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Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS
A MEMÓRIA: LUGAR DE PARTILHAMENTOS, CONFLITOS E DIALÓGOS
INTERGERACIONAIS.
Carlos Henrique dos Santos Martins∗
Resumo Neste trabalho, parto da compreensão de que existe forte relação entre memória, geração e sociabilidade e que estas parecem ser determinantes para a compreensão da juventude como categoria sociológica composta de sujeitos dotados de memória que se constrói nas relações sociais e intergeracionais. Essas relações parecem ser importantes para que o jovem elabore sua identidade e servem para orientar a construção de seus projetos pessoais, ao seu futuro. A identificação de pontos de interseção e de afastamento entre a memória dos adultos e as memórias juvenis, marcados, principalmente, pela experiência vivenciada em diferentes intensidades, tempos e espaços comuns ou diferenciados pelas questões geracionais, poderá indicar possíveis relações entre memória individual e coletiva, e entre memória de jovens e de adultos. Palavras-chaves: Juventude, memória, intergeracionalidade Abstract In this paper, I understand that there is a strong relationship between memory, generation and sociability and that they seem to be determined by the understanding of youth as a sociological category consisting of characters endowed with memory which is built in social and intergenerational relationships. These lived relationships seem to be important to have the youngster elaborate his identity and also to orient the construction of his/ her personal projects to a future. Therefore, the identification of convergent and divergent characteristics between the adults’ and the youngsters’ memories, marked, mainly, by lived experiences in different intensities, times and spaces that can be shared or made different by generational matters, may indicate possible relationships between individual and collective memory and between adults’ and youngsters’ memories. Key words: youth, memory, intergenerational realtionships
1 – Apresentação
Há forte relação entre memória, geração e sociabilidade e esta parece ser determinante para a
compreensão da juventude como categoria sociológica composta de sujeitos dotados de
memória que se constrói nas relações sociais e intergeracionais. Essas relações vivenciadas no
contexto familiar são importantes para que o jovem elabore sua identidade e servem para
orientar a construção de seus projetos pessoais relacionados a um futuro que é delineado no
presente e que tem a memória de experiência feita como referência e ponto de partida em
direção ao desconhecido, lugares repletos de incertezas e riscos. Procuro entender como se
estabelecem as relações intergeracionais através da memória coletiva e, a partir dessas
relações, como se efetiva a construção da memória de jovem. A identificação de pontos de
interseção e de afastamento entre a memória dos adultos e a memória de jovens, marcados,
∗ Doutorando em educação pela UFF e professor do CEFET-RJ/UnED Nova Iguaçu
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principalmente, pela experiência vivenciada em diferentes intensidades, tempos e espaços
comuns ou diferenciados pelas questões geracionais, aponta para relações entre memória
individual e coletiva, e entre memória de jovens e de adultos. Considero um desafio falar de
memória e geração em uma sociedade em que os suportes materiais da memória são
paulatinamente apagados ou destruídos, dentre eles os “objetos biográficos” que, segundo
Bosi (1994), são substituídos pelos “objetos de consumo” (pág. 19). Essa nova relação pode
proporcionar certa fugacidade à memória moderna, pois podemos lembrar o tempo necessário
da duração desses mesmos objetos que são rapidamente substituídos.
2 – Juventude: universos plurais e sujeitos singulares
Compreender os diferentes modos de ser jovem frente a um mundo construído pelos adultos e
que está geralmente fundado por uma visão distorcida ou congelada a partir de parâmetros
cientificistas e generalizantes a respeito do universo juvenil é uma questão central para todos
os pesquisadores do campo da juventude. Certamente, não é possível abranger as
adversidades presentes nesse universo se não levarmos em conta não só as alterações
biológicas, mas também as diferentes maneiras de cada um relacionar-se com as “mudanças
dos afetos, das referências sociais e relacionais” a que estão sujeitos (Carrano, Dayrell, 2002,
pág. 2). Superar as dificuldades para estar presente em um mundo com poucas alternativas
para os jovens como atores sociais pode lhes permitir a busca de diferentes opções que serão
influenciadas, entre outros fatores, pelas condições sociais e pelo contexto histórico em que
cada um esteja inserido. As diversas realidades permitirão, desse modo, a apropriação de
capitais (sociais e culturais) e moratórias (social e vital) de forma desigual. Para além de sua
complexidade como categoria sociológica, podemos entender a juventude “como parte de um
processo mais amplo de constituição de sujeitos, mas que tem suas especificidades que
marcam a vida de cada um. A juventude constitui um momento determinado, mas que não se
reduz a passagem, assumindo uma importância em si mesma” (Carrano, 2002, pág. 3). O
desafio fica por conta de proporcionar os modos e condições de os jovens se reconhecem e
serem reconhecidos como sujeitos de direitos. Trata-se, ainda, de permitir a construção de
suas trajetórias de vida a partir de valores que também reconheçam como seus a partir de
mudanças nas relações intergeracionais efetivadas em espaços de companheirismo e/ou a
partir do fortalecimento dessas mesmas relações. Alguns autores apontam que os jovens
buscam manifestar-se de variadas formas e muitos têm grande interesse nas diversas práticas
culturais que servem de marca identitária. Há grupos juvenis, ligados às diversas expressões,
que têm a música e a dança como possibilidades de indicar linguagens culturais específicas e
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que para alguns grupos juvenis servem de contraposição à existência de culturas não juvenis.
As culturas juvenis produzem visibilidade aos jovens na sociedade, uma vez que “a gente vê o
que a cultura e a sociedade permitem que se veja” (Soares, 2005, pág. 164). São as relações
que influenciam o modo de ver o outro. Assim, a visibilidade dos grupos juvenis pode
aumentar à medida que os adultos venham a estabelecer relações valorativas e que proponham
as condições subjetivas para a participação juvenil nos espaços sociais. As sociabilidades
parentais – família nuclear, família estendida, comunidades de afeto – possibilitam ao jovem
construir seu próprio universo a partir da memória presentificada (Bosi, 2004), a qual, ao ser
manifestada pela música, pela dança, pelos relatos, acredito, torna-se parte da memória
juvenil e permite conhecer e estreitar laços de identificação e afetividade. Podem ainda,
construir seu universo a partir das experiências vivenciadas nesses mesmos espaços. São
experiências individuais ou em conjunto com seus pares e que nem sempre solicitam a
participação dos adultos. As expectativas das gerações atuais são constituídas dos elementos e
referências dessa experiência. É nesse jogo de encadeamento que podemos pensar as relações
intergeracionais e, com isso, a própria cultura como processo de continuação/transformação
em constante reatualização e que pode comportar tradição e modernidade. Por outro lado,
observa-se uma crescente “recusa não só à tradição acumulada pelas gerações do passado”,
mas “também de sua experiência vivida e, mais ainda, de suas expectativas deixadas-de viver
como um valor para o futuro” (Brandão, 1998, pág. 30). Individual na forma de vivenciá-la, a
experiência social é também coletiva e comporta diversos indivíduos, no que diz respeito
principalmente a estar no grupo como sujeito de suas ações. Para além da unidade relativa que
a idéia de grupo possa conter, é a diversidade – e, muitas vezes, o conflito – que pode
apresentar-se como uma característica marcante. Embora diversos nas combinações
individuais de suas lógicas de ação, os jovens parecem encontrar pontos de contato que
permitem a re-união em torno de interesses comuns, sem com isso, unificar a experiência
social. A cultura é um dos pontos de interesse comum em torno dos quais os jovens se
articulam para vivenciar novas experiências. Como ela é tecida nas relações sociais coletivas,
parece-me um campo fértil para analisar o papel das novas gerações na manutenção renovada
ou na reconstrução da memória a partir de novas experiências. A cultura como processo
dinâmico, sócio-histórico, “atualiza-se na cotidiana experiência da vida social”. À
incorporação de elementos culturais do passado soma-se o “nosso tempo de desejo e de
trabalho da inovação. Ao nosso fecundo anseio do novo, do sempre novo”. Nesse processo,
tradição e inovação tornam-se elementos que se fundem no presente, “em nossa própria
experiência atual em direção ao futuro”. Mais do que um jogo de “oposição de contrários”
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transforma-se em articulação indistinguível que relaciona futuro e passado, uma geração cujo
passado está presente e, a partir dela, outra geração cujo futuro e expectativas se relacionam
com a experiência nesse mesmo tempo presente (Idem, idem). Os bens culturais transmitidos
de uma geração à outra podem servir de elementos de constituição do futuro. Diferentemente
da tradição que traz consigo a idéia de “um legado de experiências acabadas no seu tempo”
(Ibid, pág. 30) há elementos culturais que carregam consigo experiências não realizadas. Estas
é que dão sentido a uma espécie de “compromisso entre as gerações através do fio condutor
da história”. Este fio liga as gerações e deve ter sua tensão não naquilo que foi deixado como
legado presente na tradição completada, mas “naquilo não realizado” e que, “deixado a nós”
estabelece um compromisso de continuidade, de incorporação do não realizado a um projeto.
Mais do que as experiências acabadas (tradição, legado) são as “expectativas não realizadas”
que podem dar suporte à memória no presente (Ibidem, pág. 31). Assim como a experiência,
a memória é individual e se constrói através da relação com o coletivo, que é também um
espaço de exercício da memória social. Desse modo, a questão da intergeracionalidade parece
ser importante para servir de elo entre experiência e memória, entre passado e futuro.
Experiência e expectativa produzem pontos de contato na relação intergeracional, pois, de
acordo com Brandão De um ponto de vista de atualidade inovadora, o olhar dirigido ao futuro aponta para um passado.
Aponta para substratos de experiência realizada e representada por uma geração de passado em seu
tempo, e por nós a partir deles, no nosso tempo[...]Não estamos diante de uma história dos
acontecimentos na e como uma história que a todos envolve. Ela abarca não apenas os sujeitos de cada
geração e nos termos e desafios de cada geração, mas o intervalo dos enlaces entre gerações. No ponto
sem ruptura, onde cada geração presente torna-se responsável por si mesma, pelas gerações vindouras e
pelo destino não realizado das gerações do passado (pág. 30/31).
3 – Juventude e Memória
A memória de jovem e suas articulações com a memória dos adultos parecem determinar as
escolhas pessoais juvenis não só no que diz respeito às expressões culturais, como também à
elaboração de seus projetos de vida. A memória também é coletiva, pois é social, guarda
relação com o meio social, o grupo, a família. Sendo assim, envolve relações de sociabilidade.
Estas são estabelecidas nas relações intergeracionais que se configuram em diversos espaços
de convívio. Através dela podem surgir os elementos fundamentais para a elaboração de
identidades juvenis. Uma sociabilidade rica de elementos significativos guardados na
memória dos adultos e que possam povoar o cotidiano das relações sociais. E, desse modo,
transformar-se em elementos constitutivos da memória de jovem, estabelecendo assim
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importantes relações intermnemônicas que vêm influenciar a sociabilidade, a identidade e a
intergeracionalidade. Halbwachs (2004) afirma que a memória individual “são lembranças
organizadas e agrupadas em torno de uma pessoa definida, sob seu próprio ponto de vista”, Já
a memória coletiva, é entendida como “lembranças distribuídas no interior de uma sociedade
grande ou pequena de que elas são tantas outras imagens parciais” (pág.50). Esse exercício de
reconstrução das lembranças parece contribuir para a definição dos gostos dos jovens
participantes da comunidade afetiva1. A memória do jovem está relacionada com as
sociabilidades costumeiras (Martins, 2000) que ocorrem na convivência com as gerações que
o antecedem e que são estabelecidas principalmente no ambiente familiar. Ao se relacionar
com o universo dos adultos, os jovens relatam acontecimentos “vividos por tabela”, uma vez
que nas suas lembranças surgem elementos ou eventos que certamente foram relatados e/ou
vivenciados pelos adultos participantes de seu espaço de socialização cultural. Entretanto, em
função da relevância desses eventos, os jovens fazem referência aos mesmos sem
necessariamente terem deles participado. Pollak (1992) sugere a possibilidade de ocorrer um
fenômeno de identificação com o passado que é projetado no presente através dos processos
de socialização política e histórica. Esse fenômeno de projeção e identificação com o passado
pode ocorrer também por meio da socialização cultural. Desse modo, “a memória quase
herdada” pelos jovens se expressa como resultado das relações estabelecidas com os adultos
nos espaços de elaboração de suas identidades. A identidade juvenil é elaborada em parte pela
memória herdada – esta compreendida como um fenômeno construído social e
individualmente. A herança é transmitida pelas lembranças que são compartilhadas nas
relações sociais, na sociabilidade manifestada em espaços como a casa, a rua e a festa. Mas é
também no apagamento da memória (como construção social) como o pré-construído que o
sujeito se funda como indivíduo, sabendo-se senhor da própria história. Sendo assim,
podemos pensar em outra dimensão da memória como valor de disputa – é o adulto que detém
a memória – e que, ao ser confrontada com a memória coletiva, pode gerar conflitos
intergeracionais. A existência da comunidade afetiva potencializa a reconstituição de
lembranças compartilhadas, mas que não são produzidas necessariamente de forma igual. A
continuidade de pertencimento ao grupo permite lembranças individuais e coletivas que são
ativadas pelos aspectos comuns a este e vividos de diferentes maneiras e intensidades. Permite
ainda que os sentimentos em comum constantemente experimentados no grupo e pelo grupo
fortaleçam a existência da memória coletiva. É ela – a memória coletiva – que serve de apoio
para a memória individual manifestada nas lembranças particulares, pessoais. No que diz
respeito à memória de jovem, esta pode ser construída por lembranças emprestadas que nada
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mais são do que a reconstituição de materiais emprestados. Não são lembranças diretas, mas
resultado de imagens formadas a partir das narrativas dos adultos participantes de sua
comunidade afetiva. Ser social, suas experiências e vivências no interior do grupo são
importantes para a elaboração de sua identidade a partir das lembranças manifestadas no
universo da memória coletiva. Para Giddens (2001), “a identidade é a criação de constância
através do tempo, a verdadeira união do passado com um futuro antecipado” (pág. 56). O
sentido de pertencimento ao grupo através da identificação com o coletivo é o que garante a
manutenção da identidade individual. Do mesmo modo, fazer parte, cultivar uma tradição,
estabelece fortes laços entre o eu e o grupo. Ameaçar “a integridade das tradições é colocar
em risco a própria integridade do eu e, por conseguinte as identidades coletivas e individuais
conectadas pelas tradições” (Idem, idem). As sociedades modernas, ainda que
destradicionalizadas, não perderam vínculos com a tradição. Embora esta não possua mais um
papel preponderante na modernidade, muitos de seus elementos estão preservados, mesmo
que transformados, o que parece conferir importância à memória como possibilidade de
presentificar o passado. É através dela que a tradição pode ser trazida e reinterpretada
constantemente como construção coletiva que organiza e dá significado ao presente. Todo
grupo social possui uma história que é contada pelos elementos presentes na memória de cada
um de seus indivíduos. Esse contar, segundo Bolle (2000), é importante para cada integrante,
pois “num tempo de destruição, o sujeito consegue, pelo trabalho da memória, encontrar nas
camadas mais profundas: uma imagem da sua identidade. Indestrutível. Isso não é pouco em
termos de perspectiva de futuro” (pág. 351). Os relatos, as lembranças são potencializadas e
ganham vida através da troca possível na arte de contar. A história de um grupo, de uma
comunidade afetiva passa pela tradição da oralidade e ainda é estendida de uma geração à
outra; está repleta de vida, do social que conforma esse grupo, pois “a história da família pode
dar ao indivíduo um forte sentimento de uma duração muito maior da vida pessoal”
(Thompson, 1992, pág. 20). Embora modernizadas, as tradições mantêm algumas de suas
matrizes constitutivas: meio de identidade individual e coletiva e relacionada ao ritual. Creio
que existem rituais reinventados por grupos juvenis e que podem significar a presença de
modernas tradições uma vez que “o advento da modernidade certamente não significa o
desaparecimento do ritual coletivo” (Idem, pág. 89). Podem estar presentes em diversas
manifestações da vida cotidiana, mas, principalmente nas manifestações culturais
marcadamente juvenis.
5 – Família e intergeracionalidade: lugares de (des)encontros entre jovens e adultos
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As relações intergeracionais parecem comportar pontos tangenciais entre a memória dos
adultos e a memória de jovens, marcados, principalmente, por experiências compartilhadas
em momentos análogos da vida pessoal peculiar a cada geração. São vivenciadas em
diferentes intensidades, tempos e espaços comuns ou diferenciados. Comportam ainda, a
possibilidade de construção de projetos juvenis tendo as trocas de experiências como
importante referencial que poderá orientar as escolhas dos jovens nas suas trajetórias de vida.
Podem, desse modo, recriar/ reconstruir experiências coletivas no mesmo tempo e espaço
tendo como referenciais a memória e o projeto. Espaço de relações e de trocas de
experiências, onde se re-unem diferentes identidades, a família – seja ela nuclear ou estendida
-, ainda que caracterizada pela sua potencialidade inclusiva, aglutinadora, está repleta de
“interações sociais associadas a experiências, combinações e identidades particulares,
individualizadas” (Velho, 2003, pág.21). Ainda que a experiência juvenil possa ser vivida
e/ou construída no interior dos grupos de afeto, esta se dá de forma pessoal, em função das
diferentes interações experimentadas pelos jovens em diversos contextos sociais que
contribuem para a particularidade de suas experiências. São contextos marcados pelo jogo de
intercâmbio das diferenças, não só de idade como também de visão de mundo, onde é possível
estabelecerem-se trocas de experiências. O que está em jogo é a reciprocidade com que essas
relações são estabelecidas e as diferentes alternativas interacionais daí decorrentes,
principalmente no interior da família. Cabe ressaltar que a fragmentação da sociedade
moderna possibilita a multiplicidade de referências que colocam em questão a família como
unidade, como conjunto. Se ela está relacionada a formas tradicionais de vínculo e à condição
de instituição preexistente há alteração no seu caráter e significado na medida em que o
indivíduo se destaca e é cada vez mais sujeito. Além da família, que perde o seu caráter de
sociabilidade absoluta ou exclusiva, novas formas de sociabilidade vão surgindo e com elas,
outras configurações de valores. Se a família perde a sua dominância absoluta, isso não quer
dizer que essas relações desapareçam. Apenas passam a ser mais uma dentre outras tantas
formas de sociabilidades que vão surgindo em decorrência de novos paradigmas. Nesse
sentido, as relações intergeracionais, independente dos espaços em que se estabeleçam
“implica(m) o reconhecimento da diferença como elemento constitutivo da sociedade”.
Podem ser constituídas através do jogo de destino no qual as expectativas do adulto em
relação ao futuro do jovem levem em consideração interesses pessoais. Nesse jogo, as regras
devem ser discutidas e construídas no diálogo aproximativo de distintos interesses e visões de
mundo e de projetos muitas vezes opostos. Em um contexto de negociação, “não só o conflito,
mas a troca, a aliança e a interação em geral, constituem a própria vida social através da
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experiência, da produção e do reconhecimento explícito ou implícito de interesses e valores
diferentes” (idem, pág. 22). São diferentes universos que se comunicam através de relações
dinâmicas que, além de envolverem jovens e adultos, são estabelecidas no interior da família
como grupo social específico e que podem fundar determinados acordos e/ou ajustamentos,
ainda que exista a dificuldade de consenso em função de distintos fluxos comunicacionais.
Esses fluxos estão marcados principalmente pela dimensão de conflito expressa em atitudes
de oposição e recusa e que pode ser própria do compartilhamento de gerações. Sendo assim,
diferentes linguagens e códigos podem encontrar – ainda que de maneiras nem sempre
harmoniosas – uma linguagem básica comum que permita a troca de experiências entre jovens
e adultos. A coexistência dessas diferenças parece ser uma das características dinâmicas da
sociedade complexa. Desse relacionamento, ainda que muitas vezes contraditório e
conflituoso, dependem a continuidade e as transformações da vida social. Nas sociedades
tradicionais o papel da memória coletiva é fundamental para a elaboração das identidades
marcadas pelo pertencimento ao grupo – seja ele a família nuclear, estendida ou mesmo a
comunidade de afeto. Nesse caso, o grupo compreendido como unidade englobante possui
maior significado do que o próprio indivíduo. Isso não quer dizer que os processos de
individuação desapareçam ou simplesmente não existam. Apenas que as biografias
individuais têm pouca ênfase e o que ganha força é o sentido de pertencimento. Por outro
lado, o individualismo, as biografias e trajetórias individuais ganham destaque nas sociedades
complexas, no interior das quais a fragmentação surge como um dos indicativos da chamada
modernidade. Apesar da configuração de contextos sociais nos quais esses elementos sejam
supervalorizados – e, com eles, a memória individual ganhe importância e destaque, seja
socialmente mais relevante, continuamente descoletivizada –, é possível encontrar indivíduos
que estejam fortemente vinculados ao grupo.
5 – Considerações Finais
Os jovens formam o segmento social capaz de apagar os traços de uma possível ruptura nas
relações sociais com os grupos que os antecedem, ou seja, os adultos e os mais velhos. São
eles capazes de reatar os fios que possibilitam tecer uma rede de sociabilidades que envolvem
gerações aparentemente extremas, tornando possível, desse modo, a continuidade dos
movimentos culturais. As relações intergeracionais podem permitir um exercício de
aprendizagem que, se para os adultos significa ao mesmo tempo, memória e lembrança, para
os jovens pode representar aprendizagem dialógica que se encontra no ato de recordar: para
aqueles, recordar de si; para estes, recordar para si, aprender com eles. Nesse sentido, os
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jovens são a garantia de vida e futuro para a sociedade, para o grupo – ainda que estes
transformados e aqueles transformadores – e essa continuidade tem a sua força, seu núcleo
gerador, na memória coletiva. Responsáveis que somos pelas gerações seguintes, creio haver
um compromisso com a convivencialidade intergeracional em que o jovem seja reconhecido
como sujeito em exercício, em constante aprendizagem, mas com amplas possibilidades de
ação, de interação. Para que possa realizar o “presente do futuro” precisa chegar lá tendo
experimentado, vivenciado experiências que acumulem conhecimentos necessários à
concretização de um futuro que por ora se apresenta utópico. Para além da promessa de um
futuro melhor e que, na maioria das vezes não se concretiza, a participação juvenil no
processo de efetivação desse mesmo futuro exige uma construção coletiva – através de
relações entre as gerações, ainda que conflituosas, mas abertas ao constante diálogo – das
condições materiais que apontem para mudanças que superem as condições que ora se
apresentam. Estas são reguladas e reafirmadas pelas desigualdades sociais, nas formas
precárias de vida e devem servir de orientação para uma pauta de diálogos intergeracionais,
onde o jovem seja instigado a pensar junto as alternativas para a elaboração de um outro
projeto de sociedade. Através da participação juvenil este poderá ser delineado em um campo
de possibilidades concretas e no qual enxergo a estreita relação entre experiência e projeto e
sua articulação no presente. O desafio está em encontrar possibilidades de espaços/tempos
interacionais nos quais as relações se efetivem. A cultura, em suas dimensões educacionais,
coletivas e subjetivas, ainda que em constante transformação, parece ser um desses espaços,
mesmo que em diferentes tempos, mas que tem no presente um encontro marcado.
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1 Para que a memória seja compartilhada é necessário que a lembrança seja reconhecida e reconstruída “a partir de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque elas passam incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade” (Halbwachs, 2004, pág. 39).