Post on 11-Apr-2017
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Sempre no Meu Coração
Barbara Cartland
Coleção Barbara Cartland nº 3
Um novo e inesperado rumo na vida de lady Gracila
No dia em que lady Gracila Sheringham descobriu que seu noivo, o duque de Radstock, era
amante de sua madrasta, levou um terrível choque… Então, seu próprio casamento tinha sido
arranjado apenas para facilitar os encontros daqueles traidores imorais?
Revoltada, sem poder revelar nada ao pai, Gracila não sabia como escapar aquela horrível união.
Afinal, estava rejeitando um dos homens mais cobiçados de todo o império britânico! Desnorteada,
Gracila resolveu fugir. Mas, sozinha, que seria dela? Quem se importaria em ajudar uma moça
desamparada que não podia sequer revelar sua identidade?
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NOTA DA AUTORA
A história do presente livro se passa durante a época da rainha Vitória. Educada desde
cedo num ambiente severo, ela não tinha amigas nem confidentes e sua maior
preocupação era preparar-se para suas futuras obrigações de governante. Foi um reinado
muito longo (1837/1901) e, desde que subiu ao trono, Vitória mostrou uma inabalável
rigidez de princípios. Ela passou então a representar uma nova moral e um novo estilo de
vida, que causou, na época, uma impressão muito favorável entre as camadas populares.
Em 1840, Vitória casou-se com seu primo Alberto, com o qual teve nove filhos e uma vida
familiar harmoniosa. Entretanto, apesar de ser muito querida e respeitada, Vitória sofreu
seis atentados contra sua vida. Este romance se inspira, entre muitos outros
acontecimentos, num desses atentados…
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CAPÍTULO I
1842
Millet colocou um avental cinza e sentou-se à mesa da copa, sobre a qual
dispusera a prataria.
Era o momento da noite que mais apreciava, pois havia ordenado aos criados que
fossem dormir e agora encontrava-se inteiramente a sós.
Sabia limpar a prataria como ninguém, usando para tanto aquela parte mais
polpuda do polegar, aliás, uma técnica que havia aprendido quando era criado.
Incrementara e elaborara a tal ponto sua técnica que qualquer peça de prata que
passasse por suas mãos adquiria um brilho extraordinário.
Naquela noite, Millet havia decidido empreender uma tarefa muito especial. Tirou
do cofre-forte, quase do tamanho de uma pequena sala, uma taça de prata com base de
cristal de rocha e que quase o fez perder a respiração, tão admirado ficou ao contemplá-la
pela primeira vez.
Tinha sido desenhada pelo famoso prateiro sir Martin Bowes, em 1554, e há
muitos e muitos anos não via a luz do dia.
Estava muito necessitada de uma boa limpeza, e Millet acariciou-a delicadamente
com a ponta dos dedos, à maneira de um homem que tocasse a mulher amada.
De fato, a prata era para Millet uma verdadeira paixão, e ele sofreu um duro golpe
quando teve de deixar a coleção do conde de Sheringham, de cuja limpeza e manutenção
fora encarregado durante quase trinta anos.
Naquele momento, não queria pensar em semelhante assunto e sim concentrar a
atenção nos tesouros que descobria continuamente no novo emprego.
Sabia que logo aquilo se tornaria uma obsessão, da qual não poderia mais se
desligar dia e noite.
A taça de prata, com seus ornatos na base e no bocal, e que representavam deusas
nuas em meio a folhagens, era, no gênero, a mais bela peça que Millet jamais vira.
Sentiu um formigamento no polegar, pois estava mais do que disposto a iniciar a
tarefa, e colocou um pó branco em um pires, esfarelando-o até que ficasse finíssimo. Em
seguida, lançou mão do pedaço de linho com que costumava trabalhar.
Justo nesse instante, bateram à porta da copa, e Millet levantou a cabeça, cheio de
impaciência.
Era um homem muito distinto e os criados da casa gostavam de caçoar dele,
dizendo-lhe que parecia um bispo.
— Quem é? — perguntou, não cuidando de disfarçar o tom de impaciência com
que se expressava.
Como se a pergunta fosse um convite para entrar, o vigia noturno abriu a porta e
sorriu, tímido.
— Ah! É você! Estou ocupado. Hoje à noite não teremos tempo de bater um papo.
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— Está aí alguém que quer vê-lo, sr. Millet.
— Uma visita? — indagou Millet, ainda irritado.
Não suportava que o interrompessem quando estava entregue à ocupação de
limpar a prataria.
Antes que perguntasse quem o estaria visitando, àquela hora da noite, uma figura
esguia passou pelo vigia e entrou na copa.
Millet contemplou-a espantado, pois tratava-se de uma mulher, com um véu a
ocultar-lhe o rosto. Não tinha a menor idéia de quem se tratava ou por que viera vê-lo.
Assim que o vigia fechou a porta, a desconhecida levantou o véu. Millet, muito
espantado, levantou-se.
— Milady!
— Ficou surpreso em ver-me, Mitty? Sei que já é tarde, mas tinha certeza de que
você ainda não tinha ido dormir.
— Pois não, Milady. Mas não devia sair a esta hora da noite.
Puxou uma cadeira, limpou-a com a barra do avental e fez um gesto para a
inesperada visita.
— Sente-se, Milady.
A jovem agiu conforme ele lhe solicitava, mas antes tirou a pesada capa de
montaria que usava por cima de um traje de veludo e removeu da cabeça o chapéu de
copa alta.
Colocou-o sobra a mesa, ao lado das taças de prata, e ajeitou o cabelo com as mãos.
Parecia que um raio de sol havia penetrado na penumbra da copa. A luz difusa do
lampião iluminava as mechas douradas daquela farta cabeleira e também os olhos grandes
e expressivos, estranhos, de um azul-hortênsia.
As pestanas, grandes e encurvadas, pretejavam nas pontas, conferindo-lhe um ar
jovem e primaveril.
Ao contemplá-la, sentia-se que os problemas e dificuldades deste mundo jamais
haviam-na atingido e nem deveriam fazê-lo.
— Veio sozinha, Milady?
A jovem voltou-se para Millet, com um sorriso nos lábios. . — Vim cavalgando
César. Está lá fora, amarrado a um poste.
— Sozinha! E veio montada em César! Sabe que seu pai não vai gostar nem um
pouco!
— Há tanta coisa de que meu pai não gosta, portanto, uma a mais não tem a
menor importância.
A jovem exprimia-se com uma determinação que Millet jamais havia notado, e ele
a fitou, apreensivo.
Achou que o fidalgo faria muito bem em preocupar-se um pouco mais com uma
filha tão linda quanto lady Gracila.
Millet, no entanto, havia aprendido a duras penas que o patrão sempre tem razão
e aguardou em silêncio uma possível explicação.
Sabia que lady Gracila contaria o porquê de sua visita, em um momento em que já
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deveria estar recolhida a seu quarto, no castelo de Sheringham.
— Sente-se, Mitty — disse lady Gracila, empregando o apelido que lhe dera em
criança.
Aquilo lhe trazia recordações tão gratas, que o velho Millet sentia vontade de
chorar pelos dias felizes que nunca mais voltariam.
— Sentar-me, milady? — perguntou, surpreso.
— Ora, Mitty, pare de ser tão formal e respeitoso. Preciso de uma ajuda, como
precisei quando perdi mamãe e você era a única pessoa que podia me consolar.
A voz de lady Gracila oscilou um pouco e percebia-se que ela estava comovida.
Millet sentou-se e encarou-a, ansioso. A jovem lhe pareceu um tanto pálida e não
tão feliz quanto ele desejaria.
— O que a está preocupando, milady? — perguntou, com uma inflexão toda
especial na voz, que utilizava quando queria que ela lhe confiasse seus problemas, desde
pequena.
— Fugi de casa, Mitty.
— Milady não pode fazer uma coisa destas! Seu casamento está marcado para
daqui a alguns dias!!!
— Não posso me casar com o duque! Simplesmente, não posso! — declarou lady
Gracila. — E por isso que você tem de me ajudar, Mitty.
Percebeu que o velho mordomo havia ficado muito espantado, e após um
momento prosseguiu:
— Esperei até que a casa mergulhasse no silêncio e então deixei um bilhete para
papai, em cima de meu travesseiro. Saí pela porta dos fundos. César veio ao meu encontro,
assim que assoviei. Selei-o e vim a galope, a fim de encontrá-lo!
— Mas, milady…
— Não pretendo voltar e não fui tola a ponto de vir até aqui de mãos vazias.
Trouxe alguns de meus melhores vestidos e uma valise com tudo aquilo de que for
necessitar.
Millet contemplou-a, boquiaberto.
— Mas milady não pode ficar aqui…
— Tenho de ficar, Mitty. Você não compreende. Este é o único lugar em que
jamais pensariam me encontrar.
Deu uma risada irônica, desprovida de humor.
— Papai jamais seria capaz de supor que eu faria algo tão repreensível quanto vir
para a mansão do barão!
— Mas, milady…
— Sei que você vai querer discutir, Mitty, mas antes pegue meus vestidos e minha
valise. Agora é tudo o que possuo neste mundo.
Millet abriu a boca, pronto para protestar, mas lady Gracila contornou a situação,
dizendo em um tom quase de súplica, absolutamente irresistível:
— Por favor, Mitty. Por favor, Mitty, querido, faça o que lhe peço.
O mordomo deu um suspiro e saiu da copa, fechando a porta.
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Assim que ele saiu, lady Gracila levou as mãos ao rosto, em um gesto como que de
defesa.
— Tenho de ficar aqui — disse a si mesma. — Para que outro lugar poderia ir?
Não quero que me encontrem… Além do mais, estou com muito pouco dinheiro.
Antes de fugir do castelo, pensou em todos os meios possíveis de conseguir
fundos. Até aquele momento de sua vida, precisara de apenas algumas moedas, e assim
mesmo para dá-las como esmola nas missas, aos domingos.
Trouxera entretanto todas as jóias de sua mãe que não se encontravam guardadas
no cofre.
Era impossível apoderar-se das demais, pois o novo mordomo do castelo não era
como o velho Mitty, e sem dúvida teria recusado abrir o cofre e entregar as jóias, sem que
para isso houvesse permissão de seu pai.
Tentou ser prática e imaginar de que recursos lançaria mão, antes de fugir do
castelo.
Durante o tempo todo, um único pensamento a atormentava, a convencia que
precisava escapar, custasse o que custasse: jamais casaria com o duque.
Tinha sido tola e imatura, ao permitir que a levassem a aceitar a idéia daquelas
núpcias.
Tudo aquilo tinha sido artimanha de sua madrasta, que, aliás, não encontrou a
menor oposição a seus planos. Era uma mulher astuta e inteligente. Gracila se deu conta
de que, comparada a ela, não passava de uma jovem crédula e ignorante.
Parecera-lhe tão excitante ser cortejada pelo duque de Radstock e receber a notícia
de que seria sua esposa…
Sabia muito bem que todas as jovens de seu conhecimento ambicionavam
semelhante posição. Não somente o duque era um dos nobres mais importantes e ricos do
país, como também era um desportista consumado. Seus cavalos de corrida ganhavam
quase todas as competições, trazendo-lhe sempre maior glória.
— Os diamantes da família Radstock são fantásticos. Superam até mesmo os da
rainha — comentara certa vez sua madrasta.
Dissera aquilo como quem não quisesse nada, mas havia em sua voz um nota de
inveja que mal conseguia disfarçar.
— E você será a camareira-mor da rainha — prosseguiu. — Participará de todos os
bailes oficiais. Murmura-se que a rainha tem um fraco pelo duque! Aliás, é fato sabido que
Sua Majestade gosta de homens bonitos!
Tudo aquilo era por demais perturbador.
Gracila amava cavalos e como sempre havia vivido em um enorme castelo, não se
deixou impressionar pelos comentários relativos ao palácio de duque, repleto de tesouros
colecionados há muitos séculos.
Ficou um pouco desapontada pelo fato de seu pretendente dirigir-se em primeiro
lugar a seu pai, em vez de consultá-la antes a respeito de seus sentimentos. O bom senso
levou-a porém a concluir que jamais passaria pela cabeça do duque que alguém pudesse
recusá-lo. Afinal de contas, ele era o partido mais cobiçado de todo o Império britânico!
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Sua madrasta havia feito um breve comentário, relativo ao fato de o duque ter sido casado.
Sua esposa, porém, tinha morrido e não fazia muito sentido debruçar-se sobre o passado
ou constatar, que ele tinha idade suficiente para ser seu pai.
A imaginação de Gracila a tinha levado a sonhar com uma vida de duquesa e ela
deixou de cogitar sobre o duque enquanto homem e enquanto marido. Ele lhe parecia um
ser nebuloso, como um dos heróis míticos do passado. Tais seres, para ela, eram mais reais
do que as pessoas que encontrava em sua existência diária.
Era muito mais jovem do que seus irmãos e irmãs. Sentia-se, portanto, muito
solitária e nos livros que lia com avidez sempre encontrou a companhia de que precisava.
Suas babás e governantas aconselhavam-na continuamente a poupar olhos.
— Esta menina só quer saber de ler, ler, ler! — dizia a babá que a havia
amamentado. — Quando tiver a minha idade, vai ser cega como um morcego! Tome nota
do que estou dizendo!
Gracila não dava ouvidos a semelhantes comentários. Sabia que os livros
estimulavam-lhe a imaginação e transportavam-na para o país das fadas, onde tudo
transpirava beleza e felicidade.
Além do mais, lá não havia mulheres desagradáveis, donas de voz esganiçada, e
que a atormentassem continuamente, como fazia sua madrasta.
O ressentimento de Gracila não era devido ao fato de que a nova condessa de
Sheringham estava tomando o lugar de sua mãe; não é que tivesse ciúmes, por perder as
atenções de seu pai. O instinto lhe dizia que Daisy Sheringham não era uma boa mulher.
Não conseguia explicar para si mesma o que o instinto lhe ditava. Sabia apenas
que por mais que quisesse superar seus sentimentos tinha horror a estabelecer quaisquer
contatos com a madrasta. Deveria, portanto, ter ficado bastante desconfiada, quando Daisy
lhe comunicou que ela se casaria com o duque de Radstock.
Eu estava cega… completamente cega… como um gatinho que ainda não abriu os
olhos, pensava Gracila, rememorando o acontecido. .
Esta constatação só fazia exacerbar seu desespero, e ainda se sentia fisicamente
mal, a exemplo do que sucedera naquela tarde, quando a verdade lhe foi revelada.
O duque viera hospedar-se no castelo, a fim de terminar os preparativos para o
casamento.
Gracila, até então, estivera muito poucas vezes com seu pretendente. De acordo
com os velhos costumes, jamais ficou a sós com ele, exceto durante os breves momentos
em que seu pai lhe ordenara vir até o Salão Vermelho onde ela encontrava o duque. Nem
sequer sabia que o homem com quem ia se casar achava-se no castelo.
Sentiu-se portanto muito surpreendida ao vê-lo e a timidez apoderou-se dela no
momento em que teve consciência de que ele a contemplava.
Fez-lhe uma reverência bastante polida, mas sentia-se envergonhada demais para
levantar os olhos.
— Sua madrasta já deve ter lhe comunicado, Gracila, que o duque de Radstock
deu-nos a grande honra de pedir sua mão em casamento. Quer falar com você e portanto
vou deixá-los a sós.
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O conde saiu do aposento e Gracila, com o coração quase a lhe saltar pela boca,
esperou, de olhos baixos.
— Tenho certeza de que seremos felizes, Gracila, e espero que goste do anel que
lhe trouxe.
Enquanto falava, tomou sua mão esquerda e enfiou-lhe nos dedos um anel com
um diamante enorme.
— Obrigada… é muito… belo… — balbuciou, esforçando-se para superar a
confusão que experimentava.
— Está na minha família há quase quinhentos anos. Faz parte de um adereço
completo - colar e tiara - e que você usará após nosso casamento.
— Vai me dar muito prazer.
O duque não respondeu e Gracila, surpreendida com seu silêncio, levantou os
olhos.
Ele a contemplava de um jeito estranho, como se a estivesse inspecionando, à
procura de algo, e ela não tinha a menor idéia de que se tratava.
Finalmente, o duque declarou, sorrindo:
— Você é muito bonita, Gracila. Tenho certeza de que será reconhecida como uma
das mais belas duquesas de Radstock. E olhe que já houve muitas!
— Muito obrigada — respondeu Gracila, com simplicidade. Havia em sua voz um
pouco mais de calor do que antes e ela ficou a imaginar se o duque iria beijá-la. Em vez
disso, ele levou a mão da jovem a seus lábios e naquele exato momento o conde entrou na
sala.
Mais tarde, quando se encontrava sozinha, Gracila tentou esclarecer para si
mesma o que pensava dele.
Tinha certamente uma bela aparência, mas, afinal de contas, tratava-se de um
homem bem mais velho. Os cabelos estavam ficando grisalhos nas têmporas e seu corpo já
não tinha mais a elegância atlética de um jovem.
— Será que eu gostaria que ele me beijasse? — perguntou-se Gracila.
Estranho, como era inexperiente naquele assunto! Jamais tinha sido beijada, mas
imaginava que, como expressão de amor, deveria ser algo maravilhoso.
Mas como? E que espécie de sentimento um beijo evocaria?
Nos livros que lera, especialmente os franceses, o amor era descrito como um
sentimento muito emocionante. Parecia ser também um modo de transporte, que levava os
que o experimentavam a perseguir o impossível e até mesmo a sacrificar suas vidas.
— Será que eu conseguiria sentir isso pelo duque? Quando ele deixou o castelo, na
manhã seguinte, ela ainda não tinha encontrado a resposta.
Ele voltou uma semana antes do casamento e ela tomou a firme solução de
conhecê-lo melhor.
Mesmo às voltas com o enxoval, que lhe ocupava todas as horas disponíveis,
Gracila entregava-se a seus pensamentos secretos.
Achou difícil concentrar-se nos presentes, que chegavam ao castelo em profusão,
bem como nas centenas de cartas de congratulações e nas infindáveis conversas de sua
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madrasta, relativas ao futuro.
O casamento sempre tinha sido colocado como o grande objetivo da vida, desde
que ela deixou os cuidados da babá e começou a aprender a ler e escrever.
— Você precisa concentrar-se no aprendizado da aritmética — dizia-lhe
continuamente a governanta. — O que acontecerá, se o seu marido descobrir que você é
incapaz de cuidar corretamente das despesas caseiras?
— Espere até casar e ter filhos. Nesse momento compreenderá — respondia-lhe a
babá, quando ela lhe perguntava algo a respeito de crianças.
Ambas pareciam não saber falar de mais nada. A babá não perdia uma deixa, a
governanta, pelo visto, tinha sido incumbida de prepará-la para a vida de uma mulher
casada; a madrasta censurava sua aparência o tempo todo.
— Você nunca conseguirá marido, Gracila, com esse seu ar de cigana! Cuide-se,
menina!
— Os homens detestam as mulheres espertas e marido algum há de querer uma
mulher assim! Pare de ler e vá para o quarto costurar um pouco!
Tudo o que as pessoas lhe diziam encerrava a preocupação com o homem que um
dia a desposaria.
Gracila afagava a idéia de que seu pretendente seria um cavaleiro perfeito, como
sir Galahad, aventureiro como Ulisses e belo como lorde Byron.
Como sua governanta reprovava os poemas de lorde Byron, lia-os na biblioteca do
castelo, a exemplo do que fazia com numerosos outros livros que teriam sido confiscados,
caso fosse surpreendida a lê-los em outro lugar.
Havia um cantinho na biblioteca que tornou-se seu lugar preferido. Tratava-se do
espaço compreendido entre uma altíssima janela e o pesado reposteiro de veludo
vermelho que a cobria. Era um esconderijo perfeito e quem entrava na biblioteca não o
percebia.
Lá se punha a devorar todos os livros que lhe interessavam. Um belo dia,
concentrada em um poema, não percebeu que alguém entrava na biblioteca. Reconheceu
logo a voz de sua madrasta e do duque.
— Eles jamais haverão de me descobrir - pensou Gracila. Prosseguiu na leitura,
pois não desejava ouvir o que diziam. Ouviu, no entanto, que mencionavam seu nome e
levantou a cabeça, intrigada.
— Gracila é tão jovem, tão inexperiente, que jamais suspeitaria, a menos que
alguém lhe dissesse — comentava sua madrasta.
— Com efeito — respondeu o duque. — A juventude e a inocência vem-lhe de
proteção.
— Você tem razão e será maravilhoso poder vê-lo sem maiores dificuldades.
Podemos ficar com você, como também você poderá vir ficar aqui conosco.
A condessa soltou um profundo suspiro e acrescentou:
— Oh, querido! Estes anos foram insuportáveis sem você! Gracila sentiu que um
frio lhe percorria a espinha. Como era possível sua madrasta dizer tais palavras, em um
tom de voz que jamais empregara?
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— Precisamos tomar muito cuidado — declarou o duque.
— Mas é claro! Esta noite, porém, não devemos temer nada, querido.
— Hoje? Mas com George em casa?
— Está resfriado e dormirá em outro quarto. Virei ao seu encontro. Ah, Andrew,
se você soubesse o quanto o quero, o quanto preciso de você!
— Minha pobre Daisy! Não podíamos prosseguir com aquela situação! Como é
que eu poderia adivinhar que Elise morreria apenas seis meses após nosso casamento?
— O destino estava contra nós, mas voltarei a tê-lo! Se soubesse quanta falta você
me fez! Nunca encontrei um homem tão bonito e tão atraente quanto você.
Fez uma pausa e, baixando a voz, declarou com paixão:
— Não há ninguém no mundo que possa ser um amante tão maravilhoso…
Gracila teve a impressão de que havia se transformado em uma estátua de pedra.
Fez-se silêncio e ela teve certeza de que o duque beijava sua madrasta. Após
alguns momentos, a porta da biblioteca fechou-se e ela concluiu que estava a sós.
Durante alguns instantes, não conseguia nem mesmo se mexer e sentiu um
enorme vazio interior, incapaz de entender o que acabava de se passar. Finalmente,
enfrentou a verdade.
O duque era amante de sua madrasta e tal situação já existia antes mesmo que ela
desposasse seu pai.
Quando o conde voltou a se casar, nunca ocorreu a Gracila que sua madrasta fosse
desejável não somente como esposa, mas também como mulher.
Havia lido vários livros, sobretudo franceses, que falavam de mulheres de meia-
idade à procura do amor, em uma busca desesperada e geralmente trágica, mas jamais
imaginou que aquilo poderia ocorrer um dia em seu próprio lar.
Seu pai era um homem um tanto rígido, e devido ao fato de ela ser a caçula da
família, ele sempre lhe parecera muito velho, mesmo quando ela era apenas uma criança.
Sua mãe o amara e sempre tinha sido feliz com ele, mas quando o conde casou-se
pela segunda vez tratou sua esposa, tão mais nova do que ele, como uma criança a quem
tivesse de proteger e mimar.
A mãe de Gracila ficou com a saúde abalada, após seu nascimento, mas mesmo
assim parecia surpreendentemente jovem e em algumas ocasiões assemelhava-se por
demais à sua filha mais moça.
Somente quando ela morreu, Gracila entendeu que companheira perfeita ela tinha
sido, sentindo-se perdida e solitária.
Foi então que o conde deixou-se cativar por uma mulher resoluta e sofisticada.
Daisy proporcionava-lhe, em sua velhice, tudo aquilo de que ele sentia falta.
Agora, porém, Gracila compreendia porque havia desconfiado instintivamente de
sua madrasta e porque as coisas que ela dizia tantas vezes lhe pareciam trazer a marca da
falsidade.
Quando, finalmente, saiu de seu esconderijo, na biblioteca, sentiu que o choque da
revelação a tornara um pouco mais velha.
Colocou o livro no lugar exato de onde o havia tirado. Sabia que jamais consentiria
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em casar com um homem que não a amava.
— Como foi possível eles se comportarem daquela maneira? — perguntou a si
mesma, ao mesmo tempo em que um calafrio a percorria, pois sofria intensamente pelo
que tinha acontecido.
Foi para seu quarto, mudou de roupa e desceu para o jantar, procurando
aparentar muita calma. Ao deparar com sua madrasta e o duque, teve a sensação de que
era a única espectadora em um teatro, enquanto que no palco desenrolava-se uma trama
das mais desagradáveis.
Seu pai procurava ser simpático, desempenhando com a maior gentileza o papel
de anfitrião perfeito. Era evidente que se sentia muito feliz por ter alguém tão importante
quanto o duque como seu genro.
Se ao menos ele soubesse! Pensou Gracila.
Pela primeira vez encarava a madrasta não como alguém que tivesse autoridade
sobre ela, mas como uma mulher imoral. Não lhe escapou o quanto era atraente, mas
agora a odiava por exibir seus encantos.
Observando melhor, percebia claramente que havia algo equívoco no modo como
a condessa falava e se movimentava e que também se revelava através da expressão de
seus olhos.
Era um dado significativo unicamente para quem estivesse a par do enigma.
Ficou a imaginar o que poderia fazer para não se engajar naquele horrível
compromisso e chegou à conclusão de que a única solução possível seria fugir.
Não poderia magoar seu pai, contando-lhe a verdade. Sabia que, quando
declarasse não mais desejar casar-se, sua decisão seria interpretada como um capricho.
Suas objeções, a menos que conseguisse fundamentá-las, seriam desconsideradas.
Em breve se veria constrangida a desposar um homem que não tinha o menor
interesse nela como pessoa, a não ser na medida em que ela lhe propiciaria a oportunidade
de prosseguir sua relação com a madrasta!
Gracila sentiu que não podia mais continuar no castelo, pois sabia muito bem o
que aqueles dois tramavam para mais tarde.
— Preciso fugir! Tenho de desaparecer daqui!
Nenhum de seus parentes a acolheria, pois todos ficariam pasmos, ao saber que
ela havia rejeitado alguém tão importante quanto o duque, e isto no último momento.
Suas amigas teriam idêntica reação e pensou na cólera das dez damas de honra
que haviam sido escolhidas por sua madrasta entre as mais importantes famílias da
nobreza do país. Gracila estremeceu.
Todas elas tinham mandado fazer vestidos caríssimos; as flores para seus buquês
já tinham sido encomendadas; o rico broche de diamantes, com suas iniciais entrelaçadas
com as do duque, presente das damas de honra, já haviam chegado ao castelo.
Os convidados, após a cerimônia, seriam recepcionados em um imenso pavilhão,
decorado especialmente para a ocasião.
Como era possível cancelar tudo isto? Mas não havia outra solução.
Havia uma única alternativa, a fim de impedir o casamento: desaparecer.
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Durante todo o jantar a mesma pergunta voltava sem cessar à mente atormentada
de Gracila. — Para onde irei? Para onde irei? Não lhe escapava o sorriso disfarçado de sua
madrasta, ao contemplar o duque de soslaio, enquanto seu pai discorria sobre a situação
política.
— Champanhe, milady?
O tom de impaciência com que o mordomo lhe falava fez Gracila perceber que ele
já havia se dirigido a ela por mais de uma vez. Foi então que lhe ocorreu a solução
salvadora: Millet!
Fora sua madrasta que despedira o velho Millet, alegando que não gostava dele e
não confiava em seu trabalho.
Millet sempre fizera parte da família e era inconcebível que, após trinta anos no
castelo, fosse despedido.
Sua madrasta, no entanto, não gostava de criados que eram mais leais ao conde do
que a ela.
Agora, ocorria a Gracila um outro motivo.
Os criados sempre sabiam de muita coisa e nunca deixavam de fazer comentários!
Millet pareceu-lhe o salva-vidas providencial, lançado a um náufrago. Depois de
seu pai e sua mãe, era o ser a quem ela mais amava no mundo.
Uma das primeiras palavras que aprendera a dizer foi Mitty, enquanto lhe
estendia os braços, tentando andar.
Sempre que conseguia fugir da vigilância da babá ia correndo para a copa, onde
sentava-se no colo de Mitty, contemplando extasiada a prataria que ele tirava do cofre-
forte, especialmente para lhe mostrar.
Ele sempre a presenteava com frutas do pomar do castelo, às escondidas da babá.
— Mitty me dará abrigo.
Ao pensar nele, sentiu que o céu se desanuviava. Sabia onde ele tinha ido
trabalhar, desde o dia em que se despediu dela, com os olhos banhados de lágrimas.
Nos seus trajes de todos os dias ele parecia um homem bastante simples e não
lembrava o imponente mordomo, parecido com um bispo, sempre muito solícito para com
os convidados ou a servir as refeições dos donos do castelo.
— E agora, o que você vai fazer? Para onde vai, meu querido Mitty? — indagou
Gracila.
— Encontrarei outro emprego, milady. No momento, vou ficar com minha irmã.
— A sra. Hansell, no solar do barão?
Mitty fez que sim, pois sentia um aperto na garganta e não conseguia falar.
— Mas quando chegar lá, prometa que vai me comunicar seu novo endereço!
— Prometo sim, milady.
— E que vai se cuidar!
— Pensarei muito em milady. Nunca deixarei de pensar.
— E eu também pensarei em você, querido Mitty.
Ao dizer esta frase, passou os braços em volta do pescoço do velho mordomo e
beijou-o, como fazia quando era pequena.
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Não se importava com o que pensassem ou dissessem. Mitty fazia parte de sua
vida e pertencia-lhe, de um modo como sua madrasta jamais conseguiria.
Não teve forças para dizer mais nem uma palavra, enquanto ele subia em uma
pequena carruagem, que o levou e a sua insignificante bagagem para bem longe do único
lar que ele havia conhecido durante trinta anos.
— Mas como é que o senhor foi deixar que minha madrasta despedisse Millet?
Justamente Millet, papai? —'- perguntou Gracila ao conde, assim que soube o que estava
acontecendo.
— Você sabe muito bem que nunca interfiro nos assuntos domésticos, Gracila —
replicou o pai, com grande frieza.
— Mas Millet trabalha conosco desde que nasci! Aliás, muito antes, pois já estava
aqui antes de o senhor se casar com mamãe!
— Sua madrasta diz que ele não está mais dando conta de suas tarefas.
— Não é verdade! Todo mundo elogia as pratas, quando temos algum jantar de
cerimônia, e o senhor sabe, tanto quanto eu, que as famílias aqui da região fazem questão
de empregados que tenham sido treinados por Millet!
— Não tenho elementos para discutir, Gracila. Deixo estes assuntos nas mãos de
sua madrasta.
Era uma resposta insatisfatória e Gracila sabia que seu pai sentia-se constrangido.
Sem dizer mais nada, saiu da sala, fechando a porta com força.
Trancada no quarto, chorou copiosamente, como só tinha feito por ocasião do
enterro de sua mãe, pois sabia que após a partida de Millet se sentiria mais sozinha do que
nunca.
Como é que não pensei nele imediatamente? Perguntou-se, sentindo que agora
tudo ficava bem mais simples.
Era impossível saber como, mas de alguma maneira Millet resolveria seu
problema, pois ele não fizera outra coisa no passado!
A porta da copa abriu-se, dando passagem a Millet.
Carregava em uma das mãos uma enorme trouxa, dentro da qual estavam os
vestidos de Gracila, e na outra, a valise. Ambos pesavam um bocado, porém César era um
cavalo bastante forte, treinado por Gracila desde que era potro.
Millet colocou a trouxa e a valise sobre duas cadeiras e aproximou-se de Gracila.
Ao contemplar sua expressão, sentiu que iriam ter um momento difícil.
— Trouxe suas coisas para cá, milady, porque me pediu, mas assim que estiver
descansada, volto a colocá-las em cima do cavalo e a mandarei de regresso para casa.
— Não tenho a menor intenção de voltar, Mitty, devido a… a razões que eu não…
não posso lhe contar. Juro-lhe, porém que há um forte motivo que me impede de desposar
o duque.
Millet olhou-a com ar de surpresa. Conhecia-a desde o dia em que nascera e agora
deparava-se com algo que nunca havia notado antes, algo que lhe dizia que ela havia
passado por um grande choque.
O que poderia ter acontecido?
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Percebeu que aquela jovem, a quem amava mais do que a tudo neste mundo,
estava profundamente preocupada.
— Tem algo a ver com sua madrasta! — disse com seus botões, declarando em
seguida:
— Se quer mesmo fugir, milady, deve ir à procura de sua avó. Ela sempre a amou.
— E que conselhos você acha que ela me daria, Mitty? Desposar o duque, é claro!
Gracila respirou fundo e, estendendo os braços para Mitty, fez um gesto para que
ele voltasse a sentar-se a seu lado.
— Ouça, Mitty, sabe que confio em você e você tem que confiar em mim. Juro que,
com exceção de você, ninguém mais me obrigaria a voltar para o castelo e desposar o
duque. Sei que você acreditará em mim, se eu lhe disser que prefiro a morte. Tenho certeza
absoluta de que seria um erro casar com ele. Se mamãe estivesse viva, ela diria exatamente
a mesma coisa. Você acredita em mim, Mitty?
— Acredito, sim, mas qual é a solução?
— Quero que você me dê refúgio aqui, na mansão do barão, onde ninguém
pensará em me procurar, até que o reboliço causado pelo meu desaparecimento diminua
de intensidade e o duque aceite a situação.
— Mas não posso fazer uma coisas destas, milady!
— E por que não?
— Porque o senhor voltou. Ele está aqui na casa!
— Lorde Damien!
— Sim, milady, chegou há três dias!
CAPÍTULO II
Durante alguns momentos Gracila, atônita, não conseguiu dizer sequer uma
palavra.
— Mal posso acreditar! — declarou, quando conseguiu refazer-se da surpresa. —
Ele não vem aqui há doze anos!
— É verdade, milady.
— E ele voltou mesmo de vez?
— Sim, milady. Chegou da Itália.
Durante os últimos anos sempre havia quem desse notícia do jovem lorde Damien,
que fora visto em Roma, Veneza, Palermo, Nápoles e diversas cidades italianas. Toda vez
que se referiam a ele, pairava no ar um certo mistério.
Gracila desconfiava que as pessoas se sentiam um tanto chocadas, toda vez que ela
se referia a lorde Damien, mas ao mesmo tempo achavam excitante falar a seu respeito.
Ela era jovem demais para entender o que havia sucedido, quando explodiu
aquele famoso escândalo.
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Tinha apenas seis anos, mas ao rememorar aquela história, parecia-lhe que
durante toda sua vida lorde Damien fora tema de conversas não só entre os adultos, na
sala de estar do castelo, como entre os criados. Sempre lhe pareceu que os adultos
conversavam diante das crianças como se estas fossem surdas ou débeis mentais.
Não custou muito para descobrir que havia algo misterioso, secreto e ao mesmo
tempo excitante, relativo àquele jovem que deveria herdar um dia o solar do barão.
Inicialmente, pareceu-lhe que ele havia cometido algo terrível, quem sabe um
assassinato ou a pilhagem de algum tesouro sem preço.
Mais tarde compreendeu que tudo aquilo girava em torno de uma mulher. O que
ouvia a seu redor era bastante revelador.
— Ele sempre foi muito atirado, mas nunca imaginei que pudesse acontecer
semelhante coisa!
— E possível imaginar coisa mais desagradável? Imagine que ele estava a serviço
da rainha Adelaide no mês anterior!
— Querida, eu os vi em Paris, na Ópera, em meio ao maior descaramento e ela
usava jóias fantásticas!
— Claro, não resta a menor dúvida que ele é belo como um deus, mas mesmo
assim… fugir com ele!
Inicialmente não tinha consciência do que estava fazendo, mas percebeu que aos
poucos tentava juntar pedaços das frases que eram ditas ao seu redor, procurando montá-
las como se se tratasse de um quebra-cabeças.
Acabou finalmente por conhecer toda a verdade!
O fato não se deu através de sua mãe, que jamais fazia comentários sobre a vida
alheia, mas, para grande surpresa, de seu pai, quando morreu seu grande amigo, o velho
lorde Damien.
— Que absurdo! Sinto-me envergonhado, ao pensar que seu único filho não estava
presente em seu enterro! Acreditei que aquele renegado viria, a despeito de tudo o que
aconteceu no passado!
— Ouvi dizer que Virgil se encontra na índia — replicou sua mãe, com aquela
delicadeza de sempre.
— Pois, na minha opinião, deveria estar aqui, no desempenho de seus deveres! É
intolerável, que um de nossos vizinhos mais chegados, seja um homem de péssima
reputação!
A sós com seu pai naquela mesma noite, Gracila perguntou-lhe, muito nervosa:
— O que foi que o novo lorde Damien fez, papai, para que o senhor e as outras
pessoas refiram-se a ele com tamanha severidade?
— Ele “ultrapassou todos os limites da conveniência!
— De que forma, papai?
Seu pai hesitou, como se a estivesse considerando jovem demais para saber do que
se tratava, mas logo declarou:
— Acho melhor você saber a verdade, pois se eu não lhe disser alguém mais vai
colocá-la a par do assunto!
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— As pessoas sempre falam dele, papai.
— O que, aliás, não é nada surpreendente!
— O que foi que ele fez que é assim tão condenável?
— Fugiu com a marquesa de Lynmouth!
Gracila fitou seu pai com os olhos arregalados. Sabia o quanto a marquesa era
importante. Visitara algumas vezes seu castelo, em companhia dos pais, e aquele lugar lhe
parecera frio e pouco hospitaleiro, apesar de inspirar grande respeito.
— Ela era mais jovem do que ele e além do mais estrangeira. A gente nunca deve
confiar nessas mulheres de fora, mas isto não é desculpa para o fato de Damien ter agido
como um salafrário!
Gracila não conseguiu obter outras informações de seu pai, mas agora tinha a
chave do enigma e foi-lhe fácil acabar de montar o quebra-cabeça.
O jovem lorde Virgil Damien foi muitíssimo mimado, desde criança, segundo a
babá confidenciou à mãe de Gracila. Tinha muitas qualidades e era bastante brilhante sob
vários aspectos, porém dono de um temperamento fogoso e bonito demais para poder
proporcionar qualquer paz de espírito às mulheres.
Era inevitável que o belo sexo se apaixonasse por ele, a exemplo da marquesa de
Lynmouth.
Pelo visto, todo mundo sabia quando eles se encontravam clandestinamente,
cavalgando lado a lado pelos bosques, onde achavam que ninguém os veria. Que engano!
Os olhos curiosos dos caçadores, camponeses e mulheres da aldeia vigiavam-nos de perto
e eles estavam sempre dispostos a revelar o que tinham visto.
As duas únicas pessoas que não percebiam o que estava acontecendo eram o
marquês e lorde Damien, seu pai.
Para eles foi um choque total quando se soube que a marquesa e Virgil tinham
fugido.
O condado pegou fogo e as línguas não paravam de falar. Foram levantados os
mínimos detalhes e criou-se uma grande expectativa em torno das atitudes que o marquês
com toda certeza haveria de tomar.
Para grande decepção de todos, ele não fez nada!
Não se trancou entre as quatro paredes de seu castelo e continuou com suas
tarefas de sempre, participando de reuniões e comitês, patrocinando competições
esportivas e promoções cívicas. Nunca discutiu ou mencionou com quem quer que fosse o
que tinha se passado.
Seu comportamento foi digno, distinto, honroso e muito aplaudido pelo pai de
Gracila.
— Não imaginava que Lynmouth fosse capaz de se respeitar tanto — ele
comentou com sua esposa, uma ocasião em que Gracila encontrava-se por perto.
Ela conseguiu entender o desapontamento das pessoas, ao constatar que o
marquês não havia tomado nenhuma atitude dramática.
— Era de se imaginar — comentou a governanta com a babá —, que um cavaleiro
como o marquês ter-se-ia batido em duelo, exigindo a volta de sua esposa.
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— Talvez ele não queira que ela volte — retrucou a babá.
— Ele não poderá voltar a se casar, a menos que se divorcie dela.
— Pois, se quer saber minha opinião, o marquês já teve suficientes mulheres em
sua vida e com uma mulher daquelas não se pode censurar o que aconteceu!
Gracila havia notado que, enquanto as senhoras como sua mãe e suas amigas
censuravam a marquesa, os cavaleiros consideravam que Virgil havia se comportado
como um tolo.
— Aquele idiota perdeu a cabeça! — ouviu um senhor de suas relações comentar,
sem perceber que ela se encontrava presente. — Que necessidade havia de fugir, quando
podia perfeitamente aproveitar-se da caça sem abandonar o lar?
Quando Gracila ficou mais velha, parecia-lhe muito estranho que o dono da
mansão do barão e herdeiro do título ainda vivesse no exílio. Soubera, com efeito, que a
marquesa com quem havia empreendido a sensacional fuga, abandonara-o e já não
estavam mais juntos.
Um ano após a morte de seu pai — aliás, no mesmo ano em que o pai de Gracila
voltou a casar-se —, começaram a circular boatos relativos ao novo lorde Damien.
— Ele faz um tremendo sucesso em Paris — confidenciou uma das amigas de sua
madrasta. — Encontrei-o, lá, em uma recepção. Na noite seguinte encontrava-se no teatro
com uma mulher tão fabulosa que todos os homens presentes, em vez de olharem para o
palco, olhavam para seu camarote!
— Quem era? — perguntou a madrasta de Gracila.
— Uma das grandes cocotes de Paris… Minha cara, poucas vezes vi jóias
semelhantes! Era de ficar sem fôlego!
A conversa encaminhou-se para a moda e para as jóias, mas todas as pessoas que
haviam viajado pela Europa traziam notícias de lorde Damien.
Quando ouviu dizer que se encontrava na Itália, Gracila invejou-o.
Que vontade sentia de estar naquele país ensolarado, visitar os edifícios e estátuas
magníficas sobre os quais lera nos livros… os jardins Borghese, a Fontana di Trevi, o
Coliseu, São Pedro!
Em sua imaginação, tais lugares eram o cenário ideal para um homem que tinha a
beleza do poeta lorde Byron e cuja vida era igualmente objeto de tantos comentários.
A coincidência não parava aí, pois seu poeta favorito também tivera de fugir do
país por estar envolvido em muitos escândalos… E agora, por mais incrível que parecesse,
quando todos já haviam desistido de vê-lo retornar à pátria, lá estava ele!
Gracila percebeu que enquanto se entregava aos devaneios da imaginação, Millet
esperava, cheio de paciência.
— Milady percebe a posição difícil em que se encontra. Siga meu conselho, volte
para casa e diga ao senhor conde que não tem o menor desejo de se casar com o senhor
duque. Tenho certeza de que conseguirá persuadi-lo.
— Meu pai não entenderia e em absoluto não lhe posso dizer a razão pela qual,
por nada deste mundo, eu desposaria o duque!
Gracila exprimia-se com paixão e nesse momento notou um lampejo de
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compreensão nos olhos de Millet.
Ele sabe, pensou. Antes de sair de casa, deve ter descoberto que minha madrasta
não é o que aparenta ser!
Millet talvez não soubesse nada a respeito do duque, mas tinha acompanhado seu
pai e a madrasta quando foram a Londres passar uma temporada, como faziam todos os
anos.
Naquela ocasião, habitavam a tristonha casa de Hanover Square durante dois
meses e Gracila ficava no castelo.
Se houvesse um amante na vida da madrasta, a possibilidade era de que houvesse
outros e os criados, como sempre, acabariam sabendo.
Millet não disse nada e Gracila compreendeu que ele, no momento, tinha desistido
de persuadi-la a voltar para casa.
— Veja bem, Mitty, este é um lugar onde ninguém pensará em procurar por mim,
sobretudo se lorde Damien estiver aqui. Depois de tudo o que se murmurou a seu
respeito, no passado, duvido que ele receba tantos visitantes assim.
— Também acho, milady. Ao mesmo tempo, como é possível que fique a sós com
um homem, sobretudo alguém como lorde Damien? Sua reputação sofreria sérios danos,
milady!
— Concordo, se as pessoas soubessem que me encontro aqui, mas acontece que
ninguém ficará sabendo, nem mesmo lorde Damien!
— Quer dizer, então, que milady espera que eu a esconda?
— E por que não? A mansão do barão é suficientemente grande para esconder um
batalhão do exército, se for necessário! Além do mais, se eu for dar crédito a tudo que se
comenta a respeito de lorde Damien, duvido que ele permaneça aqui durante muito
tempo.
Aquele lugar era aborrecido demais para um homem que, segundo se dizia,
sentia-se mais à vontade no meio de festas ou até mesmo de orgias…
— Ouvi falar dos fantásticos bacanais que ele dá em seu palazzo em Veneza —
dissera certa vez sua madrasta, com uma ponta de inveja, segundo pareceu a Gracila.
— Bacanais? — indagou a amiga com quem conversava. — E o que acontece?
— Bem que gostaria de saber! — respondeu a condessa. -— Emily estará de volta
na semana que vem e ela nos contará. Não há o que ela não saiba!
Acontece que sua madrasta, em vez de esperar a visita da amiga, foi procurá-la e
Gracila nunca soube o fim da história.
— Tenho certeza, Mitty, de que lorde Damien não vai permanecer aqui durante
muito tempo. Tranqüilize-se, portanto, e esconda-me.
— Mas não posso, milady! Não é só porque não gosto de enganar o senhor conde,
que sempre me tratou como um cavalheiro. Acontece que não quero perder meu novo
emprego. Estou ficando velho, milady, e para mim seria muito difícil conseguir trabalho
em outra casa.
— Oh, Mitty, como foi possível minha madrasta mandá-lo embora? Foi uma
maldade e eu chorei demais quando você partiu!
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— Ela tinha suas razões, milady.
— Não duvido! — retrucou Gracila, revoltada.
Millet voltou a lhe lançar um olhar significativo, antes de responder:
— Já que não pode voltar para casa, milady, precisamos pensar em outro lugar.
— Não tenho para onde ir. Cansei de pensar no assunto. A coisa se complica na
medida em que não tenho dinheiro algum.
— Não tem dinheiro?
— Trouxe algumas jóias de minha mãe, mas mesmo que você as vendesse para
mim, teria muito medo de ir sozinha para Londres!
— Está fora de cogitação, milady! Impossível!
— Pois então, receio Mitty, que você vai ter de me abrigar…
O velho mordomo contemplou-a e certificou-se de que não haveria nenhuma
outra solução. Como poderia deixar aquela linda criança — e Gracila, para ele, não
passava daquilo — atirar-se sozinha em um mundo que desconhecia? Estremeceu ao
pensar no que podia acontecer com ela.
Decidiu que, se o fato de lhe dar abrigo implicaria em sua ruína futura, então,
valia a pena correr o risco, pois era um preço por demais pequeno para a felicidade que
ela lhe proporcionara, desde que era um bebê.
Ao olhar para trás, parecia-lhe que toda sua vida girara em torno de suas pratas e
de lady Gracila.
Amava-os com tanta dedicação que era difícil pensar neles como algo separado.
— Sim, eu a esconderei, milady, mas vai ter de me jurar que em hipótese alguma
aparecerá diante de lorde Damien.
— Querido Mitty, você sabe que não quero lhe causar problemas. Obrigada, do
fundo do coração! Sabia que você não me desapontaria.
— Lembre-se, milady, não aprovo o que estou fazendo. Como bem sabe, o bom
criado é fiel a quem o paga, e lorde Damien espera que eu seja tão leal para com ele quanto
espero que ele seja para comigo.
— Parece-me que lorde Damien não se encontra em posição de criticar o que
acontece nesta casa, pois abandonou-a há muito tempo.
Subitamente, ocorreu-lhe algo.
— Lorde Damien veio sozinho?
— Trouxe somente um valete em sua companhia, e que está com ele desde que ele
era um menino. Eu o conheço. Chama-se Dorkins e é de uma aldeia da redondeza.
Gracila quedou-se pensativa e logo notou que Mitty assumia uma expressão
enigmática. Lembrou-se de que quando ele organizava uma festa ou dava ordens aos
criados, assumia um ar autoritário que inspirava grande respeito. Naqueles momentos não
se parecia nem um pouco com o bondoso, gentil e compreensivo Mitty, a quem ela sempre
procurava nos momentos difíceis.
— Espere um pouco, milady, que vou procurar minha irmã. Ela tem de participar
de nosso segredo.
— Claro! Confio na sra. Hansell como confio em você. Millet saiu da copa e
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Gracila sentou-se, contemplando pela primeira vez os tesouros que ele havia espalhado
sobre a mesa.
Era bem o que ela esperava: encontrar Mitty limpando a prataria, tarde da noite,
quando todo mundo já tinha ido dormir!
Sentiu-se subitamente fraca e exausta, pois o pior já ficara para trás. O choque por
que passara naquela tarde, aliado à necessidade de fugir de casa, dava-lhe agora uma
enorme vontade de chorar.
Tudo aquilo era horrendo e sórdido! Sua madrasta tinha um amante às escondidas
de seu pai e confiava que seu casamento com o duque seria um biombo, atrás do qual
ficaria escondida aquela ligação infame!
Talvez conseguissem enganar seu pai, mas a ela durante quanto tempo
enganariam? Como poderia imaginar que a mulher que desposara seu pai e tomara o
lugar de sua mãe seria capaz de comportar-se de modo tão imoral? Ou que o duque, que
afinal era um cavalheiro, casar-se-ia com o objetivo de prosseguir sua ligação com a
amante?
Gracila sentia-se até certo ponto atingida por toda aquela podridão, mas chegou à
conclusão de que precisava ter um pouco mais de equilíbrio e compreender que as
pessoas, de fato comportavam-se daquela maneira. Poderia parecer incompreensível, mas
era algo que fazia parte da natureza humana e da fragilidade que lhe era inerente.
Havia encontrado aquela situação em vários livros, mas eles lhe pareciam irreais.
Nunca lhe passara pela cabeça que semelhante coisa pudesse acontecer a pessoas como
seu pai ou a ela própria.
Acho que é porque sou muito jovem e ignorante, pensou.
A porta da copa abriu-se e a sra. Hansell entrou.
Era uma senhora de certa idade, com uma expressão de grande bondade, muito
parecida com seu irmão. Usava um severo vestido negro e de sua cintura pendia um
molho de chaves.
— Milady! Milady! — exclamou. — Mal posso acreditar que se encontra aqui!
— E não é só isso, sra. Hansell. Mitty já deve ter dito que preciso de sua ajuda.
— Disse-me sim, milady, mas juro que não sei o que a senhora sua mãe pensaria
disto tudo!
— Se mamãe fosse viva, sra. Hansell, garanto que ela compreenderia por que tive
de fugir e porque sei que o único lugar onde me encontro a salvo é com o meu querido
Mitty e também com a senhora, é claro.
— Milady, eu a conheço desde que era um bebê e jamais poderia recusar seu
apelo. Rezo apenas para estar agindo de modo correto.
—- Estarei muito bem em sua companhia e na de Mitty e é só isso que importa.
— Muito bem, vou instalar milady em um quarto ao lado do meu — respondeu a
sra. Hansell, disposta a tomar uma atitude prática, a partir do momento que chegara a
uma solução.
Sua atenção voltou-se para a bagagem de Gracila e de repente exclamou:
— Tenho uma idéia melhor! Se eu instalar milady no fim do corredor da ala oeste
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do castelo e ficar com o quarto ao lado, a criadagem não perceberá nada. Lorde Damien
acaba de voltar e no momento conto apenas com algumas criadas mais velhas, nas “quais
tenho confiança absoluta. Talvez seja obrigada a contratar mais gente e milady sabe como
as mulheres falam!
— Sei, sim, e acho sua idéia muito boa.
Conhecia aquela casa muito bem, pois seu pai costumava visitar o velho lorde
Damien nos últimos dias de sua vida e ela várias vezes o acompanhou até o solar do
barão. Enquanto os dois fidalgos conversavam, ela ia à procura da sra. Hansell, que
sempre a levava para dar uma volta pela casa.
Enquanto Gracila seguia a sra. Hansell escadas acima, sentia como se estivesse
regressando ao passado.
Chegaram finalmente ao quarto situado no fim do corredor.
— Estive pensando, milady… O que poderíamos dizer para explicar sua presença
aqui na casa?
— Talvez eu pudesse ser apresentada como sua sobrinha, sra. Hansell…
— Seria muito lisonjeiro, mas garanto que milady não se parece nem um pouco
com as sobrinhas que vieram me visitar aqui na mansão.
Gracila lembrava-se que elas também tinham ido visitar Millet. Tratava-se de
mulheres robustas, mães de numerosos filhos.
— Acho que o mais plausível, milady, seria apresentá-la como uma senhora de
boa família, que na verdade é, e que está passando por uma situação difícil.
— Se por situação difícil quer significar falta de dinheiro, então acertou em cheio,
no que me diz respeito!
— Antes de vir trabalhar nesta casa, há quinze anos, era empregada de sir Ronald
Deering, que era um cavalheiro muito agradável.
— Sim, lembro-me de que Mitty contou que a senhora estava a serviço dele, em
Londres.
- Acontece que sir Ronald começou a enfrentar determinadas dificuldades, pois
gostava de jogar, além do que fez maus investimentos. Acabou fechando sua casa,
despedindo a criadagem e é por isto que me encontro aqui.
Gracila limitava-se a ouvir. Sabia muito bem o que a sra. Hansell ia lhe dizer, mas
pressentia que a governanta não gostava que a apressassem.
— Que tal dizermos que milady é uma das netas de sir Ronald, e que não tinha
mais ninguém para sustentá-la, após a morte e a falência do avô?
— Acho uma idéia esplêndida! Basta lembrar que meu nome é Deering, o que aliás
não é nada difícil. Como é esperta, sra. Hansell! Inventou uma ótima história!
— Ainda bem que milady aprova.
— E tenho certeza de que Mitty também aprovará. Também conseguirei explicar a
presença de César. Afinal de contas, a neta pobre de sir Ronald ainda pode possuir um
cavalo!
— Isto não quer dizer, milady, que sir Damien deve tomar conhecimento de sua
presença. Thomas, a quem Millet está acordando neste momento, poderá cuidar do cavalo.
23
É casado com uma prima nossa.
— Então, podemos confiar nele.
— Amanhã de manhã conversarei com Cable. É um bom homem, apesar de um
tanto lento no seu raciocínio.
Cable era um dos criados mais graduados da casa e estava no solar do barão há
muitos e muitos anos.
A sra. Hansell tirou da trouxa os vestidos de Gracila e pendurou-os no guarda-
roupa. Eram muito vistosos e Gracila achou seu preço excessivo, mas a madrasta resolvera
que ela deveria trajar-se como uma verdadeira duquesa.
Duvido que alguém me verá usando estes lindos vestidos, mas pelo menos terei o
prazer de desfilar com eles neste casarão vazio, pensou Gracila.
Ocorreu-lhe subitamente um pensamento: se mais tarde encontrasse meios de se
sustentar, aqueles trajes cairiam muito bem em uma governanta ou uma dama de
companhia.
Não havia outras carreiras apropriadas para uma senhora de posição e Gracila,
tomada de pessimismo, achou que não teria sorte suficiente para alcançar tal situação.
A sra. Hansell parecia estar adivinhando os pensamento de Gracila e declarou,
enquanto esvaziava a valise:
— Não se preocupe com o futuro, milady. Dentro de alguns dias as coisas
parecerão muito melhores do que hoje.
— Duvido. Papai e minha madrasta esperam que eu volte antes das bodas, apesar
de eu ter deixado bem claro que jamais casarei com o duque!
— Sem dúvida haverá uma enorme perturbação! Milady, tem certeza de que está
tomando a atitude correta?
Era como se a governanta se sentisse na obrigação de fazer um último apelo a
Gracila, mas esta sabia ao mesmo tempo que a sra. Hansell, a exemplo de Millet, tinha
uma certa intuição dos motivos de sua fuga.
— Não posso me casar com o duque, sra. Hansell, e não tenho a menor intenção
de voltar para casa, até que papai e ele aceitem minha decisão.
— Muito bem milady, já que resolveu assim, não voltaremos ao assunto.
Esperemos que ninguém venha à sua procura nesta casa.
—- É o último lugar que investigariam.
— Espero que milady tenha razão.
Por fim a sra. Hansell desejou-lhe boa noite e Millet trouxe-lhe um copo de leite
quente, acompanhado de alguns biscoitos de chocolate. Para ele, Gracila não passava de
uma menina.
Ao ver-se a sós, Gracila despiu-se lentamente, examinando com prazer o aposento
que lhe fora destinado. Os reposteiros de veludo eram recamados de fina renda e o pesado
leito de carvalho era ricamente esculpido.
Sentiu naquele momento que todos os problemas e dificuldades por que estava
passando acabariam por importar muito pouco, a exemplo do que havia sucedido com os
antepassados da família Damien, que haviam dormido naquele quarto.
24
Talvez eles tivessem sentido medo um dia!
Talvez tivessem fugido!
Talvez tivessem lutado por aquilo que acreditavam ser justo!
Gracila sentiu-se reconfortada com este último pensamento.
Ao deitar-se, sentiu-se rodeada por fantasmas gentis, que sem dúvida alguma
velariam por ela.
Ao fechar os olhos, começou a pensar em lorde Damien, que se encontrava no
outro lado da enorme casa e imaginou o que ele estaria sentindo naquele instante.
Será que está contente por ter voltado? E por que regressou, após tanto tempo?
Tais questões, no momento, pareciam sobrepujar seus próprios problemas.
Como deveria ter sido estranho viver durante doze anos longe da Inglaterra e de
tudo aquilo que lhe era familiar…
Lorde Damien agora devia ter trinta e um anos, pois era um rapaz de dezenove
quando fugiu com a marquesa.
Era mais velha do que ele, e a despeito da descrição preconceituosa de sua babá e
da governanta, todos concordavam que se tratava de uma linda mulher. Gracila, mais uma
vez, juntou tudo o que se dizia a seu respeito, a fim de compor um quadro mais completo.
A marquesa era morena, com cabelos negros como ébano e um par de olhos
fantásticos que, segundo um dos criados do castelo, eram capazes de fazer o coração de
um homem parar de bater, no momento em que ela o encarasse.
Gracila ficara por demais intrigada com a fuga daqueles dois, e agora parecia-lhe
incrível que aquela aventura romanesca tivesse alguma ligação com sua própria vida.
O principal ator, o jovem Romeu, como alguém o descrevera com ironia,
encontrava-se ali. Ela dormia em sua casa, apesar de ele ignorar o fato.
— Não importa o que a sra. Hansell e Mitty digam, mas preciso vê-lo, só para
constatar se ele se parece de fato com lorde Byron. Tenho de decidir por mim mesma se ele
é tão perverso quanto dizem.
Ainda conseguia escutar a voz de seu pai dizendo para a esposa:
— Aquele demônio partiu o coração do pai. Como nos sentiríamos, Elizabeth, se
um filho nosso agisse de semelhante maneira?
Havia uma certa hesitação no tom de voz do conde, pois para ele era uma tristeza
ter uma única filha do segundo matrimônio. A primeira esposa dera-lhe três filhos.
Gracila tinha pouco contato com seus meio-irmãos, todos casados, e que
raramente vinham ao castelo.
O conde era muito jovem quando nasceram. Nunca se deram muito bem com o
pai e tinham muito pouco interesse em Gracila.
— Talvez o que eu precise é de um irmão de verdade, com o qual possa contar e
que apóie minha decisão de não desposar o duque.
Ficou a imaginar se lorde Damien, a exemplo daquele hipotético irmão,
compreenderia as razões que a haviam levado a dar um passo tão decisivo.
Afinal de contas, ele tinha fugido de casa, ainda que por razões muito diversas!
— Garanto que muita gente há de pensar que minha atitude foi covarde.
25
Na verdade, semelhante ato exigira-lhe muita coragem. Houve um determinado
momento, quando cavalgava César, em direção à mansão do barão, em que sua
determinação fraquejou e ela quase voltou atrás.
Os trinta quilômetros que separavam as duas casas tinham-lhe parecido uma
distância enorme e subitamente sentiu que cavalgava em direção ao desconhecido.
Era como se alguém a estivesse tentando, no sentido de regressar e tornar-se uma
duquesa, esquecer o que ouvira na biblioteca e fingir que nada tinha se passado.
Certificou-se logo de que isto teria sido possível com qualquer outra mulher que
não sua madrasta. Tratava-se, porém, de alguém que tinha ocupado o lugar de sua mãe,
que se casara com seu pai e era simplesmente impensável aceitar aquela sujeira!
Não, não fraquejarei! Não volto em hipótese alguma e não terei medo de nada! O
que estou fazendo é certo, pensou Gracila.
Tinha toda razão em tomar aquela resolução e não se prestar a um papel
desprezível! Fazia muito bem em não rebaixar seus ideais! Agora sabia que se sentiria
contente por não ter sido covarde a ponto de regressar, quaisquer que fossem as surpresas
que o futuro lhe reservava.
Era quase uma ironia que lorde Damien, de quem se falava horrores, fosse agora
seu protetor, apesar de desconhecer sua presença naquela casa.
Era lorde Damien que a impediria de ser descoberta e ser levada de volta, a fim de
enfrentar a situação.
Devido ao fato de gozar de uma reputação lamentável, ninguém jamais imaginaria
que uma jovem tão inocente quanto Gracila estaria escondida em sua casa, principalmente
quando aquele monstro de devassidão encontrava-se lá!
Gracila sorriu, imaginando o quanto as amigas maledicentes de sua madrasta
ficariam horrorizadas, ao saberem o que estava acontecendo.
Que prato cheio! Quanto assunto para fofocas e mais fofocas!
— Sabe para onde foi a noivinha fujona? Para a mansão do barão!
— Isto só pode ser mais uma façanha de lorde Damien!
— Mas como será que ela o encontrou?
— E isso lá importa? Está lá, em sua companhia!
— Vocês estão dizendo que Gracila se acha na mansão do barão? Sempre imaginei
que aquela garota não era absolutamente o que parecia!
— Ainda bem que o pobre duque descobriu, antes de enfiar-lhe o anel no dedo!
— Para ele será muito fácil encontrar outra noiva, mas agora é pouco provável que
Gracila Sheringham consiga marido!
Ao ouvir esse comentário todas ririam e uma delas diria:
— De uma coisa podemos ter certeza: lorde Damien não se casará com ela! Jamais
desposou as dezenas de mulheres que passaram por sua vida e por que haveria de
começar agora?
Gracila riu de suas fantasias. Tinha a impressão de estar assistindo a uma peça de
teatro! Em seguida veio-lhe o pensamento de que, pelo menos por respeito a seu pai,
ninguém deveria saber que ela e lorde Damien encontravam-se sob o mesmo teto.
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CAPÍTULO III
Gracila esgueirou-se por uma das portas dos fundos da mansão e caminhou
cautelosamente em direção ao regato que desembocava no lago. Era a primeira vez que
ousava sair, desde que chegara à mansão do barão. Os jardins que a rodeavam nunca lhe
pareceram mais belos e recendiam ao perfume de mil flores.
Desde a morte de lorde Damien, há dois anos, ninguém mais se ocupava
seriamente com os canteiros e agora tudo parecia selvagem e luxuriante. Os encarregados
do inventário haviam decidido dispensar todos os criados jovens e conservar apenas
aqueles que estavam, há muitos anos a serviço da família Damien e que em breve se
aposentariam.
A sra. Hansell tinha conseguido manter a casa quase no mesmo estado em que se
encontrava, enquanto lorde Damien vivia, mas os jardineiros não foram capazes de domar
a natureza. Agora tudo parecia sem governo, como se as próprias plantas tivessem gosto
em se sentir livres, espalhando-se por todos os lados.
Estava tudo tão belo que Gracila sentiu vontade de dançar como uma ninfa por
entre os canteiros. Poderia existir algo mais fantástico do que o mês de maio na Inglaterra?
Teria sido por isso que lorde Damien regressara ao lar?
Apesar de viverem sob o mesmo teto, era-lhe difícil descobrir algo a seu respeito.
Sempre que fazia perguntas, a sra. Hansell respondia através de monossílabos e Millet
tomava idêntica atitude.
— Mitty, conte-me o que lorde Damien vai comer no jantar?
— perguntou na véspera, quando o velho mordomo trouxe-lhe a refeição em uma
bandeja.
Comia em um pequeno aposento anexo a seu quarto, transformado pela sra.
Hansell em sala de estar.
— É quase o mesmo que milady está comendo.
Logo em seguida Millet mudou de assunto, demonstrando claramente que não
tinha a menor vontade de falar de seu novo patrão.
Os dois irmãos, pelo visto, temiam que ela começasse a ficar interessada em lorde
Damien. Gracila morria de vontade de dizer-lhes que esse interesse existia desde que ela
era criança.
Mais cedo ou mais tarde, apesar do que eles pudessem dizer, pretendia vê-lo. A
coisa, entretanto, não era nada fácil. Lorde Damien dormia na outra ala da mansão e não
havia lugar onde ela pudesse esconder-se a fim de contemplá-lo a descer a imponente
escadaria ou andar pelos vastos corredores.
— Tenho que dar tempo ao tempo — disse Gracila com seus botões.
Uma coisa era certa: não poderia contar com Millet ou com a sra. Hansell.
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— Vou sair, preciso tomar um pouco de ar fresco — disse à governanta.
Vira-se forçada a permanecer no quarto ou na sala de estar durante todo o dia e
sentia-se como uma prisioneira, sobretudo ao contemplar o sol brilhando no firmamento.
— Impossível, milady — respondera a sra. Hansell com firmeza. — Não tenho a
menor idéia de onde lorde Damien se encontra no momento e sabe tanto quanto eu o que
aconteceria se ele a visse!
— E mesmo? E o que aconteceria?
— Milady teria de ir embora, mesmo que achasse ruim. Gracila sabia que ela tinha
razão, mas ao mesmo tempo sentiu estar sob os cuidados de uma governanta muito severa
ou, o que era pior, de uma babá super protetora.
Tinha certeza de que a sra. Hansell, achava que sua inquietação poderia levá-la a
fazer algo de que se arrependeria mais tarde, mas para sua grande surpresa dissera-lhe
naquela manhã:
— Hoje vai poder dar um passeio, milady.
— E verdade? Que coisa esplêndida! E por quê?
— Lorde Damien só voltará dentro de algumas horas e o seu valete afirmou que
ele almoçará fora.
— Isto quer dizer que posso passar a manhã no bosque! A senhora bem sabe o
quanto o aprecio nesta época do ano.
— Lembro-me de determinada ocasião, em que milady não podia ter mais de
cinco ou seis anos. Fui visitar Millet e milady trouxe-me algumas rosas por ela colhidas.
Era uma flor entregando outra flor! Estava dizendo a Millet ontem à noite que milady não
mudou.
— Espero que tenha crescido mais um pouco!
— Mas o rosto é o mesmo. Tão parecida com sua querida mãe, que nunca
demonstrava a idade que tinha e parecia uma menina, até o dia em que morreu.
— Ela foi sempre muito bonita — disse Gracila, comovida.
— Preparei seu banho, milady, e escolhi um dos vestidos mais simples. Os demais
são suntuosos e não ficaria bem sentar-se no gramado usando um daqueles trajes da corte!
— Tomarei muito cuidado. Tenho a impressão de que meus vestidos vão ter de
durar muito tempo…
Não esperou pela resposta da sra. Hansell. Tomou banho e serviu-se de um farto
café da manhã na pequenina sala de estar.
O sol dardejava através das janelas e ela sentiu-se muito animada, como se
estivesse indo para um baile.
Agora que se encontrava lá fora, compreendia que não havia a menor necessidade
de apressar-se. Podia entregar-se ao gozo de tudo aquilo e com os dedos tocou as enormes
pétalas de uma magnólia. Aquela árvore dava-se muito bem na mansão do barão e Gracila
lembrou-se do quanto o falecido lorde Damien orgulhava-se de suas árvores.
— Não há muitos jardins na Inglaterra onde as árvores floresçam com tanto
esplendor… — ele comentava, toda vez que alguém elogiava suas plantas.
Para Gracila, as magnólias personificavam o Oriente sobre o qual tanto lera e
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desejava ardentemente conhecer um dia.
Quem sabe poderia viajar para o Egito, Pérsia ou índia, países que tinham uma
aura misteriosa e exótica e uma beleza tão irresistível e mística quanto à magnólia que
segurava naquele momento!
Prosseguiu em seu passeio e aproximou-se do regato que desembocava no lago.
Suas águas eram profundas e apresentavam-se muito cristalinas. Através delas conseguia
perceber dezenas de trutas que nadavam com uma agilidade de lhe dar inveja.
— Que bom se eu pudesse nadar deste jeito… — disse para si mesma.
Lembrou-se que quando era criança banhava-se no lago do castelo. Quando fez
dez anos disseram-lhe que já estava crescida demais para aquilo, pois alguém poderia vê-
la.
— Mas quem é que se interessaria em me ver? E que importância tem, se alguém
ver-me? — indagou.
Sabia que para aquela pergunta não havia resposta possível. A natação era algo
proibido para uma menina de boa família, que só poderia se banhar se estivesse coberta
por um traje de banho da cabeça aos pés.
Crescer era uma amolação, pensou Gracila naquele momento, e mesmo agora
ainda achava que não podia existir nada mais enfadonho!
Afinal de contas, por que tinha que pensar em se casar? Não tinha feito nenhuma
escolha e de repente via-se envolvida naquela situação desastrosa. Na realidade, a
perspectiva de desposar um duque era-lhe indiferente, mas sua madrasta, com a única
intenção de alcançar seus objetivos, enfeitara a situação, tornando-a atraente.
— Eu era tão feliz! Como era bom não ter um bando de governantas se
intrometendo na minha vida… E como gostei das poucas festas que assisti em Londres…
rememorou aquele período e de repente compreendeu porque as três semanas passadas
na capital a fim de renovar seu guarda-roupa foram interrompidas pelas madrasta, que
àquela altura já planejava seu casamento com o duque.
— Você poderá voltar para Londres, quando começar a temporada de primavera
— retrucou a madrasta, quando Gracila protestou por ter de voltar para casa, dado que
havia feito numerosas amigas.
— E quando começa a temporada?
— No mês de abril.
Porém, no mês de abril, Gracila ficou noiva e apesar de que esse período, para a
maior parte das moças, se prolongasse durante um bom tempo, Gracila recebeu a notícia
de que o casamento estava marcado para o dia trinta e um de maio.
— Para que esperar tanto? — perguntou a madrasta, argumentado a seguir com
lógica irrespondível. — É preferível vê-la no Palácio Real de Buckingham, como duquesa,
e não como uma simples debutante.
De fato, tudo aquilo parecia bastante razoável, mas ao mesmo tempo Gracila
sentia que estava sendo apressada.
Agora, no entanto, estava livre! Na véspera, mergulhada na escuridão protetora de
seu quarto, decidiu que não faria muitos planos. Era assustador imaginar o que lhe
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aconteceria. Era inquietante tomar uma decisão, não tendo dinheiro ou um lugar onde se
refugiar.
Até agora a sorte esteve do meu lado e não podia ter me acontecido nada melhor,
a partir do momento em que posso conta com Mitty, pensou.
Inclinou-se, mergulhou os dedos nas águas cristalinas do regato e contemplou os
peixes, que fugiam assustados em todas as direções.
A margem do curso de água estava coalhada de violetas e pouco mais adiante, no
interior do bosque, sentia-se o odor dos pinheiros e a fragrância da primavera.
Prosseguindo no passeio, bordejando as margens do regato e chegou até o bosque
espesso, onde os raios do sol não penetravam. Havia ali um ar de mistério e romance, mas
Gracila não queria se afastar do sol.
Voltou para as margens do regato e sem pensar nas possíveis reprimendas da sra.
Hansell, sentou-se sobre a relva.
Colheu algumas violetas, colocou-as sobre o colo e entregou-se àqueles devaneios
que sua governanta costumava censurar tanto.
Inventava uma história, da qual tomava parte.
Nos livros de mitologia havia deparado com histórias felizes, povoadas não com
seres humanos, mas com deuses e deusas místicos.
Era muito mais interessante do que seus amigos ou do que até mesmo sua família
e em sua companhia estavam todas as criaturas que faziam parte do mundo encantado dos
contos de fadas: ninfas e elfos, duendes e faunos, bruxas e ogros.
Era uma fuga para o mundo de sonhos, que atenuava suas preocupações e as
perguntas incessantes, relativas ao que poderia estar acontecendo no castelo naquele
momento. Por exemplo, qual a reação de seu pai e da madrasta, ao descobrirem seu
desaparecimento…
Passaram-se quase duas horas e Gracila, de repente, percebeu um som novo,
diferente do zumbido das abelhas e do arrulhar dos pombos selvagens. Durante alguns
momentos aquele som inusitado misturou-se com a musicalidade à sua volta. Então
percebeu que se tratava do ruído de patas de cavalo e que alguém se aproximava.
Levantou-se rapidamente, como um fauno assustado. — Ninguém deve me
encontrar aqui — pensou, procurando onde se esconder. Se se metesse entre as árvores,
seu vestido branco seria facilmente visível, mas para onde mais poderia ir?
Foi então que notou uma nogueira e percebeu que seria fácil procurar refúgio
entre seus galhos. Sempre tivera muita facilidade em trepar nas árvores, o que, aliás,
deixava sua governanta e a babá desesperadas. Nada mais fácil: bastava levantar a saia e
abrigar-se em meio à galharada frondosa, sem se preocupar demais com o que a sra.
Hansell diria, se por acaso as rendas delicadas do vestido se rasgassem.
Escolheu um galho bem alto, em forma de forquilha, e sentou-se. Era bem pouco
provável que o cavaleiro que se aproximava a visse, a menos que seu olhar vasculhasse as
folhas cerradas.
Agiu a tempo, pois nesse momento cavalo e cavaleiro avançavam através do
bosque.
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Bastou olhar aquele homem de relance para o coração de Gracila disparar. Sabia
que diante dela encontrava-se aquele a quem sempre desejara ver: lorde Damien, em carne
e osso! A distância não conseguiu distingui-lo com clareza, mas assim que ele se
aproximou notou que seu cabelo era preto. O cavalo avançou ainda mais e ela chegou à
conclusão de que o lorde era tudo aquilo que o poeta Byron deveria ter sido um dia! E
causava uma impressão ainda maior, pois dele emanava um ar de autoridade. Possuía um
nariz aristocrático e seus olhos escuros estavam fixados no regato. Fez o cavalo parar, sem
desviar a atenção do curso de água.
Deve estar olhando as trutas, exatamente como eu fiz, pensou Gracila.
Agora que contemplava aquele perfil incrível compreendia o porquê da excitação
de todas aquelas mulheres que haviam se referido a ele, começando por sua madrasta e
terminando pelas criadas.
Lorde Damien era o homem mais bonito que jamais vira até então e sua aparência
era idêntica a tudo o que ela imaginara a seu respeito.
Não era de admirar que houvesse tantos escândalos ligados a seu nome!
Percebia-se porque a marquesa tinha fugido com ele, provocando uma comoção
que, passados tantos anos, ainda ecoava por todo o condado.
Era natural que tivesse feito o maior sucesso em Paris, Veneza, Roma, Nápoles e
Palermo! Quem seria capaz de resistir à beleza, onde quer que ela fosse encontrada?
Lorde Damien aproximava-se.
Gracila percebeu que passaria bem por debaixo do galho onde se refugiara e,
como estava a cavalo, sua cabeça quase roçaria nela.
Prendeu a respiração, desejando não ter escolhido justamente aquela árvore. O
lorde chegou até a árvore e abaixou a cabeça, a fim de que os galhos não o arranhassem.
Nesse momento, algo lhe chamou a atenção no regato. Era um grande peixe, cujas escamas
prateadas reverberavam ao sol. Lorde Damien, interessado no que via, deteve o cavalo e
Gracila, se quisesse, poderia tocar-lhe o alto da cabeça, naquele momento.
Ao senti-lo tão próximo, foi incapaz de manter qualquer coerência em seus
pensamentos.
O peixe desapareceu por entre os meandros do regato e lorde Damien alçou as
rédeas, preparando-se para prosseguir. Nesse momento levantou o olhar. Talvez sentisse
instintivamente a presença de alguém ou quem sabe a intensidade com que Gracila o
espreitava o tivesse atingido.
Qualquer que fosse a explicação, percebeu entre a folhagem um delicado rosto
oval, no qual brilhava um par de esplêndidos olhos azuis.
O cavalo já tinha começado a andar e parou, pois foi freado bruscamente.
Fez-se um silêncio denso e lorde Damien perguntou:
— Você é uma ninfa do bosque ou uma estrela cadente que fugiu do céu?
Sua voz era profunda, abaritonada, e encerrava um leve tom de zombaria.
Durante alguns instantes, Gracila ficou tão surpreendida com o que estava
acontecendo que não conseguiu responder.
— Desça daí, a menos que tenha pressa de voltar para o céu de onde veio!
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Gracila hesitou. Haviam-lhe dito que deveria a todo custo evitar semelhante
encontro, mas não via o menor sentido em não lhe dirigir a palavra, depois do que se
passara. Não era possível prosseguir o diálogo naquelas condições, com ela dependurada
em um galho e ele quase quebrando o pescoço para poder vê-la.
Era mais do que evidente que o jovem lorde Damien esperava por uma resposta e,
após alguns instantes, ela disse:
— Está certo, mas afaste-se um pouco.
— E por quê?
Ela sorriu e ele notou duas covinhas de cada lado de sua boca.
— Não é muito decoroso subir em árvores e muito menos descer delas!
Lorde Damien voltou a rir e disse:
— Desça e fale comigo. Não vá desaparecer, porque se não terei de procurá-la
através do céu.
— Sim, eu falarei com você — prometeu Gracila.
Ele prosseguiu, afastando os galhos, e freou o animal. Gracila desceu da árvore,
tomando o maior cuidado com o vestido, mas quando pôs os pés no chão, notou que ele
estava todo manchado de resina.
Ajeitou os cabelos, em um gesto instintivo e faceiro, e avançou até a beira do
regato, onde lorde Damien já estava à sua espera.
Ele era bem mais alto do que ela suponha e tinha ombros muito largos. Visto de
perto não parecia tão poético quanto ela imaginara e a camisa aberta revelava um tórax
bastante viril. Além disso, parecia bem mais velho do que Gracila esperava.
Seu rosto demonstrava surpresa e ele alçou as sobrancelhas, dizendo:
— Imaginava que fosse uma menina. Vejo que me enganei. Havia algo no modo
pelo qual ele se expressava que fez com que Gracila parasse.
— Seria melhor que continuasse a pensar em mim como uma criança ou, se
preferir, como uma estrela cadente!
— Por quê?
— Tenho lá minhas razões.
— E a mais óbvia é que não deveria estar falando comigo, imagino!
A expressão de seu rosto havia mudado e ele não disfarçava o cinismo e a
amargura que devia estar sentindo. Gracila o encarou de frente. Agora sabia porque
achava que sua aparência não era tão poética. Agora descobria porque ele parecia mais
velho.
— Mas eu quero falar com você. Gosto de mistérios e não me lembro de ter
encontrado uma estrela escondida em uma árvore, sobretudo em uma árvore que me
pertence!
— Seria melhor se esquecesse que me viu… — retrucou Gracila, cheia de
hesitação.
— E uma sugestão absurda, e como não tenho a menor intenção de sair galopando
atrás de você, peço-lhe que se sente e converse comigo.
Como se estivesse se rendendo não a ele, mas a algo inevitável, Gracila esboçou
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um gesto.
— Você não me deixa muitas alternativas.
Lorde Damien olhou à sua volta e ela percebeu que ele estava à procura de um
lugar onde pudesse amarrar o cavalo.
— Sampson é um cavalo manso — disse Gracila — e, se ele por acaso sair
correndo, será muito fácil alcançá-lo.
— Com que então sabe o nome do meu cavalo! Gracila se deu conta de que havia
falado sem pensar. Sampson era um cavalo muito velho, como a maioria dos cavalos da
mansão, e ela sempre lhe dava um torrão de açúcar, todas as vezes que ia em visita àquela
casa. É por isso que sabia que o animal não iria sair em disparada para a cocheira, a
exemplo do que um cavalo mais novo teria feito.
— Vamos sentar perto do regato? Acabo de ver um peixe de escamas muito
coloridas.
— Acho que esta é a época da desova.
— Pois então, fale-me disso e de tudo o que você sabe a respeito de minha
propriedade.
Enquanto falava, escolheu um lugar onde o capim estava aparentemente seco.
Gracila sentou-se muito ereta e não conseguia refrear a curiosidade, enquanto
contemplava lorde Damien.
Ele esticou-se a seu lado e ela percebeu que, além de muito elegante, era forte e
atlético. Era o contrário de um poeta ou de um devasso arruinado por uma vida de
dissipação.
— Agora, fale-me de você.
— Infelizmente… não posso…
— E por que não?
— Tenho cá minhas razões… porém são secretas.
— Você está me provocando de propósito?
— Estou lhe dizendo a verdade. Na realidade, estou lhe pedindo que… me
ajude…
— Ajudá-la? Mas como?
— Basta deixar de fazer tantas perguntas. Eu… estava me escondendo de você.
— Por quê?
Gracila hesitou e antes que respondesse ele disse:
— Não quero saber! Você estava se escondendo de mim exatamente como
qualquer mulher sensata e bem-comportada teria feito!
Havia de novo tanta amargura em sua voz que Gracila estendeu a mão, como se
quisesse reconfortá-lo. Interrompeu o gesto pela metade e pousou a mão no colo.
— Não estava me escondendo por essa razão. Bem… não era exatamente por isso.
— Devo dizer que você não está me passando muitas informações…
— Eu sei, mas é… difícil…
— É você quem é difícil. Encontro-a escondida em uma árvore e então você me diz
que se escondia de mim, mas não exatamente!
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Contemplou-a mais atentamente e disse:
— Pensei que você fosse uma menina, mas agora, que a vejo mais de perto, acho-a
uma das mulheres mais belas que conheci até hoje. Ao mesmo tempo, você ainda não é
uma mulher. .O rubor apoderou-se de Gracila e ela desviou o olhar.
— Há várias perguntas que gostaria de lhe fazer. Quem é você? Por que está aqui?
Por que é tão misteriosa? Mas, antes de mais nada, quero dizer que considero um
privilégio contemplá-la e chego até mesmo a achar que estou sonhando!
— Sonhando?
— Como é possível que alguém tão linda, tão inesperada, tão perfeita se encontre
em minha mansão?
Tais palavras foram ditas e num tom de profunda ironia e Gracila observou:
— Não fale desse jeito. Não vê como o solar do barão está lindo, sobretudo agora
que é o mês de maio? Acho que foi por esta razão que você voltou para casa.
— Na verdade, a razão pela qual voltei é o meu desejo de isolar-me.
— Isolar-se! — exclamou Gracila, surpreendida.
— É algo que não quero discutir. Em vez disto, vamos conversar sobre você.
— E isto é algo que eu não quero discutir!
— Então, qual será o tema de nossa conversa? É uma pergunta que eu não
precisaria fazer para a maior parte das mulheres, mas acho, minha pequena estrela, que
você de fato é muito jovem. Por que alguém tão jovem e linda como você deveria
esconder-se?
— Se eu lhe disser algo… só para satisfazer sua curiosidade… você me fará uma
promessa?
— A maior parte das promessas são perigosas.
— Dar-me sua palavra não representaria perigo algum para você, mas se você a
quebrasse, seria perigoso para mim.
_ Pode confiar em mim.
— Então jure que não dirá, a quem quer que seja, que me viu, ou que
conversamos.
—Está se referindo aos criados? Quer dizer que eles têm o privilégio de saber
aquilo que você não me revelará?
— Não é bem assim, mas se você disser a Millet…
— Meu mordomo?
— Sim, Millet. Se você lhe disser que me viu, ou se comunicar o fato à sra. Hansell,
a governanta, eles me mandarão embora.
— Como que então você está em minha casa? No solar do barão?
— Não tinha mais para onde ir.
— Fico muito honrado e encantado em tê-la como minha hóspede, mas não vai me
dizer porque não tinha para onde ir?
Ao falar lorde Damien, contemplava sua saia e Gracila achou que ele tinha plena
consciência de que se tratava de um vestido muito caro. A pobreza não seria a razão que a
levara até lá. De que se tratava, então?
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Sabia que ele estava esperando e após uma pausa declarou, hesitante:
— Eu me vi em meio a uma… situação muito… difícil e da qual precisava escapar.
— Como? Você está me dizendo que fugiu?
— Sim.
— Não foi à toa que achei que você era uma estrela cadente! — Lorde Damien
estudou-a atentamente e declarou:
— Você foi muito magoada. O que será que teria causado isto?
— Como é que você sabe?
— Seus olhos são muito reveladores. Leio seus pensamentos, apesar de você ter
resolvido que não me dirá a verdade!
— Sim, você tem razão. Fiquei magoada com algo que aconteceu e, sendo assim,
fugi para o solar do barão.
— E por que justamente para cá?
— Sabia que era o último lugar onde alguém pensaria em me procurar!
— Agora compreendo! — exclamou lorde Damien, rindo.
— Aprecio muito o seu gesto. Vim procurar refúgio em minha casa e você fez o
mesmo.
— Você vai cumprir sua promessa? Caso contrário, sua casa deixará de ser um
refúgio para mim e terei de ir embora.
— Você então acha que eu seria capaz de magoá-la ou desapontá-la? Seria um
crime contra os céus!
Havia algo no modo como ele se expressava que a fez sentir-se intimidada.
— Confie mais em mim… Ou devemos esperar até que você me conheça melhor?
— Acho um erro sugerir que nós devemos nos conhecer melhor.
— Por que um erro? Afinal de contas, ninguém sabe que nos encontramos!
— Sei lá… de repente, acabam descobrindo. Alguém pode nos ver.
— Então precisamos tomar cuidado para que isto não aconteça.
— Seria muito difícil… O mais sensato é manter nosso refúgio em diferentes lados
da casa… e não nos encontrarmos.
— Isto não só seria intolerável, como extremamente aborrecido. Eu já estava me
sentindo deprimido com meus pensamentos, oprimido pela solidão e…
Sorriu, antes de prosseguir.
—- Acho que você é como uma estrela, que foi enviada a mim para trazer luz.
— Parece tão estranho que você possa se sentir infeliz…
— Por que estranho?
— Todo mundo comenta que você sempre viveu em clima de festa, rodeado por
lindas mulheres…
Interrompeu a frase, pois notou que a expressão de lorde Damien se alterava.
— Desculpe, se disse algo que o contrariou…
— Você apenas disse o que eu esperava ouvir e infelizmente não há como negar.
— Mas então, por que é que se contrariou?
— Talvez seja demais esperar um pouco de felicidade nesta vida, mas algumas
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pessoas, sobretudo gente como você e eu, precisam de segurança.
- Tem razão! É claro que tem razão! Queria sentir-me segura e é por isso que vim
para o solar do barão.
— E eu vim para cá porque este lugar me pertence e eu pertenço a ele. É aqui que
se encontram minhas raízes.
Havia algo de selvagem no modo como ele se exprimia. Gracila achou que a
violência de seus sentimentos alterava seu rosto e, por isso, ele parecia mais velho do que
era.
— E agora que você está de volta a sua casa, sente-se melhor?
— Como posso sentir-me melhor? Além do mais, para mim não se trata de um
verdadeiro lar. É antes uma concha vazia. Não tenho lar, sou um vagabundo na face da
terra, um homem que precisa de segurança e não a encontra!
Fez-se novamente uma pausa e Gracila disse:
— Compreendo o que você diz e talvez algo do que você sente. Mas se a razão
pela qual você não voltou antes para cá, tem a ver com aquilo que aconteceu há muito
tempo… então, parece-me que você exagera!
— Como pode dizer que estou exagerando? Pois não acaba de dizer que se alguém
souber do nosso encontro, terá de ir embora?
A pergunta foi feita em tom brusco, mas para sua grande surpresa Gracila sorriu.
— Sua presença me diz respeito só por aquilo que poderá acontecer no futuro e
nunca por causa do que sucedeu no passado!
— Não é verdade! Você me receia, ou por outra, aqueles que tomam conta de você
é que receiam, devido à minha reputação e meu comportamento no passado.
— Acho que a reação deles seria a mesma, não importa o que você tivesse feito ou
deixado de fazer. Afinal de contas, é muito censurável uma jovem solteira permanecer sob
o mesmo teto que um cavalheiro, mesmo que ele fosse cego, surdo e mudo!
— Graças a Deus não sou nada disso! E ao mesmo tempo sou um debochado, um
devasso, um homem sem moral!
Gracila não pôde deixar de sorrir.
— Com que então sabe que disseram todas estas coisas a seu respeito!
— Mas é claro!
— E como as pessoas gostavam de comentários deste tipo! Desde que era criança
ouvia falarem mal de você e sentia o quanto ficavam excitados! É difícil colocar isto em
palavras, mas você trouxe uma espécie de alegria de viver a tantas pessoas e não posso
imaginar que seu comportamento seja totalmente repreensível!
Lorde Damien encarou-a, surpreendido, e riu.
— Foi você mesma quem formulou este pensamento ou alguém lhe disse?
— Você se esquece que não devo falar a seu respeito e muito menos falar com
você!
— Quando eu ia imaginar que existisse alguém como você neste mundo? Se a
ouvir durante algum tempo, vou acabar acreditando que um dia o paraíso existiu.
— Já se arrependeu de todo o mal que fez?
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— Não é uma questão de arrependimento, mas de puro tédio.
— Oh! Não!
— Por que fala desse jeito?
— Seria uma pena! Você esteve longe durante doze anos e durante esse tempo,
aliás, tão longo, deve ter gostado daquilo que fazia.
— Você está tentando me dizer que o pecado é um prazer. Uma parte os meus
pecados, foram, de fato, mas, qualquer coisa, por mais deleitável que seja, pode se tornar
enfadonha. É então que começamos a criticar, a sentir falta de algo melhor.
Ele se exprimia com tamanho desânimo que ela ficou revoltada.
— Mas que absurdo! Como é que você pode pensar uma coisa destas? Não
acredito que esteja falando a sério!
— Em relação a quê?
— Em relação a sua vida. É a isto que você está se referindo. Queixa-se de que
tudo aquilo que fez tornou-se fonte de amargura e agora está lamentando o passado, em
vez de olhar para o futuro!
— E por acaso haverá algo a minha espera, no futuro?
— Há tanto que fazer, ver, ouvir, apreciar! Como é possível você deixar alguma
coisa ou alguém interferir em suas perspectivas?
— Como disse, você é muito jovem. Quando tinha sua idade, também me sentia
assim, mas agora estou ficando velho.
— Mas você só tem trinta anos! Está na flor da idade e já se acha velho! Sinto
muito por você. Bem, acho que está na hora de ir embora.
Fez menção de levantar-se, porém lorde Damien deteve-a.
— Nem pense em me deixar! Há tantas coisas que tenho a lhe dizer. Temos muito
o que discutir, quem sabe chegaremos até mesmo a brigar e eu a farei ficar, mesmo que
tenha de lançar mão da força!
— Isto não é justo. Você sabe muito bem que não posso pedir socorro. Millet não
deve saber que o encontrei.
— Ou que eu me comportei de acordo com o que todos esperavam de mim!
— Não acho que isto seja verdade.
— Por quê?
— Tenho o pressentimento de que você, à semelhança de tantas outras pessoas,
está querendo parecer pior do que realmente é. Acreditará em mim se lhe disser que…
confio em você?
— Acredito, sim, mas é uma tolice de sua parte!
— Não acho. Sempre acerto, quando sei que posso confiar em alguém.
— Você está minando a única coisa de que eu tinha certeza: minha própria
maldade!
— Sinto muito desapontá-lo, mas porque gosto de conversar com você, para mim
é mais fácil lhe dizer a verdade. Confio, sim, em você.
Seus olhares se encontraram e eles ficaram se encarando durante muito tempo.
Então, ele disse:
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— Eu tinha razão! Você não é humana, você é diferente de qualquer pessoa que já
conheci.
— E você também! Mas não podemos tirar nenhuma conclusão lógica desse fato.
— Só Deus sabe como você foi educada ou porque, tendo semelhante aparência,
precisa ser inteligente! Agora, fale-me de você.
— Primeiro me diga que horas são.
Lorde Damien pareceu ter ficado surpreendido, mas mesmo assim tirou um
relógio de ouro do bolso do colete.
— Quase quinze para a uma.
— Então tenho de voltar! Já devem estar preocupados comigo e se demoro mais
tempo será difícil que me deixem passear no bosque futuramente.
— O que está querendo dizer com isso? Não compreendo!
— É muito simples. Millet e a sra. Hansell decidiram que não devo encontrá-lo.
Disseram-me hoje de manhã, que você ia dar um passeio pela propriedade e almoçaria
fora.
— Era esta minha intenção, mas fazia calor e subitamente não senti a menor
vontade de comer em uma das estalagens da região. Afinal de contas, come-se muito bem
aqui no solar do barão!
Gracila teve a impressão de que sua atitude se devia antes ao fato de que ele
desejava evitar a curiosidade e o reboliço que sua presença teria provocado, se se
apresentasse publicamente na região.
— Não devemos chegar ao mesmo tempo, pois Millet ficaria tão nervoso, só de
pensar que nos encontramos, que da próxima vez que eu quisesse sair ele criaria mil
dificuldades.
— Compreendo. Só irei para casa no fim da tarde e até lá morrerei de fome. Esta
solução lhe agrada?
Gracila sorriu e baixando os olhos, intimidada, declarou:
— Se você só vai voltar mais tarde, eu posso almoçar e depois encontrá-lo
novamente.
— Então aguardarei seu regresso.
— Não gosto de pensar que você passará fome.
— O jejum faz bem à alma.
— Você parece muito preocupado com sua alma. Ou será o coração que está lhe
causando tantas perturbações? — perguntou Gracila, em tom de zombaria.
— Acho que já não acredito mais que você caiu do céu, mas não tenho dúvida de
que é uma garota atrevida, que veio ao meu encontro, só para me atormentar!
— Neste caso só me resta retirar-me com dignidade… Levantou-se, ao dizer tais
palavras, e lorde Damien fez o mesmo.
Ficaram se encarando por um momento e Gracila sentiu o coração batendo de um
modo como nunca tinha acontecido antes.
Foi lorde Damien quem rompeu o silêncio:
— Se eu ficar aqui à sua espera, você jura que volta? Ela não conseguiu responder
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e ele acrescentou:
— Se não voltar, demolirei minha casa tijolo por tijolo e interrogarei severamente
todos os meus criados!
— Você me fez uma promessa! — protestou Gracila.
— E pretendo mantê-la, se você também mantiver a sua e voltar para cá assim que
tiver acabado de almoçar.
— Voltarei, sim, mas agora tenho de me apressar. Pôs-se a caminho, porém lorde
Damien atalhou-a:
— Você ainda não me disse como se chama. Preciso de um nome, para poder
pensar em você.
— Gracila — ela replicou, imaginando se havia sido indiscreta, enquanto percorria
as alamedas do jardim.
Tratava-se de um nome nada comum e talvez fosse fácil para ele descobrir quem
ela era. Ocorreu-lhe, porém, que ele havia empenhado sua palavra e a manteria. Além do
mais, tinha apenas seis anos quando ele tinha ido embora da Inglaterra e não havia como
relacioná-la com as famílias da vizinhança, se é que lorde Damien ainda se lembrava delas.
Enquanto se apressava em direção à casa, Gracila concluiu que encontrar lorde
Damien fora a coisa mais excitante e aventureira que havia feito até aquele momento.
Ele era diferente, situava-se no pólo oposto de suas expectativas e era inevitável
que a descrição que outras pessoas faziam dele lhe parecesse naquele momento
completamente falsa.
— É um erro imaginarem que lorde Damien é uma criatura má. Trata-se apenas de
um home desiludido, pensou.
Acabava de descobrir o significado da expressão de seu rosto e que inicialmente a
deixara intrigada. Lorde Damien era um homem melancólico!
CAPÍTULO IV
Lorde Damien contemplou a enorme biblioteca onde seu pai sempre costumava
recolher-se. Lembrava-se que quando criança adorava correr pelo balcão que ocupava
metade da sala e descer pelo corrimão da escada em espiral. Naqueles momentos era
incapaz de apreciar os dourados magníficos do teto, as estantes esculpidas e o mobiliário
que tornavam a biblioteca um dos lugares mais bonitos da mansão.
Agora, porém, não admirava suas proporções perfeitas ou as deusas pintadas no
forro. Ouvia a voz de seu pai que lhe dizia:
— Esta situação não pode continuar Virgil. Todo mundo faz comentários a seu
respeito e você sabe, tanto quanto eu, que a marquesa goza de uma ótima reputação aqui
no condado e nenhum escândalo deve ser ligado ao seu nome!
Lorde Damien não respondeu e seu ai prosseguiu, cheio de severidade:
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— Você não a verá nunca mais. É uma ordem! Compreende? Se me desobedecer,
eu o mandarei para longe daqui!
Sabia que seu pai não hesitaria em pôr em prática aquela ameaça, mas naquele
momento sabia muito bem o que devia fazer e ninguém poderia detê-lo.
Ao regressar à Inglaterra sentiu que tudo o que via trazia-lhe, recordações
doloridas, à semelhança de uma faca cravada em uma ferida aberta.
Decidiu subitamente que não podia mais ficar longe de sua pátria e partiu
inesperadamente de Paris, em meio a uma tempestade de protestos de seus amigos.
Como esperava, o solar do barão estava povoado de fantasmas: o de seu pai,
dando-lhe ordens, como se ele fosse uma criança que ainda não tinha idade para
compreender, o fantasma de sua mãe, o dele próprio.
E havia também os jardins, os bosques, o perfume das flores, que traziam milhares
de recordações.
Céus, como havia sido tolo, ingênua, absurdamente idealista! Como seria capaz de
imaginar que o ídolo a quem adorava tivesse pés de barro!
Lembrou-se da primeira vez que a encontrou.
— Quero que você me acompanhe hoje à tarde — dissera-lhe seu pai — a fim de
visitarmos a nova marquesa de Lynmouth. Afinal de contas, o marquês é um de meus
amigos mais antigos e sinto-me em grande falta, pois ele casou-se há mais de três meses e
até agora não fui apresentar meus cumprimentos a sua esposa.
— Será que vale a pena perder à tarde? — perguntou-se Virgil.
Havia planejado ir pescar, justamente naquela tarde, e a perspectiva de vestir-se e
acompanhar seu pai em uma carruagem fechada e abafada parecia-lhe bastante
enfadonha, quando tinha coisas tão mais interessantes a fazer.
— É apenas uma questão de polidez — insistiu o pai — e não vamos precisar ficar
muito tempo.
Lembrou-se de que, se sua mãe fosse viva, ela teria acompanhado seu pai. Sabia o
quanto ele devia sentir-se solitário sem a sua companhia. Desistiu de discutir e foi para
cima trocar de roupa.
A propriedade do marquês fazia limite com a de seu pai e havia caminhos que
encurtavam consideravelmente a distância, como ele descobriu mais tarde.
O castelo de Lynmouth era extremamente feio. O arquiteto que o construíra
preocupara-se muito mais com o tamanho do que com o estilo. Virgil pensou, enquanto se
aproximavam, que aquela residência assemelhava-se ao proprietário: tinha dignidade, é
certo, porém era desprovida da menor elegância!
O marquês enviuvara havia alguns anos. Fazia parte do parlamento e era muito
respeitado pelo governo, devido ao seu conhecimento de política exterior.
Foi por ocasião de uma visita a Paris, onde representava o primeiro-ministro, que
conheceu sua atual esposa.
Virgil não ficara especialmente interessado naquela história. Sabia que qualquer
mulher que ele desposasse, não seria capaz de trazer uma certa animação àquilo que ele
considerava uma vizinhança enfadonha.
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Estudava em Oxford, onde participava da alegria e da irresponsabilidade dos
colegas. Pertencia a um clube famoso por suas reuniões, onde se bebia muito e envolvera-
se em pequenas aventuras, que mereceram das autoridades locais, uma certa censura, mas
que, divertiam sobremaneira seus colegas. Virgil, entretanto, era bastante inteligente para
apreciar as qualidades que tornavam aquela universidade sem par em todo o mundo.
Talvez seus dotes intelectuais fossem herdados de seus antepassados paternos,
mas o lado poético de sua natureza, que contrastava singularmente com suas proezas
atléticas, era, sem a menor sombra de dúvida, uma herança da natureza gentil e delicada
de sua mãe.
Lady Damien tinha falecido quando seu filho era ainda muito jovem, mas ela
legou-lhe uma sensibilidade aguçada, que o fazia diferente da maior parte de seus
contemporâneos.
Sempre sentira um certo constrangimento diante dos sentimentos que a música e a
poesia evocavam nele, porém, em Oxford, encontrara pessoas muito compreensivas e que
afinavam com sua sensibilidade.
Trocavam opiniões e Virgil descobriu que neste campo esses amigos eram tão
competentes quanto aqueles que se concentravam nos cavalos e, invariavelmente, nas
mulheres!
A fachada do castelo de Lynmouth era tão inexpressiva quanto seu interior. Neste,
o pesado mobiliário que o povoava dava ao ambiente um ar pesado e descolorido e
transmitia a sensação de que aquela casa dera as costas ao sol e à luminosidade.
O marquês recebeu-os com grande amabilidade. Gostava demais de lorde Damien
e conhecia Virgil desde que ele nascera.
— Estava para lhe escrever e convidá-lo para jantar conosco. Minha esposa, porém
tem se sentido muito cansada desde que chegamos à Inglaterra e não se manifesta disposta
em receber as pessoas.
— Isto é muito relativo! — exclamou a marquesa, entrando na sala.
Ela era uma criatura tão surpreendente que Virgil não conseguiu parar de encará-
la, esquecendo-se de todas as conveniências. Não se lembrava de ter visto jamais uma
mulher tão bela e extraordinária.
Mais tarde, mesmo quando vivia com ela, nunca chegou a ter certeza de sua
nacionalidade. Aparentemente era francesa e casara-se com o conde de Castigone, o qual
fora morto em duelo.
No decorrer dos anos, Virgil haveria de conhecer bem de perto tais duelos e saber
o perigo que eles representavam!
Tudo o que dizia respeito a ela antes do casamento era obscuro. Falava com
grande afeto de sua mãe grega, mas Virgil suspeitava que entre seus ancestrais havia
algum mouro.
O avô dela e o bisavô tinham ocupado postos importantes na Argélia. Quaisquer
que fossem seus antepassados, era impossível deixar de admirar aquele corpo esguio e
flexível, que se movia com a sinuosidade de uma serpente. Seus olhos enormes e negros
destacavam-se tanto em seu rosto, que era impossível recordar os demais traços.
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Ao contemplá-los, Virgil sentiu que estava perdido, à semelhança de alguém que
mergulha fundo no oceano, sem possibilidade de retorno.
Sentia uma total incapacidade de mexer-se ou de falar e limitou-se a olhá-la, até
que ela voltou-se para o marquês e indagou:
— Por que não me contou que Apoio morava na vizinhança? Você sabe como sinto
saudades das ilhas da Grécia! — disse a marquesa.
— A senhora gosta dos poemas de Lord Byron? — perguntou Virgil, vencendo a
timidez que se apoderara dele.
— Mas é claro! Precisamos lê-los juntos. Aquela criatura fantástica chamava-se
Phenice.
Virgil jamais teria ousado aproximar-se dela, porém a marquesa deu o primeiro
passo, indo pessoalmente, no dia seguinte, ao solar do barão a fim de convidá-lo e a seu
pai para jantarem no castelo.
Era completamente desnecessário que ela o trouxesse, pois o convite fora feito no
momento em que eles se despediam e um criado poderia muito bem ter desempenhado a
missão.
Phenice viera vestida em grande estilo e o elegante traje verde-esmeralda
acentuava o negror de seus olhos.
Naquele momento, Virgil encontrava-se a sós na biblioteca, pois seu pai estava no
jardim, dando ordens aos jardineiros.
Após a morte de sua mãe, os salões de recepção haviam sido praticamente
fechados e quando o criado anunciou a marquesa de Lynmouth, Virgil quase levou um
susto, achando que não tinha ouvido direito.
Ela, no entanto, estava lá, caminhando em sua direção e com os olhos fixos nele.
Seus lábios rubros sorriam e ele sentiu-se como que hipnotizado.
— Está lendo? — perguntou, ao vê-lo com um livro nas mãos. — Espero que não o
tenha interrompido!
— Não, claro que não! E muito bem-vinda. Sente-se, por favor. Meu pai não deve
demorar.
— Não vamos apressá-lo!
Exprimia-se com graça e suavidade e com toda certeza já havia deixado fascinados
homens muito mais experientes do que um simples estudante de Oxford…
— Estou começando a me dar conta do quanto a Inglaterra é bela nesta época do
ano.
— Não esteve antes na Inglaterra?
— Somente em Londres. Agora, porém, vejo que tenho muito o que descobrir e
explorar.
— Permite que eu lhe mostre o lago, os bosques, o parque? Tentou pensar
rapidamente em outras coisas que a interessariam. Enquanto isso, Phenice o olhava
fixamente.
— Você faria uma coisa destas? Tem certeza de que não se aborreceria? Talvez eu
tomasse demais o seu tempo!
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Ele não tinha o menor interesse no que quer que fosse, a não ser conversar com
aquela criatura fascinante e mostrar-lhe o que ela quisesse ver.
Encontraram-se no dia seguinte.
Eram as férias de verão. O tempo estava quente e seco e o marquês preocupava-se
com as competições esportivas, os desfiles cívicos e as feiras que se sucediam no condado,
àquela época do ano. Recebia, também, constantes mensagens do Ministério do Exterior,
que exigiam sua presença em Londres, a fim de expor suas opiniões sobre certos aspectos
da situação internacional.
— Você é tão gentil comigo — disse Phenice a Virgil. — Se você não estivesse aqui,
eu me sentiria solitária e infeliz, uma estranha em terra estranha.
— E um privilégio e uma honra estar em sua companhia. Era inevitável que o lado
poético da natureza de Virgil despertasse para a beleza e o encanto de Phenice.
Em sua mente, ela se transformava em Afrodite, Helena de Tróia, Cleópatra e
todas as mulheres a quem Lord Byron endereçava seus poemas.
Phenice, para ele, evocava a magia, uma magia que se apoderava dele, como se
fosse música celestial, e que povoava sua imaginação com sonhos onde ela figurava como
personagem principal.
Sentia ímpetos de ajoelhar-se a seus pés, entregar-se a proezas que comprovassem
o seu valor. Queria salvá-la, protegê-la… Estava disposto a morrer por ela, se isso lhe fosse
exigido.
Não lhe passava pela cabeça tocá-la ou tentar beijá-la, da mesma forma como
jamais imaginaria zombar de algo sagrado.
Naquele tempo, Phenice para ele não era uma criatura humana, porém divina!
Encerrou-a em um altar, dentro de seu coração, e punha-se a venerá-la quase como uma
santa.
A primeira vez que ela lhe deu a mão para segurar, enquanto passeavam pelos
bosques, ele mal podia acreditar que os sentimentos exaltados que experimentou não
fossem um ultraje e um insulto àquele anjo.
Finalmente, em uma noite de luar, quando deixaram alguns convidados mais
velhos entregues a uma partida de baralho, ele descobriu que ela era mulher dos pés à
cabeça.
Quando a beijou, teve a impressão de que nada daquilo era real. O que sentia por
ela não era amor e sim adoração e mais tarde, enfurecido, disse a si mesmo que tinha sido
hipnotizado, subjugado, envolvido, à semelhança de uma presa dominada por uma
serpente.
Ela lhe falou de sua solidão e de sua infelicidade e confidenciou que seu
casamento não passava de um erro.
Virgil, mais tarde, descobriu que o marquês, do mesmo modo que ele, tinha sido
facilmente cativado por uma mulher desejosa de posição social e dinheiro.
Era, no entanto um traço típico de Phenice deixar de dar o menor valor àquilo que
obtinha, após a conquista.
Havia pensado em se tornar uma marquesa inglesa, ser aceita na corte, obter um
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cargo honorífico na corte de William IV e isto lhe parecia tudo o que ela podia ambicionar
na vida.
Suas amigas de Paris deveriam ter ficado verdes de inveja, mas Paris era uma
cidade distante e Phenice na verdade nunca se interessara pelas mulheres.
Os homens eram o objeto de seu desejo: homens que não conseguissem escapar-
lhe, a partir do momento em que ela os fitasse; homens que a excitassem e que
despertassem suas emoções!
— Faça amor comigo, Virgil — ela lhe pediu. — Faça-me sentir antes que eu fique
velha e o tédio se apodere de mim!
Foi durante os feriados de Natal que Virgil tornou-se amante de Phenice.
Recebeu um recado urgente para ir jantar no castelo de Lynmouth. Seu pai estava
incluído no convite, mas lorde Damien, como todo mundo sabia, estava confinado no solar
havia duas semanas, devido à bronquite e a um ataque de gota.
— Não se importa se o deixar sozinho, meu pai? — perguntou Virgil.
— Não, claro que não, rapaz. Vá e divirta-se. Diga ao marquês para vir me visitar
amanhã. Quero conversar com ele a respeito da cerca, na divisa de nossas propriedades.
— Está bem, meu pai.
Tentou não deixar transparecer o quanto se sentia excitado com o convite.
Nos últimos tempos achava quase impossível estudar. Os professores, inquietos,
perguntavam-lhe o que estava acontecendo, pois parecia ter perdido por completo o
entusiasmo demonstrado previamente.
Ele não poderia contar que não conseguia ler as páginas dos livros, pois diante de
si só conseguia distinguir o rosto e os olhos de Phenice!
Durante o dia, só pensava nela, à noite sonhava com ela. Escrevera-lhe, quando
voltou para casa, uma carta formal, polida e um tanto seca, achando que o marquês
poderia lê-la.
Virgil sabia muito pouco do relacionamento entre marido e mulher. Constatou que
sua mãe adorava seu pai e tinham sido muito felizes. Como, porém, era possível comparar
Phenice com sua mãe ou com qualquer outra mulher que conhecera até então?
— O que há com você, Virgil? — perguntaram-lhe seus amigos em Oxford. — Há
uma nova companhia se apresentando no teatro. Chegaram umas atrizes bem bonitas e
pretendemos dar uma festa. Você vai gostar!
Virgil, porém, não se divertiu nem um pouco. Seu amigos, queixaram-se de que
seu pensamento estava longe e sua atitude impedia qualquer aproximação.
— Será que estas criaturas — pensou Virgil —, com seus rostos pintados, vozes
afetadas e olhares atrevidos são mulheres de verdade, a exemplo de Phenice?
Elas o enojavam e, em comparação com Phenice, rebaixavam o conceito de
feminilidade!
Esperava encontrar o castelo de Lynmouth em festa, mas quando chegou e
entregou a capa e o chapéu a um criado ficou muito surpreendido ao ser conduzido para o
andar de cima.
— Milady encontra-se em seu quarto de vestir, meu senhor — explicou o criado.
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O coração de Virgil batia descompassadamente, enquanto ele seguia por um
corredor comprido, na extremidade do qual uma porta se abriu.
Entrou em um aposento quase na penumbra, impregnado de um perfume
estranho e sutil, com toda certeza oriental, e que ele não reconheceu.
Phenice estava reclinada em um divã e usava um traje diáfano que revelava, mais
do que escondia, seu corpo perturbador.
Ao ver o jovem lorde entrar, estendeu-lhe as mãos. Virgil tinha ímpetos de
ajoelhar-se diante dela e dizer-lhe o quanto havia sentido sua falta, confidenciar que
morria de vontade de vê-la e comunicar que ela preenchia todos os seus pensamentos!
Mas primeiro iriam jantar.
O que lhe foi oferecido não se assemelhava nem de longe aos pratos bem
preparados, porém um tanto insossos, que costumavam servir no castelo de Lynmouth.
Virgil achou que na presença de Phenice qualquer prato tinha o gosto de ambrosia e
qualquer bebida o de néctar.
Não conseguia se lembrar do que falaram durante a refeição e finalmente os
criados se retiraram, deixando-os a sós.
— Phenice!
Sua voz soava como a de um homem que se afoga. No momento seguinte ela
estava em seus braços e ele a beijava com paixão, soltando todos os seus instintos.
Aquele semestre passado em Oxford lhe parecera uma eternidade, tamanha era a
falta que sentia dela.
Quando percebeu já tinham passado para o quarto de Phenice e encontravam-se
no grande leito de dossel, em meio aos lençóis perfumados.
Teve consciência da beleza de Phenice, que resplandecia à luz da lareira; o fogo
que nela crepitava não somente iluminava o aposento como também queimava seu peito a
tal ponto, que todo o seu corpo tornou-se um vulcão em erupção, que abolia todo e
qualquer pensamento.
Entre eles havia unicamente paixão carnal e era exatamente o que Phenice
desejava!
Ela o tinha enlouquecido. Virgil mal conseguia falar, porém todo o seu corpo
vibrava, acompanhando o movimento do corpo de Phenice, a fome de seus lábios e a
paixão contida em suas palavras.
— Phenice! Phenice!
Seu nome ecoava na noite, em uníssono com o deslizar das rodas e as patas do
cavalo, enquanto ele voltava para casa.
— Mas então é verdade -— indagou-se na manhã seguinte —, que esta mulher
perfeita, maravilhosa, sagrada, entregou-se a mim?
Sentia vontade de cair de joelhos e agradecer a Deus por tê-lo abençoado daquela
forma.
Não era nada fácil encontrar oportunidades para novos encontros. O marquês
voltou de Londres e o tempo estava frio demais para perambular por entre os bosques.
Mesmo assim, encontraram meios de ficarem a sós, apesar de correrem grande
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perigo cada vez que se encontravam.
Ainda que tais oportunidades fossem emocionalmente insatisfatórias, era sempre
uma aventura e Virgil via-se a si mesmo como um novo Jasão, à procura do Velocino de
Ouro, Ulisses, velejando em direção ao desconhecido; São Jorge matando o dragão e sir
Galahad, demandando o Santo Graal.
Foi Phenice quem acabou sugerindo que deveriam fugir. Ele mal acreditou no que
acabava de ouvir. Nunca lhe passara pela cabeça que ele pudesse considerar aquela
mulher maravilhosa como alguém que lhe pertencesse.
Queria apenas adorá-la e atender seus menores desejos, sem nada exigir em troca.
— Mas como é possível fazermos uma coisas destas? — .balbuciou, deslumbrado.
— Eu o desejo! Quero ficar com você! — replicou Phenice. — Odeio esta casa.
Odeio o frio e… odeio, sim, odeio Edward!
Ao ouvir tais palavras, Virgil não pôde deixar de sentir-se chocado.
Phenice odiava o marido, cujo nome trazia! Estava tão envolvido por ela que
jamais lhe ocorreu sentir ciúmes do homem com quem ela havia se casado.
— Acho que Edward começa a desconfiar! Em breve seremos proibidos de nos ver
e isto é algo que jamais suportarei!
— Mas como podemos fugir? E para onde iríamos?
— O mundo é nosso! Pense em Veneza! Já me imagino aninhada em seus braços,
em uma gôndola! Já nos vejo assistindo ao crepúsculo, em Roma! Atravessaremos o
Mediterrâneo! Por que não? Iremos sempre à procura do sol!
— Mas como é possível abandonarmos tudo isto aqui? Como é que você irá
abandonar o marquês e a posição que ocupa?
— Minha posição! — Phenice deu de ombros. — Para mim ela significa apenas ter
de suportar a conversa enfadonha de homens e mulheres antiquados e provincianos.
Quero estar com você, Virgil! Nunca ninguém me fez sentir assim! Quero o fogo que você
desperta em mim!
Sua voz vibrava e ela estremeceu.
— A Inglaterra é tão aborrecida, tão fria… Quero ir embora! Leve-me daqui,
Virgil. Por favor, leve-me daqui!
Virgil sentia-se extremamente confuso e não conseguia pensar ou formular idéias e
planos.
Queria agradá-la, fazer tudo o que ela desejasse, mas como?
Como?
Voltou para casa e seu pai disse-lhe que ele devia desistir dela e nunca mais vê-la!
Por que não lhe tinha dado ouvidos? Por que não tinha compreendido que seu pai
falava em seu próprio benefício, recorrendo ao mais elementar bom senso?
Ele, entretanto, fora estúpido demais para compreender!
Subitamente, não conseguiu mais suportar ficar na biblioteca que, mais do que
qualquer outro lugar da casa, trazia a marca da presença de seu pai, e subiu para o quarto.
Dormia no quarto principal que, segundo a tradição, sempre pertencia ao
proprietário da mansão.
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Seu valete Dawkins já estava esperando por ele e o fogo crepitava na lareira,
aquecendo todo o quarto.
— Acendeu a lareira, Dawkins? — perguntou, surpreendido.
— Estes ventos de maio podem ser traiçoeiros, milorde, para quem não está
acostumado com eles.
Dawkins tinha razão.
Se tivesse vivido sempre na Inglaterra não sentiria o frio com tamanha
intensidade. Despiu-se em silêncio e como que para desafiar o valete, dirigiu-se até a
janela, descerrou a cortina e abriu a veneziana.
O vento gélido pegou-o de surpresa e o fez tossir.
— Milorde está se arriscando à toa — disse Dawkins, em tom de repreensão. —
Sabe muito bem o que o médico lhe disse, quando ficou doente em Nápoles.
Lorde Damien afastou-se da janela.
Estivera doente durante o inverno em Nápoles, não devido ao clima, mas porque
se bateu em duelo por causa de Phenice e seu adversário mostrou-se mais hábil do que ele.
Dawkins deixou-o e ele deitou-se no enorme leito que pertencia aos senhores do
solar do barão há mais de um século.
O fogo da lareira punha reflexos estranhos no teto do quarto e sugeria as mais
diversas imagens.
Conseguia ver o primeiro palazzo no qual ele e Phenice haviam vivido em Veneza.
Achou que jamais se cansaria de contemplar o canal através daquelas janelas tão
antigas. Aquilo tinha sido de uma beleza e de uma poesia sem par e ele percorreu as
livrarias, à procura de livros de poesia, a fim de lê-las para Phenice, que no entanto, não se
mostrava disposta a ouvi-las.
— Não perca tempo com poesia, Virgil. Beije-me! Diga que me ama! Faça-me
sentir o seu amor!
Ainda agora conseguia ouvir sua voz, que o deixava inflamado. Mais tarde a
mesma voz repetia sem cessar:
— Virgil, estou entediada! Vamos para algum outro lugar!
— Virgil, vamos dar uma festa! É tão enfadonho ficar sozinha!
— Virgil, faça-me sentir! Excite-me! É só para isso que vivo!
E era verdade! Descobriu que Phenice vivia apenas para os sentimentos que não
somente ele, como também outros homens, pudessem despertar nela.
As imagens sugeridas pelas chamas se alteraram. Viu a primeira vez em que
surpreendeu a infidelidade de Phenice. Expulsou o homem e agrediu-o selvagemente!
Somente quando notou o sangue que manchava sua camisa imaculadamente
branca, perguntou a si mesmo como podia ser tão brutal em relação a um outro ser
humano.
Phenice, em seguida, chorou e implorou seu perdão.
— Não tinha intenção de entregar-me a esta situação. Simplesmente aconteceu!
Oh, Virgil, a culpa é sua. Você não me faz amá-lo, você não me excita como costumava
fazer!
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Estes queixumes se repetiram muitas e muitas vezes. Havia sempre outros
homens, outras infidelidades, outras suspeitas, que roíam sua mente como um câncer
medonho.
O pior de tudo, é que suas suspeitas aos poucos foram se transformando em
convicção. Finalmente, suprema degradação! Ele se recusou a saber e ignorou de propósito
o que estava ocorrendo.
Ficaram juntos por seis anos e durante esse tempo Virgil deixou de ser um rapaz
ingênuo, idealista e tolo para transformar-se em um homem cínico e amargurado!
Após esta experiência não havia o que ele ignorasse a respeito das mulheres. Ela
lhe ensinara tudo, absolutamente tudo. Não havia o que ela não tivesse conspurcado,
barateado e degradado.
Quando ela o abandonou ele se odiou, pois não conseguia encarar a verdade:
estava contente.
Ela não fugira, simplesmente lhe comunicara que ia partir com um homem que
Virgil suspeitava fosse seu amante há pelo menos seis meses.
Era um egípcio, imensamente rico, apaixonado, exigente e sem a menor sombra de
dúvida, brutal. Era isto que Phenice desejava: brutalidade! Ele, no entanto, oferecera-lhe
apenas afeto.
Certa ocasião, ele a esbofeteara, quando ela o deixou quase louco de ciúmes,
devido ao seu comportamento provocante com outro homem.
Imediatamente sentiu-se aterrado por ter agido daquela maneira. Aquilo se
chocava no somente no que dizia respeito a seus instintos, como também com a fina
educação que havia recebido.
Caiu de joelhos a seus pés, arrependido. Phenice tinha um vergão vermelho no
rosto. Pediu-lhe desculpas, suplicou seu perdão e se deu conta, quase com horror, que ela
tinha gostado do que acabava de acontecer!
Ela queria ser solicitada e conquistada a cada momento que passava, e com uma
intensidade que contrariava o caráter e a formação de Virgil.
Ele podia ser dominador no amor, o que era algo muito diferente do que, por
exemplo, tratar uma mulher como se ela fosse um mero objeto de prazer.
Phenice, no entanto, queria um homem sem coração, um tirano cruel a quem
pudesse se render, como se fosse sua escrava perpétua.
Virgil surpreendeu-a supervisionando as duas empregadas que faziam suas
malas. Ordenou-lhes que saíssem do quarto e encarou Phenice, como que pedindo uma
explicação.
— Não havia a menor necessidade de mandá-las embora, pois sabem que partirei
com Salin.
— Acha que será feliz com ele? Phenice deu de ombros.
— Sim, como com qualquer outro homem. É imensamente rico. Nunca haverei de
querer mais nada, enquanto estiver com ele.
— Eu lhe dei tudo o que você desejou.
Virgil era senhor de uma grande fortuna, herdada de sua mãe e, a esse respeito,
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completamente independente de seu pai.
— Dinheiro e jóias não são exatamente o que eu desejo — retrucou Phenice, com
um sorriso malicioso.
— Sei muito bem o que você quer, mas não sou o tipo de homem que possa
favorecê-la!
— Você é inglês demais para compreender! Se não for agora a idade chegará, e eu
ficarei velha demais para mudar!
Pela primeira vez ela falava a verdade.
Uma das coisas que ele ficou sabendo, durante os seis anos que viveram juntos, foi
que ela havia mentido a respeito de sua idade, a exemplo do que fizera em relação a tantas
outras coisas.
Todos os dias ela contemplava freneticamente o rosto, à procura da menor ruga, e
desfiava os cabelos, na expectativa de um fio branco.
Empregava todos os artifícios, usava todos os cosméticos, à venda e chegara
mesmo a servir-se de um Elixir da Juventude, adquirido por uma soma exorbitante a uma
mulher com ares de bruxa.
Era esta a fera que Phenice queria que Virgil matasse, mas até mesmo seu ardor e
sua paixão não bastavam para deter a mão do tempo.
O egípcio não tinha mais do que vinte e cinco anos. Aprenderia a lição, pensou
Virgil com amargura, do mesmo modo que ele.
A única coisa que Phenice procurava em seu novo amante era a paixão e o fogo da
juventude, que lhe daria a ilusão de que ela era novamente jovem.
Quando ela finalmente partiu, deixando atrás de si o odor embriagante que
sempre a rodeava, Virgil sentiu-se não somente aliviado, mas também solitário, com uma
intensidade jamais prevista.
O palazzo suntuoso pareceu-lhe tranqüilo por demais e até mesmo assustador.
Percebeu que estava à espera de que ela o chamasse.
— Virgil! Estou entediada!
— Virgil, convide gente para jantar conosco! Quero dezenas de convidados!
— Quero festa, música, risos, alegria!
— Virgil! Faça amor comigo! Faça-me sentir! Me inflame! Tenho medo! Tenho
medo de não sentir mais!
Ele agora dava festas, nas quais era o único convidado. Festas silenciosas,
solitárias, durante as quais se embebedava, na crença de acabar com a solidão, mas que no
entanto, só agravavam a situação.
De repente, achou impossível escapar às recordações do solar do barão.
Em lugar das risadas e do alarido de seus amigos bêbados, começou a ouvir os
pombos selvagens arrulhando no bosque, os rouxinóis cantando no silêncio da noite, os
veados em carreira desabalada pelo parque e os cavalos relinchando no estábulo.
Desde que abandonou sua casa escreveu duas cartas a seu pai, que não foram
respondidas.
Através de amigos ingleses que encontrou em Roma e Paris soube do escândalo
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que havia provocado, bem como do comportamento digno do marquês, que jamais
mencionava seu nome.
Saiu de Veneza, achando aquele lugar intolerável, e tomou a decisão de explorar o
mundo. Era algo que sempre tinha desejado fazer e agora era dono de si mesmo, sem mais
nada que o detivesse.
Partiria à procura do que havia perdido. Nada encontrou, porém ganhou
experiência.
Passou por muita agrura e desconforto, mas sua alma enlevou-se com a beleza do
Oriente, apesar se sentir-se atingido pela pobreza, ignorância e crueldade à sua volta.
Viajou em navios de carga, atravessou montanhas impossíveis, através de trilhas
sinuosas e que mal davam passagem para um homem. Com freqüência, tais viagens
apresentavam muitos perigos, mas ele sentiu que até certo ponto estava se testando,
deixando para trás os anos de indolência e vida fácil.
Em todos os lugares aonde ia, encontrava mulheres e, graças a elas, deixou-se
aprisionar por antigas armadilhas.
Veneza, Roma, Nápoles, Paris! Mulheres, sempre mulheres! Mulheres que lhe
proporcionavam a ilusão do amor que ele havia conhecido um dia e que Phenice havia
matado.
Foi uma morte lenta, torturante, que lhe deixou feridas na mente, na alma, no
coração, e que jamais haveriam de cicatrizar.
Aprendeu também uma grande lição: que a beleza é apenas uma ilusão e que o
desejo morre com a mesma rapidez com que despertou.
Teve mulheres e mais mulheres, que preenchiam uma parte de sua vida e
esvaziavam-lhe o bolso, mas nenhuma delas conseguiu atingir uma parte vital de seu ser,
a exemplo do que Phenice havia feito.
Algumas vezes, quase se ressentia por não estar mais sujeito à magia daquelas
criaturas, que conseguiam inflamar um homem com o desejo.
Quando soube que Phenice havia morrido, não sentiu nada, absolutamente nada!
“Onde antes havia fogo, agora só sobraram cinzas”, disse para si mesmo, citando um
poeta que muito amava.
Era difícil acreditar naquele estranho sentimento… Quando lhe contaram que ela
havia se matado, não ficou mais magoado do que se lhe tivessem comunicado a morte de
um conhecido.
— Mas o que foi que aconteceu? — perguntou, ficando muito surpreendido ao ver
que sua voz exprimia apenas indiferença.
— Salin deixou-a. Sucederam-se outros homens, mas ela começou a sentir
dificuldade em consegui-los. Á vida que havia levado até então começou a exigir pesados
tributos. Passou a beber e a drogar-se, a fim de se estimular e cometer excessos ainda
maiores.
Virgil conseguia ver o quadro com nitidez e parecia-lhe incrível que Phenice,
àquela altura, deveria ter quarenta e cinco anos! Quarenta e cinco!
Foi nesse momento que decidiu voltar para casa.
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Parecia-lhe impossível que seu pai tivesse morrido, mesmo que a notícia não fosse
recente, pois a recebeu ao regressar da índia.
Como haveria de enfrentar aqueles que lhe perguntariam por que tinha regressado
sozinho? Como encararia o marquês, que ainda vivia, que ainda estava casado com a
mulher que o abandonara pelo rapazola filho de seu vizinho?
Foi somente quando entrou no solar do barão que compreendeu que nada havia
mudado naquela casa, nada havia mudado fora dela.
Phenice podia estar morta, mas as portas de seus vizinhos estariam fechadas para
ele, devido ao que acontecera há doze anos.
Não teria sabido deste fato com tamanha certeza se não tivesse parado em
Londres, a caminho de casa.
— Meu Deus! Virgil, é você? — perguntou-lhe um antigo companheiro de escola,
quando ele entrou em um clube.
— Anstruther! Como vai você?
— Eu é que devia lhe fazer esta pergunta — replicou Roger Anstruther —, mas
nem precisa me responder. Você está como sempre foi, muito bem-apessoado!
— Devo-me sentir lisonjeado por você se lembrar de mim —, comentou Virgil,
rindo.
— Mas é claro que não haveríamos de esquecê-lo!
— O que você quer dizer com isto?
— você se tornou quase uma lenda!
Virgil foi suficientemente ingênuo para pedir uma explicação e sentiu-se atônito
com o que seu amigo lhe revelou.
Não tinha a menor idéia de que suas festas — ou, segundo se propagavam, suas
orgias — e as mulheres que se sucederam a Phenice, os duelos, os escândalos, haviam
irradiado da Europa continental, chegando até Londres!
Roger Anstruther mostrou-se brutalmente franco.
— Seus velhos amigos, como eu, por exemplo, terão muito prazer em vê-lo, Virgil,
mas as mulheres não vão querer saber de você!
— As mulheres?
— Bem, minha mulher, por exemplo. Posso insistir para você jantar só conosco,
mas ela jamais haverá de convidar suas amigas. Você se tornou um tabu, meu velho!
Afinal de contas, você fugiu com a mulher de uma das figuras mais respeitáveis da
nobreza!
— Mas isto já faz muito tempo…
— Mas o fato ainda está fresco na memória de muita gente! Além disso, o marquês
tornou-se mais importante do que nunca. E líder do governo na Câmara dos Lordes e
tenho certeza de que, enquanto ele viver, você não terá muitas oportunidades de ocupar
determinadas posições!
Lorde Damien sabia muito bem o que o ostracismo social poderia significar. Já
havia enfrentado aquela situação na Itália, onde as melhores famílias se recusaram a
recebê-lo, bem como a Phenice.
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Em Paris e Veneza somente os boêmios, aqueles que iam a qualquer festa, bem
como os homens e mulheres que pertenciam a uma sociedade mais cosmopolita,
aceitavam seus convites.
Sabendo muito bem o que o esperava, lorde Damien partiu de Londres.
Ao passar diante dos majestosos portões de ferro forjado, na entrada do castelo de
Lynmouth, pensou que o marquês vingava-se de um modo mais sutil e mais eficaz do que
se, por exemplo, o tivesse desafiado para um duelo!
Ao entrar no solar do barão sentiu-se transportado de volta para o passado, mas,
no que lhe dizia respeito, sabia que esse tempo, para ele, significava o presente e
possivelmente o futuro.
Phenice estava morta, mas parecia-lhe que ainda era seu prisioneiro e que jamais
se livraria dela.
Com que então isto era o castigo! Era este o preço que tinha de pagar do erro
cometido!
Ao dormir na cama de seu pai, na primeira noite passada no solar, pensou que
quanto mais cedo morresse, melhor!
Quando chegou a manhã tentou dissipar tais pensamentos, sabendo que eram
poucos saudáveis e um tanto dramáticos.
Ao percorrer a enorme casa, que permanecia a mesma desde a sua infância,
compreendeu que a traíra, assim como havia traído seu pai.
Não tentou desculpar-se ou censurar Phenice. Apenas constatou, com certo
cinismo, que na idade de dezenove anos teria sido um super-homem, se não cedesse ao
desejo que ela sentia por ele.
Ao mesmo tempo, a educação que recebera devia ter lhe proporcionado suficiente
autocontrole para perceber que, enquanto Phenice possuía seu corpo, uma parte dele
pertencia ao solar do barão e a seus ancestrais. Contemplou o retrato de seu pai.
Era de uma semelhança notável e pareceu-lhe que o velho tinha um ar severo, de
reprovação, exatamente o mesmo que assumia todas as vezes que pensava em seu filho
único. — Perdoe-me! — disse Virgil, do fundo do coração. Cansado de percorrer os
jardins, ordenou no dia seguinte que selassem um cavalo e percorreu todo o parque, bem
como alguns rincões isolados da propriedade.
Não conseguia se decidir a visitar seus meeiros, pois sabia que leria a condenação
em seus olhos, devido ao fato de se ter ausentado durante tantos anos.
E claro que eles saberiam a razão! Fariam comentários a seu respeito, mostrariam-
no com o dedo, afetando um ar de desprezo, e sabia que não conseguiria enfrentá-los.
Cavalgou durante todo o dia e, em conseqüência, dormiu bem melhor do que na
véspera. Pela primeira vez sentiu alguma paz a aliviar o tormento que parecia vazar de
seu corpo e de sua mente um verdadeiro campo de batalha.
Devia tentar chegar a uma decisão sobre sua vida. Iria embora ou permaneceria no
solar? Devia encher a casa com pessoas que o aceitariam e trataria de ignorar aquelas que
o evitavam?
Não importava que ele fosse decadente ou debochado! Sempre encontraria alguém
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que lhe fizesse companhia.
Talvez fosse a única coisa que tinha sobrado: festas, mulheres…
Mulheres! Mulheres! Mulheres! Eram todas iguais' Sabia, mesmo antes de lhes
dirigir a palavra, que jamais encontraria em qualquer uma delas aquilo que procurava.
Então de modo mais inesperado possível, como uma gota de orvalho pousada sobre a
pétala de uma flor, encontrou Gracila.
CAPÍTULO V
Gracila despertou sorrindo e compreendeu que estivera sonhando.
Era uma história confusa e engraçada, relativa a tudo o que havia acontecido na
véspera e ela riu tanto que as lágrimas escorreram-lhe rosto abaixo.
Ela e lorde Damien estavam sentados à beira do regato e ele tentava pescar
algumas trutas.
No dia anterior, ele havia localizado suas velhas varas de pescar e muito em
segredo levou-as durante a noite até as proximidades do regato, escondendo-as por entre
as árvores.
Na manhã seguinte, ordenou que arreassem o cavalo, comunicando a Millet que
pretendia almoçar fora e levaria alguns sanduíches.
Alguns momentos mais tarde, Gracila ficou sabendo que lorde Damien só voltaria
no final da tarde e ela, portanto, poderia ir dar um passeio pelo jardim.
— Está um dia tão belo! — disse para a sra. Hansell. — Será que posso levar
alguma coisa para comer? É uma amolação ter de voltar para casa, pois quero aproveitar o
sol o mais que puder.
— A cozinheira vai lhe preparar um bom lanche e temos aqui cestas apropriadas
para piquenique. Não vá se afastar demais, milady. Hoje deve fazer muito calor, no meio
da tarde. Depois do frio que fez, há dois dias, a temperatura esquentou. É capaz de cair
uma tempestade.
— Se isto acontecer, não se preocupe, que arranjarei um lugar onde me abrigar.
Não fique com cuidados, se eu não voltar para casa.
Saiu de casa e apressou o passo, pois estava ansiosa para voltar a encontrar lorde
Damien.
Sentia-se como se tivesse asas nos pés e queria dançar, tamanha sua felicidade.
Cada vez se tornava mais excitante encontrá-lo e todas as noites sonhava com ele.
Eram sonhos felizes, que a faziam rir.
Assim que o encontrou, lorde Damien pôs-se imediatamente a pescar. Conseguiu
pegar duas trutas de bom tamanho, que eles assaram em uma fogueira improvisada.
Havia muito o que comer, pois além dos sanduíches que Virgil trouxera, havia ainda a
torta e os vidros de geléia providenciados pela cozinheira do solar.
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Deram cabo de tudo aquilo, incluindo uma garrafa de vinho.
Lorde Damien até mesmo insistiu para que ela tomasse um gole de conhaque, pois
havia encontrado uma garrafa velhíssima na adega que pertencera a seu avô.
Ela não gostou muito, mas provou, só para lhe dar prazer. Virgil levantou um
brinde:
— Ao seu sorriso, aos seus olhos! São as duas coisas mais belas do mundo!
Ela ficou toda ruborizada e não conseguiu encará-lo de frente.
Após o brinde, fez-se um silêncio um tanto constrangedor, como se não tivessem
mais nada para dizer. Gracila sabia que algo de muito estranho acabava de lhe acontecer.
Estas pausas significativas sucederam-se durante toda a tarde. Gracila achou que o
sol estava mais dourado e as flores mais perfumadas do que nunca.
Antes que regressassem ao solar, lorde Damien disse:
— Estava esperando a noite passada o que aconteceria se chovesse e não
pudéssemos sair de casa.
— Pensei exatamente a mesma coisa.
— Como é que faríamos para nos encontrar?
— A sra. Hansell acharia muito esquisito se eu saísse no meio da chuva…
— Pois então, ouça minha idéia.
Gracila achou que ele ficaria contente se conseguisse resolver um problema que
para ela era insolúvel. Pôs-se a ouvi-lo com muita atenção.
— Ocorreu-me um pensamento.
— De que se trata?
— Você pode vir até a ala da mansão onde habito sem que ninguém a perceba. É
muito simples: basta abrir uma clarabóia e caminhar por cima do forro!
— Jamais me ocorreu esta idéia!
— Pois foi o que eu fiz ontem à noite. Claro, há muita poeira, mas você pode
atravessar a casa inteira, abrir uma outra clarabóia e descer na minha ala.
— Sei exatamente onde fica! É bem em frente à biblioteca!
— Exatamente! É lá que nos encontraremos.
— Na biblioteca?
— Sim, estarei a sua espera.
— Que maravilha! E bem que estou precisando de mais livros. Já devorei todos os
que se encontravam em meu quarto!
— Por que não me disse antes?
— Mas o que é que eu podia fazer?
— Gostaria eu mesmo de levá-los para você!
— Com a sra. Hansell dormindo no quarto ao lado? O que ela diria?
Virgil percebeu que Gracila ouvia suas palavras como uma verdadeira criança. Era
tão pura e inocente que jamais lhe passaria pela cabeça que ele tivesse outras razões para
querer ir ao seu quarto!
— Pois então nos encontraremos na biblioteca, mas me sinto um tanto magoado
por você querer que eu apenas lhe dê um livro! Achei que minha cotação era mais alta!
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— E é, mas acontece que as noites me pareceriam compridas demais, se eu não
tivesse um bom livro para ler!
— Pois agora, graças à minha idéia genial, você vai ter com quem conversar!
— Será uma maravilha! Quero que você me fale de todos os lugares que visitou e
quem sabe na biblioteca existam livros que falem deles!
— Há um livro sobre a índia que vai interessá-la muito e com toda certeza
encontraremos outros. Gracila bateu palmas, entusiasmada.
_ É a coisa mais excitante que já me aconteceu. Não vou mais ter necessidade de
usar a imaginação para visualizar os lugares de que você me fala! Posso ouvi-lo e ao
mesmo tempo olhar!
Virgil pensou: quantas mulheres manifestariam o desejo de encontrá-lo
secretamente, sem nenhum outro desejo que não o de aprender geografia?
Era uma experiência nova e ele compreendeu que queria lhe falar não somente a
respeito da índia e dos outros lugares por onde viajara, mas também do amor…
Percebeu naquele instante que não somente estava apaixonado por Gracila, mas
que ela tinha despertado nele emoções jamais suscitadas por outra mulher.
Agora sabia que o idealismo que sentira quando menino regressava à sua mente e
ao seu coração, mas tratava-se de algo mais profundo, real e humano.
Gracila era como uma flor que podia ser facilmente magoada por mãos brutais ou
ventos bruscos.
Ficou igualmente surpreendido ao notar que ouvi-la era como detectar os acordes
de uma melodia que persistiam durante muito tempo depois que ela o deixava.
Os olhos que o contemplavam eram límpidos e honestos. Eram os olhos da
inocência e da verdade.
Era sua pureza que mais o atraía, mas ao mesmo tempo seus instintos de homem
desejavam despertar nela o que havia de mais feminino.
O olhar de Virgil demorou-se sobre os lábios de Gracila e ela desviou o olhar,
perturbada.
Lorde Damien controlou-se com grande esforço e levantando-se, disse:
— Acho melhor limparmos as sobras de nosso piquenique, caso contrário, quem
passar por aqui haverá de imaginar que demos um banquete!
— Pois foi o banquete mais delicioso de que participei até hoje! .
— Também achei e fiquei muito satisfeito!
Pensou no dinheiro que havia esbanjado em Veneza e nas supostas orgias
parisienses, em que o champanhe corria à solta e pratos requintados satisfaziam os mais
variados apetites dos convidados.
Na manhã seguinte, apresentava-se a indefectível enxaqueca, causada não
somente pelo vinho, como também pela fumaça dos charutos e as indulgências da carne!
Esses quadros lhe atravessavam a mente e quase o faziam estremecer, receoso de
que Gracila pudesse imaginar o que lhe passava pelo pensamento.
Consolou-se, porém, dizendo-se que bastava abandonar a contemplação da
sujeira, da desolação e do deboche e mirar as estrelas, sobretudo aquela pequena estrela
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que era tão diferente das demais.
Para Gracila, suas mudanças de humor, seus silêncios e a expressão de seus olhos
faziam parte do encantamento que a deixava como que magnetizada.
Nunca lhe passou pela cabeça que um homem pudesse ser tão másculo e belo e ao
mesmo tempo capaz de penetrar naquela região de sua mente que ela havia sempre
mantido em segredo, pois ninguém até então a compreendera.
Lorde Damien não somente a ouvira, como também tornara as coisas muito mais
claras para ela.
Quando chegou o momento inevitável de se separarem, voltou para casa sentindo
que sua mente havia se expandido e que ele a havia elevado a alturas que ela jamais
atingira.
Eu o verei muito em breve, pensou Gracila, enquanto a sra. Hansell entrava no
quarto e descerrava as cortinas.
— Que dia úmido, milady! Era de se esperar, após o temporal de ontem à noite!
— Como? Houve um temporal?
— Houve sim, milady, e choveu torrencialmente. Foi ótimo para as plantas.
Gracila sorriu, pensando que ainda na véspera ficaria quase desesperada com a
perspectiva de não poder sair. Agora, porém, poderia encontrar-se com lorde Damien na
biblioteca, conforme ele sugerira!
— Tenho notícias péssimas para lhe dar, milady! — disse a sra. Hansell, criando
um certo suspense.
— Mas o que foi que aconteceu?
Gracila temeu por alguns segundos que seu esconderijo tivesse sido descoberto.
— Trata-se da rainha, milady. Quase a perdemos.
— A rainha? — repetiu Gracila, sem entender.
— Os jornais acabam de chegar e trazem a notícia de que um louco atirou em Sua
Majestade no parque.
— Ela foi ferida?
— Não, Deus foi misericordioso e a rainha portou-se com muita bravura.
— Conte-me exatamente o que aconteceu!
Sempre se interessara pela jovem rainha, desde que ela subira ao trono.
Há seis anos atrás ficara fascinada ao saber o quanto a mãe da princesa Vitória a
mantinha sob vigilância, até o dia em que o rei morreu e ela, contando apenas dezoito
anos, passou da escola para o trono, e isto do dia para a noite!
Gracila, como de resto todos os seus compatriotas, achava que a jovem Vitória era
como uma fada e seu reinado traria paz e prosperidade para a Inglaterra.
Nos castelos e nas mais humildes choupanas contavam-se dezenas de histórias
relativas à rainha; os jornais e as lojas traziam seu retrato estampado em desenhos e
oleogravuras, muito disputadas por todo mundo.
Aconteceu à coroação, que deixou todos emocionados, e o entusiasmo chegou ao
auge, quando ela desposou o homem a quem amava.
Não havia em toda a Inglaterra uma jovem que não sentisse que a rainha, ao
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desposar o príncipe Albert, havia aberto as portas do amor. Não fora forçada a contrair um
matrimônio de conveniência, como acontecia não só com a realeza, como com qualquer
família aristocrática do país.
Gracila agora perguntava-se, por que não tinha fincado o pé e insistido em
escolher um marido, a exemplo da rainha, em vez de aceitar o duque, só porque seu pai e
a madrasta achavam que ele era o consorte ideal.
Agora, a jovem rainha, que carregava o fardo pesado da monarquia em seus
ombros frágeis, tinha corrido perigo!
— Mas o que foi que aconteceu? — perguntou Gracila, antes que a sra. Hansell
abrisse a boca.
— Ao que tudo indica, e segundo Millet leu para mim, Sua Majestade, ao dar um
passeio de carruagem com o príncipe Albert, viu anteontem um sujeito de aspecto sinistro
que apontava uma pistola para ela.
— E ele chegou a atirar?
— Não. Parece que a arma falhou e o homem desapareceu na multidão.
— E ninguém o.prendeu? — perguntou Gracila, indignada.
— Era de se esperar que sim. Se quer saber minha opinião, acho que as pessoas
não se preocupam muito com a segurança de Sua Majestade.
— Por favor, prossiga, sra. Hansell.
— Bem, de acordo com os jornais, Sua Majestade teve certeza de que o tal sujeito
tentaria novamente e, apesar de o príncipe tentar dissuadi-la, ela tomou uma atitude
corajosa e dispôs-se a enfrentar o perigo.
— É uma atitude que posso compreender muito bem.
— Ontem o casal real refez o mesmo percurso da véspera, só que a rainha mandou
que sua dama de companhia viesse na carruagem de trás.
— Quanta consideração de sua parte!
— De Sua Majestade só poderia esperar uma atitude dessas.
— E o que foi que aconteceu?
— O homem voltou a atirar, só que desta feita disparou cinco vezes!
— E não a atingiu?
— Não! A polícia o agarrou imediatamente. A imprensa acha que o revólver não
continha nenhuma bala!
— Nenhuma bala? Mas o sujeito deve ser maluco!
— É o que os repórteres dizem, mas saberemos mais detalhes quando ele for a
julgamento.
— É assustador, pensar no que poderia ter acontecido!
— Todas as igrejas da Inglaterra celebrarão um ofício em ação de graças! —
informou a sra. Hansell.
— Ainda bem! Não suportaríamos perder a rainha. Havia algo de romântico e
excitante no fato de ter uma jovem no trono, após o idoso e bonachão William IV, que
absolutamente não parecia um rei.
- Estou muito contente com o fato de a rainha ter se salvado!
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— Sim, seria uma verdadeira tragédia se Sua Majestade não pudesse vir aqui
amanhã!
— Amanhã? — exclamou Gracila.
— Deve saber, milady, que ela inaugura um hospital em Newbury e em seguida
comparecerá a uma recepção dada pelo governador-geral, o marquês de Lynmouth.
— Oh, claro! Já tinha ouvido falar destas festas, mas havia esquecido a data.
Ocorreu-lhe, subitamente, que neste dia, trinta e um de maio, devia estar se
casando!
Não era de surpreender que, excitada com o próprio casamento, tivesse se
esquecido de que a rainha vinha em visita ao condado. Imaginava que naquela ocasião já
estaria em viagem de núpcias.
Naquele dia, portanto, estaria casada com o duque… Naquele momento deveria
estar se vestindo para desposar um homem que se interessava unicamente por sua
madrasta. Estremeceu, ao pensar em semelhante coisa.
Até então não sabia qual a significação do casamento. Agora, porém, tinha certeza
absoluta de que qualquer casamento deveria basear-se no amor.
A sra. Hansell trouxe a bandeja com a refeição e deixou-a ao lado da cama.
— Estive tão preocupada, pensando em Sua Majestade, milady, que já ia me
esquecendo que hoje era a data de seu casamento!
— A ocasião não poderia ser pior — comentou Gracila, olhando através da janela.
— Seria impossível ir até a aldeia em carruagem aberta, o que aliás, deixaria muita gente
decepcionada.
— Não se arrepende por ter fugido, milady?
— Não! Claro que não! Achei providencial descobrir a tempo que não poderia
desposar o duque e você e Millet foram uns anjos ao tomar conta de mim.
— Mas é preciso casar um dia, milady. Estava dizendo a Millet, ontem à noite, que
nunca a vi tão linda. Deve ser por causa do descanso e do ar puro.
— É que sou tão feliz aqui — declarou Gracila, acrescentando prudentemente —,
com vocês dois!
Sabia que não estava dizendo toda a verdade. Havia mais alguém que a fazia feliz;
alguém cuja companhia desejava com uma intensidade que aumentava cada vez mais.
— Está chovendo, milady, e achei que seria uma boa coisa trabalhar na despensa.
Milady bem que poderia me ajudar, conforme prometeu, a encher alguns vidros de
conservas.
A governanta ficou à espera de sua resposta e ela disse, após uma pausa:
— Será bem divertido trabalhar na despensa, agora de manhã, e mais tarde, após o
almoço, gostaria de fazer uma sesta.
Era um desapontamento ter que executar semelhante tarefa quando preferia estar
na companhia de lorde Damien, mas pressentiu que ele não a esperaria e mais tarde ouviu
comentarem que, a despeito da chuva, ele fora dar um passeio a cavalo.
Naturalmente, havia desistido de esperá-la durante toda a manhã. Tinha certeza,
porém, de que Virgil a esperaria o quanto fosse preciso, depois do almoço.
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Estava tão excitada com o pensamento de vê-lo que lhe foi difícil provar os
deliciosos pratos que a cozinheira preparou para seu almoço.
Parecia-lhe ridículo sentar-se só em sua pequena sala de estar, enquanto lorde
Damien comia no andar debaixo, sozinho, na imensa sala de jantar.
Seria tão divertido estarem juntos, rindo e conversando!
Havia centena de coisas que ela queria lhe dizer e para as quais nunca parecia
existir tempo.
A sra. Hansell recolheu a bandeja.
— Agora descanse bastante, milady, e não gaste seus olhos, devorando livros!
Precisa dormir.
— Vou tentar seguir sua sugestão.
A sra. Hansell levou a bandeja e Gracila passou para o quarto.
Lá permaneceu, até não conseguir mais ouvir os passos da governanta, que se
afastava. Em seguida, trancou a porta e enfiou a chave no bolso, pois não queria ser
surpreendida caso a sra. Hansell voltasse.
Saiu para o corredor e pôs-se a andar na ponta dos pés, apesar de ter certeza de
que não haveria ninguém ali para ouvi-la. Subiu a escada de serviço que levava para o
segundo andar e de lá passou para o terceiro.
Como lorde Damien lhe dissera, a passagem que percorria toda a extensão da casa
estava empoeirada e as portas das dezenas de quartos que outrora abrigavam a criadagem
da mansão estavam fechadas.
Tudo aquilo era um tanto fantasmagórico e Gracila pôs-se a caminho.
Chegou finalmente à outra extremidade da enorme mansão e encontrou uma
escada quase idêntica à que usara, descendo para o segundo andar, em seguida para o
primeiro e de lá chegando ao térreo.
Era o único momento em que corria o perigo de ser surpreendida, pois Millet ou o
valete poderiam estar atendendo lorde Damien na biblioteca.
Esgueirou-se pelo corredor e abriu a porta.
Lorde Damien já estava a sua espera.
— Gracila! Sabia que você viria!
Levantou-se da cadeira de espaldar muito alto e ela sentiu o desejo instintivo de
correr até ele e atirar-se em seus braços.
Dominou-se, fechou a porta e caminhou com grande decoro até a lareira.
— Sabia que você viria — ele repetiu. — Esperei-a durante toda a manhã e no final
fui dar um passeio a cavalo.
— Sim, eu sei. A sra. Hansell pediu-me que a ajudasse na despensa e eu não tive
como recusar.
Trocavam banalidades, porém seus olhos denotavam sentimentos bem diversos.
Gracila sentiu-se intimidada diante da expressão do olhar de Virgil e voltou-se,
contemplando a biblioteca.
— Cada vez que venho aqui constato o quanto este lugar é belo. Uma das coisas
que mais me encantam são estas deusas pintadas no forro. Devem estar se divertindo
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muito, flutuando nas nuvens em meio aos cupidos…
Voltou-se, a fim de encará-lo, e ao contemplar, tanta beleza e inocência lorde
Damien prendeu a respiração, maravilhado.
E então, subitamente, sem a menor explicação, em um tom de voz que Gracila
jamais ouvira, ele disse:
— Pelo amor de Deus, não me olhe assim, pois não consigo agüentar mais!
— Assim, como? — indagou Gracila, surpreendida.
— Estive à sua espera, sentindo que cada momento era uma eternidade e agora
que você está aqui, sei que tenho de partir!
— Partir? Mas por quê? Não compreendo!
— É que não posso encontrá-la desse jeito! No que diz respeito a você, não é
correto! E para mim é um tormento!
Gracila olhou para ele, consternada.
— Ainda não compreendo.
— Pois então, deixe-me colocar as coisas em outros termos. Eu a amo, Gracila!
Amo-a de um modo como nunca amei ninguém e como jamais voltarei a amar! Não tenho,
porém, nada a lhe oferecer.
Durante alguns minutos ela julgou não ter ouvido bem, em seguida seu rosto
iluminou-se, resplandecente de felicidade incontida.
— Você me ama? — murmurou.
— Sim, que mais você poderia esperar? Oh, meu amor, não sabia que era possível
existir alguém como você neste mundo, tão pura, tão perfeita, tão perfeita, tão inocente! E
é por isso mesmo que você não é feita para mim!
— Você me ama… e agora sei que…
As palavras morreram na garganta de Gracila e ele encorajou-a:
— Diga! Diga o que você tem a dizer, pelo menos uma vez, e que eu me lembre
disto até o fim de meus dias!
— Eu… o amo… mas não sabia que se tratava de amor… e ao mesmo tempo sabia
que não me enganava.
Ele a encarou e Gracila achou impossível que o olhar de alguém pudesse conter
tanta dor.
— Você… me ama? — perguntou Gracila, quase como uma criança temerosa de
não ter ouvido bem.
— Amo-a tanto que meu corpo transformou-se em um campo de batalha e eu
estou estilhaçado em mil pedaços!
— Mas então… temos… de ir embora daqui?
— Já lhe disse que não tenho nada para lhe oferecer.
Ela o fitou com os olhos brilhando e ele a contemplou durante um bom momento,
antes de dizer:
— Sei o que você está pensando, meu amor, minha preciosa criança, mas é
impossível! Como posso lhe oferecer casamento e o que este casamento representaria para
você?
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— Eu o amo e agora sei que não poderei me casar com mais ninguém… a não ser
você.
— Não é verdade! Você há de se casar com um homem digno de sua beleza.
— Jamais, se não amá-lo!
— Você é jovem demais, não entende o amor como eu o entendo e me esquecerá!
— Nunca! Nunca! Você é o homem que sempre desejei e que sabia que existia, em
algum canto deste mundo. Você é o homem presente em meu coração, sempre que eu lia
histórias de amor. Agora, porém, meus sonhos se transformaram em realidade e você está
diante de mim!
— Pare! Para de me dizer estas coisas. Você está me tentando, Gracila, e eu posso
esquecer que ainda me resta alguma decência! Só Deus sabe o quanto ela é diminuta!
— Você sofreu, mas talvez eu possa fazê-lo feliz… Lorde Damien levou a mão ao
rosto, como se quisesse subtrair-se àquele olhar suplicante, dizendo em seguida:
— Tente ser sensata, Gracila. Pense no que seria a vida a meu lado. Posta à
margem por todas as pessoas decentes, perambulando de casa em casa e jamais tendo um
verdadeiro lar! Nunca pertenceríamos a nenhum lugar!
— Podemos morar aqui — ela disse com doçura.
— E todas as portas do condado se fechariam diante de nós! As pessoas a
assinalariam com desprezo, cada vez que você ultrapassasse o portão desta casa! Você
acaso acha que meu amor é tão frágil, a ponto de eu sacrificá-la, em vez de me sacrificar?
Meu amor, eu disse que a amava e isto significa que vou partir! Amanhã mesmo! E, se
tivesse algum juízo, hoje à noite!
— Não! Não poderia suportar! Não quero perdê-lo!
Ao constatar a expressão de seu olhar viu que ele estava resolvido a fazer o que
dizia e sentindo que a felicidade lhe escapava, prosseguiu:
— Nunca lhe disse por que estou aqui e você nunca me perguntou.
— Queria que você confiasse em mim.
— Pois confiei em você e ainda confio, porém quero lhe confiar… toda minha
vida.
—- Pois então diga-me o que você ia me dizer — ele declarou, como se não
suportasse dar uma resposta ao que acabava de ouvir.
— Meu nome é Gracila Sheringham e meu pai, o conde de Sheringham, era grande
amigo de seu pai.
— Lembro-me dele.
— Minha mãe morreu e meu pai casou-se pela terceira vez com alguém de quem
nunca gostei.
Gracila achava difícil prosseguir com sua história, sentindo que o que estava
dizendo não alteraria a decisão de lorde Damien e que ele não estava interessado por mais
nada, a não ser no sofrimento de ter de deixá-la.
Ela lhe contou rapidamente como tinha aceitado a decisão de desposar o duque e
como constatou a impossibilidade de semelhante aliança, ao ouvir na biblioteca a conversa
entre seu futuro esposo e a madrasta.
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— Não tinha para onde ir, até que pensei em Millet, que tinha estado conosco
desde a minha infância.
— E então ele a escondeu aqui em minha casa…
— No início ele recusou, até que eu lhe disse que sentia medo de ir para Londres
sozinha e sem dinheiro.
— E como você conseguiu fugir, diante de tais circunstâncias?
— Que mais eu poderia ter feito?
— Você tem razão, é claro. Mas que falta de sorte, vir até aqui e descobrir que eu
também me encontrava na mansão!
— Acho que foi o destino… Foi ele que nos impeliu a nos encontrarmos e
pertencermos um ao outro.
Ao dizer tais palavras, ficou ligeiramente ruborizada.
— Talvez em uma outra encarnação isto poderia ter sido verdadeiro — disse lorde
Damien — mas agora, não! Só Deus sabe que eu mereço ser punido! É uma punição que
corresponde ao meu crime! Eu a encontrei e agora tenho de deixá-la!
- Mas como você pode fazer uma coisa destas para nós dois? Como é capaz de ir
embora… e me abandonar?
— É que não posso permanecer aqui e amá-la. Para mim foi tão difícil permanecer
a seu lado sem tocá-la, sem beijá-la!
— E por que não me beija?
— Porque a amo o suficiente para não desejar torná-la infeliz.
— Mas como? Deixando-me?
— Achei que poderíamos prosseguir no nosso relacionamento, fingindo que
éramos amigos. No entanto, hoje de manhã, quando você não veio, tive certeza de que eu
estava fingindo e senti uma vontade desesperada de vê-la. Tive de me controlar muito a
fim de não ir até o seu quarto e ver se você se encontrava lá. Queria contemplar seu
rosto…
— Eu também queria estar com você! Pensei em você durante todo o tempo,
enquanto estava na despensa, enchendo os vidros com cebola em conserva.
Lorde Damien riu, sem poder se controlar.
— Meu bem! Você acaba de dizer uma coisa absurda! Estou falando em me matar
e você me fala de cebolas em conserva!
— A vida é assim mesmo! Tudo se mistura… Mas estar com você é tão
maravilhoso… é como se eu me encontrasse no paraíso!
Lorde Damien deu um passo em sua direção e durante um breve momento ela
achou que ele ia tomá-la nos braços. Ele, porém, pareceu se dominar e afirmou, tomado de
ressentimento:
— E você acha que o paraíso dura muito tempo… Não compreende, mas suportei
durante doze anos o tipo de vida que seríamos forçados a viver e posso garantir-lhe que
não é absolutamente um paraíso e sim um inferno! Acha que eu permitiria que você fosse
insultada pelo tipo de gente que desejaria nossa companhia? Como poderia contemplá-la
cada vez mais desiludida com a vida e com o amor? Um amor que, no momento, parece-
62
me uma coisa sagrada!
— É sagrado, sim. Acredito que é isto o que você sempre procurou e o que sempre
desejei. Não me parece que pudéssemos perdê-lo.
— Sei que isto seria impossível. Porque a amo e porque você é sagrada para mim,
preciso pensar com sensatez por nós dois.
— Mas por que você precisa ir embora?
— Porque não posso ficar na Inglaterra sem vê-la! E porque não posso ficar na sua
presença sem fraquejar, com todos os meus nobres ideais e belos princípios dispersos ao
vento! No que lhe diz respeito, Gracila, sou fraco! Sou um homem apaixonado,
perdidamente apaixonado, abjetamente apaixonado e como tal nem um pouco
responsável por suas ações!
A paixão contida em sua voz fez Gracila estremecer e como se não pudesse
suportar a presença de tamanho sofrimento, aproximou-se dele.
— Fique comigo… por favor, fique comigo — suplicou, encarando-o. — Irei em
sua companhia… para qualquer lugar do mundo. Não receio nada… contanto que possa
estar com você.
Ele fitou-a e havia desespero em seu rosto, como se recusar semelhante oferta
fosse para ele algo intolerável.
Esboçou então um gesto brusco e com um gemido, como se sua voz estivesse
presa na garganta, deu-lhe as costas e foi até a janela.
— Pare de me tentar — ele disse, irado. — Deixe-me a sós, Gracila, e um dia se
lembrará de que não foi o diabo que a tentou, e sim você que tentou o diabo!
Gracila, então, teve a certeza de que tinha fracassado. Ficou parada, sentindo-se
sozinha em meio a uma escuridão onde não penetrava o menor raio de luz.
— Você deve estar imaginado o que vai me acontecer — disse lorde Damien,
quase como se estivesse falando consigo mesmo. — Imagine-me bebendo até não poder
mais em orgias infindáveis, promovidas por mim, e durante as quais serei o anfitrião de
todos os marginalizados da sociedade! E haverá mulheres! É claro que haverá mulheres! E,
se eu tiver sorte, elas me ajudarão a esquecer!
Voltou-se e olhou-a. Foi então que viu a expressão de dor estampada no rosto de
Gracila, como se de repente o mundo tivesse desabado e ela se encontrasse solitária e
medrosa. Caminhou rapidamente até onde ela se encontrava.
— Minha amada, minha querida! Por favor, não fique desse jeito! Não foi de
propósito! Esqueci-me com quem estava falando! Não me lembrava de que você não tem
noção do abismo em que um homem pode se precipitar, quando ele está desesperado!
Passou os braços em torno dela e Gracila escondeu o rosto em seus ombros.
— Eu a amo! Eu a amo de tal forma — declarou lorde Damien, beijando-lhe a
fronte —, que a simples idéia de viver sem você, representa para mim um poço de
destruição, no qual me precipitarei a fim de morrer mais depressa.
Gracila não disse nada, mas ele percebeu que ela chorava.
— Perdoe-me! Oh, minha querida, perdoe-me! Não mereço suas lágrimas e o fato
de você chorar por mim é a coisa mais bela que já me aconteceu.
63
As palavras de Virgil mal conseguiam penetrar o nevoeiro que parecia ter se
apossado da mente de Gracila, porém seus braços transmitiam-lhe segurança, há pouco
dissipada, e que deu lugar a um desespero inexprimível.
— Como foi possível que eu a magoasse? Como posso ter sido tão cruel? Minha
pequenina estrela! Daria minha vida para poupar-lhe um momento sequer de infelicidade
e no entanto eu a fiz chorar.
A ternura presente em sua voz a fez chorar ainda mais e ele fez com que ela o
encarasse.
— Olhe para mim, Gracila! Olhe para mim!
Ela baixou os olhos, marejados de lágrimas, e que lhe desciam rosto abaixo.
Durante um momento parecia que as palavras o haviam abandonado e ele não
conseguia falar. Em seguida, declarou, cheio de ternura:
— Eu te amo, eu te adoro. Você é tudo aquilo que um homem pode desejar, meu
amorzinho, minha estrela. Você precisa acreditar em mim, quando digo que não posso
fazer mal a alguém tão linda, tão sagrada…
— Eu te amo — murmurou Gracila.
— E também disse que confiava em mim. E por isso que precisa confiar em mim,
pois sei o que é melhor para você.
— Você irá embora?
— Tenho de ir — ele declarou, com infinita tristeza na voz.
— Mas como posso viver sem você? Como posso ser feliz, se você me deixar?
— Você é muito jovem, e a juventude esquece!
— E você esqueceu?
— Você não é somente bela, meu anjo, mas também muito inteligente, e é por isso
que eu a amo. Não, não consegui esquecer. Acredito, porém, que você será capaz de fazê-
lo. Estou agindo bem e penso que sua mãe, se estivesse viva, aprovaria minha atitude.
— Mamãe… haveria de querer… que eu fosse feliz.
— Ela não teria desejado que sua filha seguisse a estrada da perdição, que é o que
aconteceria se você se casasse comigo.
Gracila não tirava os olhos de Virgil e apesar de ainda estar bem junto dela sentiu
que aos poucos se afastava.
— Por favor… por favor… case comigo! — implorou. Ele a apertou contra seu
peito e ela achou que ia beijá-la. Em vez disso, limitou-se a depositar um beijo em sua
fronte e disse com a voz tão entrecortada pelo sofrimento que ela mal conseguiu
reconhecê-la:
— Tenho de lhe dizer adeus, meu amor, meu único amor! Um adeus que é para
agora e para a eternidade!
CAPÍTULO VI
64
Gracila estava na sala de visitas. Olhava a cada segundo para o relógio em cima da
lareira, à espera de que soassem as onze horas, quando então poderia descer até o jardim.
Na noite anterior, quando lorde Damien dissera-lhe que precisava partir, percebeu
a infelicidade e o desespero contidos em sua voz e sentiu que naquele momento tinha
crescido. Parou de pensar em si mesma e em sua infelicidade, preocupando-se unicamente
com ele.
Sabia que assim que ele a deixasse, a desilusão voltaria a se estampar em seu rosto
e que ele dissera a verdade, ao falar que se precipitaria em um poço de destruição.
Tudo o que havia nela de maternal e compassivo dizia-lhe que precisava ajudá-lo,
mas, envolvida com sua própria infelicidade, não sabia como agir.
Desejava ser tomada em seus braços, consciente de que eles lhe proporcionariam
um sentimento de segurança que ela nunca mais haveria de encontrar.
Fez então um esforço sobre-humano e controlando as lágrimas encontrou forças
para dizer em voz baixa:
— Se precisa mesmo… ir embora agora… não quer me dar um presente… antes de
partir?
— Darei qualquer coisa que esteja ao meu alcance!
— Quero de você… cinco horas.
— Cinco horas? — ele perguntou, surpreendido.
— Amanhã a rainha vem a Newsbury e a criadagem da mansão vai lhe pedir
permissão para ir ver a recepção à Sua Majestade na porta do hospital e no castelo de
Lynmouth.
Lorde Damien ouvia, mas Gracila sentia que uma parte de seu ser ansiava por ela,
pois seus corpos já não estavam mais em contato.
A dor estampada em seus olhos a fazia sentir vontade de abraçá-lo e apertá-lo
contra seu peito, em vez de falar.
— Podem ir, sim! Claro que podem — ele disse, como se aquilo não tivesse a
menor importância.
— Então… ficaremos a sós… — prosseguiu Gracila. — Quando você se for, não
quero que recorde nossa infelicidade e sim o tempo alegre que rimos à beira do regato,
quando o mundo parecia tão… ensolarado!
— É assim que sempre recordarei de você — declarou Virgil. — O sol brilhando
em seus cabelos e seus olhos, sua risada, que é o som mais belo que já ouvi…
— Então você me dará mais cinco horas? Cinco horas para lembrar que você não
está apenas em meu coração, mas também na minha imagem e nos meus pensamentos…
para sempre…
Seus olhares se cruzaram e foi impossível para os dois dizer o que quer que fosse.
Gracila sabia o quanto aquilo deveria ser penoso para ele e rompeu o encantamento,
declarando:
— Não devemos estragar nossas lembranças… não devemos estragar aquilo que
para mim foi a experiência mais… gratificante que até hoje já vivi.
— Você terá às cinco horas, querida.
65
— Vamos pescar trutas para o almoço e em seguida talvez possamos dar uma
espiada através da cerca e ver a rainha e o parque do castelo de Lynmouth… a menos que
os arbustos tenham crescido demais.
— Você verá a rainha — prometeu lorde Damien. — Não vai ser preciso espiar
através da cerca. Terá uma bela visão de Sua Majestade a partir de um esconderijo, no
meio do bosque. Eu o conheço pelo nome de “O Ninho da Cegonha”.
— O “Ninho da Cegonha”?
— Você parece saber tanta coisa a respeito de minha propriedade que chega a ser
uma satisfação falar de um segredo que você desconhece.
— O “Ninho da Cegonha”… parece ser muito interessante! Mas onde fica e por
que nunca ouvi falar dele antes?
— Acho que meu pai até esqueceu, de sua existência e tenho certeza de que foi a
última pessoa a usá-lo. Meu avô e o segundo marquês de Lynmouth tiveram uma
desavença, motivada por uma questão de divisas de terras. A briga girava em torno do
regato que, como você sabe, atravessa o bosque e faz uma curva à direita, em direção ao
castelo de Lynmouth. O marquês queria estabelecer a divisa do lado de cá do regato,
porém meu avô não se conformou em perder aquele curso de água.
Gracila sabia com que paixão dois proprietários eram capazes de litigar por um
assunto aparentemente tão sem importância, mas que para eles significava muito.
Prosseguiu, ouvindo Virgil.
— Os dois acabaram perdendo a paciência e finalmente o marquês explodiu com
meu avô: “Não tolero que você espione meu parque e suspeito que é a única razão pela
qual deseja trazer a cerca até quase debaixo de minhas janelas”.
Virgil sorriu e prosseguiu:
— Ambos ficaram muito exaltados e, pelo que sei, não mais se dirigiram a palavra
enquanto viveram.
— E daí?
— Meu avô, para causar despeito ao marquês, decidiu construir uma espécie de
abrigo em meio aos galhos de uma árvore, a partir do qual se pudesse contemplar o
parque do castelo de Lynmouth.
— Estou começando a entender como verei a rainha…
— O “Ninho da Cegonha” foi construído na árvore mais alta que meu avô
conseguiu encontrar. Duvido que o velho marquês tenha se servido dele alguma vez, mas
foi um gesto de desafio ao marquês!
— E ele ainda existe?
— Quando eu fui embora daqui ainda existia e estava em bom estado, pois
mandei um carpinteiro consertar o que fosse preciso.
Fez uma pausa, lembrando o quanto o “Ninho da Cegonha” tinha sido útil,
quando ele encontrava Phenice às escondidas e era difícil, senão impossível, trocarem
correspondência.
Tinham feito o seguinte acordo: toda vez que o marquês saísse de casa e ela tivesse
a possibilidade de vir ao seu encontro, na cerca que separava as duas propriedades,
66
Phenice colocaria um lenço branco no parapeito da janela do quarto, que dava para o
parque.
Essas longas esperas o deixavam com o coração batendo, ansioso para que
chegasse logo o momento de encontrá-la.
A visão de Phenice, atravessando o parque protegida por um pequeno guarda-sol
o deixava com as têmporas latejando, tomado de uma excitação interior quase
insuportável.
Como poderia saber que mais tarde amaldiçoaria o “Ninho da Cegonha”, pois sua
existência tornara seus encontros muito fáceis?
Agora dizia a si mesmo que estar no “Ninho da Cegonha” com Gracila
contribuiria para eliminar mais um fantasma e, no futuro, ao pensar naquele lugar,
recordaria apenas sua imagem.
— Acho que vai ser muito divertido! — disse Gracila, excitada como uma criança a
quem tinha sido oferecida uma guloseima. — Sempre desejei ver a rainha e como ia me
casar, deixei de comparecer a uma recepção na corte e perdi a ocasião.
— Não haverá de faltar uma oportunidade no futuro.
— Acho pouco provável. —- Ainda não decidimos o que você deve fazer quando
eu partir, mas acho que devo persuadi-la a voltar para casa.
— Não vamos falar deste assunto. Não quero estragar o presente esplêndido que
você me deu discutindo problemas desagradáveis.
— Mas, querida, preciso pensar em seu futuro.
— Não! Você se recusou a participar dele e, portanto deve se preocupar apenas
com o presente.
— Mas é preciso ser sensata, meu amor. Você não pode continuar se escondendo
na mansão e muito menos ir sozinha para Londres ou para qualquer outro lugar.
— O que preciso… é de alguém que tome conta de mim.
— Eu sei. Só que isso não me compete. De novo Gracila sentiu vontade de lhe
implorar para ficar a seu lado, casar com ele, fazer o que ele quisesse, contanto que não se
separassem. No entanto, amava-o demais para aumentar a infelicidade que ele estava
sentindo e declarou:
— Quero que você pense em mim como no início: uma estrela cadente e as
estrelas, como você sabe, encontram seu lugar no firmamento. Sabia que ele estava a ponto
de discutir com ela, de pedir-lhe para ser sensata, mas Virgil controlou-se e não disse
nada.
Gracila olhou o relógio em cima da lareira.
— Preciso voltar para meu quarto. A sra. Hansell vai me trazer chá dentro de
poucos instantes. Ficaria muito surpreendida se encontrasse a porta trancada.
— Virá me encontrar novamente, quando lhe parecer que eles saíram?
— Acho melhor não. Ficaríamos mais infelizes do que já somos.
Gracila notou que ele ficara desapontado e acrescentou:
— Quero dormir, ansiosa pelo dia de amanhã e pensando o quanto vamos nos
divertir, antes de dizermos… adeus…
67
— Um dia você será suficientemente madura para compreender que minha
decisão foi justa.
— Enquanto eu viver terei a certeza de que você é um homem de sólidos
princípios; um homem que contém em si toda a nobreza do mundo, a quem amarei,
honrarei e admirarei para sempre.
Não conseguiu dominar a emoção e saiu correndo do aposento, antes que ele
pudesse detê-la.
Chegando ao quarto, fechou a porta e atirou-se na cama, chorando até se sentir
exausta.
Durante a noite, custou-lhe demais não mudar de idéia e ir ao seu encontro.
Tinha de resistir à tentação de vê-lo e para isso precisou usar de todas as suas
forças.
Seu instinto de mulher lhe dizia que sua presença o torturaria. Sabia que aquilo
era um desafio à sua masculinidade e sentia que jamais, em toda sua vida, ele resistira a
seus desejos, como fazia naquele momento. Esta renúncia apoiava-se em um amor que era
mais profundo do que tudo o que ele sentira até então.
— Fomos feitos um para o outro, pensou Gracila. Como é que a vida pode ser tão
cruel a ponto de nos separar?
Apesar de inocente, em relação às leis da sociedade, sabia que a vida que lorde
Damien imaginava, fossem obrigados a seguir acabaria talvez por estragar a perfeição de
seu amor.
Apesar de o amor sobreviver, não seria talvez aquela emoção divina que
experimentavam no momento.
Foi-lhe impossível conciliar o sono e durante toda a noite Gracila pensou em todas
as saídas que lhe permitissem escapar ao inevitável e viver uma vida normal no solar.
Gracila não conseguia pensar em nada mais maravilhoso do que estar ao lado de
lorde Damien e ajudá-lo a desempenhar todos os deveres e atividades que o ocupariam, se
ele conseguisse retomar o lugar que lhe pertencia no condado e na Câmara dos Lordes.
Era este o futuro que esperava Virgil, se na idade de dezenove anos não arruinasse
sua vida por uma mulher que não valia semelhante sacrifício.
Ele nunca lhe falou diretamente de Phenice, mas resolvida a descobrir algo mais a
respeito de seu amor, Gracila conversou com a velha cozinheira, a sra. Bates, que já
trabalhava na mansão antes do nascimento de Virgil.
— Ele era um menino tão gentil, milady, e quando cresceu era impossível
encontrar um homem mais bonito em todo o condado! Todos nós gostávamos
imensamente dele e ficamos muito chocados quando ele partiu com a marquesa.
— Chegou a conhecê-la?
— Infelizmente, sim, milady, e quanto menos falarmos dela, melhor! Uma mulher
daquela idade, envolvida com um rapazinho que mal conseguia se barbear! Foi uma
vergonha!
A sra. Bates contava dezenas de histórias relativas a festas de Natal, quando o
jovem patrão distribuía presentes não só entre a criadagem da mansão como também entre
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todos os meeiros da extensa propriedade.
Contou para Gracila os numerosos atos de bondade que ele havia praticado em
relação aos serviçais mais velhos e como livrara da prisão um rapazinho que trabalhava na
mansão.
— Tinha um coração de ouro! Mas é claro que sempre havia alguém querendo
tirar vantagem — concluiu a sra. Bates,com amargura.
Não fazia o menor sentido vasculhar o passado, disse Gracila com seus botões. A
única coisa que desejava era poder ajudar lorde Damien no futuro e isto ele negava.
Às cinco da manhã, os dedos dourados da aurora começaram a dissipar as trevas e
o brilho das estrelas empalideceu.
Gracila tentou matar dentro de si qualquer esperança. O que lhe restava, exceto as
cinco horas que ele lhe havia prometido? Cinco horas de sol!
— Precisamos gozá-las ao máximo! Mas como posso deixá-lo partir? Como posso
viver sem ele? Disse consigo mesma.
Refletiu, porém, que se fizesse cenas, se chorasse, ela o tornaria mais infeliz do
que já se sentia. Ela o magoaria, a exemplo de outras mulheres, sobretudo a marquesa.
Tinha sido impossível ficar a sós com lorde Damien durante todos aqueles dias
sem se dar conta de que o idealismo e a espiritualidade de sua natureza ainda estavam
presentes, a despeito de suas afirmativas de que era um homem desiludido.
Se pudéssemos ficar juntos, ele esqueceria completamente o passado, pensou.
Sabia, porém, que esta idéia era tão vã quanto às lágrimas que havia derramado na
noite anterior.
Pôs um de seus mais belos vestidos, consciente de que o azul-pálido combinava
com seus olhos e acentuava a alvura de sua cútis.
Penteou-se cuidadosamente e removeu do rosto todo e qualquer vestígio de
lágrimas. Sabia que sua aparência não poderia ser melhor, pois estava apaixonada.
O relógio marcava dez minutos para as onze e ela foi ao encontro do homem que
amava.
Lorde Damien já devia estar cavalgando. Os criados, com toda certeza, estariam a
caminho de Newsbury e ela encontrava-se sozinha na mansão.
Pegou a cestinha de piquenique que a sra. Hansell lhe havia deixado. Deu uma
última olhada no espelho e desceu a escada que levava à porta do jardim.
Após a chuva da véspera, tudo transpirava frescor e o perfume das flores invadia
o ar. Gracila não parou para tocar nas pétalas da magnólia ou enlevar-se na contemplação
dos canteiros. Queria apenas juntar-se a lorde Damien e não perder sequer um segundo
das cinco horas com que ele a presenteara.
Ao vê-lo, saiu correndo ao seu encontro. Virgil teve a impressão de que ela era
uma ninfa, dissipando as trevas de uma longa noite de inverno.
— Trouxe algo para comermos — declarou Gracila quase sem fôlego, pois viera
correndo. — Disse para a cozinheira que estava morrendo de vontade de comer os
pêssegos que acabaram de amadurecer na despensa.
— E eu trouxe uma garrafa de vinho muito especial, que estava na adega.
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Coloquei-a no regato para refrescar. Não esqueci a vara de pescar, que vai nos
proporcionar um belo almoço!
Gracila sorriu. Conversavam de modo muito natural, mas cada palavra parecia
encerrar um significado íntimo e profundo.
— Você se esqueceu de uma coisa — disse Virgil.
— O quê?
— Uma esteira ou um tapete sobre o qual pudesse se sentar. Choveu ontem à noite
e seria uma pena estragar este seu lindo vestido.
Foi até onde estava o cavalo, retirou uma manta da sela e estendeu-a sobre a relva,
empunhando em seguida a vara de pescar.
— Vou-me sentir muito humilhado se não conseguir pescar nada.
— Pois eu acho que você é muito bem-sucedido em tudo aquilo que empreende.
— Você me deixa lisonjeado!
— Não é minha intenção. Apenas exprimo aquilo em que acredito.
— Antigamente, tinha alguns talentos, mas agora os esqueci.
— E por que não os ressuscita?
— O que você sugere que eu faça? A pergunta era ligeiramente cínica e Gracila
sabia que ele não esperava de sua parte uma resposta concreta, relativa às suas
capacidades.
Gracila sentou-se sobre a manta, e durante alguns instantes, lorde Damien julgou
estar cego, devido aos reflexos do sol sobre seus cabelos dourados.
— Ontem à noite estava pensando no que você me contou a respeito de suas
viagens. Quando estou sozinha recapitulou tudo o que você me diz e rio das descrições de
certas passagens. Por exemplo, as velas que se rasgaram ao meio, durante uma tempestade
no Mar Vermelho, o camelo que comeu a ração de uma semana inteira quando ninguém
estava olhando… Por outro lado, jamais haverei de esquecer as palavras com que você
descreveu a beleza do Himalaia, as maravilhas que são o Taj Mahal, na índia, e o Buda de
Esmeralda, em Bangkok. Por favor, escreva tudo isto. Publique um livro! Acho que
algumas das coisas que você me contou seriam melhores exprimidas através da poesia.
— Mas não sou nenhum Lord Byron!
— Não, você é Virgil e, a seu modo tão original quanto ele. Outrora identifiquei-o
com Lord Byron, mas agora sei que você é por demais individualista e tem suficiente
personalidade para permanecer à sombra de quem quer que seja. Você é você e é só isto
que eu desejo.
— Gracila, Gracila! Se eu a tivesse conhecido antes! Como minha vida teria sido
diferente!
— Eu teria feito gracinhas para você, deitada em meu berço, ou teríamos brincado
de esconde-esconde no jardim, mas não sei se isto o deixaria muito realizado!
— Estou sendo muito dramático e você tem toda razão em lançar mão da ironia.
Meu tesouro, eu a adoro, toda vez que você me faz rir!
— Não é outra minha intenção… agora vá pescar a nossa truta…
Virgil afastou-se, rindo, e Gracila pensou que não havia no mundo nenhum
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homem que a fizesse sentir como se cada batida de seu coração fosse destinada a ele e a
mais ninguém.
Assaram a truta pescada por lorde Damien e beberam o vinho que estivera a
refrescar nas águas do regato. Gracila estava decidida a não permitir que a infelicidade
interferisse no último dia que passavam juntos. Resolveu que faria tudo para que lorde
Damien se divertisse e foi bem-sucedida. Somente quando seus olhares se encontravam,
eles interrompiam a frase pela metade e esqueciam tudo que não fosse à proximidade em
que estavam um do outro.
Por volta das duas horas, lorde Damien disse que estava na hora de se dirigirem
para o “'Ninho da Cegonha”.
— Vamos levar o cavalo? — perguntou Gracila.
— Sim, mas podemos deixar tudo o mais aqui mesmo. Na volta, recolheremos
nossas coisas.
Gracila prendeu a respiração. A volta significava o fim daquele dia inesquecível e
uma vez que entrasse na mansão sabia que nunca mais haveria de vê-lo.
Com um gesto decidido colocou sua mão sobre a dele e disse:
— Já reparou que nunca andamos juntos pelo bosque? Parece tão misterioso!
Tenho certeza de que está povoado por fadas e duendes, que haverão de nos encarar como
intrusos invadindo seus domínios.
— O intruso sou eu. Meu amor, você não é inteiramente humana. Faz parte do
mistério e do encantamento da natureza.
— Gostaria que fosse verdade. Quando era criança, sentia uma vontade enorme de
voar como as fadas, entrar no tronco das árvores como os duendes e me esconder em
lugares cheios de sombra, a exemplo dos elfos.
— Pois eu a acho capaz disto tudo… Enquanto falava, imaginava que Gracila era
uma criaturinha de um mundo mágico e oculto. Todos os seus gestos eram pura poesia e
tudo o que ela dizia soava como a música trazida pela brisa… Sentiu que os dedos de
Gracila comprimiam os seus com maior intensidade e certificou-se de que sua noção de
paraíso consistia em tê-la a seu lado e saber que ela jamais se afastaria.
Seguiram o regato até o ponto em que ele rodeava as árvores e entrava no parque
do castelo de Lynmouth.
Porque Gracila estava ao seu lado tudo agora lhe parecia novo e diferente.
O fantasma de Phenice já não estava mais lá, provocando-o, incitando-o a segui-la.
O que ouvia naquele momento era a voz de Gracila, que se assemelhava ao canto dos
pássaros.
Retomava a trilha que percorrera tantas vezes e ficou temeroso que por alguns
segundos suas recordações o magoassem ou o levassem a confrontar o passado.
Em vez disto sentiu, como jamais havia sentido, que Phenice estava morta para
sempre e que nunca mais poderia atingi-lo.
Gracila preenchera o seu ser, e ao contemplá-la, tão cheia de vida e tão jovem,
certificou-se de que seu amor havia-lhe curado todas as feridas.
Durante muito tempo achou que sua situação era irremediável, mas agora, apesar
71
de saber que as cicatrizes haveriam de permanecer, estava convicto de que elas já não
tinham a menor importância.
Pouco adiante, notaram a cerca que dividia as duas propriedades. Pararam diante
de uma árvore frondosa e Gracila percebeu, em meio aos galhos, algo que se assemelhava
a uma plataforma.
— Mas como é alto! — exclamou.
— Tem medo?
— Já subi em árvores bem altas, mas como essa nunca vi…
— Examine a árvore de perto.
Fez o que ele sugeria e notou que no tronco da árvore estavam encravadas duas
pequeninas garras de ferro que permitiam apoiar os pés.
Lorde Damien retirou da bolsa de couro, pendurada na sela do cavalo, um
pequeno par de binóculos.
— Deixe-me subir primeiro, pois quero verificar se os ganchos não se soltaram.
Você vem em seguida.
Ela lhe deu um sorriso luminoso e ele fez o possível para se controlar, pois
desejava naquele momento cobri-la de beijos.
Subiu rapidamente pela árvore e sem a menor dificuldade, testando ganchos
primeiro com as mãos e em seguida com os pés, até chegar à plataforma.
— Tudo bem! Suba devagar e se sentir medo irei ajudá-la.
— Não sinto medo algum! — ela declarou com ousadia. Levantou a saia e as três
anáguas antes de começar a subir.
Ao chegar à plataforma, lorde Damien estendeu as mãos e ajudou-a a superar os
últimos obstáculos. Era excitante sentir aquelas mãos poderosas em sua pele nua e
quando, finalmente, se encontrou a seu lado, Gracila não conseguiu pensar em mais nada.
Olhou à sua volta e deu um grito, encantada com o que via.
O “Ninho da Cegonha” era muito maior do que esperava. O piso era de madeira, a
construção era muito sólida e suportava dois banquinhos de madeira e uma pequena
mesa!
— Podíamos ter almoçado aqui!
— Preferi vê-la sob os raios do sol! — declarou Virgil. Gracila sorriu para ele e
contemplou o parque do castelo de Lynmouth. De onde se encontravam, percebia
claramente os canteiros muito bem plantados, que rodeavam o castelo, bem como o
extenso gramado, àquela altura cheio de convidados.
Percebia-se à distância uma enorme marquise, sob a qual estavam as mesas cheias
de bebidas e doces. Naquele setor do parque encontrava-se uma banda.
Executava naquele momento uma valsa e Gracila sentiu vontade de estar
dançando com lorde Damien em um salão, à luz de enormes candelabros profusamente
iluminados.
Como se estivesse adivinhando seus pensamentos, ele declarou:
— Tenho certeza de que você dança divinamente bem.
— Seria maravilhoso dançar com você!
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Seus olhos se cruzaram por alguns segundos e ele, mudando proposital mente de
assunto, disse:
— Ainda bem que eu trouxe o binóculo, pois você conseguirá distinguir
claramente o rosto da rainha.
— Antes que a rainha chegue, eu apontarei as pessoas e direi de quem se trata.
Você poderá constatar com seus próprios olhos como ficaram velhas e decrépitas, desde
que as viu pela última vez.
— Acho que as pessoas não ficariam nem um pouco contentes se a ouvissem falar
deste jeito…
— Acho muito divertido saber que podemos vê-las, sem que elas tenham a menor
idéia de estarem sendo vistas.
Pegou o binóculo, ajustou-o e sentou-se no banco.
— Veja quem está lá! Eloise d'Arcy, a garota mais bonita de todo o condado!
— Prefiro olhar para você — replicou lorde Damien.
— É, acho melhor você não olhá-la. Poderia admirá-la e eu ficaria com ciúmes.
— Você me acha capaz de semelhante sentimento?
Ela pôs o binóculo de lado por um momento e disse muito séria:
— Acho que seria muito difícil para nós dois sentir ciúmes um do outro, pois o
que carregamos conosco não é uma noção, de possessividade, e sim algo mais profundo e
importante.
_ E ainda assim você me pertence.
—É justamente por isto que não sinto ciúmes. Pertenço-lhe completamente. Não
tenho mais nada a oferecer para quem quer que seja.
Ele não disse nada, mas quando voltou a falar não conseguiu disfarçar a emoção
que o dominava:
— Veja quem mais você reconhece.
— Ah, lá estão papai e minha madrasta! Acabam de sair de casa. Isto quer dizer
que a rainha deve ter chegado.
— Como é que você sabe?
— Papai faz parte do comitê do hospital e ele e o governador-geral farão as honras
da casa à rainha.
— Muito bem, agora seu sonho se transformará em realidade e você verá a jovem
rainha da Inglaterra. Apesar de tão moça, ouvi dizer que é muito mandona…
— E está muito apaixonada por seu jovem e belo marido.
— Coitado! Sinto muita pena dele, por ter de andar sempre três passos atrás da
rainha.
— Você acha que é uma posição se subserviência?
— Claro! Não me parece nem um pouco natural. Ele deveria ser o rei, o que
comanda tudo.
— Concordo com você. Ao mesmo tempo, agrada-me pensar que eles, em
princípio são felizes.
— Como deveríamos ser… — comentou Virgil, muito baixinho.
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Gracila não teve tempo de responder, pois nesse momento saíam da casa a rainha,
o príncipe Albert e o marquês de Lynmouth.
Este último era um homem de certa idade, mas seus trajes de governador-geral
davam-lhe uma aparência de grande dignidade.
Só naquele momento ocorreu a Gracila que talvez tivesse usado de pouco tato em
querer ver a rainha, sem levar em consideração o que lorde Damien poderia sentir, ao
tornar a ver o homem de quem roubara a esposa.
Sentiu-se um pouco constrangida e disse rapidamente: - A rainha é linda! É
igualzinha a seus retratos!
— O que não deixa de ser uma surpresa… — comentou Virgil, irônico.
— Não, ela é ainda mais bonita! E sua cútis é uma maravilha. Consigo perceber
nitidamente. Não preciso de binóculo, obrigado. Você deve estar achando que é uma pena
não poder ouvir o que ela está dizendo.
— É fácil de adivinhar. O marquês neste momento apresenta as autoridades e a
nobreza à Sua Majestade e todos estão à espera deste momento glorioso. Pelo visto, minha
madrasta parece estar gostando muito. Usa o vestido que comprou para o meu casamento.
— Veja só o que você está perdendo em não ser apresentada à rainha…
— Você sabe muito bem que prefiro estar aqui com você. Não daria sequer um
minuto de minhas horas tão preciosas para ser apresentada a todos os reis e rainhas deste
mundo!
— Você me lisonjeia… — respondeu lorde Damien, rindo.
— Estou dizendo a verdade. Olharam um para o outro e nesse momento ouviram
um barulho.
Vinha do chão e Gracila pensou que talvez o cavalo houvesse embaraçado as
rédeas em algum arbusto.
Notaram que o barulho era produzido por um homem que percorria a trilha ao pé
da árvore.
Era um homem bem alto e durante alguns segundos Gracila pensou que deveria
ser um caçador ou um guarda-florestal. Notou, porém, que ele, apesar de ter traços
comuns, vestia-se como um cavalheiro e trazia um chapéu na mão.
Com algum esforço conseguiu passar através da cerca.
— Quem é? — perguntou lorde Damien em um tom de voz quase inaudível.
— Não tenho a menor idéia! Não me parece que seja um de seus empregados.
— De uma coisa tenho certeza: ele não tem convite, caso contrário teria entrado
pelo portão principal.
Viram que o desconhecido, pouco antes de entrar no parque, colocava o chapéu na
cabeça, sentindo-se pelo visto intimidado por usar peça tão elegante. Em seguida, levou a
mão ao bolso da casaca, pata certificar-se de que algo estava lá.
Retirou um objeto do bolso, mas na posição em que ele se encontrava Gracila e
Virgil não conseguiam ver de que se tratava.
Subitamente, algo ocorreu a Gracila e ao olhar para lorde Damien certificou-se de
que ele estava pensando a mesma coisa.
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— Não… — murmurou. — Será que ele… pretende…
A expressão de lorde Damien tornava-se desnecessária quaisquer outras palavras.
Ficaram de olho no desconhecido e viram que ele se misturava com a pequena
multidão, aproximando-se lentamente das pessoas que estavam em fila, à espera de serem
apresentados à rainha.
Ao lado de Sua Majestade encontrava-se o príncipe Albert e atrás deles um
camareiro e uma dama de companhia, bem como o pai e a madrasta de Gracila, além de
alguns vizinhos, todos conhecidos dela.
Desviou o olhar durante alguns segundos, mas quando percebeu, o desconhecido
estava muito mais próximo à rainha.
— Você tem de salvá-la — murmurou Gracila, horrorizada. Como se já soubesse o
que deveria fazer, lorde Damien ficou de pé, e antes mesmo que ela terminasse a frase,
descia rapidamente a árvore.
Ao chegar ao chão saiu correndo, pulou o regato e saltou por cima da cerca.
Saiu em carreira desabalada pelo parque, ultrapassando os convidados atônitos.
Gracila prendeu a respiração, sentindo-se tensa demais para usar o binóculo.
O homem havia aberto caminho e agora, encontrava-se a apenas alguns passos da
rainha.
Aterrorizada, Gracila percebeu que lorde Damien corria com uma velocidade de
que somente um atleta seria capaz.
Empurrava todo mundo, mas antes que as pessoas tivessem tempo de protestar
ele já estava mais adiante.
Gracila viu então o desconhecido enfiar a mão no bolso da casaca. O gesto era
mais do que óbvio e ela sentiu vontade de gritar, a fim de avisar o que ia acontecer,
embora soubesse que não seria ouvida.
Lorde Damien chegaria tarde demais!
A rainha agora encontrava-se a três passos do homem que a encarava.
Gracila, apavorada, viu-o esboçar um gesto e adivinhou o que se passaria em
seguida.
Notou que o sol se refletia no objeto que ele tinha em sua mão. Tinha certeza de
que dispararia a arma e que a rainha cairia morta, mas lorde Damien, em um esforço
desesperado, correu ainda mais depressa e atirou-se sobre o malfeitor.
Ouviu-se um tiro, que fez todo mundo parar onde se encontrava. Até mesmo a
banda deixou de tocar. O desconhecido e lorde Damien rolaram pelo chão, aos tapas até
que alguns oficiais aproximaram-se, separando-os.
Lorde Damien levantou-se e compôs as vestes, pois havia ficado no mais profundo
desalinho.
Foi então que percebeu a rainha parada bem diante dele. Enquanto todo mundo,
ao ouvir o barulho do tiro, recuara horrorizado. Ela, com a dignidade e a coragem que a
caracterizavam, não tinha dado um passo sequer.
Somente o príncipe consorte avançara, com a intenção de protegê-la, o mesmo
fazendo o marquês.
75
Agora os três contemplavam lorde Damien. Este inclinou-se perante a rainha que,
muito pálida, porém sem perder a compostura, declarou com ligeiro tremor na voz:
— Vejo que salvou minha vida. Fico-lhe muito grata. Lorde Damien voltou a
inclinar-se. O marquês então disse:
— Senhora, permita que lhe apresente meu vizinho, lorde Damien, que esteve no
estrangeiro alguns anos, mas regressou muito oportunamente e no momento exato!
A rainha sorriu.
— Lorde Damien, temos, muito prazer em conhecê-lo. Antes que lorde Damien
pudesse responder, o príncipe consorte estendeu-lhe a mão.
— É difícil colocar em palavras minha sincera gratidão por aquilo que o senhor
acaba de fazer, porém sei que posso neste momento falar em nome da nação. Muitíssimo
obrigado.
— Foi uma sorte, alteza, eu ter visto o homem entrando no parque através de uma
cerca divisória.
— Com efeito! — exclamou a rainha. — Posso sugerir lorde Damien, que o senhor
forneça os detalhes para mim e para o príncipe Albert dentro de breves momentos,
quando não estivermos tão ocupados?
Olhou para o príncipe e acrescentou:
— Ou quem sabe, meu querido, poderemos convencer lorde Damien a ir até o
castelo de Windsor na próxima semana…
O príncipe sorriu.
— A rainha e eu teremos imenso prazer em recebê-lo, lorde Damien.
A rainha, então, voltou-se para os demais convidados, que continuavam
enfileirados, à espera de uma apresentação. Nesse momento, o marquês estendeu a mão
para lorde Damien.
— Seja bem-vindo, Virgil! Que bom que você voltou! Falava com voz bem forte,
para que todos ao redor ouvissem, e lorde Damien sabia que aquele gesto significava o fim
de todas as desavenças que o opunham ao velho marquês.
Se o titular o perdoava com tamanha generosidade, quem ousaria não seguir o seu
exemplo?
Durante alguns momentos, sentiu-se por demais confuso para dizer o que quer
que fosse e o marquês juntou-se à rainha, a fim de prosseguir o dever interrompido.
Foi então que todos os convidados puseram-se a falar ao mesmo tempo,
comentando o fato extraordinário que acabava de ocorrer. A banda recomeçou a tocar,
mas não conseguia abafar os comentários excitados da pequena multidão, consciente de
ter presenciado um drama que por pouco não se transformava em tragédia.
Todos os presentes sentiam um único impulso: dar parabéns ao herói do dia, o
homem que salvara a vida da rainha, aquele que, tendo saído do condado em
circunstâncias tão dramáticas, regressara em meio a uma dramaticidade ainda maior.
Todos queriam apertar-lhe a mão, todos queriam acrescentar suas congratulações
às do marquês.
Ao ver os convidados acotovelando-se em torno de lorde Damien, Gracila sentiu
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os olhos marejados de lágrimas.
Sabia que aquele era o milagre pelo qual tanto rezara e aquilo era uma resposta às
suas orações, e que só poderia ter emanado de Deus.
Era uma cena tão tocante que não conseguiu mais contemplar o que estava
acontecendo no parque. Desceu da árvore e tomando o cavalo pela rédea conduziu-o em
direção a casa. Mal podia entender que o que acabava de acontecer mudara
completamente a vida de lorde Damien, sua própria vida e o futuro dos dois.
Levou o cavalo até a cocheira e entrou na mansão, sabendo que daí em diante tudo
seria muito diferente. Uma nova era se iniciava.
Não se escondeu em seu quarto, mas, descendo a imponente escadaria, abriu a
enorme porta da frente. Era um ato simbólico e a casa devia estar aberta, à espera de seu
senhor.
Agora não havia mais a menor razão para ele sentir-se solitário em sua própria
casa.
Gracila ficou parada, contemplando o jardim e sentindo que o mundo subitamente
tomara-se dourado e glorioso.
Notou algo que se movia bem no fim da alameda e certificou-se de que alguém
trazia lorde Damien de volta para casa. Foi então que subiu as escadas e escondeu-se nas
sombras do primeiro patamar, em uma posição que lhe permitia contemplá-lo no
momento em que ele chegasse.
Uma caleça, muito elegante, puxada por dois cavalos parou diante da mansão e
um criado desceu e foi abrir a portinhola para lorde Damien.
Virgil postou-se ao lado do veículo e Gracila ouviu-o dizer:
— Obrigado por me trazer para casa e obrigado igualmente por aquilo que ambos
me disseram.
Gracila ouviu a voz de sua madrasta, que respondia:
— Foi um momento emocionante para todos nós. Não se esqueça, lorde Damien,
que prometeu jantar conosco amanhã à noite!
— Irei, sim, e com grande prazer, lady Sheringham. Bom dia, milorde.
— Até amanhã, Virgil. Tê-lo em casa amanhã me fará recordar os velhos tempos.
— Obrigado, mais uma vez — replicou lorde Damien. A carruagem foi posta em
marcha e ele permaneceu durante alguns instantes parados diante da casa, vendo-a
afastar-se. Em seguida, subiu os degraus e entrou pela porta principal.
Ao vê-lo entrar, Gracila foi ao seu encontro e quando ela se aproximou, Virgil
estendeu-lhe os braços. No momento em que seus lábios se encontraram, ambos se
sentiram transportados para um céu sem nuvens.
CAPÍTULO VII
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Um grão de arroz atingiu lorde Damien no queixo e ele protestou em voz baixa.
Gracila riu.
— Doeu! — ele exclamou baixinho.
— Da próxima vez que você se casar, peça para primeiro cozinharem o arroz —
ela disse, caçoando, e ambos riram.
Mais arroz choveu sobre eles, misturado com pétalas de rosas.
No momento em que ultrapassaram os portões do castelo, receberam ramos de
flores das crianças da aldeia, em meio aos vivas dos aldeões.
Gracila segurava com força a mão de lorde Damien e ambos sorriam e acenavam
para a pequena multidão.
Quando deixaram a aldeia para trás, olharam um para o outro e havia tamanha
felicidade em seus rostos que ambos pareciam transfigurados.
Lorde Damien estava tão mais jovem e tão diferente do homem que Gracila
encontrara… era difícil acreditar que se tratava da mesma pessoa.
A desilusão, o cinismo e a amargura já não existiam mais, dando lugar a uma
beleza que ela não imaginava pudesse existir.
Parecia-lhe quase impossível que seus sonhos tivessem se tornado realidade.
Estavam, no entanto, casados de verdade, apenas cinco semanas depois que tinham se
encontrado pela primeira vez.
— O que foi que papai disse quando você lhe participou que queria casar comigo?
— Ficou muito surpreso e perguntou como era possível termos certeza, se
havíamos nos encontrado apenas algumas vezes.
— E o que foi que você respondeu?
— Fui de uma grande eloqüência… Quem, tendo amado pelo menos uma vez na
vida, não sentiu amor à primeira vista?
Gracila riu, pensando no momento em que lorde Damien tinha entrado no salão
do castelo e lhe foi apresentado por sua madrasta.
Devido à sua insistência, ela partiu da mansão bem cedinho.
— Minha querida, pressinto que amanhã virá muita gente me visitar e eles, de
modo algum, podem encontrá-la aqui — dissera-lhe lorde Damien na véspera, quando
ambos, sentados na biblioteca, planejavam o futuro.
— Não tenho medo do que as pessoas possam dizer — retrucou Gracila —, mas
também não quero iniciar um outro escândalo.
— O que sem dúvida acontecerá se alguém souber que você ficou aqui na mansão,
em minha companhia.
— Pois é algo de que jamais quero esquecer. Foram os dias mais perfeitos e
maravilhosos que até hoje vivi, com uma ligeira exceção…
A “ligeira exceção” referia-se ao momento em que se viram forçados a dizer adeus,
pois lorde Damien estava convencido de que, para o bem de Gracila, não deveria desposá-
la.
Gracila sabia que agora ele estava se mostrando razoável e ao se desejarem um
apaixonado boa noite, ela concordou em partir, assim que o sol nascesse.
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— Dentro em breve — ele declarou, enquanto a tomava nos braços —, já não
teremos mais necessidade de dizermos adeus… Estaremos sempre juntos e, à noite, eu a
apertarei de encontro ao meu peito e lhe ensinarei tudo o que sei a respeito do amor.
— Você já me ensinou tanta coisa…
— Você aprendeu apenas as primeiras lições. Há muitas outras a sua espera…
— É isso o que eu desejo… — ela murmurou.
A pressão de seus braços aumentou e ele beijou-a com fervor, até que ela não
sentiu mais nada no mundo que não fosse seus lábios e a segurança que seu abraço lhe
proporcionava.
Gracila partiu a cavalo e o relógio marcava cinco e meia da manhã.
Convinha ser discreta, até o último momento, e a única pessoa a vê-la partir foi o
velho Millet.
A sra. Hansell lhe dissera um adeus um tanto distraído, pois não tinha outro
assunto que não fosse lorde Damien.
Gracila se deu conta de que ele se tornara um herói da noite para o dia. Tinha
certeza de que em todo o país, mulheres como a sra. Hansell, ao lerem os jornais,
abençoariam-no, por ele ter salvo a vida da jovem rainha.
Sentia-se tão feliz, tão entregue a seus próprios pensamentos, que somente quando
se aproximou do castelo paterno percebeu que duras provas a esperavam.
Na verdade, nada do lhe dissessem lhe importava, pois naquela mesma noite
voltaria a ver lorde Damien.
Ao mesmo tempo, não desejava que a menor nuvem toldasse os raios de sol que
ela sentia brilhar a seu redor.
Sentiu-se feliz quando entrou no castelo e encontrou seu pai tomando sozinho o
café da manhã.
— Gracila! — ele exclamou. — Onde esteve? Quase enlouqueci, a tal ponto fiquei
preocupado com você.
Gracila foi correndo até ele, passou os braços em torno de seu pescoço e beijou-o.
— Perdoe-me, papai. Não queria que o senhor se preocupasse. Está tudo em
ordem. Voltei para casa e é maravilhoso tornar a vê-lo.
Sentiu que seu pai agora respirava aliviado, mas ao mesmo tempo estava à espera
de uma explicação.
— Disse-lhe em minha carta ter descoberto que não podia me casar com o duque.
O senhor bem sabe que mamãe não desejaria minha infelicidade.
— Mas por que não me participou pessoalmente, em vez de fugir?
- O senhor poderia dizer que era tarde demais para mudar de idéia. Se eu
simplesmente desaparecesse, tudo ficaria mais fácil para o senhor e para as demais
pessoas.
Antes que ele pudesse retrucar, Gracila beijou-o, dizendo:
— Não fique zangado, papai.
— Onde é que você esteve este tempo todo? — Falava em tom severo, porém
Gracila sabia que ele estava cedendo.
79
— Fiquei na companhia de uma pessoa que foi nossa criada e que tomou conta de
mim muito bem.
— Sua babá, é claro! Por que não pensei nisso antes? Sua madrasta tinha certeza de
que você tinha ido para a casa de uma de suas primas.
Gracila não quis desapontá-lo, relembrando-lhe que a velha babá havia morrido
no ano anterior. Apesar do fato ter sido comunicado a seu pai, ele, pelo visto, não se
lembrava.
Era mais difícil convencer sua madrasta, que acabava de entrar na sala de jantar,
mas Gracila, muito astuta, procurou cuidadosamente as palavras, dizendo com muita
calma:
— Tinha provas irrefutáveis de que o duque não me amava e sim a… outra
pessoa!
A censura que a condessa estava a ponto de proferir morreu em seus lábios. No
momento em que seu olhar cruzou-se com o de Gracila, ela compreendeu tudo e ficou
pálida como uma defunta.
— Bem, já que você voltou, não falaremos mais no assunto — limitou-se a dizer. —
Espero que no futuro você tenha mais consideração pelos sentimentos de seu pai e não
volte a deixá-lo preocupado, cometendo uma ação tão irresponsável.
— Não fugirei mais.
Quando os jornais chegaram ao castelo, Gracila devorou as notícias relativas à
lorde Damien. Para seu grande alívio não abordavam as razões pelas quais ele tinha
abandonado a Inglaterra e vivido por tanto tempo no estrangeiro.
Falava-se dos prêmios que ele havia ganho na escola, nas distinções conquistadas
em Oxford, construindo a imagem de um cavalheiro ousado que havia salvo a vida da
jovem rainha.
Sua figura tornava-se extremamente romântica, e Gracila sabia que, a partir do
momento em que ele se visse entronizado no altar da fama, seria muito difícil abandonar
semelhante posição.
— Agora ele pode começar vida nova… e comigo — disse para si mesma.
Para ela foi muito difícil, quando ele veio jantar naquela noite, não demonstrar o
quanto o amava. Sabia que lorde Damien tinha plena consciência do fato.
A madrasta, ansiosa por exibir seu convidado, chamou várias pessoas para
conhecê-lo. Assim sendo, não foi difícil para Gracila e Virgil disfarçarem seus sentimentos.
Depois que ele partiu, um criado entregou-lhe um bilhete que Virgil havia deixado
para ela, pedindo-lhe que lhe escrevesse aos cuidados de Millet, dizendo quando
poderiam encontrar-se.
A coisa não foi tão simples assim, mas quando saiu a cavalo na manhã seguinte
cruzou com Virgil… por acaso…
O velho criado que acompanhava Gracila, por mais estranho que achasse aquele
encontro, eximiu-se de fazer qualquer comentário.
Lorde Damien, a partir do acontecido, recebia dezenas de convites. Como Gracila
era a jovem mais bela e conhecida do condado, não era de se estranhar que se
80
encontrassem com muita freqüência.
O sucesso mundano alcançado por lorde Damien atingiu o auge quando ele foi
convidado para participar da comitiva da rainha, por ocasião das corridas no prado de
Ascot.
Gracila e seus pais foram convidados para jantar no castelo de Windsor, na noite
da corrida.
Dançou-se até altas horas no salão de baile e Virgil, após ter valsado com a rainha,
aproximou-se de Gracila.
Ela estava ao lado da madrasta e lorde Damien inclinou-se, convidando-a para
dançar.
Gracila estremeceu, ao sentir seu braço cingindo-lhe a cintura.
— Eu a amo! — ele murmurou. — Eu a amo e não agüento mais prosseguir com
esta farsa. Falarei com seu pai amanhã.
— Mas é tão cedo ainda! — respondeu Gracila, sem muita convicção.
— Eu a desejo! Quero que você me pertença! Quero beijá-la!
A paixão contida em sua voz fez o coração de Gracila disparar e ela ficou convicta
de que a única coisa que desejava no mundo era sentir aqueles lábios comprimindo os
dela.
Agora estavam casados e não havia mais razão para esconder seus sentimentos ou
fingir que não passavam de conhecidos.
— Existe alguém mais linda do que você? — perguntou lorde Damien, beijando a
mão de Gracila.
Estava, naquele momento, atravessando o campo, mas em breve passariam por
dentro de outra aldeia, cujos habitantes estariam apinhados na rua, a fim de homenageá-
los.
— Gostou do meu vestido de noiva? — perguntou Gracila.
— Não consegui tirar os olhos de seu rosto e cheguei a achar que você não era um
ser de carne e osso e sim uma ninfa dos bosques ou a própria deusa Afrodite.
— Nunca aspirei a tanto…
— Então digamos que você é uma estrela… a minha estrela… só que não se
encontra no céu, como lhe demonstrarei quando estivermos a sós…
— Oh, Virgil… tenho certeza de que estou sonhando!
— Pois eu lhe provarei que não está, e se estiver eu também participo deste sonho.
Aquele homem a deixava, inteiramente perturbada, e Gracila procurou subtrair-se
ao seu encanto, dizendo com propositada euforia:
— Todo mundo me perguntou onde iremos passar a lua-de-mel… O que foi que
você lhes disse?
— Deixei-os acreditar que vamos para o estrangeiro. É a resposta que todos
esperavam. Você não ficou decepcionada pelo fato de permanecermos aqui? Sabe muito
bem, meu amor, que iríamos para onde quisesse.
— A única coisa que desejo é permanecer a seu lado e sei que você gostaria
imensamente de passar a lua-de-mel no solar do barão.
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— Meu amor prometo que após o Natal partiremos para o exterior, à procura das
regiões ensolaradas que tanto quero lhe mostrar. Elas, aliás, irão figurar no livro que você
quer que eu escreva…
— Pretendo ajudá-lo a executar essa tarefa, mas no momento, a única coisa que
desejo é ouvir sua voz a me convencer de que podemos permanecer juntos sem temer mais
nada.
Lorde Damien suspirou, livrando-se da tensão que parecia dominá-lo.
— Ainda bem que ninguém sabe ao certo onde iremos passar nossa lua-de-mel…
— comentou. — Espero que Millet comporte-se como um guardião fiel, impedindo que
qualquer pessoa se aproxime de nosso refúgio!
Quando chegaram no solar Gracila foi correndo até Millet e beijou-o no rosto.
— Milady! — murmurou o velho criado. — Este é o dia mais feliz de minha vida.
- E da nossa também… Graças a você, Mitty! Se não tivesse me recebido, quando
vim procurar abrigo, nada disto teria acontecido.
Havia lágrimas nos olhos de Millet e ele perguntou:
— Milady está querendo dizer que encontrou lorde Virgil enquanto estava aqui?
— Sim, Mitty, mas ninguém deve saber. Confiamos em você.
— A bondade de Deus é infinita, milady — disse Mitty, demais comovido para
prosseguir.
A sra. Hansell também derramava lágrimas de felicidade, enquanto ajudava
Gracila a tirar o vestido de noiva e colocar um dos trajes mais belos do enxoval.
— Nunca, em toda minha vida, vi noiva mais bela do que milady! Parecia uma
princesa de um conto de fadas ou um anjo caído do céu. Não havia na igreja uma mulher
que não tivesse lágrimas nos olhos!
— Amei a cerimônia de casamento e agora passarei minha lua-de-mel nesta casa
que significa tanta coisa para mim e para lorde Damien.
— Pode confiar em mim e em Millet, milady. Ninguém saberá onde a senhora se
esconde.
— Muito obrigada!
— Oportunamente, Millet e eu contrataremos tantos criados quantos forem
necessários para tornar a mansão tão bela quanto foi no passado.
Isso significava que numerosos aposentos seriam redecorados, que seis criados de
libre dos Damien estariam à sua disposição e que Millet serviria todas as refeições na
esplêndida prataria da família!
Aquelas perspectivas eram maravilhosas, mas no momento só conseguia pensar
em duas pessoas: nela e em Virgil.
Foi uma alegria inexprimível comer a seu lado na sala de jantar. A mesa estava
decorada com rosas brancas e sabia que lorde Damien as escolhera, pois, achava que ela se
assemelhava àquelas flores…
A luz das velas, colocadas nos pesados candelabros de ouro, refletia-se no colar de
brilhantes que Gracila trazia ao pescoço, presente de casamento de Virgil.
Usara-o por ocasião da cerimônia e o anel de casamento ostentava uma enorme
82
safira, rodeada de diamantes. Nunca tinha visto algo tão belo em toda sua vida.
Mesmo assim, os presentes não tinham tanta importância. O que importava eram
os sentimentos que passavam de um para o outro. Sabiam, sem ter necessidade de recorrer
a palavras, que a cerimônia de casamento havia estabelecido entre os dois um laço
espiritual, que fazia deles um único ser.
Após o jantar, lorde Damien recusou o cálice de vinho do Porto que Millet lhe
ofereceu e dando a mão à Gracila foram para o terraço diante da mansão.
A noite caía e o céu ainda apresentava os últimos raios de sol, que se refletiam no
lago e nas folhas das árvores.
— Como tudo isto é belo! — exclamou Gracila. — E nos pertence!
— Era justamente o que eu estava pensando.
Gracila sorriu e ele, segurando-a pelo braço, levou-a até a alameda.
— Sente-se feliz? — indagou lorde Damien.
— Como é que você pode me fazer uma pergunta tão absurda? Sabe muito bem
que me sinto tão feliz que até tenho vontade de cantar, dançar, voar pelos ares, mergulhar
no lago!
— Eu também me sinto assim e, no entanto, tenho medo.
— Medo?
— Medo de não ter sido suficientemente punido e de não merecer uma pessoa tão
perfeita quanto você.
Ela apoiou o rosto em seu ombro, em um gesto de ternura.
— De repente você se mostra humilde… Prefiro-o soberbo e altivo. Foi essa a
impressão que você me deu quando o vi pela primeira vez.
— Altivo?
— Sim, mas logo descobri que aquilo não passava de uma fachada e logo descobri
sua verdadeira natureza. Receio, porém, uma coisa: o que farei, se você se aborrecer? Se
quiser voltar para as mulheres, o vinho, as festas?
— Você sabe que basta uns bons sermões para me colocar novamente no caminho
certo…
— Duvido que você os ouvisse!
— Acertou! Haviam chegado até o regato, que parecia uma pequenina
serpente de prata à luz do luar.
Ficaram parados sob a árvore onde tinham se encontrado pela primeira vez.
Gracila esperou que lorde Damien a tomasse nos braços, mas ele disse:
— Foi aqui que minha vida mudou completamente. Neste lugar, levantei os olhos
e encontrei uma estrela cadente…
— O que teria acontecido se você tivesse prosseguido e eu não tivesse tido a
coragem de detê-lo?
— Eu teria voltado de qualquer maneira, pois o destino assim o quis. Meu amor
como me sinto grato por termos tanta sorte…
Olhou-a fixamente e com muito carinho tomou-a nos braços.
Os lábios de Gracila eram um convite aos seus.
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— Você é tão linda, tão pura! Só consigo dizer mais uma vez que não a mereço.
— Eu o amo! Nós nos amamos e eu lhe pertenço. Havia um novo brilho em seus
olhos que o deixou muito comovido.
Seus lábios procuraram os dela e durante alguns momentos aquele beijo
transmitia reverência e homenagem, como se ele quisesse se dedicar a ela como um
cavalheiro que serve à sua dama.
Ao sentir a maciez de seus lábios e um ligeiro tremor que percorria o corpo de
Gracila seu beijo tornou-se mais apaixonado e exigente.
— Eu a amo! Minha querida, minha pequenina estrela, meu coração, minha alma,
minha vida!
Beijou-a com ardor, despertando nela emoções que não imaginava pudessem
existir e sensações que ultrapassavam seus sonhos e sua imaginação. Beijou-lhe o pescoço,
o colo e novamente os lábios.
— Oh… Virgil… Virgil… — ela exclamou, como se seu nome fosse um talismã.
Subitamente perceberam que a noite havia caído de todo e que as primeiras
estrelas despontavam no céu.
— Precisamos voltar para casa — murmurou lorde Damien, com voz abafada.
— Voltaremos juntos! Isto é maravilhoso! Oh, Virgil… se você soubesse como me
aterrorizou o pensamento de voltar sozinha para casa quando expiraram aquelas cinco
horas que você me havia concedido!
— E agora não lhe dei cinco horas apenas, mas cinco bilhões de anos. Mesmo todo
esse tempo não bastaria para eu lhe dizer o quanto a amo e o quanto você significa para
mim.
— Será que, quando morrermos, haveremos de nos encontrar novamente… como
nos encontramos nesta vida?
— Você nunca poderá me deixar, pois tenho certeza de que formamos um único
ser!
— É nisto que eu quero acreditar.
— Tenho diante de mim toda uma vida para poder provar!
Enquanto falavam, percorriam a alameda e durante alguns momentos pararam
diante da mansão, vendo que todo o teto se tornava prateado, à medida que a lua
despontava no firmamento.
— Nosso lar! — exclamou Gracila, quase sem fôlego.
— Faremos dele o lar que não tive durante anos e talvez um dia, meu amor, será
também o lar de nossos filhos.
— Eles jamais serão tão sozinhos quanto você foi!
— O mesmo aconteceu com você…
— Eu teria me sentido ainda mais só se não tivesse lido a seu respeito em meus
livros ou se não tivesse sonhado com você…
— E não ficou desapontada com a realidade?
— Como seria possível uma coisa dessas? Eu o amo com tamanha intensidade… e
tenho a impressão de amá-lo sempre mais, a cada minuto que passa…
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— Meu amor!
Lorde Damien voltou a beijá-la. Compreenderam que queriam ficar ainda mais
próximos um do outro e puseram-se a caminhar rapidamente em direção à mansão.
Aquela noite Gracila dormiria no aposento ao lado do quarto do dono da casa.
Enquanto se encaminhavam para lá, sentiu que todas as mulheres que o haviam
ocupado um dia davam-lhe sua bênção e desejavam-lhe felicidades.
Ele a contemplou à luz das velas que iluminavam a cama. Durante alguns
minutos, nenhum dos dois se moveu. Então Virgil perguntou:
— Você me ama?
— Tanto… tanto… meu querido Virgil!
Enquanto falava caminhava em sua direção e rodeou-lhe o pescoço com os braços.
Lorde Damien puxou-a para si, beijando-a como nunca havia feito.
Gracila sabia que naquele momento tudo o que havia de sensível e espiritual em
Virgil despertava, ao lado de um fogo bastante humano, purificado, no entanto, pelo
enlevo que se apoderava de sua alma.
Retirou o colar de brilhantes de seu pescoço.
Aprisionou seus lábios nos dele, enquanto seus dedos desfaziam os laços do
vestido.
Virgil beijou-lhe o pescoço e os seios, dizendo:
— Minha estrela, minha pequena e preciosa estrela, seu amor me transportará até
os céus de onde você veio. Eu a adoro, eu a venero, eu a desejo!
— Eu também o quero… — Gracila tentou dizer, mas não havia palavras que
exprimissem o amor que os transportava em suas asas para o êxtase do paraíso.
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Barbara Cartland é, sem dúvida, a mais famosa escritora romântica do mundo.
Entre suas inúmeras qualidades, podemos citar algumas: é historiadora, geógrafa, poetisa
e especialista em dietas naturais. Atuante personalidade política, sempre lutou pelos
direitos dos grupos menos favorecidos da sociedade inglesa, especialmente os ciganos,
viúvas pobres e crianças abandonadas. Super criativa e culta, já escreveu mais de 550
livros, editados em todo o mundo em dezenas de idiomas e dialetos, tendo alcançado com
essas obras a incrível marca de 600 milhões de exemplares vendidos.
Algumas datas da vida de Barbara Cartland:
1901 - Nascimento
1923 - Publica seu primeiro livro
1927 - Casa-se com Alexandre McCorquodale
1933 - O primeiro casamento é desfeito
1936 - Casa-se em segundas núpcias com Hugh McCorquodale, primo de seu
primeiro marido
1963 - Publica seu centésimo livro
1976 - Sua filha Raine casa-se com o Conde Spencer, pai da princesa Diana
1981 - A princesa Diana, enteada de sua filha, casa-se com Charles, príncipe-
herdeiro da Inglaterra
1983 - Entra no livro de recordes Guinness
1991 - Recebe o título de “Dame” do Império Britânico
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A DEUSA VENCIDA
Barbara Cartland
Os tambores do vodu ecoavam pela floresta, avisando do perigo, enquanto André e Saona
fugiam dos soldados do general Dessalines, sedentos de sangue. A não ser que
conseguissem despistar seus perseguidores, seriam torturados e mortos. Desde que
chegara ao Haiti, para procurar um tesouro enterrado por seu tio, o conde André de
Villaret tinha sido protegido pelos deuses nativos.
Disfarçado, atravessou a ilha, dominada pelos ex-escravos que haviam massacrado os
colonizadores franceses. Mas agora precisava de toda a ajuda de Damballah, o deus-
serpente, para salvar sua maior riqueza: a vida da mulher a quem amava.