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A Justiça de Transição após a retomada da democracia: Uma análise comparada entre
Brasil e Chile
BRUNA FERRARI PEREIRA1
INTRODUÇÃO
De acordo com a análise de Linz e Stepan (1999) tanto o Brasil quanto o Chile
passaram por transições democráticas cerceadas, na qual os militares possuíam ainda muito
poder, o que lhes conferiu determinada autonomia para garantir suas prerrogativas no
regime que se iniciava. Além do Brasil e Chile, outros países passaram pelo processo de
redemocratização, não apenas na América Latina mas também na Europa, este movimento
foi identificado por Huntington (1994) como a terceira onda de democratização.
Nos anos que se seguiram após a redemocratização, não apenas as prerrogativas
garantidas aos militares estiveram em pauta, mas também outros importantes dilemas que
deveriam ser solucionados pelos representantes civis, dentre eles: as eleições, a garantia da
consolidação do novo regime democrático e também a punição às violações cometidas em
no regime passado.
Este artigo enfoca o terceiro elemento, ou seja: como o Brasil e o Chile lidaram com
as violações de direitos humanos cometidas por agentes do Estado durante o período
ditatorial? Qual as principais semelhanças e diferenças entre os dois países? Através de um
resgate das principais medidas de verdade, memória e justiça o artigo resgata os caminhos
tomados por cada país, e como estes caminhos indicam um maior ou menor grau de justiça
de transição.
O artigo inicia apresentando os conceitos centrais do debate como transitologia e
justiça de transição. Em seguida parte para uma análise dos processos de redemocratização
nos dois países, para em seguida analisar de forma comparada as medidas transicionais
adotadas. Consideramos que em certa medida, também o tipo de regime militar instaurado
pode ter determinado os trilhos da justiça transicional em cada país. No Brasil tivemos uma
1Bruna é Mestra e Doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal de São Carlos. Processo
n°2017/14826-9, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
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ditadura altamente institucionalizada (PEREIRA, 2010), uma transição gradual, e fracas
medidas de justiça de transição. No Chile observou-se uma ditadura parcialmente
institucionalizada, e mais tarde, medidas de justiça de transição mais assertivas.
Como dois países que possuíram regimes autoritários hierárquicos e altamente
institucionalizados, puderam seguir caminhos tão diferentes nas medidas transicionais? O
artigo defende que três aspectos marcam essa diferença: a legalidade autoritária estabelecida
em cada país, o processo eleitoral durante a redemocratização e as reformas institucionais.
1.0 Abordagem teórica
A literatura sobre as transições democráticas ocorridas na América Latina e em
outros países é vasta e bem difundida. Em suas análises, muitos autores abordaram os temas
centrais deste processo e fomentaram debates em torno de questões centrais como as razões
para a queda de regimes autoritários, o papel desempenhado pelas eleições e as violações
de direitos humanos cometidas nos regimes passados (O'DONNELL & SCHIMITTER &
WHITEHEAD,1986; HAGOPIAN & MAINWARING,1987; LINZ & STEPAN,1999;
VITULLO, 2001; GEDDES,2001).
Huntington (1994) identificou que os processos de democratização ocorridos ao
longo dos anos poderiam ser divididos em ondas, de modo que as redemocratizações entre
os anos 70 e 80 representariam a terceira onda. A principal característica destes processos
seria quando o movimento em direção aos regimes democráticos ocorria em maior número
que o movimento nas direções opostas, sem que houvesse uma significativa “onda reversa”.
Para compreender a onda de redemocratização, outros elementos compuseram a
análise. De acordo com O’Donnell & Schmmiter & Whithead (1988) também as rupturas
internas entre as elites do regime autoritário e as eleições livres, abertas e contestáveis
comporiam um cenário favorável para a redemocratização. Nos últimos anos, outros
elementos foram identificados, como o aumento de manifestações populares e a relação
entre desenvolvimento econômico, desigualdade e pressões para a mudança de regime
(GEDDES,2001; ANSELL & SAMUELS,2014).
Após os processos de redemocratização, os novos representantes civis passaram a
buscar caminhos para que as violações cometidas durante os regimes autoritários não
voltassem a ocorrer, para que a verdade sobre os fatos se tornasse pública, e em alguns
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países para que os violadores fossem punidos por essas ações. Este processo ficou
conhecido como Justiça de Transição e também foi amplamente abordado pelos teóricos da
área (TEITEL,2003; SIKKINK & WALLING, 2007; PEREIRA, 2017; ZYL,2009;
MEZAROBBA,2003).
Este conceito relaciona-se às medidas tomadas após o estabelecimento de regimes
democráticos. Sua genealogia possui início após a II Guerra, atravessando o período da
Guerra Fria e chegando aos dias atuais (TEITEL, 2003). De acordo com a abordagem de
Zyl (2009) a justiça de transição compõe uma série de medidas para lidar com o passado e
evitar que surjam novos conflitos e violações. Na prática, estas medidas seriam formadas
pelos pilares da justiça; verdade; reparação; reformas institucionais e reconciliação.
No que se refere aos julgamentos de perpetradores da violência em regimes
autoritários Sikking e Walling (2007) observaram uma tendência mundial de
responsabilização criminal destes agentes, o que identificaram como “Cascade Justice”.
Este movimento teria revolucionado as formas de accountability causando uma tendência
que dificilmente será revertida. Tomando como exemplo a prisão do general Pinochet em
1998, os autores identificaram que nos países da América Latina em que os julgamentos
ocorreram de forma ampla, houve avanço dos direitos humanos, além de uma transição
democrática mais ampla e completa.
2.0 A redemocratização no Chile
O regime ditatorial de Augusto Pinochet iniciou-se em 1973 e terminou apenas em
1990, quando ainda possuía forte apoio da sociedade civil. Apesar de ser indicado pela junta
militar, Pinochet perdeu as eleições em 1989, e não pôde evitar a transição para a
democracia no ano seguinte. Mesmo após a queda do ditador, esta transição não deixou de
ser cerceada e de enfrentar obstáculos, dentre os principais empecilhos esteve a manutenção
da Constituição autoritária no novo regime (LINZ&STEPAN,1999, p.243-244).
As características do regime anterior são fundamentais para o entendimento dos
rumos tomados durante o processo de transição. Ainda de acordo com Linz e Stepan (1999),
um regime autoritário com base hierárquica e apoio da sociedade civil, pode restringir a
transição para a democracia e também garantir prerrogativas militares como por exemplo a
manutenção de determinados cargos e o controle de verbas.
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No caso do chileno, os exemplos da continuidade de elementos do regime autoritário
após a transição para a democracia são diversos, como: a manutenção de presos políticos
após a redemocratização, os decretos publicados durante o período autoritário que
continuaram em vigor, e o poder da justiça militar de processar militares e civis
(PEREIRA,2010, p.248).
No entanto, durante as campanhas eleitorais em 1989 Patrício Aylwin se elegeu
comprometido não apenas com o processo de redemocratização do país, mas em esclarecer
as graves violações de direitos humanos cometidas no passado. Dentre as primeiras medidas
transicionais tomadas em seu governo esteve a Comissão de Verdade e Reconciliação, a
qual recomendou ao governo chileno que reparasse monetariamente as vítimas do regime
ditatorial chileno. Apesar deste avanço, esta Comissão também refletiu o controle dos
militares sobre o processo transicional chileno de modo que partidários de Pinochet
puderam compor esta comissão (PEREIRA,2010, p.249).
Mesmo diante destas articulações dos setores militares, a Comissão fez diversas
recomendações ao governo do Chile e ficou conhecida pelo sobrenome do seu presidente
Raúl Rettig. Anos mais tarde o país continuou a aplicar medidas transicionais e criou em
1992 a Corporação Nacional de Reparação e Reconciliação, a qual aumentou a lista das
vítimas do regime ditatorial chileno. Em 2003, uma nova Comissão foi criada, agora
denominada Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura, instalada pelo então
presidente Ricardo Lagos e conduzida pelo bispo Sergio Valech (MEZAROBBA,2003).
É importante observar que até este momento o Chile ainda não havia colocado em
questão a lei da anistia promulgadas em 1978 por Pinochet, a qual beneficiava
especialmente os militares que cometeram violações de direitos humanos. No entanto,
diversas Comissões da Verdade foram criadas, as quais não apenas denunciavam os
violadores mas traziam novas versões dos fatos ocorridos, agora sob a perspectiva das
vítimas.
Neste sentido, observa-se que a instalação reiterada de Comissões da Verdade e a
exposição dos militares que violaram os direitos humanos, serviu como forma de pressão
sobre o poder executivo e o judiciário chileno para que os crimes cometidos no passado não
fossem esquecidos e para que estes militares fossem responsabilizados. Assim, estas
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Comissões foram essenciais para que a partir de 1998 vigorasse no Chile a inaplicabilidade
da Lei da Anistia, passando prevalecer frente à esta lei os tratados internacionais assinados
pelo país.
O primeiro acontecimento que modificou os rumos tomados pelas medidas
transicionais chilenas foi o caso de Pedro Córdova2 em 1998, no qual a Corte Suprema do
Chile decidiu que a Lei de Anistia não teria validade em casos de violações de direitos
humanos. Este caso gerou a jurisprudência necessária para que outros militares fossem
condenados (NEIRA,2010). No entanto, é importante ressaltar que após este caso, houve
julgamentos em que a Corte chilena decidiu que os crimes cometidos por militares já haviam
prescrito, como por exemplo no caso de Miguel Sandoval, além de outros.
Mais tarde, também a prisão de Augusto Pinochet se tornou emblemática destas
medidas. O general foi preso no Reino Unido após ser responsabilizado pelo
desaparecimento de cidadãos espanhóis que estavam no Chile durante o período ditatorial.
Dentre os principais argumentos utilizados pelo judiciário chileno para as decisões de
condenações, esteve o entendimento de que os casos de desaparecimentos não poderiam ser
contemplados pela lei da anistia, pois como os corpos não haviam sido encontrados, os
crimes permaneciam em execução.
Na análise de Pereira (2010) outras medidas marcaram efetiva renovação
institucional chilena, como a criação de uma academia judiciária para formar novos juízes,
a formulação de um código penal e uma nova promotoria pública. No caso das medidas de
justiça transicional, Mazarobba (2007) aponta que houve a criação da Corporação Nacional
de Reparação e Reconciliação; o pagamento de pensão mensal aos familiares das vítimas e
de bolsas de estudo aos seus filhos, além da criação do Programa de Reparação e Atenção
Integral de Saúde que visava dar assistência aos atingidos pelas violações de direitos
humanos durante o período ditatorial.
O governo de Michele Bachelet também ficou marcado por trazer avanços ao país.
Em 2010 a presidenta reabriu a Comissão Valech para a recontagem das vítimas da ditadura
2 Pedro Enrique Poblete Córdova pertenceu ao Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), e foi detido em
1974.
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chilena3 e o novo relatório incluiu 9.800 pessoas na contagem oficial de pessoas torturadas
e presas pelo regime. Ainda no fim de seu segundo mandato, Bachelet solicitou que a justiça
chilena investigasse os casos de 30 mil pessoas que prestaram depoimentos à esta Comissão.
Além disso, ao longo do processo de redemocratização chileno, também houve
pressão de órgãos internacionais e condenações pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos. No ano de 2006 a Corte condenou o país no caso Almonacid Arellano y otros vs.
Chile, argumentando que pelo fato do país ser signatário da Convenção Americana de
Direitos Humanos, seus juízes também estavam submetidos ao tratado e deveriam cumpri-
lo (CAMILO,2016).
Naquela ocasião, a justiça chilena havia absolvido agentes do Estado responsáveis
pelo assassinato de Almonacid ocorrido em 1973. Em outras ocasiões a Corte
Interamericana também condenou outros países pela preponderância das leis de anistia, e
em 2018 manifestou-se contrária4 à decisão da justiça do Chile por conceder liberdade
condicional a agentes do regime ditatorial que violaram os direitos humanos.
3.0 A redemocratização no Brasil
De acordo com a análise de Linz e Stepan (1999) tanto o Brasil quanto o Chile
possuíam regimes militares hierárquicos que determinaram os processos transicionais nos
dois países. No caso brasileiro, também os níveis de desigualdade social e a crise econômica
pela qual o país passava serviram como entrave à redemocratização.
O principal exemplo da forma como os militares conduziram o processo de
redemocratização no Brasil, foi a realização das eleições indiretas no ano de 1985. Na
ocasião, o colégio eleitoral do regime militar definiu que Tancredo Neves seria o primeiro
civil a assumir o poder após o período ditatorial. No ano anterior, milhares de brasileiros
foram às ruas protestar pelo direito de eleger o Presidente do país, no movimento que ficou
3 Disponível em:https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2011/08/110817_pinochet_vitimas_pu. Acesso em 20
de julho de 2020. 4 Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Antifascismo/CIDH-exige-castigo-por-decisao-
chilena/47/41434. Acesso em 20 de julho de 2020.
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conhecido como “Diretas Já”. Apesar desta grande mobilização, os militares mantiveram o
controle do processo e a escolha de Tancredo5.
Neste contexto, é importante observar que tanto Tancredo quanto Sarney, que
assumira mais tarde, pertenciam à base aliada do regime militar, representada pelo partido
Aliança Renovadora Nacional (ARENA), ou seja eram atores provenientes de um contexto
totalmente diferente do primeiro Presidente civil que assumira o poder no Chile, Patrício
Aylwin. Ao escolher quem substituiria Figueiredo, os líderes militares conduziram os rumos
do novo regime democrático e exigiram um alto custo para se retirarem do poder
(LINZ&STEPAN, 1999; PEREIRA,2010).
Outro momento chave para compreender como o processo de redemocratização foi
cerceado no Brasil, é a Assembleia Nacional Constituinte, a qual ocorreu entre 1987 e 1988
e teve como objetivo promulgar a nova Constituição do regime que se iniciava. De acordo
com Zaverucha (2005) os militares agiram de formar estratégica e organizada na realização
de lobby, visando garantir que a Constituição de 1988 não permitisse a retirada de seus
privilégios e garantisse a não responsabilização pelas violações de direitos humanos que
haviam cometido.
Neste contexto, a Constituição acabou por recepcionar a Lei da Anistia, promulgada
no ano de 1979 pelo então Presidente Figueiredo, a qual teve como principal característica
o fato de ser “ampla, geral e irrestrita”, ou seja, anistiava não apenas os cidadãos
condenados por crimes políticos mas também os militares acusados de violações aos
direitos humanos. Assim, a continuidade do vigor desta lei no período democrático permitiu
que nenhum agente do Estado brasileiro respondesse pelas violações cometidas entre 1961
e 1979, este talvez seja o principal preço cobrado pelos militares para se retirarem do poder
em 1985.
O entendimento da redemocratização brasileira como um processo de “transição
negociada” é amplamente aceito na literatura e possui diversas abordagens, todas elas
identificam que as consequências da condução militar na redemocratização brasileira,
5 Após o agravamento do estado de saúde de Tancredo e sua morte, José Sarney assumiu a Presidência da
República em abril de 1985.
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deixou marcas profundas em seu arranjo institucional, criando obstáculos à consolidação da
democracia no país.
De acordo com Oliveira (2000), o clientelismo e a fragilidade partidária seriam
algumas destas marcas. A análise de O’Donnell (1996) vai no mesmo sentido, apontando o
“personalismo do Presidente da República e a fraqueza das instituições democráticas”.
Estes aspectos que marcam o legado ditatorial deixado pelo regime militar, são
fundamentais para se compreender o tipo de justiça de transição adotada no Brasil, pois a
permanência de membros do antigo regime no aparato estatal além da garantia de suas
prerrogativas foram determinantes para que se impusesse no país uma narrativa de
esquecimento sobre as violações passadas.
O principal acontecimento que marca a imposição desta política do esquecimento
pelo Estado brasileiro é o fato da primeira investigação sistemática sobre as violações de
direitos humanos cometidas por agentes da ditadura militar ser realizada por um membro
da Igreja Católica e não do Estado. A partir de 1979 Dom Paulo Evaristo Arns com o auxílio
de advogados que defendiam presos políticos julgados pela Justiça Militar, investigou
clandestinamente as violações de direitos humanos sofridas por estes presos e as compilou
no relatório intitulado Brasil: Nunca Mais. O trabalho ficou conhecido como a primeira
grande iniciativa de denúncia sobre as práticas de torturas e desaparecimentos praticadas
por agentes do Estado no período ditatorial.
A questão da existência de tribunais militares durante o período ditatorial brasileiro
também deve ser problematizada, pois eles também compuseram a aparência de legalidade
da ditadura no Brasil. Este falso aspecto era conferido ao país, pelo fato de diferentemente
do que ocorria na Argentina, os perseguidos políticos terem direito a um processo penal
perante a justiça brasileira, composto por julgamento e direito à defesa. No entanto,
conforme demonstrado no relatório Brasil: Nunca Mais, e também por Pereira (2010) estes
julgamentos pouco concediam chances de absolvição aos presos políticos e não garantiam
qualquer proteção contra as torturas e outras violações de direitos humanos recorrentes nas
dependências policiais e militares do país.
Já no ano de 1995, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (ex-perseguido
político) foi promulgada a lei 9.140, a qual instituiu a Comissão Especial sobre Mortos e
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Desaparecidos Políticos (CEMDP). Esta comissão teve seus membros nomeados pelo
presidente e deveria investigar os casos de pessoas mortas e desaparecidas entre os anos de
1961 e 1979, além de estabelecer os casos a serem indenizados.
A CEMDP, no entanto, não investigou ou tornou público os nomes dos agentes do
Estado responsáveis por estas mortes ou desaparecimentos. Outro aspecto muito criticado
desta comissão foi o fato de os familiares dos mortos e desaparecidos políticos serem os
responsáveis por obter as provas das violações ocorridas e por requererem a indenização,
de modo que o Estado brasileiro estava isento deste dever. No entanto, esta lei simbolizou
a primeira resposta oficial do Estado brasileiro sobre as violações cometidas durante o
período ditatorial e um importante passo da justiça de transição no país.
No ano de 2000 através da Medida Provisória n°2.151 e posteriormente a lei 10.559,
foi instituída a Comissão da Anistia. Esta comissão é vinculada ao Ministério da Justiça e a
tem como objetivo analisar os requerimentos de concessão de anistia política por cidadãos
brasileiros perseguidos politicamente entre os anos de 1946 e 1988. Além disso, a partir de
20076 a Comissão também passou a financiar iniciativas sociais de memória no país e a
troca de práticas e conhecimentos internacional.
Já no ano de 2004, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva através da medida
provisória n°176 alterou os dispositivos da Lei 9.140, esta alteração permitiu que também
os familiares de mortos e desaparecidos políticos fossem contemplados pelas indenizações
promovidas pelo Estado brasileiro. Em 2009 também foi lançado o Centro Memórias
Reveladas, o qual busca reunir e divulgar os registros documentais de lutas políticas entre
os anos de 1960 e 1980. Toda a documentação é disponibilizada e tem como objetivo
incentivar estudos e pesquisas sobre os temas.
Um acontecimento que pode ser identificado como um dos momentos chave que
impulsionou o Brasil para que tomasse medidas de justiça de transição, foi a condenação
pela Corte Interamericana de Direitos humanos (IDH) ao analisar o caso Gomes Lund e
outros versus Brasil. A decisão ocorreu meses após o Superior Tribunal Federal decidir pela
de constitucionalidade da Lei da Anistia, quando a Corte Interamericana concluiu que o
6 Disponível em: https://www.justica.gov.br/acervo_legado/anistia/sobre-a-comissao/sobre-a-comissao. Acesso
em 22/07/2020.
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Brasil é responsável pela desaparição de 62 pessoas, entre 1972 e 1974 na região do
Araguaia no estado do Pará e determinou que o Estado brasileiro deveria investigar e
responsabilizar judicialmente os envolvidos.
O ano de 2012 marcou outro importante momento na justiça transicional brasileira,
quando a ex-presidenta Dilma Rousseff instalou a Comissão Nacional da Verdade.
Diferentemente das duas Comissões instaladas anteriormente, esta não possuía o caráter
indenizatório, mas tinha como objetivo investigar e tornar público os nomes dos
responsáveis, das vítimas e as instalações onde ocorreram graves violações de direitos
humanos entre 1946 e 1988. Dentre suas características principais, esteve o fato desta
Comissão dar voz às vítimas que sofreram estas violações, além de ser responsável pela
obtenção das provas dos acontecimentos, duas medidas que o Estado não havia tomado
antes.
Ainda analisando a linha do tempo da justiça de transição brasileira, outro
importante momento foi a outra condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) em 2018. O país foi condenado por não investigar, julgar e punir os
agentes do Estado responsáveis pela morte de Vladimir Herzog7, encontrado morto nas
dependências do DOI-CODI em 1975.
Na época, fotos do corpo do jornalista com uma corda no pescoço foram divulgadas
com a intenção de forjar suicídio. Na decisão, a Corte alegou que as violações se tratavam
de crime contra a humanidade, e, portanto, eram imprescritíveis e não poderiam ser
contempladas pela Lei da Anistia. Após a condenação o Ministério Público Federal de São
Paulo reabriu as investigações sobre o assassinato de Vladimir Herzog.
4.0 Comparando os caminhos da justiça de transição no Chile e no Brasil
A partir dos aspectos de cada país apresentados acima, pudemos observar que as
medidas transicionais adotadas no Chile e no Brasil foram marcadamente diferentes. No
geral, três aspectos em específico podem auxiliar na compreensão de por que dois países,
pertencentes ao mesmo continente e que vivenciaram regimes ditatoriais militares durante
épocas aproximadas podem ter adotado medidas tão divergentes.
7 Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/07/04/politica/1530734238_207748.html. Acesso em 25 de
julho de 2020.
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De acordo com Pereira (2010; 2017) quanto mais prolongada e institucionalizada
uma ditadura, mais difícil seria deslegitimar os grupos e instituições sociais que a
compuseram. Neste sentido, o Brasil seria identificado como um país onde a ditadura militar
foi altamente legalizada, enquanto o Chile assumiria uma posição intermediária e a
Argentina um aspecto pouco legalizado.
Seguindo esta explicação, o alto nível de legalidade autoritária no Brasil teria
determinado a maior presença (em comparação com o Chile) de elementos do antigo
sistema judiciário e também de membros da sua antiga elite, o que teria colocado obstáculos
ao processo de justiça de transição no país. Além disso, também foi mais fácil para os
militares brasileiros - que ainda pertenciam à elite política após a redemocratização -
construírem uma narrativa não apenas sobre o golpe de 1964, como também sobre as
violações de direitos humanos cometidas por eles. Assim, a herança da legalidade autoritária
no Brasil teria uma sombra maior sobre a democracia, muito mais que no Chile e Argentina
(PEREIRA,2010, p.252).
No que se refere ao segundo aspecto que pode nos auxiliar a compreender as
diferenças entre o processo transicional entre o Brasil e Chile, estão as eleições que marcam
o período da redemocratização. Desde as análises mais antigas (Linz & Stepan, 1999;
O’Donnell & Schmmiter & Whithead, 1988) até análises mais atuais (Pereira,2010; Geddes
2001; Mazarobba, 2007) as eleições são uma importante chave explicativa para
compreender medidas de justiça de transição.
No caso do Chile, durante as campanhas eleitorais o tema das responsabilizações
dos militares perpetradores de direitos humanos, e outras medidas de justiça de transição
dominaram as campanhas de Aylwin, o qual após ser eleito cumpriu as promessas. No que
se refere ao Brasil, conforme já explicitado, as primeiras eleições em 1985 que levaram um
civil ao poder, ocorreram de forma indireta no Brasil, através de um Colégio Eleitoral, de
modo que não houve campanhas, tampouco eleições livres e diretas, permitindo aos
militares não apenas conduzir o processo transicional mas determinar quem assumiria o
poder.
Em terceiro lugar, no Chile houve uma efetiva renovação de poder, principalmente
no que se refere ao poder judiciário. Apesar da Constituição permanecer a mesma, e de
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Pinochet ter se mantido como Comandante das Forças Armadas após a redemocratização,
houve o afastamento de membros do Judiciário e também reformas estruturais em seus
órgãos. Ao passo que no Brasil, apesar da promulgação de uma nova Constituição em 1988,
esta apenas recepcionou a Lei da Anistia e as prerrogativas militares garantidas durante o
regime ditatorial, além de não haver efetiva reforma em órgãos do judiciário, ou uma
renovação profunda dos membros do poder legislativo.
Conclusões
Através desta exposição detalhada da redemocratização em cada país, bem como do
processo de justiça de transição adotado em cada um deles, destacamos que o aspecto
central que marca a justiça de transição brasileira é a reparação financeira às vítimas e
familiares da repressão ditatorial, de modo que no país não houve a responsabilização dos
agentes do Estado que cometeram violações de direitos humanos, e a verdade sobre estes
fatos só foi revelada efetivamente a partir de 2012. Por outro lado, importantes iniciativas
foram tomadas com embasamento na legislação internacional a qual tem funcionado como
um poderoso instrumento para pressionar o Estado brasileiro no que se refere às medidas
de justiça de transição, proporcionando em certa medida, o accountability causado por
aquilo que Sikkink (2011) identificou como Cascade Justice.
No caso do Chile identificou-se medidas mais assertivas de justiça transicional, onde
desde o início do processo de redemocratização o Estado preocupou-se em revelar a verdade
sobre as violações cometidas, e o fez de forma reiterada nos anos seguintes, além de
responsabilizar a figura central da ditadura, Augusto Pinochet. No entanto, é preciso atentar
para o fato de que o Chile também enfrentou obstáculos no seu processo de justiça
transicional, como a manutenção da antiga Constituição, a decisão pela Corte chilena de
considerar as violações de direitos humanos cometidas por militares como prescritas, além
da perpetuação da antiga elite militar no poder.
Estes aspectos, marcam as diferenças centrais entre os dois países, e a forma como
cada um elaborou a memória do passado repressivo e lidou com as graves violações de
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direitos humanos. Nos dois países ainda há desafios a serem superados o que reforça a
importância da produção e debate acadêmico sobre o tema.
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