Post on 11-Oct-2015
Pablo Menezes e Oliveira
C A R T A S , PED R A S , T I NTA S E C OR A O:
As casas de cmara e a prtica poltica em Minas Gerais (1711-1798)
Belo Horizonte
Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da UFMG
2013.
Pablo Menezes e Oliveira
CARTAS, PEDRAS, TINTAS E CORAO:
As casas de cmara e a prtica poltica em Minas Gerais (1711-1798)
Tese apresentada ao curso de Doutorado da
Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da
Universidade Federal de Minas Gerais, como
requisito parcial obteno do ttulo de doutor
em Histria.
rea de Concentrao: Histria, Tradio e
Modernidade: poltica, cultura e trabalho.
Orientadora: Prof Carla Maria Junho Anastasia
Co-orientador: Prof. lvaro de Arajo Antunes
Belo Horizonte
Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da UFMG
21 de Junho de 2013.
981.51 Oliveira, Pablo Menezes e
O48c Cartas, pedras, tintas e corao [manuscrito] : as casas de cmara
2013 e a prtica poltica em Minas Gerais (1711-1798) / Pablo Menezes e Oliveira.
- 2013.
274 f.
Orientadora: Carla Maria Junho Anastasia.
Co-orientador: lvaro de Arajo Antunes.
Tese (doutorado) Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Cincias.
.
1. Histria Teses. 2. Camaras municipais Minas Gerais - Teses. 3. Poder (Cincias sociais) - Teses. 4 Minas Gerais Histria Teses. I. Anastasia, Carla M. J. II. Antunes, lvaro de Arajo. III Universidade Federal de Minas
Gerais. Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas. IV. Ttulo
I. Ttulo.
Para o Lucas, meu pequeno cientista
Para meu pai, e as conversas que no pudemos ter
A GR A DE C IMEN TOS
Depois de muitos anos de trabalho, relacionar em algumas linhas as pessoas e
instituies que tornaram possvel este trabalho uma tarefa herclea. Sou grato ao
Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG por ter acolhido meu projeto, e me
oferecido condies para que ele fosse realizado. A cada um dos coordenadores que
estiveram frente do programa, fica minha gratido. Agradeo a todos os professores
do Programa, que contriburam para a construo da Tese. Agradeo a professora Eliana
Dutra, que discutiu o trabalho de maneira muita atenta e criteriosa, chamando a ateno
especialmente para a questo da utilizao de fontes. Ao professor Rodrigo Patto S
Motta, sou grato pela importantes discusses acerca do conceito de Culturas Polticas, e
a leitura instigante do trabalho. Agradeo professora Jnia Furtado por ter alargado os
caminhos da Histria de Minas, oferecendo valiosas consideraes ao trabalho. A
professora Adriana Romeiro agradeo igualmente pelas contribuies desde os tempos
de mestrado, recentemente reavivadas no exame de qualificao do doutorado. Ao
professor Luiz Carlos Villalta, ofereo minha eterna gratido intelectual e afetiva por
tudo que fez por mim. Desde os tempos de graduao ele tem aguentado minhas
lamrias e inquietaes, sabendo a palavra certa para colocar as coisas em ordem.
Sou grato Fundao Calouste Gulbenkian, que me concedeu uma bolsa para
realizar investigaes nos arquivos portugueses. Em Portugal, pude contar com a
grata ajuda do professor Nuno Gonalo Monteiro, atento interlocutor do trabalho.
Agradeo aos funcionrios da Torre do Tombo, na Biblioteca Nacional e no Arquivo
Histrico Ultramarino pela gentileza e ateno recebida. Agradeo d. Ana, que me
acolheu em Lisboa, sempre com palavras amigas e pratos fantsticos.
Nas salas de aula e corredores da Fafich, contei com amigos valiosos, que
levarei para sempre. Entre tantos, gostaria de registrar especiais agradecimentos a um
trio valoroso. Carolina Capanema foi uma constante interlocutora, sempre partilhando
preocupaes e incertezas no caminho para as Minas setecentistas. Sou grato a meu
amigo Adriano Toledo, pelas agradveis e infindveis conversas, ao amigo Rodrigo
Ozrio, que mesclava seu brilhantismo com um grande senso de humor.
Quero tambm registrar minha gratido aos amigos que sempre transitaram na
minha vida, sempre oferecendo palavras e apoio ao trabalho. Sou grato aos amigos
Flvio Puff, Fabrcio Roberto, Caion Natal, Douglas Puglia, que h muito esto comigo
neste barco. Agradeo aos amigos dos mundos do trabalho, que administraram
minhas ausncias e falhas na execuo de servios. Agradeo ao amigos do JALS, pela
gentileza da leitura do meu trabalho. Coloco neste rol Marco Antnio Silveira, com
quem tive a alegria de partilhar inclusive a docncia na UFOP, Pedro, Gilson, Dbora e
tantos outros. Neste grupo tive a oportunidade de estreitar conversas com um grande
amigo e co-orientador deste trabalho, lvaro Antunes. Dotado de uma enorme gentileza
e ateno, foi um leitor atento deste trabalho. De uma calma mpar, e um profundo
senso crtico, fez apontamentos ao trabalho que se estendem para a forma como hoje eu
me relaciono com a pesquisa histrica. A ele fica meu imenso agradecimento.
Agradeo minha esposa Dalila, que ofereceu todas as condies para que eu
pudesse realizar minhas pesquisas e a redao da tese. No foram poucas as vezes que
ela teve que mudar sua agenda de trabalho em cima da hora para permitir minha ida a
eventos, arquivos e inclusive rumar para Portugal. Sem ela, dificilmente este momento
se concretizaria. Ao meu filho Lucas, fica minha alegria de saber que tenho um pequeno
e curioso cientista, que vez por outra olhava minhas transcries documentais, fascinado
com aquilo. A minha me agradeo pelas oraes, e as constantes palavras de apoio.
Finalmente, fao um agradecimento especial minha orientadora, professora
Carla Anastasia. Ainda em 2005, ao fim da minha defesa de mestrado, havia se
comprometido a me orientar no doutorado. De uma qualidade incrvel como
pesquisadora, ainda na primeira vez que nos sentamos para discutir os rumos do
trabalho, h quase quatro anos, me deu uma diretriz de trabalho que se transformou
nessa tese. Com muita calma e ateno, soube aplacar meus momentos de desespero e
inquietude. A ela fica minha eterna gratido.
R ES U MO
O trabalho tem por objetivo analisar as prticas polticas das casas de cmara na
Capitania de Minas Gerais no perodo setecentista. Durante o sculo XVIII foram
criadas na regio quatorze municipalidades, nas quais foram instaladas as cmaras,
instituies que deveriam realizar um grande nmero de competncias no nvel local.
Tinham atribuies em variadas reas, referentes a aplicao da justia, a cobrana de
tributos e a realizao de obras de uso coletivo, como pontes, ruas e chafarizes. Eram
responsveis pela fiscalizao do abastecimento das vilas, bem como pela aferio de
pesos e medidas dos estabelecimentos comerciais. Para alm destas atribuies, os
camaristas procuraram preservar os interesses dos moradores das vilas, atravs das
correspondncias enviadas ao rei e seus ministros. Nestas podemos descortinar os mais
variados temas referentes s necessidades dos moradores locais. Para alm, as cartas
mostram tenses entre as cmaras e ouvidores, governadores, e a Igreja em diversas
matrias.
Palavras-chave: Cmaras poder governo
A BST R AC T
The research aims to analyze the political practices of the chambers at captaincy of
Minas Gerais state in the eighteenth century. During the eighteenth century were
created fourteen municipalities in the region, in which the chambers were installed.
These institutions should perform a great number of actions at the local level. They had
assignments in various areas relating to applying justice, collecting taxes and building
and maintenance of communities areas such as bridges, streets and fountains. They
were responsible for monitoring the town supplies as well as ensuring the weights and
measures of local businesses. In addition to these duties, the chambers sought to
preserve the interests of the town through mails sent to the king and his ministers. In
these mails were written several requests and demands related to the needs of local
residents. In addition, the letters show "tensions" between the chambers and
ombudsmen, governors, and the Church in various areas.
Key-words: town-council power - government
L IST A DE IL USTR A ES
Figura 1.1 - Colonizao do territrio mineiro: criao de vilas e seus respectivos
termos (1711) ................................................................................................................. 55
Figura 1.2 - Comarcas da Capitania de Minas Gerais (1720-1815) .............................. 61
Figura 1.3 - Colonizao do territrio mineiro: criao de vilas e seus respectivos
termos (1713-1730) ........................................................................................................ 63
Figura 1.4 - Colonizao do territrio mineiro: criao de vilas e seus respectivos
termos (1789-1798) ....................................................................................................... 97
Figura 2.1 - Chafariz da Rua So Jos ....................................................................... 106
Figura 2.3 - Chafariz da Glria, ou de Albuquerque ................................................... 107
Figura 2.3 - Casa de cmara da Cidade de Mariana .................................................... 111
Figura 2.4 - Casa de Cmara e Cadeia de Vila Rica .................................................. 115
Figura 2.5 - Pelourinho de Vila Rica ........................................................................... 117
Figura 2.6 - Plta da cidade de Mariana ...................................................................... 124
Figura 2.7 - Praa instalada no Morro de Santa Quitria ............................................ 125
Figura 3.8 - Carta Geogrfica do Termo de Villa Rica .............................................. 233
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Populao da Capitania em 1776 ................................................................ 68
Tabela 2 - Populao da Capitania em 1821 ................................................................ 68
Tabela 3 - Habitantes de Minas Gerais: crescimento anual entre 1776 e 1821 ............. 70
Tabela 4 - Composio da riqueza, em mil-ris, nos inventrios das comarcas de Vila
Rica e Rio das Mortes por perodos 1750-1822 ......................................................... 72
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AHU: Arquivo Histrico Ultramarino Projeto Resgate / Minas Gerais.
ANTT: Arquivo Nacional da Torre do Tombo
APM: Arquivo Pblico Mineiro
BNP/CP: Biblioteca Nacional de Portugal Coleo Pombalina
RAPM: Revista do Arquivo Pblico Mineiro
SUMRIO
Introduo ..................................................................................................................... 13
Estado da arte.................................................................................................................. 16
Pressupostos tericos ...................................................................................................... 28
Fontes e metodologia de utilizao ............................................................................... 32
Captulo 1. Ocupao e ordenao do Serto dos Cataguases no setecentos (1711
1798) ............................................................................................................................... 36
1.1. Tenses e acomodaes polticas nos distritos mineradores em princpios do sculo
XVIII e a criao das primeiras cmaras ........................................................................ 36
1.2. As cmaras e o governo das Minas ......................................................................... 44
1.3. Novas Cmaras para os distritos mineradores (1713-1798) .................................... 56
1.4. Entre peties e (possveis) tenses: a formao de vilas no final do setecentos
(1789-1798) ................................................................................................................... 65
Captulo 2. As cmaras como pilares da administrao dos povos da Capitania
de Minas Gerais ......................................................................................................... 101
2.1. Pedras, panos, tintas e corao: a construo do espao camarrio ...................... 102
2.2. As cmaras e a governabilidade das Minas ....................................................... 134
2.3. Fazendo se recebe? As prticas administrativas e as demandas ao rei .................. 149
Captulo 3. As cmaras e suas demandas diversas na Capitania de Minas Gerais
tenses e acomodaes ............................................................................................... 166
3.1. Cartas ao Rei ......................................................................................................... 166
3.2. Quando tributos precisam ser revistos .................................................................. 174
3.3. As tenses das cmaras com as outras esferas governativas ................................. 207
3.3.1. As cmaras e a Igreja ......................................................................................... 208
3.3.2. As cmaras e os Magistrados ............................................................................. 216
3.3.3. Os camaristas e os militares .............................................................................. 228
3.3.4. As tenses entre os pilares ............................................................................. 230
3.3.5. As cmaras e as tenses com os moradores ...................................................... 237
3.4. Quando as cmaras e seus representantes eram o problema ................................. 238
Consideraes finais .................................................................................................. 250
Fontes .......................................................................................................................... 260
Impressas ..................................................................................................................... 260
Manuscritas .................................................................................................................. 263
Bibliografia ................................................................................................................. 265
13
INTRODUO
O texto apresentado resultado das pesquisas que foram desenvolvidas no
mbito do doutorado junto ao Programa de Ps-Graduao em Histria da
FAFICH/UFMG. A tese tem a proposta de fazer uma leitura da vida poltica da
Capitania de Minas Gerais no sculo XVIII tendo as Casas de Cmara como objeto de
estudo. As cmaras eram instituies responsveis por instalar o poder legislativo,
executivo e judicirio nas vrias localidades onde os sditos portugueses se fixaram.
Grosso modo, a administrao camarria ficava a cargo dos oficiais responsveis por
levar as leis e ordens rgias s vrias paragens dalm-mar. Os oficiais eram
responsveis por cobrar taxas, fixar preos de produtos e provises alm de licenciar os
vendedores ambulantes, zelar pela qualidade e regularidade de abastecimento dos
gneros postos venda, alm de regular os feriados, organizar festividades cvicas e
religiosas, policiar as localidades sob sua jurisdio. Na rea judiciria, atuaram como
uma espcie de tribunal de primeira instncia, administrado pelo juiz de fora ou juiz
ordinrio e regulada pelo ouvidor da sua respectiva comarca. Contudo, apesar do
controle e mediao do ouvidor e do corregedor, a cmara tinha o direito de se dirigir
diretamente ao monarca para, por exemplo, apresentar a insatisfao dos povos em
assuntos de ordem variada como questes fiscais, tributrias e outras, atividades que
foram executadas pelas quatorze municipalidades criadas em Minas durante o perodo
setecentista, fundadas entre os anos de 1711 e 1798.1 Fundamentalmente, desta
relao entre a cmara e a coroa que a presente tese trata.
O primeiro objetivo desta tese avaliar as razes e contingncias que
envolveram a criao das vilas nas Minas setecentistas. Foi possvel analisar que a
formao de vilas em Minas no seguiu um plano previamente desenvolvido, mas
atendeu necessidades de uma sociedade que se desenvolvia na regio, em conformidade
com as situaes de ordem econmica e demogrfica que se apresentavam. Nesse
sentido, apresentamos a tese de que a formao das vilas no seguiu risca os planos
1As vilas criadas neste perodo foram: Vila de Nossa Senhora do Carmo, Vila Rica e Vila Real de Sabar,
todas fundadas em 1711, Vila de So Joo d'el Rey em 1712, Vila do Prncipe e Vila Nova da Rainha em
1714, Vila Nova do Infante em 1715 e Vila de So Jos d'el Rey em 1718. A vila de Nossa Senhora do
Carmo foi elevada a Cidade em 1745, com o nome de Mariana, e foi a nica cidade fundada em Minas no
perodo. No ano de 1730 foi fundada a Vila de Bom Sucesso de Minas Novas. Em 1789 foi fundada a
Vila de So Bento do Tamandu, em 1790 a Vila de Queluz, em 1791 a Vila de Barbacena, e em 1798 as
Vilas de Campanha da Princesa e de Paracatu do Prncipe. A respeito, ver: PAULA, 2000.
14
traados de antemo pelo governo central, mas os adaptou ou mesmo os ignorou em
razo dos imperativos polticos, sociais e econmicos que caracterizaram as diversas
regies e temporalidades das minas.
O segundo objetivo mostrar que as cmaras tiveram um importante papel na
consolidao do poder rgio em Minas Gerais. O fez ladeando o processo de instalao
de funes administrativas, fiscais, jurdicas e militares e delas fazendo parte. Tambm
auxiliaram a coroa na efetivao de sua presena atravs da construo simblica da
imagem do rei, afirmando e consolidando seu poder. A ao camarria se deu atravs do
grande nmero de atividades relacionadas a festividades e eventos que promoveram e
consolidaram a imagem rgia na regio, bem como na construo e manuteno de
equipamentos necessrios vivncia na regio. Como colaboradores de festividades e
obras, os camaristas promoveram a imagem do rei nas Minas, mas tambm da cmara e
dos seus oficiais. Nestas ocasies, externavam seu lugar social, adquiriram capital
simblico, fortalecendo sua importncia junto aos moradores das municipalidades. A
grande vontade de externar sua importncia mostra-se nas volumosas somas que
gastaram nas festividades, muitas das quais questionadas pelos ouvidores, ento
responsveis por vigiar os gastos realizados pelas cmaras.
Nosso terceiro objetivo tratar das aes das cmaras, principalmente a prtica
de dirigir correspondncia ao rei, o que, acreditamos, foi um meio de sedimentar a
manuteno dos interesses relacionados com as Minas. Mostramos que atravs da
correspondncia os camaristas externaram vontades e queixas. Atravs das cartas,
remeteram ao rei e seus ministros seus pareceres sobre temas que tocavam os moradores
locais, como as questes tributrias. Esta prtica mostra a construo de uma prtica
governativa, na qual a negociao com os moradores de Minas foi considerada como
um meio de evitar tenses, em uma regio marcada pela rebeldia dos vassalos. Era a
busca pela construo e manuteno das formas acomodativas encabeada pelas
cmaras. Quando o equilbrio no era encontrado, a tenso se descortinava atravs dos
motins e rebelies, por vezes instigados por membros das prprias cmaras. Ou seja, as
cmaras, como canal de expresso poltica, dava vazo as formas acomodativas,
utilizando da linguagem prpria do perodo, que no dispensava a violncia. Processos
que faziam parte da estratgia de manuteno e de negociao das formas de governo na
regio. Isto foi fundamental para manter a vitalidade das cmaras como canal de
comunicao com a coroa na conduo dos interesses dos povos de Minas.
15
Entendemos, tambm, a manuteno da relao das cmaras com a coroa no
decurso de todo o sculo XVIII a partir das Teorias Corporativas do Poder. Assim, as
cmaras teriam mantido uma linguagem corporativa no decurso do setecentos,
evidenciada na correspondncia mantida com a Coroa, como forma de preservar seus
interesses. Confirmavam tal prtica chamando a ateno para o direito que tinham de se
corresponder com o rei enquanto representantes do povo, e parte do corpo social.
Para confirmar estas questes postas, avaliamos as aes das cmaras tomando
por vis duas abordagens. A primeira, normativa, considera a Cmara como um
instrumento rgio, estabelecido com o objetivo de levar as leis e ordens rgias s
diversas paragens da Capitania. A segunda abordagem privilegia o funcionamento das
cmaras, como elas se organizavam, os jogos polticos, o modo de preservar e
estabelecer os acordos entre a Coroa e seus vassalos nas Minas. Pesquisamos tambm as
vrias contendas nas quais as cmaras rivalizaram com a Coroa e seus ministros, a
igreja e mesmo com outras municipalidades.
Sendo assim, o trabalho tem como marco espacial a Capitania de Minas Gerais,
mais precisamente suas vilas e cidade fundadas ao longo do sculo XVIII. Em 1709, a
outrora mal conhecida vastido genericamente denominada Serto dos Cataguases,
tornou-se Capitania conjuntamente regio de So Paulo sendo denominada Capitania
de So Paulo e Minas de Ouro. Em 1720, separada da Capitania de So Paulo, ganha o
nome de Capitania de Minas Gerais. O processo de transformao do Serto em
Capitania e a constituio de suas cmaras se relacionam com o processo de
institucionalizao do territrio.
Os marcos temporais foram fixados entre os anos de 1711 e 1798. O ano de
1711 foi o ano em que a primeira municipalidade da regio de Minas foi criada, a Vila
do Ribeiro do Carmo. O ano de 1798 foi escolhido pelo fato de ser o ano em que foram
fundada as duas ltimas das municipalidades mineiras do sculo XVIII. A fixao de
um marco temporal quase centenrio derivou do objetivo de se analisar a instalao de
municipalidades em Minas, processo que ocorreu entre os anos de 1711 e 1798. Dentro
deste mesmo perodo analisamos a produo de documentos pelas cmaras, com o
objetivo de entender sua insero na administrao de Minas.
16
Estado de arte
Os estudos referentes s Casas de Cmara no Imprio portugus tm gerado, nos
ltimos tempos, importantes debates entre pesquisadores em Histria. Estas discusses
vm se desenvolvendo como parte de um processo maior, relacionado ao aumento dos
trabalhos relacionados ao campo do poltico, referente a Portugal e seus domnios.
Segundo Laura de Melo e Souza, por muito tempo o estudo da administrao colonial
foi considerado um tema pouco honroso, relegado a segundo plano. Muitos trabalhos
publicados sob este enfoque tornaram-se referncia, mas o tema era considerado sem
nobreza, ligado tradio e ao conservadorismo.2 A mudana deste quadro entre
os pesquisadores de Histria da Amrica portuguesa teria ocorrido a partir de dois
movimentos. O primeiro se deu com a percepo de que o Atlntico sul era um sistema
prprio dentro do Imprio portugus. O segundo ocorreu com a renovao
historiogrfica em Portugal, em torno do tema administrao e poltica. Em Portugal, os
pesquisadores procuraram fugir da histria mais oficial, buscando problemas mais
complexos, procurando entender, por exemplo, as dinmicas do vasto domnio de
Portugal.3 Este processo foi acompanhado por um grande nmero de pesquisadores em
Histria dedicados ao estudo da Amrica portuguesa, que assimilaram estas novas
perspectivas em seus trabalhos.
Dentro deste novo panorama, muitos estudos relacionados com a poltica tm
focado sua ateno no exerccio do poder e na cultura poltica vigente no perodo
moderno. Segundo Fernanda Bicalho, a produo de trabalhos relacionados
administrao e poltica colonial tem como fundo o afastamento de generalizaes e
formalizaes dos processos sociais. Para a autora, faz-se necessrio resgatar as
negociaes polticas, a criao de estatutos sociais nos diversos lugares da Amrica e a
dimenso interna dos processos sociais.4 Diante desse panorama, o estudo do
funcionamento das cmaras tem ganhado importncia, seja no mbito das suas
atribuies ou dos agentes que as compem, seja nas relaes estabelecidas entre estas e
os outros poderes constitudos.
Um grande nmero de trabalhos tem reavaliado a ideia largamente difundida de
que as cmaras, ao longo de sua existncia, tiveram um papel secundrio na
2 SOUZA, 2006, p. 27-29.
3 SOUZA, 2006, p.41-44.
4 BICALHO, 2005, p. 89-90.
17
administrao do Imprio. Tal concepo vinha do entendimento de que o Estado
Absolutista limitou a ao das instituies relacionadas ao rei tornando-as meras
repetidoras das vontades rgias.5 Nesse sentido, a cmara agiria em prol do bom
funcionamento do Estado, atravs de atos dirigidos e orientados pela coroa. E se tal
questo parecia clara em Portugal, esta perspectiva de usos do poder se estendia e se
adensava para o caso dos domnios alm-mar.6
Exemplo de tal perspectiva, Raymundo Faoro, na obra Donos do Poder,
afirmava que os concelhos eram dominados pela coroa. Desde a fundao da vila, havia
a dependncia da determinao rgia que sempre reafirmava sua autoridade, por vezes,
nomeando diretamente o presidente desta instituio o chamado Juiz de Fora. Sendo
um instrumento rgio, tinha sua existncia ligada imposio das leis e tributao dos
povos, prtica que igualmente deveria atender ditames do rei. A dependncia
confirmava-se ainda com o fato de que em muitos casos, a criao das vilas precedia a
fixao dos povos nas localidades onde eram criadas, tamanha a necessidade de
imposio da ordem.7
Para outros, como Francisco Iglsias, a limitao dos poderes das casas de
cmara ocorreu ao longo do processo de dominao do espao americano. Em sua
interpretao, durante os sculos XVI e XVII, as cmaras estabelecidas na Amrica
portuguesa tiveram razovel autonomia poltica. Durante o sculo XVIII, essa
autonomia teria desaparecido em detrimento de uma crescente centralizao e presena
do Estado na Colnia marcada, sobretudo, pela descoberta das minas de ouro no
interior da Amrica portuguesa.8
Estabelecendo novos olhares sobre as cmaras, trabalhos recentes tm mostrado
que as municipalidades tiveram grande atuao poltica no sendo meras executoras de
ordens emanadas pela Coroa. Assim, foi possvel observar outras dimenses das aes e
5 Antnio Hespanha fez uma importante considerao sobre a questo que se impunha aos estudos sobre
os Estados Modernos, e ao Absolutismo. Para o autor, havia um tom escatolgico nos estudos
oitocentistas, procurando legitimar e perceber a formao poltica do XIX, voltando ao Antigo Regime percebendo nesta sociedade ora uma preparao para a emergncia dos Estados Liberais, e ora como
retrocesso. Assim, desconhece-se de fato a vida poltica do Antigo Regime, pois esta sempre encarada
como momento prvio ao Estado Liberal. Assim, boa parte dos estudos encarava atos polticos e espaos
da vida politica as assemblias so o parlamento como precedentes do Estado centralizado. HESPANHA, 2004, p.22-23. 6 Sobre a questo, h um importante trabalho de Antnio Hespanha, que sugere a reviso de alguns temas
sobre as relaes polticas entre metrpole e colnia. HESPANHA, 2001. 7 FAORO, 1991, p. 149.
8 IGLSIAS, 1974, p. 257-259. Ainda, PAULA, 2000, p. 33. Maria Vernica Campos tambm discutiu a
questo da imposio do Estado no sculo XVIII em seu trabalho de doutoramento, que adiante faremos
meno. CAMPOS, 2002.
18
funes concelhias, seja em Portugal, seja no ultramar, em que vem luz a
representatividade poltica das cmaras na administrao do Imprio. Observamos que
estas foram importantes no apenas para cumprir desgnios rgios, atravs de seus
oficiais, mas tambm para defender dos interesses dos povos, posto que podiam ser
ouvidas em suas solicitaes.
Tendo em vista tais orientaes, Nuno Gonalo Monteiro mostrou, para o caso
de Portugal, que as cmaras sempre guardaram uma grande independncia de poderes
frente ao monarca. Com espao para atuao, as cmaras resguardaram os interesses
daqueles que as compunham ou estavam relacionados a ela. Ainda segundo o autor,
todos os estudos recentes tm procurado reforar a idia da autonomia dos poderes
municipais face os dispositivos da Coroa, realando a sua natureza oligrquica.9
Xavier Gil Pujol, ao escrever sobre a origem do poder das cmaras na formao
do Estado Moderno afirma que, em verdade, os monarcas pretendiam mais o
fortalecimento do poder do sdito, bem como de sua dinastia que a centralizao do
poder. Segundo o autor:
o que as monarquias do sculo XVII pretendiam no era tanto a
centralizao, mas o fortalecimento das suas dinastias, a imposio do
princpio da autoridade sobre os seus sditos considerados pouco
obedientes [...] especialmente em matria fiscal, e a reputao na cena
internacional.10
A questo da centralizao e dos seus objetivos, presente em Xavier Pujol, aparece
tambm em Antnio Hespanha. Para este, apesar dos estudos recentes apontarem para a
existncia de um governo dos grandes domnios pautado na descentralizao, a
monarquia portuguesa investiu na idia de um imprio centralizado por ser
ideologicamente compensadora; esta prtica dava crdito vocao da metrpole,
permitindo que ela repersonificasse velhos imprios idealizados, como o romano.11
Antnio Hespanha procurou fazer em seus estudos uma nova leitura sobre o
paradigma poltico vigente na Europa at meados do sculo XVIII. Hespanha aponta
para o fato de que conceitos como Estado, centralizao, poder absoluto e imprio
perderam importncia na anlise da arquitetura das grandes monarquias europias. Com
As vsperas de Leviathan, Hespanha procurou revelar a importncia poltica das
chamadas instituies inferiores, como era o caso das cmaras municipais, dos
9 MONTEIRO, 1998, p. 269.
10 PUJOL, 1991, p. 124apud BICALHO, 2003, p. 340.
11 HESPANHA, 2010, p. 50.
19
poderes senhoriais e as jurisdies corporativas, bem como o papel dos conselhos, dos
oficiais e das instituies eclesisticas que limitaram o poder real.12
Trabalhos desenvolvidos sobre a atuao dos concelhos em Portugal, entre os
quais citamos, principalmente, o de Nuno Monteiro procuram afirmar que estes tiveram
uma grande margem de independncia.13
Estudos recentes sobre a atuao das mesmas
instituies nos domnios ultramarinos tm procurado atestar uma autonomia similar s
municipalidades encontradas em Portugal. Similaridade que, como apresentamos a
seguir, encontra lugar nos estudos sobre as cmaras instaladas na Capitania de Minas
Gerais.
Em um trabalho clssico, que se tornou referncia, Charles Boxer procurou
ressaltar a importncia das casas de cmara nos quadros do Imprio. Para o autor, as
Cmaras e as Casas de Misericrdia foram os verdadeiros sustentculos do Imprio
portugus. Eram estruturas permanentes e, portanto, garantiam a estabilidade necessria
manuteno dos vastos domnios ultramarinos, em detrimento do ir e vir dos muitos
governantes que afluam do Reino para os domnios alm-mar.14
Neste sentido, tanto a
estabilidade que promoviam, quanto as vrias atribuies que assumiam, fizeram das
cmaras instituies vitais para a manuteno do vasto Imprio portugus.
Incorporando as proposies de estudiosos portugueses, somadas a importante
observao de Boxer, um grande nmero de estudos tem vindo luz para analisar a
importncia das Casas de Cmara na Amrica portuguesa, identificando suas amplas e
variadas funes, seus interesses e seus agentes. Neste sentido, registramos as
proposies de Joo Fragoso, Maria de Ftima Gouvia e Maria Fernanda Bicalho
acerca das cmaras ultramarinas. Segundo os autores:
[...] recuperar a dinmica de negociao entre as elites coloniais e a
coroa portuguesa consiste na perspectiva terica que, ao valorizar as
cmaras enquanto espao poltico de negociao, nega uma viso
baseada numa via de mo nica, que valoriza apenas a explorao e a
dominao metropolitana sobre o territrio e a populao colonial.15
A respeito da questo acima estabelecida, Russel-Wood chamou a ateno para
as relaes polticas entre os poderes centrais e os poderes perifricos na Amrica
portuguesa mencionando o fato de que, em muitas situaes, ao longo do perodo
12
HESPANHA, 2010, p. 45-46. 13
MONTEIRO, 1998. 14
BOXER, 2001, p. 267-278 passim. 15
FRAGOSO; GOUVEIA; BICALHO, 2000, p.76.
20
colonial, os colonos, atravs das cmaras, se postaram contra medidas consideradas
danosas aos seus interesses. Assim, atuaram no sentido de evitar ou modificar
totalmente as polticas propostas, de atrasar a implementao de aes prescritas ou de
negociar um acordo menos ofensivo aos interesses coloniais.16
Em um conjunto de estudos sobre as funes das cmaras na Amrica
portuguesa, Fernanda Bicalho permitiu a leitura das atribuies e aes desta
instituio.17
Constatou que os concelhos eram, fundamentalmente, estabelecidos nos
domnios alm-mar para levar as leis e ordens rgias, conforme as proposies de
Charles Boxer. Para alm disso, Bicalho mostrou que, embora tivessem uma estrutura
bsica definida, as cmaras guardavam certas particularidades entre si. Diferenas
criadas ao longo do tempo, fruto de diferentes conjunturas econmicas, polticas e
sociais.18
Tais situaes ficavam claras a partir dos exemplos das atuaes das Cmaras
de So Paulo de Luanda, Macau, Salvador e Rio de Janeiro. Assim, na medida em que
evidencia a ideia de uma estrutura que incorpora diferentes atribuies, Bicalho
corrobora com a tese de Charles Boxer sobre a importncia das cmaras que atuariam
em favor da estruturao e manuteno do Imprio portugus.
Os trabalhos de Fernanda Bicalho foram importantes tambm por tratar das
relaes entre as cmaras e outras esferas de poder. As cmaras do ultramar, e mesmo
as do reino, foram prdigas em utilizar suas prerrogativas de comunicarem-se
diretamente com o rei. Segundo a autora, esta prtica teve origem na reunio das Cortes
em Portugal. As cortes eram a reunio dos vrios corpos constitutivos da sociedade
representados pelos trs estados com o rei, onde questes vrias eram apreciadas.
Assim, discutia-se a aclamao do novo rei, juramento do prncipe herdeiro, novos
tributos, entre outros.19
Quando diante do rei, os membros das cortes tinham a
possibilidade de apresentar seus agravos e queixas. Tal interpretao ficava confirmada
em face o grande nmero de representaes dirigidas ao rei pela cmara do Rio de
Janeiro que recorria arbitragem rgia, especialmente quando viam sua jurisdio
usurpada ou quando passavam por conflitos no nvel local. Ainda, as queixas
canalizadas atravs das casas de cmara acerca das mazelas dos ministros do rei
acabavam por constituir um importante instrumento do controle rgio sobre a poltica
16
RUSSEL-WOOD, 1998. 17
BICALHO, 2001; BICALHO, 2003. 18
BICALHO, 2001, p. 193. 19
CARDIM, 1998, p. 146.
21
ultramarina o que explicaria o interesse da Coroa em dar manuteno a este canal de
expresso.20
Para o caso de Minas Gerais, muitos foram os trabalhos que tiveram como
objeto de estudo as Casas de Cmara existentes na regio. Observamos que os trabalhos
que versam sobre as cmaras o fizeram de diversas maneiras. Alguns fizeram estudos de
caso sobre as atuaes das cmaras na Capitania de Minas procurando identificar a
importncia e centralidade desta nos quadros da ordenao social. Neste caso, observe-
se a especial ateno dada ao Senado de Vila Rica, importante por ser a sede do governo
da Capitania, desde 1720. Outros trataram as cmaras dentro de uma conjuntura mais
ampla, inserindo-as em um processo de estruturao da administrao portuguesa nas
Minas.
Por fim, observamos a existncia de trabalhos que, estudando alguns aspectos da
vida social e poltica de Minas, fizeram meno s casas de cmara, procurando
observar sua relao com a ordenao e/ou sublevao da sociedade. No se pode deixar
de registrar o amplo avano dos estudos que nos ltimos anos tm procurado aproveitar
as grandes discusses sobre poltica, para desenvolver trabalhos que redimensionaram o
entendimento deste aspecto da Capitania de Minas Gerais no perodo setecentista.21
Abaixo cito e apresento de maneira sucinta alguns trabalhos que tiveram nas cmaras
seu objeto de estudo, e marcaram as questes aqui desenvolvidas acerca do estudo das
municipalidades mineiras. Muitas questes apontadas nestes trabalhos foram ponto de
partida para a redao da tese.
Sobre as cmaras de Minas, registramos um dos primeiros trabalhos dedicados
especificamente ao tema em Francisco Peixoto de Paula.22
Em linhas gerais, buscou
analisar o processo de formao de vilas na regio de Minas Gerais entre os anos de
1711 e 1814. Longe de esgotar o assunto, o autor apresentou apenas apontamentos
cronolgicos sobre a formao das municipalidades, reforados com alguns dados mais
gerais sobre o funcionamento das cmaras mineiras. Exemplo deste esforo est em seu
apontamento de que os camaristas muitas vezes tinham que enfrentar o poder
eclesistico e os ouvidores.23
20
BICALHO, 2003, p. 352-353. 21
Entre outros, citamos: ANASTASIA, 1998; CAMPOS, 2002; ROMEIRO, 2008. 22
PAULA, 1965. O trabalho tinha nas vilas seu objeto de estudo. Mas devemos registrar muitos trabalhos
que o antecederam tocaram no tema antes da publicao do referido trabalho. Chamo a ateno
especialmente para o trabalho de Diogo de Vasconcelos, Histria Antiga de Minas Gerais e Histria
Mdia de Minas Gerais. 23
PAULA, 1965, p. 282.
22
A discusso sobre as cmaras mineiras tambm foi razo de um estudo realizado
por Russel-Wood.24
Tendo a cmara de Vila Rica como objeto, procurou analisar a
introduo, no Novo Mundo, de instituies que tiveram seu valor comprovado em
Portugal. Neste sentido, pretendeu avaliar at que ponto as casas de cmara refletiam
suas congneres europias ou delas se afastaram por fora das adaptaes que sofreram
no ultramar. Segundo o autor, as circunstncias que levaram a Coroa a fundar vilas em
Minas foram principalmente a dura realidade da corrida do ouro. Se, por um lado, o
ouro atraiu para a regio um grande nmero de aventureiros vidos por fazer fortuna,
por outro lado tambm foi um dos responsveis pelos temores e ambies da Coroa
portuguesa.25
Ainda em seu estudo, mostrou que o senado de Vila Rica, instalado na
sede da Capitania, permitiu que seus oficiais extrapolassem suas atribuies originais.
Os camaristas de Vila Rica assumiram funes adicionais, em muitos casos atuando
sobre variadas matrias, com esferas de jurisdio e atribuies no claramente
definidas. Esse sistema redundava em diversos inconvenientes, como a convergncia de
jurisdies e a convergncia de pessoal.26
Todo o exposto deixava claro a importncia
das casas de cmara nos quadros da administrao da Capitania, bem como o fato da
coroa constantemente recorrer a esta para que pudesse levar a lei e a ordem a algumas
regies de Minas.
Em trabalho tambm importante referente ao tema, Cludia Damasceno
procurou identificar os mecanismos de fixao da Coroa na regio de Minas, atravs da
fundao de parquias e vilas.27
Segundo a autora, a criao de vilas na regio era parte
do projeto rgio de instalar nas Minas um governo civil e militar. Assim, consistia em
estabelecer as bases da justia e do fisco atravs de demarcaes ao mesmo tempo
judicirias e administrativas. Se esta orientao ficava em primeiro plano, outras
funes tambm tinham lugar nas motivaes para a criao de municipalidades em
Minas. Neste sentido, a autora, assim como outros autores, sugere que as cmaras eram
um espao de negociao entre a metrpole e os colonos.28
Ao tratar do processo de formao de vilas em Minas, Cludia Damasceno
observou que os concelhos foram criados em perodos sucessivos, com intervalos
variveis, identificados em duas fases. Um primeiro, entre 1711 e 1730, quando as
24
RUSSEL-WOOD, 1977. 25
RUSSEL-WOOD, 1977, p. 32. 26
RUSSEL-WOOD, 1977, p. 48. 27
FONSECA, 2001; FONSECA, 2011. 28
FONSECA, 2001, p. 137. Ainda, RUSSEL-WOOD, 1977; CAMPOS, 2002; BICALHO, 2003.
23
municipalidades foram criadas como forma de estabelecer novas estruturas
administrativas ou normatizar as que j existiam. Visavam, tambm, pr fim s diversas
disputas entre faces de habitantes que viviam nas Minas. Em um segundo perodo de
criao das vilas, entre 1789 a 1814, as cmaras estariam ligadas aos conflitos de poder
local e poltica fiscal da metrpole. No referido perodo, a criao das cmaras estaria
ligada s tentativas de encerrar os conflitos territoriais concernentes delimitao das
fronteiras da Capitania.29
Muitos apontamentos apresentados pela autora foram fundamentais para o
desenvolvimento da presente tese. Dentre eles destacamos as formas de ocupao do
Serto dos Cataguases. Entretanto, mesmo sendo um trabalho que elucidou alguns
pontos polticos e geogrficos sobre a fundao de vilas em Minas, possvel distinguir
na referida obra uma ausncia de profundidade na apreciao das questes polticas que
permearam a criao de algumas cmaras. Isso se apresenta, por exemplo, para o caso
da discusso das trs primeiras municipalidades, instaladas no ano de 1711. E se repete
para as vilas criadas entre os anos de 1789 e 1798. Lacunas que discutimos e
elucidamos no presente trabalho. Discutir esta questo nos permitiu mostrar que a coroa
nunca teve um plano previamente delineado de formao de vilas, e afinal questes
polticas sempre pesaram na conduo do processo de instalao de novas cmaras em
Minas Gerais no sculo XVIII.
O estudo de Maria Vernica Campos, ao fazer uma anlise do processo de
fixao do poder rgio na regio de Minas, permitiu-nos observar os interesses e
funes no estabelecimento das cmaras em algumas paragens de Minas, entre os anos
de 1711 e 1730.30
Seu trabalho ressalta a peculiaridade em torno da descoberta e
organizao de um aparato poltico, jurdico e tributrio de Minas.Vernica Campos
afirma que a institucionalizao da regio contribuiu com um quadro mais amplo de
controle, pois a descoberta de ouro nas Minas coincidiu com um movimento de maior
presena de autoridades metropolitanas e de centralizao em toda a Amrica
portuguesa. Tal processo teria alcanado seu auge no sculo XVIII, perodo marcado
pela expanso das fronteiras americanas pela interligao de diversas zonas de
colonizao e pelo "recrudescimento" da centralizao monrquica.31
Questo que
coincide com discusses que j apresentamos nas pginas anteriores.
29
FONSECA, 2001, p. 138. 30
CAMPOS, 2002. 31
CAMPOS, 2002, p. 15-16.
24
Postas estas questes, Vernica Campos acredita que as vilas mineiras foram
estabelecidas dentro dos desgnios de formao de um aparato poltico na regio. Por
outro lado, a autora no deixa de levar em conta a importncia dos concelhos para os
moradores de Minas. Ao tratar da criao de vilas na Capitania de Minas, na primeira
metade do setecentos, faz meno ao fato de que as elites locais passavam a ter um
espao institucionalizado de atuao e de conduo dos interesses que
representavam.32 Neste sentido, por exemplo,Vernica Campos destaca a participao
das cmaras nas juntas que eram institudas para discutir novos tributos nas Minas. Isto
mostra que elas eram ouvidas e poderiam decidir sobre a pauta poltica da poca, na
medida em que cada uma delas tinha direito a voto.33
Por fim, cabe ressaltar que o
trabalho de Vernica Campos apresenta os motivos que levaram criao de cada uma
das vilas em Minas diante de conjunturas diferenciadas, entre os anos de 1711 e 1730.
Portanto, atendiam a necessidades diversas de uma regio que comportava interesses e
necessidades dspares. E, afinal, seu trabalho evidencia a ausncia de um projeto para
as Minas, que teria sua estrutura administrativa montada em conformidade s
especificidades es demandas mais prementes, seja do rei, ou seja dos moradores da
regio. O que procuramos mostrar que as cmaras se inseriram neste processo.
Instaladas em vrias localidades, auxiliaram a coroa na tentativa de instalar as bases de
uma estrutura fiscal, administrativa e jurdica no nvel local.
Ainda no que toca a questo das cmaras, Vernica Campos considera que estas
tiveram uma atuao muito limitada na administrao de Minas. Isso teria acontecido
por conta do grande aparato administrativo que foi instalado na regio. Segundo a
autora:
As cmaras tinham competncias muito limitadas em comparao com as das
demais regies da Amrica portuguesa. Depois de 1720, quando perderam o
controle sobre o quinto, no detinham mais a administrao de nenhum
contrato rgio, e foram proibidas de criar estancos de aguardente, carne e
fumo. Exceto para a nomeao de alcaide, no tinham prerrogativa de
provimentos de cargos de portaria, escrivania ou tesouraria.34
Nosso estudo procurou subverter esta perspectiva, a partir da ampla documentao
produzida pelas cmaras, que mostra a grande atuao poltica das casas de cmara de
Minas. Apesar de no decurso do setecentos ter deixado de exercer algumas atividades
32
CAMPOS, 2002, p. 115. 33
Por exemplo, no ano de 1735, foi reunida uma junta para discutir a implantao da capitao nas
Minas, com a convocao dos representantes das cmaras. CAMPOS, 2002, p. 335. 34
CAMPOS, 2002, p. 382.
25
fiscais e administrativas, sua vitalidade poltica foi mantida. Isto porque ao longo do
setecentos remeteram continuamente correspondncia ao rei, com vias a resguardar os
interesses dos moradores locais, em matrias variadas.
Alm dos trabalhos que procuramos apresentar anteriormente, as cmaras de
Minas Gerais do sculo XVIII foram estudadas a partir de seus oficiais. Cada um deles
auxiliou no entendimento do funcionamento do poder local em Minas, mostrando sua
importncia no quadro da administrao da Capitania. Exemplo de tal esforo, o
trabalho de Maria do Carmo Pires traz uma anlise da atuao dos juzes de vintena na
comarca de Vila Rica.35
O referido estudo mostrou no apenas a importncia
administrativa do cargo de juiz de vintena pois era atravs destes que era feita a
administrao dos distritos das vilas mas tambm seu uso como um mecanismo de
ascenso social. Os juzes ordinrios foi tema de um trabalho de Carmem Lemos,
relacionado com a atuao dos juzes ordinrios em Vila Rica.36
Atravs do trabalho,
possvel observar que os ditos oficiais foram importantes na administrao da justia,
reavaliando a viso depreciativa que se tinha dos mesmos.
As cmaras tambm foram estudadas a partir das atividades que exerciam.
Camila Santiago desenvolveu um trabalho em que se refere ao papel exercido pelas
cmaras nas festividades ocorridas em Vila Rica.37
Estes eventos foram um importante
meio de consolidar a imagem rgia nas Minas, bem como o poder dos oficiais das
cmaras, que tinham atuao destacada nestas situaes, questo que como procuramos
demonstrar teve lugar em vrias municipalidades de Minas Gerais. Alm das
festividades, as obras promovidas pelas cmaras tm recebido grande ateno, seja
apresentando as referidas empreitadas, que afinal conformavam o espao urbano, seja
pela insero social das obras e seus agentes.38
Estas aes demonstram que os
camaristas tinham grande preocupao em ordenar o espao urbano, e auxilia na
desconstruo da ideia de que o espao urbano no foi objeto de ateno por parte das
autoridades institudas.
Para alm dos trabalhos aqui citados, existem aqueles que fazem meno s
casas de cmara em seus estudos, ao tratar de outros temas sobre a Histria de Minas.
As questes que encontramos nestes trabalhos ofereceram muitos subsdios para o
estudo das cmaras mineiras, ao mostrar suas atribuies e aes na regio, auxiliando
35
PIRES, 2005. 36
LEMOS, 2003. Ainda, ANTUNES, 2005. 37
SANTIAGO, 2003. 38
SILVA, 2007. TEDESCHI, 2011.
26
na construo da tese. Para Laura de Melo e Souza, as vilas foram importantes espaos
de dominao, na medida em que boa parte da Capitania era pontilhada de espaos
urbanos.39
Carla Anastasia tratou as cmaras de variadas formas procurando identificar
seu papel como instrumento de ordenao e sublevao dos povos.40
Ao tratar da
participao de oficiais camarrios em motins, menciona a recusa dos moradores da
Vila de Pitangui em pagar os impostos. Desde a fundao da vila no ano de 1715, os
moradores no pagavam os tributos e a cmara corroborava com esta posio. Isto
demonstra que as casas de cmara nem sempre atuaram em consonncia com demandas
superiores e o fato de no recolherem impostos era uma prova disto.41
Questo que
procuramos referendar em nosso trabalho, consolidando a tese de que as cmaras agiam
em prol interesse de seus moradores em um jogo de nivelamento poltico e de
autoridades negociadas. Quando seus interesses no eram preservados, e as negociaes
se esgotavam, a sublevao foi o meio encontrado para terem suas demandas atendidas.
Por todos os trabalhos aqui referendados, que representam parte da historiografia
concernente s casas de cmara, podemos observar que esta temtica foi tratada, ao
longo dos tempos, das mais variadas maneiras. Permitiram-nos observar o papel das
cmaras e sua importncia em duas dimenses: a normativa, referindo-se ao seu papel
como promotora da ordem social, e defensiva, quando atuavam com vias a preservar os
interesses dos moradores das localidades em que estavam instaladas.
Deve-se ressaltar, porm, que boa parte dos estudos relacionados anlise do
funcionamento das Casas de Cmara em Minas o fez, em sua grande maioria, tomando
como ponto de referncia o funcionamento do Senado de Vila Rica. Com o trabalho que
desenvolvemos, tivemos a oportunidade de apresentar a vida poltica das demais
cmaras de Minas Gerais evidenciando a pluralidade de discursos e hierarquias
polticas. Leitura que procura se inserir nos novos estudos que vem sendo desenvolvidos
sobre Minas.
Segundo Jnia Furtado, a renovao dos estudos recentes sobre Minas tem se
insurgido contra a dicotomia Metrpole versus Colnia. Furtado apresenta como
exemplo destas novas interpretaes as obras O livro da capa verde e Homens de
Negcio, de sua autoria. Uma questo que pretendia elucidar era perceber que os povos
das Minas eram sditos em um imprio transocenico e dentro desta ideia percebe que a
39
SOUZA, 1986. 40
ANASTASIA, 1998;ANASTASIA, 2000; ANASTASIA,2005. 41
ANASTASIA,1998, p. 89.
27
fidelidade foi fundamental para a manuteno e a expanso do poder real na Amrica.42
Segundo a autora, outros trabalhos procuraram perceber a reproduo do poder fora das
instituies, importantes mesmo para a conformao do poder nas Minas. Poderes que
no oporiam,necessariamente, colnia e metrpole.43
O trabalho de Adriana Romeiro,
recentemente publicado, lanou luzes sobre o entendimento da Guerra dos Emboabas,
apresentando um entendimento renovado do comportamento poltico nas Minas.44
Segundo a autora, no caso das Minas, imprescindvel avanar em direo ao
imaginrio gerado nos primeiros anos de sculo XVIII, quando veio tona o repertrio
de formulaes polticas que iriam marcar indelevelmente a histria da Capitania.45
No podemos deixar de citar como importantes pontos de reflexo os j citados
trabalhos de Carla Anastasia e a obra de Marco Antnio Silveira, este ltimo de grande
importncia para o entendimento da formao social mineira. Este ltimo trabalho
mostra a fluidez de uma sociedade que se moldou tendo o Antigo Regime como pano de
fundo, ao mesmo tempo envolta em circunstncias locais, como uma rala presena do
Estado, que alteram o paradigma social europeu.46
Por todo o exposto, o trabalho que desenvolvemos mostra pertinncia em face
literatura at ento desenvolvida. A partir do balano apresentado, nota-se uma ausncia
de estudos que tratem de maneira mais especfica da vida poltica das cmaras. No
encontramos na literatura pesquisada uma discusso mais acurada das aes das
cmaras em Minas no sculo XVIII, bem como sobre a circulao de correspondncia
entre as cmaras e as vrias autoridades a ela relacionadas, como o Rei. Assim,
procuramos demonstrar que o processo de constituio das vilas em Minas no seguiu
um plano orientado, mas respondeu a demandas variadas que ocorreram ao longo de
todo o sculo XVIII. Tambm procuramos mostrar a vitalidade poltica das cmaras,
que atravs de correspondncia, influram em muitos temas da vida administrativa e
fiscal da capitania.
Assim, procuramos suprir com o trabalho uma lacuna deixada na historiografia
referente ao funcionamento das casas de cmara na Capitania de Minas Gerais no
perodo setecentista que, no limite, importante no apenas para a anlise da estrutura
42
FURTADO, 2009, p. 113-114. 43
FURTADO, 2009, p. 115. 44
ROMEIRO, 2008. 45
ROMEIRO, 2008, p. 86. 46
ANASTASIA, 1998; SILVEIRA, 1997.
28
poltica e seu funcionamento na referida regio, mas tambm para o amplo mosaico
chamado genericamente de Imprio portugus.
Pressupostos tericos
Para o estudo das relaes polticas no universo setecentista mineiro, levantamos
um conjunto de formulaes tericas que embasam os objetivos de trabalho delineados.
Assim, referendamos estudos concernentes vida poltica do Imprio portugus, tanto
no que toca o pensamento poltico, quanto os meios de organizao e funcionamento da
estrutura administrativa que utilizamos para a anlise do objeto pretendido. Tais
trabalhos foram utilizados como forma de respaldar a discusso sobre as possibilidades
de ao dos agentes estabelecidos nas casas de cmara, em conformidade com a cultura
poltica do perodo abordado.
Tendo em vista estas questes, o estudo sobre o pensamento poltico portugus
feito por Antnio Hespanha e ngela Xavier foi um importante ponto de partida.47
Isto
porque as discusses sobre como se organizou o pensamento poltico em Portugal e
quais seus mecanismos de ao nos permitiram compreender o comportamento poltico
vigente em Portugal e seus domnios perpassando, assim, as cmaras instaladas nos
domnios alm-mar. Tal questo ganha relevncia para entender, por exemplo, as
possibilidades de dilogo com o Rei e seus ministros, em situaes em que
questionavam prticas e determinaes capazes de interferir de maneira danosa no
interesse dos habitantes das Minas. S foi possvel entender um grande nmero de
requerimentos e peties enviados ao rei, e seu teor, tendo em mira o pensamento
poltico da poca, que em alguma medida respaldava as prticas acima referidas.
Assim, partimos do pressuposto de que a vida poltica de Portugal e seus
domnios devem ser analisadas tendo em mira o pensamento poltico da poca,
especialmente as Teorias Corporativas de Poder. Segundo este pensamento, a
sociedade deveria ser compreendida como um corpo em que o Rei aparece como a
cabea e os demais membros eram representados como vrios corpos da sociedade.
Tal qual o corpo fsico, cada parte do corpo social deve funcionar a partir da sua
especificidade e irredutibilidade de objetivos para seu bom funcionamento. Assim, o
corpo social precisa dividir as suas competncias e, ainda, as suas partes deveriam ter
47
HESPANHA; XAVIER, A representao da sociedade e do poder , 1998
29
uma autonomia poltico-jurdica, de modo que o dito corpo mantivesse sua articulao
natural.48 Neste sentido, o poder era partilhado, no se centrando na cabea porque to
monstruoso como um corpo que se reduzisse cabea, seria uma sociedade, em que
todo o poder estivesse concentrado no soberano.49 Como cada parte do corpo tem sua
funo especfica, sua autonomia deve ser respeitada, de modo a permitir que os corpos
possam bem desempenhar seus propsitos. Se o poder partilhado entre as vrias partes
do corpo, cumpria cabea manter a harmonia entre todos os seus membros,
atribuindo a cada um o que prprio, garantindo a cada qual seu estatuto (foro,
direito, privilgio), numa palavra, realizando a justia.50 No trabalho que vem sendo
desenvolvido, acreditamos que tal concepo encontrava espao na Capitania de Minas.
Entendendo-se como parte deste corpo, as cmaras arrogavam a si o direito de
apresentar seus agravos e queixas, com vias a realizar a justia aos povos. Uma justia
que se relacionaria a dar a cada um aquilo que lhe era devido.
H na utilizao das Teorias Corporativas uma questo. Esta perspectiva poltica
teria sido vigente at meados do XVIII, quando ento um paradigma individualista
teria ganhado espao no pensamento poltico portugus. Segundo Hespanha, o
paradigma individualista teria surgido abruptamente, mas com uma fora expansiva
devastadora, em meados do sculo XVIII, impulsionado pela filosofia ilustrada de base
do governo do Marqus de Pombal (1750-1777). Este paradigma teria como
pressuposto:
1) tornar o soberano na nica fonte do direito e tornar o direito disponvel nas
suas mos, tornar o poder geral e absoluto, ou seja, no cerceado pelos
privilgios (isto dirigir e moderar indistintamente todos os membros dos seus corpos polticos); 2) tornar os aparelhos poltico-administrativos em instrumentos disponveis da vontade poltica central (isto deputar as pessoas que lhe parecem mais prprias para exercitarem nos diferentes
ministrios); 3) definir um ncleo duro de poderes inseparveis da pessoa do rei.
51
Por fim, a ideia de unidade suporta um entendimento diverso da relao entre o
soberano e os aparelhos poltico-administrativos da coroa. Antes, a administrao
central estava organizada de acordo com um modelo polissinodal em que cada conselho
ou tribunal podia fazer oposio ao rei. Agora, os Magistrados de qualquer qualidade,
ou considerados em particular, ou em comum, assim como as Relaes e Tribunais, no
48
HESPANHA; XAVIER, A representao da sociedade e do poder , 1998, p. 123. 49
HESPANHA; XAVIER, A representao da sociedade e do poder , 1998, p. 123. 50
HESPANHA; XAVIER, A representao da sociedade e do poder , 1998, p. 123. 51
HESPANHA; XAVIER, A representao da sociedade e do poder , 1998, p. 123.
30
tm alguma jurisdio prpria, mas toda do Sumo Imperante e, em consequncia,
sujeita suprema jurisdio do mesmo Imperante e que apesar das aladas dos
Magistrados do mesmo Imperante, sempre fica salvo recurso ao Prncipe, ordinria e
extraordinariamente.52
Tendo em vista tal modelo, acredita-se que todas as prerrogativas at ento
acumuladas pelos camaristas, fosse em Portugal, fosse em seus domnios alm-mar,
foram perdidas. O modelo poltico que passou a reger a vida poltica portuguesa a partir
do consulado pombalino (1750-1777), fez com que as Teorias Corporativas de Poder
perdessem fora. Neste sentido, procuramos analisar se este trnsito do pensamento
poltico pode ser percebido na documentao trocada entre os camaristas e o rei e seus
ministros ou se a prtica poltica baseada no paradigma corporativo teria permanecido
ainda com o avanar da segunda metade do sculo XVIII. Nossa tese que mesmo com
o recrudescimento do pensamento corporativo, ainda possvel encontrar na
correspondncia produzida pelos camaristas mineiros esta corrente de pensamento.
Exemplo da prtica poltica da poca, vrios textos produzidos pelos camaristas
de Minas faziam meno necessidade da administrao da justia, da necessidade
do rei zelar pelo bem comum. Este pensamento poltico tambm justificou as
possibilidades de ao camarria na Capitania de Minas no perodo questionando, em
alguns casos, as prticas adotadas pela Coroa na regio, permissvel medida que se
evidencia o pensamento poltico acima exposto. H vrias menes a esta possibilidade
em algumas correspondncias localizadas nos arquivos, muitas das quais trazidas luz
no decurso de nosso trabalho.
Para alm da insero da discusso ora pretendida dentro das Teorias
Corporativas de Poder, pode-se entender as relaes entre as casas de cmara e a coroa
atravs da economia do dom ou das redes clientelares.53 Segundo Antnio Hespanha e
ngela Xavier a economia do dom, entendida como a atividade de dar (a liberdade, a
graa) integrava uma trade de obrigaes: dar, receber e restituir. Tal questo torna-se
importante para o entendimento da vida poltica, pois funcionava como o meio mais
eficaz para concretizar no s intenes polticas individuais, como para estruturar
alianas polticas socialmente mais alargadas e com objetivos mais durveis.54
52
HESPANHA; XAVIER, A representao da sociedade e do poder , 1998, p. 123. 53
HESPANHA; XAVIER. As redes clientelares... 54
HESPANHA; XAVIER. As redes clientelares... , p. 382.
31
Entendemos que a prtica de concesso de privilgios e a tomada de decises
favorveis aos concelhos foram uma estratgia relacionada com a economia do dom. Ao
conceder, dar um benefcio, deixava os camaristas endividados com o monarca
tornando, assim, aquele benefcio ou concesso o cimento para um acordo poltico.
Cabe destacar tambm as possibilidades do plo inferior no caso, as cmaras
tentar sensibilizar o Rei para efetivar suas intenes e solicitaes, ao rememorar certos
feitos empreendidos pelos primeiros, como forma de induzir a uma retribuio,
mediante a concesso da solicitao feita pelo plo inferior.
Para alm dos trabalhos aqui citados, sero importantes os estudos que
analisaram as relaes entre as cmaras e os poderes centrais no dentro de uma ideia de
submisso poltica dos segundos sobre os primeiros, mas partindo da ideia de
negociao poltica, tendo em vista as teorias vigentes no perodo estudado, j
apresentadas acima. Cito, ainda, as proposies de Luciano Figueiredo, para quem as
circunstncias da Restaurao (1640) foram vitais para a construo da importncia
poltica das cmaras. Segundo Figueiredo, tendo em vista as temeridades decorrentes da
Restaurao, como por exemplo a aceitao da dinastia brigantina entre os povos, os
poderes locais voltaram a ter grande fora.55
Rodrigo Bentes Monteiro sugere que a
dinastia brigantina foi atenta queixa dos povos, o que ficou expresso no grande
nmero de cortes que ocorreram aps a Restaurao.56
A pertinncia da utilizao de
tais estudos fica clara em face do exposto anteriormente em que, seja no plano terico,
seja atravs de estudos de caso, mostraram as cmaras como espao de negociao e
reivindicao dos interesses dos povos, em Portugal e nos domnios de alm-mar.
Por fim, utilizamos as propostas de entendimento da vida poltica da Capitania
de Minas presente nos estudos de Carla Anastasia para tratar das relaes entre a cmara
e a coroa, com vias a identificar os mecanismos de manuteno das formas
acomodativas, importantes para o bom funcionamento da vida poltica da Capitania.
Em grande medida porque os dispositivos para a regulao da Capitania dependiam de
aes que eventualmente perpassavam o universo das casas de cmara. Segundo Carla
Anastasia:
a viabilidade da manuteno das formas acomodativas entre os atores
polticos coloniais e metropolitanos dependeu em grande parte: 1) da
preservao de acordos firmados entre as autoridades e a populao, relativos
s formas de tributao, distribuio de terras, a questo do abastecimento
55
FIGUEIREDO, 1996, p.12-13. 56
MONTEIRO, 2002, p. 95.
32
dos ncleos urbanos, procedimentos considerados importantes para que a
administrao fosse eficaz. 2) a capacidade da coroa em resguardar a
autonomia de certos setores da populao que encontravam-se em reas
fronteirias e de povoamento peculiar. 3) do respeito das autoridades
portuguesas pelos interesses dos poderosos e do consenso dos magistrados
em torno das polticas apresentadas para a Capitania.57
A preservao de acordos firmados entre as autoridades e a populao tinha nas cmaras
seu ponto de apoio, uma vez que elas, em muitos casos, serviam como principal canal
de comunicao da coroa com seus ministros. Como j dissemos, a manuteno da
comunicao com a coroa derivava tanto do pensamento poltico da poca, quanto da
existncia de uma prtica governativa. Ambas objetivavam dar manuteno
normatizao da sociedade. Estas so as discusses que serviram de norte para o
desenvolvimento do trabalho.
Fontes e metodologia de utilizao
Para a presente tese, lanamos mo de um vasto aporte documental dentre as
quais, privilegiamos as correspondncias trocadas entre os oficiais das cmaras e o
governo da Capitania de Minas, a Secretaria de Assuntos e Negcios Ultramar e o rei.
As correspondncias foram um canal de contato das cmaras com o rei e seus ministros.
Nas cartas os camaristas solicitavam providncias para as mais variadas questes,
referentes justia, Igreja, rea tributria, ao governo, incluindo as queixas contra
ministros que cometiam abusos contra os moradores viventes nas vilas e arraiais. Este
contato era de grande interesse, no apenas para os oficiais das cmaras, mas tambm
para o rei, uma vez que, pelas cartas, o monarca tomava contato com as informaes
sobre as vrias paragens do imprio e, eventualmente, das eventuais mazelas
promovidas pelos oficiais nos domnios de alm-mar.
No decurso da pesquisa, utilizamos principalmente a documentao do Arquivo
Histrico Ultramarino. Utilizamos a documentao avulsa referente Capitania de
Minas Gerais, que se encontra inventariada e disponvel em formato digital, atravs de
CD-ROM. Na documentao compulsada encontramos um grande nmero de
correspondncia dos oficiais das cmaras coroa. A escolha pela leitura da
correspondncia das cmaras que se encontra depositada no Arquivo Histrico
Ultramarino, deriva do papel desempenhado pelo Conselho Ultramarino na
57
ANASTASIA, 1998, p.23.
33
administrao do Imprio. Era atravs desta instituio que parte dos assuntos referentes
aos domnios alm-mar eram tratados. Ali, os conselheiros discutiam as solicitaes
feitas pelos peticionrios, e davam seus pareceres. Estes podiam ser apresentados de
maneira unnime, ou escalonados em votos individuais, quando no havia consenso em
alguma questo, e das somas dos votos lanava-se o parecer. Ao chegar ao rei, o
documento produzido era examinado e respondido com poucas palavras: como
parece, por exemplo.58 Com a leitura da correspondncia enviada pelas cmaras ao
Conselho Ultramarino, pudemos entender o perfil das demandas dos primeiros. E
tambm como os conselheiros e o rei trataram as solicitaes camarrias, que nos
mostrou sua importncia e relevncia.
Alm da correspondncia remetida pelos camaristas ao Conselho Ultramarino,
utilizamos outras bases documentais para construir a tese. Isto foi feito, por exemplo,
para entender o processo de formao de vilas, um de nossos objetivos com o trabalho.
Assim, documentos localizados na no Arquivo Pblico Mineiro, Torre do Tombo e na
Biblioteca Nacional de Portugal foram utilizados na pesquisa. Alm da referida
documentao, outra base de documentos de que lanamos mo foram os documentos
transcritos e publicados em peridicos. A grafia da documentao utilizada neste
trabalho permaneceu da mesma forma que a encontramos. Assim, alguns documentos
levantados nos arquivos mantiveram a grafia original. Aqueles que utilizamos atravs de
transcries publicadas em revistas e trabalhos acadmicos, em alguns casos, tiveram a
grafia atualizada quando de sua publicao e edio.
Diante do universo documental utilizado, cabe apontar como procuramos ler os
documentos: no que concerne correspondncia produzida pela cmara e enviada
coroa, observamos que os oficiais das cmaras procuravam convencer aqueles que
recebiam as correspondncias da necessidade de solucionar a questo ali posta. Em seu
discurso emergem falas como estado geral de decadncia das minas, penria. Isto
posto, devemos perceber na documentao o produto de um jogo de interesses, meio de
conseguir cumprir certos intentos e, no caso das correspondncias pesquisadas, obter
relaxamento dos impostos, por exemplo. Neste processo, valem-se dos mais variados
artifcios para que seus argumentos pudessem ter adeso do monarca e seus ministros.
Isso os leva a produzir correspondncias em que a decadncia e penria dos povos so
pintadas com cores fortes.
58
Para uma leitura das atribuies do Conselho Ultramarino, BICALHO,2010, p. 343-371.
34
***
A redao da tese foi divida em trs partes: o primeiro captulo tem por objetivo
fazer os apontamentos mais gerais da tese. Trata do processo de fixao de povos
vindos de vrias partes dos domnios portugueses no Serto dos Cataguases e da
instalao da estrutura administrativa da regio. Dentro deste processo inserimos a
discusso referente formao de Vilas nos distritos mineradores, entendendo-as como
meio de levar a lei e ordem rgia para aquelas paragens. Neste trecho, procuramos
redigir um texto que contemplasse a literatura j estabelecida sobre o tema, trazendo
luz documentos que nos permitissem entender os motivos que levaram instalao de
municipalidades no territrio mineiro, percebendo, na formao de cada uma das
catorze vilas, especificidades polticas e econmicas. A esta seo, segue uma discusso
sobre a questo do poder na Capitania de Minas. Pretendemos apresentar e discutir a
literatura referente instalao dos poderes rgios na regio, procurando entender quais
suas especificidades, no que diz respeito a uma presena do Estado em Minas, que no
teria equivalente em nenhuma outra parte da Amrica portuguesa. Longe de esgotar o
tema, a referida discusso pretende trazer luz alguns trabalhos que serviram de base
para o desenvolvimento de nossa tese. Ela o ponto de partida para entender como as
cmaras se inserem na vida poltica da Capitania.
No segundo captulo, a partir da documentao por ns recolhida, pretendemos
mostrar a importncia das cmaras para a organizao da Capitania de Minas em seus
vrios aspectos, tendo em vista as amplas atribuies que recebiam. Coletar impostos,
cuidar para que o abastecimento fosse adequado, manter a ordem, promover
festividades, e no limite, a prpria imagem do rei nos trpicos, eram parte deste grande
arcabouo de obrigaes das cmaras. Aes que permitiram aos camaristas promover a
imagem do rei em Minas, mas tambm reforaram o papel poltico das cmaras.
Procuramos ainda fazer uma leitura das formas como as cmaras procuraram capitalizar
suas aes, solicitando ao rei um sem nmero de benefcios, a partir da economia do
dom.
No terceiro captulo, pretendemos mostrar como as cmaras procuraram
defender os interesses dos habitantes de Minas. Em muitos casos, tentavam fazer com
que impostos fossem cobrados de maneira justa, sem que os moradores fossem
severamente prejudicados com o peso dos tributos. E tambm como em muitos casos
tiveram atritos com as autoridades estabelecidas na Capitania. Ali podem ser percebidas
35
queixas contra os ministros rgios, contra os tributos e contra o clero. Tambm se
descortinam tenses entre as prprias cmaras, que reclamavam questes jurisdicionais,
que tinham origem na temeridade de que seus territrios fossem usurpados, e
conseqentemente, suas reas de mando. Pudemos apurar tenses entre cmaras desde
os primeiros decnios do setecentos, como por exemplo as rivalidades entre a cmara de
Ribeiro do Carmo e Vila Rica, em relao a qual a primeira considerava-se mais
antiga e, portanto, deveria ter prerrogativas diferenciadas quando fossem consultadas.
Houve ainda tenses entre futuras cmaras contra as mais antigas, como fora o caso
das rivalidades entre a cmaras de So Joo del Rey e Campanha, tornada vila em
1798, mesmo depois de vrias tentativas de So Joo de que tal intento no fosse
efetivado. Por fim, observamos que no havendo possibilidade dos camaristas terem
suas demandas atendidas, se envolveram em motins e rebelies, ao poltica qual
recorriam para terem seus interesses atendidos ou preservados.
36
CAPTULO I
OCUPAO E ORDENAO DO SERTO DOS
CATAGUASES NO SETECENTOS (1711-1798)
1.1 Tenses e acomodaes polticas nos distritos mineradores em princpios do sculo
XVIII e a criao das primeiras cmaras
No ltimo decnio do sculo XVII, o desejo dos portugueses de encontrar riquezas
minerais em seus domnios na Amrica se concretizou com a evidencia da existncia de ouro
no Serto dos Cataguases.1 Este feito derivou do desbravamento da regio a partir das
expedies paulistas as bandeiras. Tais expedies de interiorizao teriam ocorrido desde
meados do sculo XVI, porm, no sculo XVII, Portugal, passando por uma crise econmica,
incentivou as bandeiras, procurando novas formas de complementar sua economia.
Reforando as buscas pelo metal precioso, vrios textos do sculo XVII atestavam a
possibilidade de localizar ouro na Amrica portuguesa baseados em uma fatalidade geofsica
e moral. A expectativa de Portugal por riquezas se fundamentava na vizinhana das minas
localizadas na Amrica espanhola, e, como os portugueses eram governados por um rei
cristo e justo, no haveria de faltar a ddiva divina.2 Fiada nessas crenas e necessitados
economicamente, a Coroa passou a acenar com honras e mercs aos paulistas para que
pudessem descobrir depsitos de minerais preciosos, tendo em vista seu vasto
conhecimento do interior da Amrica.3 Com o manifesto do ouro, ocorrido em fins do sculo
XVII, o inicial entusiasmo teria sido substitudo por grandes preocupaes. A notcia teria
suscitado temor dos dois lados do Atlntico, diferentemente do sentimento de euforia, ou
entusiasmo, to propalado pelos historiadores. Temia-se que as riquezas tornassem os
domnios americanos alvo de cobia de naes estrangeiras, em muitos casos com um poderio
militar muito maior que o dos portugueses. Acreditava-se que o destino do ouro poderia tomar
1 O termo Serto designaria o interior desconhecido, selvagem e mtico da Amrica portuguesa, sendo
considerado um dado pr-existente colonizao, ou um negativo do processo de povoamento e urbanizao. O termo estaria intimamente ligado empresa colonial, sendo suas primeiras ocorrncias
coincidentes com a expanso ultramarina portuguesa no sculo XVI. Segundo Bluteau, seria uma regio distante do mar. Para Antnio Moraes Silva, seria o interior, o corao das terras; [oposto] ao martimo, praias e costa (...) o serto toma-se por mato longe da costa. O conceito Serto dos Cataguases mereceu ateno, relacionando o termo C-ta-gu ao espao, aos povos indgenas que ali tinham lugar, bem como ao termo mata densa. FONSECA, 2011, p. 51-57 e 62. 2 ANDRADE, 2008, p.124.
3 Sobre o tema, CAMPOS, 2002. Especialmente captulo 1.
37
um rumo muito distante do Tejo. O manifesto do ouro suscitou a temeridade de que uma
multido vaga e tumulturia, migrasse para uma regio recm-descoberta, encravada em
meio aos sertes distantes e inspitos, dando margem a que os povos ali estabelecidos
criassem uma repblica independente. Podiam mesmo associar-se aos inimigos externos,
pondo fim autoridade rgia portuguesa sobre a regio.4 Outro temor era de que a atividade
aurfera desmontasse as demais atividades j existentes na Amrica, como a economia
aucareira e do tabaco.
Todas estas preocupaes corporificavam temeridades contidas em alguns textos da
poca moderna que chamavam a ateno para os perigos do ouro. Antnio Vieira apontava
que a natureza e a histria, seguindo a providncia divina, sinalizavam aos homens os riscos
das minas. Segundo o padre, Deus no quis que os homens descobrissem os metais preciosos,
os mantendo nas entranhas da terra, longe da vista humana. Escondidas, eram vistas como
castigo de Deus, pois extrado o ouro, despertava a cobia e a vaidade humana. Assim, por
trs do esplendor estavam aflies e misrias, que castigariam os locais onde eram feitos
descobrimentos aurferos.5 Como pretendemos demonstrar adiante, este conjunto de
temeridades seriam o guia, em variadas situaes, da tentativa da Coroa impor as leis e ordens
rgias nos distritos mineradores, sendo em muitos momentos o norte das polticas de
administrao da regio.
Os primeiros manifestos de ouro foram feitos pelos taubateanos. As descobertas de
metais aurferos em Minas teriam ocorrido como parte do processo de descobrimento, a partir
de pequenas expedies informais, que se originaram, sobretudo, na Vila de Taubat.6 A
partir de 1693, foram descobertas jazidas de ouro nos afluentes do Rio Doce, destacando-se os
do vale do Ribeiro de Nossa Senhora do Carmo e da Serra de Ouro Preto, distantes um do
outro poucas lguas. Ambos foram responsveis pelo afluxo de grande nmero de
aventureiros estimulados pela grande quantidade de ouro ali encontrada.7 No perodo
subsequente manifestao de existncia de ouro na regio, foram adotadas algumas medidas
para que fossem implantados cargos administrativos vinculados autoridade rgia.
Descoberto o ouro no Serto dos Cataguases, o governador da Capitania do Rio de Janeiro,
ento responsvel pela rea, nomeou um provedor para a casa de quintos de Taubat, um
guarda-mor, e um escrivo-geral das reparties de ribeiros e datas.8
4 ROMEIRO, 2008, p. 35-36.
5 ANDRADE, 2008, p. 129.
6 CAMPOS, 2002, p. 46.
7 FONSECA, 2011, p. 65.
8 MAGALHES, 2011, p. 86.
38
O processo de institucionalizao das Minas comeou com a instalao de uma
estrutura mnima de controle da regio e das atividades ali desenvolvidas. A legislao
aurfera do XVII, bem como a existncia do guarda-mor e do escrivo, condiziam com as
incertezas da extenso da produo e com as experincias anteriores no Iguape, Paranagu e
Canania. Havia ali um tatear inseguro em busca de notcias mais precisas e a aquisio de
uma experincia na administrao das regies mineradoras. Naquele momento, pouco se sabia
sobre a extenso dos achados aurferos, ento circunscritos aos leitos e tabuleiros de rios.
Somava-se a esse quadro a inexistncia de um plano traado para colonizar o interior dos
domnios portugueses. A minerao exercida em algumas regies da Amrica, como Iguape,
Paranagu e Canania eram de pouca monta, por isso a legislao referente ao tema, lanada
no ano de 1603, mantinha-se em vigor poca do manifesto do ouro com poucas alteraes.9
A instalao de um aparato administrativo da regio de Minas, iniciada ainda em fins
do sculo XVII, procurou acompanhar o ritmo de desbravamento da regio, bem como as
expectativas e potencialidades da prtica mineral. Seu formato s ganhou corpo com o
tempo, depois de passados alguns decnios da fixao de povos na regio. A administrao da
regio no obedeceu a um plano estabelecido a priori. Resultou da necessidade de ordenao
de uma sociedade que cresceu e condensou-se margem do poder rgio, respondendo s
demandas urgentes. Em muitos casos, a Coroa teve de reorganizar a estrutura administrativa
j existente por meio da reestruturao dos cargos e funes.
Mesmo diante das incertezas, a manifestao de lavras aurferas no Serto dos
Catagus e a circulao da informao fizeram com que a regio fosse assolada por um sem
nmero de pessoas, vindas das vrias regies da Amrica Portuguesa e dos domnios alm-
mar, bem como de Portugal. Segundo o jesuta Antonil,
a sede insacivel do ouro estimulou a tantos a deixarem suas terras e a
meterem-se por caminhos to speros como so os das minas, que
dificultosamente se poder dar conta do nmero de pessoas que atualmente
l esto. [...] Cada anno vem das frotas quantidades de portugueses e de
estrangeiros, para passarem para as Minas. Das cidades, villas, recncavos, e
sertes do Brazil vo brancos, pardos e pretos, e muitos ndios de que os
paulistas se servem. A mistura de toda condio de pessoas.10
A migrao em massa para as Minas teve impactos diretos na Amrica Portuguesa e
no Reino. Houve vrias tentativas de conter a migrao para a regio recm-descoberta,
atravs da publicao de editais que limitavam o fluxo populacional para Minas. A migrao
9 ROMEIRO, 2008, p. 36-37. HOLANDA, 1985, p. 255-258.
10 ANTONIL, 2001, p. 243-244.
39
teria causado problemas referentes normatizao dos servios minerais e, nos primeiros
anos, teria acarretado a insuficincia de gneros alimentcios, levando muitos morte.11
Em
torno do tema, o governador-geral, D. Joo de Lencastro, o governador da Repartio Sul,
Artur de S e Meneses, e os paulistas travaram uma longa discusso em torno da
subordinao da regio, bem como das medidas que para seu bom funcionamento deveriam
ser adotadas.12
Para o governador-geral, deveria haver uma poltica de restrio da minerao por
toda sorte de gente. A produo elevada poderia fazer despencar o valor do metal precioso.
Para que essa medida tivesse xito, sugeria a criao de formas de limitao de acesso aos
distritos minerais. Suas medidas restritivas incluam a emisso de passaportes para acesso s
Minas, com duras penas para aqueles que entrassem no territrio ilegalmente. O acesso
regio seria feito pela Vila do Esprito Santo. Se a proposio do vice-rei tivesse xito, as
Minas ficariam sob a tutela da Bahia, e com isso os seus habitantes seriam privilegiados no
comrcio, pois se tornariam os nicos fornecedores a atuar na regio. As intenes de
Lencastro, no entanto, acabaram rejeitadas pela Coroa, que proibiu a comunicao da Bahia
com a zona mineradora no ano de 1701.13
Em oposio s proposies do governador-geral, o governador da Repartio Sul,
Artur de S e Meneses, apresentou outro projeto para Minas. Entre 1697 e 1702, Meneses
empreendeu trs viagens aos distritos mineradores. Ao longo desses anos, conseguiu
implantar as bases da estrutura administrativa nos distritos mineradores. Para ter xito na
empreitada, procurou ter boas relaes com os paulistas na esperana de que manifestassem a
descoberta de minerais nos sertes dos Cataguases. Sua estratgia consistiu em acenar para os
habitantes do planalto com cargos e mercs.14
Artur de S foi tributrio de uma poltica de
portas abertas para os distritos mineradores, adotando uma srie de medidas para incentivar
a minerao. Procurou pr em ordem o abastecimento de gneros, estimulando o aumento do
11
Em alguma medida, a fome teria resultado em situaes favorveis Coroa. Entre fins do sculo XVII e incio
do XVIII, a fome teria resultou na pulverizao da populao nas terras recm-descobertas. Por essa poca, teria
surgido o arraial de Camargos, distante de Ouro Preto quatro lguas. Alm disso essa calamidade levou
fundao dos arraiais do Campo, Cachoeira, So Bartolomeu, Casa Branca e Rio das Pedras. Essa mesma
situao teria levado tempos mais tarde criao do arraial de So Caetano. VASCONCELOS. Histria Antiga
de Minas Gerais, p. 148 e 151. 12
ROMEIRO, 2008, p. 40-41. 13
ROMEIRO, 2008, p. 42-44. 14
Artur de S chamou sua presena o paulista Borba Gato, que por muito tempo estivera refugiado no Serto
por conta do crime cometido contra dom Fernando, quando de sua expedio ao Serto dos Cataguases. O
governador props que em troca de perdo Borba Gato deveria encontrar novas minas. Para levar a cabo tal
incubncia, Borba Gato foi nomeado tenente-general na jornada do desco