Post on 25-Jul-2015
Carlos Heitor Cony
Pisei de mau jeito num desses caminhos da vida e
peguei uma dor no tornozelo que não passava
com os recursos da medicina ocidental.
Aconselharam-me a alternativa que sempre se busca nessas horas: os complicados macetes da
medicina oriental.
Daí que adentrou em minha sala um japonês simpático, com o simpaticíssimo nome
de Tada.
Ele e suas agulhas. Tada espetou-as não exatamente no local avariado mas em quase todo o corpo. Identificou problemas no baço – e eu nem sabia que tinha baço
dentro de mim.
Para amenizar o agulheiro em que me transformei, falou de
sua vida e de sua quase morte.
Morava em Hiroshima, tinha 6 anos quando viu um sol nascer do chão e matar todo mundo
em volta.
Tada não sabe nem quer saber por que sobreviveu – nem perde tempo em
pensar nisso.
Todos os anos, em agosto, faz silêncio de um minuto para lembrar o que
viu e não entendeu – e não entende até hoje.
Seu vocabulário em português é pobre, na
realidade, é paupérrimo.
Não usa verbos, usa apenas substantivos.
Descreve aquela manhã de agosto de 1945 misturando alguns desses substantivos: tragédia – tristeza – política.
Para ele, política não é apenas companheira da tragédia e da tristeza.
Mais do que um sinônimo, é uma causa.
Esqueci de dizer que rosna algumas interjeições, como
“ai”, “ui”, “oooh” e uma variante dessa última, que é “iiih”.
O resultado é que o meu diálogo com ele corre
naturalmente, pois insisto também nas mesmas
interjeições, sobretudo na primeira.
Diz ele que a sua pele ainda tem vestígios
daquela manhã.
Suas agulhas também.
De maneira que me sinto, de certa forma,
um sobrevivente de Hiroshima.
Passei a entender por que não gosto de política.
E a confundo com tragédia e tristeza.
Carlos Heitor Cony
Imagens recebidas por email Música: “Memories”– Andre Rieu
Formatação: Christina Meirelles Neves