equilíbrio, tentando ter um equilíbrio dessas emoções... Eu procuro não sentir, não entrar nesse nível instintivo... Eu procuro racionalizar um pouco mais o meu atendimento. [...] A gente acaba sempre escondendo o que está sentindo.
[...] Sentir o que não sente.
A gente vai controlando as emoções e tentando controlar as emoções da família também.
70
QUADRO 4 – Exemplos de frases do grupo temático: a emoção na relação médico-paciente – cont.
Tema 2 Demandas laboriosas do paciente/dificuldades de manejo
Às vezes, eu tenho uma tristeza muito grande. De chorar junto com o doente [...] porque a gente pega muitos casos de câncer. [...] Em alguém que recebe uma sentença de morte, então acaba que, às vezes, você não consegue segurar. Gera estresse falar e ele não se cuidar, chegar toda vez atrapalhado. Isso me angustia, você não ver resultado daquilo que você está tentando fazer com a maior boa vontade. É difícil quando o paciente chega blindado. Tem casos que chegam até agredindo. O que mais me desestimulou foram as injustiças... Por mais que você tenha feito, nós não somos deuses. Eu acho que tem muita coisa fora do nosso alcance e você é acusado tendo feito o seu melhor. [...] Tento me manter calmo, ouvir a história, mas depois eu fico com aquilo me martelando. Aí vem uma dor de cabeça, uma indisposição, eu me sinto muito cansada depois de uns atendimentos desses. Sofrimento psíquico. [...] aqueles pacientes que te sugam a energia, na hora que você termina o atendimento parece que um trator passou em cima de você. É aquela coisa de incomodar. Você fica incomodado e a primeira coisa é aquela coisa instintiva de você sentir raiva. Eu tenho uma paciente que tentou cortar o pulso, ela tentou suicídio. [...] e quando eu cheguei, ela levantou e me deu um abraço com tanta força, tipo assim, “me ajuda”. Eu tive uma emoção, uma vontade de chorar e, ao mesmo tempo, de alegria, sabe, e foi uma consulta leve. Uma ou outra vez já fui agredida com palavras, mas é esporádico. Eu prefiro tratar dez amigdalites do que um surto psicótico. Eu acho que tem essa dificuldade de lidar com a emoção das pessoas, com as dificuldades mentais.
71
QUADRO 4 – Exemplos de frases do grupo temático: a emoção na relação médico-paciente – cont.
Tema 3
Reconhecimento versus desprestígio
Na hora que eu chego aqui para os atendimentos, eles estão todos na porta ali me esperando Todos já vêm abraçando e beijando porque é aquela confiança, carinho... Isso me faz bem. Eu tive a alegria de muitos deles melhorarem, até mesmo com uma conversa minha eles passarem a enxergar a vida de forma diferente. Eu tenho a vaidade de ser querida. Eu gosto de ser querida e gosto de passar isso para as pessoas. [...] O maior medo é ter gente insatisfeita com o trabalho da gente, eu acho muito ruim. O não reconhecimento do seu esforço, isso me deixa um pouco
angustiada.
Quando você tem um paciente insatisfeito, “case-se” com ele,
fica mais próximo, ofereça tudo que você puder.
O que mais me desestimulou foram as injustiças que foram
cometidas comigo... Nós não somos deuses e você ser acusado
mesmo tendo feito o seu melhor...
Tema 4 Impotência versus onipotência
[...] Porque às vezes entra em uma área de um sofrimento, de uma impotência de fazer as coisas e de conseguir talvez ajudar muito grande. Sensação talvez de impotência, a sensação de “eu não dou conta, eu não consigo ir além”. Então é assim, a emoção que vem é: preciso de ajuda. [...] A primeira sensação que eu tenho chama-se impotência. Eu acho que é a que mais me afeta... Isso é muito triste, alguém passar pela sua vida e você fazer pouco. Eu tenho uma boa aderência de pacientes, mas nunca teremos 100% de controle. Mas quanto mais você for melhorando, mais você vai chegando próximo dos 100%. Eu não costumo encaminhar para muitos médicos, porque, como eu tenho consultório, boa parte das coisas eu mesmo consigo resolver. Mas eu sinto um empoderamento de falar: “você sabia que o crack pode afetar seu neném?” Mas eu sei que são discursos vazios. Isso é muito frustrante.
72
QUADRO 4 – Exemplos de frases do grupo temático: a emoção na relação
médico-paciente – cont.
Tema 4 Impotência versus onipotência – cont.
A tendência da gente é sair da faculdade com salto alto e, depois, com o tempo, você vai vendo que, quanto mais humilde, parece que os problemas vão ficando menores. [...] A gente tem uma missão importante, a gente pode ajudar. Se veio até a gente, não é à toa. Então, eu acho que a gente tem um papel importantíssimo. Eu cuido dos meus meninos [pacientes]. A hora que eu piso fora do hospital, eu peço os anjinhos para cuidar, porque eu não dou conta de cuidar o tempo inteiro.
Eu tinha dificuldade de aceitar: isso eu não dou conta, isso eu vou ter que tentar estudar, melhorar...nisso eu não estou boa, eu sou imperfeita nisso. Eu acho que eu tinha dificuldades de ver minhas imperfeições. Eu achava que eu tinha que ser certinha e tal.
Para a maioria dos entrevistados, no que se refere ao tema “Acolhimento
versus neutralidade”, nota-se uma disposição em acolher a demanda trazida pelos
pacientes. Destaca-se a importância de saber ouvir, de estar aberto para escutar a
fala do paciente, sem criticar, como um ponto chave a ser desenvolvido no momento
do encontro entre o paciente e o médico.
Alguns participantes se mostram empáticos diante do sofrimento, sentindo-se
constrangidos e apreensivos com as questões trazidas, ainda que encontrem
satisfação com a possibilidade de ser útil. Outros, no entanto, buscam alcançar uma
neutralidade, ao tentarem controlar suas emoções e ser o mais prático e objetivo em
suas ações. A atitude de “esconder o que se sente” denota um certo distanciamento
do lado humano do paciente que pede cuidado.
Enfim, a narrativa dos participantes parece retratar dois movimentos básicos
que ocorrem no encontro entre médicos e pacientes: de um lado estão aqueles que
se apresentam solícitos e simpáticos, afetivos e tolerantes, adotando uma atitude
receptiva diante do sofrimento que lhe é apresentado; de outro lado, há os que fazem
uso de estratégias de neutralização das emoções. Nesse último caso, a postura fria,
à qual falta afetividade, parece ter como finalidade evitar um maior contato com o lado
humano do paciente.
73
Em relação ao tema “Demandas laboriosas do paciente/dificuldades de
manejo”, percebe-se que, algumas vezes, muitos participantes se sentem
pressionados a fornecer uma solução que parece estar fora de sua esfera de
competência. Uma dessas situações diz respeito ao enfrentamento de doenças fatais
que geram angústia e colocam o médico diante de um sofrimento difícil de ser
contornado e de sua própria falibilidade, o que o leva a “chorar junto” com o paciente
As narrativas permitem, ainda, observar que uma das dificuldades mais
comumente enfrentadas diz respeito ao trato com aqueles pacientes que não aderem
ao tratamento e, que apesar do esforço despendido pelo médico, não respondem aos
cuidados oferecidos da forma esperada.
Os participantes narram, também, como é complicado manter o foco quando
estão diante de pacientes com sofrimento psíquico, admitindo que, após o
atendimento, sentem fortes dores na cabeça seguidas de indisposição e cansaço.
Esse desgaste é descrito, figurativamente, como “se um trator passasse por cima”.
Um dos testemunhos se refere ao fato de isso causar tanto incômodo que desperta,
no médico, penosos sentimentos de raiva. A dificuldade em lidar com as emoções do
paciente em sofrimento psíquico é pontuada na fala de Rute, que declara ser
“preferível atender dez amigdalites do que um paciente psicótico”, considerando,
nesse caso, a real possibilidade de ser agredida.
Outra situação difícil é aquela descrita por Samuel quando reconhece como é
problemático lidar com os pacientes “blindados” ou “agressivos”, que fazem
acusações e cobranças sem sentido. O participante refere sentir-se, nesses casos,
desestimulado e, muitas vezes, injustiçado, dado que sua proposta é a de ajudar.
O testemunho de Samuel nos remete ao próximo tema, ou seja,
“Reconhecimento versus desprestígio”. Para a maioria dos entrevistados ter seu
trabalho reconhecido é fonte de alegria e satisfação. Perceber que é aceito e querido
é apontado como um fator de bem-estar e de prazer. Assim, Sarah procura ser
empática e manter um relacionamento mais aberto e desprendido, afirmando que o
contato humano lhe faz bem. O reconhecimento percebido está associado ao se sentir
querida por seus pacientes e ao vê-los melhorar.
Outros participantes relatam certo receio de não conseguir satisfazer seus
pacientes, o que promove ansiedade e episódios de indisposição que acabam por
afetar a relação médico-paciente. O medo de não ter o trabalho reconhecido, de todo
74
esforço ter sido em vão, deflagra a percepção de injustiça e demérito, exigindo um
maior esforço do médico na manutenção do vínculo profissional com o paciente.
Em referência ao tema “Impotência versus onipotência”, nota-se que a maioria
dos participantes menciona alguma ocasião em que se sentiram impotentes.
Consideram que o sentimento de impotência e a frustação são experiências comuns
na relação médico-paciente. Esses sentimentos são despertados quando os médicos
se veem diante de casos clínicos de difícil compreensão e/ou cuja resolução não foi
possível. Em decorrência, os profissionais são assaltados por dúvidas relativas àquilo
que poderia ter sido feito e não o foi. Para a maioria dos participantes, a vivência da
impotência desperta o sentimento de culpa e a insatisfação de não ter conseguido
atingir seu objetivo de cuidador, ou seja, promover a melhora da condição do paciente.
Muitos participantes se sentem frustrados quando não conseguem alcançar o objetivo
de aliviar o sofrimento, e o fato de perceberem seus limites os coloca em contato com
emoções desagradáveis que se transformam em cobrança relacionada à procura de
um ideal de ser, um mundo com cem por cento de acertos, como deixa transparecer
Jacob, ao dizer que é preciso melhorar para chegar aos cem por cento.
Rute enfatiza o caráter heroico da profissão, que lhe proporciona confiança e a
incentiva a se dedicar à missão de curar, e diz, “se veio até a gente, não foi à toa. A
gente tem um papel importantíssimo”. Mas Moisés afirma que, embora ao sair da
faculdade tenha se sentido poderoso, com o passar do tempo deparou-se com a
realidade, o que o levou a ser mais humilde e a se permitir aceitar o seu lado humano.
É possível argumentar que Rute e Moisés chegaram a um meio termo entre a
impotência e a onipotência, experimentando momentos em que é importante uma
dose de confiança e disposição para realizar os enfrentamentos próprios da profissão
e outros, em que entram em contato com as frustações e necessitam desenvolver a
humildade. Em síntese, pode-se supor que os participantes, ao encontrar seus
pacientes, iniciam a construção de um vínculo que os leva a empreender uma busca
interior e particular do ponto mais equidistante entre impotência e onipotência, de
modo a se sentirem capazes de ajudar e amparar.
75
8.2.4 Motivos do encaminhamento
O próximo grupo focaliza, nos depoimentos dos participantes, os motivos para
o encaminhamento dos pacientes ao médico interconsultor. Os temas inferidos
retratam as principais razões que levam o médico não psiquiatra a solicitar a
assistência do psiquiatra diante de seus pacientes.
QUADRO 5 – Exemplos de frases do grupo temático: motivos de encaminhamento para o interconsultor
TEMAS EXEMPLOS DE FRASES
Tema 1
Auxílio no diagnóstico e tratamento
O maior motivo pelo qual encaminho o paciente hoje em dia é em relação a quadros depressivos.
Ela é a ansiedade em forma de gente, não dorme porque descobriu que tem hepatite.
A gente encaminha pacientes que têm doença crônica para fazer um acompanhamento, para auxiliá-lo no fato de ter uma doença crônica.
[...] com queixas psicossomáticas e, na maioria das vezes, é de fundo emocional. Boa parte eu mesmo trato. Quando não consigo ou percebo um comprometimento maior, eu encaminho para o psiquiatra para otimizar o tratamento e coisa [sic] que a gente não percebe. [...] Encaminhei uma senhora que começou com um quadro de mudança de comportamento que poderia ser uma síndrome demencial. Tem muito a ver com a medicação, porque não me sinto preparada para poder medicar... A gente chama muito o psiquiatra para poder avaliar a medicação. Aqueles pacientes mais agitados, mais agressivos... E principalmente os usuários, não só de drogas ilícitas, mas os usuários de álcool. Quando eu percebia que ia perder ele...que podia tentar suicídio. [A paciente] fugiu do abrigo, usava droga, tentou autoextermínio. Isso me motivou a pedir interconsulta. Pessoas que acabam simulando dores, isso acontece muito em pronto socorro. Aquela coisa de que grande parte dos pacientes que a gente manda para o psiquiatra não é para resolver o problema do paciente, é para resolver o problema da gente.
76
QUADRO 5 – Exemplos de frases do grupo temático: motivos de encaminhamento para o interconsultor – cont.
Tema 2 Dificuldades de lidar com o paciente ou com a família
Quando eu me sinto afetada emocionalmente, eu sempre chamo alguém para me ajudar. A maior dificuldade que eu tenho é dar diagnóstico de câncer, que é uma coisa pesada você falar com o paciente e com os parentes. Tem paciente que não fala, não explicita muita coisa. Tento investigar uma questão de ordem emocional e tenho dificuldades em uma ou duas consultas [...] me gera uma frustação, uma dificuldade. Aí, acaba sendo ou iniciar um tratamento medicamentoso, psicotrópico ou, se não melhora, eu encaminho para o psiquiatra.
Ele [paciente] vai continuar com aquele problema, porque é multifatorial e você está agindo só de um lado. Isso me angustia... Eu fiz o que podia. Dali para a frente, eu estou limitado. Então, tenho que passar para alguém que me ajuda.
“Olha eu não dou conta. Você vai ao psiquiatra e você vai ver o que está acontecendo com você, por que você está dessa forma.” [...] e fecharam o diagnóstico de bipolar.
Agora, difícil é esse que não quer tratar, que não quer, que não aceita a gente, o encaminhamento. Esse é difícil! Eu tenho vontade de fugir.
Então, essa aflição da gente, essa angústia da gente [sic] querer ajudar, pedir ajuda para um colega, que pode sempre estar ali, estar conversando e estar encaminhando para dar seguimento. Ah! Vou passar para o psiquiatra e ele se vira lá com a depressão. Não sei mexer com isso. [...] porque muitas vezes eu estou “lavando as mãos”. Eu mando para ele como se estivesse “lavando as mãos”.
Geralmente, quando a gente pede, às vezes, já tem um problema familiar, já tem uma separação envolvida. Já aconteceu de encaminhar, além da criança, a mãe ou o pai para uma interconsulta.
Que o profissional ouça a família, [...] que ele dê um acolhimento para a família, para o paciente. A família fica mais tranquila, o paciente se sente importante, bem visto pelos médicos.
Uma coisa que gera muita angústia é a relação com a família.
Eles respondem que eu chamei essa pessoa de louca e ela não volta no meu consultório porque eu encaminhei para o psiquiatra.
77
QUADRO 5 – Exemplos de frases do grupo temático: motivos de encaminhamento para o interconsultor – cont.
Tema 3 Dificuldade de conciliar aspectos bioéticas.
Existe um preconceito muito grande em relação à psiquiatria. Eu esperaria da interconsulta é a avaliação de um profissional qualificado, que me dissesse os riscos que tem da paciente se submeter a um procedimento [por meio do] qual ela não vai atingir o objetivo, se há causas de insatisfação e se para mim é um procedimento seguro.
Transgêneros, nós encaminhamos todos eles. Então é um seguimento, porque enquanto não chega o psiquiatra pra mim, “olha essa você pode repor...”.
Gente, será que vale a pena eu ficar tratando cirrótico que não para de beber?
A maioria dos participantes relatou que um dos motivos principais para
solicitaram o auxílio do interconsultor está ligado a obter “auxílio no diagnóstico e
tratamento” de situações em que os aspectos psicológicos têm uma participação
importante. Assim, os médicos solicitam acompanhamento psiquiátrico para aqueles
pacientes que apresentam quadros de transtorno de humor, como a ansiedade e a
depressão. Alguns participantes referem, ainda, que, diante de doenças crônicas e
sintomas psicossomáticos, acabam delegando ao psiquiatra a otimização do
tratamento. Esther afirma que não se sente preparada para medicar esses pacientes
e prefere chamar o psiquiatra.
As mudanças no comportamento são colocadas como um fator importante para
solicitar a interconsulta, principalmente no caso de pacientes dependentes químicos,
agressivos e agitados, afirma Samuel. Rute e Rebeca apontam como uma das
principais dificuldades o fato de estarem diante de um paciente com possibilidade de
cometer suicídio ou que tenha tentado autoextermínio, identificando como necessário
a atuação do psiquiatra para acompanhar esses casos.
Outro fator apontado pelos participantes é a dificuldade com o diagnóstico
quando há a possibilidade de simulação de quadros clínicos. Ao recordar de casos
difíceis, Moisés afirma que, em grande parte, a solicitação do apoio do interconsultor
visa mais afastar um paciente problemático do que oferecer uma solução para o caso.
Em relação ao tema “dificuldade de lidar com o paciente ou com a família”, a
maioria dos participantes aponta questões de cunho emocional, como Esther, que
declara sempre pedir auxílio quando se sente afetada emocionalmente. Além disso,
78
alguns participantes referem dificuldades em investigar as questões emocionais, como
Hazael, que diz sentir-se frustrado quando não consegue entender o lado emocional
do paciente e percebe que o uso de psicotrópicos apresenta pouco resultado.
A angústia de não poder fazer nada é mencionada por Moisés, que se sente
limitado diante de pacientes com problemas multifatoriais, cujo tratamento considera
estar além de sua capacidade. Semelhante limitação é expressa por Sarah quando
relata que, ao atender um paciente bipolar, percebeu que não dava conta do caso,
sendo necessário lidar com o sentimento de impotência.
Alguns participantes pontuam que, diante de determinados quadros,
encaminham de forma rápida, “lavando as mãos” e afastando de si situações que
acreditam não conseguir manejar. Com isso, transmitem a ideia de que não se
sentirem seguros de poder cuidar do paciente, situação essa que os deixa
angustiados. Rute pontua que, diante de tais situações, encontra alívio ao pedir ajuda
para um colega. Pode-se dizer que, nesses casos, o interconsultor é solicitado para
discriminar questões não só do paciente, mas também do médico que se sente
desvitalizado e inoperante.
Rute acrescenta que solicita o apoio de um colega interconsultor quando
percebe existirem questões familiares que exigem um olhar global para todos os
membros que compõem a família do paciente. Também Rebeca menciona a
necessidade de o interconsultor dar um acolhimento para a família do paciente e, em
sua experiência, o fato de um profissional capacitado conseguir proporcionar essa
escuta muda a dinâmica da relação, pois os familiares do paciente se sentem mais
tranquilos e valorizados.
Embora todos os participantes se sintam, em determinadas circunstâncias,
motivados a encaminhar o paciente ao interconsultor, há relatos de que nem sempre
é possível. Muitos pacientes não aceitam se tratar em razão do preconceito que
estaria associado a quem se trata com um psiquiatra, como realça Jacob ao dizer que,
para alguns pacientes, ir a um psiquiatra é ser chamado de louco. Por isso, para os
médicos entrevistados, existe a necessidade de preparar o paciente para a vinda do
psiquiatra, o que nos remete ao terceiro tema, “dificuldades de conciliar os aspectos
bioéticos”.
Grande parte dos participantes mencionou encontrar problemas diante de
pacientes que não querem se submeter ao tratamento ou que não aceitam seguir o
plano terapêutico, levando a questionamentos éticos. A própria solicitação de
79
avaliação psiquiátrica esbarra em situações em que o paciente não aceita ser avaliado
pelo interconsultor, dando-se o direito de negar atendimento. Em razão disso, Rebeca
indaga se tem significado cuidar de quem não quer ser cuidado.
Jacob expressa a insegurança que sente ao lidar com pacientes cujos objetivos
para a realização de uma cirurgia estão além de sua capacidade. Diante do receio de
que o paciente se sinta insatisfeito, solicita a presença do interconsultor procurando o
respaldo e o direito de negar, por exemplo, um procedimento de cirurgia plástica.
Sarah refere que, em relação aos transgêneros, é fundamental a avaliação do
psiquiatra como subsídio à tomada de decisão acerca do melhor tratamento a ser feito
e para verificar se o paciente de fato se encontra em condições de seguir com a
reposição hormonal.
Assim, para os participantes, a presença do interconsultor psiquiátrico parece
se fazer necessária em circunstâncias que exigem um parecer entre o que é de direito
e aquilo que seria um dever.
8.2.5 Relação com o interconsultor
Os testemunhos sobre a relação médico-médico, que ocorre entre o médico
que assiste o paciente e o interconsultor, possibilitou a identificação de dois temas,
“comunicação” e “expectativas versus dissonâncias”. No quadro 6, a seguir, são
apresentadas as frases que exemplificam esses temas.
80
QUADRO 6 – Exemplos de frases do grupo temático: relação com o interconsultor
TEMA EXEMPLOS DE FRASES
Tema 1 Comunicação
A comunicação é um problema seríssimo. Às vezes, fica cada um no seu nicho e não fala, não expressa. Às vezes, a gente pede uma avaliação e vem uma resposta em um papel. Às vezes só escrevo um papelzinho “encaminho para o psiquiatra”, sem falar nada, não cito grande coisa do prontuário. A avaliação, normalmente quando eu a recebo, vem escrita, vem em uma cartinha selada e o paciente me entrega. Às vezes, a gente tem até dificuldade de escrever para o psiquiatra, porque é uma coisa que você está sentindo ali. Na interconsulta, eu acho que estreitar a relação médico-médico. Porque eu, ao invés de só escrever... Eu não consigo traduzir no escrito qual era aquela minha impressão. Eu acho a relação aqui dentro do hospital, ela é de papel. Ou não me expresso bem, ou vocês psiquiatras não se expressam no conteúdo, e aí me frustra nesse sentido. Porque, às vezes, até o psiquiatra não entende bem o porquê você está pedindo aquela interconsulta. A comunicação está ficando muito difícil, porque parece que hoje o pessoal não tem o hábito de conversar. Posso dizer que são poucos profissionais psiquiátricos que eu consigo conversar hoje em dia, por questão de afinidade ou de conhecer. Quando é mais contemporâneo, é mais fácil. Os mais novos a gente tem mais dificuldade de conversar. Eu acho que a gente deveria ter um feedback. Muitas vezes eu
ajudaria se chegasse e falasse: “eu estou te mandando por isso, isso e isso”. Muitas vezes, o auxílio que ele teria seria melhor se eu tivesse um contato maior, se a gente tivesse um contato melhor. Porque, assim, quando a gente passa um paciente para o psiquiatra, eu acho que tinha que ter um retorno, de “olha o seu paciente está assim porque...”. Eu sinto falta de comunicação entre profissionais e, talvez, entre os próprios pacientes, em grupos, para dar esse feedback para a gente.
81
QUADRO 6 – Exemplos de frases do grupo temático: relação com o interconsultor – cont.
Tema 2 Expectativas versus dissonâncias
A psiquiatria é uma especialidade que é transversal a todas as outras. Então, eu tenho uma opinião de um profissional totalmente isento da parte emocional para a gente poder fazer isso. O psiquiatra sendo uma pessoa calma, tranquila, que está ali para ajudar em tudo... E a interconsulta é uma divisão disso, é outro olhar que eu quero que outro profissional tenha, até para validar minha primeira impressão. “Nós vamos pedir para um psiquiatra vir aqui te avaliar porque ele vai poder te entender melhor?” Eu precisava, para atender esses casos de sofrimento psíquico, de um treinamento. Uma conversa com algum especialista. Eu queria que tivesse mais profissionais acessíveis. Hoje em dia, a população anda muito sofrida dessa parte emocional, da parte psicológica, e está faltando profissional. Dentro do possível, atender de uma forma mais rápida. O paciente cobra: “vai demorar, vai demorar.” Aí o psiquiatra chegou e falou: “pare de passar a mão na cabeça dessa moça”. Então, eu me senti desamparada porque achei que estava fazendo alguma coisa positiva para ela e o psiquiatra me deu uma bronca. A maior dificuldade que nós temos é em relação a encaminhamentos para fazer uma interconsulta, a demora do exame, a dificuldade da relação... Tem colega que, eu vou te contar, eu nem peço. A gente nem pede. Ele nunca tem vaga para interconsulta. Nunca! Então, fica difícil. Tem uns que você manda e o psiquiatra nem conversa com o paciente. Ele só dá remédio. Nossa! Tem dias que dá raiva a interconsulta. Você fala assim: “ah! mas para dar Sertralina, eu mesmo dava”.
As questões referentes ao tema “comunicação” foram apontadas pelos
participantes como um problema muito grave. Todos consideram que os médicos se
encontram presos em seus nichos e se distanciam uns dos outros cada vez mais.
82
Para a maioria dos participantes, a comunicação tem se dado apenas pelo
“papel”, o que tem dificultado a troca de informações. Diante desse contexto, Jacob
se diz frustrado, dado que, muitas vezes, não consegue entender o conteúdo das
respostas escritas pelos psiquiatras. Alguns participantes, além da dificuldade de
entender o “papel” enviado pelo interconsultor, também nem sempre conseguem
escrever para o colega o que estão sentindo e pensando sobre o paciente.
A ausência de contato e a perda do hábito de conversar são apontadas como
fatores que têm dificultado a troca de ideias e o feedback dos casos solicitados. A falta
do diálogo e de um contato maior entre os médicos interessados dificultam o auxílio
aos pacientes, uma vez que, no “papel” ou no “prontuário”, a comunicação é restrita e
fria. Desse modo, todos os participantes declararam que estreitar as relações, criando
uma aproximação que torne mais viável e produtiva a comunicação entre médico e
interconsultor, é um dos pontos fundamentais para melhorar a qualidade de
atendimento prestado.
Os entrevistados, ao discorrerem acerca da importância do contato nas
relações médico assistente com o médico interconsultor, evidenciam as questões
relativas ao próximo tema que diz respeito às “expectativas versus dissonâncias” na
relação com o interconsultor.
Rebeca entende a psiquiatria como uma especialidade com a possibilidade de
interagir e ter pontos de contato com todas as demais áreas e, por ser transversal,
torna-se muito exigida. Alguns participantes idealizam a figura do psiquiatra como
alguém acima de suspeitas e capaz de dominar suas emoções, supondo que esses
profissionais são pessoas calmas e, por isso, preparadas para ajudá-los nas situações
aflitivas. A expectativa de que o profissional interconsultor na área da psiquiatria será
capaz de entender o paciente e validar ou orientar melhor o diagnóstico e o tratamento
está presente no discurso dos participantes em geral, uma vez que se sentem pouco
preparados para atender casos que envolvem sofrimento psíquico, chegando a sugerir
a possibilidade de um treinamento.
Embora a função do interconsultor seja reconhecida pela maioria dos
participantes, a dificuldade de ter acesso ao médico psiquiatra é apontada por Samuel,
que considera haver uma carência de profissionais relativamente à demanda
existente. Moisés menciona a demora envolvida no processo de atendimento à
solicitação de interconsulta, o que Rebeca corrobora, afirmando que, às vezes, nem
efetua o pedido, já que nunca há vagas para a realização de uma avaliação. Também
83
Rute aponta esse problema, declarando que, quando solicita uma avaliação da
psiquiatria, acaba por ser cobrada pelos pacientes que questionam o tempo de
atendimento. Entende que uma maior rapidez do processo ajudaria a serenar os
ânimos.
Esther relata uma situação em que o interconsultor chamou sua atenção,
criticando a maneira como manejava o atendimento a certo paciente. Tal atitude a fez
sentir-se desamparada, pois acreditava estar fazendo algo de positivo, e a reação do
interconsultor levou-a a considerar a possibilidade de estar comprometendo o
tratamento.
Alguns participantes sentem suas expectativas frustradas por certos psiquiatras
que apenas medicam, deixando de manter um diálogo com os pacientes. Além disso,
percebe-se, no grupo entrevistado, a descrença em relação a alguns tratamentos
sugeridos pelo interconsultor, e a raiva provocada quando a interconsulta não
corresponde ao esperado.
8.4 Análise das entrevistas
A seguir apresentam-se três narrativas e respectivas análises. A escolha dos
relatos se deu a partir da identificação de três tendências relacionadas ao modo de
ser e agir dos médicos participantes deste estudo.
8.4.1 Sarah – a missionária
Sarah é médica, casada, mãe de dois filhos e atua no hospital há 29 anos. A
participante aparenta ser pessoa descontraída e de fácil trato. Está sempre cercada
por alunos cujas dúvidas procura sanar de modo solícito e a quem orienta com
simpatia e polidez. Esforçada e estudiosa, possui doutorado e é orientadora em
programa de pós-graduação. Nesse curso, procura transmitir a seus alunos a
importância de tratar com consideração todos os pacientes.
É nesse ambiente acadêmico que vou ao encontro de Sarah que, ao ver-me,
porta-se educadamente, informando aos alunos e residentes que se ausentaria para
uma entrevista. Observo, antes de nos encaminharmos ao ambiente reservado para
a entrevista, a expressão de carinho com que ela se dirige a seus alunos.
84
Sarah inicia sua narrativa apontando que tem feito do seu trabalho a sua vida,
que gosta muito do que faz e que trata os pacientes com muito carinho. Cada paciente
que a procura “é uma emoção” que muito a sensibiliza. Assim, dedica-se intensamente
à profissão, a ponto de sua família chegar a reclamar das sua dedicação ao trabalho.
Reconhece que, talvez, “exagere um pouco”, mas reitera:
Eu vou falar uma coisa para você: eu amo o que eu faço e, quanto mais difícil, mais estimulada eu fico a tentar trazer ele para onde eu quero. E a maneira como eu consigo abordar esses pacientes é com muito carinho.
Em suas atividades, procura ajudar ao máximo e percebe que as dificuldades
dos pacientes a afetam profundamente, como quando o paciente não tem meios de
adquirir as medicações. Nesses casos, incomodada, busca de todas as formas
conseguir os medicamentos, pois tem como meta “não deixar as pessoas saírem de
perto da gente pior do que chegaram”.
Relata que sempre se empenha ao máximo em dar uma solução para as
queixas que lhe são trazidas. A atenção e o carinho com que atende seus pacientes
são expressos também com abraços e beijos. Comenta que o afeto do paciente lhe
faz bem: “Eu tenho vaidade de ser querida. Eu gosto de ser querida e gosto de passar
isso para as pessoas.” Afirma que suas ações vêm “do coração” e se emociona ao
recordar o momento em que prestou ajuda a uma paciente que tentou suicídio:
Aí ela levantou e me deu um abraço. E ela me abraçou com tanta força, tipo assim, “me ajuda”, que eu tive uma emoção na hora que eu não sei te explicar a emoção. É uma emoção, uma vontade de chorar e, ao mesmo tempo, de alegria.
Entende que talvez seja assim com seus pacientes em razão de sua história de
vida. Nesse ponto, recorda a timidez na infância e uma consulta à qual foi com sua
mãe, em que foram tratadas com rispidez pelo médico. Isso a fez prometer a si mesma
e à mãe que se tornaria médica e jamais trataria os pacientes daquela forma.
Procura transmitir aos residentes a importância de uma atitude de respeito e
cuidado no atendimento aos pacientes e chama a atenção daqueles alunos que não
se portam assim. Conta o episódio de uma residente que respondeu mal a uma
senhora de idade e, após ter sido repreendida, tornou-se uma excelente residente e
85
médica. “Eu perguntei: ‘você gostaria se alguém fizesse isso com você?’ Ela disse:
‘lógico que não doutora.’ E eu disse: ‘então por que você fez com ela?’”
Em sua visão sobre trabalho, acredita ser fundamental dar o exemplo, apesar
das dificuldades vividas, como relata: “Embora já tenha acontecido de ser xingada,
paciência. Na hora eu fico chateada”. Apesar de dizer que é muito raro acontecer,
nem sempre consegue manter uma atitude cordata, como quando uma senhora idosa
reclamou da longa espera na fila de atendimento. A reação de Sarah foi responder
com rispidez, do que se arrependeu mais tarde: “Não devia ter falado assim, devia ter
perguntado se ela ‘tava com algum problema. Eu achei que eu não devia, eu fiz uma
coisa feia.”
Uma das situações que lhe causa estresse, por não obter resultados e não ter
o seu esforço reconhecido, é aquela em que o paciente não melhora e não segue as
orientações dadas.
Me angustia, também, você não ver resultado daquilo que você está tentando fazer com a maior boa vontade. Mas a vida é assim, você faz tanta coisa de boa vontade. É você falar, falar, falar e ele não cuidar e chegar toda vez todo atrapalhado de novo. Então você fala assim: “poxa” o que eu ‘tou fazendo?”. Eu não ‘tou sendo útil pra essa pessoa porque eu ‘tou falando, ‘tou falando e não ‘tá saindo nada. O não reconhecimento, talvez, do seu esforço, isso me deixa um pouco angustiada.
Diante de tais dificuldades, transparece o sentimento de impotência:
E tem as dificuldades de, às vezes, eu não conseguir fazer o melhor para o paciente, gerando uma sensação talvez de impotência, a sensação de que eu não dou conta. Eu não consigo ir além. Então é assim, a emoção que vem é: preciso de ajuda.
Sarah relata que, dada a sua sensibilidade, procurou suporte no meio religioso
e que a religião espírita a tem ajudado em sua profissão, como apoio e fonte de
inspiração. Passou a ver na religião um complemento que lhe possibilita manter acesa
da fé e acreditar no seu próprio potencial de fazer a diferença para seus pacientes.
Sarah comenta que, também procurando fazer o melhor, tem solicitado apoio de
colegas: “Porque a gente tem mania de querer resolver tudo. Então, isso leva àquela
certa angústia de não conseguir, às vezes, e realmente precisar dessa ajuda do
colega.”
86
Ela informa que lança mão do pedido de interconsulta para aquelas situações
de que não consegue “dar conta” e exemplifica: no ambulatório, os pacientes “que não
aceitam o tratamento, porque a gente não consegue sozinho”. Recorda-se de um caso
de bipolaridade em que o psiquiatra a auxiliou no tratamento, possibilitando um
resultado favorável e gerando uma grande emoção, a de ter podido ajudar.
Sarah finaliza a entrevista ressaltando a importância da afetividade:
Então, eu acho que às vezes eu peco um pouco por ser muito coração e emoção, mas, ao mesmo tempo, isso me traz muita alegria de poder transmitir isso e receber isso de volta dos pacientes. Eu saio do hospital todo dia cantando, feliz, alegre. Assim, é uma coisa que é como se eu fosse explodir de alegria. Missão cumprida. Terminei cansada, mas feliz. E, às vezes, cantando.
Análise da narrativa
Percebe-se, na narrativa de Sarah, a preocupação com a melhora dos
pacientes, a sua necessidade de ser útil e o quanto o afeto é importante em sua lida
diária. Trabalhar com afetuosidade não a protege das dificuldades que se apresentam
no relacionamento com os pacientes, já que, muitas vezes, o afeto não é
correspondido.
Sarah se mostra disposta a interagir e reconhece que tem a “vaidade de ser
querida” e que o “não reconhecimento a deixa angustiada”. À medida que as
dificuldades surgem e, em especial, quando não obtém o resultado esperado diante
do tratamento, mostra sinais de incômodo em relação ao paciente pouco colaborativo.
Nota-se que a culpa sentida pelo fato de o paciente não melhorar se transforma em
cobrança, o que provoca certa irritação. Como referia Balint (1988), a relação médico-
paciente se dará mediante as “ofertas” e exigências trazidas pelo paciente e as
respostas do médico. Nem sempre o paciente recebe as respostas esperadas o que
pode resultar em falta de reconhecimento e de gratidão pelo empenho do médico.
Embora se dedique intensamente ao seu trabalho, Sarah descreve momentos
em que se sente limitada. Mostra que lidar com frustrações lhe é penoso e, se as
promessas da infância funcionam como motivação, não trazem conforto diante dos
momentos em que não consegue ter os resultados que espera.
Ao lidar com a impotência diante do paciente, Sarah se vê num dilema entre o
amor e o ódio, pois se, em um primeiro momento, ambos se veem identificados na
busca do ideal de cura, o fracasso do tratamento ou a decepção com o desenrolar do
87
processo, levam ao desmoronamento da identificação ou, como Jacob (2011) nomeia,
a uma desidentificação. Com isso, vêm à tona muitas das projeções que ambos
realizaram inconscientemente: “ele ou ela não se comporta, age ou sente como
imaginávamos” (JACOB, 2011, p. 38).
Melo Filho (1983) aponta que o médico foi doutrinado por seus mestres a
idealizar a medicina. O médico seria aquele que realiza atos humanitários e se
sacrifica em nome de seus pacientes. No entanto, com a experiência concreta da
profissão, a idealização cai por terra, uma vez que o médico tem sido muito
questionado e desafiado por seus pacientes. Sarah também tende a viver segundo
esse ideal do médico humanitário. Nela ainda parece existir a criança que tomou a
decisão de ser uma profissional em tudo diferente daquele médico que a maltratou.
Desse modo, como que relembra os afetos vividos no passado, e se esforça por
respeitar e amar seus pacientes. O reconhecimento que espera obter com isso talvez
seja a tentativa de compensar o sofrimento por que passou e as suas expectativas
não atendidas, agora projetadas em seus pacientes. Quando o carinho que oferece
não é retribuído, irrompe em Sarah um lampejo de impaciência e de agressividade
contida. Um conflito se instala. Sarah se sente afetada, inquieta e insatisfeita consigo
e com o paciente, e tem que lidar com a falência de seu ideal.
Naqueles casos difíceis, quando a sensação de impotência se faz presente,
Sarah lança mão de um pedido velado de ajuda, solicitando a interconsulta. O
interconsultor poderá, nesse caso, desempenhar o papel de mediador da relação
médico-paciente e, na medida em que promove o acolhimento do paciente,
igualmente auxiliará o médico a entender suas emoções, melhorando a qualidade do
atendimento.
De outra parte, a religiosidade é, para Sarah, fonte de alívio e suporte para
essas situações estressantes, tendo contribuído para que ela não desista de suas
convicções e do seu empenho em ajudar aqueles que a procuram. Além disso, a
experiência religiosa possivelmente possibilitou que Sarah passasse a confiar mais
em sua intuição, contando com o auxílio da fé para alcançar insights dos quais tem
lançado mão nas circunstâncias em que se vê com dificuldades na elaboração de um
diagnóstico ou na lida com pacientes difíceis. Aparentemente, a religião funciona
como estímulo para que continue a procurar ser útil e cumprir seu papel de cuidadora,
mantendo acesa a chama da promessa, feita a si mesma e à sua mãe, de ajudar
sempre, pois “como o corpo carece do alimento, e não de um alimento qualquer, mas
88
daquele que apetece, assim a psique precisa do sentido do seu ser” (JUNG,
1954/2016g, par.476). Sarah, ao buscar a religião, teria encontrado um sentido na vida
– tudo o que faz passou a ter uma razão e estar sob a proteção divina. Desse modo,
sente-se fortalecida para suportar os reveses da profissão.
8.4.2 Esther – a poderosa
Esther é médica, casada, mãe de um filho e atua no hospital de clínicas há mais
de 22 anos. É uma pessoa expansiva e alegre. Muito ativa, fala o que pensa com
naturalidade, expondo suas emoções. Ao encontrá-la em seu ambiente de trabalho,
percebe-se o quanto é carismática, espontânea e de fácil acesso. Fica-se com a
impressão de estar diante de uma grande mãe com habilidade comunicativa e
imensamente afetiva com os que a cercam. Foi com essa mesma afetuosidade que
recebeu o pesquisador, mostrando-se animada por participar da pesquisa.
É em um clima aprazível que Esther inicia sua narrativa, mencionando que sua
atividade no hospital se restringe à área da medicina que lida com situações de alto
risco. Descreve que grande parte dos pacientes que procuram o serviço é muito
carente e não possui estrutura familiar. Pessoas que buscam no hospital afeto e
cuidados básicos que não encontram no contexto doméstico. Essas circunstâncias
geram um envolvimento muito grande da equipe, tanto em relação às questões
clínicas quanto no que diz respeito às demandas sociais dos pacientes. Esther
enfatiza que isso se torna um grande desafio, pois ao estabelecerem um vínculo com
o profissional que os acolhe, os pacientes revelam uma carência emocional que os
faz projetarem no médico a capacidade de solucionar os problemas que enfrentam:
[....] E projeta-se tudo, tanto as alegrias quanto as tristezas, e cabe a você ter que lidar com isso, o que não é fácil. Porque fica difícil, é preciso acolher, mas também é preciso ser dura.
A princípio, Esther relata que essa seria a maior dificuldade que enfrenta como
médica, ou seja, saber dosar o grau de envolvimento. Para ela, “não há como não
criar uma relação com o paciente”, pois os vínculos afetivos estabelecidos a levam a
“sofrer junto” com aqueles a quem atende.
Nesse sentido, Esther relata que uma das emoções que mais a afeta é a da
impotência. Pois existem casos em que:
89
Por mais que se tente e por mais que se dedique, ainda esbarramos em deficiências como a falta de recursos externos, de apoio familiar e de recursos internos do próprio paciente e, por isso, me sinto realmente deprimida e chateada.
Para Esther, situações como essas têm se acumulado ao longo dos anos,
gerando um certo cansaço e momentos de tristeza. Ela pontua: “é muito triste alguém
passar pela sua vida e você fazer tão pouco.”
Ao relembrar sua experiência profissional passada, Esther refere que já
enfrentou diversas frustrações, como quando ocorrem óbitos fetais. São situações em
que diz carregar o sentimento para casa: “e são dois a três dias de choro, pois eu não
consigo me livrar [da tristeza] e fingir que está tudo bem, por mais que tenha a certeza
de ter feito o meu melhor.” Outras frustrações surgem ao lidar com pacientes em
sofrimento psíquico, principalmente aqueles que, de acordo com ela, se fecham e não
querem escutar, pois tais pacientes não se conectam: “eles são invioláveis, estão
dentro dos casulos e não querem saber de nada.” Esther denomina tais pessoas de
“impenetráveis” e pondera que, apesar de saber que não possuem recursos internos,
algumas vezes sente que precisa se posicionar, “mas são discursos vazios”,
particularmente no caso de usuários de drogas. São pacientes que chegam para
Esther e dizem: “eu acabei de fumar um crack” ou “fumei a noite inteira”. Tais casos
acabam sendo muito frustrantes para ela, por não conseguir obter resultados
concretos nem convencer o paciente da inadequação do comportamento
apresentado, por mais que tente. De outro parte, Esther explica que o ato de falar com
os usuários traz algum alívio. Todavia, “às vezes, eu sinto muita raiva de algumas
situações, pois é difícil entender que o paciente não pensa nas consequências do seu
ato”.
Contudo, se existem pacientes que não se cuidam, há aqueles que transferem
toda a reponsabilidade para o médico, declara Esther. São pacientes que chegam e
dizem: “Eu estou aqui porque você é a melhor. Eu estou aqui porque sei que a senhora
vai dar conta do meu caso”. Segundo ela, tais elogios são muito comuns e exigem
“muito cuidado”, principalmente com fantasias inabaláveis de que tudo vai dar certo.
Em momentos assim, procura dizer sempre que irá “tentar fazer o melhor”, pois, com
a idade e a experiência, aprendeu que não consegue resolver todas as situações.
Essa responsabilidade é acrescida pela procura dos colegas que buscam nela
um apoio diante de casos clínicos de difícil resolução. Acredita que, por ser mais
90
experiente, é comum aos médicos mais jovens abordá-la e perguntarem: “doutora o
que eu faço?”. Talvez esse seja o motivo pelo qual se cobre tanto: “eu tenho que estar
sempre estudando. Eu tenho que estar sempre sabendo o que podia ter feito de
melhor, o que deveria ter feito, o que tem de novidade para a gente melhorar”.
Embora se sinta mais madura, Esther encara como fundamental que se
desenvolva algum cuidado com “as emoções do médico”, sugerindo que a psiquiatria
realize reuniões que possibilitem aos médicos relatar suas dificuldades “com a relação
profissional”. Afirma que seria bom ter um ambiente em que fosse possível discutir
sobre o que se sente, as frustações e os caminhos para diminuir o estresse da vida
médica, entendendo que tais demandas estão sendo negligenciadas e até mesmo
esquecidas.
Considera que tem procurado, com o tempo, dimensionar melhor a demanda
de suas atividades e tomado muito cuidado para não se sentir presa às emoções
trazidas pelos pacientes, relatando: “quando eu me sinto afetada emocionalmente, eu
sempre chamo alguém para me ajudar. Eu penso se eu estou tendo a melhor conduta
para a paciente ou se é meu emocional agindo [...]”. E, em razão disso, solicita sempre
o apoio do interconsultor, uma vez que, para ela, a interconsulta é um modo de
partilhar, “outro olhar sobre as necessidades do paciente”, já que, às vezes, se sente
“andando numa corda bamba”. Declara que, na profissão médica, na qual o limite
entre a vida e a morte são separados por uma linha tênue, vive-se em constante
estresse.
Nesses momentos, sinto que quem está tentando equilibrar as emoções sou eu e crio a expectativa de que a presença de um colega isento de emoção sobre o caso possa me trazer o alívio necessário, pelo simples fato de poder me chamar e dizer “vamos conversar, olha o que você está fazendo”. Afinal somos humanos e, como tal, precisamos ser amparados.
Esther enfatiza que é preciso ter com quem dividir os problemas para que se
esteja apto a “entender os sentimentos que surgem na vida profissional e como lidar
com eles da melhor forma”, notando o vazio que se estabelece com o fato de não
existir alguém para conversar com os médicos e os ajudar a falar de suas emoções.
91
Análise da Narrativa
Nota-se, na narrativa de Esther, o quanto ela se coloca disponível para resolver
as questões que lhe são trazidas, tanto por seus pacientes quanto por seus alunos,
com os quais acaba construindo um vínculo afetivo. Tende a se sentir responsável por
todos, o que exige que lide com uma carga emocional adicional.
Esther percebe que muitos pacientes lhe conferem o poder de cura, colocando-
a na posição de heroína que tudo suporta. Ela se sensibiliza diante das exigências de
uma atuação heroica, em alguns vezes se deixando contaminar pela imagem sobre
ela projetada e experimentando uma sensação de onipotência que está associada ao
desejo de nunca decepcionar. Todavia, em várias ocasiões, sente-se cansada em
razão de perceber ter sido colocada em seu colo toda a responsabilidade do
tratamento. A dificuldade em atender a todas as exigências que lhe são feitas, acaba
por gerar o sentimento de impotência, ao qual se seguem angústia e decepção
consigo mesma. Nesses momentos, entrega-se à busca de informações, como que
para recuperar a ilusão de onipotência, de estar sempre sabendo. De modo análogo,
ao se sentir solicitada, procura esforçar-se para ser mais competente, cobrando-se
não cometer erros ou falhas. Quando algo foge do esperado, tem que lidar com a
frustração por dias.
Em seus contatos com os pacientes, Esther percebe que a criação de vínculos
se torna inevitável. A dor dos pacientes passa a ser sua dor. Sente-se responsável e
frustrada perante aqueles casos que fogem à sua capacidade técnica. Quando isso
acontece, questiona severamente sua própria capacidade e competência. À medida
que esses questionamentos se exacerbam, ameaçando a ilusão de onipotência, surge
uma raiva contida por não ter sido ouvida nem ter tido suas orientações seguidas.
Embora acredite ter feito o melhor, percebe que as emoções a contagiaram deixando
uma nódoa em seu coração, e precisa de dias para elaborar o descontentamento.
Ao se sentir tocada e desafiada por aqueles pacientes que considera
“impenetráveis”, busca energias internas e se diz “empoderada” para orientar o
paciente a adotar caminhos mais saudáveis. Sua reação, nessas circunstâncias,
parece lhe trazer algum alívio, ainda que, em geral, constitua-se de “discursos vazios”,
ou seja, não leva à solução do problema. Entre a impotência e a onipotência, Esther
se esforça para manejar suas emoções ao ter que conviver com situações em que
seu saber é colocado em prova.
92
Os frequentes elogios dos pacientes e o olhar de respeito de seus colegas
refletem, para ela, o grau de expectativa que a cerca, e isso a leva a se exigir mais e
mais em termos de eficiência e conhecimentos. Todavia, acredita que, com o tempo
e a maturidade, conseguiu se dar conta de que há limites para sua competência e que
nem tudo é curável. Assim, Esther dá-se o direito de pedir ajuda, pois sente a
necessidade de aprender a lidar com suas emoções, particularmente com a frustação
de nem sempre corresponder às exigências de seus alunos e pacientes. Seu olhar
para o interconsultor é de expectativa e cobrança, pois gostaria que fosse possível
criar um ambiente em que pudessem conversar e trocar ideias e no qual ela viesse a
aprender a lidar com o conflito que a constrange. Implicitamente, Esther expressa o
desejo de identificar as suas emoções e, ao descortiná-las, libertar-se do seu jugo e
conseguir ser mais útil para seus pacientes. Como adverte Byington (2017, p. 61),
“somente a elaboração emocional da verdade, escondida pelas defesas, por mais
dolorosa que seja, é capaz de libertar.”
8.4.2 Hazael – o pensador
Hazael é casado, pai de três filhos e atua no hospital escola há mais de 20
anos. É um médico extremamente ocupado, de olhar sério e postura circunspecta.
Apresenta-se solícito para a entrevista, algo acanhado e introspectivo. Inicia nosso
contato com reticências, escolhendo as palavras cautelosamente. Informa que,
atualmente, divide seu tempo no serviço médico em duas frentes de trabalho, ora
realizando avaliações pré-operatórias, ora lidando com pacientes graves. Relata que
seu trabalho é bastante técnico, com normas e rotinas bem estruturadas, que o
ajudam a aliviar a sobrecarga diária.
Assim, Hazael entende que, em sua atividade, é importante a padronização do
atendimento, para facilitar a tomada de decisão sobre a conduta a ser seguida. Mostra,
todavia, certa ambiguidade ao afirmar que tem “dificuldades de perceber sentimentos
e emoções, falando nesse aspecto, porque tem a rotina que é muito tranquila. A
maioria do tempo passa e você vai se estruturando”. Considera, ainda, com
preocupação, as limitações estruturais do hospital e do país diante do “aumento das
tecnologias e possibilidades de tratamento”, justificando que "isso acaba gerando
muita dificuldade em lidar com as emoções”.
93
Por trabalhar em um “ambiente tenso”, percebe a dificuldade da equipe diante
de pacientes graves e se diz decepcionado com a falta de apoio da instituição,
principalmente para ajudá-los a lidar com a carga emocional do serviço. Em alguns
momentos, chega a declarar que “a coisa é tão feia que pergunto: ‘meu Deus, onde
estou?’, tamanha a sobrecarga emocional.”
De modo calmo e reflexivo, narra situações de constrangimento e dificuldades
no campo emocional, exemplificando que, certa feita, ao dar a notícia de morte
encefálica para a família do paciente, percebeu sua dificuldade de “ajustar o
sentimento, a emoção”, em uma situação para a qual não se sentia preparado.
Relata dois momentos distintos na lida com os pacientes graves. Em um
primeiro momento, os pacientes se encontram em coma e entubados, a maioria
“inconsciente pela gravidade da doença em si”. Nessas circunstâncias, não se exige
tanta “interação com o paciente”. Num segundo momento, à medida que o enfermo
desperta, passa a ser necessária uma maior interação entre a equipe, o paciente e a
família, como registra:
[...] o paciente, quando está mais consciente e começa a ter muita demanda, dificulta para a equipe e também com a família, porque isso acaba sendo falado para família. Às vezes [o paciente está] em uma situação de delírio e começa a criar uma situação difícil. Uma coisa que gera muita angústia é a relação com a família.
Ao particularizar os atendimentos, Hazael diz que sempre se questiona o que
“poderia ter feito a mais” para melhorar a “assistência médica que vai além” da
“condição técnica”. Alega que sempre procura suprir suas deficiências com o estudo
da literatura médica, na tentativa de superar suas limitações e dar o seu melhor.
O fato de ter dificuldades em “identificar seus sentimentos e emoções” o
incomoda, a ponto de achar que é uma característica sua “sentir que não sente”.
Apesar de perceber sua dificuldade em expressar e lidar com suas emoções, entende
que nem sempre é ruim ter essa característica, uma vez que é muito difícil suportar a
carga, explicitando: “Porque você acaba criando um mecanismo automático de que
‘isso não tem tanta importância porque tem tanto paciente grave, familiares tão graves’
[...] E você acaba minimizando algumas coisas.”
Hazael relata que as situações de estresse se tornam tão comuns,
transformam-se em rotina, o que o leva a colocar as emoções “debaixo do tapete”.
Com isso, torna-se mais difícil perceber o que se sente: “a gente incorpora isso de
94
uma maneira que nem percebe mais”. De outro lado, Hazael nota que é muito difícil
esquecer os fatos que ocorreram no dia a dia: “às vezes, estou em casa e estou
lembrando alguma situação que aconteceu, alguma fala, alguma coisa que poderia ter
sido feita diferente”.
Conta que se sente sugado durante o tempo em que está no hospital, chegando
em casa muito exausto. Isso tem feito com que se vigie mais durante as consultas, no
intuito de se proteger. Comenta que, diante de pacientes difíceis ou que em sofrimento
psíquico, percebe que “muitas vezes se isola. Um certo isolamento, distanciamento,
dependendo do que a gente sente”, procurando assim, entender o que está sentindo
e evitar qualquer cansaço excessivo.
De maneira geral, sua relação com os pacientes é boa, pois se preocupa em
fazer o melhor, mas confessa sentir-se incomodado diante de pacientes mais
problemáticos: “saber lidar com essa questão das emoções no momento, ali, de uma
forma técnica, eu não acho tão simples.” Nesse sentido, considera ser importante que
exista um programa de treinamento que permita uma maior interação e troca de
experiências entre os médicos, os quais, expondo suas emoções, poderiam “ver que
não é tão diferente, ou ver as diferenças”. Acredita que um grupo de apoio
possibilitaria o compartilhamento da angústia experimentada na relação com os
pacientes, promovendo uma sensação de alívio por não se sentir mais sozinho.
Hazael afirma que parte desse apoio poderia ser oferecido pelo psiquiatra que
faz a interconsulta. Acredita que, com a melhora da comunicação entre os dois
profissionais – o médico solicitante e o interconsultor – o médico, pelo simples fato de
ter alguém para falar de suas angústias e expor suas dúvidas, já obteria algum alívio.
No entanto, percebe que esse encontro não é fácil e diz que “são poucos os
profissionais psiquiatras com quem eu consigo conversar hoje em dia, seja por
afinidade ou confiança, e poder falar com naturalidade sobre as questões que me
afligem”. Embora saiba que não é possível, atualmente, tratar pacientes de forma
isolada, uma vez que a cada dia a “interdependência, o compartilhamento, a
comunicação, essa troca de experiência, tende a facilitar o trabalho e vem a
possibilitar uma melhor maneira de aprender a lidar com a emoção nas relações
interpessoais e com os pacientes”.
95
Análise da narrativa
Evidencia-se, na narrativa de Hazael, o interesse em ser útil e em melhorar a
assistência prestada como médico. Para tal, tenta manter o controle e seguir padrões
que o ajudem a lidar com as demandas trazidas pelos pacientes. Admite que uma das
maiores dificuldades que enfrenta diz respeito à expressão e compreensão de suas
emoções. Tal percepção o leva a enfatizar a importância de aprender a lidar com sua
afetividade, a fim de melhorar a relação médico-paciente.
Ao narrar suas dificuldades, demostra o desejo de ajustar ou ter um melhor
controle de suas emoções diante de situações que lhe causam desassossego.
Entretanto, a vivência estressante do seu dia a dia o leva a questionar também se um
certo distanciamento não seria a melhor maneira de encontrar alívio e se proteger de
quadros clínicos que envolvem uma intensa carga emocional e o fazem sentir-se
“sugado” e esgotado.
Tempos atrás, eu percebi que chegava em casa mais cansado, em um dia mais exaustivo, em alguma consulta eu saia sugado... Eu tento entender o que está me causando aquilo, qual sentimento está me provocando aquilo.
A lida com o sofrimento tem gerado momentos de conflitos, como no caso em
que luta pela melhora dos enfermos que se encontram em coma, embora saiba que,
ao despertar, eles exigirão um esforço maior, seu e da equipe, para lidar com a
demanda emocional tanto do paciente quanto da família.
Identifica que, muitas vezes, tem levado suas angústias em relação ao que
vivencia no hospital para sua casa, questionando o que fez e refletindo sobre os limites
de sua atuação. Nesses momentos, sente-se angustiado entre o que acredita e o que
de fato pode realizar. Entram, então, em ação mecanismos de defesa, como em uma
tentativa de se eximir do peso da culpa. Assim, por exemplo, atribui à instituição e à
deficiência da estrutura organizacional a responsabilidade pelos obstáculos que o
impedem de lidar mais adequadamente com situações-limite de cunho emocional. A
instituição, em nível simbólico, parece ter se tornado uma metáfora para os limites
internos de Hazael, ainda que não se possam ignorar os problemas reais existentes.
Na tentativa de evitar a dor e os episódios de maior sofrimento, Hazael tem
buscado se isolar e construir uma barreira que o proteja das emoções. Todavia, isso
96
lhe traz desconforto, uma vez que, desse modo, fica privado de um contato mais
humanizado, contato que acha fundamental para praticar um atendimento médico de
qualidade e não ficar restrito à técnica.
Por mais que tente ter uma visão compreensiva e menos julgadora, nota-se
que, em alguns momentos de extremo estresse, lança mão da ironia e do cinismo
como defesas, questionando a si próprio e ao ambiente de trabalho, como quando diz
“meu Deus! onde estou?”. E, diante da ambivalência entre a vontade de colocar suas
emoções debaixo do tapete e o desejo de identificá-las, Hazael considera o quanto
seria importante um treinamento que o auxilie a entender um pouco mais a dinâmica
emocional em que se vê envolvido nas relações dentro do meio hospitalar. Pontua
que sua “maior dificuldade é em relação as emoções: a de expressar, falar, de tentar
identificar”, acreditando que consegue até percebê-las, mas não lidar com elas.
Conclui, assim, que “talvez seja onde a gente precisaria de um treinamento”.
Angustiado com situações de caráter protocolar, isto é, submetidas a um
número excessivo de regras, mostra-se disposto a pedir o apoio dos colegas
psiquiatras na esperança de que não se prendam às rotinas do hospital, e que a
relação médico-médico, fundamentada na confiança, possa constituir-se no apoio de
que necessita para conseguir entender suas emoções. Enfim, o relato de Hazael deixa
clara a necessidade de o médico compreender melhor aquilo que sente. Para tanto, o
participante sugere que um possível encontro com outros profissionais, em que possa
estar confortável para falar sobre esses temas, faria com que se sentisse mais aliviado
e protegido.
97
9 DISCUSSÃO
O presente capítulo tem por objetivo discutir os resultados a partir da análise
realizada, relacionando-os com os pressupostos expostos nos capítulos teóricos e
inserindo novas leituras que foram consideradas pertinentes para a compreensão da
solicitação da interconsulta psiquiátrica pelo médico não psiquiatra.
A pesquisa realizada identificou pontos centrais que se entrelaçam e
possibilitam o melhor entendimento da atuação do médico no hospital geral e de seu
relacionamento com os pacientes e com o interconsultor. A seguir, apresentam-se
para discussão três tópicos, cada um correspondente a uma ideia central da análise.
O médico diante das emoções
O contexto do hospital geral, diferentemente da atuação em consultório, exige
que o médico, no exercício de suas atividades, estabeleça relacionamentos de
diversas ordens. O profissional não terá que se relacionar apenas com seus pacientes,
mas também com os familiares, a equipe e a dinâmica de funcionamento da
instituição. Se, como aponta Kast (2017), a emoção viabiliza a regulação de todo
relacionamento humano, devemos esperar que relações tão diversas mobilizem
diferentes afetos e, eventualmente, conflitos de várias naturezas. As entrevistas
permitiram compreender alguns dos aspectos afetivos do exercício da profissão
médica no ambiente do hospital geral, as estratégias utilizadas para o manejo dos
relacionamentos dentro da instituição e o papel atual e esperado do interconsultor
psiquiatra.
Para os participantes deste estudo, a escolha da profissão derivou do desejo
de curar e ajudar, motivação essa também mencionada nos estudos de Zaher (1999)
e Millan et al. (1999). Vale notar, entretanto, que o exercício da medicina aparece
revestido da aura de uma missão, um propósito imperativo, uma entrega heroica que
os leva, muitas vezes, a querer resolver o que não lhes cabe diretamente Em razão
da carga de afetos que transparece nos relatos obtidos, é possível supor, do ponto de
vista da psicologia analítica, que se possa simbolizar o arquétipo do “curador ferido”
(GUGGENBÜHL-CRAIG, 2004), aquele que, ao cuidar, também cicatriza as próprias
feridas.
98
Os entrevistados declararam sentir-se estimulados e alegres diante da melhora
de seus pacientes. O sentimento de realização profissional é, todavia, algumas vezes,
ameaçado pelo conflito que existe entre a vontade de oferecer um bom atendimento
médico e a insegurança e o estresse que decorrem das condições de trabalho
vigentes.
Dentre os fatores promotores de insegurança, os médicos apontaram a
“judicialização” da medicina. De fato, Vasconcelos (2012) indica que o receio de ser
acusado em processos por falha médica tem resultado no recrudescimento da assim
chamada “medicina defensiva”. Minossi e Silva (2012) pontuam que o
encaminhamento de pacientes a outros especialistas passou a ser uma prática
comum. Assim, diante de queixas que não são de sua área de atuação, ou quando há
incerteza quanto ao diagnóstico e/ou tratamento recomendado, os médicos evitam se
comprometer e solicitam avaliação especializada, sobrecarregando os serviços
médicos e, em certa medida, afetando a relação médico-paciente.
A constante sobrecarga profissional foi um dos pontos relacionados à prática
da medicina no hospital geral e apontados como fator de angústia e estresse. A
excessiva jornada de trabalho e a necessidade de atualização constante foram
mencionadas pelos participantes como elementos que contribuem para que os
médicos se sintam, frequentemente, exaustos. O trabalho extenuante tem sido
apontado por autores (EDELWICH; BRODSKY, 1980; SHANAFELT, 2003;
PECKHAN, 2015) como fonte de estresse emocional caracterizado pela falta de
energia e de entusiasmo associada ao sentimento de frustação e tensão, estados
esses que impactam negativamente a qualidade do atendimento aos pacientes.
Os entrevistados declararam que, diante da grande demanda existente,
enfrentam alguns dissabores relacionados à instituição e à população atendida, tais
como a burocracia que trava o atendimento, a morosidade em conseguir os recursos
que possibilitam o diagnóstico e o tratamento, a dificuldade em lidar com a gestão
hospitalar, as condições sociais relacionadas à carência de recursos básicos, a falta
de um ambiente acolhedor que permita a troca de informações e o favorecimento de
estados propícios de relacionamentos. Confirma-se o trabalho de Botega, quando este
identifica que, quando o médico tem sua capacidade de curar abalada, sente-se
atingido em sua autoestima e pode acusar a impotência advinda da “instituição” ou do
“paciente”, defendendo-se de uma frustação (BOTEGA, 1989).
99
Em geral, os participantes mencionaram experimentar situações de ansiedade
e dificuldade em lidar com emoções. O modo como foi relatado o relacionamento que
mantêm com os pacientes deu provas de que esse não é um tema fácil. Mesmo que,
no decorrer da entrevista, os médicos tenham aparentado estar mais confortáveis, foi
com hesitação que abordaram, inicialmente, o assunto.
Não parece ser o caso de os entrevistados não reconhecerem que os
sentimentos são parte do relacionamento médico-paciente. Ao contrário, muitos têm
clareza das emoções em jogo, sendo elas fonte ora de satisfação, ora de desconforto
ou desagrado. Consideram, todavia, ser importante exercer o devido controle sobre o
que sentem, de modo a não comprometer o atendimento e manter a objetividade
requerida na situação. Alguns profissionais indicaram que, com o tempo de profissão,
adquiriram uma certa maturidade de modo a serem menos influenciados pelas
emoções. Em muitos casos, isso significa ter condições de estabelecer a escuta
adequada à compreensão das necessidades apresentadas pelos pacientes sem
perder a objetividade requerida para a tomada de decisões sobre a melhor conduta a
seguir.
Dentre as emoções agradáveis reconhecidas pelos participantes, estão
aquelas que surgem no atendimento a pacientes que se mostram afetuosos e gratos,
levando o médico a se sentir querido e valorizado. De outro lado, as emoções mais
desagradáveis e penosas decorrem da sensação de impotência e frustração diante
de casos mais difíceis que não respondem ao tratamento preconizado ou de pacientes
que não reconhecem nem valorizam o esforço realizado pelo médico, e daqueles que
se fecham e não contribuem para que uma relação efetiva se estabeleça.
Contudo, foram observados casos em que a estratégia de controle utilizada
implica o que pode ser entendido como repressão ou negação dos afetos vividos. Tal
observação corrobora as conclusões de Castelhano e Wahba (2019), que também
identificaram uma atitude constante no meio médico de evitar entrar em contato com
as emoções, na tentativa de preservar uma postura “profissional” e “objetiva” durante
o diagnóstico e tratamento. Vale lembrar que a tentativa de negar o que é sentido não
leva ao desaparecimento dos afetos, os quais permanecem, ainda que de maneira
inconsciente, influenciando percepções e comportamentos. Pode-se levantar,
inclusive, a hipótese de que o esforço empreendido para manter o afastamento, que
consideram ser uma proteção necessária contra o contágio emocional, contribuiria,
em parte, para a exaustão que muitos médicos experimentam. Como afirma Jung
100
(1935/2016g), as emoções, elemento essencial de todo relacionamento humano,
podem ser contagiosas e de difícil manejo.
Outra circunstância que torna ainda mais complexa a experiência emocional
vivida pelo médico diante do paciente diz respeito ao processo transferencial. Para
Jung (1957/1987), ao se relacionarem, médico e paciente o fazem como pessoas
inteiras, ou seja, não apenas a relação se dá na dimensão consciente, mas envolve,
também, aspectos inconscientes. Em razão das posições que ambos ocupam –
aquele que pode oferecer alívio e outro que está fragilizado – a projeção de conteúdos
tende a se tornar inevitável, despertando emoções por vezes intensas. A díade vê-se,
assim, envolvida em uma troca afetiva, sobre a qual o médico não consegue exercer
o controle de que gostaria. Balint (1988) vê a dinâmica relacional médico-paciente
como o resultado do compromisso entre as “ofertas” e exigências dos pacientes e as
respostas dos médicos. É importante, todavia, enfatizar que nem as exigências dos
pacientes nem as respostas do médico são inteiramente conscientes. As emoções
experimentadas pelo profissional, na contratransferência, quando não submetidas a
algum tipo de reflexão, contribuiriam para que se criem situações de conflito, e
levariam o médico a se sentir como que submetido a uma força desconhecida que
impacta sua capacidade de lidar com o paciente e/ou tomar as decisões que, em um
estado menos afetado, consideraria como as mais adequadas.
Outro aspecto a ser considerado diz respeito à necessidade de controle que
transparece nos relatos dos entrevistados, não apenas em relação às suas próprias
emoções, mas também em relação ao próprio paciente. Assim, são fonte de satisfação
aqueles pacientes que se mostram afetuosos e gratos, enquanto na outra ponta do
espectro existem os que se mostram “difíceis” e “blindados”. Tal atitude, que deixa
implícita uma “vaga, mas quase inabalável ideia” (discurso de participantes) sobre a
maneira com que o paciente tem que se comportar quando doente, denota em parte
aquilo que Balint (1988) chamou de função apostólica do médico. Do ponto de vista
da psicologia analítica, é possível supor que, quando o médico, sem se dar conta,
assim interpreta a realidade do seu ofício, estaria unilateralmente identificado com
um dos polos da função simbólica arquetípica do “curador ferido”, negando sua própria
vulnerabilidade. De um lado, tal identificação contribui para reforçar um complexo de
poder, que pode mesmo vir a ser alimentado pelos conteúdos projetados pelo paciente
na transferência. De outra parte, a negação da vulnerabilidade promove uma cobrança
101
interna intensa e estressante, exigindo sacrifícios, tolerância às inúmeras frustrações
e dedicação exaustiva à profissão.
Em tese, quando o médico deixa de se atentar para sua ferida, impede a
conscientização dos próprios complexos, conscientização essa que facilitaria que ele
se colocasse no lugar dos seus pacientes e adotasse uma atitude mais humilde. Com
isso, possivelmente, novas perspectivas sobre o tratamento poderiam surgir.
Deve-se levar, em conta, ainda, que os pacientes, na atualidade, não aceitam
a posição de submissos e procuram informações acerca de sua doença, isto é, relutam
em atribuir ao médico a onipotência que talvez tenha sido, no passado, uma
expectativa associada a esse profissional.
Os motivos para a interconsulta
Segundo Smaira e Kerr-Corrêa (2009), dentre as atividades da psiquiatria no
hospital geral encontra-se a interconsulta, que consiste basicamente na presença de
um médico psiquiatra em uma unidade ou serviço médico geral atendendo à
solicitação de um colega de outra especialidade para seu paciente. A interconsulta é
vista como uma atividade interprofissional e interdisciplinar, que possibilita ao
profissional interconsultor transitar em vários setores do hospital respondendo aos
mais diversos pedidos de interconsulta. Esse é um entendimento que também surge
nos depoimentos dos participantes deste estudo.
Em razão de possuir trânsito livre em várias clínicas e poder agir de forma
autônoma, o interconsultor, de acordo com Ferrari et al. (1979), tem a possibilidade
de ser um observador participante e de realizar uma “radiografia institucional”, que
revela aspectos não explícitos do funcionamento da organização. A leitura analítica
das circunstâncias que desencadearam a interconsulta permite o entendimento do
que está acontecendo em torno do paciente, facilitando uma abordagem
biopsicossocial das causas do adoecimento e das características do atendimento
prestado. Essas possibilidades, todavia, parecem não estar claramente delineadas
para os entrevistados nesta pesquisa.
Os médicos participantes nem sempre conseguiram indicar qual seria o
momento e a situação adequada para solicitar a interconsulta, nem até que ponto as
relações acima mencionadas mereceriam ser melhor investigadas. O baixo nível de
encaminhamento é referido por Fraguas, Lucia e Martins (2011) quando apontam que,
102
apesar 10 a 30% dos pacientes internados em hospital apresentarem algum
transtorno psiquiátrico, apenas 1,5% dos casos são encaminhados à psiquiatria.
Aparentemente, os participantes com mais frequência lançam mão da
interconsulta, considerando-a de suma importância, naqueles casos clínicos para os
quais não se sentem tecnicamente preparados. Isso acontece, por exemplo, perante
a necessidade de um diagnóstico diferencial entre quadros de etiologia orgânica e
aqueles em que os conteúdos psicológicos parecem predominar; a não melhora de
pacientes crônicos a despeito do tratamento administrado; e pacientes com distúrbios
de comportamento que mobilizam toda a equipe. Um caso que se sobressai, dentre
os relatados, é o de um dos profissionais entrevistados que, ao fazer o
encaminhamento, na verdade, teve como finalidade obter a chancela do interconsultor
para o diagnóstico que fizera inicialmente. Notou-se na presente pesquisa que a
solicitação da interconsulta pode ocorrer para aplacar a insegurança do médico e
como meio de dividir a responsabilidade por eventual erro de avaliação, configurando
aquilo que Balint (1988) intitulou de conluio do anonimato.
Todos os entrevistados apontaram as dificuldades envolvidas no atendimento
a pacientes com distúrbios psicológicos e transtornos mentais (transtorno de humor e
de ansiedade e psicoses); doenças crônicas, psicossomáticas ou oncológicas; que
tenham tentado suicídio ou sejam dependentes químicos, os quais acabam sendo
encaminhados ao psiquiatra interconsultor.
A interconsulta também parece ser utilizada como medida que pode reduzir o
sofrimento emocional do próprio médico. Alguns dos entrevistados relataram que
fazem a solicitação ao se sentirem perturbados emocionalmente pelos atendimentos
que realizam, como naquelas ocasiões em que se deparam com casos clínicos em
que o sofrimento psíquico se sobrepõe à dor física ou quando o paciente é de difícil
manejo e não adere ao tratamento. Há ainda situações em que as exigências
emocionais do paciente ou a natureza da enfermidade suplantam a capacidade de
resposta do médico o que promove angústia e sensação de impotência (BALINT,
1984).
A sensação de impotência também se faz presente diante da possibilidade ou
da realidade da morte que frustra os esforços heroicos do médico e exige que ele
comunique à família do paciente a falta de perspectivas ou o desenlace fatal. Ao
manejar esses casos insolúveis e de difícil comunicação, os médicos participantes
percebem-se afetados e contaminados pela frustação. Sentindo-se pouco preparados
103
ou incapazes de lidar com a dor da perda que invade os familiares envolvidos,
solicitam o apoio do interconsultor. Esses depoimentos corroboram as observações
de Nogueira-Martins (2005) que aponta que muitos profissionais da saúde mental são
solicitados a acompanhar casos em que as comunicações se tornam dolorosas.
A família é um elemento importante no relacionamento médico-paciente ainda
em outras circunstâncias, cabendo ao médico também envidar esforços no sentido de
responder às dúvidas que os familiares do paciente trazem. Esse é, para os
participantes, um fator de estresse, pois, muitas vezes, a relação com o familiar é
pontuada por questionamentos e cobranças. Desse modo, os entrevistados relatam
que a solicitação da interconsulta teria como finalidade obter o apoio necessário para
tranquilizar a família do enfermo, auxiliando o médico a compreender as reações que
surgem e a oferecer a resposta mais adequada. Noto (2003) e Carvalho e Lustosa
(2008) concordam que esse seria também um dos papéis do interconsultor, quando
preconizam que a necessidade de apoio à família, nesse momento em que um de
seus membros se encontra hospitalizado, deve ser oferecida pelo interconsultor,
auxiliando a família a adquirir a continência necessária para que a relação médico-
paciente ocorra de maneira satisfatória
Outro motivo para solicitar o apoio do interconsultor, de acordo com os
entrevistados, envolve dilemas éticos (NOGUEIRA-MARTINS et al.,1991), ou seja, a
dificuldade de tomada de decisão naqueles casos clínicos que são cercados por
questões para as quais não existe uma resposta correta. Segundo os participantes,
dilemas éticos surgem naquelas situações – entre outras – em que o paciente não
aceita seguir o tratamento, quando se faz necessário avaliar a manutenção de
pacientes em estados graves ou decidir em relação a procedimentos de riscos, e
perante a exigência de um tratamento cujos objetivos são difíceis de serem
alcançados.
O médico e o interconsultor – A relação médico-médico
O relato de alguns médicos participantes dá a entender que o psiquiatra é
idealizado como aquele que tem o pleno domínio de suas emoções e completo
conhecimento sobre si mesmo e sobre os determinantes psicológicas em geral.
Entretanto, essa não é uma ideia amplamente difundida entre os entrevistados, uma
vez que também houve depoimentos que refletiram a desconfiança em relação à
104
capacidade de compreensão interconsultor, visto como um profissional que privilegia
a administração de medicamentos em detrimento do diálogo com os pacientes
encaminhados. Esses depoimentos estão de acordo com os estudos de Amorim
(2014) que indica que o interconsultor pode ser tão divinizado quanto demonizado.
Se, de um lado, é requisitado por possuir um saber não dominado pelo médico não
psiquiatra, de outro, pode vir a ser severamente criticado quando não oferece as
soluções esperadas.
Na experiência dos entrevistados no hospital de clínicas onde trabalham, a
comunicação foi apontada como o “calcanhar de Aquiles” da relação médico-médico
estabelecida com o interconsultor. O diálogo é pouco frequente e os profissionais se
comunicam por escrito. Os participantes, muitas das vezes, encontram problemas em
transpor para o papel aspectos que julgam importantes para a compreensão do que
aflige o paciente e das interferências emocionais envolvidas no atendimento, o que
pode ser mais uma expressão da sua própria dificuldade no campo das emoções.
Referem receber respostas não satisfatórias da parte do interconsultor caracterizadas
pela frieza e, algumas vezes, por um conteúdo pouco claro ou incompreensível.
Apesar de reconhecerem que, no contexto hospitalar, o registro escrito de avaliações
e pareceres é de suma importância para o resguardo do paciente e proteção do
médico, a maioria dos médicos participantes entende que, quando a comunicação se
limita aos prontuários, a relação com o interconsultor se torna protocolar e distante,
pouco contribuindo para o aclaramento das situações e das experiências que cercam
a relação médico-paciente.
Outros pontos, que parecem ter um caráter mais institucional, foram levantados
como empecilhos ao estabelecimento de um relacionamento mais efetivo com o
interconsultor, como o difícil acesso ao serviço de interconsulta e a demora do
atendimento pelo médico psiquiatra. Os participantes observam que a grande
demanda e a falta de profissionais em número suficiente são responsáveis por tal
situação. Ainda que entendam essa dificuldade, tais obstáculos frustram as
expectativas com relação à atuação do interconsultor que, no entender dos
entrevistados, deveria estar disponível no momento em que fosse necessário, uma
vez que do seu parecer depende a conduta a ser adotada.
A espera pela continuidade do atendimento, por sua vez, acirra a ansiedade do
paciente, que começa a exigir do médico maior celeridade na condução do caso.
Sentindo-se pressionado, o médico vê sua frustração aumentar ocasionando
105
sentimento de desamparado e irritação, o que tende a diminuir a sua capacidade de
tolerância diante das exigências do paciente e, desse modo, compromete o
relacionamento médico-paciente.
Diante desse contexto mais amplo, no qual a relação médico-médico sofre a
interferência de dificuldades relacionadas à gestão hospitalar e ao modo estabelecido
de comunicação entre os profissionais, os médicos procuram valer-se de outros
caminhos para contornar os obstáculos e assegurar que, de um lado, serão atendidos
em suas solicitações de interconsulta e, de outro, receberão o apoio desejado. Dessa
maneira, procuram fazer os encaminhamentos necessários para aqueles
especialistas pelos quais sintam afinidade e que sejam, no seu modo de ver,
confiáveis.
Diante do cenário descrito de dificuldades relativas à instituição e aos conflitos
no relacionamento com colegas, pacientes e familiares, dificuldades essas que
acarretam dúvidas e mobilizam emoções desagradáveis, muitos participantes
esboçaram o interesse em aprofundar seus conhecimentos e realizar um treinamento,
com o apoio do interconsultor, para entender melhor as causas do sofrimento psíquico
dos seus pacientes e o que acontece nas suas relações com eles. Sob esse aspecto,
é importante lembrar Balint (1988) quando esse autor indica a necessidade de os
médicos ampliarem a sensibilidade ante os processos que se desenrolam, consciente
ou inconscientemente, quando se encontram com seus pacientes. A mesma postura
era orientada por Jung (1929/2016i, par. 170): “que o médico também se transforme
para ser capaz de transformar o doente”. Promover tais atitudes se torna uma das
tarefas prioritárias do interconsultor que é a de capacitar o médico assistente a ampliar
as condições psicológicas de auxiliar o seu paciente.
106
10 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A interconsulta psiquiátrica é uma subespecialidade relativamente nova na
medicina, com apenas 80 anos de existência. Sua presença nos hospitais gerais
reflete uma nova visão da psiquiatria e cria oportunidades para o ensino e a pesquisa
no espaço de intersecção entre essa e as demais áreas médicas. Estudá-la foi o
objetivo deste trabalho, que se propôs a compreender a solicitação da atuação do
interconsultor pelo médico não psiquiatra e a identificar, também, as emoções
relatadas pelos médicos dentro do contexto hospitalar e na sua relação interpessoal
com os pacientes e com o próprio interconsultor.
Não houve contratempos para encontrar os participantes, uma vez que, aos
olhos dos médicos, a relação com pacientes em sofrimento psíquico no hospital geral
tem exigido uma perspectiva multidisciplinar e a contribuição de profissionais de várias
especialidades, particularmente do interconsultor psiquiátrico. O interesse dos
participantes em colaborar para a pesquisa possibilitou a aplicação do instrumento
escolhido e o alcance dos objetivos propostos, contribuindo para ampliar a
compreensão da atividade da interconsulta em sua interface com a medicina.
Considera-se que a pesquisa se mostrou relevante uma vez que que abriu um
espaço para que o médico não psiquiatra expusesse como se sente ao se relacionar
não apenas com pacientes em sofrimento psíquico, mas também com todo o contexto
ao seu redor: instituição, famílias e os próprios colegas médicos. A narrativa dos
médicos possibilitou a identificação de um profissional que se emociona, embora nem
sempre compreenda o que está sentindo diante dos desafios relacionais da sua
profissão.
No que se refere à profissão do médico, percebe-se que, com a perspectiva de
auxiliar o paciente em seu sofrimento, o médico, na qualidade de cuidador, defronta-
se com novas circunstâncias, em que a sua autoridade e saber têm sido questionados.
A crescente judicialização da medicina e a excessiva carga de trabalho foram pontos
levantados suscitando a necessidade de os médicos refletirem acerca do papel
profissional. É como se os médicos participantes vivessem em uma corda bamba,
receosos de terem uma queda que venha a arranhar o seu saber e colocar em dúvida
sua capacidade.
A instituição na qual atuam foi apresentada como cumpridora da vários papéis
sociais perante uma clientela carente de necessidades básicas, sendo marcada por
107
aspectos conflitantes uma vez que o ideal de cura nem sempre pode ser alcançado
em razão de problemas de cunho social. A burocracia e a presença de normas
explícitas e implícitas foram apontadas como desfavoráveis para o bom desempenho
assistencial, inviabilizando, por vezes, o atendimento das necessidades dos que
buscam a instituição.
É nesse universo multifacetado que o médico se relaciona com seus pacientes.
As emoções que sente interferem, muitas vezes, no modo como desempenha sua
atividade e toma decisões, o que promove angústia e sofrimento. Se é possível que,
em um primeiro momento, o médico se distancie, procurando “nada sentir”, em um
segundo momento percebe a necessidade de pedir ajuda para obter alívio e encontrar
alguma solução para a situação conflitiva em que se encontra diante de seu paciente.
Assim, o interconsultor psiquiátrico surge na relação médico-paciente não
apenas para ajudá-lo no trato da enfermidade do paciente, mas também para socorrê-
lo nos problemas de relacionamento que possam ocorrer com o paciente, a instituição
ou os familiares. Assume a função auxiliar no manejo de conflitos, diminuindo os
bloqueios da relação médico-paciente e ajudando o médico responsável a fortalecer
o vínculo com o enfermo de quem está cuidando. Além disso, o presente trabalho
sugere que, do ponto de vista dos médicos participantes, a intervenção do
interconsultor é fundamental para uma visão interdisciplinar do paciente.
Considerando-se esses vários aspectos, é possível afirmar que a interconsulta
psiquiátrica contribui para que cada caso seja abordado de forma integral.
Segundo os participantes, o maior empecilho na execução da proposta do
interconsultor reside no campo da comunicação entre os profissionais da área,
comunicação essa que é percebida como precária e tênue, o que requer que sejam
divisados modos de aprimoramento dos contatos estabelecidos e da relação médico-
médico. A necessidade de uma aproximação maior, com a criação de ambientes
acolhedores que possibilitem encontros entre a equipe médica, foi aventada como
salutar para troca de experiências e proposição de soluções que venham a reduzir o
montante de dificuldades de natureza organizacional, desse modo contribuindo para
o bom funcionamento da instituição.
No campo de interface medicina-psicologia clínica, particularmente a psicologia
analítica pode contribuir na medida em que oferece uma compreensão funcional do
inconsciente e das manifestações dos complexos afetivos, possibilitando aos médicos
uma mudança no modo como veem a si próprios e na forma como atuam
108
profissionalmente. A aproximação da psicologia analítica com a medicina facilitaria a
construção de estratégias de ação do médico interconsultor como facilitador do
atendimento médico-paciente.
As limitações desta pesquisa relacionam-se ao pequeno número de
participantes e ao fato de ter sido conduzida em uma única instituição hospitalar.
Desse modo, há que se considerar os resultados com a cautela necessária para que
se evitem generalizações indevidas. O estudo mostrou-se, entretanto, válido na
perspectiva de uma pesquisa empírica de natureza qualitativa, tendo possibilitado
inferir a relevância do psiquiatra-interconsultor para uma abordagem biopsicossocial
do paciente no ambiente de hospital geral.
Sugestões de futuros encaminhamentos anteveem a criação de um espaço no
hospital que possibilite o encontro entre os profissionais para a troca de experiência
e, oportunamente, a criação de grupos focados no entendimento dos processos
contratransferenciais, o que facilitaria o aprimoramento da equipe na relação com os
pacientes. Outra medidas a serem levadas em consideração seriam: o emprego da
interconsulta como ferramenta de pesquisa focada na relação médico-paciente; a
discussão de técnicas de manejos; a abertura de um canal para apoiar os médicos
nos momentos de conflitos; o aprimoramento da comunicação entre interconsultor e
médicos e a reestruturação do serviço de interconsulta para que as necessidades do
médico, profissionais, pessoais e relacionais, possam ser mais rápida e
adequadamente atendidas.
A pesquisa ressaltou a função do interconsultor que vai além do especialista
psiquiátrico, para realçar a interconsulta como atividade que, ao trabalhar o
relacionamento médico-paciente, viabiliza a humanização e integralidade do
atendimento dentro do meio hospitalar.
109
REFERÊNCIAS
AMORIM, S. Interconsulta em saúde mental no complexo hospitalar: uma análise à luz do mito de Hermes. In: AMORIM, S.; BILOTA, F. A. (Org.) Jung e saúde: temas
contemporâneos. Jundiaí: Paço Editorial, 2014. ANDREOLI, P. B. A.; MARI, J. J. Avaliação do programa assistencial de um serviço de interconsulta psiquiátrica e psicológica. Rev. Saúde Pública, v. 36, n. 2, p. 222-
229, 2002. BALINT, M. O médico, seu paciente e a doença. Rio de Janeiro: Atheneu, 1988. ______. A falha básica: aspectos terapêuticos da regressão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. BALLONE, G. J.; NETO, E. P.; ORTOLANI, I. V. Da emoção à lesão: um guia de
medicina psicossomática. Barueri: Manole, 2002. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70,1977. BARDIN, N.; MUNHOZ, E. M. B. Snowball (Bola de Neve): uma técnica metodológica para pesquisa em educação ambiental comunitária. Anais... In: X Congresso de
Educação – EDUCERE. Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Curitiba, 2011. BASTOS, O. História da psiquiatria em Pernambuco e outras histórias. São Paulo: Lemos, 2002. BLUMENFIELD, M.; STRAIN, J. Psychosomatic medicine. Philadelphia: Lippincott
Williams and Wilkins, 2006. BOTEGA, N. J. No hospital geral: lidando com o psíquico, encaminhando para o psiquiatra. 1989. 271 f. Tese (Doutorado em Ciências Médicas) – Faculdade de
Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1989. ______. Serviços de Saúde Mental no Hospital Geral. Campinas: Papirus, 1995. ______. Prática psiquiátrica no hospital geral: interconsulta e emergência. Porto
Alegre: Artmed, 2002. ______. Psiquiatria no hospital geral: histórico e tendências. In: BOTEGA N. J (Org.) Prática Psiquiátrica no Hospital Geral. Porto Alegre: Artmed, 2006.
______. Prática Psiquiátrica no Hospital Geral. Porto Alegre: Artmed, 2012.
BOTEGA, N. J.; DALGALARRONDO, P. Saúde mental no Hospital Geral: espaço
para o psíquico. São Paulo: Hucitec, 1993. BOTEGA, N. J.; SCHECHTMAN, A. Censo nacional de unidades de psiquiatria em hospitais gerais: I. Situação atual e tendências. Revista ABP-APAL, v.19, n. 3, p.79-
86, 1997.
110
BRANDÃO, J. S. Mitologia Grega. v. II. Petrópolis: Vozes, 1987.
BYINGTON, C. A. B. Psicopatologia simbólica junguiana. São Paulo. Ed. do Autor,
2017. CARVALHO, L. D. Atenção Básica: Stress e estressores ocupacionais em médicos e enfermeiros de Paracambi. 2007. 118 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) –
Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. CARVALHO, M. R.; LUSTOSA, M. A. Interconsulta Psicológica. Revista da SBPH, v. 11, n. 1, Rio de janeiro, 2008. CASSORLA, R. M. S. Dificuldades no lidar com aspectos emocionais da prática médica: estudo com médicos no início de grupos Balint. Rev. ABP-APAL, v. 16, n. 1, p. 18-24, jan/mar, 1994. CASTELHANO, L. M. As emoções do médico na relação com o paciente: uma
abordagem da psicologia junguiana. 2015. 151 f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015. CASTELHANO, L. M.; WAHBA, L. L. O discurso médico sobre as emoções vivenciadas na interação com o paciente: contribuições para a prática clínica. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 23, e170341, 2019. doi.org/10.1590/interface.170341. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832019000100200&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 16 jan. 2019. CERQUEIRA, A. T. A. R. A Interconsulta médico-psicológica no contexto institucional como espaço para formação de médicos e psicólogos. Temas em Psicologia, n. 2, 1994. CHEN, K. Y.; EVANS, R.; LARKINS, S. Why are hospital doctors not referring to Consultation-Liaison Psychiatry? – a systemic review. BMC Psychiatric, v. 16, n. 390, p. 1-12, 2016. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA – CFM. A saúde dos médicos no Brasil.
Brasília: CFM, 2018. CROSKERRY, P. Achieving quality in clinical decision-making: cognitive strategies and detection of bias. Academic Emergency Medicine, v. 9, n. 11, p. 1184-1204,
Nov. 2002. CROSKERRY, P.; ABBAS, A.; WU, A. W. Emotional influences in patient safety. Journal of Patient Safety, v. 372, n. 9645, p. 1205-1206, out. 2008.
DALGALARRONDO, P. Repensando a internação psiquiátrica: a proposta das
unidades de internação psiquiátrica de hospitais gerais. 1990. 310 f. Dissertação (Mestrado em Medicina) – Faculdade de Ciências Médicas, UNICAMP, Campinas,1990.
111
DE MARCO, M. A. Interconsulta. In: DE MARCO, M. A. (Org.) A face humana da medicina: do modelo biomédico ao modelo biopsicossocial. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. ______. Comunicação e relação. In: DE MARCO, M. A. et al. Psicologia Médica:
abordagem integral do processo saúde-doença. Porto Alegre: Artmed, 2012. DE GIORGIO, G. et al. Consultation-liaison psychiatry – from theory to clinical practice: an observational study in a general hospital. BMC Research Notes, v. 8. n. 475, 2015.
DEL PICCOLO et al. How psychiatrist’s communication skills and patient’s diagnosis affect emotions disclosure during first diagnostic consultation. Patient Education and Counseling, v. 96, n. 2, p. 151-158, 2014.
DIAS, E. C. Condições de trabalho e saúde dos médicos: uma questão negligenciada e um desafio para a Associação Nacional de Medicina do Trabalho, Revista Brasileira de Medicina do Trabalho, v. 13, n. 2, p. 60-68, 2015.
EDELWICH, J; BRODSKY, A. Burnout: stages of disillusionment in the helping
profession. New York: Human Sciences Press, 1980. EKSTERMAN, A. Medicina psicossomática no Brasil. In: MELLO FILHO, J. Psicossomática Hoje. Porto Alegre: Artmed, 2010.
FARIA, D. L. O pai possível: conflitos da paternidade contemporânea. São Paulo:
Educ. Fapesp, 2003. FEITOSA, J. V. G. Sonho e cura: o culto de Asclépio em Epidauro entre os séculos IV e II A.C. 2014. 228 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Recife, 2014. FERRARI, H.; LUCHINA, N.; LUCHINA, I. L. La Interconsulta médico-psicológica en el marco hospitalario. Buenos Aires: Nueva Vision, 1977.
______. Assistencia Institucional. Nuevos desarrollos de la Interconsulta médico-psicológica. Buenos Aires: Nueva Vision, 1979. ______. La Interconsulta médico-psicológica en el marco hospitalario. Buenos Aires: Nueva Vision, 1980. FIGUEIREDO, G. R. A evolução do hospício no Brasil. 1996. 238 f. Tese
(Doutorado em Medicina). Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 1996. FRAGUAS JR., R.; LUCIA, M. C. S.; MARTINS, M. A. Interconsulta psiquiátrica: conceitos. Clínica psiquiátrica [S.l: s.n.]. Barueri: Manole, 2011. GAMBINI, R. O espelho índio: os jesuítas e a destruição da alma indígena. Rio de Janeiro: Espaço e tempo, 1988.
112
GONZÁLEZ-REY, F. Pesquisa qualitativa e subjetividade. São Paulo: Cengage
Learning, 2005. GROESBECK, C. J. A imagem arquetípica do médico ferido. Junguiana – Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, v. 1,1983.
GROOPMAN, J. Como os médicos pensam. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
GROSSEMAN, S.; PATRÍCIO, Z. M. A relação médico-paciente e o cuidado humano: subsídios para a formação da educação médica. Rev. Bras. Educ. Méd., v. 28, n. 2, p. 99-105, 2004. GUGGENBÜHL-CRAIG, A. O abuso do poder na psicoterapia. São Paulo: Paulus,
2004. HALES, R. E. The benefits of a psychiatric consultation-liaison service in a general hospital. General Hospital Psychiatry, n. 7, p. 214-218, 1985.
HARK, H. Léxico dos conceitos junguianos fundamentais. São Paulo: Loyola,
2000.
HENRY, G. Some modern aspects of psychiatry in a general hospital practice. American Journal of Psychiatry, n. 9, p. 481- 499, 1929.
HILLMAN, J. Suicídio e alma. Petrópolis: Vozes, 2016.
JUNG, C. G. A Prática da Psicoterapia. OC 16/1. Petrópolis: Vozes, 1957/1987.
______. Sobre os arquétipos e o inconsciente coletivo. In: JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. OC 9/1. Petrópolis: Vozes, 1934/2012. ______. Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2016a. ______. A psicologia da Dementia Praecox: um ensaio. In: JUNG, C. G. Psicogênese das doenças mentais. OC 3. Petrópolis: Vozes, 1907/2016b.
______. Tipos psicológicos. OC 6. Petrópolis: Vozes, 1921/2016c.
______. A natureza da psique. OC 8/2. Petrópolis: Vozes, 1934/2016d.
______. Paracelso, o médico. In: JUNG, C. G. O espírito na arte e na ciência. OC
15. Petrópolis: Vozes, 1941/2016e. ______. A situação atual da psicoterapia. In: JUNG, C. G. Civilização em transição. OC 10/3. Petrópolis: Vozes, 1934/2016f. ______. A árvore filosófica. In: JUNG, C. G. Estudos alquímicos. OC 13. Petrópolis:
Vozes, 1954/2016g
113
______. Fundamentos da psicologia analítica. OC 18/1. Petrópolis: Vozes,
1935/2016h. ______. Os problemas da psicologia moderna. In: JUNG, C. G. A prática da psicoterapia. OC 16/1. Petrópolis: Vozes, 1929/2016i
KAST, V. Jung e a psicologia profunda. São Paulo: Cultrix, 2017.
LIPP, M. E. N. Manual do Inventário de Sintomas de Stress para Adultos de Lipp (ISSL). São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000. LIPOWSKI, Z. J. Liaison psychiatry: the first half-century. General Hospital Psychiatry, p. 305-315, 1986.
LUDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas.
2. ed. São Paulo: EPU, 2015. MARTINS, J. M. A lógica das emoções: na ciência e na vida. Petrópolis: Vozes, 2004.
MEIER, C. A. Sonho e ritual de cura: incubação antiga e psicoterapia moderna. São
Paulo: Paulus, 1999. MELLO FILHO, J. Concepção psicossomática: visão atual. Rio de janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. MELLO FILHO, J. Isaac Luchina e a interconsulta médico-psicológica, In: GONZALES, R. F. (Org.) A Relação com o Paciente. Rio de janeiro: Koogan, 2003. MILLAN, L. R. et al. Alguns aspectos psicológicos ligados à formação médica. In: MILLAN, L. R. et al. (Org.) O universo psicológico do futuro médico: vocação,
vicissitudes e perspectivas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999, p. 75-82. MINOSSI, J. G.; SILVA, A. L. Medicina defensiva: uma prática necessária? Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, v. 40, n. 6, p. 494-501, 2013.
NAKABAYASHI, T. L. K. Caracterização do padrão de solicitações psiquiátricas em um hospital geral: estabilidade e mudanças em um padrão de 30 anos de um serviço de interconsulta. 2012. 214 f. Tese (Doutorado em Saúde Mental) – Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2012. NOGUEIRA-MARTINS, L. A. Os beneficiários da interconsulta psiquiátrica. Boletim de Psiquiatria, v. 28, n. 1, p. 22-23, 1995.
______. Saúde Mental dos Profissionais de Saúde. Revista Brasileira de Medicina do Trabalho. Belo Horizonte, v.1, n.1, p. 56-68, 2003.
NOGUEIRA-MARTINS, L. A. Interconsulta hoje. In: MELLO FILHO J. (Org.) Psicossomática hoje, 2. ed. Porto Alegre, 2010.
114
NOGUEIRA-MARTINS, L. A et al. Dilemas éticos no hospital geral. Boletim de Psiquiatria, v. 24, n. 1/2, p. 28-34, 1991. NOGUEIRA-MARTINS, L.; BOTEGA, N. J. Interconsulta Psiquiátrica no Brasil: desenvolvimentos recentes. Rev. ABP-APAL, v. 20, n. 3, p. 105-111, 1998.
NOTO, J. R. S. Experiências em supervisão. In: DE MARCO, M. A. (Org.) A face humana da medicina: do modelo biomédico ao modelo biopsicossocial. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003, p.109-121. PECKHAN, C. Physician burnout: it just keeps getting worse. [Internet]: Medscape,
Jan. 26, 2015. Disponível em: <https//www.medescape.com/viewarticle 838437_1, 2015>. Acesso em: 4 fev. 2019. OROM, H. et al. Relationships as medicine: quality of the physician–patient relationship determines physician influence on treatment recommendation adherence. Health Services Research, v. 53, n. 1, p. 580-596, Fev. 2018.
PENNA, E. M. D. O paradigma no contexto da metodologia qualitativa de pesquisa. Psicologia USP, v. 16, n. 3, p. 71-94, 2004. _____. Processamento simbólico-arquetípico: pesquisa em psicologia analítica. São Paulo: EDUC: FAPESP, 2014. SCHERER, Z. A. P.; SCHERER, E. A.; LABATE, R. C. Interconsulta em enfermagem psiquiátrica: qual a compreensão do enfermeiro sobre esta atividade? Rev. Latino-americana Enfermagem, v. 10, n. 1, p. 7-14, 2002.
SHANAFELT, T. D. The well-being of physician. American Journal of Medicine, v.
114, p. 513-519, 2003. SHAVITT, R. G.; BUSATTO FILHO, G.; MIGUEL FILHO, E. C. Interconsulta psiquiátrica: conceito e evolução. Revista Paulista de Medicina, v. 107, n. 2, p. 108-
112, 1989. SIMÕES J. C. et al. Relação médico-paciente. Revista do Médico Residente, v. 13, n. 2, p. 114-118, 2011. SMAIRA, S. I.; KERR-CORRÊA, F.; CONTEL, J. Transtornos psiquiátricos e consulta psiquiátrica em um hospital geral: um estudo caso-controle. Revista Brasileira de psiquiatria, v. 25, n. 1, p. 18-25, 2003. doi.org/10.1590/S1516-44462003000100005.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462003000100005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 1 jun. 2019. SMITH, S. Dealing with the difficult patient. Postgrad Med J., v. 71, n. 841, p. 653-
657, Nov.1995. STRAIN, J. J. Liaison psychiatry. In: RUNDELL J. R.; WISE, M. G. (Org.) Textbook of Consultation-liaison Psychiatry. Washington: Amer. Psychiatric Pub., 1996.
115
STRICKLER, D. C. Addressing the imbalance of power in a traditional doctor-patient relationship. Psychiatric Rehabilitation Journal. v. 32, n. 4, p. 316–318, 2009. TURATO, E. R. Introdução à metodologia de pesquisa clínico-qualitativa: definição e principais características. Rev. Portuguesa de Psicossomática, v. 2, n. 1, jan/jun.
2000. VAN DER POST, L. Jung e a história de nosso tempo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992. VASCONCELOS, C. Responsabilidade médica e judicialização na relação médico-paciente. Revista Bioética, v. 20, n. 3, p. 389-96, 2012. WAHBA, L. L. Relação médico-paciente: subsídios da psicologia para a educação médica. 2001. 250 f. Tese (Doutorado em Psicologia). Departamento de Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica. São Paulo, 2001. WHITMONT, C. E. A busca do símbolo: conceitos básicos de psicologia analítica. São Paulo: Cultrix, 1995. WOOD, R.; WAND, A. P. F. The effectiveness of consultation-liaison psychiatry in the general hospital setting: a systematic review. Journal of Psychosomatic Research, v. 76, n. 3, p. 175 – 192, Mar. 2014. ZAHER, V. L. Da vocação médica ao exercício profissional. São Paulo, 1999, Tese
(Doutorado). Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999. ZAVASCHI, M. L. S.; LIMA, D.; PALMA, R. B. Interconsulta psiquiátrica na pediatria. Rev. Brasileira de Psiquiatria, v. 22, n. 2, p. 48-51, 2000.
116
APÊNDICE A – Folheto de Divulgação de Pesquisa
CONVITE
PARTICIPAÇÃO EM PESQUISA
A mão que alivia e a dor da escuta:
a interconsulta sob o olhar da Psicologia Analítica.
Sou psiquiatra clínico e mestrando pela PUC-SP. Estou desenvolvendo uma pesquisa
com o objetivo de investigar os motivos que levam os médicos a solicitarem
interconsulta e identificar as emoções que os médicos relatam no relacionamento
interpessoal com os pacientes encaminhados ao psiquiatra.
Se você é médico no Hospital e já solicitou interconsulta psiquiátrica e se dispõe a
ajudar nesta pesquisa, entre em contato comigo.
Caso você conheça algum colega que se encaixe nesse perfil, transmita a ele este
convite e solicite que entre em contato comigo.
A participação é sigilosa, voluntária e gratuita.
As pessoas que desejarem colaborar participarão de uma entrevista individual, com
duração aproximada de 60 minutos.
Sua participação é muito importante para ampliar a compreensão da relação médico-
paciente e fomentar futuros estudos na área.
Muito obrigado.
Informações: (034) 991288704
Pesquisador: Carlos Luis Melo Bichuetti
E-mail: carlosbichuetti@gmail.com
Orientadora: Profa. Dra. Liliana Liviano Wahba
E-mail: psiclini@pucsp.br
117
ANEXO A – Termo de compromisso do pesquisador responsável
118
ANEXO B – Liberação do responsável pela instituição
Uberaba,21 de novembro de 2017
Da Superintendência do Hospital ...
Prof. Dr.......
Ao Comitê de Ética em Pesquisa da PUC- SP
Assunto: Declaração de Autorização
Declaro que tenho ciência e conhecimento da pesquisa proposta, por Carlos Luis
Melo Bichuetti, intitulada A Mão que alivia e a dor da escuta. (Pesquisa qualitativa sobre os
pedidos de interconsulta: um olhar da Psicologia Analítica). Cujo objetivo é investigar os
motivos que levam os médicos a solicitarem interconsulta e identificar as emoções que os
médicos relatam no relacionamento interpessoal com os pacientes encaminhados ao
psiquiatra. Tendo ficado claro que a pesquisa será realizada com médicos do Hospital, por
meio de entrevistas como parte da metodologia proposta para alcance dos objetivos
propostos no projeto da pesquisa.
Ciente que esta autorização é indispensável para a submissão do projeto junto ao
Comitê de Ética em Pesquisa da PUC- SP, órgão responsável pela apreciação ética em pesquisa
com seres humanos.
Autorizo a realização da pesquisa no âmbito do Hospital.
Atenciosamente,
_____________________________________ ________________________________
Local e Data
Superintendente e Responsável pela instituição.
119
ANEXO C – Termo de consentimento livre e esclarecido
ANEXO C – Termo de consentimento livre e esclarecido
120
ANEXO C – Termo de consentimento livre e esclarecido – cont.
121
ANEXO D – Parecer consubstanciado do Comitê de Ética
122
ANEXO D – Parecer consubstanciado do Comitê de Ética – cont.
123
ANEXO D – Parecer consubstanciado do Comitê de Ética – cont.