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BRAZIL, M. C. . Sobre os campos de vacaria do sul de Mato Grosso.Considerações sobre terra e escravidão [1830-1889]. In: MAESTRI, Mario & BRAZIL, M. C. Peões,vaqueiros, cativos campeiros: estudos sobre a economia pastoril no Brasil. 1 ed. Passo Fundo: Editora de Passo Fundo, 2009, v. 1000, p. 219-250.
SOBRE OS CAMPOS DE VACARIA DO SUL DE MATO GROSSO
Considerações sobre terra e escravidão [1830-1889] 1.
Maria do Carmo Brazil*
Palavras chaves: latifúndio; criação bovina; mão-de-obra
1. Limites historiográficos
Apesar de a produção pastoril ter sido praticamente a base econômica de toda
a história brasileira, paradoxalmente é pequeno o fluxo de estudos historiográficos
dedicados especificamente a essa atividade, mesmo naquelas regiões em que
desempenhou papel essencial, como, no caso de Mato Grosso.
A historiografia brasileira sobre o tema não deixa dúvida a respeito da
importância da produção pastoril em nosso passado.2 Apesar desse reconhecimento, em âmbito nacional, e de vários autores terem abordado desde cedo tangencialmente
essa questão, como apenas assinalado, a carência de estudos sobre o tema é
indiscutível. 3
Essa lacuna historiográfica reflete-se em Mato Grosso, que não dispõe de
uma produção mais refinada sobre o processo de formação do latifúndio a partir da
introdução, consolidação e desenvolvimento da produção pastoril. Mais comumente,
a historiografia regional abordou a produção pastoril mato-grossense nos seus
aspectos gerais, compreendidos como escassamente dinâmicos. Esse é caso dos
estudos realizados por Virgílio Correa Filho, dominantemente voltados para a
planície pantaneira, atrelados aos poderes constituídos e expressos nas obras
Pantanais Mato-grossenses (1946), Fazendas de Gado no Pantanal mato-grossense
(1955), A Propósito do boi pantaneiro. Monografias cuiabanas (1926). 4
*Docente do PPGH da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Doutora em História Social
pela FFLCH/Universidade de São Paulo (USP). 1Agradecimentos à Isabel Camilo de Camargo, mestranda do Programa de Pós-graduação em
História/UFGD/MS. E-mail: mc.2708@hotmail.com. 2 Cf. GÂNDAVO, Pero de Magalhães de. Tratado da província do Brasil. Rio de Janeiro: INL/
Ministério da Educação e Cultura, 1965; SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em
1587. 4 ed. São Paulo: CEN; EdUSP, 1971; CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. 2 ed.
Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000;
SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil. 7 ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1982; BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das grandezas do Brasil. São Paulo: Melhoramentos,
1977. 3 Consultar por exemplo: GOULART, José Alípio. Transporte nos engenhos de açúcar (1959); Meios e
instrumentos de transporte no interior do Brasil (1959); Tropas e tropeiros na formação do Brasil (1961);
O cavalo na formação do Brasil (1964); Brasil do boi e de couro (1965); O ciclo do couro no Nordeste
(1965). 4CORREA FILHO, Virgílio. Pantanais Mato-grossenses – Devassamento e ocupação. Rio de Janeiro:
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/CNG, 1946. Biblioteca Geográfica Brasileira. Fazendas de
Gado no Pantanal mato-grossense- Documentário da vida rural n° l0- Rio de Janeiro: Ministério da
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Além de Correa Filho, temos alguns estudos isolados voltados para áreas
específicas do Pantanal, como os de Carlos Vandoni de Barros e José de Barros
Maciel. 5 São escritos realizados por descendentes de José de Barros, um dos
fundadores da dinastia de pioneiros6 (nos dizeres de Pedro Calmon) da região
pantaneira e que contribuíram para nutrir o gênero da biografia romanceada e as
memórias por ordem crescente de interesses. Sobre a região de rio Brilhante e
Sant’Ana de Paranaíba, surpreendentemente arrolamos apenas o trabalho de cunho memorialístico de Hildebrando Campestrini e Acyr Vaz Guimarães. 7
A obra intitulada História de Mato Grosso do Sul, ao dedicar algumas
páginas ao processo de ocupação dos Campos de Vacaria e cercanias, serviu de base
para estudos técnicos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). 8
A partir de sua obra germinal, Campestrini produziu Sant’Ana do Paranaíba: Dos
caiapós à atualidade (1999), com objetivo de contribuir à construção da história do
município, tendo como fundamento a trajetória das famílias pioneiras.9 Vemos esse
trabalho como mais uma reprodução do tradicional culto às classes proprietárias do
passado, ainda tão comum na região, mas que não deixa de ser um ponto de partida para análises científicas.
No rol de pesquisas acadêmicas dispomos de apenas dois trabalhos dedicados
à pecuária em Mato Grosso. Um de autoria de Luiz Miguel do Nascimento e outro
de Paulo Marcos Esselin. 10 O primeiro trata-se do trabalho defendido, em 1992,
como dissertação de mestrado, sob o título As charqueadas em Mato Grosso:
subsídio para um estudo de história econômica, cujo recorte temporal envolve o
período entre 1873 e 1960. Observamos que Nascimento não discutiu o processo de
desenvolvimento da economia criatória no sul de Mato Grosso como um todo, pois
seu enfoque restringiu-se à expansão da ordem capitalista na região pantaneira, com base na indústria da carne.
O segundo trabalho é o brilhante trabalho de pesquisa A pecuária no
processo de ocupação e desenvolvimento econômico do Pantanal sul mato-
grossense (1830-1910), apresentada por Paulo Marcos Esselin, em 2003, como tese
de doutoramento no Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências
Agricultura - Serviço de informação agrícola, l955. A Propósito do boi pantaneiro. Monografias
cuiabanas, Rio de Janeiro: Pongetti, 1926. 5BARROS, Carlos Vandoni de. Nhecolândia – Opúsculo escrito em comemoração à Primeira Feira
Agropecuária realizada na Fazenda Santa Rita, município de Corumbá – atestado eloqüente da luta pelo
progresso na riquíssima região nhecolandense. Mato Grosso: s.e. 1934. MACIEL, Jose de Barros. A
pecuária nos pantanais de Mato Grosso: Tese apresentada ao 3º Congresso de Agricultura e Pecuária.
São Paulo: Imprensa Metodista, 1922. 6 CALMON, Pedro - História da Casa da Torre - Uma dinastia de pioneiros, Livraria José Olympio
Editora,1958; BRAZIL, Maria do Carmo. (Revista) 7 CAMPESTRINI, Hildebrado e GUIMARÃES, Acyr Vaz. História de Mato Grosso do Sul. Campo
Grande: Academia sul Mato-Grossense de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do
Sul, 1991. 8 MAZZA, Maria Cristina Medeiros [et AL]. Etnobiologia e Conservação do Bovino Pantaneiro. Corumbá: Embrapa, 1994, p. 14,15. 9 CAMPESTRINI, Hildebrado. Sant’Ana do Paranaíba: Dos caiapós à atualidade. Paranaíba: Prefeitura
de Paranaíba, 1999. 10 NASCIMENTO, Luiz Miguel. As charqueadas em Mato Grosso. Subsídio para um estudo de história
econômica. Assis, SP: Departamento de História da Faculdade de Ciência e Letras da Universidade
Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (Unesp), 1992. ESSELIN, Paulo Marcos. A pecuária no
processo de ocupação e desenvolvimento econômico do Pantanal sul mato-grossense (1830-1910). Porto
Alegre, RS: Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/Porto Alegre), 2003.
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Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. O autor discute
o papel desempenhado pela pecuária no processo de ocupação e desenvolvimento
econômico do Mato Grosso e investiga a origem dos primeiros bovinos introduzidos
na planície fluvial do pantanal sul, bem como as características do meio físico que
permitiram excepcionais condições para operar a reprodução do rebanho. Algumas
páginas da obra são dedicadas à região leste do antigo Mato Grosso, espaço onde se
assentavam os Campos de Vacaria e os Sertões dos Garcia (Sant’Anna de Paranaíba).
É certo, portanto, que Mato Grosso dispõe de grandes lacunas
historiográficas sobre o tema, em detrimento de ser uma região de raízes
essencialmente pastoris. Mesmo sobre o pantanal ainda é irrisória a produção
acadêmica em torno do processo evolutivo da produção pecuária. Além disso,
poucos historiadores procuraram dialogar dialeticamente com os elementos da
realidade, presentes nos relatos memorialísticos ou outras peças informativas
similares, como forma de construir a história regional. Assim, a reflexão sobre a
ocupação deste espaço singular traduz a certeza de que a pesquisa histórica sobre as correntes de povoamento e os aspectos da vida material da parte sulina de Mato
Grosso permanece ainda como uma floresta primitiva, à espera de seus
desbravadores.11
A exemplo da historiografia sul-rio-grandense são escassos os trabalhos
gerais de historiadores sobre a evolução das fazendas pastoris do meridião mato-
grossense.. Daí a importância de se centrar esforços na definição do perfil da
propriedade pastoril, unidade produtiva que alavancou o desenvolvimento do atual
estado de Mato Grosso do Sul.
Nesse sentido, procuramos refletir sobre o processo de formação do latifúndio a partir da introdução, consolidação e desenvolvimento da produção
pastoril em áreas do sul de Mato Grosso, especificamente o Sertão dos Garcia, porta
de entrada para os Campos de Vacaria, no século 19, considerando as formas
jurídicas de formação da propriedade (sesmeira; compra; posse; ocupação livre,
etc.), a evolução das técnicas produtivas (marcação, castração, rodeios etc.) e as
relações de trabalho (livre e escravizada).
Espaço pastoril
Cabe enfatizar inicialmente que os trabalhos existentes sobre esse espaço brasileiro, sobretudo no que se referem à gênese da economia pastoril, restringem-se
à história recente da região, ou seja, à análise do processo de colonização do sul de
Mato Grosso a partir da década de 1940, quando o governo Vargas [1930-1945]
implantou a política de interiorização do Brasil, conhecida como Marcha para
Oeste, cujo objetivo era povoar os espaços vazios das regiões do Oeste e da
Amazônia brasileira, e expandir a abrangência da produção capitalista-mercantil do
Brasil12.
11 BRAZIL, Maria do Carmo. Rio Paraguai, o ‘mar interno’ brasileiro. Uma contribuição para o estudo
dos caminhos fluviais. Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas.
São Paulo-SP. 1999, p. 262. (Tese de Doutorado). 12 Schwartaman, Simon( org.) - Estado Novo, um auto-retrato , Brasília: Ed. UNB, l982, p.21. (Arquivo
Gustavo Capanema). Ver também 12 Figueiredo, José Lima. O Rio Paraná no Roteiro da Marcha para o
Oeste. Revista Brasileira de Geografia. Rio de Janeiro: CNG, jan./mar., 1942, p.143. Vargas, Getúlio- A
Nova Política do Brasil. Rio de Janeiro: José Olímpio, l938-l944, l0 vols.
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O ponto fulcral de nossas inquietações, e que redundou nesta reflexão, refere-
se, mais especificamente, ao passado histórico-pastoril da região de Sant’Ana de
Paranaíba, conhecida por Sertão dos Garcia, e de Rio Brilhante, denominada
Campos de Vacaria. Espaço rendilhado pelos rios Paraná, Paranaíba, Sucuriú,
Verde, Pardo, Anhanduí Vacaria, e Brilhante, se constituiu, em diversos pontos, em
pouso obrigatório para os viandantes que perscrutavam os sertões mais internos de
Mato Grosso por variados motivos, entre os quais se destacavam a busca de fama, riqueza e poder. Nesses pontos de descanso os caminheiros roçavam o mato,
preparavam o acampamento, arranchavam-se, ceavam, armavam redes. Alguns
sertanistas permaneciam por mais tempo nos pousos, pois desenvolviam lavoura de
milho, feijão e mandioca, e só depois de se colher seus frutos, prosseguiam
viagem13. Não raro, os pousos e varadouros mato-grossenses transformavam-se em
importantes arraiais ou em áreas difusoras de populações oriundas do centro-sul
brasileiro.
A existência de inúmeros documentos existentes nos arquivos regionais
envolvendo, sobretudo grandes pecuaristas e trabalhadores escravizados e livres pobres, também despertou nosso interesse em estudar o passado dos núcleos pastoris
de povoamento do sul de Mato Grosso (Figuras 1 e 2). Com este enfoque, é possível
contribuir para que se retire os trabalhadores escravizados e camponeses pobres do
anonimato preexistente no discurso historiográfico regional 14. Despojados de
merecida cientificidade, os raros escritos sobre o segmento social subalternizado
encontram-se restritos aos depoimentos isolados, memórias das ditas elites regional
e local, dados dispersos nos inventários, documentos cartoriais ou detalhes quase
imperceptíveis ou ligeiramente registrados nas narrativas dos viajantes que passaram
pela região no século 1915.
13 AMORIM, Marcos Lourenço. O Segundo Eldorado brasileiro. Navegação fluvial e sociedade no
território do ouro. De araraitaguaba a Cuiabá – 1719-1838. Dourados, MS: UFGD, 2004, p. 33.
(Dissertação de Mestrado). 14 CAMARGO, Isabel Camilo de. BRAZIL, M.B. Sant’Ana de Paranaíba no século XIX: aportes para o
debate sobre latifúndio e escravidão. Anais XXV Simpósio Nacional da ANPUH -12 a 17 de julho de
2009. Fortaleza, CE, 2009, p. 281. 15 Ibidem.
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Figura 1 – Localização dos campos de Vacaria de Mato Grosso delineado em mapa com divisão político- administrativa contemporânea e editado por Omar Daniel/FCA/UFGD.
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Figura 1 – Croqui de localização dos campos de Vacaria, sertão dos Garcia e do
trajeto de Joaquim Francisco Lopes, no sul de Mato Grosso.
A existência de um passado escravista regional ainda causa estranhamento a
muitos moradores locais, por acharem impensável que a escravidão tenha alcançado
os mais remotos recantos do Brasil, como é o caso do dos Campos de Vacaria e do
Sertão dos Garcia. 16 Empenhar esforços sobre esse espaço constituído por anseios,
necessidades e contradições sociais significa lançar luz sobre a problemática do
latifúndio, dos campos, das barrancas dos rios, das fazendas, como materialização de
ricas e complexas relações sociais, envolvendo produção, dominação e resistência. 17
O passado missioneiro das fazendas pastoris
Na década de 1570 Domingos Martinez de Irala, como governador de
Assunção, e representante dos colonizadores espanhóis despachou para a conquista
de terras sul-americanas, dois de seus capitães, munidos de apreciáveis expedições:
Nuflo Chavez e Rui Diaz Melgarejo. Cabia a este último explorar as ribanceiras do
rio Paraná e a Nuflo Chavez a tarefa de colonizar a planície de Xarayés (região do
Pantanal), sobretudo a região da Gaíva, onde deveria ser fundado um forte18.. Rui
Diaz Melgarejo remontou o Paraná e fundou Ciudad Real na confluência do Piquiri
e, em 1579 recebeu ordem para explorar o território dos nuarás, famoso por seus verdejantes campos. Escolheu a margem direita do M’botetey (rio Miranda),
tributário do Paraguai, onde fundou a cidade de Santiago de Xerez. Teve pouca
duração a cidade fundada por Melgarejo, devido às reações dos nativos. Invadida
pelos guatós em 1579, a cidade de Santiago de Xerez teve uma segunda fundação em
1593, à margem direita do Miranda por iniciativa de Ruy Diaz de Guzmán 19.
Os primeiros religiosos espanhóis chegaram ao Novo Mundo no início do
século 17 com a missão de cristianizar os nativos americanos. Fundaram dez
reduções na província do Guairá, hoje estado do Paraná. Entre 1610 e 1634, as
missões ergueram na região do Prata mais duas reduções: a do Itatim20 [sul do antigo Mato Grosso] e a do Tape [atual estado do Rio Grande do Sul], na bacia do
rio Uruguai. A partir daí os religiosos foram pontuando de reduções grande parte da
região platina, destacando-se entre as mais famosas os Sete Povos das Missões, na
margem esquerda do rio Uruguai.
16 Ibidem. 17 Ibidem 18 Relato de Ruy Diaz de Guzman, citado por Pedro Moura em Bacia do Alto Paraguai – Revista do
Conselho Nacional de Geografia. Rio de Janeiro: CNG, 1943, p. 27; 19 Cf. BRAZIL, Maria do Carmo. Rio Paraguai, o ‘mar interno’ brasileiro... Op. cit., p. 114. 20GADELHA, R. M. A. F. As Missões Jesuíticas do Itatim: um modelo das estruturas sócio-econômicas
coloniais do Paraguai (séculos XVI e XVII). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980 . Ver também SOUSA, N.
M. A redução de Nuestra Señora de la fe no Itatim: entre a cruz e a espada (1631-1654). Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul: Dourados, 2002. Dissertação de Mestrado. COSTA, M. F. História de um
País Inexistente: O Pantanal entre os Séculos XVI e XVIII. São Paulo: Kosmos, 1999.
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Logo os missionários promoveram a introdução do gado vacum, cavalar,
muar e ovino ciente de sua importância à sobrevivência das reduções. O gado
adquirido desenvolveu-se e propagou-se pelos currais e fazendas às margens dos
rios Paraná, Uruguai e Paraguai. Surgiram assim os primeiros núcleos criatórios de
gado. A idéia era promover a fixação dos nativos, sobretudo guaranis e, depois,
acumular riqueza para região missioneira baseada nos referidos rebanhos.
É preciso destacar que o surgimento do povoado castelhano de Xerez representou o gênesis do criatório bovino em espaço mato-grossense21. Os espanhóis
seguiam em caravanas, carretas puxadas por juntas de bois; levavam sementes para o
cultivo, utensílios para o início de suas atividades e também pequenos rebanhos de
bovinos e eqüinos22. Este gado criado à solta, não recebiam maiores cuidados.
Entretanto, as incursões bandeirantes ao explorar o interior da America do
Sul alcançaram essas reduções jesuíticas e seus campos de cria. A partir daí, as
penetrações interioranas, propulsionadas por fatores geopolíticos, econômicos e
sociais atingiram Guairá em 1628. Sem saída os missionários abrigaram os nativos
sobreviventes nas reduções de Santo Inácio e Loreto e, em seguida refugiaram-se nas missões estabelecidas entre os rios Paraná e Uruguai; os paulistas aproveitaram-
se da retirada para destruir as povoações de Vila Rica e Ciudad Real, situadas
respectivamente na margem esquerda do rio Ivaí e junto à foz do rio Piquiri; alguns
habitantes conseguiram se dirigir para o Paraguai, onde fundaram nova povoação às
margens do rio Jejuí. Signo da posse espanhola, a região foi invadida e destruída
pelos bandeirantes luso-paulistas em 1632, assinalando o domínio português.
Depois do esfacelamento de Xerez (1633), os padres jesuítas foram obrigados
a abandonar a redução e se refluírem com muitos nativos para a margem direita do
Uruguai, por absoluta incapacidade de enfrentar os invasores em condições iguais, no referente, sobretudo, ao armamento necessário. Segundo o Informe da
Companhia de Jesus, esboçado pelo historiador português Jaime Cortesão, os
jesuítas acabaram deixando cerca setecentas cabeças de gado vacum aos neófitos.23
Outras centenas de animais ficaram na antiga povoação juntamente com
aqueles utilizados como tração: bois, éguas, cavalos e mulas, que haviam desgarrado
do rebanho e se criaram sem trato algum. 24 Sem dispor do costeio dos nativos, as
manadas se espalharam pelo território e retornaram ao estado selvagem25. Mesmo
abandonado e sem manejo o gado multiplicou-se na condição de bagual. Criado
naturalmente por mais de meio século o gado selvático se proliferou, constituindo-se no casco inicial da pecuária sul mato–grossense, depois de sobreviveram
silvestremente em ambiente favorável, propício à criação. 26
A derrota dos pólos de colonização espanhola e o completo despovoamento
de Itatim levaram os luso-brasileiros a perscrutar novos territórios sementeiros de
cativos, necessários às atividades primário-exportadoras do nordeste brasileiro.
21 ESSELIN, Paulo Marcos; OLIVEIRA, Tito Carlos Machado. Terra onde o gado criou o homem e definiu o latifúndio. História – Debates e Tendências. Revista do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade de Passo Fundo, v.7, n.2, jul./dez.2007. (Dossiê a Fazenda Pastoril e a
escravidão), p. 101-117. 22 Ibidem. 23 CORTESÃO, Jaime (org). Manuscritos da Coleção de Angelis (jesuítas e bandeirantes...). Rio de
Janeiro: Biblioteca Nacional/ Divisão de Obras Raras e Publicações. 1951, v. 2, p. 19. 24 Ibidem. 25 ESSELIN, Paulo Marcos; OLIVEIRA, Tito Carlos Machado. Terra onde ...Op. cit. 26 Ibidem..
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Historicamente, o cativeiro foi a organização econômica que melhor se adaptou à
valorização das terras americanas, devido à impossibilidade histórica da
conformação de mercado de trabalho livre. Não há dúvida de que o próprio
desenvolvimento capitalista europeu floresceu, também, graças à feitorização do
homem americano e, depois, africano. 27
Além da preagem dos nativos para escravização, as razões oficiais luso-
brasileiras em avançar a linha raiana de Tordesilhas eram revestidas pela idéia de encontrar metais preciosos, que segundo as lendas estariam nos montes refulgentes
do Peru. 28 Nessa trajetória, os paulistas destruíram missões jesuíticas espanholas,
estabeleceram rotas, descobriram minas e criaram circunstâncias para a ocupação e o
povoamento de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás.
Com a descoberta das minas de ouro em Cuiabá (1718), a parte sul de Mato
Grosso deixou de ser objeto de interesse por parte dos mamelucos paulistas. Em O
Brasil do Boi e do Couro29, obra publicada em 1965, José Alípio Goulart lembra que
a introdução do gado em áreas mato-grossense foi quase concomitante com a do
garimpeiro e a do faiscador. O governador de São Paulo, Rodrigues Cezar de Meneses, ciente da necessidade de rebanho na região das minas, emitiu regimento
(1725) incentivando os criadores a estabelecer currais naquelas paragens30.
Cavalcante Proença informa que algumas reses penetraram na região pelas mãos da
gente de Piratininga. Luiz D’Alincourt arrisca dizer que as primeiras cabeças
procederam de Camapuã.31 Esse gado tangido seja por luso-brasileiros, colonos
castelhanos, paulistas ou criadores de Goiás, acabou misturado ao gado dos campos
da Vacaria. 32
Nos primórdios da ocupação de Mato Grosso, priorizava-se o ouro em
detrimento dos rebanhos selvagens formados depois da destruição da missão de Itatim. Tanto desinteresse, por parte de espanhóis e portugueses, permitiu que os
rebanhos bovinos e eqüinos se multiplicassem ao longo dos anos.
Para se ter uma idéia, em 1682, alguns anos antes da descoberta do ouro
cuiabano, uma das mais importantes bandeiras, organizada na cidade de Sorocaba,
partiu para o sul de Mato Grosso, tendo como capitão-mor Pedro Leme da Silva.
Maravilhado com os rebanhos bovinos e eqüinos, sem donos, Pedro Leme optou
pela formação de um arraial nas vacarias sulinas de Mato Grosso. 33
Em suas constantes incursões pela região, os portugueses nominaram essas
áreas de vacaria, dada a presença dos rebanhos silvestres. Delimitava-a Pedro Taques, em meados do século 18, depois de afirmar que, nos campos assim
chamados, existiam enormes rebanhos, sem haver algum senhor possuidor de tanta
grandeza, não só de gados vacuns, mas também dos animais cavalares. 34
27 MAESTRI, Mario. História da África Negra Pré Colonial. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, p.42-
43. 28 HOLANDA, Sérgio Buarque de Holanda. Visões do Paraíso – Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. 2 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, p.99. 29 Goulart, José Alípio. O Brasil do boi e do couro. Rio de Janeiro: Edições GRD, 1965. (Coleção Ensaios
Brasileiros – Homens e Fatos, n. 3, dois volumes). 30 Ibidem, p. 41. 31 Ibidem, p. 61. 32 Ibidem, p.42 33 TAUNAY, Affonso. História geral das bandeiras paulistas. São Paulo: TYP. Ideal, 1930.v.1 e 6. 34 Ibidem. Ver também PASTELLS, Pe. Pablo. Historia de la Compañia de Jesús en la Província del
Paraguay. Madrid: Librería general del Victoriano Suárez, 1912, p. 142..
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A reconquista dos Campos
No início do século 19, os campos da Vacaria do sul de Mato Grosso (Figura
1), esquecidos desde o funesto aniquilamento das missões, agregavam enormes
rebanhos de gado. Os relatos conhecidos, tanto de espanhóis radicados em
Assunção, como os de luso-brasileiros de São Paulo, são unânimes em afirmar a
presença desses rebanhos na parte sulina de Mato Grosso. Este gado silvestre, criado
extensivamente, veio mais tarde transformar-se na fonte de atração àqueles que desejavam ocupar a região, a partir da pecuária.
Na planície pantaneira, por exemplo, havia extensos campos de pastagens
nativas providos de salinas naturais que, influenciados por marcantes períodos de
seca e de água abundante, determinou os modos de adaptação do homem pantaneiro à
região. Destaque-se, nessa fisiografia constratante dos pantanais, a abundância dos
barreiros em áreas que vão desde a barra do rio Jauru até os campos alagados do
Taquari e o Apa. Os barreiros são terrenos salgados, caracterizados como
eflorescência salino-salitrosa presentes da área baixa do vale do rio Paraguai muito
procurados pelo gado, por inúmeros animais silvestres, como antas, veados que escavam, lambem e refocilam a terra por causa do sal.
Os depósitos de sal encontram-se em toda a depressão paraguaiana,
sobretudo além dos limites nacionais, na região do Chaco35. Todavia, a eflorescência
das salinas participa da vasta paisagem dos pantanais e se dispõe de forma latente
nas lagoas ou baias de água salgada. Na região do rio Negro, nos baixios para onde
correm os cursos do rio Miranda, Negro e Taquari, os barreiros se multiplicam.
Próximo ao Porto da Manga, no rio Paraguai, Candido Mariano da Silva Rondon arrolou, no início do século 20, 170 lagoas, das quais 93 constituíam-se em salinas36.
A presença das baias salgadas promove a excelência dessa região,
transformando o Complexo do Pantanal numa referência mundial enquanto
expressão de beleza e de campo natural de pastagem. Nos espaços mais elevados da planície, os rebanhos alçados podiam ser perfeitamente recolhidos. Além disso, no
século 19 as terras ainda eram tidas como devolutas e os grupos nativos que as
ocupavam, menos resistentes do que no início da conquista. A região conhecida como Campos de Vacaria (mais ao sul do pantanal),
inserida no bioma cerrado, também foi propícia às atividades agropecuárias, embora
também sofresse interferências ambientais, sobretudo quanto ao regime das águas,
estiagens e geadas. A bióloga Roseli Senna Ganem37 explica que o bioma Cerrado é
o segundo maior do Brasil, depois da Amazônia. Originalmente, o Cerrado ocupava
dois milhões de km2, o que equivale a 24% do território nacional. Localizado no Planalto Central, apresenta interface com todos os principais biomas da América do
Sul (Amazônia, Mata Atlântica, Caatinga, Chaco e Pantanal), sendo um grande
corredor de biodiversidade38. Para Ganem o bioma constitui um mosaico de
fisionomias vegetais, que variam das formas campestres aos ecossistemas florestais,
35 BRAZIL, Maria do Carmo. Rio Paraguai, o ‘mar interno’ brasileiro... Op. cit., p. 97-98 36
Cf. Rondon, Cândido Mariano da Silva. - Relatório das Linhas Telegráficas de Mato Grosso. Rio de
Janeiro: Comissão Rondon, 1907. 37 GANEM, Roseli Senna [et al]. Ocupação humana e impactos ambientais no bioma cerrado: dos
bandeirantes à política de biocombustíveis. IV - Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
Graduação em Ambiente e Sociedade ( ENANPPAS). Brasília, 4, 5 e 6 de junho de 2008. 38 Ibidem, p. 3.
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com alta riqueza de espécies e grande número de endemismos (ocorrência de uma
dada espécie em área restrita).
Diferentemente dos campos sulinos brasileiros, caracterizados por vastas
áreas de vegetação graminóide-herbácea, as vacarias de Mato Grosso não eram
contínuas. Distinguia-se por se constituir num tablado mesclado por vegetação
arbóreo-arbustivo, ora de cerrado, ora de matas de galerias.
Até as três primeiras décadas do século 19, os gentios bilreiros ainda eram senhores daquelas paragens, quando ocorreu sua ocupação pelos entrantes
mineiros39, atraídos pelas grandes extensões de vegetação rala, principalmente
campos, com pastagens naturais e pela forte presença de gado alçado. Famílias
inteiras de colonos, oriundas de Minas Gerais migraram, para ocupar parte dos
sertões devolutos das Vacarias mato-grossenses.
No período regencial (1831-1840), problemas políticos decorrentes do
processo emancipatório e de questões de ordem econômica, atinentes, sobretudo à
crise da economia escravista exportadora, resultaram na escassez de recursos e no
clima de insatisfação entre as Províncias e o Governo Central, constituídas por revoltas populares que se estenderam, igualmente, por todo o Império. Em Mato
Grosso esse movimento político ficou conhecido como Rusga, o qual foi deflagrada
na noite de 30 de maio de 1834, com duração de alguns meses, marcando o triunfo
do movimento liberal e federativo nativo local e a completa desarticulação das
forças tradicionais, representadas pelos comerciantes lusos portugueses.
A fenômeno da Rusga trouxe significativos desdobramentos para a Província.
Expressivo número de revoltosos rumou para o sul de Mato Grosso, foragidos da
justiça por crimes praticados contra portugueses em várias cidades da Província e
arredores de Cuiabá. Alguns se internaram pela região ao logo do rio Paraguai, povoando as margens dos rios Taboco e Nioaque, avançando para os vales dos rios
Miranda, Aquidauana e Negro, chegando até as proximidades do rio Apa (fronteira
com o Paraguai).
Portanto, diante das questões políticas, do declínio da mineração, do fracasso
das tentativas agrícolas e de problemas políticos internos do Império, acentuaram-se
as correntes de penetração constituídas por criadores de gado.
Na obra Etnobiologia e Conservação do Bovino Pantaneiro, organizada por
Maria Cristina Medeiros Mazza e outros, em 1994, consta que algumas frentes
migratórias oriundas do Triângulo Mineiro, do nordeste brasileiro e do interior de São Paulo, voltadas para a criação de gado, já realizavam, conforme referimos,
significativas incursões nos sertões de Mato Grosso. 40
A corrente proveniente do Nordeste entrava por Goiás para instalar-se na
região de Cuiabá e Vila Bela; a procedente de Minas Gerais e São Paulo; penetrava
pelo sul de Mato Grosso, atingindo, sobretudo, a região de Coxim. 41 Depois, os
criadores de Vila Bela e Cuiabá, seguindo o curso fluvial do São Lourenço e seus
afluentes, avançaram no Pantanal tentando alcançar o sul de Mato Grosso.
39 Sobre a migração mineira, especificamente sobre as fazendas de criar do nordeste paulista, consultar
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado & BRIOSCHI, Lucila Reis (orgs.). Na estrada do Anhanguera:
uma visão regional da história paulista. São Paulo: FFLCH/USP, 1999. Ver também LARA, Mario. Nos
confins do Sertão da Farinha Podre. Povoamento, conquistas e confrontos no Oeste de Minas. Belo
Horizonte: s.ed., 2009. (Fomentado pela Lei Rouanet) 40 MAZZA, Maria Cristina Medeiros [et al]. Op. Cit. p. 14,15. 41 CORRÊA FILHO, V. Fazendas de Gado no Pantanal mato-grossense- Documentário da vida rural n°
l0- Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura - Serviço de informação agrícola, l955.
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Famílias pioneiras
Interessa-nos particularmente analisar como o espaço pastoril, envolvendo a
região de Sant’Ana de Paranaíba e Rio Brilhante - Sertão dos Garcia e Campos de
Vacaria, respectivamente - convertida em objeto historiográfico, veio se tornar
importante marco do discurso patriarcal e da expansão territorial, a partir da vocação
pastoril, desempenhando significativo papel na legitimação dessa ideologia mantida ainda hoje na historiografia brasileira.
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Figura 2. Ocupação da Região de Sant’Ana de Paranaíba - Sertão dos Garcia, delineado em mapa com divisão político-administrativa contemporânea e editado por Omar Daniel/FCA/UFGD.
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De acordo com as reflexões de Peter Burke a tradição histórica tinha como
preocupação temas nacionais ou internacionais, cortando obliquamente as
proposições regionais. Isto significa dizer que a abordagem tradicional colocou à
margem da história muitos aspectos das atividades humanas, considerando que estas
devem ser entendidas na perspectiva da história total. 42
Segundo o historiador Ângelo Emílio da Silva Pessoa43, desde autores como Oliveira Vianna, Nestor Duarte, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio
Prado Jr., Costa Pinto até a produção historiográfica mais recente, a família, sob os
mais variados matizes, tem sido estudada a partir de diferentes abordagens e
tendências, ensejando reflexões e debates sobre questões decisivas na formação
histórica brasileira44. Distintos em suas análises e em suas finalidades, os referidos
autores45 não deixaram de destacar o papel fundamental da família na conformação
social e política do Brasil46.
Nesse sentido, a análise, envolvendo os Campos de Vacaria, implica em
discutir o papel das famílias no processo de ocupação, e também impõe a utilização de categorias teóricas para definir o instituto da família, família oligárquica, família
patriarcal, etc. Importante contribuição sobre o tema expressa-se na tese de
doutoramento As ruínas da tradição: a casa da torre de Garcia D'ávila. Família e
propriedade no nordeste coloquial, defendida em 2003, pelo historiador Angelo
Emílio da Silva Pessoa, já referido47. Em denso estudo sobre família e propriedade
no nordeste colonial e imperial, o autor discute a irradiação do discurso patriarcal
traduzido no culto aos pioneiros e as variadas estratégias utilizadas por grandes
proprietários e pecuaristas na aquisição, ampliação e manutenção de poder, como
formas distintas de obtenção de cargos, favores, ligações de casamento e tramitações de heranças48.
42 BURKE, Peter (Org), A escrita da história: novas perspectivas. Trad. Magda Lopes. São Paulo:
UNESP, 1992. 43
PESSOA, Angelo Emílio da Silva Pessoa. As ruínas da tradição: a casa da torre de Garcia D'ávila.
Família e propriedade no nordeste coloquial.. 2003. (Tese de Doutorado em História Social,
FFLCH/USP). 44Ibidem, p. 12 45 Cf. VIANNA. Francisco José de Oliveira. Populações Meridionais do Brasil: História Organização –
Psycologia. 4 ed. São Paulo: Nacional.1938. DUARTE, Nestor. A Ordem Privada e a Organização
Política Nacional:Contribuição à Sociologia Política Brasileira. São Paulo: Nacional, 1939. FREYRE.
Gilberto. Casa Grande e Senzala: Formação da Família Brasileira sob o Regime da Economia Patriarcal. 30. ed. Rio de Janeiro: Record, 1995. FREYRE. Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência
do Patriarcado Rural e desenvolvimento urbano. 2 ed 3 vols. Rio de Janeiro: José Olympio 1951.
HOLANDA. Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 17 ed. Rio de Janeiro: José Olympio. 1984
PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo.20.ed.São Paulo.Brasiliense. 1987. pg 286.
PINTO, Luiz de Aguiar da Costa. Lutas de Famílias no Brasil (Introdução ao seu estudo), 2ª. Edição. São
Paulo: Nacional; Brasília: INL, 1980. 46 PESSOA, Ângelo Emílio da Silva. As Ruínas da Tradição .... Op.cit. p. 12. 47Ibidem. 48
Ibidem, p. 4.
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Os pioneiros das famílias Garcia Leal, Barbosa e Lopes atravessaram os campos da
região de Sant’Ana de Paranaíba e, depois Rio Brilhante, iniciando a história do
povoamento do sul do Estado. Parece extemporâneo propor estudos sobre essas
famílias, integrantes do patriciado rural do sul de Mato Grosso, em detrimento de
abordagens mais recentes que propõem explicar o processo histórico a partir da
visão que integre os segmentos trabalhadores socialmente subalternizados.
Um ponto levantado por Peter Burke refere-se à escrita tradicional a partir dos segmentos dominantes, ou seja, a partir da valorização das figuras ilustres como
generais, estadistas, etc. A crítica do historiador inglês vai para os historiadores que
desconsideram a história dos sujeitos comuns, desconsiderando que estes constroem
também a história – e diríamos, com destaque.
A partir das orientações da Nova História, é preciso considerar tanto a
história de vista de cima como também a vista de baixo, aproveitando a participação
dos diferentes atores sociais nesse processo.49 Entretanto, entendemos também que
não é anulando o segmento dominante do “horizonte historiográfico que estaremos
produzindo uma história da perspectiva dos vencidos [...]50 considerando que dominação e resistência são expressões inseparáveis de uma mesma equação. Daí a
necessidade de desenvolver estudos que apreendam a questão num sentido
diacrônico e, assim capturar os aspectos mais relevantes para a compreensão da
formação histórica do Brasil.
A corrente migratória originária de Minas Gerais, mais especificamente do
Triangulo Mineiro, e interior de São Paulo penetrou na Província através de
Sant’Ana de Paranaíba (sertão dos Garcia). Minas tornou-se uma das principais
regiões provedoras de bovino destinado ao melhoramento daquele gado
remanescente do passado missioneiro. A historiografia regional dá conta de que a região de Sant’Ana de Paranaíba,
via de penetração para os Campos de Vacaria, era primordialmente habitada por
ameríndios do grupo lingüístico Jê - os caiapós. Entre os anos de 1739-1755, o
espaço tornou-se bastante freqüentado pelas expedições paulistas, que tinham como
objetivo a captura de nativos para escravização. 51 Entretanto, apenas na década de
1830, ocorreu a chegada de ocupantes não nativos, oriundos de Minas Gerais, como
as famílias Garcia Leal, Rodrigues da Costa, Correia Neves, Barbosa e Lopes.
José Garcia e Januário Garcia Leal tornaram-se líderes dessa frente de
ocupação. Desse ponto, a corrente se expandiu em direção ao interior da parte sul da Província, abrangendo a conhecida com Campos de Vacaria (Figura 1) e, mais tarde
a região de Campo Grande, hoje capital de Mato Grosso do Sul, cuja toponímia
revela seu passado pastoril.
As terras integrantes do patrimônio das famílias ocupantes do sul de Mato
Grosso basearam-se no sistema sesmeiro que se estendeu pelos atuais municípios da
região. Imensas propriedades pastoris formaram-se sob domínio desses migrantes
oriundos de Minas Gerais. Arraiais, vilas e cidades desenvolveram-se a partir da
construção de inúmeros ranchos, erguidos rusticamente nas barrancas de rios
49 Cf. BURKE, Peter (Org), A escrita da história: novas perspectivas. Trad. Magda Lopes. São Paulo:
UNESP, 1992. 50 PESSOA, Ângelo Emílio da Silva. As Ruínas da Tradição .... Op.cit. p. 242. 51 AYALA, S. Cardoso e SIMON, F. O Municipio de Sant’Anna de Paranayba. In:Albu m graphico do
Estado de Matto Grosso (EEUU do Brazil) Corumbá, Hamburgo: 1914, p. 419. CAMPESTRINI, H.
Sant’Ana de Paranaíba. De 1700 a 2002. 3ª. Edição. Campo Grande, MS: IHGMS, 1997, p. 36-41.
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inexplorados ou nas vizinhanças de vendas, tabernas ou pousos construídos em
curvas de estradas.
Desde o período colonial, o caráter do sistema de sesmarias, ligando terra e
posse de cabedais gerava canais exclusivos, diretos e indiretos, de acesso a terra por
grandes produtores. 52 Além disso, o instituto sesmarial por muito tempo garantiu
poderes políticos aos sesmeiros-latifundiários, responsáveis por processos de
sujeição e dependência de segmentos subalternizados fossem eles escravizados ou livres (lavradores, posseiros, pequenos proprietários e demais moradores). O
processo de subalternização desdobrava-se na relação clientelista e traduzia-se na
troca de apoio e nos laços de submissão pessoal, geradores da violência privada de
grandes proprietários. A violência, portanto, era parte articulada das relações sociais
contidas na organização agrária colonial. 53 Em âmbito nacional, sobretudo no Nordeste, os diversos relatos oficiais
destacam o papel de algumas famílias que se aventuraram pelos sertões, garantiram
o domínio das terras a partir da expansão dos currais54 à custa de estratégias políticas
de aquisição, manutenção e ampliação do patrimônio, recorrendo, não raro, a procedimentos fraudulentos. 55 Algumas fontes referentes às questões de terras56
destacam principalmente a importância das famílias pioneiras na conquista e a
incorporação de vastas extensões de terra ao corpo da nação brasileira. Mas a
dificuldade de calcular o tamanho dos latifúndios, dada a imprecisão e a falta de
clareza da fiscalização deu origem a inúmeras demandas judiciais que alcançam os
dias atuais57.
Família e Igreja
Em 1836, erigiu-se a primeira igreja, graças à iniciativa da família Garcia e
do padre Francisco Sales de Souza Fleury. Este último, investido no cargo de capelão, era encarregado da assistência espiritual aos ocupantes dos sertões
devolutos de Sant’Ana de Paranaíba, como assinalado, porta de entrada para os
Campos de Vacaria.
Observe-se que a região do antigo sul mato-grossense era uma fronteira
flutuante58, disputada por redes internas e externas de povoamento. Na região em
questão, uma vez realizada a ocupação, foram implantadas as estruturas políticas e
eclesiásticas, movidas por funcionários, proprietários, padres que agiam com chefes
políticos, os quais disputavam poder com fazendeiros ou se inseriam no seio desse
segmento, concorrendo ao mando local. Este parece ter sido o caso de Francisco de Sales Souza Fleury, oriundo da cidade de Franca, interior de São Paulo. Segundo
documentos reunidos no livro Como se de ventre livre nascido fosse, publicado em
52 Sobre o sistema sesmarial consultar LIMA. Ruy Cirne. Pequena História Territorial do Brasil:
sesmarias e terras devolutas. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura. 199() (Edição Fac-similar). 53 Sobre a dimensão da violência privada, o código do sertão, formas de dominação, hábitos costumeiros e da miséria conferir, entre outros, FRANCO. Mª Silvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem
Escravocrata. São Paulo: Ática, 1974, p.26-27. 54 PESSOA, Ângelo Emílio da Silva. As Ruínas da Tradição .... Op.cit. p. 34 55SANTOS F. Lycurgo. Uma Comunidade Rural no Brasil Antigo (aspectos da Vida Patriarcal no Sertão
da Bahia nos Séculos XVIII e XIX) São Paulo: Nacional. 1956. pg. 55. 56 CORREA FILHO, Virgílio Questões de terras. Secção de Obras d’O Estado de São Paulo, 1923, p.3. 57 Sobre o tema consultar PORTO. José da Costa. O Sistema Sesmarial no Brasil. 2 ed. Brasilia. Ed. da
UnB, 1979. 58 BRAZIL, Maria do Carmo. Rio Paraguai, o ‘mar interno’ brasileiro... Op. cit.p. 110-215.
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1994 pela Fundação de Cultura 59, o referido pároco exercia poder senhorial que
envolvia terras, cativos, agregados e homens livres de poucas posses.
Por mais de trinta anos, Fleury desempenhou papel social de suma
importância para o segmento proprietário, sobretudo, considerando que ele era o
responsável pela realização de casamentos, batizados, rezas e missas, cerimônias
religiosas que ensejavam relações inter-senhoriais, manifestações de poder e
autoridade sobre os segmentos subalternizados. A força política do padre Fleury tornou-se mais visível com o processo de
superação do escravismo. Entretanto, para explicar o aumento do potencial político
de Fleury, é preciso discutir o contexto histórico brasileiro a partir da segunda
metade do século 19.
A extinção do tráfico (1850) e os desdobramentos dele decorrente levaram a
classe dirigente do Império a conceder novos poderes ao governo para solucionar a
questão do elemento servil. Sob a batuta dos grandes proprietários, foram assim
criadas as leis emancipadoras, prevendo a extinção da escravatura de forma lenta,
gradual e indenizada. A extinção legal do tráfico internacional de africanos também alterou o
monopólio de poder no que tangia a política de terras. O governo imperial acionou
os dispositivos da Lei de Terras, os quais foram criados, em 1850, com o objetivo de
preservar o monopólio de poder (a terra), sob controle da classe hegemônica (os
latifundários escravistas). Sob a direção política dessa classe, utilizando-se de um
mecanismo jurídico, surgiram determinadas dificuldades ao trabalhador livre de
acesso à terra, enquanto se facilitava a apropriação da mesma pelos grandes
proprietários, através do instituto do reconhecimento das posses.
À medida que o grupo dirigente via seus monopólios ameaçados - terra e trabalhado escravizado - passou a propor medidas para assegurar tais monopólios.
Ou seja, já que a escravidão ficou tendencialmente condenada com a extinção do
tráfico internacional, o grupo tratou de deslocar o peso da dominação do cativo para
a posse da terra60. No período colonial, o sistema tradicional de aquisição de terra
era assegurado por dois instrumentos da Coroa Portuguesa: Carta de Doação e pelo
Foral. Ligada aos princípios das capitanias hereditárias, a propriedade territorial
originou-se nas concessões de sesmarias ou através de simples posses como o
objetivo de promover a ocupação, o desenvolvimento e o povoamento territorial.
Efetivamente, com a aprovação da Lei Imperial de Eusébio de Queirós
(1850), extinguindo o tráfico internacional de trabalhadores africanos, criou-se a
necessidade da reorganização do trabalho. A transição do trabalho escravizado para
o trabalho livre, somada à redefinição de um novo estatuto que passou a orientar a
estrutura fundiária, decorreu das novas estruturas econômicas e sociais organizadas a
partir do século 19: "A expansão dos mercados e o desenvolvimento do Capitalismo
motivaram uma reavaliação das políticas tradicionais da terra e do trabalho"61.
Assim, até 1822, o sistema tradicional de aquisição de terra permitia o fácil acesso a
59 Cf. PENTEADO, Yara [org.] “Como se de ventre livre nascido fosse....”: cartas de liberdade,
revogações, hipotecas e escrituras de compra e venda de escravos. 1838-1888. Campo Grande, MS: SEJT,
MS; SEEEB, MS; Ministério da Cultura/Fundação Cultural Palmares, DF, 1993. [Arquivo Público
Estadual, MS. 60 BRAZIL,
61 COSTA, Emília Viotti da. Políticas de terras no Brasil e nos Estados Unidos. In. Da monarquia à
República: momentos decisivos, São Paulo, Brasiliense, 1987, p. 244-247.
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terra através de doações de sesmarias e, de 1822 a 1850, através do sistema de
“posse livre”.
Com a extinção do tráfico internacional, proibiu-se, pela Lei de n. 601,
18.09.1850 [Lei de Terras], que as terras públicas ficaram entregues sem ônus.
"Ficam proibidas as aquisições de terras devolutas, por outro título que não sejam o
da compra". Porém, como assinalado, o caminho à apropriação da terra, sem
pagamento, aos grandes proprietários, seguia viabilizado pela possibilidade de
reconhecimento das posses. Tratava-se nos fatos de proibir ou dificultar a posse da
terra pelo homem livre, nacional ou emigrado, para obrigá-lo a vender sua força de
trabalho, em mercado de trabalho livre62. Tanto a Lei de terras como a Lei da
extinção do tráfico funcionaram como verdadeiros dispositivos, utilizados em
momentos de crise, pela classe proprietária para assegurar o monopólio de poder sob
seu controle no momento em que o Brasil foi sendo integrado no mercado mundial.
Daí a aplicação dessa lei, sobretudo com a supressão do escravismo63.
A primeira lei emancipacionista (Lei Rio Branco - n. 2.040 de 28.09.1871)
criava um fundo emancipador para compra de alforrias seletivas. Para cumprir os
dispositivos da Lei, o então presidente da Província de Mato Grosso, dr. Francisco
José Cardoso Júnior, libertou 62 escravos em 25 de março de 1872, como juramento
à Carta Constitucional. Durante 1872-1873, os escravizadores deviam registrar seus
cativos (Matrícula Especial), nas coletorias dos municípios, pois cabia ao Presidente
da Província a distribuição dos recursos do Fundo de emancipação. A lei priorizava
as famílias escravizadas, depois os indivíduos por ordem de preferência. Em um livro aberto para Matrícula Especial, os escravizadores tinham de
indicar o nome e uma série de outras informações para cada escravizado que
possuíam. Registravam-nos nas mesmas coletorias, e também de forma nominativa,
informavam as mudanças demográficas e sociais de escravizados adultos e menores.
As coletorias eram compostas pelo Promotor Público, pelo Coletor e pelo presidente da Câmara. Por outro lado, os párocos deviam fornecer informações sobre os
nascimentos e óbitos de cativos64.
Portanto, as leis e medidas imperiais não podem ser vistas como planos de
liquidação da escravidão. Mas sim como estratégias consensuais visando atenuar às
pressões externas e internas e, ao mesmo tempo, manter a escravidão até seu último
fôlego. Essas medidas foram variadas: tráfico interprovincial; as alforrias seletivas
pelo fundo de emancipação; as manumissões concedidas para assinalar batizados,
casamentos etc.; facilidades de alforrias a partir do pecúlio escravo; deslocamento
dos escravos urbanos para a empresa agrícola, etc. Nessa nova empreitada, em âmbito regional, mais particularmente na região
Sant’Anna de Paranaíba, ganhou realce uma figura emblemática daquele tempo: o
padre Francisco Sales de Souza Fleury. Para garantir o monopólio de terras e de mão
de obra no momento de superação do escravismo colonial, Fleury mediou inúmeros
processos de manumissões incluídos em heranças de famílias escravizadoras
regionais, como a de José Garcia Leal e a de dona Maria Garcia Tosta.
62 BRAZIL, Maria do Carmo. Fronteira Negra. Dominação, violência e resistência escrava em Mato
Grosso -1718-1888. Passo Fundo: Editora da Universidade de Passo Fundo (Editora da UPF), 2002, p.
153-158. (Coleção Malungo). 63 COSTA, Emília Viotti da. Políticas... Op. Cit. 64 Cf. CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-188. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975.
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Esse papel de intermediador de alforrias concedidas para assinalar batizados
e casamentos levou alguns analistas a vê-lo equivocadamente como militante
abolicionista, conforme afirmações a seguir: “O sul de Mato Grosso foi pioneiro na
luta abolicionista. Sem discursos, sem alarde, os líderes daqui foram conseguindo a
alforria dos escravos. Em Santana do Paranaíba, o Padre Francisco de Sales Sousa
Fleury conseguiu a liberdade de inúmeros deles, iniciando com o exemplo de casa,
alforriando os seus. Acrescente-se que padre Fleury teve de sua escrava [Joaquina], quatro filhos”65.
O discurso de Hildelbrando Campestrini revela que além de agenciador do
segmento dominante o padre soube muito bem defender seus próprios interesses.
Quando viu seus monopólios ameaçados lançou mão de mecanismos capazes de
prolongar ao máximo seus poderes, conforme evidenciam os documentos contidos
no Livro de notas do Cartório de Santana do Paranaíba, de 1865. Consta em um
desses documentos que o padre Francisco de Sales Souza Fleury alforriou Angelo,
de 20 anos, Belmiro, de 25 anos, e Romana de 18 anos, todos os filhos dele próprio
com a liberta Joaquina. Porém, eram alforrias condicionadas, pois os escravizados teriam que continuar servindo-o até “perfazer cada um a idade de trinta anos, findo
os quais entrarão no gozo pleno de sua liberdade, como se nascessem de ventre livre.
[...] rogando-lhes, todavia não desampararem a sua mãe, e aos seus irmãos até que se
case ou fique emancipada a última irmã.66”
A rota dos pioneiros
Na década de 1830 entraram pela costa leste de Mato Grosso os
colonizadores interessados em suas potencialidades pastoris. Tratavam-se das
famílias Garcia Leal, Rodrigues da Costa, Correia Neves, Barbosa e Lopes. Na companhia de parentes, agregados e trabalhadores escravizados, estabeleceram-se a
três léguas de Sant’Anna Paranaíba, próximo do ribeirão Ariranha, com objetivo de
desenvolver plantagem, engenho e, sobretudo, cultura pastoril. Genros e filhos de
Januário Garcia Leal Sobrinho permaneceram por muito tempo nesse lugar antes de
partirem para a região que deu origem a cidade de Três Lagoas. Luís Correa Neves
fincou raízes ao sul da vila de Sant’Anna, em águas do rio Quitéria.
Indispensável nessa verdadeira rede de dominação era a montagem da
estrutura administrativa, como igreja, para estabelecimento da autoridade
eclesiástica, e repartições capazes de abrigar tabelionatos, os ofícios de notas, registros públicos, escrituras e outros documentos. Em 1836, foi erigida a paróquia
Sant´Ana do Paranaíba, pela junção de esforços da família Garcia e do padre
Francisco Sales de Souza Fleury, já referidos. Dois anos depois foi instalado o
distrito administrativo subordinado à comarca de Mato Grosso, sediado em Cuiabá.
Antonio Gonçalves Barbosa, por sua vez, saiu de Sant’Anna de Paranaíba e
penetrou no espaço sulino mato-grossense, atraído pelas narrativas sobre a
preciosidade dos Campos de Vacaria, os quais se constituíam de terrenos planos e
úberes, águas excelentes e muito gado alçado. Defendido por nativos, e cobiçado por
colonizadores castelhanos e luso-brasileiros, esse espaço caracteriza-se por dispor
65 CAMPESTRINI, Hildebrando. Os escravos no sul de Mato Grosso. Instituto Histórico e Geográfico de
Mato Grosso do Sul. Disponível no site http://www.ihgms.com.br , desde 19/ 12/2007. 66 Livro de nota 03, documento n. 2, p. 119-120. Cartório do 1º. Ofício de Sant’Anna de Paranaíba, 1865.
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dominantemente da vegetação do cerrado, o segundo maior bioma brasileiro, ainda
hoje muito utilizado para a criação do gado.
Nos relatos monçoeiros, reunidos na obra História das bandeiras paulistas
(1951) de Afonso d’ Escragnolle Taunay, constam a presença de gado selvagem,
constituído em manadas deixadas pelos jesuítas das missões. 67 Segundo o itinerário
traçado pelo sertanista Joaquim Francisco Lopes, os Barbozas teriam capturado
cerca duzentas cabeças de gado vacum bravio para começarem o criatório68. Essa família geralista de Minas chegou à região trazendo algumas cabeças para mesclar
com o gado selvático da região, conforme também mencionamos. 69 Convencidos de
que o sul de Mato Grosso dispunha de bons pastos e de que era um lugar promissor,
os Barbosa rumaram para o interior da região levando cativos e provisões
necessárias. Dos latifúndios formados as famílias pioneiras lograram prestígio,
riqueza e poder. Instalaram fazendas, estenderam mais e mais suas posses,
alcançando novas terras, transpondo rios. E toda a parte sul do antigo Mato Grosso
foi sendo ocupada por colonizadores interessados na aquisição de terras e no
potencial bovino. O Itinerário das viagens de Lopez publicada na Revista do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro em 1848 acompanhava Antonio Gonçalves Barbosa seu
genro Gabriel Francisco Lopes que, em 1839, se fixou num local a que denominou
de Fazenda Boa Vista, entre os rios Vacaria e Brilhante, sendo um dos primeiros
ocupantes, depois da retirada das missões castelhanas, em 164870.
Logo chegaram ao sertão dos Lopes, grande leva de sul-rio-grandense, com
suas famílias, e dispondo de seus pequenos rebanhos de bovinos, eqüinos e ovinos,
vieram também se instalar na região. Os descendentes dos Lopes buscaram as
margens dos rios Brilhante, Vacaria e Dourados71. Mas ainda havia muita terra devoluta para atender a avidez dos especuladores.
Legitimando o latifúndio.
Um exemplo de procedimentos ilícitos de usurpação de terras, refere-se a
João da Silva Machado, barão de Antonina, vulto proeminente da região do Paraná,
que na segunda metade do século 19 procurou garantir a posse do território que
abrangia a região de Sant’Ana de Paranaíba, Rio Brilhante, Miranda, Nioaque,
Aquidauana, Ponta Porã, Porto Murtinho e Bela Vista. Somadas a essas terras, o
barão buscou a legitimação de extensas áreas do norte do Paraná. Em 1848, João da Silva Machado já era dono de vasto patrimônio fundiário, propriedades em São
Paulo e estados circunvizinhos. Às vésperas da promulgação da Lei de 1850, o barão
imediatamente procurou apropriar-se de forma privada do amplo território que hoje
se constituem em eminentes municípios de Mato Grosso do Sul.
67TAUNAY, Afonso d’ Escragnolle. História das bandeiras paulistas. São Paulo: Melhoramentos/INL/MEC, 1975. T. III, p. 139. (Relatos Monçoeiros). 68
Itinerário das viagens exploradoras empreendidas pelo Sr. Barão de Antonina para descobrir uma via de
comunicação entre o porto da vila de Antonina e o baixo Paraguai na Província de Mato Grosso; feitas
nos anos de 1844 e 187 pelo sertanista Joaquim Francisco Lopes, e descritas pelo Mapista inglês João
Henrique Elliot.. O Documento foi doado ao IHGB pelo Barão de Antonina e em seguida foi feita a
transcrição do manuscrito inédito para efeito de publicação. Cf. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 1848, vol. 10, p. 153-262. 69 GOULART, Alípio. Op. Cit., p. 61. 70 Itinerário das viagens exploradoras empreendidas pelo Sr. Barão....Op. cit, p. 260. 71 Ibidem.
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Hildebrando Campestrini e Acyr Vaz Guimarães lembram: “Sabia o barão de
Antonina que seria promulgada uma lei [Lei de terras de 1850] facultando a todos os
posseiros o direito de requerer, como propriedade, a terra de domínio público, sob
ocupação, qualquer que fosse sua extensão; ambicionando terras do sul de Mato
Grosso, contratou os serviços do sertanista Joaquim Francisco Lopes, que além de
conhecedor da região, tinha nelas os irmãos Gabriel e José Francisco, de quem
saberia, naturalmente, tudo o que viesse a servir aos interesses do barão.” 72 (Figura 1).
Foi assim que o Barão de Antonina contratou os serviços do Joaquim
Francisco Lopes, experiente conhecedor daquelas paragens, e do mapista inglês João
Henrique Elliot. Além disso, o referido sertanista encarregado contava também com
a ajuda de seus irmãos Gabriel e José Francisco Lopes, alguns dos primeiros
ocupantes do vale dos rios Vacaria e Brilhante. A intenção do barão era, com verbas
públicas, abrir uma via de comunicação fluvial do Paraná até o baixo Paraguai,
beneficiando as terras que pretendia legitimar como patrimônio privado. Consta,
segundo a crônica de Hildebrando Campestrini que, “em 1847 Lopes e comitiva entraram pelo rio Ivinhema e chegaram a Albuquerque, anotando o percurso, com
detalhes riquíssimos, principalmente os referentes aos primeiros povoadores e aos
índios”73.
Cabe lembrar que a Lei de 1850 propunha, entre outras medidas, que o
Estado passasse a exercer rigoroso controle sobre o espaço agrário. Impunha
também as condições para converter sesmarias em documento negociável, na forma
de propriedade privada, quanto à recognição e à titulação efetiva das posses, obtidas
anteriores à promulgação da referida Lei. Mas, conforme observou o cientista social
Luiz A.C Norder, o tênue limite entre o público e o privado, entre a legislação e os jogos políticos, permitiu a continuidade e a ampliação do processo de concentração
fundiária. 74 Emergia, nesse contexto, o grileiro, figura indispensável no processo de
expansão da ocupação de terras. Graças à habilidade em legalizar terras junto ao
poder estatal, o grileiro dispunha de dois dispositivos essenciais: a falsificação de
títulos de sesmarias ou a montagem dos processos de regularização de posses
supostamente anteriores a 1850. 75
O processo dos Embargos de Mato Grosso, publicado em 1924 pelo
advogado Astolpho Rezende, na obra O Estado de Mato Grosso e a supostas terras
do Barão de Antonina, comprova a falsificação de posse do barão e acusa seu agente Joaquim Francisco Lopes de “arranjar algumas escrituras de terras em Mato Grosso,
para fim de converter-se em grande proprietário de latifúndios naquela província [...]
de posse dessas escrituras que eram na sua quase totalidade escritura de mão, o
72 CAMPESTRINI, Hildebrando e GUIMARÃES, Acyr Vaz. História de Mato Grosso do Sul. Campo Grande: Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, 1991, p.41. 73 CAMPESTRINI, Hildebrando . As derrotas do Sertanejo. Instituto Histórico e Geográfico de Mato
Grosso do Sul. Disponível no site http://www.ihgms.com.br , desde 19/ 12/2007. 74 NORDER, Luiz A.C., Políticas de Assentamento e Localidade: os desafios da reconstituição do
trabalho rural no Brasil. Tese de Doutorado. Departamento de Sociologia Rural: Universidade de
Wageningen, 2004, p.6; Sobre as raízes do sistema público nacional arraigado no patriarcalismo e nas
relações indistintas entre o público e o privado consultar FRANCO. Mª Silvia de Carvalho. Homens
Livres na Ordem Escravocrata. São Paulo: Ática, 1974. 75 NORDER, Luiz A.C., Políticas de Assentamento...Op. cit., p.6.
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referido barão fez delas um simulacro de registro, perante o vigário da freguesia de
Miranda”. 76
Fatores como imprecisão referente ao tamanho das propriedades, carência de
demarcação e suspeitas quanto à fiscalização determinaram demandas judiciais que
se prolongaram por longos anos, algumas alcançando as primeiras décadas do século
2077.
Na porção sul de Mato Grosso, a apropriação territorial, na forma de propriedade privada, realizada pelo barão de Antonina foi judicialmente contestada
pelo Estado, considerando sua notável dimensão, cuja extensão alcançava milhares
de hectares contíguos. Entretanto inúmeros latifundiários lograram alcançar a
regulamentação das sesmarias doadas, sobretudo durante o Império e mesmo terras
obtidas por meios fraudulentos foram legitimadas e convertidas em títulos de
propriedade privada. 78
A formação das classes dominantes locais e regionais foi marcada pela
instauração de eficazes procedimentos de apropriação privada da terra no Brasil e
fez ampliar a exclusão social79. As reações das forças sociais submetidas ao poder latifundiário-escravista ensejaram a montagem de um aparato político repressivo e
autoritário como fatores inerentes aos diferentes momentos da história brasileira,
justificando análises mais detidas sobre o tema na região80.
76 REZENDE, Astolpho. O Estado de Mato Grosso e as supostas terras do Barão de Antonina. Rio de
Janeiro: Papelaria Sta Helena – S. Monteiro & Cia Ltda, 1924, p. 35. Sobre Política de terras e de mão de
obra ver: BRAZIL, Maria do Carmo e SABOYA, Vilma Eliza T. de. Política de terras e a política de
mão-de-obra no Brasil e seus reflexos na Província de Mato Grosso. Campo Grande: PROPP/UFMS, 1994. (Pesquisa financiada pela UFMS). Ver também SABOYA, Vilma. A Lei de Terras (1850) e a
política Imperial – seus reflexos na Província de Mato Grosso. Revista Brasileira de História. São Paulo,
1995, v.15, n.30, p. 130-132. (Dossiê Historiografia – Propostas e Práticas). 77 Cf. PORTO. José da Costa. O Sistema Sesmarial no Brasil. 2 ed. Brasilia. Ed. da UnB, 1979. 78 NORDER, Luiz A.C., Políticas de Assentamento...Op. cit., p. 7. 79
Ibidem.
80 Ibidem.