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FUNDAO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAO DE
HISTRIA CONTEMPORNEA DO BRASIL - CPDOC PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA, POLTICA E BENS
CULTURAIS DOUTORADO EM HISTRIA, POLTICA E BENS CULTURAIS
O BRASIL, O IMPRIO OTOMANO E A SOCIEDADE INTERNACIONAL: CONTRASTES E CONEXES (1850-1919)
APRESENTADA POR MONIQUE SOCHACZEWSKI GOLDFELD
Rio de Janeiro, Agosto de 2012
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FUNDAO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAO DE
HISTRIA CONTEMPORNEA DO BRASIL - CPDOC PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA, POLTICA E BENS
CULTURAIS DOUTORADO EM HISTRIA, POLTICA E BENS CULTURAIS
PROFESSOR ORIENTADOR ACADMICO MATIAS SPEKTOR
MONIQUE SOCHACZEWSKI GOLDFELD
O BRASIL, O IMPRIO OTOMANO E A SOCIEDADE INTERNACIONAL:
CONTRASTES E CONEXES (1850-1919)
Tese de Doutorado apresentada ao Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil CPDOC como requisito parcial para a obteno do grau de
Doutor em Histria, Poltica e Bens Culturais
Rio de Janeiro, Agosto de 2012
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Para Leo, Dani e Rafa.
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AGRADECIMENTOS
Meus agradecimentos iniciais vo para Matias Spektor e Celso Castro que, desde
o comeo, apoiaram de todas as formas, o projeto que me trouxe redao desta tese.
Apoio na forma da troca de ideias, questes existenciais, indicao de bibliografia, cartas
de recomendao, obteno de concesso de financiamentos e tambm para viabilizar as
inmeras viagens relacionadas a ela. Agradeo em especial ao Celso por ter me
apresentado professora Aylin Gney, ento pertencente aos quadros da Bilkent
University, em Ancara, Turquia. Com a inestimvel ajuda de Aylin, e tambm do
professor Paul Latimer, fui aceita como aluna especial do Departamento de Histria
daquela prestigiosa universidade turca, onde passei o primeiro semestre de 2010
estudando e pesquisando.
Na Turquia, Aylin continuou sendo incrvel, seja me ajudando na parte
burocrtica e prtica da instalao na universidade, como introduzindo e discutindo
pacientemente questes relacionadas pesquisa e tese em si, como sobre as questes
correntes da Turquia Contempornea. Em Bilkent ainda tive a oportunidade de cursar a
instigante disciplina de Histria Otomana ministrada pelo professor Oktay zel, bem
como estabelecer amizade com os professores Helen Shwartz, David Barchard e Semih
Tezcan. Compartilhei com Helen uma das celebraes de Pessach mais emocionantes da
minha vida e contei com a inestimvel rede de relaes dos professores Barchard e
Tezcan em busca de fontes e interlocutores. Entre os alunos do Departamento de Histria,
Grer Karagedikli, Grigor Boykov e Maryia Kripovska foram introdutores dos meandros
da pesquisa em arquivos turcos, alm de amigos queridos. Gl Ycel e Duygu
Akdeveliolu foram as melhores colegas de quarto que eu poderia imaginar,
compartilhando suas vises e apreenses sobre as questes polticas atuais da Turquia e
do mundo, bem como me introduzindo s atividades extra-classe da universidade.
Encontrei na embaixada brasileira em Ancara, nas figuras do embaixador Marcelo
Jardim, do conselheiro Antonio Carlos Antunes Santos e de sua esposa Caroline
Cavalcanti, amigos queridos. Paulino Toledo, adido cultural da embaixada chilena na
mesma cidade, foi tambm de imensa ateno, compartilhando suas pesquisas sobre a
estada de Francisco de Miranda em terras otomanas. Mehmet Necati Kutlu, diretor do
Centro de Estudos Latino-Americanos da Ankara University e tambm talentoso
otomanista, foi muito generoso recebendo-me e propondo uma publicao conjunta sobre
o cnsul Antnio Machado. Em Istambul, Sinan Kuneralp, Kazim Baycar, Ersin
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Adigzel e a equipe do American Research Institute in Turkey (ARIT) merecem o meu
mais profundo obrigado.
Beril Eraydin foi minha professora de turco ao longo de 2009 e acabou se
tornando amiga queridssima. Ktia Mindlin Leite Barbosa, com quem compartilho a
paixo por Istambul, foi generosa em comentrios e no fornecimento de fontes para esse
trabalho. Ainda tive a honra de auxili-la em seu incrvel guia de viagens para Istambul,
escrito em conjunto com Dalal Achcar. Teresa Cribelli e Sabrina Gledhill, amigas e
interlocutoras de sempre, foram de imensa ajuda na verso de vrios textos para o ingls,
quando da apresentao em conferncias e afins. Teresa fez ainda inmeros comentrios
sobre o texto final. J Marco de Pinto, Mustaf Gktepe e H. Bayram Ozturk foram de
uma generosidade mpar, o primeiro ajudando a elaborar a nota sobre os termos em turco
neste trabalho e revisando o trabalho como um todo e os dois ltimos vertendo vrios
documentos do turco-otomano para o portugus.
Quando em Istambul, tive o prazer de explorar a cidade com amigos brasileiros
prximos como Liora Kitai, Luis Cohen e Marta Lucconi. Agradeo em especial aos dois
ltimos pela imensa gentileza de trazer junto sua bagagem de volta para o Brasil, muitas
dezenas de quilos de livros e cpias essenciais para a redao desta tese.
Ao longo do doutorado lecionei seis cursos para alunos de graduao da FGV e
algumas aulas avulsas na ps-graduao e, alm de ter descoberto uma verdadeira paixo
pela docncia, passei a contar com valiosas amizades entre alunos e ex-alunos. Agradeo
em especial a Rafael Aleixo, Julia Albrecht e Natlia Leal pela ajuda com a pesquisa
documental em instituies cariocas e petropolitanas. Natlia, em especial, passou boa
parte de 2011, levantando fontes, fichando livros, enfim, me ajudando em um verdadeiro
trabalho de estiva.
Nos arquivos, bibliotecas e casas de memria do Brasil e do exterior, contei com
extrema boa vontade e simpatia por parte dos funcionrios, com destaque para Neibe
Machado e Thais Martins, do Arquivo Histrico do Museu Imperial de Petrpolis, por
sua eficincia mpar e enorme simpatia. O embaixador Gelson Fonseca Jnior, do
Itamaraty, foi tambm de gentileza imensa, chegando a ler e comentar parte da tese.
Quando da participao na Harvard Annual Graduate Student Conference on
International History em 2010, tive a honra de contar com os comentrios do professor
John Womack e com importantes questes levantadas pelo professor David Armitage. Fiz
um grande esforo para responder a algumas das questes por eles levantadas no texto a
seguir. J em 2011, tive a oportunidade de ser uma das participantes da The Rothschild
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Archive Summer School, realizada no Kings College, em Londres. Agradeo
imensamente a Melanie Aspey e Katheryn Broody pela chance de participar do evento
em si, travando contato com uma verdadeira mina de ouro quase que literalmente - de
fontes de pesquisa para brasileiros, bem como pelos comentrios a respeito do projeto da
tese. Por conta desta documentao, aproximei-me de Caroline Shaw, ex-arquivista do
The Rothschild Archive, e de Carlos Gabriel Guimares, do Departamento de Histria da
UFF, de quem recebi muitas indicaes valiosssimas de fontes. John Vignoles foi
tambm dos mais gentis e simpticos ao compartilhar comigo suas inmeras pesquisas
sobre o Brasil no Instituto dos Engenheiros Civis, em Londres. Aguardo ansiosamente
seu livro, e de Sabrina Gledhill, sobre o fotgrafo Benjamin Mulock.
E em abril ltimo, tive ainda a honra de estar entre os apresentadores de trabalhos
na conferncia inaugural do Middle East History Group, da University of Cambridge,
ocasio em que apresentei o peculiar orientalismo de D. Pedro II e travei contato com
pesquisas instigantes sobre o Oriente Mdio. Agradeo em especial a David Motadel,
John Slight e Jacob Norris pela oportunidade, gentileza no contato e incentivo minha
pesquisa. Sa do evento convencida da necessidade de traduzir os dirios do imperador
para o ingls por ser fonte vlida para as mais variadas pesquisas, e pretendo me dedicar
a isso assim que possvel.
Vicente Saul Moreira dos Santos, Carmen Lcia Palazzo, Heitor Loureiro, George
Ermakoff, e, sobretudo, Maurcio Santoro foram de enorme pacincia e generosidade, me
ajudando a dar forma ao texto final. Alexandre Ribenboim e Lorenzo Ridolfi foram super
solcitos com meus inmeros pedidos de ajuda em relao questes tecnolgicas.. Ana
Ceclia Impelizzieri Martins, Flvia Maria de Carvalho, Ilana Goldsmid, Silvana Jeha e
Flvia Galvo, amigas das mais chegadas, tambm merecem meu agradecimento pela
troca intelectual e pelo carinho de sempre. Fabiana Marafiotti e Marcio Alonso foram de
imensa gentileza ajudando-me em Braslia com as burocracias para ober o visto de
estudante turco.
No CPDOC, seu Centro de Relaes Internacionais foi meu porto seguro durante
boa parte da tese, l contando com o apoio e trocando muitas ideias com Leslie Bethell,
Elena Lazarou, Oliver Stuenkel, Carlo Patti, Dani Nedal e, sobretudo, Juliana Marques, e
Eduardo Achilles. O professor Andrew Hurrel, quando de suas estadas no Centro de RI,
tambm indicou valiosa bibliografia. Tive a sorte ainda de contar com queridos colegas
no doutorado, em especial Luciana Pessanha Fagundes, Wolney Malafaia e Silvana
Andrade.
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Murilo Sebe Bon Meihy e Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto foram companhia
constante em aulas, mesas-redondas e programas de rdio e TV em especial por conta das
discusses a respeito da chamada Primavera rabe. Foram tambm interlocutores
prximos sobre questes que me inquietavam sobre a histria e atualidade do Oriente
Mdio. Como me escreveu Paulo Pinto em uma dedicatria de seus livros concordando
ou discordando, dialogamos sempre, e isso de fato muito rico.
Minha irm, Janine Sochaczewski Anbinder, alm de simplesmente por sua
ensolarada existncia - sendo uma cidad exemplar dessa sociedade internacional global
dos dias de hoje -, merece um acalorado obrigado pela ajuda eventual de pesquisa lateral
no arquivo nacional israelense, em Jerusalm.
Por fim, meu agradecimento famlia Keinan pelo carinho (sobretudo Jack,
pelas leituras, correes de traduo e incentivo em geral) e famlia Goldfeld pelo
apoio, estmulo e auxlio de sempre, em especial no semestre que passei na Turquia.
Hebe, Felix e Luciano foram simplesmente maravilhosos do comeo ao fim desse
trabalho. O mais profundo, verdadeiro e apaixonado obrigado, porm, vai para Leonardo
Goldfeld. maravilhoso ter um marido que acredita nos seus sonhos e ajuda de toda
forma a viabiliz-los. E para nossos filhos, Daniel e Rafael, todo amor do mundo.
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ABREVIATURAS
AHI: Arquivo Histrico do Palcio do Itamaraty. (Rio de Janeiro)
AIHGB: Arquivo do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. (Rio de Janeiro)
AN: Arquivo Nacional (Rio de Janeiro)
FBN: Fundao Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro)
BOA: Babakanlk Osmanl Arivi (Arquivo Otomano do Primeiro Ministro). (Istambul,
Turquia).
HIC-BU: Halil Inalck Collection Bilkent University. (Ancara, Turquia).
FO: Foreign Office Archives in the Public Record Offices. (Kew, Reino Unido).
MIP: Museu Imperial de Petrpolis. (Rio de Janeiro)
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SUMRIO
INTRODUO..............................................................................................................20
PARTE I Da Sociedade Internacional
CAPTULO I A sociedade internacional e os imprios perifricos.............................33
1.1. Sociedade internacional: evoluo, expanso e/ou estratificao.............................33
1.2. Membership, legitimidade, reconhecimento e soberania...........................................39
1.3. Os imprios perifricos.............................................................................................41
1.4. O Brasil e o Imprio Otomano..................................................................................46
1.5. Observaes finais.....................................................................................................50
PARTE II Contrastes
CAPTULO II O Brasil, o Imprio Otomano, os tratados e a diplomacia..................52
2.1. Sobre diplomacia formal e multilateralismo.............................................................52
2.2.Negociando a adeso..................................................................................................54
2.2.1. O estabelecimento do aparato diplomtico.................................................55
2.2.2. Os efeitos dos tratados com a Gr-Bretanha...............................................64
2.2.3. A busca por alternativas..............................................................................69
2.2.4. A diplomacia multilateral...........................................................................74
2.3.A diplomacia no-verbal............................................................................................77
2.4.O Brasil, o Imprio Otomano e a diplomacia no-verbal...........................................78
2.5. Observaes finais.....................................................................................................89
CAPTULO III Constantinopla, Rio de Janeiro e os olhos estrangeiros.................91
3.1. Sobre capitais, centralizao do poder e diplomacia.................................................92
3.2. Constantinopla e Rio de Janeiro................................................................................97
3.3. Melling e Debret......................................................................................................107
3.4. Fotografia e periferia............................................................................................113
3.5 Observaes Finais................................................................................................121
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PARTE III Conexes
CAPTULO IV Relaes incgnitas: o Imprio Otomano, as Amricas e o Brasil
(1513-1876)....................................................................................................................124
4.1 O Imprio Otomano, as Amricas e vice-versa.....................................................124
4.2 Os interesses mtuos, o tratado de 1858 e o consulado incgnito.....................131
4.3 Os novos sditos do califa no Brasil.....................................................................143
4.4 O imperador tropical orientalista...........................................................................147
4.5 Observaes Finais................................................................................................155
CAPTULO V O Imprio Otomano, o Brasil e a imigrao......................................157
5.1 O Imprio Otomano e as migraes......................................................................158
5.2 O Brasil e a imigrao extica...........................................................................162
5.3 Os gregos..............................................................................................................165
5.4 Os srios.............................................................................................................166
5.5 Os armnios...........................................................................................................170
5.6 Os judeus...............................................................................................................174
5.7 As relaes Brasil e Imprio Otomano no contexto das levas imigratrias..........177
5.8 Observaes Finais................................................................................................189
CONCLUSO...............................................................................................................191
ANEXO DE IMAGENS...............................................................................................196
BIBLIOGRAFIA..........................................................................................................213
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RESUMO
Este estudo tem como objetivo analisar a forma como o Brasil e o Imprio Otomano
buscaram se inserir na sociedade internacional europeia nos moldes como a Escola
Inglesa de Relaes Internacionais a define - no perodo que vai da dcada de 1850, com
a assinatura da Lei Eusbio de Queiroz do lado brasileiro e do tratado de Paris pelo
Imprio Otomano, at a criao da Liga das Naes, em 1919. Estes so entendidos
como imprios perifricos ao centro europeu, integrando o grupo peculiar de entidades
que no eram nem colnias, nem potncias no perodo em tela. Assim, tencionamos
contrastar os esforos feitos por Brasil e Imprio Otomano em utilizar o direito
internacional e a diplomacia formal e no-formal , e as formas de divulgao das
transformaes que empreenderam em suas capitais visando serem reconhecidos como
civilizados. Por outro lado, chama-se ateno para as conexes que se estabeleceram
entre Brasil e Imprio Otomano justamente em funo dessa maior aproximao com a
Europa. Estas conexes so analisadas ento em duas fases. Uma primeira trata das
tentativas formais de relaes diplomticas, chamada de relaes incgnitas, que
envolveu inclusive viagens de D. Pedro II a domnios otomanos. A segunda trata da
vinda de sditos otomanos gregos, armnios, judeus e rabes para o Brasil e de novas
relaes diplomticas travadas.
Palavras-chave: Brasil Imprio Otomano sociedade internacional Relaes
Internacionais imigrao.
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ABSTRACT
This study aims to analyze how Brazil and the Ottoman Empire sought to insert
themselves into the European international society along the lines as the English
School of International Relations defines so in the period of the 1850s, with the
signing of Eusbio de Queiroz Law on the Brazilian side, and the Treaty of Paris by the
Ottoman Empire, until the establishment of the League of Nations, in 1919. Those are
seen as peripheral empires to the European center, integrating the unique group of
entities that were neither colonies nor power in the suggested period. Thus, we intend to
contrast the efforts made by Brazil and the Ottoman Empire in using international law
and diplomacy formal and non-formal and forms of advertising of the
transformations that have undertaken in their capitals in order to be recognized as
civilized. On the other hand, it calls attention to the conections that were established
between Brazil and the Ottoman Empire precisely because of this closer relashionship
with Europe. These connections are then analyzed in two stages. The first one deals with
the attempts of formal diplomatic relations, called incognito relations, which involved
including trips by D. Pedro II to Ottoman domains. The second one deals with the
coming of Ottoman subjects Greeks, Armenians, Jews and Arabs to Brazil and the
new diplomatic relations established.
Keywords: Brazil Ottoman Empire International Society International Relations
immigration.
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NOTA
O texto a seguir lida com diversos termos e nomes prprios em turco otomano
(osmanlca) e turco moderno. A fim de facilitar a leitura, seguem algumas indicaes:
c pronunciado como dj de Djanira
como ch em Repblica Tcheca
mudo, mas prolonga a vogal precedente
pronunciado como sh em shopping
h e y so pronunciados como consoantes, como hit e yellow em ingls
J as vogais tm os seguintes sons:
a como em pai
e como em quer
i como em rio (a letra maiscula tambm leva ponto, )
seria uma vogal com som como o primeiro a de cama, em portugus
o como fome
como no alemo, ou o francs eu
u como em rum
como no alemo, ou o francs u (em une)
O sinal circunflexo (^) por vezes usado para indicar uma vogal longa, como em
siyas (si-ya-sii, que significa poltico). Usado depois de consoantes como k e l, indica
que a consoante macia, por exemplo kr (ki-a-r, que significa lucro), para distinguir
de kar (k-a-r, que significa neve).
At o incio da Repblica Turca, instituda em 1923, no era costume o uso de
sobrenome por parte dos sditos otomanos. Isso s veio a ocorrer oficialmente com a
chamada Lei dos Sobrenomes (Soyad Kanunu) de 1934 sancionada por Atatrk. Por
vezes as pessoas eram identificadas pela profisso, como Reis no caso de almirantes, ou
por formas de tratamento como Bey, Efendi, elebi ou Pax (Paa, em turco), sempre
aps o nome prprio. A forma respeitosa de tratamento para mulheres, tambm seguidas
ao nome, de Hanm. J as esposas e mes de sultes recebiam o titulo de Sultan aps o
nome prprio.
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Com a instaurao da Repblica Turca, muitas cidades tiveram seus nomes
trocados, turquificando-os. Constantinopla passou a ser oficialmente chamada de
stanbul (Istambul, em portugus), Esmirna de zmir, Edirna ou Andrianopla de Edirne e
Brousse de Bursa. Como neste trabalho se trata da capital otomana no contexto do
Imprio Otomano, ela em geral ser referida como Constantinopla. As demais cidades,
quando citadas, tambm seguem suas denominaes quando do perodo otomano.
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GLOSSRIO
Ashkenazitas Judeus oriundos da Alemanha e Europa Central.
Ayans notveis.
Bailo representante veneziano em Constantinopla.
Bizncio civilizao considerada por aqueles sua volta como herdeira das glrias de
Roma. Seu carter foi definido pela sntese cultural das tradies da Grcia, de Roma e
do Cristianismo. Forma como por vezes tratam Constantinopla.
Califa lder espiritual e chefe temporal do estado islmico.
Capitulaes (ahdname) Privilgios estendidos pelo sulto do Imprio Otomano aos
Estados estrangeiros para o benefcio de seus sditos ali residentes. Garantiam direito de
viajar e negociar livremente, pagar baixas tarifas, no pagar impostos internos e julgar
em corte consular prpria casos civis e criminais ocorridos entre seus sditos.
Cizye (ou Jizya) imposto pago por no-muulmanos em estados muulmanos como o
Imprio Otomano.
Dar-al-Islam literalmente casa do Isl. Territrio onde vivem muulmanos.
Dar-al-harb literalmente casa da guerra. Territrio onde vivem no-muulmanos.
Dervixe membro de ordem Sufi, dedicado a alcanar um plano espiritual elevado.
Dnme convertido ou vira-casacas termo especialmente usado para judeus que se
converteram ao Isl emulando Shabbetai Tzvi no final do sculo XVII.
Dragomano Derivado do rabe turjuman, que significa tradutor ou intrprete. Trata-se
de sdito do sulto empregado por misses diplomticas e consulares como intrprete e
intermedirio.
Fatih conquistador. Diz respeito ao sulto Mehmed II (r. 1451-1481), conquistador
de Constantinopla em 1453.
Fatwa parecer religioso formal islmico.
Fez chapu tpico otomano usado no sculo XIX.
Firman decreto do sulto, geralmente contando com sua tura.
Gazi general muulmano vitorioso.
Harem - parte da residncia restrita s mulheres; No caso do harem do sulto, este
funcionava como uma instituio dentro do palcio.
Hajj peregrinao s duas cidades sagradas de Meca e Medina, incumbida a cada
muulmano ao menos uma vez na vida. Quem a cumpre chamado de Hajji.
Hamam casa de banho.
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Imam (im) lder religioso islmico.
Janzaro do turco Yeni eri (novo soldado). Membro de elite militar otomana existente
entre o sculo XIV e 1826. Originalmente crianas crists dos Blcs convertidas ao Isl
e treinadas para o servio do Imprio Otomano. Muitos janzaros chegaram a altos
postos da hierarquia otomana, como gro-vizires.
Jihad guerra por expanso ou defesa do Isl. Teoricamente a nica forma de guerra
permitida a muulmanos.
Karatas judeus que j viviam no Imprio Otomano antes da chegada dos sefaraditas.
No seguiam o Talmud.
Ladino dialeto falado pelos judeus sefaraditas.
Madrassa escolas na cidade que enfatizam o estudo do Coro, do hadith e da lei
islmica.
Millet comunidade cuja organizao autnoma era reconhecida pelo governo otomano.
Osmanlca idioma turco-otomano.
Reis l-Kttab / Reis Efendi Originalmente chefe da chancelaria do conselho do sulto,
passou a atuar como ministro das relaes exteriores.
Romaniot judeus que j viviam no Imprio Otomano antes da chegada dos sefaraditas
no sculo XV. Falavam grego.
Sefaraditas judeus oriundos da Espanha (Sefarad) e de Portugal.
Selamlk literalmente parte da residncia restrita aos homens; tambm usado para
cerimnia da orao pblica dos sultes s sextas-feiras.
Sefaretname relatrio geral submetido ao sulto por um enviado otomano em misso
ao estrangeiro.
Serasker comandante em chefe do exrcito otomano durante uma campanha;
posteriormente, ministro da guerra.
Sufi adepto do sufismo.
Sufismo - corrente mstica do Isl que desde o sculo XII organizada em tradies
doutrinais e rituais ligados a um santo fundador, as tradies ou caminhos msticos so
denominados em rabe como tariqa, pl. turuq, termo que costuma ser traduzido em
portugus como ordem sufi.
Srgn deportao ou assentamento forado de populaes segundo os interesses da
poltica imperial otomana.
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Tanzimat Reorganizaes. poca de amplas reformas modernizadoras no Imprio
Otomano. Diz respeito ao perodo que vai de 1839 a 1876, com alguns historiadores
incluindo ainda o sultanato de Abdul Hamid II (1876-1909).
Tura monograma do sulto.
Ulem graduados das madrassas que se tornavam professores, palestrantes, telogos e
advogados.
Umma comunidade de fiis muulmanos.
Vilayet provncia otomana.
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INTRODUO
(...) nossas civilizaes so, desde sempre, amalgamadas, moventes, permeveis. E, por me espantar que hoje,
estando elas mais do que nunca entrelaadas, venham nos dizer que so irredutveis umas s outras e destinadas a assim permanecer.
Amin Maalouf. O mundo em desajuste, p. 265.
Discute-se amplamente, nos dias de hoje, o relativo declnio da Europa e a
ascenso de pases emergentes tais como Brasil e Turquia. No caso da ltima, seu recente
ativismo diplomtico recebeu o uso do adjetivo neo-otomanista. Como j dito por
Benedetto Croce, toda histria contempornea. Olhamos para o passado a fim de
responder a importantes questes do presente. Esta tese volta ao sculo XIX para
evidenciar o modo em que o Brasil e o Imprio Otomano negociaram acesso e
reconhecimento de uma sociedade internacional de cunho europeu e em vias de expanso
global. Ambas eram entidades que buscavam se estabelecer como independentes em um
sistema profundamente marcado pela assimetria de poder, status e ranking. No processo,
desenvolveram instrumentos para aceder ao mundo da diplomacia e conectaram-se por
fora de vetores materiais como comrcio e migraes, mas tambm imagens e o perfil
de suas representaes diplomticas.
As perguntas de pesquisa propostas so: como o Brasil e o Imprio Otomano
negociaram acesso sociedade internacional dos Estados soberanos centrada na Europa?
Quais resultados esperados e inesperados surgiram desse processo? Como e por que esse
perodo coincidiu com o aparecimento das primeiras conexes entre essas entidades
perifricas?
Meu objetivo avaliar as relaes do Brasil e do Imprio Otomano com a
sociedade internacional no perodo que vai de 1850 a 1919, e estudar o incio do contato
entre ambos. Por um lado, mostro que o exerccio de busca por adeso aos rituais,
prticas e smbolos diplomticos europeus criou relaes assimtricas com o centro da
sociedade internacional europeia. Por outro, revelo como esse processo deu origem a
contatos diplomticos entre as duas entidades, que rapidamente seriam assoberbadas por
levas imigratrias. Ao faz-lo, sugiro que o processo de transformao da sociedade
internacional europeia em sociedade internacional global deve ser compreendido, em boa
medida, como uma dinmica que gerou fluxos entre pases do hoje chamado Sul global,
um aspecto do processo de globalizao da sociedade internacional que a literatura
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especializada tende a ignorar devido nfase quase exclusiva no alargamento do escopo
imperial do centro europeu do sistema internacional da poca.
Esta tese est dividida em trs partes. A primeira aborda temas conceituais a
respeito do processo de expanso da sociedade internacional de cunho europeu durante o
sculo XIX, focando especialmente aquilo que optei chamar por imprios perifricos.
No caso deste trabalho, essas entidades so o Brasil e o Imprio Otomano. Entretanto,
abordagem similar poderia ter sido utilizada para lidar com outras formaes imperiais do
que, poca, eram as bordas do mundo ocidental e civilizado os Estados Unidos da
Amrica em vias de expanso continental para o Pacfico, e o incipiente imprio asitico
do Japo. A segunda parte oferece uma perspectiva contrastada sobre as maneiras pelas
quais Brasil e Imprio Otomano buscaram se inserir na sociedade internacional europeia.
Lido especificamente com o uso da diplomacia e dos tratados internacionais, por um
lado, e com o uso estratgico das reformas urbanas, por outro. A parte final explora as
conexes entre Brasil e Imprio Otomano por meio de canais diplomticos formais e pela
fora no-controlada, nem bem-vinda por ambos os governos de uma verdadeira
enxurrada migratria.
O trabalho no tem a pretenso de ser um estudo comparado entre Brasil e
Imprio Otomano durante o sculo XIX. Em que valha tal escolha metodolgica, prefiro
aqui referir-me ideia de contrastes. A escolha deve-se riqueza de fontes primrias
que pude acessar para este trabalho: na dvida entre explorar a complexidade das mesmas
ou seguir o fio condutor de uma comparao sistemtica, escolhi sempre a primeira.
A periodizao deste estudo leva em conta um olhar mais global que local. Na
dcada de 1850, ocorreram eventos-chave em ambas as entidades na busca por
membership na sociedade internacional: a assinatura da Lei Eusbio de Queiroz no caso
brasileiro, em 1850, e a participao do Imprio Otomano no Congresso de Paris, em
18561. J 1919 a data do Tratado de Versalhes aps a Primeira Guerra Mundial, ocasio
em que o Brasil integrou a Liga das Naes enquanto o Imprio Otomano agonizou,
perdendo, na Liga, autoridade sobre boa parte do que antes foram seus domnios.
Foi com a Primeira Guerra Mundial que os outrora perifricos Estados Unidos e
Japo asseguraram lugar entre as potncias mundiais. Foi com esta que o Imprio
Otomano chegou ao seu fim de fato, sendo fragmentado em inmeras unidades e tendo
seu ncleo sofrido longa ocupao e guerra de independncia se transformado na
1 O Tratado de Paris finalizou a Guerra da Crimeia, declarando o Imprio Otomano como parte do direito internacional e do concerto europeu e igualando o sulto com os monarcas europeus (Naff, 1984).
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Repblica Turca em 1923. Assim, apesar das similaridades, uma entidade vingou,
conseguindo suprimir rebelies internas, defender-se de ameaas externas, manter sua
integridade territorial e assegurar sua sobrevivncia na poltica internacional. J a outra
desmoronou, sendo dividida em territrios independentes ou dominados por Estados
europeus, diretamente ou na forma de mandatos.
***
Meus anos de doutorado coincidiram com a evoluo do que as literaturas
especializadas convencionaram denominar histria global. O movimento, nitidamente
anglo-saxo, busca transcender a histria diplomtica ou internacional mais tradicional,
explorando as dimenses transnacionais do relacionamento entre Estados soberanos. Sem
querer enraizar meu trabalho nesse novo e mesmo contestado campo, as discusses
dos ltimos anos na rea informaram sistematicamente minha reflexo e modo de
trabalho2.
No que diz respeito histria internacional de maneira mais ampla e as reflexes
metodolgicas a seu respeito, Marc Trachtenberg (2006) norteou a pesquisa do incio ao
fim, sobretudo, no que diz respeito aos procedimentos a serem seguidos na pesquisa com
fontes primrias e em rea de estudos sem longa tradio no Brasil. Procurou-se assim
manter o foco nas perguntas de pesquisa, olhar crtico em relao s fontes e busca por
acesso aos cnones da histria otomana antes de me aventurar na pesquisa
propriamente dita.
David Armitage (2007) estudou a declarao de independncia dos Estados
Unidos articulando-a, entre diversos pontos, com a busca por admisso deste Estado na
ordem internacional, servindo de inspirao para partes deste trabalho. J Erez Manela
talvez seja o mais destacado representante de uma nova leva de historiadores se
debruando sobre as transformaes por que passa a sociedade internacional no incio do
sculo XX. Seu The Wilsonian Moment (2007) mostra como os Estados Unidos
justamente tentaram reformular a ordem internacional ao final da I Guerra Mundial e a
interseo de seus ideais com as rebelies anticoloniais de 1919 no Egito, ndia, China e
Coreia.
Inmeras foram as referncias e inspiraes em trabalhos sobre a histria da
insero do Brasil no mundo. Luiz Felipe de Alencastro, Jos Murilo de Carvalho e Joo 2 Eventualmente pude at mesmo tomar parte de discusses sobre a questo, como foi o caso de minha participao em um seminrio de ps-graduao organizado pela Universidade de Harvard sob o ttulo A sociedade internacional e seus descontentes (2010).
23
Jos Reis so os principais exemplos de historiadores neste quesito, tratando em especial
da histria do trfico negreiro, da escravido e da elite brasileira em uma perspectiva
global ou comparada. Os diplomatas Evaldo Cabral de Melo, Alberto da Costa e Silva,
Rubens Ricupero e Paulo Roberto de Almeida dedicam-se a melhor compreender o Brasil
Holands, as relaes Brasil-frica e a insero do Brasil no mundo, com grande
conhecimento de acervos estrangeiros e preocupao em correlacionar seus objetos de
estudo no contexto mais amplo das relaes internacionais3. O embaixador Gelson
Fonseca Jnior um dos poucos a se dedicar a questes conceituais. Leslie Bethell,
Richard Graham e Kenneth Maxwell so provavelmente os brasilianistas com mais
publicaes a respeito da insero internacional do Brasil durante o sculo XIX, em
especial sobre suas relaes com a Gr Bretanha e Estados Unidos. Jeffrey Lesser autor,
dos mais importantes trabalhos sobre identidade e imigrao4. Teresa Cribelli, entre os
integrantes da nova gerao de brasilianistas, merece meno por sua ampla pesquisa
sobre como o Imprio do Brasil concebeu a ideia de modernizao, trazendo nova e
importante luz sobre suas relaes com os Estados Unidos.
Em relao ao perodo inicial do sculo XX - chamado durante muito tempo de
Repblica Velha e recentemente reinventado como Primeira Repblica -, Clodoaldo
Bueno (2003) conta com importantes obras sobre a poltica externa do perodo em que o
baro do Rio Branco esteve frente do Itamaraty (1902-1912). Trata-se, porm, de
trabalhos que seguem uma linha de histria da poltica externa, mais do que o Brasil
na histria internacional. Historiadores tambm vm realizando relevantes pesquisas
3 Entre as obras de Luiz Felipe de Alencastro vale destacar O Trato dos Viventes: Formao do Brasil no Atlntico Sul (So Paulo: Companhia das Letras, 2000); de Jos Murilo de Carvalho, A construo da ordem: a elite poltica imperial; Teatro de sombras: a poltica imperial (Rio de Janeiro: Record, 2003); e de Joo Jos Reis, Rebelio escrava no Brasil: A histria do levante dos mals (1835) (So Paulo: Companhia das Letras, 2003). De Evaldo Cabral de Melo vale destacar O negcio do Brasil. Portugal, os Pases Baixos e o Nordeste (1641-1669) (Rio de Janeiro: Topbooks, 1998); de Alberto da Costa e Silva, Um rio chamado Atlntico: a frica no Brasil e o Brasil na frica (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003); de Rubens Ricupero, Rio Branco: o Brasil no mundo (Rio de Janeiro: Cont raponto, 2000); e de Paulo Roberto Almeida, Formao da Diplomacia Econmica do Brasil (So Paulo, Senac; Braslia: Funag, 2005). O diplomata Pedro da Cunha e Menezes um escritor responsvel por importantes publicaes sobre as conexes do Brasil com a Austrlia, pas que serviu como cnsul, valendo ressaltar seus livros publicados por Andrea Jakobsson Studio, em 2004, O Rio de Janeiro na Rota dos Mares do Sul e Oswald Brierly. Dirios de viagem ao Rio de Janeiro, 1842-1867. 4 A obra de destaque de Gelson Fonseca Jnior nesse caso A legitimidade e outras questes internacionais: poder e tica entre as naes (So Paulo: Paz e Terra, 1998); de Leslie Bethell, The abolition of the Brazilian slave trade (Cambridge: Cambridge University Press, 1970); de Richard Graham, Britain and the onset of modernization in Brazil( Cambridge: Cambridge University Press, 1968); de Kenneth Maxwell, Mais malandros: ensaios tropicais e outros (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002). De Jeffrey Lesser vale ateno especial a "A negociao da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil" (So Paulo: Unesp, 2001).
24
sobre a diplomacia da Primeira Repblica, debruando-se sobre diplomatas-historiadores
desse perodo como Oliveira Lima e tambm Joaquim Nabuco. Teresa Malatian (2001)
autora de alentada pesquisa sobre o primeiro e Luigi Buonaf (2008) de relevante tese
sobre o ltimo.
Ainda pensando no esforo de inserir o Brasil no mundo, vale muito ressaltar a
traduo de importantes trabalhos elaborados em especial nos Estados Unidos sobre o
tema. Gerald Horne (2011), Greg Grandin (2010), Steven Topik (2009) e mesmo David
Grann (2009) so os autores que destaco. Quase todos foram traduzidos pela editora
Companhia das Letras nos ltimos anos e so uma contribuio valiosa neste esforo de
se entender as conexes do Brasil com outras regies e as percepes que outras regies
tinham do Brasil, como a especificidade das relaes do Brasil com os Estados Unidos,
to importantes no ltimo sculo e inacreditavelmente subestudadas por aqui. O trabalho
de Horne apresenta o papel do Brasil na histria da escravido no Hemisfrio Ocidental,
sugerindo a existncia de um projeto de imprio escravocrata que teria ligado o sul dos
Estados Unidos, Brasil e Cuba.
***
Este trabalho tambm utiliza a historiografia otomana mais recente, bem como
fontes coletadas na Turquia, almejando, portanto, dialogar com os novos esforos feitos
por pesquisadores turcos e estrangeiros em ampliar o conhecimento sobre as relaes
internacionais do Imprio Otomano. Esse fenmeno relativamente novo em funo de
longo preconceito do Estado turco com seu passado otomano e pelo fato de que s
recentemente as fontes vm sendo disponibilizadas para a pesquisa pblica5.
So escassas as obras traduzidas para o portugus sobre o Imprio Otomano. Vale
destacar, contudo, as pesquisas clssicas de Albert Hourani, Uma Histria dos Povos
rabes e O pensamento rabe na Era Liberal: 1798-1939, trabalhos bem
fundamentados em fontes primrias e em estudos contemporneos que apresentam e
analisam a histria das sociedades rabes. A Era Otomana ganha captulos especficos
em ambas as obras, sendo embora concisos e voltados para a apreenso da maneira como
os rabes eram tratados dentro do Imprio Otomano. J o clssico de Donald Quataert O
Imprio Otomano: Das Origens ao Sculo XX foi traduzido em Portugal pela Edies
70, em 2000, e provavelmente a mais importante obra traduzida para o nosso idioma.
5 Esin Yurdusev (2004: 167-194), porm, avalia que somente 20% dos cerca de cento e cinquenta milhes de documentos otomanos estejam disponveis no momento. H um projeto corrente de digitalizao destes antes de sua organizao final.
25
Trabalhos de flego como O Expresso Berlim-Bagd (2011), do professor da Bilkent
University, Sean McMeekin a respeito das relaes Imprio Otomano e Alemanha em sua
fase final, e Paz e Guerra no Oriente Mdio (2008), de David Fromkin sobre o
desmonte do Imprio Otomano, ganharam recentemente cuidadosas edies em
portugus.
Boa parte dos estudos do pesquisador anglo-americano Bernard Lewis tambm
se encontram traduzidos para o portugus, valendo destacar O Oriente Mdio: do
advento do cristianismo aos dias de hoje. Lewis alvo de relevantes crticas recentes por
conta de seu extremo eurocentrismo e envolvimento com a questionvel poltica externa
norte-americana na gesto George W. Bush para o Oriente Mdio, mas tal fato no
invalida seu pioneirismo em pesquisas em arquivos otomanos, evidenciados na
importante obra The emergence of modern Turkey, que segue distante do pblico
brasileiro e leitura obrigatria mesmo em cursos oferecidos na Turquia.
Quanto historiografia otomana de uma maneira geral e aquela publicada em
ingls, trata-se das mais ricas e em plena ebulio na Turquia e em diversos pases. Erik
Zrcher (2005), Halil Inalck (1973) e Stanford Shaw (1977) so os autores de amplas
histrias do Imprio Otomano, que juntamente com o livro de Quataert traduzido para o
portugus, figuram entre as leituras obrigatrias de cursos sobre a entidade em questo
nas melhores universidades do mundo. Carter Findley, da Ohio State University, em 2010
publicou obra importantssima que revisita a historiografia otomana e turca clssicas, e
que merecidamente contou com diversos prmios como o Joseph Rothschild Prize in
Nationalism and Ethnic Studies. Findley faz inclusive largo uso da literatura neste livro,
usando-a como forte auxlio para tratar das histrias otomana e turca.
Nas ltimas dcadas, novas fontes vm sendo abertas a pesquisa, enriquecendo ou
permitindo reavaliaes de interpretaes, em especial aquelas que somente entendem o
Imprio Otomano em termos de suas relaes com a Europa, sem compreender as
dinmicas internas prprias ou relaes com outras regies do mundo. Pesquisadores
vinculados a universidades norte-americanas e canadenses, como Kemal Karpat (1974),
Rene Worringer (2001), Cemal Kafadar (1996) e Pnar Emiraliolu (2000) so alguns
dos exemplos deste novo esforo.
J Sinan Kuneralp6, Selim Deringil (1999), Nuri Yurdusev (2004), entre outros,
debruam-se h tempos sobre a histria diplomtica otomana. Kuneralp ainda um dos
6 Sinan Kuneralp tambm proprietrio da editora Isis Press, em Istambul, e vem se dedicando a publicar documentos diplomticos otomanos sobre questes como a unificao italiana e a guerra franco-prussiana,
26
poucos pesquisadores a se interessar pela histria das relaes entre o Imprio Otomano e
a Amrica Latina - com um artigo no prelo sobre o tema -, juntamente com o chileno
Paulino Toledo e o espanhol Pablo Asuero. Estes ltimos tm publicados livros e artigos
sobre viajantes hispano-americanos que passaram pelo Imprio Otomano dos sculos
XVIII ao XX.
Kazim Baycar um jovem pesquisador turco que estudou a imigrao de sditos
otomanos para a Argentina, cuja dissertao de mestrado defendida na Bosphorus
University encontra-se no prelo. No momento, em seu doutoramento em curso na
Universidade de Oxford, amplia seu escopo de pesquisa para a imigrao otomana para
todas as Amricas e especificamente o papel dos agentes (simsars) no ponto de sada
desta. J Mehmet Temel (2004), - atualmente professor na Mula University -
aparentemente o nico pesquisador turco a ter se aventurado por uma conexo do Imprio
Otomano com o Brasil, listando mais do que analisando os documentos referentes s
relaes bilaterais pertencentes aos Arquivos do Primeiro Ministro, em Istambul.
Sobre os eventuais contatos entre o Brasil e o Imprio Otomano, e mais
especificamente das viagens de D. Pedro II a provncias otomanas na dcada de 1870,
existem duas obras baseadas nos dirios do imperador: D. Pedro II na Terra Santa, de
Reuven Faingold, e Brasil-Lbano: amizade que desafia fronteiras, de Roberto Khatlab.
Ambos tratam do conhecido interesse do imperador pelas lnguas orientais e centram-se
em suas viagens regio, sem, contudo, contextualiz-las na histria otomana
propriamente dita. Relaes entre o Brasil e o Mundo rabe: construo e perspectivas
e Dilogo Amrica do Sul-Pases rabes organizado por Helosa Vilhena de Arajo,
tambm tratam do tema, porm, de maneira bastante superficial.
Paulo Daniel Farah (2005: 75-95), diretor da Biblioteca Amrica do Sul-Pases
rabes (Bibliaspa) ressalta a importncia de se estudar a histria do Imprio do Brasil
para alm das fontes em lnguas europeias, justamente ressaltando as possibilidades
quanto s conexes com o Imprio Otomano7. Paulo Daniel Farah foi o responsvel pela
traduo herclea diretamente do rabe para o portugus do relato da estada de um im
otomano no Brasil na dcada de 1860, intitulado Deleite do estrangeiro em tudo o que
espantoso e maravilhoso. Este trabalho, como o clssico de Joo Jos Reis sobre a
revolta dos mals na Bahia, trata principalmente da presena de escravos muulmanos no alm de estudos sobre a histria diplomtica otomana e turca em geral. Ver http://www.theisispress.org/Center_For_Ottoman_Diplomatic_History/. 7 Agradeo ao professor Joo Marcelo Maia por indicar-me tal texto quando ainda do incio de meu trabalho.
27
pas. Como pude constatar na Turquia, o relato do im Al-Bagdadi merece estudo
bastante aprofundado, uma vez que teve ampla repercusso na prpria poca que foi
escrita, sendo imediatamente traduzida para o turco-otomano e pouco depois para lngua
trtara. Farah, assim como Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto com suas preocupaes
em contextualizar a imigrao rabe para o Brasil na histria otomana, os iniciadores no
Brasil desta corrente de estudos otomanos com a qual tambm procuro me vincular. Em
paralelo, os estudos de Oswaldo Truzzi sobre especificamente a imigrao rabe, dos
mais importantes por buscar entend-la no contexto hemisfrico maior. Penso que a
contribuio maior deste trabalho a esta linha de pesquisa a de adicionar fontes
otomanas obtidas na Turquia e tambm a de entender os imigrantes do Oriente Mdio
de uma forma mais ampla, correlacionando gregos, armnios, judeus e rabes como um
todo.
***
Ao longo de 2007 contei com uma bolsa de pesquisa na Biblioteca Nacional
brasileira com projeto intitulado O Oriente Mdio no acervo da Biblioteca Nacional.
Meu intuito era o de levantar de forma organizada - aprofundando a pesquisa o mximo
possvel - as obras ali depositadas referentes regio que hoje denominamos de Oriente
Mdio. Deparei-me com cerca de dois mil itens, sendo cerca de oitenta por cento
pertencentes Coleo Teresa Cristina, tendo, portanto, pertencido ao imperador D.
Pedro II. Deste levantamento inicial animei-me primeiramente a pensar em um projeto de
pesquisa de doutorado sobre o bvio e peculiar orientalismo de D. Pedro II. A leitura do
livro Istambul: cidade e memria, de Orhan Pamuk, exatamente no momento em que
esboava essas ideias, fez-me dar uma guinada. No livro de memrias do escritor turco
ganhador do Nobel de Literatura em 2006, ele tratava da sua cidade natal como a sede de
um antigo, importante e longevo imprio que perdera seu status para Ancara, capital
instituda com a Repblica da Turquia, vivendo por isso uma profunda melancolia, que
chama de hzn. A comparao com a situao vivida pelo Rio de Janeiro em um
passado no muito distante me veio de imediato quando da leitura e comecei a pensar na
possibilidade de procurar tambm comparar o Brasil e o Imprio Otomano na virada do
sculo XIX para o XX. Foi, portanto, da juno dessas duas experincias, e da conversa
com profissionais experientes da rea, que ressaltavam a validade de se levar adiante uma
pesquisa que fugisse das relaes bilaterais tradicionais, que cheguei pesquisa que ora
apresento.
28
Trata-se assim de um projeto que nasceu de fontes e de literatura, mas que foi se
amarrando aos poucos em especial em funo das leituras e releituras das obras de Adam
Watson, Hedley Bull e Edward Keene a respeito do que seria uma evoluo, expanso
e/ou estratificao da chamada sociedade internacional dos Estados soberanos.
A sociedade internacional global cada vez mais permite conexes diretas e amplas
no Sul, mas ainda em grande medida mediadas pelo Norte. Por um lado desde 2009 j
existem voos diretos entre o Brasil e a Turquia, crescente o nmero de turistas
brasileiros por Istambul e Capadcia e abundam profissionais brasileiros de futebol e
vlei por toda a Turquia. Por outro, a troca acadmica, porm, ainda tmida. No tendo
o Brasil uma grande tradio de estudos na rea de Histria do Imprio Otomano, as
indicaes recolhidas para a bibliografia inicialmente consultada advieram, sobretudo, de
listas de leitura de cursos sobre o tema ministrados nas mais respeitadas universidades do
mundo e naquelas com tradio de estudos sobre a questo.
Foi o ingls, tambm originalmente do Norte, que justamente facilitou minha
estada na Turquia, aprendendo com professores e pesquisadores locais sobre o estado
mais adiantado das pesquisas, revisionismos correntes e tendncias sendo seguidas.
Bilkent University, onde passei um semestre, conta justamente em seus quadros com a
maior autoridade sobre Imprio Otomano (ele mesmo nascido ainda quando era este que
existia), Halil Inalck, e cuja rica documentao amealhada durante mais de meio sculo
de pesquisas, est abrigada.
Bilkent em turco quer dizer cidade do conhecimento, e de fato a universidade
efervescente em pesquisas e projetos em geral, alm de contar com, literalmente,
riqussima biblioteca. No que diz respeito histria otomana praticada ali um dos
centros mais respeitados do mundo -, percebi ainda grande nfase nas relaes e
comparaes do Imprio Otomano com o Ocidente, sendo tmidos, para no dizer raros,
os trabalhos que ultrapassam essas fronteiras. Percebi assim que para minha pesquisa era
de fato a literatura de Relaes Internacionais a mais til para desvendar o que estava por
trs das conexes que a empiria me mostrava existir entre Brasil e Imprio Otomano. A
escolha foi por um caminho difcil, sem tradio aqui e acol, e o intuito foi o de realizar
um trabalho o mais global possvel.
Na Turquia, centrei a pesquisa na Biblioteca Nacional Turca, em Ancara, e nos
Arquivos do Primeiro Ministro, em Istambul, com visitas ainda ao acervo iconogrfico da
Istanbul University e algumas bibliotecas temticas da cidade como a da American
Research Institute in Turkey (ARIT) e do Institut Franais de Turquie. Uma parte
29
considervel das fontes na seo relativa a documentos otomanos dos Arquivos do
Primeiro Ministro8 (Fig. 1), est em francs, e alguns ainda em portugus ou espanhol.
Cerca de metade, porm, encontra-se em turco-otomano, idioma turco com escrita rabe e
em grande parte foram gentilmente traduzidos para este trabalho com a ajuda de Mustaf
Gktepe e H. Bayram Ozturk A este respeito vale observar que visando facilitar a leitura
da tese a seguir optou-se por traduzir todas as citaes em lngua estrangeira para o
portugus, sendo todas estas tradues feitas por mim.
Bases de dados de peridicos como The Times, New York Times, O Malho e O
Estado de So Paulo9, de legislao brasileira como o Senado Federal, de instituies
donas de importantes acervos como a Biblioteca Nacional do Brasil e a Library of
Congress bem como projetos de democratizao de acesso a fontes histricas como o
Center for Research Libraries, tambm se mostraram muito importantes. O servio de
pesquisa de livros do Google, assim como do projeto Internet Archive e a base Gallica da
Biblioteca Nacional Francesa, tambm se mostraram valiosos, permitindo em especial o
acesso a obras de viajantes do sculo XIX, j em domnio pblico, que passaram tanto
pelo Brasil quanto pelo Imprio Otomano, ou algumas obras fora de catlogo e mesmo
peridicos. A verdade que sem estes tipos de projetos de digitalizao e democratizao
de acesso a acervos uma tese como esta seria ainda impensvel de se fazer no Brasil.
No Brasil, o Arquivo Histrico do Itamaraty, o Arquivo Nacional, a Fundao
Casa de Rui Barbosa, o Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, o Museu Imperial de
Petrpolis e a Biblioteca Nacional foram as instituies a que recorri a fim de buscar
fontes primrias. Infelizmente, o primeiro esteve fechado por todo o ano de 2008 e incio
de 2009, e longos perodos de 2011, no permitindo, sobretudo, um olhar mais aguado
sobre a documentao das legaes do Brasil em Londres e Paris. A documentao
relativa legao brasileira em Constantinopla, o consulado brasileiro em Alexandria,
bem como da representao armnia no Brasil, foram totalmente cobertas.
Realizei ainda pesquisa no The National Archives britnico. Se no deu para
contar com um captulo especfico sobre as relaes dos imprios perifricos com a
Gr-Bretanha, justamente por acreditar que o trabalho com as fontes deveria ter sido mais
8 Dos cerca de setecentos dossis localizados neste arquivo com informaes sobre o Brasil, digitalizei cerca de quatrocentos, no podendo fazer mais por conta das rgidas normas da instituio que s permitiam o acesso a vinte e cinco dossis por dia. 9 A Fundao Biblioteca Nacional acaba de disponibilizar online mais de seiscentos peridicos em sua Hemeroteca Digital Brasileira (http://memoria.bn.br/hdb/periodicos.aspx) que conta com obras como A Noite, certamente muito teis para este trabalho. Optou-se, porm, por no abrir mais essa frente de pesquisa justamente quando da redao final da tese.
30
demorado e aprofundado, elas foram inseridas em diversas partes da tese em questo. Na
Inglaterra ainda, tive oportunidade de pesquisar no incrvel arquivo do The Rothschild
Archive, utilizando tambm no mbito deste trabalho parte das fontes l levantadas. Este
acervo, assim como o The National Archives, clama urgentemente por pesquisas
brasileiras10.
Este trabalho utiliza tambm a iconografia como fonte til e legtima para estudar
histria internacional. Aquarelas e estampas de viajantes que passaram por
Constantinopla e pelo Rio de Janeiro, bem como as ricas colees de fotografia dos
soberanos do Imprio Otomano e do Brasil, servem de fonte e de objeto de anlise. Em
que pese a proliferao de estudos artsticos sobre as duas entidades, h ainda poucos
estudos a respeito da propaganda de progresso em nome da qual governantes em ambas
as capitais mobilizaram formas no-verbais de diplomacia.
***
Como dito acima, a tese composta de trs partes e elas so: Da Sociedade
Internacional, Contrastes e Conexes. A primeira delas conta somente com um
captulo, intitulado A sociedade internacional e os imprios perifricos que lida com a
orientao conceitual seguida, uma apresentao mais detalhada sobre os trabalhos da
chamada clssica Escola Inglesa da teoria das relaes internacionais em geral e
especificamente como lidam com os no-europeus. Especifica-se ento entre estes o
Brasil e o Imprio Otomano.
Segue-se ento para a parte Contrastes, composta por dois captulos. O captulo
2, O Brasil, o Imprio Otomano, os tratados e a diplomacia, dedicado a contrapor os
esforos empreendidos pelo Brasil e pelo Imprio Otomano visando reconhecimento
europeu a aspirao a membros plenos da sociedade internacional. Para este fim, foram
enfatizados os usos que cada entidade fez do direito internacional, da diplomacia formal e
tambm da diplomacia no-verbal. Esta ltima expressa na forma de participao em
exposies universais e nas viagens dos soberanos.
J o captulo 3, Rio de Janeiro, Constantinopla e os olhos estrangeiros,
debrua-se sobre o papel das reformas urbanas e arquitetnicas nas capitais dos Estados
em tela. Ele busca apresentar um panorama sobre o papel das capitais na histria
10 Para alm de seu bvio uso em termos de interesse sobre a histria econmica, financeira e poltica do Brasil, o The Rothschild Archive permite vislumbrar as relaes entre a comunidade britnica no Brasil, entre os europeus judeus que para c se dirigiram, entre outros tantos temas no to bvios. digno de nota o interesse que a direo do dito arquivo tem em incentivar todos os tipos de pesquisa possveis em cima de seu acervo, oferecendo escolas de vero anuais e bolsas diversas.
31
internacional, para ento tratar das especificidades das capitais brasileira e otomana, de
representaes de artistas europeus feitas a seu respeito e divulgadas na Europa, para
ento centrar-se no esforo feito dessa vez por seus governantes no final do sculo XIX
de utilizar a fotografia como forma de divulgar seu progresso.
Por fim, a parte Conexes tambm dividida em dois captulos. O captulo 4,
Relaes incgnitas: o Imprio Otomano, as Amricas e o Brasil (1513-1876), trata de
uma espcie de prlogo a respeito de vises mtuas que remonta ao sculo XVI, mas
foca-se, sobretudo no perodo entre 1850 e 1876 e nas tentativas de Brasil e Imprio
Otomano lanarem mo do direito internacional e da diplomacia ao travarem contato
mais prximo entre si.
J o captulo 5, intitula-se O Imprio Otomano, o Brasil e a imigrao. Aqui
buscou-se tratar do novo mpeto nas relaes entre ambas as entidades em funo das
levas imigratrias de sditos otomanos que seguiram para o Brasil a partir da dcada de
1870. Apresentam-se os acontecimentos internos e externos do Imprio Otomano que
explicam a alterao de status e a sada de milhares de sditos, assim como a
especificidade de cada grupo tnico/confessional. Passa-se ento para o esforo
diplomtico otomano para lidar com os impactos destes imigrantes no Brasil como em
suas regies de origem. Justamente esta imigrao, nem estimulada pelos otomanos, nem
originalmente bem-vinda pelo Estado brasileiro, que se configura como um caso de
conexo no esperada, mas efetiva, no processo de transformao da sociedade
internacional europeia em global.
32
Parte I
Da Sociedade Internacional
33
CAPTULO I
A sociedade internacional e os imprios perifricos
Este um trabalho de histria internacional conceitualmente informado. Sem
querer testar ou propor uma teoria a respeito do que chamo de imprios perifricos,
utilizo conceitos da disciplina acadmica das Relaes Internacionais para organizar
tematicamente a rica empiria em arquivos brasileiros e otomanos. Este captulo oferece
uma breve reviso bibliogrfica sobre os conceitos mais utilizados e apresenta a
orientao do trabalho. Espera-se, assim, explicar e justificar o corte temtico adotado.
1.1 - Sociedade internacional: evoluo, expanso e/ou estratificao
Em 1959 foi criado um grupo de acadmicos denominado Comit Britnico
sobre Teoria da Poltica Internacional. Este era liderado pelo historiador da Universidade
de Cambridge, Herbert Butterfield, e reunia-se periodicamente nesta universidade, bem
como nas universidades de Oxford, Londres e Brighton a fim de discutir os principais
problemas e uma srie de aspectos da teoria e da histria das relaes internacionais. O
grupo recebia recursos da Fundao Rockefeller e desenvolveu estudos com importante
impacto at os dias atuais e que acabou por ficar conhecido como a Escola Inglesa da
teoria das relaes internacionais.
A Escola Inglesa estabeleceu uma distino entre o chamado sistema
internacional at ento objeto central da disciplina das Relaes Internacionais e a
chamada sociedade internacional. A primeira categoria pode ser caracterizada assim: um
sistema internacional existe quando,
dois ou mais Estados tm suficiente contato entre si, com suficiente impacto recproco nas suas decises, de tal forma que se conduzam, pelo menos at certo ponto, como partes de um todo. Naturalmente, dois ou mais Estados podem existir sem formar um sistema internacional, nesse sentido. (...) Mas quando os Estados mantm contato regular entre si, e quando alm disso sua interao suficiente para fazer com que o comportamento de cada um deles seja um fator necessrio nos clculos dos outros, podemos dizer que eles formam um sistema. A interao dos Estados pode ser direta (quando so vizinhos, parceiros ou competem pelo mesmo fim) ou indireta (em consequncia do relacionamento de cada um com um terceiro), ou simplesmente pelo impacto deles sobre o sistema. (...) A interao dos Estados que define um sistema internacional pode ter a forma de cooperao ou de conflito, ou mesmo de neutralidade ou indiferena
34
recprocas com relao aos objetivos de cada um. Essa interao pode abranger toda uma gama de atividades polticas, estratgicas, econmicas, sociais -, como acontece hoje, ou apenas uma delas (Bull, 2002: 15).
J a sociedade de Estados ou sociedade internacional, existe quando:
Um grupo de Estados, conscientes de certos valores e interesses comuns formam uma sociedade, no sentido de se considerarem ligados, no seu relacionamento, por um conjunto comum de regras, e participam de instituies comuns. Se hoje os Estados formam um sistema internacional, porque, reconhecendo certos interesses comuns e talvez tambm certos valores comuns, eles se consideram veiculados a determinadas regras no seu inter-relacionamento, tais como a de respeitar a independncia de cada um, honrar os acordos e limitar o uso recproco da fora. Ao mesmo tempo, cooperam para o funcionamento de instituies tais como a forma de procedimentos do direito internacional, a maquinaria diplomtica e a organizao internacional, assim como os costumes e convenes da guerra. Nessa acepo, uma sociedade internacional pressupe um sistema internacional, mas pode haver um sistema internacional que no seja uma sociedade. (Bull, 2002: 19)
Para os autores da Escola Inglesa, a transformao de sistema para sociedade
internacional foi um processo histrico. Segundo eles, o mundo antigo teve diversos
sistemas de Estados: esto l a Sumria, a Assria, a Prsia, a Grcia Clssica, o Sistema
Macednico, a ndia, a China, Roma, o Oikumene Bizantino e o Sistema Islmico. Esses
evoluram para uma sociedade internacional europeia e, por fim, a nossa "sociedade
internacional universal do presente" (Bull, 2002: 15; Watson, 2004: 37).
Nessa concepo, a Europa comeou a tomar forma como uma sociedade
regional e internacional no sculo XV e a expandir-se rapidamente no sculo XIX.
Como resultado dessa expanso, as mais diversas regies do planeta foram incorporadas
aos moldes da sociedade europeia, alargando essa formao para o mundo inteiro na
sequncia da Segunda Guerra Mundial e da descolonizao (Gonalves, 2002: 18).
Ainda segundo essa concepo, a evoluo do sistema europeu de relaes
interestatais e a expanso do poder europeu em todo o mundo foram processos
simultneos e mutuamente constitutivos. O smbolo e o instrumento dessa expanso
foram a estrutura jurdico-poltica do Estado soberano, que comeou a se consolidar no
final do sculo XVIII e incio do sculo XIX, com a concluso dos processos que
desembocaram nas independncias dos Estados Unidos, do Brasil e das demais colnias
hispnicas nas Amricas.
35
Essa literatura ressalta a falta de uniformidade e de sistematizao, mas toma
como garantida a noo de "expanso", o processo gradual de adeso global s ideias,
rituais, smbolos e prticas europeias nas reas de diplomacia e relaes internacionais.
Essa suposta incorporao comeou no sculo XIX, para ser concluda no sculo XX.
Ela mesma j indica a ascenso de potncias no-europeias como os Estados Unidos e o
Japo, no final do sculo XIX, e sua efetiva participao na gesto da sociedade
internacional (Watson, 1985: 30), mas no geral, parte da premissa no-falada de que os
sistemas internacionais extra-europeus no questionaram nem desafiaram de modo
sistemtico a formao europeia central seja porque j fosse a Europa uma fora
hegemnica, ou devido aos limitados contatos existentes entre essas diversas entidades.
Adam Waston (1985: 30-2) indica como caractersticas dessa fase de expanso:
1) uma hegemonia efetiva das grandes potncias; 2) uma mudana do conceito de
colnia, de assentamento de imigrantes a domnio do homem branco sobre no-brancos
da sia e frica; 3) concordncia, apesar da competio, entre as potncias europeias
sobre as esferas de influncia que impediram guerras entre si; 4) intensificao da
explorao dos no-europeus com forte componente de propagao da civilizao crist;
5) criao de uma elite europeizada por todo o mundo no-europeu. Nesta listagem fica
de fora o comportamento e a reao dos no-europeus em relao a esta. No que toca as
elites, por exemplo, fala de que em alguns aceitaram a superioridade das instituies
europeias e outros viram vantagens pessoais nesta ao se adaptar s formas do
conquistador. Deixa de fora um importante componente de rejeio ou de um interesse
parcial por parte destas elites, em adotar instituies, ideias e prticas europeias,
adaptando-as s peculiaridades de suas culturas e projetos. Nega um protagonisto na
periferia.
Para os autores clssicos da Escola Inglesa, o Brasil aderiu, como parte do
processo de independncia de colnias europeias, como uma espcie de Neo-Europa
uma admisso livre de maiores obstculos (Watson, 1985: 127-141)11. O Imprio
Otomano, por sua vez, o fez buscando salvar sua prpria condio de vasto e multitnico
imprio, tendo sua participao no Congresso de Paris, em 1856, como marco
fundamental de integrao sociedade internacional europeia do sistema de Estados do
qual fazia parte (Naff, 1985: 143-169). 11 A narrativa histrica de Watson tem importantes insights sobre a especificidade da manuteno das relaes do Brasil com a Europa e de certa similaridade entre Brasil e Canad, mas conta tambm com erros histricos crassos, como quando fala em abdicao de D. Pedro II em 1889, quando foi obviamente deposto.
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Nessa concepo, as instituies tm papel primordial. No perodo que vai do
Congresso de Viena, em 1815, at a criao da Liga das Naes, em 1919, estas so
entendidas como instituies primrias e so basicamente compostas por: soberania,
no-interveno, territorialidade, diplomacia, direito internacional, guerra, equilbrio de
poder e gesto entre as grandes potncias (Buzan, 2004).
Este trabalho lidar explicitamente com as instituies da diplomacia e do
direito internacional (expresso, sobretudo, na forma da assinatura de tratados), com
vistas a estudar o processo de interao entre a Europa e essas entidades at ento
perifricas, e mesmo entre as prprias entidades perifricas. Ao faz-lo, esta tese vai alm
dos procedimentos verbais, filiando-se ao crescente campo de estudos da chamada
linguagem no-verbal da diplomacia12. Assim, o trabalho adota como premissa o
princpio segundo o qual os discursos verbais no so os meios exclusivos de
comunicao entre Estados.
A diplomacia no-verbal de viagens de chefes de Estado, por exemplo, j se faz
presente em instigante anlise de David Motadel (2011) sobre visitas de xs persas a
Alemanha na virada do sculo XIX para o XX. A representao pictrica tambm
constitui parte significativa na linguagem diplomtica, como demonstra Michael Auwers
(2009) em sua anlise do papel do pintor Peter Paul Rubens nas relaes de paz anglo-
espanholas do sculo XVIII, e Philip Mansel (2004: 189-219), em seu estudo sobre os
diplomatas europeus que serviram em Constantinopla. Celeste Zenha (2004), Ana Maria
Mauad (1997) e Selim Deringil (1999), j indicam tambm a relevncia da fotografia nas
relaes internas e internacionais do Brasil e do Imprio Otomano.
No existe um "ncleo" estvel em um modo de expanso para Edward Keene
(2008). Existem regras do jogo que so negociados a cada passo em um modo de
"estratificao". Keene observa que h dois eixos principais da estratificao da
sociedade internacional no incio do sculo XIX: uma foi definida em termos de
desigualdades de recursos materiais, o mais importante a distino entre as grandes
potncias e as menores. O outro foi baseado em desigualdades resultantes da situao de
12 Ellen R. Welsh, do Departamento de Literatura da University of North Caroline at Chapel Hill uma das principais interessadas no tema. O seminrio que organizou na conferncia anual da American Comparative Literature Association (ACLA), em 2009, no qual tive oportunidade de participar, tinha justamente por ttulo Languages of Diplomacy e buscava explorar as formas de linguagem que servem de uma maneira mais ou menos oficial como agentes de uma mediao intercultural e internacional. Estava atenta a formas pelas quais a diplomacia poderia nos ensinar sobre as potencialidades e limitaes das linguagens em vencer o estranhamento dos Estados, naes ou culturas. E questionava-se sobre que tipos de linguagens (incluindo modos extralingusticos de comunicao) se mostraram teis em criar um espao para negociao e reconciliao.
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prestgio das naes "civilizadas" e de diferentes casas dinsticas. A expanso da
sociedade internacional, de acordo com Keene, era um resultado da crescente
importncia do primeiro destes tipos de estratificao por capacidade material sobre o
segundo tipo de estratificao por prestgio ou status.
Da mesma forma, so relativamente poucos estudos da Escola Inglesa que tratam
do que Shogo Suzuki (2009) chama de lado obscuro da sociedade internacional, como
o uso da fora, a imposio da lei imperial e a negao de direitos individuais e de
propriedade das sociedades autctones. A tradicional histria da expanso ignora em
geral a violncia, a traio, a subjugao, a expropriao e o assassinato em massa que
acompanhou a expanso da sociedade europeia. Como ressalta Fred Halliday (2009: 18)
se trata de uma distoro significativa no s em termos poltico ou moral da histria
colonial europeia, mas tambm para explicar ao mundo em que hoje vivemos. O sistema
de Estados originalmente europeu de fato se espalhou pelo mundo, - e no
eurocentrismo reconhec-lo, mas constatao de um fato -, mas em grande parte
derrotando, subjugando, formando e deformando sociedades e entidades com os quais
travou contato. As dificuldades que o mundo moderno teve com o mundo no-europeu
so, para Halliday, no o resultado de uma expanso incompleta dos valores
westfalianos ou a resistncia de sociedades no-democrticas, islmicas ou asiticas a
valores democrticos, mas acima de tudo, o carter violento da prpria expanso.
Edward Keene (2002:97) fala ainda de um modo dualstico, que ao mesmo tempo
que se via a formao de um sistema westfaliano de Estados soberanos iguais e
mutuamente independentes dentro da Europa, sistemas imperiais e coloniais que se
estabeleciam fora desta e condicionavam soberania a respeito aos direitos individuais,
especialmente propriedade. Fala em tolerncia entre os Estados europeus e promoo da
civilizao para fora destes. J existe uma literatura incipiente que trata dessa
dualidade, sobretudo no caso japons, como j mencionado acima. de Shogo Suzuki
recente e importante trabalho sobre o encontro da China e do Japo com a sociedade
internacional europeia e de como o ltimo teria emulado prticas dos membros
civilizados desta ao se engajar em polticas imperialistas em relao primeira e
tambm Coreia. Rene Worringer (2001) volta-se para a maneira como o Japo, que
encantou as elites otomanas em Istambul, e tambm no Cairo, passando a lhes servir de
exemplo de uma potncia asitica bem sucedida em sua relao com a Europa
sobretudo aps a vitria na guerra contra a Rssia em 1905 -, mas que no aceitou seu
pedido de relaes igualitrias, exigindo a concesso de capitulaes para que fossem
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estabelecidas relaes formais entre ambos13. A sntese bem sucedida de uma tica e
cultura oriental cincia e tecnologia ocidental conseguida pelos japoneses faziam os
otomanos desejarem deixar de ser o homem doente da Europa, para ser o Japo do
Oriente Prximo.
As reflexes no mbito da Escola Inglesa a respeito de critrios ou padres de
civilizao so basicamente tributrias ao trabalho de Gerrit Gong (1984). Para Gong,
enquanto a Europa se expandia para o mundo no-europeu, ocorria na realidade um
confronto no somente em termos poltico, econmico ou militar, mas, sobretudo, em
termos de civilizaes e seus padres de cultura. O cerne deste confronto era o padro
de civilizao pelo qual diferentes civilizaes se identificavam e regulavam suas
relaes internacionais14. As prticas que se tornaram aceitas como civilizadas eram
aquelas provenientes dos pases europeus e logo passavam a ser exigidas pelo sistema
internacional centrado na Europa. O padro de civilizao assim uma expresso da
assuno, tcita ou explcita, usada para distinguir aqueles que pertencem a uma
sociedade particular daqueles que no pertencem. Membership neste sentido era
condicionado a um certo grau de homogeneizao, requisitando dos Estados no-
europeus que fizessem reformas sociais e polticas e que aceitasse as regras e princpios
da sociedade internacional.
Entendo que, em meados do sculo XIX, entidades no-europeias de variados
portes passaram a demandar ou a ser demandadas a integrar uma sociedade internacional
de ncleo europeu. Trata-se de um perodo importante de virada imperial, sobretudo
britnico, em que o planeta passou a ser esquadrinhado, ocupado e as relaes da Europa
com o mundo, redefinidas com base em um centro europeu. Assim, como sugere a
Escola Inglesa, o perodo foi marcado pela expanso da sociedade internacional de
cunho europeu mundo afora, de forma extremamente estratificada, seja entre os prprios
europeus e tambm entre os prprios no-europeus.
13 As relaes formais s se dariam entre Japo e a Repblica Turca, em 1924. Worringer (2001: 88) ainda d pistas do interesse otomano na guerra sino-japonesa, uma vez que esta desviava a ateno europeia, como rivais e competidores em seus domnios, para bem longe de si. 14 Para Gong (1985: 179) na virada do sculo, este padro de civilizao emergiu de forma suficiente a definir os requisitos legais necessrios a um pas no-europeu como a China para ganhar status civilizado pleno na sociedade internacional. Estes pr-requisitos incluam: 1) a garantia de vida, liberdade e propriedade de estrangeiros; 2) demonstrar uma organizao governamental eficiente; 3) aderir a prticas diplomticas aceitas; 4) e seguir princpios do direito internacional. Um quinto pr-requisito, mais subjetivo, dizia respeito a aceitao de normas e prticas da sociedade internacional civilizada, que inclua rejeio a poligamia e a escravido, consideradas no-civilizadas e assim, inaceitveis.
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Este trabalho lida com a posio do Imprio Otomano e do Imprio do Brasil
nesse quadro geral. poca, no era fcil classific-los como brbaros ou selvagens,
mas os governos e as elites polticas de ambos trabalharam arduamente para obter
reconhecimento de civilizao e fazer parte, assim, do primeiro grupo. Nisso, ambas as
entidades obtiveram sucesso apenas parcial. Este trabalho argumenta que, no processo
da busca por reconhecimento, ambos os imprios investiram vastos recursos materiais e
intangveis, como pode ser visto nas reformas de suas respectivas capitais ou na nfase
dada s exposies universais. Esta tese sugere, tambm, que em grande medida o
esforo por reconhecimento fugiu ao controle dos respectivos governos: enquanto eles
trabalharam para estabelecer relaes diplomticas formais uns com os outros, seguindo
o padro europeu, a realidade imps-se na forma de vastas levas imigratrias informais e
indesejadas tanto na origem quanto na chegada. Essas ligaes informais e revelia dos
projetos governamentais de um e outro lado tiveram e tm grande vulto e ajudam a
explicar a evoluo das relaes entre essas comunidades no-europeias.
1.2 Membership, legitimidade, reconhecimento e soberania
A busca pela obteno de membership, por parte de entidades no-europeias, faz-
se presente ento. Trata-se de termo difcil de traduzir para o portugus em sua acepo
aqui tratada, mas que seria algo como associao, adeso, incluso ou simplesmente
busca pela qualidade de membro. A verdade, porm, que membership passa a ideia
de que, para fazer parte de um grupo, uma comunidade poltica deve seguir regras
definidas por terceiros, seguindo uma clara lgica de incluso e excluso na arena
internacional.
O Imprio Britnico ao longo do sculo XIX foi a grande potncia de destaque na
sociedade internacional de ento. Com o mundo restaurado aps o Congresso de
Viena era, por ordem decrescente de influncia, para a Inglaterra, para a Frana, e
tambm a ustria e a Rssia que se voltam os novos Estados ascendentes e os antigos
imprios decadentes em busca de reconhecimento e respeito por sua legitimidade e
soberania.
Para pases transatlnticos, dependentes do comrcio martimo, o decisivo era, no fundo, a deciso da potncia naval e mercantil por excelncia, a Gr-Bretanha. Esta, por sua vez, condicionava seu julgamento final a algumas questes centrais, duas das quais irrenunciveis: a celebrao de acordos que
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lhe garantissem liberdade de comrcio e a abolio do trfico de escravos (Ricupero, 2011: 139-40). Os princpios da legitimidade expressam concordncia social mnima sobre quem
est autorizado a participar das relaes internacionais, e tambm sobre as formas
apropriadas de sua conduta (Clark, 2005: 2). Um Estado ser reconhecido como
independente e legtimo (seja por legitimidade dinstica ou nacional)15, celebrando
tratados e estabelecendo relaes diplomticas, no significava, porm, ser visto
necessariamente como membro pleno da sociedade internacional. Boa parte dos no-
europeus, mesmo reconhecidos como legtimos e soberanos, acabaram permitindo, ou se
viram forados a permitir, direitos extraterritoriais de potncias ocidentais - um
importante indicador de status de inferioridade e subordinao, comprovando ser sua
soberania apenas parcial16.
Extraterritorialidade refere-se ao regime legal no qual um Estado clama jurisdio
sobre seus cidados que residem em outro pas. O Brasil oficialmente s a manteve por
um certo perodo, at 1844, como herana do Imprio Ultramarino Portugus, na forma
dos juizados conservadores britnicos. O Imprio Otomano, que concedia capitulaes a
naes europeias desde o sculo XV e as considerava um gesto de boa vontade por parte
dos sultes para com os infiis, ao longo do sculo XIX (mais especificamente de 1825 a
1923), viu-se refm de ao extraterritorial crescente por parte de potncias europeias em
seus territrios. A Prsia tambm concedia capitulaes de forma anloga aos otomanos,
mas estas tambm mudaram seu status em 1828, com o Tratado de Turkmanchai, e s
foram extintas com Reza Khan Pahlevi em 1928. No Japo, os direitos extraterritoriais
15 A forma de governo escolhida pelos Estados tambm devia obter legitimidade interna e externa no perodo em tela. Durante os sculos XVII e XVIII era a legitimidade dinstica e religiosa que prevalecia. Nestes, os interesses e as razes do soberano impunham-se coletividade por direito divino. O Estado moderno contava ainda, como seu principal atributo, com a soberania sobre seu territrio. Detentor da soberania sobre um determinado territrio e sobre sua populao, o monarca derivava a sua legitimidade do universo religioso e da concepo de reino dinstico. Este direito divino foi aos poucos posto em xeque em funo das ideias iluministas, sendo acelerado com a Revoluo Francesa. Entre todas as transformaes trazidas com esta, a contestao da legitimidade dinstica seria muito importante, mas no definitiva uma vez que o Congresso de Viena marcou o movimento de retorno o status quo ante. A Santa Aliana, formada pelas grandes potncias, conferiu-se o direito de interveno em territrios soberanos sempre que a ordem, entendida como a ordem monrquica, fosse ameaada por movimentos revolucionrios. Esta se estabeleceu para fazer frente s ondas liberais e nacionalistas na Europa, mas tiveram implicaes nas Amricas, que passaram a temer a interveno desta em apoio a tentativas de recolonizao. As bases da legitimao do Estado de forma estritamente dinstica estavam irremediavelmente corrodas. A partir de 1848, com a Primavera dos Povos, a legitimao dos Estados europeus passou cada vez mais a emanar a ideia de nao e no do direito divino do soberano. Crescia a importncia da legitimidade nacional. (Santos, 2004: 35-38) 16 Alguns os denominam em funo destes direitos por semicolnias. Outros chamam a atuao das potncias neste sentido de Imperialismo legal ou Imperialismo informal.
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existiram de 1856 a 1899 e, na China, de 1842 a 1943. Estados ocidentais usaram cortes
extraterritoriais para estender sua autoridade sobre Prsia, Japo, China e Imprio
Otomano, embora essas no fossem colnias europeias. Ao faz-lo, estes Estados
limitaram a autoridade dos sistemas legais locais e o fizeram, por vezes, com colaborao
de grupos das elites locais (Kayaolu, 2010: 1).
Assim, embora essas entidades fossem formalmente reconhecidas como
independentes e soberanas, no eram membros plenos da sociedade internacional de
ncleo europeu. O que faltava a eles era o chamado padro de civilizao. Em ambos
os casos a permanncia da escravido era um item importante, embora esta tivesse
especificidades em cada parte. No caso otomano, a garantia de vida, liberdade e
propriedade estrangeira por vezes se embolava com a condio dos cristos otomanos e
este foi um importante item nas relaes complexas do Imprio Otomano com as
potncias europeias.
1.3 - Os imprios perifricos
A Escola Inglesa clssica denomina as entidades no-europeias que demandavam
adeso ao longo do sculo XIX exatamente de Estados no-europeus (non-Europeans),
no-ocidentais (non-Western) ou mesmo de marginais. Faz grande sentido denomin-
los Estados marginais, uma vez que viviam margem do meio social em que queriam
estar integrados. O termo marginal, porm, carrega, em portugus, tambm o sentido
de delinquente, fora-da-lei, que no o caso aqui. Poderia ainda optar-se por termos
como subordinado, secundrio, subalterno, intermedirio, mas a verdade que
se considera aqui vlido o uso do termo perifrico para caracterizar os Estados
existentes no perodo em tela que no eram nem potncias e nem colnias desamparadas.
Estados perifricos so ento, entidades polticas consideradas soberanas e
assim reconhecidas - mesmo que somente por um tempo -, pela sociedade internacional,
mas que se mantinham sua margem em termos de atividade, poder ou importncia. Em
termos da geografia do poder, o centro foi composto por boa parte do tempo por alguns
Estados europeus, a saber: Gr-Bretanha, Frana, Imprio Habsburgo, Prssia e Rssia. A
Alemanha ps-unificao mantm o posto de potncia que j era da Prssia e a Itlia
unificada tambm o ganhava ento.
Outras entidades perifricas incluam, por exemplo, Estados de menor porte
como Marrocos, Afeganisto, Repblica de Natlia, Estado Livre de Orange, Repblica
Sul-Africana, Texas e Hava, assim como as entidades que surgiram na Amrica
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Hispnica, todas intituladas repblicas, seja em funo do exemplo estadounidense ou da
inteno ostensiva de se colocar em contraponto Europa. digno de nota, porm, que
na Amrica Hispnica, por um momento, Simon Bolvar aspirou a um imprio regional
tambm, mas este no vingou. J Estados Unidos, China, Prsia, Sio (Tailndia), Brasil
e Imprio Otomano eram os imprios perifricos.
A utilizao da expresso imprio por parte de entidades perifricas no sculo
XIX foi politicamente orientada. Para uns denotava poder em expanso e avano em
direo a modernidade, conforme evidencia o caso brasileiro (Lieven, 1995: 607). Para
outros, carregava conotao negativa, j fosse pelo componente de explorao
comumente associado ao imperialismo, como no caso norte-americano, j fosse
expresso de decadncia de um ideal universal como nos casos otomano e chins, nos
quais a identidade civilizacional era definida em termos universais antes da decadncia
tpica do sculo XIX.
O termo periferia popularizou-se no mbito poltico internacional como o
conjunto dos pases pouco desenvolvidos em relao s grandes potncias, estas
consideradas como centro de um sistema socioeconmico mundial. Esse sentido adveio
da teoria da dependncia, popularizada na dcada de 1960 e reforada com a teoria do
sistema-mundo na dcada seguinte17. No mbito deste trabalho, a opo pelo termo
periferia no descarta a noo anteriormente popularizada e ao junt-lo ao termo imprio
procura-se justamente aqui apresentar um outro olhar possvel para a configurao
internacional da segunda metade do sculo XIX e incio do XX. Imprio perifrico
procura passar a id