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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Marcio Antônio Both da Silva
BABEL DO NOVO MUNDO: povoamento e vida rural na região de matas do Rio Grande do Sul
(1889-1925)
Niterói 2009
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Marcio Antônio Both da Silva
BABEL DO NOVO MUNDO: povoamento e vida rural na região de matas do Rio Grande do Sul
(1889-1925) Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em História. Orientadora: Professora Doutora Márcia Menendes Motta
Niterói 2009
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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
B749 Both, Marcio.
Babel do novo mundo: povoamento e vida rural na região de matas do Rio Grande do Sul (1889-1925) / Marcio Both. – 2009.
274 f. ; il. Orientador: Márcia Motta.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, 2009.
Bibliografia: f. 256-274.
1. História do Rio Grande do Sul – 1889-1925. 2. Povoamento territorial regional – Rio Grande do Sul. 3. Representação. I. Motta, Márcia. II. Universidade Federal Fluminense. III. Título.
CDD 981.05
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Marcio Antônio Both da Silva
BABEL DO NOVO MUNDO: povoamento e vida rural na região de matas do Rio Grande do Sul
(1889-1925) Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em História.
BANCA EXAMINADORA ___________________________________________________________________________
Professora Doutora Giralda Seyferth – PPGAS-Museu Nacional/UFRJ
___________________________________________________________________________ Professora Doutora Sônia Regina de Mendonça – PPGH-UFF
___________________________________________________________________________ Professora Doutora Márcia Menendes Motta – PPGH-UFF (Orientadora)
___________________________________________________________________________ Professor Doutor Moacir Gracindo Soares Palmeira – PPGAS-Museu Nacional/UFRJ
___________________________________________________________________________ Professor Doutor Paulo Afonso Zarth – UNIJUÍ
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Para Graziele
(Nobody feels any pain Tonight as I stand inside the rain
Ev’rybody knows That Baby’s got new clothes
But lately I see her ribbons and her bows Have fallen from her curls.
Bob Dylan)
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AGRADECIMENTOS
Em 1998 ingressei no curso de história, neste mesmo ano, um professor, que depois
venho a se tornar um amigo, me apresentou a história agrária. Desde então, venho me
dedicando a conhecer assuntos relacionados a esta área do conhecimento. Assim, esta tese é
resultado e faz parte de uma trajetória acadêmica e quer expressar alguns aprendizados que
tive ao longo deste tempo. Longe de ser um trabalho definitivo este estudo busca ser uma
contribuição, uma ferramenta que tem o objetivo de ajudar no desenvolvimento de novas
pesquisas, críticas e conhecimentos.
Durante todo este tempo de formação muitas pessoas foram importantes e
fundamentais. Por isso é muito difícil escrever este texto, pois o risco de não citar alguém é
bastante grande. Contudo, algumas pessoas e acontecimentos são inesquecíveis. Assim, faço
um agradecimento especial à minha família – meu pai, minha mãe e meus irmãos – que, longe
ou perto, sempre estiveram junto comigo, dando apoio diante das mais diferentes situações.
Agradeço também à Graziele que viveu e conhece todas as vicissitudes desse processo e,
junto comigo, ajudou a construir uma história que é a nossa história, a qual gostamos tanto de
cuidar.
Em termos acadêmicos faço um agradecimento especial ao professor Paulo Zarth que,
sem dúvidas, é o grande responsável pela minha inserção no mundo da pesquisa. Ao professor
Cláudio Garcia e a professora Ercília Cazarin também agradeço pelo apoio e incentivos
recebidos quando da graduação em Ijuí, bem como em momentos posteriores. Ainda neste
sentido, agradeço a professora Regina Weber que foi minha orientadora de mestrado e, ao seu
modo, contribuiu muito na perspectiva de me fazer conhecer o mundo acadêmico e suas
surpresas. Expresso minha gratidão ao professor Temístocles Cezar que sempre foi um
exemplo de profissional e nunca faltou com suas palavras de apoio e com seus incentivos.
O curso de doutorado, além de me proporcionar a oportunidade de conhecer o Rio de
Janeiro e Niterói, também trouxe consigo pessoas que se tornaram importantes e que
contribuíram muito na minha formação. Refiro-me aqui, especialmente, a professora Márcia
Motta que não só foi minha orientadora, mas uma amiga que soube me incentivar e sempre
esteve presente nos momentos que precisei. Agradeço também ao professor Mário Grynszpan
que acompanhou o desenvolvimento desta pesquisa desde antes de minha entrada no curso de
doutorado. Ademais, ele e a professora Giralda Seyferth, como integrantes da banca de
qualificação, teceram críticas ao texto e apontaram caminhos que, na medida do possível,
busquei dar conta. Meu sincero obrigado vai também para o professor Moacir Palmeira que,
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em 2005, proporcionou-me a oportunidade de participar do curso Sociedades Camponesas por
ele ministrado no Museu Nacional. Destaco o conjunto de aprendizados que obtive na
realização deste curso, o qual influenciou muito nos rumos que tomaram esta pesquisa.
Agradeço a professora Sônia Mendonça por ter aceitado participar da banca de defesa e
sublinho minha admiração por sua trajetória acadêmica e pelas pesquisas que realizou, as
quais contribuíram muito para meu aprendizado.
Agradeço o apoio recebido pelos amigos e amigas que acompanharam o processo de
desenvolvimento desta tese: Graciela Garcia (valeu amiga Gra!), Alessandra Gasparotto,
Guinter Leipnitz, Alisson Droppa, Rodrigo Turin, Bruno Zorek, Aristeu Machado, Victor
Passuello, Helder Cyrelli, Fernando Nicolazzi, Hilton Costa, Marina Machado, Carlos
Leandro, Elione Guimarães, Antônio Henrique Lacerda e aos integrantes do Núcleo de
Referência Agrária, meu cordial obrigado. Em nome de Edson Cadore, José Luiz Patrola,
Miguel Stédile, Janaina Stronzake, Léo Haua, Marina dos Santos e Paulo César agradeço aos
amigos e amigas que atuam no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, os quais, em
momentos diversos, seja no Rio Grande do Sul ou no Rio de Janeiro, muito me ensinaram
sobre o presente da luta pela terra no Brasil.
Na categoria amigos e amigas também entram as pessoas que conheci em Marechal
Cândido Rondon e que, desde 2008, vem partilhando seu dia-a-dia comigo. Obrigado
Alexandre Blankl, Juliana Wandpap, Sandra Popiolek, Gilberto Calil, Carla Silva, Rafael
Silva Calil (Guri), Rinaldo Varussa, Danilo George, Luis Fernando Zen e aos colegas de
trabalho do Colegiado de História da UNIOESTE pela acolhida e pela convivência. Agradeço
também a Agenor Junior, Henrique de Paula, Ellen de Paula e Lívia Fonseca, os quais
tornaram o primeiro ano de doutorado e a vida no Rio de Janeiro e em Niterói menos solitária
e mais interessante.
Aos funcionários(as) das diferentes instituições onde realizei pesquisas – Arquivo
Público do Rio Grande do Sul, Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Biblioteca Pública
do Rio Grande do Sul, Arquivo Histórico Nacional, Biblioteca Nacional, Biblioteca da
Academia Brasileira de Letras – também agradeço pelo empenho em dar informações e
disponibilizar documentos e bibliografias, os quais dão vida a esta tese. Meu obrigado
também aos funcionários da secretaria do Curso de Pós-Graduação em História e seu
empenho em resolver as mais diferentes questões burocráticas.
Por fim, agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq), que durante os quatro anos de curso financiou os meus estudos.
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Por onde passei, plantei
a cerca Farpada, plantei a queimada.
Por onde passei, plantei
a morte matada. Por onde passei,
matei a tribo calada, a roça suada,
a terra esperada... Por onde passei,
tendo tudo em lei, Eu plantei o nada.
(Pedro Casaldáliga
e Pedro Tierra)
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RESUMO
A pesquisa objetiva compreender como se desenvolveram as relações entre grupos
sociais na dinâmica de ocupação da região de matas – especificamente no território abrangido
pelos municípios de Cruz Alta, Palmeira das Missões, Passo Fundo e Santo Ângelo – no Rio
Grande do Sul, entre 1889 e 1925. O texto discute como se elaboraram algumas
representações sobre tais grupos e o quanto elas estão relacionadas a sua atuação no
povoamento. Nestes termos, a obra re-visita a região, enfocando-a como espaço de luta pela
terra, priorizando a análise das políticas governamentais de povoamento e administração das
“terras devolutas”, bem como o complexo das relações sociais estabelecidas entre colonos,
nacionais, negros e índios.
Palavras-chave: História agrária, povoamento, representação.
ABSTRACT
This dissertation aims to understand how were developed the relations among different
social groups in the occupation process of the região de matas (woods region) - in the
territory comprehended by the cities of Cruz Alta, Palmeira das Missões, Passo Fundo and
Santo Ângelo - in Rio Grande do Sul, between 1889 and 1925. It discusses how some
representations about those groups were created and were related to their action through the
settlement process. In these terms, this paper rethinks the region, emphasizing it as a space of
struggle for land. It prioritizes the analysis of the government policies of settlement and
administration of the public lands (terras devolutas), as well as the complex dynamics of the
social relations established among the immigrant settlers, Brazilian peasant (nacionais), black
people and indians.
Keywords: agrarian history; settlement; representation.
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LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 – Biomas Rio Grande do Sul 28 FIGURA 2 – Estrutura Fundiária 29 FIGURA 3 – Divisão municipal do Rio Grande do Sul 31 FIGURA 4 – Planalto do Rio Grande do Sul 32 FIGRUA 5 – Toldos indígenas do Rio Grande do Sul entre 1889-1925 43 FIGURA 6 – Questão de Palmas 48 FIGURA 7 – O Rio Grande do Sul e as principais colônias fundadas entre 1889 e 1925 51 FIGURA 8 – Casa de colono e casa de indígenas 127 FIGURA 9 – Modelo de habitação para indígenas 167 FIGURA 10 – Modelo de habitação para nacionais 184 FIGURA 11 – Mapas das sedes coloniais de Porto Lucena e Santa Rosa 239
LISTA DE TABELAS TABELA 1 – Receita e despesas da DTC entre 1907 e 1925 242
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LISTA DE ABREVIATURAS
AHRS – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul APERGS – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul DTC – Diretoria de Terras e Colonização FUNAI – Fundação Nacional do Índio IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro MAIC – Ministério da Agricultura Indústria e Comércio PRR – Partido Republicano Rio-Grandense SENOP – Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas SNA – Sociedade Nacional de Agricultura SPI – Serviço de Proteção ao Índio SPILTN – Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais SPSN – Serviço de Povoamento do Solo Nacional
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SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS RESUMO/ABSTRACT LISTA DE FIGURAS LISTA DE TABELAS LISTA DE ABREVIATURAS INTRODUÇÃO
06
09
10
10
11
13
1 BABEL DO NOVO MUNDO
24
2 E ELES AQUI VÃO: ESTADO, REPRESENTAÇÕES E POVOAMENTO 2.1 A Região Serrana: um espaço de fronteira agrária 2.2 Sobre aqueles que “pertencem a sociedade”: ou das relações estabelecidas entre os grupos sociais envolvidos no povoamento da região serrana 2.3 Representações: ou sobre aqueles que “são vadios e de maus costumes” 2.4 Estado, governo e sociedade: ou sobre aqueles que buscavam “conservar melhorando”
52 52
58 74
87
3 NÃO ME CHAME DE GRINGO, POIS ISSO QUER DIZER LADRÃO: IMIGRANTES, NEGROS, ÍNDIOS E NACIONAIS NA REGIÃO SERRANA 3.1 De estrangeiros a colonos: ou sobre aqueles que são os “obreiros de nossa riqueza” 3.2 Da escravidão ao silêncio: ou sobre aqueles que vivem “num estado semelhante ao selvagem ao bárbaro” 3.3 Do fetichismo à idade positiva: ou sobre os “nossos irmãos cujos cérebros se acham ainda em estado de infantilidade” 3.4 De nacionais a colonos regulares: ou sobre como formar os “cidadãos operosos do amanhã”
103
103
132
152
170
4 GOVERNAR É PROMOVER A FELICIDADE DA PÁTRIA: INTRUSÃO, COLONIZAÇÃO E
AS POLÍTICAS DE POVOAMENTO 4.1 A gestão das terras devolutas 4.2 Colonização e intrusão: as múltiplas faces do mesmo processo
187 187 221
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
252
6 FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 6.1 Mensagens enviadas pelos presidentes de Estado à Assembléia dos Representantes 6.2 Relatórios da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas 6.3 Fontes bibliográficas e digitais 6.4 Processos Crime 6.5 Referências bibliográficas
256
256 259 262 264 265
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INTRODUÇÃO
Vem teçamos a nossa liberdade,
braços fortes que rasgam o chão, sob a sombra da nossa valentia, desfraldemos a nossa rebeldia e
plantemos nesta terra como irmãos!
Hino do Movimento Sem Terra.
Ao longo destas linhas buscarei contar a história da terra, seus homens e suas relações.
Trata-se da história do povoamento de uma região do Rio Grande do Sul, a qual abrange o
território dos municípios de Cruz Alta, Palmeira das Missões, Passo Fundo e Santo Ângelo,
durante o período da Primeira República (1889-1925). Não só, mas também o conjunto de
relações sociais características desse processo, tendo como ponto de referência a disputa pela
terra e os conflitos que lhe são característicos, serão objeto do estudo. Esta história, embora já
tenha sido tematizada em alguns de seus aspectos pela produção historiográfica, ainda oferece
possibilidades de abordagem importantes, cuja análise é fundamental para a compreensão
profunda do povoamento e de seus resultados. Nestes termos, aqui serão abordados temas
como a colonização com imigrantes, os conflitos que caracterizaram o encontro entre os
diferentes grupos sociais (negros, indígenas, nacionais e imigrantes), a atuação do Estado
enquanto agente formador/implementador de políticas para gerir a questão das terras
devolutas e a constituição de representações a respeito da população que vivia ou, à medida
que a fronteira agrária era expandida, passou a viver na região.
Em termos historiográficos o principal assunto tematizado sobre o povoamento do
espaço que forma a região de matas do Rio Grande do Sul, situada mais ao norte/noroeste do
estado, foi o da colonização com imigrantes europeus de origem não-ibérica e seus
descendentes. Em 1824 foi fundada a primeira colônia no estado, sendo que, a partir dessa
data, o movimento de colonização passou a avançar e encontrou sua consolidação em 1890,
ao ser criada a Colônia Ijuí, que na época fazia parte do município de Cruz Alta. Entretanto,
esse processo não parou aí, visto que Ijuí foi a base a partir da qual ele se direcionou rumo à
fronteira do Rio Grande com Santa Catarina e os países vizinhos quando, nas primeiras
décadas do século XX, são fundadas as colônias de Erechim, Santa Rosa, Marcelino Ramos,
Três Passos e outras tantas, sendo que, por volta da década de 1920, toda a região norte do
estado estava, conforme as palavras do geógrafo Nilo Bernardes, “salpicada de colônias”1.
1 BERNARDES, Nilo. Bases geográficas do povoamento do Estado do Rio Grande do Sul. Ijuí: UNIJUI, 1997.
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O movimento de colonização, sumariamente descrito, foi organizado e levado a cabo
pelo Estado, cuja atuação passou a ser mais forte na região a partir da Proclamação da
República2. Também foi importante no processo a ação da iniciativa privada que fundava
colônias particulares, mas, em termos de República, comparativamente à ação estatal, ela foi
pequena e aconteceu, como veremos nos próximos capítulos, a partir de um certo controle
exercido pelo Estado. Não obstante, a disputa entre Estado e particulares em relação ao
processo de privatização das terras públicas tenha sido também um dos elementos centrais a
definir o modo como se desenvolveu o povoamento. Aqui cabe ressaltar que pouco abordarei,
ao longo do estudo, os assuntos relativos a colonização particular, uma vez que tratar deste
tema exigiria desenvolver uma outra pesquisa, cuja efetivação está proporcionalmente ligada
a consulta de documentos que, na maioria dos casos, não são fáceis de serem localizados,
devido a sua dispersão em diferentes arquivos e museus localizados nos municípios
originários de colônias privadas.
É conveniente salientar que os territórios onde foram estabelecidas as colônias, tanto
públicas como privadas, já eram ocupados. Da mesma forma, deve-se sublinhar que as
populações originárias de tais espaços – em sua maioria nacionais, indígenas e negros3 –
agiram de forma peculiar frente ao povoamento e, como veremos, à medida que a colonização
avançava na zona de matas, tais grupos se inseriam no processo a partir do desenvolvimento
de uma série de estratégias formuladas com base em suas experiências de vida e relação com
a sociedade. Aqui convém abrir um parêntesis para definir mais explicitamente o emprego do
termos “nacionais”, uma vez que ele será recorrente e trata-se de um adjetivo bastante usado
nas fontes, especialmente nos Relatórios da Diretoria de Terras e Colonização e nas
mensagens dos presidentes de Estado. Nestas fontes, o termo é utilizado para adjetivar um
grupo de pessoas que na literatura é comumente nominada como “brasileiros”, “caboclos”,
“caipiras”, etc. Assim, a opção pelo termo “nacionais” e seu derivados, como veremos no
capítulo 3, é resultado de uma apropriação. Cabe assinalar também que sempre que a palavra
for utilizada em itálico estará sendo empregada no sentido que ela adotava na época, isto é,
nestas situações buscarei ser fiel ao conteúdo das fontes. Por seu turno, quando ela aparecer
sem algum destaque gráfico o intuito será demonstrar a não concordância com as opiniões
pejorativas existentes a respeito desse grupo de pessoas.
2 Prova desta afirmação pode ser encontrada no aumento do número de imigrantes que chegaram ao Rio Grande do Sul a partir da República, bem como no desenvolvimento de uma série de políticas de Estado que tinham a meta de acelerar o processo de colonização e fundação de colônias. Cf.: ROCHE, Jean. A colonização alemã no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Globo, vols. I e II, 1969. 3 No capítulo 2 e 3, desenvolvi de forma mais profunda uma análise sobre os critérios aplicados para utilização de alguns termos empregados para denominar os grupos que atuaram no povoamento.
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De uma maneira geral, embutido ao processo de colonização, estava o interesse de
desenvolver um projeto de civilização. Projeto pensado a partir de critérios como a introdução
do Rio Grande do Sul e seus habitantes no contexto da sociedade moderna, cuja uma das
principais metas era tornar o estado competitivo em relação a outras economias regionais do
país4. Cabe frisar, igualmente, que tal objetivo foi perseguido e posto em prática sem levar em
consideração as diversas concepções, expressas pelos diferentes grupos sociais, a respeito da
terra e seu uso5.
Assim, um dos objetivos da pesquisa é compreender problemas sociais que estão
presentes e são definidores da atual realidade não só regional como nacional. Tais situações
estão relacionadas com à questão da apropriação da terra, a qual tem raízes ainda no período
colonial, mas que passa a ter contornos mais nítidos a partir do século XIX com a
promulgação da Lei de Terras em 18506. Além desse, outro objetivo que definiu a realização
da pesquisa e o formato que ela tem foi pensar o modo como os diferentes grupos sociais que
se envolveram no povoamento participaram dele. Dessa forma, priorizei a análise de temas
que, com algumas exceções, foge à tradição historiográfica “dominante” no Rio Grande do
Sul. Cuja premissa principal para tratar do povoamento é priorizar a análise do papel dos
imigrantes e definir a ação de outros grupos como secundária ou mesmo inexistente. Tais
pesquisas destacam a importância dos imigrantes como agentes modernizadores e tratam os
“outros” grupos sociais como representantes da tradição e do atraso7.
4 Cf.: PESAVENTO, Sandra Jatahy. República Velha gaúcha: “Estado autoritário e economia”. In.: DACANAL, José Hildebrando; GONZAGA, Sérgius (Orgs.). RS: economia e política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993, p. 193-229 e SILVA, Elmar Manique da. Ligações externas da economia gaúcha (1736-1890). In.: José Dacanal; Sérgius Gonzaga (Orgs.). Idem, p. 55-91. 5 Sobre este tema, conferir: ZARTH, Paulo. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: UNIJUI, 2002; ___. História agrária do planalto gaúcho 1850-1920. Ijuí: UNIJUI, 1997; RÜCKERT, Aldomar A. A trajetória da terra: ocupação e colonização do centro-norte do Rio Grande do Sul – 1827-1931. Passo Fundo: Ediupf, 1997; GEHLEN, Ivaldo. Uma estratégia camponesa de conquista da terra e o Estado: o caso da fazenda Sarandi. Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1983, (Dissertação de Mestrado) e TAMBARA, Eleomar. RS: modernização e crise na agricultura. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985. 6 Existem diferentes leituras sobre as origens e repercussões históricas da Lei de Terras. Algumas são sustentadas por análises históricas, outras sociológicas. Para uma idéia geral sobre tal produção suas diferenças e divergências, ver: LIMA, Ruy Cirne. Pequena história territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 1990; MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder: conflitos de terras e direito agrário no Brasil de meados do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura/Arquivo Público do Estado, 1998; SILVA, Ligia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996; COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à Republica: momentos decisivos. São Paulo: Grijalbo, 1977 e MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: LECH, 1981. 7 Exemplo dessa interpretação são os trabalhos de WAIBEL, Leo. Capítulos de geografia tropical e do Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 1979; WILLEMS, Emílio. A aculturação dos alemães no Brasil. São Paulo: Editora Nacional; Brasília: INL, 1980 e Jean Roche. Idem, op. cit.
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Esta pesquisa inscreve-se dentro de um campo de análise histórica, cuja consolidação
no Brasil se dá a partir da década de 70 do século XX, momento em que, de acordo com Hebe
Maria Matos, ela “tornou-se generalizada entre os historiadores profissionais”, sendo
caracterizada por sua “perspectiva de síntese, como reafirmação do princípio de que, em
história, todos os níveis de abordagem estão inscritos no social e se interligam”8, ou seja, a
História Social. De forma mais específica, as considerações aqui desenvolvidas estão
inseridas em um campo de pesquisa denominado “história social da agricultura”9. Logo, têm
por objeto estudar, entre outras coisas, os resultados e as formas de apropriação e uso do solo.
Da mesma maneira, inscrevem-se na produção historiográfica, dentro de uma série de
pesquisas que, como se verá adiante, a partir da década de 1980/90, passaram a ser
desenvolvidas no Rio Grande do Sul e no Brasil e estão diretamente ligadas a trabalhos
realizados, principalmente na França10 e Inglaterra11, no campo da história social e agrária.
Como veremos, especialmente no capítulo dois, o Estado teve um papel muito
importante no desenvolvimento da colonização, visto que buscou assumir, principalmente a
partir da República, a responsabilidade de levar a cabo o processo e atuou, ou pelo menos
tentou atuar, como seu carro-chefe. Estudos sobre a formação e organização do Estado
moderno têm destacado o quanto o processo de monopolização de poder é importante nessa
constituição12. No caso do Rio Grande do Sul, com a implantação da República e a construção
de um governo autoritário sustentado em bases positivistas, esse processo ganhou forma e
acompanhou a colonização: foi à medida que o povoamento com imigrantes avançou em
direção à zona de matas, que Estado passou a ter presença mais forte na região. Prova disso é
que, juntamente com a fundação das colônias, eram instaladas algumas instituições antes
inexistentes nesses locais – por exemplo, a criação de Comissões Verificadoras, escolas, a
constituição de municípios e do aparato de administração que lhe é característico
acompanharam o ritmo de desenvolvimento das colônias.
8 MATTOS, Hebe Maria. História Social, p. 46. In.: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 45-61. 9 Cf.: LINHARES, Maria Yeda. História Agrária, p. 168. In.: Ciro Flamarion; Ronaldo Vainfas (Orgs.). Idem, p. 165-185. 10 Por exemplo, BLOCH, Marc. A terra e seus homens: agricultura e vida rural nos séculos XVII e XVIII. Bauru: EDUSC, 2001; LE ROY LADURIE, Emmannuel. Montaillou povoado occitânico (1294-1324). São Paulo: Companhia das Letras, 1997; ___. Camponeses do Languedoc. Portugal: Editora Estampa, 1997. 11 Por exemplo, THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores: a origem da Lei Negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; HOBSBAWM, Eric. Rebeldes primitivos: estudos sobre formas arcaicas de movimentos sociais nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978; THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação a plantas e aos animais (1500-1800). São Paulo: Companhia das Letras, 1989 e WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 12 Cf.: BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política. São Paulo: Paz e Terra, 2004; DÜLMEN, Richard Van. Los inícios de la Europa moderna (1550-1648). Madrid: Siglo XXI, 1998 e DUSO, Giuseppe (Org.). O poder: história da filosofia política moderna. Petrópolis: Vozes, 2005.
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A atual produção historiográfica sobre o povoamento do Rio Grande do Sul tende a
priorizar novos problemas e vem desviando seu centro de análise unicamente da imigração.
Tal perspectiva de análise, inaugurada nos fins da década de 1980 e início dos anos 1990,
toma como centro de observação grupos que até então não haviam recebido a devida
importância. Assim, pesquisas relacionadas ao modo de vida dos nacionais, ao problema
indígena e à questão da escravidão no Rio Grande do Sul, por exemplo, vêm recebendo uma
atenção significativa por parte dos pesquisadores que se preocupam em pensar a questão
agrária. No entanto, ainda há uma série de lacunas a serem preenchidas e problemas a serem
resolvidos, como o do lugar que os negros ocuparam no pós-escravidão, por exemplo.
Uma das principais dificuldades relacionadas ao desenvolvimento de tais temas deve-
se ao problema das fontes, visto que esses grupos dificilmente deixaram vestígios de sua
presença. Geralmente os documentos utilizados não são produzidos por eles, mas são
resultados de observações externas: descrições realizadas por viajantes estrangeiros,
documentos produzidos pelas autoridades, registros deixados por imigrantes, inventários post
mortem, processos crime, correspondências de autoridades ou relatórios de chefes de Estado e
das igrejas, geralmente, são as bases que dão sustentação às análises que se fazem. Contudo,
embora produzidas externamente, tais fontes têm demonstrado precisão nas informações e
permitem construir interpretações a respeito do passado dos diferentes grupos.
É importante mencionar a existência de uma produção bibliográfica considerável sobre
a questão agrária, tanto em esfera local como nacional. À medida que as pesquisas sobre o
assunto vêm avançando, trazem junto consigo uma série de indagações, algumas novas, outras
recorrentes, dentre elas destacam-se as análises sobre a apropriação da terra e as relações
mantidas entre as pessoas que se envolveram no processo. Nesta perspectiva, alguns estudos
têm demonstrado avanços no sentido de melhor compreender a questão agrária a partir do
ponto de vista dos grupos sociais que a produção historiográfica tradicional tinha
desconsiderado13, embora ainda haja um vasto campo a ser trilhado. Também há uma
produção importante de trabalhos relacionados à imigração e que têm a característica de
analisá-la a partir de uma interpretação menos apologética em relação aos imigrantes14. Tais
13 São exemplos destes estudos as abordagens desenvolvidas por Paulo Afonso Zarth. Idem, op. cit; Aldomar Rückert. Idem, op. cit.; ARDENGHI, Lurdes Grolli. Caboclos, ervateiros e coronéis: luta e resistência no norte do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: UPF, 2003; GARCIA, Graciela Bonassa. O domínio da terra: conflitos e estrutura agrária. Porto Alegre: Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005. (Dissertação de Mestrado), entre outros. 14 São exemplos de tais abordagens, as pesquisas de SEYFERTH, Giralda. A colonização alemã no Vale do Itajaí-Mirim: um estudo de desenvolvimento econômico. Porto Alegre: Editora Movimento, 1974; LESSER, Jeffrey. A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. São
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pesquisas tendem a priorizar uma análise mais “terra-a-terra” da colonização, inserindo-a não
só no contexto regional, mas apontando sua relação com o contexto nacional, além do próprio
processo de expansão e implantação de relações capitalistas de trabalho e produção no Brasil.
Nesse sentido, assumem papel importante os trabalhos que passam a pensar a imigração a
partir do ponto de vista da etnicidade ou da inserção dos imigrantes no contexto da sociedade
de acolhimento15.
Esse processo de construção de novos temas também está intimamente relacionado a
um diálogo que a historiografia regional tem estabelecido com pesquisadores que trataram de
questões semelhantes em outras regiões do país. Assim, obras produzidas a partir dos
diferentes campos dos saberes das ciências sociais, seja por historiadores, geógrafos,
sociólogos, antropólogos ou cientistas políticos vêm inspirando os pesquisadores da questão
agrária no Rio Grande do Sul no sentido de se elaborarem novas perguntas a seus objetos de
estudo16. Numa perspectiva mais geral, também é importante mencionar a influência exercida
por trabalhos clássicos que tratam da formação histórica da sociedade brasileira no modo
como as pesquisas sobre o Rio Grande do Sul vêm sendo desenvolvidas. Cabe destacar
perguntas importantes que passaram a ser realizadas para o contexto regional, a partir da
leitura de obras como a de Victor Nunes Leal17 sobre o coronelismo, de Raymundo Faoro18,
Florestan Fernandes19 e José Murilo de Carvalho20 sobre a formação do capitalismo e da elite
nacional. Na pesquisa aqui desenvolvida, a intenção foi aprofundar esse diálogo que vem se
demonstrando produtivo.
Paulo: Editora UNESP, 2001 e ___. O Brasil e a questão judaica. Rio de Janeiro: Imago, 1995; SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Editora USP, 1998. 15 Por exemplo, WEBER, Regina. Os operários e a colméira: trabalho e etnicidade no sul do Brasil. Ijuí: UNIJUI, 2002 e WOORTMANN, Ellen F. Herdeiros, parentes e compadres: colonos do sul e sitiantes do nordeste. São Paulo-Brasilia: Hucitec; Edunb, 1995. 16 Por exemplo: CANDIDO, Antônio. Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e as transformações do seu modo de vida. São Paulo: Duas Cidades: Editora 34, 2001; José de Souza Martins. Idem, op. cit; HAESBAERT, Rogério. Dês-territorialização e identidade: a rede gaúcha no nordeste. Niterói: EDUFF, 1997; FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: UNESP, 1997; SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001; Márcia Menendes Motta. Idem, op. cit; MENDONÇA, Sônia Regina de. O ruralismo brasileiro (1888-1931). São Paulo: Editora HUCITEC, 1997; VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo autoritário e campesinato: um estudo comparativo a partir da fronteira em movimento. São Paulo/Rio de Janeiro: DIFEL, 1976. 17 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o municipio e o regime representativo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997. Outro livro importante sobre o coronelismo é o de Marcos Vilaça e Roberto de Albuquerque, ver: VILAÇA, Marcos Vinícios; ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcanti de. Coronel, coronéis: apogeu e declínio do coronelismo no nordeste. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. 18 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo, vol. I e II, 1995. 19 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975. 20 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial; Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, Relume-Dumará, 1996.
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Quanto à questão das fontes, utilizei documentos demonstrativos da ação do Estado e
fontes que têm por característica apresentar de forma mais direta a atuação dos diferentes
grupos sociais. Tais documentos, em sua maioria, estão depositados no Arquivo Histórico do
Rio Grande do Sul (AHRS) e no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul
(APERGS), ambos localizados em Porto Alegre. No caso da atuação do Estado, priorizei a
análise de material elaborado pelas pessoas que ocupavam lugar de direção no período:
Mensagens dos Presidentes de Estado enviadas à Assembléia dos Representantes
disponibilizados digitalmente na página do Center For Research Libraries21, vinculado à
Universidade de Chicago. Nas mensagens, constam descritas de ano a ano em todo período
analisado as políticas públicas de colonização, o modo como o Estado lidava com os
diferentes grupos sociais, bem como a situação geral do estado no período. Também utilizo os
Relatórios da Secretaria dos Negócios das Obras Públicas (SENOP) que estão depositados
no AHRS. Nos relatórios da SENOP estão inseridos os relatórios da Diretoria de Terras e
Colonização (DTC), organizados por Carlos Torres Gonçalves, um dos principais
funcionários de Estado, responsável por pensar e colocar em prática as políticas de
colonização no Rio Grande do Sul22. Nos relatórios da DTC, encontram-se descrições da
situação geral que vivenciavam as diferentes colônias, como se desenvolvia a prática de
colonização e os problemas relacionados à apropriação e gerência das terras consideradas
devolutas.
Ainda sobre os relatórios da DTC e as mensagens dos presidentes de Estado é
importante sublinhar que são documentos produzidos por pessoas que tinham a incumbência
de administrar o povoamento e buscavam dar a ele uma certa ordem. O objetivo principal
perseguido pelos funcionários de Estado era manter o controle sobre o processo de
apropriação territorial, buscando garantir que as rendas advindas da privatização das terras
devolutas ficassem com o Estado. Além disso, também existia a preocupação de formar um
tipo específico de trabalhador rural, cuja peculiaridade deveria ser o reconhecimento da
propriedade e a prática de uma agricultura definida como racional e geradora de divisas para
o estado. Dessa forma, tais fontes caracterizam-se por sua parcialidade e pela presença
constante de críticas aos comportamentos considerados desviantes, como é o caso das
posições preconceituosas a respeito do modo de vida característico dos nacionais. Ademais,
tanto os relatórios como as mensagens, são documentos administrativos produzidos
21 Cf.: http://www.crl.edu/ 22 Desenvolvi uma descrição mais detalhada da atuação e da história de vida de Carlos Torres Gonçalves no terceiro capítulo.
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anualmente, a partir dos quais buscava-se prestar conta dos serviços realizados. Assim,
tendem a esconder ou diminuir a importância dos problemas enfrentados pela administração.
Contudo, mesmo que parciais estas fontes são importantes na medida em que fornecem
indícios que podem ser elucidados a partir da sua contraposição com outros documentos e
com a produção bibliográfica competente.
Para realizar a análise, também utilizei artigos e livros produzidos na época23. Trata-se
de publicações que tiveram repercussão nacional como o livro Os Sertões de Euclides da
Cunha24. A partir da análise de tais obras procurei compreender o modo como as populações
rurais brasileiras eram representadas, bem como conhecer o período e as principais discussões
em voga. Neste caso, é importante pontuar que tal produção intelectual representa a percepção
dominante a respeito do Brasil e do povo brasileiro, a qual também buscava definir um lugar
social a esse determinado povo, assim como exigir que ele se comportasse de acordo com o
conteúdo das representações veiculadas.
Outro segmento de fontes utilizadas compõe-se de descrições elaboradas por pessoas
que viviam na região ou que por ela passavam. Assim, textos como o de Evaristo de Afonso
Castro25 e José Hemetério Velloso da Silveira26 – dois representantes da elite político-
econômica de Cruz Alta, sendo o primeiro Promotor Público e o segundo uma influente
liderança política local – oferecem em seus textos detalhes importantes a respeito da região e
de seus habitantes. Não obstante seus preconceitos sobre a população nativa e sua posição
apologética em relação aos imigrantes, as descrições elaboradas por estes personagens são
fontes interessantes para o pesquisador preocupado em conhecer os costumes locais, bem
como o modo como funcionava a economia dos municípios e aspectos relativos a
sociabilidade local. Também se destacam as descrições produzidas por estrangeiros que
passaram pela região como o livro do agrimensor alemão Maximiliano Beschoren27 e os
relatórios produzidos pelos padres capuchinhos franceses Bernardin D’Apremont e Bruno
23 Por exemplo: BONFIM, Manuel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993; VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil: história, organização e psicologia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, vol. 1, 1938; PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1962; ARARIPE, Tristão de Alencar. Indicações sobre a história nacional. In.: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 57, parte II. Rio de Janeiro: Companhia Tipográfica do Brasil, 1894, p. 259-290, entre outros. 24 CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2006. 25 CASTRO, Evaristo de Afonso. Noticia descritiva da região serrana na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul compreendendo os municípios de Cruz Alta, São Martinho, Palmeira, Passo Fundo, Santo Ângelo, São Luiz, Boqueirão, São Borja, São Francisco de Assis, São Vicente e Itaqui. Cruz Alta: Tipografia do Comercial, 1887. 26 SILVEIRA, Hemetério José Velloso da. As missões orientais e seus antigos domínios. Porto Alegre: Companhia União de Seguros Gerais, 1979. 27 BESCHOREN, Maximiliano. Impressões de viagem na Província do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1989.
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Gillonay28. Neste caso, destaca-se a visão eurocêntrica de seus autores, os quais
invariavelmente tratam a região como um deserto. Assim, aos olhos destes estrangeiros,
embora rica em condições a região era um espaço pouco povoado, além de não ser
aproveitada em toda sua potencialidade devido à preguiça comum de seus habitantes.
Situação que, segundo tais autores, poderia ser alterada com a vinda de imigrantes, visto que
eles seriam responsáveis por levar as luzes da civilização àquele “espaço tão esquecido”.
Sustentado na análise desse material, procurei conhecer o processo de colonização e
povoamento, a partir do ponto de vista daqueles que estavam de alguma forma envolvidos na
direção do mesmo ou o presenciaram diretamente. Por seu turno, como tal conjunto de fontes
define-se por sua parcialidade e por representar uma opinião externa a respeito do
povoamento, busquei contrapor as suas informações com dados colhidos em processos crimes
movidos nas Comarcas dos municípios que compõe o espaço sob análise29. Em linhas gerais,
os processos crime permitem ao pesquisador conhecer, entre outras coisas, o modo como as
populações que habitavam a região em estudo se organizavam. Ademais, possibilitam uma
visualização de problemas específicos que dizem respeito, por exemplo, às questões étnicas,
de mobilidade social ou política e os confrontos pela terra.
A utilização de processos crime como fontes para pensar a questão agrária,
principalmente aspectos relacionados a sociabilidade dos grupos rurais demonstra-se bastante
profícua. Assim, a partir das informações presentes em interrogatórios, depoimentos de
testemunhas, em denúncias, em defesas escritas por advogados, em sentenças e veredictos é
possível desenvolver um conjunto de referenciais, cuja característica mais marcante é o acesso
a algumas questões que são peculiares da vida social dos grupos rurais, bem como das
disputas e resistências provenientes do processo de ocupação das terras na região.
No que se refere ao conhecer a vida das populações que não dominavam a palavra
escrita, os processos crime se demonstram uma das fontes que mais bem permitem ao
pesquisador vasculhar esse mundo. Entretanto, é preciso estar atento para o fato de que os
dados disponibilizados nestas fontes são resultado de uma mediação, isto é, sua produção
também está vinculada ao Estado e é resultado de um ritual. Por conseguinte, os processos
crime inserem-se dentro de um “campo” de produção e são atravessados pelo conjunto de 28 D’APREMONT, Bernardin; GILLONAY, Bruno de. Comunidades indígenas, brasileiras, polonesas e italianas no Rio Grande do Sul (1896-1915). Porto Alegre: EST, Caxias do Sul: UCS, 1976. 29 Aqui chamo atenção para o fato de que a maior parte dos processos crime analisados pertencem as Comarcas dos municípios de Palmeira das Missões e Santo Ângelo. O motivo de tal escolha é porque na pesquisa de mestrado priorizei a análise dos processos movidos nas Comarcas de Cruz Alta e Passo Fundo. Cf.: SILVA, Márcio Antônio Both. Por uma lógica camponesa: caboclos e imigrantes na formação do agro do planalto rio-grandense. Porto Alegre: Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2004. (Dissertação de Mestrado).
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regras e preceitos que definem este “campo”30, assim, expressam uma opinião e se adaptam a
um modelo que é ditado pela Justiça Pública. As informações presentes nos processos crime,
portanto, não devem ser tomadas sem sua devida crítica, pois há o risco de tornar algumas
opiniões características da época consensuais quando, na verdade, expressam apenas um
ponto de vista.
Do mesmo modo, analisar uma determinada situação a partir do uso das informações
presentes em processos crime pode levar o pesquisador a tomá-la como profundamente
atravessada pela violência, à medida que ela é o foco principal destes documentos. No
entanto, a violência é apenas um dos aspectos com o qual o pesquisador pode trabalhar. O
profundamente interessante está nos relatos que estas fontes disponibilizam a respeito das
relações sociais características de um determinado contexto. Assim, a partir destes dados é
possível construir um quadro geral de como se davam os contatos étnicos, as relações de
parentesco e vizinhança, a noção de honra característica do grupo com o qual se está
trabalhando e muitos outros mais, cujo aparecimento é proporcional às perguntas que o
pesquisador faz. Os processos crime, por conseguinte, são um excelente referencial para os
historiadores da questão agrária, especialmente na perspectiva de preencher algumas lacunas
existentes sobre o passado das populações rurais. Em outras palavras, os processos crime
possibilitam conhecer fatos e situações que, caso eles não existissem, provavelmente seriam
relegadas ao esquecimento, mas isso não os torna infalíveis, daí a ser aconselhável que os
dados disponibilizados pelos processos sejam contrapostos a informações presentes em outras
fontes.
Até aqui, apresentei alguns dos temas que serão abordados ao longo deste estudo, bem
como as fontes utilizadas para realização da pesquisa; cabe agora descrever, em linhas gerais,
o modo como o texto está organizado. A tese é composta por quatro capítulos, sendo que no
primeiro, desenvolvo uma análise descritiva da região, trato de apresentá-la a partir de
informações colhidas nas descrições acima apresentadas. Além dessas fontes, também faço
uso das informações contidas nos relatórios da DTC e nas mensagens dos presidentes de
Estado. Em termos gerais, o objetivo principal do capítulo é elaborar uma apresentação
detalhada da região, das suas cidades, das opiniões existentes a respeito da população que a
habitava e sobre a colonização da mesma com imigrantes. Dessa forma, baseado em tais
informações, procuro apresentar elementos que possibilitem ao leitor conhecer minimamente
o espaço alvo de estudo.
30 A noção de “campo” aqui empregada descansa sob as análises desenvolvidas por Pierre Bourdieu. Conferir os artigos que compõem o livro: BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
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No segundo capítulo, elaboro uma análise mais detalhada das representações
existentes a respeito dos grupos que atuaram no povoamento, bem como discuto o papel do
Estado e das políticas públicas elaboradas para gerenciar o processo. As fontes utilizadas são
as mesmas citadas para o desenvolvimento do primeiro capítulo acrescidas da análise de
algumas publicações de época que tratam de contextos diferenciados. Contudo,
diferentemente do primeiro, neste capítulo, a principal fonte de referência são os relatórios da
DTC, as mensagens dos presidentes e alguns processos crime. Assim, elementos como a
desigualdade econômica existente entre os habitantes da região, as interpretações raciais
características do período, o modo como o Estado gerenciava a ocupação e a imigração e as
opiniões (i.e. representações) existentes sobre os grupos envolvidos no processo são os alvos
centrais da análise.
No capítulo três, procuro apresentar cada grupo em particular. Assim, abordo temas
relativos a inserção dos imigrantes no contexto local, as políticas imigratórias do período, o
lugar social ocupado pelos afros-descendentes, a inserção dos grupos indígenas no processo
de povoamento e a atuação e presença dos nacionais na região. O objetivo principal é pensar
os significados característicos das diferentes opiniões existentes a respeito destes grupos e o
quanto elas foram importantes e definidoras do modo como a questão agrária foi definida no
período.
No quarto capítulo, analiso de forma mais direta o povoamento da região. O principal
aspecto abordado foi o desenvolvimento das políticas públicas de colonização e de gerência
das terras devolutas. O motivo do capítulo é analisar e descrever as políticas de Estado
desenvolvidas para administrar o processo de povoamento. Nesse sentido, dois assuntos em
especial foram observados: a política de terras e a construção da categoria intruso para
identificar as pessoas que, de alguma forma, não se enquadravam nos interesses perseguidos
por aqueles que administravam ou buscavam administrar o processo de povoamento da
região.
Por fim, como sublinhei no início, esta pesquisa busca contar a história da terra e seus
homens. Pessoas que viveram em um contexto específico, construíram uma história particular,
a qual ainda está por ser contada e que carrega como traço principal o fato de ser uma história
de luta, sendo que a terra é o seu eixo central. Assim, é importante lembrar que nesse processo
muitos foram preteridos, inseriram-se nele de forma subordinada, mas não ficaram imóveis e,
ao seu modo, definiram os rumos do povoamento da região.
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1 BABEL DO NOVO MUNDO
Eis que são um só povo, disse ele, e falam uma só língua: se começam assim, nada futuramente os impedirá de executarem todos os seus empreendimentos. Vamos: desçamos para lhes confundir a linguagem, de sorte que já não se compreendam um ao outro. Foi dali que o Senhor os dispersou daquele lugar pela face de toda a terra, e cessaram a construção da cidade.
Gênesis 11; 6-9. A torre de Babel.
Aceitei com alegria o convite e assim eis-me novamente no “far oeste”. (...). Em cada quarto de légua, uma casa, um rancho, e ao longe, no horizonte, a aromática floresta da serra.
Maximiliano Beschoren. Impressões de viagem.
A ocupação das terras que conformam o hoje estado do Rio Grande do Sul já foi
objeto de diferentes abordagens. Muitos dos estudos sobre o problema são resultado de
pesquisas acadêmicas como as análises de Paulo Zarth1 – que se preocupou em estudar a
ocupação da parte norte do estado – e as pesquisas de Helen Osório2 – que tem como objeto
de suas análises a região platina –, isto é, as regiões de campo situadas na parte sul do
território rio-grandense, principalmente os espaços de fronteira com os países vizinhos
(Argentina, Uruguai e Paraguai). Para ter uma idéia da amplitude da produção, ela não está
circunscrita apenas ao domínio de historiadores e historiadoras, mas é alvo da análise de
pessoas ligadas a outras áreas das ciências humanas: sociologia, antropologia, economia,
geografia e ciência política. Fora do mundo acadêmico, também existe uma produção extensa
de textos que tem por tema a ocupação do Rio Grande do Sul. Estes são escritos por
intelectuais “autônomos”, os quais, na maioria das vezes, intitulam-se autodidatas; enfim,
1 Consultar a dissertação de mestrado e a tese de doutorado desse pesquisador, ambas publicadas pela Editora Unijui: ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Editora UNIJUI, 2002 e ___. História agrária do planalto gaúcho (1850-1920). Ijuí: Editora UNIJUI, 1997. 2 Em suas pesquisas de mestrado e doutorado, Helen Osório também se preocupou em pensar o povoamento do Rio Grande do Sul. Cf.: OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da estremadura portuguesa na América (1737-1822). Niterói: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, 1999. (Tese de Doutorado) e ___. Apropriação da terra no Rio Grande de São Pedro e a formação do espaço platino. Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul, 1990. (Dissertação de Mestrado).
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pessoas que se interessam pelo tema, mergulham no mundo da pesquisa e, ao seu modo,
contribuem no desenvolvimento dos saberes a respeito do assunto.
Uma das perguntas que vem interessando aos pesquisadores do povoamento do Rio
Grande do Sul refere-se ao porquê de a imigração ter sido direcionada para o norte e a região
central do estado, enquanto que o sul não conheceu de forma profunda o mesmo fenômeno.
Nesse caso, os mais variados argumentos explicativos são usados, até mesmo os físico-
geográficos, que dizem que o solo dos espaços para onde o movimento de colonização com
imigrantes foi direcionado, cujo relevo original era composto pela mata atlântica – daí a esse
território ser conhecido também como região de matas –, era mais propício à agricultura do
que os lugares onde a vegetação original era formada por campos, destinados inicialmente a
criação de gado e localizados, principalmente, no sul do Rio Grande3.
Motivos econômicos também são acionados e, segundo estes, os estancieiros4 do sul,
ciosos de manterem domínio sob suas propriedades, não queriam correr o risco de se ver
pressionados a vendê-las para fins de colonização e, sobretudo, ter a legitimidade delas
questionadas. Além disso, era idéia comum na época sob análise que as terras de matas
situadas ao norte do Rio Grande do Sul deveriam ter uma destinação agrícola e assim
impulsionar a produção de gêneros destinados ao consumo interno. Por fim, existiam também
os interesses estratégico-militares, uma vez que a região de matas era o espaço menos
povoado e sempre houve a possibilidade de uma ocupação por parte dos países vizinhos,
sendo urgente para o governo brasileiro povoá-lo5.
O marco temporal a ser analisado aqui é o período que compreende a Primeira
República, mas precisamente os anos que se estendem entre 1889 e 1925. Justifico a escolha
do espaço cronológico pela circunstância de que a data inicial, 1889, define o começo do
período republicano e demarca os primeiros passos do domínio exercido pelo Partido
Republicano Rio-Grandense (PRR) no Rio Grande do Sul, cuja hegemonia perdurou pelos
primeiros 40 do século XX. Contudo, o motivo principal é ter sido este o momento em que o
processo de ocupação da região objeto de análise conheceu um desenvolvimento até então
inédito.
3 Sobre esta questão, ver: BERNARDES, Nilo. Bases geográficas do povoamento do Estado do Rio Grande do Sul. Ijuí: UNIJUI, 1997. 4 “Estancieiro” é uma palavra corriqueiramente utilizada no Rio Grande do Sul e nos países vizinhos de fala espanhola para denominar os grandes proprietários de terras. 5 Consultar: DACANAL, José Hildebrando (Org.). RS: imigração e colonização. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980; RÜCKERT, Aldomar A. A trajetória da terra: ocupação e colonização do centro-norte do Rio Grande do Sul – 1827-1931. Passo Fundo: Ediupf, 1997 e Paulo Afonso Zarth. Idem, op. cit.
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Tal circunstância estava vinculada a constituição e aplicação de uma série de políticas
pensadas para apurar o povoamento e desenvolver uma agricultura “mais racional” no estado
e, mais diretamente, na região de matas. Nesse sentido, os pontos a serem focados ao longo do
estudo serão, em linhas gerais, pensar tais políticas, seus resultados e o modo como elas foram
aplicadas no contexto local. De uma maneira mais específica, o objetivo é compreender o
quanto a aplicação e desenvolvimento dos projetos governamentais sofreram alterações a
partir da forma como as populações locais os receberam, entenderam e manejaram. Assim,
além de pensar os planos de aperfeiçoamento agrícola e de colonização desenvolvidos pelo
governo republicano, igualmente estarei preocupado em observar o quanto as populações a
quem eles se destinavam, a partir de suas experiências, impuseram ou tentaram impor
modificações aos mesmos.
Daí o fato de a data inicial da análise coincidir com o início da República no Brasil,
pois embora muitos dos projetos políticos de colonização e povoamento do governo
republicano tenham herdado características e concepções do período imperial, a partir da
República novos elementos são introduzidos nas políticas públicas relacionadas à agricultura,
à imigração, ao controle sobre as terras devolutas e à constituição de um tipo de agricultor
ideal. A criação, pelo Governo Federal, em 1909, do Ministério da Agricultura Indústria e
Comércio (MAIC) e, em 1910, do Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos
Trabalhadores Nacionais (SPILTN), são exemplos disso. Já em termos locais, entre
1907/1908, acontece a estruturação da Diretoria de Terras e Colonização (DTC), a qual no
Rio Grande do Sul foi responsável por gerenciar os temas relacionados à questão indígena, à
agricultura e à colonização. Antes da criação dessas instituições também temos outro fato
muito importante que é decorrente da primeira Constituição republicana e representou um
marco da República no que tange ao problema agrário, isto é, a passagem do controle sobre as
terras devolutas da União para os Estados. Um outro motivo muito importante que definiu a
escolha do período é que, como registrei acima, é a partir desse momento que a região passa a
conhecer um processo intensivo de colonização e povoamento.
A data final da análise foi escolhida porque representa uma conjuntura de mudanças e,
dentre elas, interessa a diminuição do domínio do PRR e a estruturação de um novo momento
na história política e econômica do estado6. De maneira mais pontual, sobressai o fato de que,
6 Sobre as mudanças políticas e econômicas que ocorreram no contexto do Rio Grande do Sul na década de 20, conferir: VIZENTINI, Paulo Fagundes. A crise dos anos 20: conflitos e transição. Porto Alegre: Editora UFRGS, 1998; ver também ANTONACCI, Maria Antonieta Martines. A luta oligárquica no Rio Grande do Sul na República Velha: o movimento das oposições na conjuntura de 1921/23. São Paulo: Departamento de
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a partir da década de 1920, o Rio Grande do Sul passou a ser um “exportador” de migrantes
para outros territórios da Federação: especialmente Santa Catarina e Paraná. Tal situação
demarca o fim de uma continuidade histórica, cujos traços peculiares, como mostrarei ao
longo destas linhas, foram o constante incremento populacional provindo da entrada de
imigrantes europeus, além do crescimento e migração da população colonial proveniente das
colônias velhas7 em direção à região de matas. Enfim, na década de 1920 o “processo de
ocupação das terras florestais já estava praticamente consolidado”8 e as terras ainda devolutas
que existiam nessa década, como mostra Paulo Zarth, foram ocupadas nos mesmos moldes
dos anos anteriores. Por seu turno, estender a análise para um período maior, por exemplo, até
1930 – data que tradicionalmente é tomada como fim da Primeira República – significaria a
realização de um esforço (coleta de fontes e leitura bibliográfica) que, nos termos deste
estudo, poderia trazer resultados não muito diferenciados. Da mesma maneira, por se tratar de
um período conturbado onde as mudanças políticas, tanto no Rio Grande do Sul como no
Brasil, são profundas optei por não abordá-las. Também justifico esta opção pelo fato de que,
em termos das políticas agrárias e de colonização, grandes alterações aconteceram somente a
partir de 1928 quando Getúlio Dornelles Vargas tornou-se Presidente do Estado. Exemplo de
tais alterações são a extinção da DTC, a criação de uma Secretaria Estadual da Agricultura e o
desenvolvimento de novas políticas relacionadas à imigração; mas tais problemas são objetos
para outro estudo.
Agora que conhecemos os motivos que levaram a delimitação do espaço temporal,
cabe apresentar mais detalhadamente a região a que a análise se refere, seus contornos e o
modo como aconteceu o seu povoamento. Nessa perspectiva, uma fonte interessante pela qual
é possível visualizar o povoamento do Rio Grande do Sul é o mapa do estado, mais
precisamente a maneira como se constituíram sua divisão municipal e a distribuição da
propriedade fundiária. Atualmente, o estado possui 496 municípios espalhados ao longo de
seu território, a grande maioria deles situado na parte norte e central. Essa forma de
distribuição, como veremos, é demonstrativa de um processo de povoamento em alguns
pontos ainda não bem explicitado, sobretudo naquilo que diz respeito às relações mantidas
entre as pessoas que nele atuaram.
História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1978 (Dissertação de Mestrado). 7 Colônias Velhas é o nome que recebem tradicionalmente as primeiras colônias fundadas no Rio Grande do Sul, as quais, em sua maioria, situam-se mais próximas a Porto Alegre: São Leopoldo, Novo Hamburgo e Caxias, por exemplo. Adiante, na página 51, segue um mapa com a distribuição dessas colônias. 8 Paulo Afonso Zarth. História agrária do planalto gaúcho. Idem, op. cit., p. 20.
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Algumas das pesquisas existentes sobre o povoamento priorizaram a análise da
apropriação das terras centrando sua atenção na constituição da estrutura fundiária e nos
meandros que lhe dizem respeito. Nesse sentido, uma das questões trabalhadas pelos
pesquisadores refere-se aos resultados estruturais, na perspectiva da distribuição da
propriedade fundiária, advindos do fato da imigração ter sido direcionada quase que
completamente para um espaço específico: a região florestal9, cuja localização está destacada
em verde no mapa abaixo.
FIGURA 1:
BIOMAS RIO GRANDE DO SUL
FONTE: Atlas socioeconômico do Rio Grande do Sul. In.: http://www.scp.rs.gov.br/atlas. Material coletado às 14:00 horas do dia 19/01/2008.
No mapa visualiza-se a localização dos biomas mata atlântica e pampa no Rio Grande
do Sul. A região de matas, que em termos ambientais conforma o bioma mata atlântica10, é o
9 Nilo Bernardes, geógrafo ligado ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na década de 50 do século XX, desenvolveu interessante pesquisa, cujo motivo era compreender o porquê da existência de uma diferença tão gritante entre as regiões Norte e Sul, pois a menos povoada e que contém menor número de municípios – a região Sul – é exatamente a de mais antiga ocupação. Para Bernardes, a origem da diferença encontra-se no processo de ocupação do espaço Norte rio-grandense, cujo desenvolvimento se dá mediante a fundação de colônias de imigrantes e do estabelecimento, a partir de meados do século XIX, de uma quantidade considerável de pessoas na região. A conseqüência é a sua atual densidade demográfica, bem como o número de municípios existentes. Cf.: Nilo Bernarde. Idem, op. cit. 10 “Os biomas são classificados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística como ‘conjunto de vida (vegetal e animal) constituído pelo agrupamento de tipos de vegetação contíguos e identificáveis em escala regional, com condições geoclimáticas similares e história compartilhada de mudanças, o que resulta em uma diversidade biológica própria’”. Informação retirada às 14 horas do dia 19/01/2008 do seguinte endereço
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espaço para onde o movimento de colonização foi, desde o século XIX – mais
especificamente a partir da fundação da Colônia São Leopoldo em 1824 – direcionado. Das
conclusões possíveis a respeito do processo, umas das mais frisadas é a de que, em
decorrência desse fenômeno, surge a constituição de realidades totalmente diversas. Assim, o
norte e o centro do Rio Grande do Sul, onde predomina a floresta e que foram os principais
espaços alvos dos projetos de colonização com imigrantes, são caracterizados pela presença
de uma grande quantidade de municípios e também por possuir uma maior densidade
demográfica, cuja proporção é circunstancialmente superior, em comparação à região do
pampa, situada ao sul. Quanto a questão da estrutura fundiária, 60 a 90% das propriedades do
estado com mais de 500 hectares situam-se na parte sul (bioma pampa), enquanto que, nas
regiões de colonização (bioma mata atlântica), localizam-se a maior parte das pequenas
propriedades (ver mapa abaixo).
FIRGURA 2:
ESTRUTURA FUNDIÁRIA
FONTE: Atlas socioeconômico do Rio Grande do Sul. In.: http://www.scp.rs.gov.br/atlas. Material coletado às 15:00 horas do dia 27/06/2007.
eletrônico: http://www.scp.rs.gov.br/atlas/atlas.asp?menu=59. Este site é elaborado pela Secretaria do Estado da Agricultura e trata de assuntos gerais relativos ao Estado do Rio Grande do Sul.
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A região11 sob análise situa-se dentro do bioma mata atlântica e conforma um espaço
abrangido pelo território de quatro municípios: Cruz Alta, Passo Fundo, Santo Ângelo e
Palmeiras das Missões – emancipados em 1834, 1857, 1873 e 1874, respectivamente. Dentro
do território desses municípios, foi estabelecida uma série de colônias povoadas por
imigrantes europeus, em sua maioria de origem não-ibérica, as quais começaram a ser
fundadas a partir de 1890. Cruz Alta é o município mais antigo e todos os outros três
pertenciam-lhe antes de suas emancipações. Por fim, ao longo do período analisado, são
criados mais dois municípios: Ijuí (emancipado de Cruz Alta em 1912) e Erechim (que fazia
parte de Passo Fundo e foi emancipado em 1918)12.
No mapa que segue é possível visualizar de forma mais detalhada a referida região. O
espaço alvo de análise é o demarcado em verde, a malha mais escura representa a divisão
municipal do estado em 1900 e a mais clara a atual. Por essa justaposição das duas malhas,
fica visível o quanto os espaços de colonização com imigrantes sofreram, ao longo do século
XX, um intenso processo de divisões e subdivisões enquanto, no sul, alguns municípios –
Alegrete, por exemplo – continuam atualmente com a mesma dimensão que tinham no início
do século passado. Grande parte dos municípios criados na região de matas são originários de
colônias públicas e privadas. No espaço que em 1900 situavam-se Cruz Alta, Passo Fundo,
Santo Ângelo e Palmeiras das Missões, foram fundados, desde 1912 até o ano de 2009, em
torno de 170 municípios, sendo alguns originários de linhas coloniais que, inicialmente, eram
as divisões tradicionais dadas às colônias.
11 Em termos conceituais a base que tomo para definir a região são as observações de Marc Bloch a respeito desse assunto. Para Bloch, “a noção de região é essencialmente relativa”. Por conseguinte, “o historiador não tem que usar quadros administrativos anacrônicos; cabe a ele fazer-se por si mesmo, cada vez, sua região, regulando-se sobre as condições do tempo estudado”. Ou seja, é o historiador a partir de suas fontes e das perguntas que faz a elas que tem, segundo Bloch, que definir o espaço alvo de sua atenção. A constatação do autor faz parte de uma discussão que alguns pesquisadores – Pierre Bourdieu, por exemplo – chamam de as lutas de classificações. Em outros termos, para tornar a realidade compreensível, é preciso classificá-la. Se, por um lado, a “noção de região é essencialmente relativa”, como mostra Marc Bloch, por outro, também é importante lembrar que ao definir os contornos de um determinado espaço, o pesquisador está atuando sobre a realidade que pretende analisar e, tal atuação, pode entrar de forma direta ou indireta no processo de constituição do próprio espaço e, o que é mais importante, influenciar nos resultados de suas análises. Assim, quando o historiador define a região a partir de seus próprios critérios, ou melhor, de critérios que ele localiza nas fontes está também construindo essa região. Nessa construção, ocupam lugar destacado as informações que as fontes trazem a respeito do lugar e, sobretudo, elas devem ser a base a partir da qual o espaço é definido. Ademais, outro elemento que tem peso muito importante no sentido de legitimar tal construção é a autoridade do historiador, cujo fundamento encontra-se na sua inserção dentro do campo cientifico. Contudo, lembra Bourdieu, “a ciência que pretende propor critérios mais bem alicerçados na realidade não deve esquecer que se limita a registrar um estado da luta de classificações, quer dizer, um estado da relação de forças materiais ou simbólicas entre os que têm interesse num ou noutro modo de classificação e que, com ela, invocam freqüentemente a autoridade científica para fundamentarem na realidade e na razão a divisão arbitrária que querem impor”. Cf.: BLOCH, Marc. A terra e seus homens: agricultura e vida rural nos séculos XVII e XVIII. Bauru: EDUSC, 2001, p. 202-203 e BOURDIEU, Pierre. A identidade e a representação. Elementos para uma reflexão crítica sobre a idéia de região, p. 115. In.: ___. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p. 107-132. 12 Cabe frisar que Ijuí e Erechim são municípios originários de colônias públicas.
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FIGURA 3:
DIVISÃO MUNICIPAL DO RIO GRANDE DO SUL
FONTE: Atlas socioeconômico do Rio Grande do Sul. In.: http://www.scp.rs.gov.br/atlas. Material coletado às 19 horas do dia 23/01/2007.
Na época analisada existia uma maneira particular de denominar a região. A
nomenclatura varia de acordo com a fonte utilizada, mas no geral ela era conhecida e, de certa
forma ainda é, como região serrana13 ou região das missões14. Outra nomenclatura bastante
comum nas fontes é identificar a região a partir de sua localização físico-geográfica, isto é, ela
conforma o espaço situado em cima da serra. Os quatro municípios se localizam no planalto
rio-grandense e é exatamente a escarpa do planalto (ver mapa abaixo) que seus habitantes
chamam de serra. Um exemplo dessa nomenclatura é encontrado nos diários de campanha do
General Antônio Ferreira Prestes Guimarães escritos no início do século XX, cujo título é A
Revolução Federalista em cima da serra15. Outro exemplo são os jornais de circulação local,
cujos nomes, invariavelmente, fazem menção ao espaço utilizando nomenclaturas que na
13 Aqui é importante destacar que a denominação “região serrana” atualmente é muito utilizada, especialmente na mídia, para identificar a região nordeste do Rio Grande do Sul, contudo, no século XIX e em parte do XX ela era empregada para referir-se a toda região do planalto rio-grandense. 14 Tal denominação é decorrente do fato de ter sido este o espaço onde estavam dispostos os sete povos das missões, fundados pelos padres jesuítas ainda no período colonial.. 15 Prestes Guimarães era natural de Passo Fundo, bacharel em direito e, durante o período imperial, foi uma das principais lideranças do Partido Liberal na região. Cf.: GUIMARÃES, Antônio Ferreira Prestes. A revolução federalista em cima da serra – 1892/1895. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1987.
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época eram de uso corrente, como o Correio Serrano de Ijuí e o Aurora da Serra de Cruz
Alta.
FIGURA 4:
O PLANALTO DO RIO GRANDE DO SUL
FONTE: Atlas socioeconômico do Rio Grande do Sul. In.: http://www.scp.rs.gov.br/atlas. Material coletado às 15 horas do dia 19/01/2008.
A região de cima da serra é aquela que está acima da escarpa do planalto, por isso
também é identificada como região serrana. Cabe sublinhar que o espaço a ser analisado não
é o que compreende toda a extensão do Planalto, mas alguns municípios ali situados. Ainda
em termos ambientais é conveniente destacar que o Planalto é o espaço em que a dicotomia
campo-floresta aparece de forma mais saliente, lembrando que, no Rio Grande do Sul, as
regiões de campo são tradicional e historicamente o lugar da criação de gado e da grande
propriedade, enquanto que as áreas florestais são o espaço da agricultura e da pequena
propriedade16. Conseqüentemente, na região do planalto os contatos entre “estancieiros e
pequenos lavradores é mais direto, o que possibilita visualizar mais bem as contradições
existentes entre os dois grupos sociais”17.
16 Evidentemente que esta constatação no pode ser tomada por regra, pois é possível encontrar grandes propriedades na região florestal, assim como pequenas propriedades nas regiões dominadas pelo bioma pampa. 17 Paulo Zarth. História agrária do Planalto gaúcho. Idem, op. cit.: p. 26.
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Algumas circunstâncias se sobressaem na escolha do espaço e as principais são a
presença de um considerável contingente de pessoas vivendo da agricultura de subsistência e
do extrativismo da erva-mate – produto que juntamente com a criação de gado, como
veremos, era o principal a gerar divisas para a região. A forte presença de contingentes
indígenas “organizados” em Toldos18 ou espalhados dentro da zona de matas, também é um
fator que está na base da definição. Outro elemento orquestrador da escolha é que, a partir de
1890, com a fundação da Colônia Ijuí, o espaço passa a conhecer um intensivo processo de
colonização com imigrantes, o qual põe em contato indivíduos provindos de diferentes
situações e condições sociais: os índios, principalmente Caingangues, que habitavam a área a
bastante tempo19; os nacionais20, que estavam ligados ao extrativismo da erva-mate ou eram
posseiros, peões ou agregados das grandes estâncias de criação, quando não exerciam
diferentes papéis ao longo de sua existência; os colonos vindos direto da Europa ou das
colônias velhas do estado à procura de terra. Também é importante dar o devido destaque à
presença na região de um contingente considerável de afros-descendentes.
O mapa do Rio Grande do Sul, portanto, apresenta indícios que ajudam a compreender
a história de um processo, no qual grupos com perspectivas e interpretações de mundo
diferenciados encontraram-se, constituíram representações uns a respeito dos outros e também
disputaram e formaram um território que, nos fins do século XIX, era apresentado, nos
documentos que descrevem a região, como um “monótono deserto”. Tal processo, por sua
vez, não terminou, sendo que ainda hoje as disputas por definir o espaço e seus habitantes
continuam significando e ressignificando as relações, assim como as identidades sociais das
pessoas que ali residem. Em outros termos, os grupos indígenas continuam enfrentando
problemas relativos ao reconhecimento das terras que ocupam. Alguns moradores da região
ainda argumentam que tais terras são extensas demais para o número de índios ali vivendo,
bem como afirmam que os indígenas não “sabem” explorar devidamente tais terras e, por fim,
os grupos de nacionais e negros prosseguem sendo reduto fornecedor de mão-de-obra barata.
Existem algumas descrições da região produzidas nas últimas décadas do século XIX e
início do XX que ajudam a conhecer aspectos ligados ao seu povoamento. Dentre elas,
destacam-se a de Maximiliano Beschoren21 (engenheiro alemão que chegou no Brasil em
1869 e trabalhou como agrimensor na região entre 1875 e 1887). A Notícia descritiva da
18 Palavra usada no Rio Grande do Sul para nomear os aldeamentos indígenas. 19 Sobre a presença indígena na região, ver: BECKER, Ítala. O índio Kaingáng no Rio Grande do Sul. São Leopoldo: UNISINOS, 1995. 20 No capítulo 3, desenvolverei uma explicação mais detalhada do termo e seus significados. 21 BESCHOREN, Maximiliano. Impressões de viagem na Província do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1989.
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região serrana22, escrita em 1887, de autoria de Evaristo de Afonso Castro (português
radicado em Cruz Alta, onde exercia a função de promotor) também é um texto que traz
informações sobre aquele espaço e sua população. Missões orientais e seus antigos domínios23
de Hemetério José Velloso da Silveira (importante líder político de Cruz Alta que por longos
anos ocupou o posto de vereador e Presidente da Câmara do município) é outro texto
descritivo, datado de 1909, que fornece notícias importantes para conhecer mais
profundamente a realidade local.
Além de ser um lugar onde a dicotomia campo-floresta é comum, outra característica
da região é a forte presença de ervais, os quais, de acordo com Beschoren, eram à época
conhecidos como ervais “de rima ou de Cima”. Tal denominação servia para diferenciá-los do
“Herval de São João, localizado na parte baixa da Serra”24. Os espaços onde a presença da
erva-mate era grande eram bastante explorados, visto que, como expõe o engenheiro alemão:
“caminhos e picadas cruzam-no em todas as direções e levam para casebres e ranchos bem
escondidos. Foragidos da lei encontram nesta mata um refúgio seguro, onde as mãos da
justiça dificilmente os alcançam”25.
Para uma idéia geral do quanto era diversificada a paisagem, tanto a humana quanto a
geográfica e a econômica, nos primeiros deslocamentos de Beschoren – que saía da região de
colonização alemã antiga situada mais ao centro do estado para trabalhar como agrimensor
nas terras situadas “em cima da serra” –, o engenheiro escreve que tinha se deslocado de uma
parte da Província – a “dos celeiros da colônia alemã” –, onde a agricultura estava no auge da
floração, havia passado pelas “matas ervateiras da Serra Geral, cujos habitantes dedicam-se ao
cultivo da erva-mate” e, finalmente, no município de Soledade, chegava “aos campos da
região montanhosa, onde a principal fonte de renda é a criação de gado”26.
Beschoren também faz comentários sobre a existência de uma “idéia generalizada” a
respeito das áreas florestais, segundo a qual “a região de ‘Cima da Serra’ se localizava no fim
do mundo, era coberta de campos e pinheiros e habitada por alguns maus elementos”27. A
maior parte das observações de Beschoren sobre a região e seus habitantes tem esse sentido e,
22 CASTRO, Evaristo de Afonso. Notícia descritiva da região serrana na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul compreendendo os municípios de Cruz Alta, São Martinho, Palmeira, Passo Fundo, Santo Ângelo, São Luiz, Boqueirão, São Borja, São Francisco de Assis, São Vicente e Itaqui. Cruz Alta: Tipografia do Comercial, 1887. 23 SILVEIRA, Hemetério José Velloso da. As missões orientais e seus antigos domínios. Porto Alegre: Companhia União de Seguros Gerais, 1979. 24 Maximiliano Beschoren. Idem, op. cit., p. 21. 25 Idem, ibidem. 26 Idem, p. 27. 27 Idem, p. 29.
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a todo momento, ele sugere a necessidade de alterar tal quadro. Do seu ponto de vista, esta
alteração só seria possível a partir do desenvolvimento da colonização e povoamento daquele
território com imigrantes europeus, principalmente germânicos. Além disso, sugere a
necessidade de “aperfeiçoar” os habitantes da região, principalmente incentivando-os a adotar
novas técnicas de produção agrícola. Neste sentido, quando passava por Nonoai, que à época
era um distrito de Passo Fundo, escreveu que a Vila era cercada por “campos fecundos” e
“estava destinada a um futuro promissor”, mas, para tanto ainda faltava a presença de “uma
população hábil e trabalhadora”28, leia-se, imigrantes.
No livro de Afonso Castro, também é possível encontrar descrições da população
típica que habitava a região. No prefácio, escrito por Francisco de Assis Pereira Noronha, por
exemplo, o prefaciador se refere a tal população como conformando uma raça específica: a
raça missioneira. Os missioneiros, segundo Noronha, com exceção de algumas poucas
famílias de origem germânica que “conservavam a pureza do sangue”, eram produto das
mistura das raças brancas, indígena e africana. Assim, era possível encontrar na região desde
o “mais fino espécime do tipo branco até ao negro azeviche, percorrendo de um a outro
extremo a escala possível de todas as nuanças da coloração humana”29. Devido a abundância
de riquezas naturais oferecidas pela região, o povo missioneiro, de acordo com Noronha, era
“indolente e extraordinariamente preguiçoso”. Além disso, “para os trabalhos agrícolas eram
absolutamente inservíveis” e passavam a maior parte do ano “comendo milho assado ou
cozido que pedem ou roubam dos 20 por centro que trabalham; da caça e do gado que roubam
do estancieiro que os avizinha”30.
Em linhas gerais, o ponto de vista sobre o povo missioneiro expresso por Noronha é
muito comum nos documentos que descrevem a região. Na verdade, ele expressa a opinião de
uma parte das pessoas envolvidas no povoamento, as quais presenciaram o desenvolvimento
do mesmo e atuaram nele, especialmente como seus incentivadores e gerenciadores. Assim, o
ponto recorrente nestas fontes é a insistência de seus autores em definir a região como
desabitada ou, quando muito, ocupada por pessoas que não sabiam fazer a terra produzir de
forma apropriada:
percorrendo a região, ou seja nos campos, ou seja nas matas, o viajante vê, aqui e ali, uma pequena cabana, às vezes mal coberta, toda esburacada. Encostado a cabana, um fecho com meia dúzia de varas, tanto quanto seja
28 Idem, p. 45. 29 NORONHA, Francisco de Assis Pereira. Juízo dado pelo Ilmo. Sr. Dr. Francisco de Assis Pereira Noronha sobre o presente livro, p. IX. In.: Evaristo de Afonso Castro. Idem, op. cit., p. I-XXVII. 30 Idem, ibidem.
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suficiente para recolher o cavalo; fecho a que dão o pomposo nome de mangueira. Além disto nada mais. Não existe a mais pequena plantação de um único vegetal útil. Tudo em roda é monótono e deserto31.
O autor do comentário escreve que ele é resultado de observações pessoais realizadas
na região, cujo território percorreu na função de médico ao longo de seus 28 anos de
domicílio ali. No mesmo sentido, Maximiliano Beschoren, ao descrever uma viagem que fez
de Passo Fundo a Nonoai em 1875, escreve: “numa paisagem uniforme e deserta, podíamos
ver a cada duas a três léguas uma casa cercada por pequena floresta, variando a monotonia”32.
Noutro momento, Beschoren escreve o seguinte comentário sobre a região: “este território,
abrangendo centenas de milhas quadradas, é na sua maior parte, ainda terra selvagem, coberta
de mato, de mata-virgem, um chão ainda não tocado pelo homem civilizado”33.
Outra narrativa semelhante é apresentada pelo padre capuchinho Bruno de Gillonnay,
mas para uma região diferente, a área de colonização italiana que, embora fosse alvo de
grandes correntes imigratórias desde 1875, ainda era apresentada, no início do século XX, nas
viagens feitas pelo sacerdote de uma paróquia a outra, principalmente quando se deslocava
em direção ao município de Lagoa Vermelha ou entrava em Passo Fundo, da seguinte forma:
“viaja-se horas a fio sem encontrar uma só fazenda”34. O padre Bruno era um capuchinho
francês que juntamente com o padre Bernardin D’ Apremont vieram ao Rio Grande do Sul no
início do século XX para atuar nas regiões de colonização italiana e pregaram algumas
missões no território aqui analisado, onde atuaram sobretudo entre as populações indígenas.
Baseados nessas constatações e partilhando do ponto de vista dos autores das fontes,
ou melhor, em tópicos previamente selecionados das mesmas que apresentam a região como
um deserto, alguns intelectuais, preocupados em contar a história do povoamento do Rio
Grande do Sul e sem levar em consideração outros elementos presentes nas descrições,
passam a defender a idéia do pioneirismo do colono imigrante. Assim, a tarefa de povoamento
é contada como se fosse obra unicamente do esforço dos imigrantes europeus, tratados como
civilizadores, moralizados e trabalhadores. Tais histórias “esquecem” de contar a participação
dos outros grupos sociais no processo de povoamento ou, quando os grupos não-europeus são
mencionados, sua atuação é diminuída, como acontece no caso das obras de Jorge Salis
31 Idem. 32 Maximiliano Beschoren. Idem, op. cit., p. 41. 33 Idem, p. 192. 34 D’APREMONT, Bernardin; GILLONAY, Bruno de. Comunidades indígenas, brasileiras, polonesas e italianas no Rio Grande do Sul (1896-1915). Porto Alegre: EST, Caxias do Sul: UCS, 1976, p. 66.
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Goulart35, Leo Waibel36 e Jean Roche37, para citar alguns. Esse tipo de explicação, segundo
Paulo Zarth, observa o povoamento sem levar em conta e dar a devida importância à fronteira
agrária, pois
atribuir o sucesso da empresa agrícola na região exclusivamente à obra dos colonos imigrantes [perspectiva que tomam os autores citados acima] é incorrer num erro capaz de mascarar o processo de ocupação e apropriação das terras na fronteira agrícola. Não se trata apenas de uma questão ideológica com objetivos enaltecedores do trabalho desta ou daquela etnia em detrimento de outra, mas sim de analisar a questão da fronteira sob outro prisma que não seja excludente e nem apoiado na análise étnica ou numa expansão pura e simples da pressão demográfica de áreas mais antigas de colonização no Rio Grande, que, nesse sentido e nessa forma de analisar, estariam fadadas a emigrar para novas áreas. Isso é uma explicação cujo centro está fora da fronteira38.
Como ficou visível até aqui, tanto na época como hoje em dia, as pessoas que
habitavam e habitam a região sob análise têm uma maneira particular de denominá-la. Assim,
os espaços onde vestígios da presença jesuítica ainda são fortes (as ruínas da redução de São
Miguel das Missões, por exemplo) normalmente são identificados como solo missioneiro. Da
mesma forma, a utilização de temos como região serrana ou cima da serra para identificar
aquele espaço são comuns. Nestes termos, a preocupação central aqui é analisar o processo de
povoamento das terras que no início do século XX eram, em termos administrativos, ocupadas
por quatro municípios: Cruz Alta, Passo Fundo, Santo Ângelo e Palmeira das Missões. Tais
municípios situam-se, em termos físico-geográficos, no Planalto do Rio Grande do Sul. Por
seu turno, o espaço territorial abrangido pelo Planalto é tradicionalmente denominado como
região das matas, serrana, missioneira ou ainda região de cima da serra. Portanto, este estudo
trata do povoamento dessa região e, assim, sempre que os termos “região serrana”, “cima da
serra” ou “região de matas” for utilizado no contexto desta análise estará fazendo referência
ao território desses quatro municípios, embora a abrangência territorial de tais nominações
seja maior.
Para uma idéia mais pormenorizada de como estavam configurados os municípios na
época, de acordo com dados de Evaristo de Afonso Castro, em 1887, Cruz Alta era habitada
por “população de origem latina, onde a presença germânica não exercia influência” e possuía
35 GOULART, Jorge Salis. A formação do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro; Caxias do Sul: EDUCS, 1985. 36 WAIBEL, Leo. Capítulos de geografia tropical e do Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 1979. 37 ROCHE, Jean. A colonização alemã no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Globo, vols. I e II, 1969. 38 Paulo Zarth. História agrária do planalto gaúcho. Idem, op. cit., p. 99-100.
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cerca de 50 a 60 escravos39. A cidade propriamente dita contava com o total de 240 casas e
uma população de 2.500 pessoas, sendo que das casas, 24 eram comerciais, 2 farmácias, 3
sapatarias, 2 alfaiatarias, 3 ferrarias, 3 ourivesarias, 2 relojoarias, 2 marcenarias, 2 selarias, 1
retratista, 1 funilaria, 3 carpintarias, 4 hotéis, 2 padarias, 2 curtumes, 3 açougues, 1 fábrica de
cerveja e uma fábrica de sabão. Ou seja, era uma cidade, para a época e para sua localização,
dona de uma infra-estrutura regular, caracterizada pela ligação com o mundo rural, visto que
toda essa infra-estrutura vinculava-se à produção local de gêneros agrícolas e pastoris40. Em
linhas gerais, segundo os relatos da época, era um município que se auto-sustentava e só
buscava fora da região gêneros ali não produzidos, pois os principais produtos de exportação
consistiam em gado, couros, melado, aguardente, erva-mate, rapadura, farinha de mandioca,
feijão, milho e fumo. Importava-se “fazendas [tecidos], armas, papel, farinha de trigo, louça,
ferro, zinco, drogas, quinquilharias e miudezas da capital da província e praças da fronteira”41.
Em Passo Fundo, as pessoas só tinham em vista “o consumo dos produtos no
município. Fora disso, a maior parte do povo dedica-se por meses à fabricação de erva-mate,
cuja indústria extrativa é presentemente o ramo mais importante da nossa exportação”42. O
número de habitantes do centro urbano girava em torno de 2.000 pessoas. Da mesma forma
que em Cruz Alta, a presença germânica, segundo as anotações de Afonso Castro, é nula. Por
sua vez, Maximiliano Beschoren registra em sua passagem por Passo Fundo que 1/3 da
população era composta por “famílias alemãs e outro terço de famílias brasileiras de origem
alemã”43. Em 1883, o centro urbano contava com o total de 200 lareiras, possuía 19 casas de
comércio, 1 curtidor, 2 seleiros, 4 sapateiros, 3 ferrarias, 3 açougueiros, 7 marceneiros e
carpinteiros, 3 pedreiros, 1 funileiro, 1 relojoeiro, 1 fabricante de cerveja e 2 hospedarias44.
Sobre Passo Fundo, Hemetério Velloso escreve que a fama da fertilidade das suas terras e a
abundância da erva-mate foram fatores que atraíram grande quantidade de homens pobres
para o município45.
39 Evaristo de Afonso Castro. Idem, op. cit., p. 220. 40 Em sua descrição, escrita em 1909, portanto, 22 anos após o registro de Afonso Castro, José Velloso da Silveira anota que em Cruz Alta existiam “802 casas térreas, 3 sobrados, o edifício da intendência com a cadeia ao lado, e quartel da polícia, a igreja matriz, o teatro Carlos Gomes, a loja maçônica Cruz-altense, dois chafarizes e um cemitério extra-muros”. Cf.: Hemetério Velloso da Silveira. Idem, op. cit., p. 269. 41 Evaristo de Afonso Castro. Idem, op. cit., p. 281-282. 42 Idem, p. 137. 43 Maximiliano Beschoren. Idem, op. cit., p. 34-35. 44 Idem, ibidem. 45 Hemetério Velloso registra que em 1909 a cidade de Passo Fundo possuía “26 casas comerciais, algumas com um ativo maior de cem contos de réis, 2 padarias, 2 hotéis, 3 farmácias, 3 médicos, 2 ferrarias, 2 ourivesarias, 4 carpintarias, 2 marcenarias, 2 curtumes, 3 olarias, 4 sapatarias, 1 fábrica de massas, 3 alfaiatarias, 2 seleiros e lombilheiros, 4 advogados, os juízes de comarca e distrital, escrivões e mais pessoal do foro”. Cf.: Hemetério Velloso da Silveira. Idem, op. cit., p. 303-304.
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Evaristo de Afonso Castro caracteriza Palmeira das Missões como um município
habitado por “grande número de aventureiros de diversas províncias, sendo na maior parte
proveniente de São Paulo (...) vindos uns por pobreza, outros foragidos por crimes cometidos
em suas províncias e outros desertores”46. O principal gênero produzido era a erva-mate, e a
sede do povoado contabilizava, em 1887, o total de 80 fogos (casas), com uma população de
600 almas, onde 9 casas destinavam-se ao comércio, 2 eram ferrarias e havia também 1
lombilheiro47. José Velloso da Silveira, ao tratar do município de Palmeira, escreve que ele
formava uma vasta extensão de terras, as quais
na Europa, poderia formar um pequeno estado independente com população maior de três milhões de habitantes, conterá entretanto, 30.000 almas, não podendo ser perfeito qualquer recenseamento oficial, por causa dos verdadeiros esconderijos, onde por dentro dos bosques vive muita gente pobre e ignorada48.
Acerca da origem de alguns habitantes da região serrana, Maximiliano Beschoren
constantemente destaca a presença de pessoas provindas de outros estados do país,
principalmente de São Paulo e Paraná. Segundo Beschoren, o rio-grandense típico não
gostava de praticar agricultura, preferia se dedicar a criação de gado e a produção de erva-
mate. No caso dos paulistas e paranaenses que habitavam a região os registros de Beschoren
são bastante interessantes, pois, em alguns momentos, os define como pessoas que dão “muito
valor ao cultivo do solo”49. Por exemplo, quando andava pelo território do município de Passo
Fundo, mais precisamente na Vila de Campo Novo, escreve que a população que ali vivia era
“bem pobre”. Anota que a erva-mate era a sua principal fonte de renda e que as pessoas se
dedicavam somente ao trabalho com a erva “durante o ano todo não observando os períodos
de colheita”50. Para o engenheiro alemão, tais pessoas não tinham consciência de que era
necessário cultivar a “floresta ervateira, dispensando-lhe todo cuidado. Não se davam conta
de que mesmo não sendo os donos da terra, vivem da produção que lhes dá tanto lucro,
extraída do terreno que pertence ‘a todos nós’”51. Aqui é importante pontuar o modo como se
dá construção da diferença, uma vez que o “nós” de Beschoren não engloba a “população
ervateira”. Ainda escreve que em Campo Novo a atividade agrícola era bastante descuidada a
46 Evaristo de Afonso Castro. Idem, op. cit., p. 103. 47 Indivíduo encarregado pelo conserto ou fabricação da sela: espécie de assento colocado no dorso da cavalgadura, para comodidade do cavaleiro. 48 Hemetério Velloso da Silveira. Idem, op. cit., p. 323. 49 Maximiliano Beschoren. Idem, op. cit., p. 28. 50 Idem, p. 62. 51 Idem, ibidem.
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não ser por um pequeno número de “imigrantes do Paraná e São Paulo que tem interesse pela
conservação do solo”52.
O registro dessa diferenciação entre parananenses, paulistas e rio-grandenses realizada
por Beschoren e pelos outros autores foi realizado aqui para chamar atenção a uma
ambigüidade presente nas descrições. Nesse sentido, se em alguns momentos os paulistas e
paranaenses são apresentados como mais aptos e dedicados à agricultura do que o rio-
grandense típico, noutros as pessoas provindas de outros territórios são tratadas como simples
fugitivas da Justiça. Fato que fica evidente, por exemplo, quando Evaristo de Afonso Castro
escreve que a população residente em Palmeira das Missões, na sua maioria, era formada por
“aventureiros provindos de diversas provinciais” ou, no mesmo sentido, quando ao tratar de
Soledade – município vizinho de Passo Fundo e Cruz Alta – escreve que “seus primeiros
habitantes, segundo a tradição, foram criminosos que nele se homiziaram vindos de São Paulo
e Paraná, perseguidos pela justiça”53. Ou seja, o fato de, em alguns momentos, serem
apresentados como melhores agricultores do que o rio-grandense e sua característica
predileção pelo trabalho com o gado e extração de erva-mate não isentava paulistas e
paranaenses de serem taxados como criminosos e, dessa forma, para a região realmente se
desenvolver, aos olhos daqueles que escreviam sobre ela, não restava outra solução do que
colonizá-la com imigrantes europeus.
As narrativas sobre a cidade de Santo Ângelo são bastante interessantes, pois
demonstram a existência de uma divisão social na distribuição das casas, pela qual no interior
da Vila, habitada por mais ou menos 600 pessoas, “não se vê um casebre”, isto porque,
segundo Afonso Castro, a população pobre morava toda nos “arrebaldes em chácaras e em
terrenos distribuídos, em sua maioria, gratuitamente, pela câmara municipal (...) de forma que
ficou o povo situado no centro do círculo de chácaras, na pitoresca colina”54. No mesmo
sentido, Beschoren e José Velloso sublinham a beleza da cidade. O agrimensor alemão, por
exemplo, descreve-a como pequena e dona de “muitas ruas indicadas por casas isoladas.
Somente a praça principal está completamente cercada pelas casas, constituídas por elegantes
construções, maciças e com bonita aparência”55.
Augusto Pestana, engenheiro responsável pela Comissão Verificadora de posses e de
discriminação de terras públicas em Cruz Alta, Santo Ângelo, Palmeira e Passo Fundo, em
52 Idem. 53 Evaristo de Afonso Castro. Idem, op. cit., p. 175. 54 Idem, p. 206. 55 Maximiliano Beschoren. Idem, op. cit., p. 72.
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relatório enviado à Diretoria de Obras Públicas em 1899, fornece as seguintes informações
sobre a região:
São incalculáveis as áreas de matos devolutos nos municípios de Passo Fundo, Palmeira e Santo Ângelo. No de Cruz Alta, não há tanto mato devoluto já por não ser tão grande a extensão dos seus matos, já por haver maior número de posses legitimadas, porém mesmo assim penso haver mais de 20 léguas quadradas [72.000 hectares] de matos do Estado. (...). Além disso, há grande número de posses cujas legitimações estão requeridas e que só poderão ser despachadas depois de feitas as verificações que determinam a lei e o regulamento em vigor. Como sabeis ultimamente tem-se desenvolvido de um modo espantoso o negócio de terras nesta ubérrima região. Tem havido muitas compras e vendas de terras, dizendo todos pretenderem colonizar as terras que adquirem. Tem-se fundado 3 ou 4 colônias particulares. As terras de cultura têm aumentado de valor de modo espantoso. Tem-se vendido colônias de 25 hectares a razão de 2, 3, e até 4 réis por metro quadrado. Tem-se medido grandes áreas de matos e dividido em colônias que já têm sido vendidas. Esses matos em geral têm pertencido a diversas pessoas. Se não se tratar já de verificar o direito de propriedade dos que se dizem donos dessas terras e as têm vendido, mais tarde será esse serviço cheio de dificuldades, tornando-se assim muitíssimo moroso e complicado56. (grifo meu).
A descrição de Augusto Pestana é demonstrativa de como a área era classificada na
época e faz ver as mudanças que estavam acontecendo devido ao desenvolvimento dos
projetos de colonização. Além do aumento do valor comercial das terras, mostra a existência
de uma disputa para definir com quem ficaria o controle do processo, uma vez que o sentido
de sua presença e de sua atuação é exatamente garantir que ele ficasse com o Estado. No
relatório do ano seguinte (1900), volta a tratar da questão e escreve que havia realizado “o
recenseamento completo dos moradores de tais matos, tomando as indicações necessárias para
poder-se mais tarde julgar do direito dos mesmos posseiros”57. Medida que, como veremos no
quarto capítulo, era uma das principais tomadas quando da constituição de novas colônias.
Outra característica da região, em termos populacionais, é a forte presença de grupos
indígenas. Segundo Evaristo de Afonso Castro, a população silvícola, vivendo no espaço em
1887, contabilizava o total de 909 almas espalhadas pelos aldeamentos de Nonoai, onde
56 PESTANA, Augusto. Comissão Verificadora de poses e de discriminação de terras públicas em Cruz Alta, Santo Ângelo, Palmeira e Passo Fundo, p. 248. In.: PAROBÉ, João José Pereira. Relatório dos negócios de Obras Públicas apresentado ao Exm. Sr. Desembargador Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 31 de julho de 1899. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1899, p. 247-249. (AHRS - OP. 07). 57 PESTANA, Augusto. Comissão verificadora de posses e discriminação de terras públicas, p. 189. In.: PAROBÉ, João José Pereira. Relatório dos negócios de Obras Públicas apresentado ao Exm. Sr. Desembargador Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 31 de julho de 1900. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1900, p. 189-191. (AHRS - OP. 08).
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viviam 226 índios distribuídos em 56 casas; de Pinheiro Ralo, com população de 217 pessoas
vivendo em 47 casas. Estes dois aldeamentos situavam-se no município de Passo Fundo. Em
Palmeira das Missões existiam outros três: Estiva (composto por 126 índios e índias),
Campina (com 159 almas distribuídas em 32 fogos) e, por fim, Inhacorá (aldeamento que
contava com 181 indivíduos morando em 41 casas). O já citado padre capuchinho Bruno
Gillonay, em missão que realizou entre os indígenas moradores das matas da região, descreve
seu encontro com eles da seguinte forma: “uma emoção profunda nos invadiu quando, no seio
da floresta descobrimos uma série de palhoças, onde se abriga uma parte da espécie humana,
mais ou menos no estado como os havia encontrado Cabral”58.
Beschoren apresenta o aldeamento de Nonoai como composto de uma série de cabanas
espalhadas numa área considerável. Tais cabanas eram, segundo o engenheiro, “as mais
miseráveis que poderiam existir (...) não há utensílios domésticos, a não ser algumas esteiras e
cestos trançados de taquara, servindo como guarda comida”59. Hemetério Velloso, ao longo
de sua descrição, apresenta as populações indígenas como “indolentes por natureza e com
tendência para o roubo e o homicídio”60. Mostra como, principalmente em Santo Ângelo, à
medida que a população “branca” ia se estabelecendo, os índios cediam seus territórios a
estes. Apresenta os índios como dados a embriaguez e, por fim, conclui sobre a necessidade
do governo do Estado “a quem não faltam meios, lançar suas paternais vistas sobre esses
aborígines e, com poucas medidas, tirá-los desse deplorável embrutecimento e trazê-los para a
vida social”61. Tais considerações evidenciam de forma clara o ponto de vista preconceituoso
preponderante na época a respeito dos habitantes tradicionais da região. Assim, elas devem
ser compreendidas em sua significação concreta, uma vez que sua intenção é produzir a
diferença. Em outros termos, seu objetivo é justificar o lugar social e a situação vivida por tais
indivíduos, bem como o processo de povoamento que vinha se desenvolvendo a partir do
favorecimento de alguns grupos em detrimento de outros.
No mapa que segue abaixo, visualiza-se a localização dos toldos indígenas do Rio
Grande do Sul no período. Ele foi retirado do relatório da DTC de 1910, no qual encontram-se
dados mais precisos sobre a presença de índios na região. No relatório, consta uma narrativa
escrita por Carlos Torres Gonçalves62, então chefe da Diretoria, tratando especificamente
58 Bernardin D’Apremont. Idem, op. cit., p. 70. 59 Maximiliano Beschoren. Idem, op. cit., p. 43-44. 60 Hemetério Velloso da Silveira. Idem, op. cit., p. 18. 61 Idem, p. 350. Uma análise crítica sobre o modo como as populações da região são apresentadas nas descrições será realizada no capítulo 3 deste estudo. 62 No capítulo 4, abordarei mais profundamente temas relativos à atuação e importância de Carlos Torres Gonçalves no contexto do Governo do Estado e no processo de povoamento da região.
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sobre a situação dos indígenas no Rio Grande do Sul. Ela é escrita a partir de observações
feitas in loco realizadas pelo próprio Torres Gonçalves e traz informações gerais a respeito
dos usos e costumes dos índios, número e localização dos toldos, etnia a que as populações
pertenciam, etc. De acordo com os dados colhidos pelo diretor da DTC, o número de índios
vivendo no estado girava em torno de 2.940 pessoas, distribuídas em 12 toldos situados nos
municípios de Palmeira, Passo Fundo e Lagoa Vermelha63.
FIGURA 5:
TOLDOS INDÍGENAS DO RIO GRANDE DO SUL ENTRE 1889-1925
FONTE: GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, 1910, anexos.
Outra população presente na região, mas de quem as informações são mais raras, é
composta de afros-descendentes. Evaristo de Afonso Castro registra que o número de
escravos vivendo em toda a região que abrangia o antigo território dos Sete Povos das
Missões em 1887 – um espaço bem maior do que o tratado aqui – contabilizava o total de 15 a
20.000 indivíduos64. Após 1888, com a abolição da escravatura, grande parte dessas pessoas,
63 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 155. In.: GODOY, Candido José de. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo secretário de Estado Candido José de Godoy, em 10 de setembro de 1910. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1910, p. 93-157. (AHRS - OP. 24). 64 É preciso questionar os números apresentados por Evaristo de Afonso Castro, pois no Rio Grande do Sul, especialmente no período em análise, há uma tendência em diminuir a presença negra em função de uma suposta democracia racial. Enfim, os números apresentados por Castro podem não ser corretos, no entanto, servem apenas para demonstrar que havia uma quantidade considerável de negros vivendo na região serrana.
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como veremos adiante, encontra na região de matas um refúgio e passa a viver nesse espaço
praticando uma agricultura de subsistência e trabalhando na produção de erva-mate65.
Ainda quanto a população que habitava a região serrana, o desenvolvimento do
processo de fundação de colônias públicas e particulares a partir de 1890 trouxe como
resultado um expressivo aumento populacional, cuja conseqüência mais significativa foi
diminuir o espaço territorial disponível para acomodar tal população. Logo, os conflitos, tanto
os relacionados à disputa pela terra como os vinculados ao encontro de grupos social e
etnicamente diferenciados, também aumentam. Nas colônias, como é o caso de Ijuí, a prática
do Estado de fundar núcleos etnicamente heterogêneos colocava em contato populações que
em suas regiões de origem na Europa eram “inimigas”. Antoni Cuber, padre polonês
originário da Silésia e primeiro vigário da Colônia Ijuí, em suas memórias descreve-a como
Babel do Novo Mundo e, entre outras coisas, relata as dificuldades de convivência entre os
diferentes grupos étnicos que lá viviam.
Um fato representativo dessa circunstância acontece em 1917 numa comemoração do
7 de setembro na Colônia Ijuí, quando “um brasileiro” presente no evento, tomando a palavra
e se referindo à invasão alemã da Polônia, disse: “‘se ainda existem verdadeiros filhos da
Polônia, mais cedo ou mais tarde irão retomar o que lhes pertence’. Os alemães que se
encontravam presentes baixavam as cabeças, enquanto os brasileiros e os italianos batiam
palmas”66. No mesmo sentido, corroborando com a constatação de Cuber, Hemetério Velloso
registra que a colônia Ijuí, em 1909, tinha uma população de 8.000 indivíduos, dos quais mais
da metade “eram nacionais, 1.600 polacos, outros tantos teutos (prussianos e austríacos), 600
italianos, 54 suecos, 40 espanhóis, 36 orientais e argentinos, os demais são norte-americanos,
franceses, belgas, sírios, etc...”67, enfim, a analogia bíblica de Cuber tinha um sentido social
profundo68.
65 Sobre a presença de negros e escravidão no Rio Grande do Sul, ver: CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; MAESTRI, Mário. O escravo no Rio Grande do Sul: trabalho, resistência e sociedade. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2006; BAKOS, Margaret Marchiori. RS: escravidão e abolição. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. Sobre a presença de escravos e a sua atuação no Norte do estado, ver: os já citados estudos de Paulo Afonso Zarth e, igualmente, DARONCO, Leandro Jorge. À sombra da cruz: trabalho e resistência servil no noroeste do Rio Grande do Sul – segundo os processo criminais (1840-1888). Passo Fundo: UPF, 2006. Verificar também o livro recentemente publicado da historiadora Regina Xavier, no qual a autora faz um levantamento geral a respeito da produção historiográfica sobre os temas relacionados à escravidão no Rio Grande do Sul: XAVIER, Regina Célia Lima. História da escravidão e da liberdade no Brasil Meridional: guia bibliográfico. Porto Alegre: UFRGS, 2007. 66 CUBER, Antoni. Nas margens do Uruguai. Ijuí: UNIJUI, 2002, p. 27. 67 Hemetério Velloso da Silveira. Idem, op. cit., p. 282-283. 68 O próprio Antoni Cuber dá um exemplo da diversidade étnica presente na Colônia Ijuí: “segundo as estatísticas oficiais, aqui se encontram as seguintes nacionalidades: 500 polonesas, 30 lituanas, 20 rutenas, 10 tchecas, 200 alemãs, 100 austríacas, 100 italianas, 50 suecas e várias finlandesas. Além dessas, aqui moram
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É avultado o número de imigrantes que entraram no Rio Grande do Sul no período que
se estende entre os anos de 1889 a 1925. A grande maioria dos recém chegados dirigia-se para
a região florestal e, além deles, também havia o grande número dos descendentes de colonos
oriundos das colônias velhas, os quais também se encaminhavam para cima da serra em
busca de novas terras. Conseqüentemente, o aumento populacional nessa região foi tão
intensivo que, entre os anos de 1872 e 1920, o número de habitantes que lá viviam cresceu
mais de 8 vezes o seu montante inicial passando de 34.822 habitantes para 284.777. No
mesmo período, a população do Rio Grande do Sul, que era de 446.962 pessoas em 1872,
passou para 2.182.713 em 1920, ou seja, cresceu 4 vezes seu número inicial. O Brasil, por seu
turno, registrou um crescimento populacional de 3 vezes a sua quantidade inicial: de
10.112.061 habitantes em 1872, passou para 30.635.605 em 192069.
Tais números são representativos do quanto o processo de chegada de pessoas à região
foi intensa. Para uma idéia geral do que estavam vivendo os indivíduos que eram
contemporâneos dessas situações, de 1889 a 1915, segundo dados de Jean Roche, entraram no
estado mais de 115 mil imigrantes, dos quais a maioria foi se estabelecer em terras da região
serrana. Este número, somado ao montante de imigrantes que haviam entrado anteriormente
no estado, levam Roche a definir a imigração como um enxerto vigoroso70. Dessa forma, a
constatação realizada pelo padre Antoni Cuber é mais abrangente, uma vez que não só a
Coloni Ijuí pode ser definida como uma Babel do novo mundo, mas a região como um todo.
Quanto a chegada de imigrantes no estado, ela foi maior entre os anos de 1908 e 1914.
Tal fenômeno deve-se ao fato de que, nesse período, estava em vigor um convênio entre o Rio
Grande do Sul e a Federação para o estabelecimento de imigrantes no território rio-grandense.
A partir de 1915, não só a entrada de imigrantes despenca como nos relatórios da DTC
começam a constar registros de pessoas saindo do Rio Grande e indo para outros estados em
busca de terras para ocupar: “mais ou menos cedo, a semelhança de outros países, o Rio
Grande se terá transformado em viveiro de colonos, não só para os Estados de Santa Catarina
portugueses, brasileiros e seus descendentes, espanhóis, franceses, árabes, gregos, mulatos e bugres. Surgiu por aqui também um representante de Israel, mas como não estivesse disposto a trabalhar duramente, atirou fora o machado deixando suas plantações de milho aos cristãos”. Antoni Cuber. Idem, op. cit., p. 28. 69 Estes números são retirados das seguintes fontes: FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA. De Província de São Pedro ao Estado do Rio Grande do Sul, 1803-1950. Porto Alegre: 1981; JARDIM, Maria de Lourdes Teixeira; BANDEIRA, Marilene Dias. Um século de população do Rio Grande do Sul (1900-2000). Porto Alegre: Fundação de Economia Estatística Siegfried Emanuel Heuser, 2001 e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatísticas do século XX. In.: http://www.ibge.gov.br/seculoxx Informações coletadas nos dia 31/01/2007, às 17 horas. 70 Jean Roche. Idem, op. cit. p. 157-243.
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e Paraná, como ainda para Mato Grosso, a República do Paraguai, etc”71. Conseqüentemente,
em 1919, Borges de Medeiros, então Presidente do Estado, encaminha ofício ao Ministério da
Agricultura recusando a proposta de vinda de novos imigrantes ao Rio Grande do Sul e
justifica a recusa alegando que as terras devolutas existentes eram suficientes apenas para
garantir o estabelecimento da sua população colonial, bem como regularizar a situação de
“numerosos intrusos”72. Sobre essa grande progressão populacional na região, Hemetério
Velloso da Silveira escrevia em 1909:
desde que tão baixa é a mortalidade e os nascimentos se sucedem com freqüência, devido à fecundidade das mulheres, em regra sadias, a população cresceria independente das emigrações. Estas sempre se têm dado, quer do próprio Estado, quer dos Estados de São Paulo e Paraná, de onde os homens pobres vêm com freqüência procurar e conseguir melhorar de sorte e até mesmo enriquecer. Mas, como se isso não bastasse, a colonização estrangeira que até 1887 parecia impossível, começou a desenvolver-se de modo a contar atualmente 12 núcleos coloniais bem desenvolvidos e alguns reclamando com justiça a constituição de municípios autônomos73.
Acerca da saída de pessoas do Rio Grande do Sul para Santa Catarina e Paraná antes
pontuado, Carlos Torres Gonçalves, no relatório da DTC de 1918, escreve que sempre houve
movimento de colonos entre os três estados, mas nos últimos anos havia acontecido um
acréscimo considerável na transferência. Aumento que, segundo o diretor da DTC, devia-se a
dois motivos: o estabelecimento da linha férrea que ligava os três estados e o preço mais
barato das terras fora do Rio Grande do Sul. Para evitar o deslocamento de agricultores,
Torres Gonçalves sugeria como providência melhorar o serviço de colonização. Entretanto,
também argumentava que a mudança de pessoas que vinha acontecendo não era nada
alarmante, pois a procura por terras nas colônias novas do Rio Grande do Sul ainda era
bastante grande.
O diretor da DTC também sublinhava que havia um “regulador espontâneo” das
retiradas, pelo qual “o apego das melhores naturezas, portanto, dos melhores colonos, ao solo
onde se acham radicados” garantiria a tranqüilidade do processo. Assim, “num estado com as
condições naturais de progresso do Rio Grande, seria vão o receio da retirada de alguns
71 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 278. In.: PINTO, Ildefonso Soares. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Ildefonso Soares Pinto Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 13 de agosto de 1918. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1918. (AHRS - OP. 50). 72 MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Rio Grande do Sul pelo Presidente do Estado, Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 4ª sessão ordinária da 8ª legislatura, em 20 de setembro de 1920. (Documento datilografado do original, do Serviço de Pesquisa e Documentação Histórica do Museu da Assembléia – Rio Grande do Sul), p. 59. 73 Hemetério Velloso da Silveira. Idem, op. cit., p. 265.
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agricultores de seu território”74. No relatório de 1921, o diretor da DTC registra que “o
trabalho intenso de colonização promovido por Santa Catarina, longe de prejudicar-nos” 75,
estava concorrendo para melhorar os trabalhos de colonização no Rio Grande do Sul, visto
que diminuía a pressão por terras e resultava em maior tempo de trabalho para realizar “as
medidas preliminares a todo o serviço regular de criação e organização de novos núcleos na
promissora zona Norte do Estado”76. Em outras palavras, mesmo que o referido “regulador
espontâneo” não funcionasse, como evidentemente não funcionou, pois haviam questões mais
importantes regulando o deslocamento dos colonos do que o “apego ao solo” – a necessidade
de terra para garantir a sobrevivência77, por exemplo –, do ponto de vista do diretor da DTC, o
Rio Grande do Sul poderia tirar proveito da migração.
Um ponto importante que deve ser levado em conta para melhor compreender as
relações entre os estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná e as constantes
migrações das pessoas que viviam nas suas áreas de colonização é o fato de que os espaços
nos quais ocorriam os deslocamentos formavam frentes de expansão. Ademais, não só eram
zonas de fronteira agrária, como conformavam a fronteira físico-geográfica do Brasil em
relação aos países vizinhos: Paraguai e Argentina. Eram frentes de expansão78 na medida em
que, na época, formavam áreas pouco exploradas do ponto de vista da sociedade envolvente e
do mercado. Eram habitadas por uma população relativamente pequena, comparada à
extensão de seu território, principalmente nos primeiros anos do século XX, quando iniciou o
movimento de fundação de colônias. Os espaços em questão, da mesma forma, eram centros
de atração para populações vindas de outras regiões, sobretudo das áreas coloniais antigas, de
imigrantes vindos da Europa e também homens pobres que vinham de outros estados da
Federação em busca de melhores condições de vida, como registrou Hemetério Velloso.
A condição de fronteira com outros países das áreas de colonização dos três estados do
sul do Brasil também foi elemento importante para definir os rumos do seu povoamento.
Conforme evidenciei no início do capítulo, um dos argumentos muito utilizados pelos
pesquisadores que se preocuparam em pensar a colonização, a imigração e os seus motivos é
74 Carlos Torres Gonçalves, 1918. Idem, op. cit., p. 277-278. 75 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 527. In.: PINTO, Ildefonso Soares. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 16 de agosto de 1921. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1921, p. 369-537. (AHRS - OP. 60). 76 Idem, ibidem. 77 Sobre os motivos que estão na base da mobilidade dos colonos, consultar: SEYFERTH, Giralda. Concessão de terras, dívida colonial e mobilidade. In.: Estudos, Sociedade e Agricultura, v.7, 1996, p.29-58. 78 No próximo capítulo aprofundo as discussões sobre o conceito de frentes de expansão e sobre os autores que o utilizaram.
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o da necessidade de povoar espaços relativamente desocupados e que historicamente eram
alvos de disputas entre os países vizinhos da região do Prata. Torres Gonçalves, ao definir as
razões que levavam as pessoas a migrarem do Rio Grande do Sul para Santa Catarina, aponta
entre elas a existência de uma via férrea que ligava os estados do Sul e que tornava os
deslocamentos mais baratos e fáceis. Contudo, as causas da construção da via férrea, mais
precisamente do traçado que ela tomou, não são lembradas pelo diretor da DTC, pois entre
outros, um fator que foi decisivo na construção da ferrovia e dos lugares por onde ela passa
foi de ordem geopolítica.
Trata-se da disputa entre Brasil e Argentina de um território que historicamente estava
sob jurisdição brasileira, mas que a Argentina dizia pertencer-lhe. Este episódio é conhecido
como A questão de Palmas e refere-se a uma extensa área de terras situada no Estado de Santa
Catarina, que faz divisa com o Rio Grande do Sul (ver mapa abaixo) e que, devido à
existência desse litígio, foi alvo de grande atenção por parte de brasileiros e argentinos na
virada do século XIX para o XX79.
FIGURA 6:
A QUESTÃO DE PALMAS
FONTE: http://www.mre.gov.br. Material coletado às 11 horas do dia 03/07/2007.
79 Não realizarei uma descrição das vicissitudes vinculadas à disputa desse território, visto que fugiria muito do interesse desta pesquisa, apenas cito o caso para caracterizar a região estudada. Contudo, para conhecer mais detalhadamente a história da disputa e suas conseqüências históricas na relação entre Brasil e Argentina, bem como o modo como se desenvolveu o povoamento da região litigada, ver: HEINSFELD, Adelar. A questão de Palmas entre Brasil e Argentina e o início da colonização alemã no baixo vale do Rio do Peixe- SC. Joaçaba: UNOESC, 1996.
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Em 1895, depois de uma série de discussões e tratados assinados, os governos do
Brasil e Argentina – visto a impossibilidade de ambos se entenderem e os ânimos estarem se
acirrando a ponto de se cogitar a eclosão de um conflito armado – resolvem levar a questão ao
arbitramento do Presidente dos Estados Unidos, cujo julgamento da causa foi a favor do
Brasil. Tal circunstância gerou mais crise entre os dois países e, mediante isso, a necessidade
de povoar as terras litigadas e recém ganhas no arbitramento tornou-se questão de ordem para
o governo brasileiro. Daí o traçado dado à referida via férrea, pois além de buscar dar maior
facilidade para o povoamento da região disputada também tinha motivos militares e visava
agilizar o deslocamento de tropas brasileiras para lá, caso fosse necessário.
Em relação ao espaço aqui estudado, como é possível visualizar no mapa, a área em
litígio era sua vizinha direta e, certamente, não era interesse do governo rio-grandense
aumentar sua fronteira com a Argentina. Ademais, a existência de um litígio demonstra como
as regiões situadas ao norte do Estado do Rio Grande do Sul e ao sul de Santa Catarina –
geralmente caracterizadas como regiões florestais – eram espaços que estavam em disputa e
só se consolidaram geopoliticamente à medida que o seu povoamento se desenvolveu e no
momento em que o Estado passou a se fazer presente de forma mais direta nos mesmos.
Circunstância que, por sua vez, resultou em outros conflitos, vinculados principalmente à
questão fundiária, sendo o episódio mais representativo dessa constatação a Guerra do
Contestado, ocorrida em Santa Catarina na segunda década do século XX80.
Um outro exemplo demonstrativo do quanto a região serrana era um espaço em
disputa é fornecido por Hemetério Velloso em seu As missões orientais. Nessa obra, o autor
relata os interesses de alguns políticos que viviam na região, ainda no século XIX, em fazer
dela uma nova província. O novo território seria denominado Província do Alto Uruguai81 e,
segundo Velloso, a idéia de sua fundação datava de 1858 e era de autoria de Antônio Gomes
Pinheiro Machado. Inicialmente, devido às resistências que encontrava, a proposta foi
abandonada por seu criador que, na época, era deputado. No entanto, em 1884 ela é retomada
e são realizadas várias reuniões no município de Cruz Alta no sentido de colocá-la em prática
e os jornais regionais passam a defendê-la. Entretanto, de acordo com o autor, a proclamação
da República em 1889 e a subida de diversos políticos da região à frente do governo estadual,
80 Sobre a guerra do Contestado, consultar: MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado: a formação e a atuação das chefias caboclas (1912-1916). Campinas: Editora UNICAMP, 2004; AURAS, Marli. Guerra do contestado: organização da irmandade cabocla. Florianópolis: Editora UFSC, 2001 e MONTEIRO, Duglas Teixeira. Errantes do novo século: um estudo sobre o surto milenarista do Contestado. São Paulo: Duas Cidades, 1974. 81 Hemetério Velloso da Silveira. Idem, op. cit., p. 288.
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assim como a posterior construção da via férrea que corta aquele espaço levaram ao abandono
definitivo do projeto82.
Em linhas gerais, esses são alguns traços que caracterizam a região estudada: ela era
um espaço de fronteira agrária83 que, a partir de 1890, passou a ser alvo de intenso movimento
de colonização com imigrantes europeus. Fato que levou-a a ser caracterizada, por um seu
conterrâneo e contemporâneo, como Babel do novo mundo. Outra característica foi o
considerável aumento de valor que tiveram as suas terras. Situação que aguçou o interesse dos
então chamados capitalistas, que passaram a fazer investimentos diretos na região e atuar
como agentes colonizadores.
Todavia, também foram desenvolvidas uma série de políticas de Estado voltadas a
garantir um maior controle sobre o processo de apropriação fundiária, principalmente das
rendas que poderiam advir da comercialização de terras, madeiras e erva-mate. Uma das
peculiaridades que definiram a atuação do Estado e de alguns agentes colonizadores foi o seu
esforço no sentido de constituir um tipo ideal de habitante para região, o qual deveria portar
uma série de características e comportamentos que lhe garantiriam a condição de “civilizado”.
Dessa maneira, retomando a analogia de Antoni Cuber, se no caso da Babel narrada na Bíblia
uma força externa agiu no sentido de tornar os iguais diferentes, para que, no futuro, não
viessem a executar todos os empreendimentos possíveis e que tivessem vontade. No caso da
região serrana ocorreu algo parecido, mas em sentido contrário, uma vez que vários esforços
foram realizados na perspectiva de que seus habitantes, em futuro próximo, se tornassem
iguais, isto é, úteis socialmente. Mas este é um tema que será abordado nos próximos
capítulos.
82 Idem, p. 280-281. 83 Tratarei deste aspecto mais profundamente no próximo capítulo.
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FIGURA 7:
O RIO GRANDE DO SUL E AS PRINCIPAIS COLÔNIAS FUNDADAS ENTRE 1889 e 1925
Antigas colônias alemãs (Colônias Velhas): 1. São Leopoldo; 2. Novo Hamburgo; 3. Caí; 4. Montenegro; 5. Taquara; 6. Rolante; 7. Três Forquilhas; 8. Torres; 9. Gramado; 10. Nova Petrópolis; 11. Estrela; 12. Roca Sales; 13. Arroio do Meio; 14. Lajeado; 15. Venâncio Aires; 16. Santa Cruz; 17. Candelária; 18. Sobradinho; 19. São Lourenço; 20. São Feliciano; 21. Barão do Triunfo. Novas colônias: 22. Jaguari (1889); 23. Selbach (1906); 24. Não-Me-Toque (1897); 25. Carazinho; 26. Ijuí (1890); 27. New Wurttemberg (Panambi) (1899); 28. Cerro Azul (1902); 29. Santa Rosa (1915); 30. Três Passos; 31. Sarandi (1916); 32. Erechim (1908); 33. Getúlio Vargas; 34. Marcelino Ramos; 35. Sananduva. Antigas colônias italianas: 36. Caxias; 37. Garibaldi; 38. Bento Gonçalves; 39. Guaporé; 40. Nova Prata. FONTE: ROCHE, Jean. Idem, op., cit., vol.1, p. 08.
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2 E ELES AQUI VÃO: ESTADO, REPRESENTAÇÕES E POVOAMENTO
2.1 A REGIÃO SERRANA: UM ESPAÇO DE FRONTEIRA AGRÁRIA
Se se tentar estabelecer um balanço da marcha pioneira, nos planaltos ocidentais de São Paulo e do norte do Paraná ressaltará a obra destruidora dos pioneiros: destruição da mata e, com isso, destruição da terra. A mola propulsora da marcha para o oeste reside no tenaz desejo do ganho. Para satisfazê-lo, são necessárias abundantes colheitas de produtos que se exportam e se vendem no ultramar. Impôs a economia do mundo pioneiro uma técnica agrícola devastadora àqueles homens demais apressados. Repelia tal técnica esse respeito pela terra que é próprio do camponês.
Pierre Monbeig. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo.
No capítulo anterior, apresentei a região e descrevi como ela constituía-se em um
território habitado por pessoas provindas das mais diferentes origens, bem como o quanto tal
circunstância foi responsável por demarcar as peculiaridades daquele espaço em detrimento
de outros contextos, tanto do estado como do próprio país. Feito isso a tarefa agora é, até
aonde as fontes permitirem, conhecer mais profundamente alguns traços da sociabilidade
local, bem como alguns aspectos relacionados as representações existentes sobre as pessoas
e/ou grupos sociais que atuaram no povoamento. Assim, a partir da análise dos contatos, das
fronteiras relacionais e do fato de todos viverem em um território em disputa, procurarei
compreender e descrever algumas das relações que caracterizam esta sociabilidade específica.
Antes, um ponto que considero importante ser analisado é o da aplicação da idéia de
fronteira para definir a região sob análise. Tratar a região serrana como um espaço de
fronteira agrária significa pensá-la como um território ainda não completamente incorporado
nos quadros da sociedade nacional, ou melhor, como um lugar que estava passando por um
processo de incorporação, cuja principal característica, do ponto de vista econômico, era
torná-lo produtivo em termos agrícolas e, do militar, povoar um território que historicamente
era alvo de disputa. Além desses, também existiam motivos políticos definindo a necessidade
e o modo como aconteceu o povoamento da região, pois, entre outras coisas, com o passar dos
anos ela se tornou um dos principais celeiros de votos no estado. Também é importante
registrar, nesta perspectiva, que os principais personagens políticos do Rio Grande do Sul que
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estavam a frente do Estado durante a Primeira República, eram originários da região ou, de
alguma forma, estavam ligados a ela.
A idéia de fronteira já foi alvo de diferentes abordagens. A princípio ela foi bastante
utilizada, por volta da década de 1940, pela geografia agrária e, dentro dessa área do
conhecimento, tem como seus principais expoentes, mas não os únicos, pensadores como
Pierre Monbeig1, Leo Waibel2 e Orlando Valverde3. Tais autores pensaram às regiões de
fronteira agrária sustentados pela noção de frente pioneira. Em momentos diversos e
posteriores aos estudos “clássicos” da geografia agrária alguns outros intelectuais, ligados a
sociologia e a antropologia, desenvolveram críticas a idéia de frente pioneira e, em
substituição a essa categoria de análise, passaram a pensar as regiões de fronteira embasados
na idéia de frentes de expansão. Contudo, mesmo entre aqueles que adotam a frente de
expansão como ponto de referência para suas análises é possível encontrar divergências em
certos aspectos de suas considerações, como é o caso das abordagens diferenciadas sobre a
frente de expansão amazônica desenvolvidas por José de Souza Martins e Otávio Guilherme
Velho, por exemplo.
De todo modo, a principal diferença entre as duas noções – frente pioneira e frente de
expansão – é que, enquanto a primeira aborda as regiões de fronteira a partir da idéia do
progresso, de que esse progresso chega a tais regiões em um determinado momento e, em
alguns casos, a partir da atuação de um determinado personagem, geralmente o imigrante. A
segunda, por seu turno, dá maior atenção as pessoas que já viviam nos espaços de fronteira e
que, até então, não haviam recebido atenção analítica proporcional a sua importância. Dessa
forma, tal perspectiva de análise permite pensar mais detalhadamente o modo como se davam
os contatos entre aqueles que já viviam na fronteira com aqueles que, de um dado momento
em diante, passam a chegar a esse território.
No entanto, essa preocupação não está ausente nos estudos que tomam como ponto de
partida o pioneirismo, tanto é que Monbeig, por exemplo, assinala que as zonas pioneiras são
habitadas por “tipos sociais distintos que aparecem à medida que o movimento pioneiro
avança”, por conseguinte, “a originalidade do mundo pioneiro é assegurada pela coexistência
de todos esses tipos”4. Não obstante, mesmo sublinhando que a “sociedade pioneira” é
dinâmica e que é composta e habitada por diferentes tipos sociais, para Monbeig o pioneiro,
no pleno sentido da palavra, não é outro homem senão o responsável por levar o progresso a
1 MONBEIG, Pierre. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: HUCITEC, 1998. 2 WAIBEL, Leo. Capítulos de geografia tropical e do Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 1979. 3 VALVERDE, Orlando. Estudos de geografia agrária brasileira. Petrópolis: Vozes, 1985. 4 Pierre Monbeig. Idem, op. cit., p. 127
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“franja pioneira”. Em outros termos, os índios, ou aqueles grupos que inicialmente viviam na
região oeste do estado de São Paulo, os quais – reconhece Monbeig – contribuíram no avanço
pioneiro, são pioneiros apenas pelo fato de terem chegado primeiro a essa região. Logo, para
esse autor, são os fazendeiros do café e aqueles que os acompanhavam e compartilhavam de
seus interesses e projetos ou, ao fim e ao cabo, eram responsáveis pela sua execução os
verdadeiros Pioneiros. Neste sentido escreve: “quem abre a lista dos trabalhadores que
transformaram a grande floresta em campo cultivado não é o derrubador da mata e sim o
agrimensor”5, isto é, aquele que estabelece uma certa ordem ao dinamismo que caracteriza a
“sociedade pioneira”. Portanto, o verdadeiro pioneiro, para Monbeig, é o “homem que
prepara o caminho para o vasto movimento de que ele é parte integrante, ao contrário do
caboclo, desbravador que permanece à margem do mundo”6.
A interpretação desenvolvida por Leo Waibel não é muito diferente. Segundo ele, o
termo “fronteira” pode ter dois sentidos: um político que se refere as linhas nitidamente
demarcadas que separam países diferentes e também um sentido econômico, cujo conteúdo
foi desenvolvido nos Estados Unidos a partir dos estudos de F. Jackson Turner e diz respeito a
uma área “que se intercala entre a mata virgem e a região civilizada”, território que Waibel
denomina de “zona pioneira”7. No caso do Brasil, sublinha o geógrafo, existem territórios que
possuem uma paisagem que não pode ser definida “nem terra civilizada nem mata virgem, e
para o qual se tem a expressão muito feliz de ‘sertão’”8. O autor escreve que considerar
pioneira a população que habita o sertão ou o próprio sertão como uma zona pioneira é
atitude equivocada, visto que somente em alguns trechos da extensa área denominada sertão,
ao longo da história do Brasil, verdadeiramente ocorreram zonas pioneiras.
Para Waibel, o conceito de pioneiro “significa mais do que o conceito de
frontiersman, isto é, do indivíduo que vive numa fronteira espacial”, visto que o pioneiro
“procura não só expandir o povoamento espacialmente, mas também intensificá-lo e criar
novos e mais elevados padrões de vida”9. Assim, no campo da agricultura, nem o extrativista,
o caçador e o criador de gado podem ser considerados pioneiros, mas apenas aqueles que são
capazes de transformar “a mata virgem numa paisagem cultual e de alimentar um grande
número de pessoas numa área pequena”10 o são. Por seu turno, os grupos que, aos olhos de
Waibel, inicialmente poderiam suprir tais exigências – os imigrantes europeus – muitas vezes
5 Idem, p. 215. 6 Idem, p. 254. 7 Leo Waibel. Idem, op. cit., p. 281. 8 Idem, ibidem. 9 Idem, p. 281-282. 10 Idem, ibidem.
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acabavam não dando conta das expectativas e decaindo em seu nível de vida. Circunstância
que levou Waibel a defini-los como acaboclados. A caboclização, para o autor, era resultado
da prática agrícola adotada pelos colonos e dependia muito diretamente dos locais onde eram
fundadas as colônias:
no sul do Brasil (...) nem toda região povoada pelos colonos tem o caráter de zona pioneira. Estas só se desenvolvem onde um transporte barato permitia colocar os produtos excedentes em um mercado com capacidade para absorvê-los ou em um porto de exportação, e onde, além disso, havia bastante terra à disposição para receber grande número de colonos. Em todas as outras regiões, ou a colonização estagnava completamente, ou então fazia progressos espaciais e econômicos tão lentos que lhes faltava por completo o caráter dinâmico, próprio de uma frente pioneira11.
O ponto de vista adotado por autores como Monbeig e Waibel foram objeto de críticas
por parte de pesquisadores ligados a outras áreas das ciências sociais – a antropologia e a
sociologia, especialmente –, os quais conjuntamente com alguns historiadores passam a
pensar as áreas de fronteira agrária dando maior atenção as suas populações originais.
Ocupam lugar de destaque, nesse sentido, as pesquisas desenvolvidas por Darcy Ribeiro12,
Roberto Cardoso de Oliveira13, José de Souza Martins14 e Otávio Guilherme Velho15. Autores
que desenvolveram análises das situações de fronteira tomando como ponto de partida para
suas abordagens a própria fronteira, interpretando-a como uma frente de expansão. Para isso,
Roberto Cardoso de Oliveira, por exemplo, desenvolve a idéia de fricção interétnica e a partir
dela procura compreender os aspectos conflituosos e competitivos relacionados ao avanço da
sociedade nacional em direção aos territórios indígenas e os respectivos contatos entre os
índios e os brancos.
Ainda na área de antropologia, Otávio Guilherme Velho também desenvolve análise
importante que ilumina aspectos significativos referentes as sociedades de fronteira. Assim, as
frentes de expansão são observadas pelo autor a partir do ponto de vista do desenvolvimento
de um tipo especifico de capitalismo no Brasil que ele denomina “capitalismo autoritário”. É
dentro dos quadros do desenvolvimento desse sistema singular que Velho analisa o papel da
fronteira e de seus habitantes. Nesta perspectiva, a fronteira é apresentada como um local de
11 Idem, p. 293. 12 Cf.: RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno. Petrópolis: Vozes, 1977. 13 Cf.: OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O índio e o mundo dos brancos. Campinas: UNICAMP, 1996. 14 Cf.: MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: HUCITEC, 1997. 15 Cf.: VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo autoritário e campesinato: um estudo comparativo a partir da fronteira em movimento. São Paulo, Rio de Janeiro: DIFEL, 1976.
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“refúgio” daquelas populações que essa formação social não deu conta de enquadrar. Em
conseqüência, as frentes de expansão também são áreas de equilíbrio, cujo papel é ajudar no
controle dos possíveis conflitos que são característicos do desenvolvimento do capitalismo em
sua forma autoritária. No entanto, elas também são responsáveis pela perpetuação de tais
conflitos, uma vez que nas zonas de fronteira eles não desaparecem, mas assumem outras
formas ou, no mínimo, possibilitam o deslocamento de alguns problemas sociais que ocorrem
em espaços já incorporados a outros que ainda estão em fase de incorporação e, por isso, se
tornam objetos de menor atenção por parte da sociedade envolvente.
José de Souza Martins, numa tentativa de aproximar analiticamente as duas
abordagens – a da geografia agrária e a da antropologia – aborda as áreas de fronteira na
perspectiva dos diferentes tempos históricos que caracterizam tais regiões. Assim, existe o
tempo dos índios, o tempo do posseiro que, na maioria dos casos, é o primeiro a entrar em
contato com os grupos indígenas, o tempo do extrativista, o do grileiro, o do fazendeiro e,
atualmente, o tempo das grandes empresas multinacionais que se estabelecem nos territórios
da fronteira agrária amazônica. Sustentado pela constatação da existência desses diferentes
tempos sociais, cada qual característico de um grupo em específico, Martins propõe que o
movimento de expansão da sociedade nacional em direção as zonas de fronteira acontece de
duas formas que podem ser sucessivas ou concomitantes. Nesta perspectiva, segundo o autor,
é possível visualizar e diferenciar o movimento característico das frentes de expansão, que
tem como principal traço o avanço das populações pobres que saem de suas regiões
originárias em busca de novas terras para se estabelecer e praticar uma agricultura de
subsistência. Da mesma forma, também existem frentes pioneiras, as quais são responsáveis
por inserir as áreas de fronteira no mercado nacional e internacional, modernizando-as e
incorporando-as definitivamente16.
Assim, o avanço das frentes pioneiras pode ser responsável pelo o das frentes de
expansão e, desse modo, os dois fenômenos estão intimamente ligados, pois caracterizam a
vida nas zonas em fase de incorporação, aquilo que se deve entender por fronteira e definem
uma determinada realidade social que Martins denomina como situação de fronteira.
Contudo:
o avanço da frente pioneira sobre a frente de expansão e a conflitiva coexistência de ambas é mais do que contraposição de distintas modalidades de ocupação do território. Ao coexistirem ambas na situação de fronteira, dão aos conflitos que ali se travam, entre grandes proprietários de terra e
16 José de Souza Martins. Idem, op. cit., p. 145-203.
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camponeses e entre civilizados, sobretudo grandes proprietários, e índios, a dimensão de conflitos por distintas concepções de destino. E, portanto, dimensão de conflitos por distintos projetos históricos ou, ao menos, por distintas versões e possibilidades de projeto histórico que possa existir na mediação da referida situação de fronteira17 (grifo do autor).
Considero que adotar qualquer uma das interpretações aqui apresentadas para definir o
que acontecia na região serrana no início do século XX é atitude precipitada, principalmente
porque elas foram elaboradas para tratar de regiões e períodos diferentes, excetuando, no caso
do contexto, a obra de Leo Waibel que muito escreveu sobre o processo de colonização no
Rio Grande do Sul. Contudo, definir a região serrana como frente pioneira nos termos deste
autor significaria ignorar uma parte considerável da população que ali vivia e que, de forma
alguma, se enquadra na noção de pioneiro desenvolvida por Waibel.
As fontes que descrevem a região e as pesquisas existentes sobre o processo de seu
povoamento permitem defini-la como um espaço de fronteira agrária e, dessa forma, ela
efetivamente era uma frente de expansão da sociedade rio-grandense e nacional, como ficou
claro na discussão realizada ainda no primeiro capítulo. Ademais, se pensarmos a noção de
frente pioneira apenas pelo viés do desenvolvimento da região, sua urbanização, inserção nos
quadros da sociedade envolvente e da própria modernização e seus sinônimos mais
tradicionais que são a construção de meios mais eficientes de transporte e comunicação
também é verificável que a região, ao longo do período, passou por um profundo processo de
desenvolvimento social e econômico, o qual está intimamente ligado ao modo como se
constituiu a colonização.
Em outros termos, a idéia sublinhada por José de Souza Martins que há diferenças
entre zonas de expansão e zonas pioneiras, que uma não nega a outra e que tais diferenças se
traduzem no fato de que a primeira carrega a peculiaridade de ter como principal traço o
avanço de uma população pobre que ocupa as áreas de fronteira buscando principalmente a
manutenção da unidade familiar e outra – a frente pioneira – que se caracteriza por inserir tais
zonas no mercado e assim, do ponto de vista da sociedade envolvente, modernizá-las pode ser
aplicada para pensar a região serrana. Entretanto, é necessário ter clareza de que se trata de
outra situação histórica, de outro desenvolvimento e que no caso da região serrana em
específico, o processo de apropriação das terras que conformavam a fronteira agrária
aconteceu a partir do exercício de um forte controle por parte do Estado e da atuação de
algumas empresas particulares de colonização18.
17 Idem, p. 182. 18 Aspectos relacionados a estas questões serão abordados no capítulo 4.
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Assim, o que caracteriza a região é que ela era há bastante tempo habitada por
indígenas e nacionais. Também é possível encontrar registros de negros e alguns imigrantes
vivendo nela antes de 1890, quando a sua colonização com imigrantes europeus de origem
não-ibérica foi acelerado. Essa população era relativamente pequena para a extensão da região
e, da mesma forma, existia um certo preconceito generalizado a seu respeito, dizendo que ela
não era apta para o trabalho produtivo. Na maioria dos casos os primeiros habitantes,
principalmente os lavradores pobres, não eram portadores dos títulos de propriedade das terras
que ocupavam e, diante do avanço da colonização, muitos viram-se obrigados a deslocarem-
se adiante na fronteira em busca de terras ainda não incorporadas, mas que em pouco tempo
passaram a ser alvo de interesse e foram objetos de políticas de colonização, tanto pública
como particular.
Não há como negar que o desenvolvimento da região e sua incorporação está muito
ligado ao processo de fundação de colônias, contudo, isso não deve obscurecer o fato de que
tais colônias foram construídas em terras historicamente ocupadas, que o trabalho das
populações não imigrantes também foi fundamental no desenvolvimento da região e das
próprias colônias. Outro fato que permite definir a região como se constituindo em um espaço
de fronteira agrária é a existência dentro do seu território de diferentes tipos de sociabilidades
que, nos termos de Martins, apontam para a existência de noções diferenciadas de tempo
histórico e de seu desenvolvimento. Em linhas gerais, ignorando as possíveis divergências
presentes nas abordagens desenvolvidas pelos diferentes pesquisadores que se preocuparam
em pensar a fronteira, todos apresentam um ponto em comum: os principais traços que
caracterizam e definem uma região como sendo de fronteira é a existência de conflitos sociais,
especialmente o conflito pela terra, bem como o encontro de grupos com perspectivas de
mundo diferenciadas e, como veremos ao longo dessas linhas, esses traços são facilmente
localizáveis na região serrana durante o período analisado.
2.2 SOBRE AQUELES QUE “PERTENCEM A SOCIEDADE”: OU DAS RELAÇÕES ESTABELECIDAS
ENTRE OS GRUPOS SOCIAIS ENVOLVIDOS NO POVOAMENTO DA REGIÃO SERRANA
Para melhor entender as questões relacionadas à forma como ocorreu o encontro entre
os grupos que atuaram no povoamento da região, é importante sublinhar que se trata de um
contexto marcado pela presença de formas de sociabilidade extremamente complexas. Nesse
espaço, desenvolvia-se uma teia de relações constitutivas de uma figuração social específica
onde se faziam presentes vários dos complexos que caracterizam as relações sociais. Tais
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complexos envolvem temas de ampla discussão como a dominação, a resistência, a
interdependência, a patronagem, a amizade, o parentesco, a subordinação e a vizinhança, para
citar alguns.
Conseqüentemente, para realizar a análise do povoamento é necessário conhecer o
conjunto variado de inter-relações que caracterizam a sociabilidade local, visto que são os
indivíduos, interligados em grupos ou não, que definem e conformam a sociedade que aqui se
pretende conhecer. Em outras palavras, essa sociedade só existe porque um grande número de
pessoas “isoladamente querem e fazem certas coisas e, no entanto, sua estrutura e suas
grandes transformações históricas independem, claramente, das intenções de qualquer pessoa
em particular”19. Ela não é, portanto, uma coleção de indivíduos isolados, mas uma sociedade,
uma estrutura de indivíduos interdependentes, na qual as pessoas, por mais que não se
conheçam ou pertençam a grupos diferenciados, estão ligadas por laços invisíveis que as
tornam interdependentes. Tais laços e o conjunto de ligações resultantes deles formam
“cadeias” que prendem uns indivíduos aos outros e, embora tais “cadeias” não sejam “tão
visíveis e tangíveis, como grilhões de ferro, são mais elásticas, mais variáveis, mais mutáveis,
porém não menos reais, e decerto não menos fortes”20. Portanto, conhecê-las é fundamental
para compreender como se definem os processos e relações sociais.
Assim, um primeiro ponto a ser frisado é que o povoamento da região foi efetivado
por grupos diferenciados. Em termos econômicos, por exemplo, é perceptível naquela
figuração social a presença de um grupo constituído por grandes proprietários de terras. Mais
ou menos alinhados no entorno dos grandes proprietários situavam-se, defendendo idéias e
posições semelhantes, um outro grupo formado basicamente por funcionários públicos,
profissionais liberais, religiosos, comerciantes e alguns intelectuais que na região reproduziam
temas, conceitos e ideais que caracterizavam o pensamento social peculiar da época. A fontes
analisadas evidenciam que há uma maior identidade de situação e posições entre esses dois
primeiros grupos que, de agora em diante, passarei a identificar como grupo “mais rico”. No
outro extremo da escala econômica, estavam as pessoas que atuaram diretamente no
povoamento: pequenos proprietários, agregados, peões, ervateiros e posseiros – grupo
constituído basicamente por nacionais, negros, índios e imigrantes europeus, os quais
conformavam o grupo social “mais pobre” que vivia na região. Os registros existentes a
respeito deste último grupo, na maioria dos casos, não são obra sua, mas as informações
existentes sobre ele provêm da pena dos grupos econômica e socialmente mais bem situados.
19 ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994, p. 13. 20 Idem, p. 23.
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Especialmente, das considerações registradas pelos diferentes relatos descritivos da região21 e,
em particular no caso deste estudo, das informações constantes nos processos crime que
igualmente são resultado de uma produção externa.
Tal fato aponta para uma das principais peculiaridades do grupo “mais pobre”, isto é, a
grande maioria de seus integrantes era composta por analfabetos. O não domínio sobre a
escrita, além de ser um fator que impossibilitou a existência de fontes históricas que permitam
conhecer mais detalhadamente o grupo a partir dele próprio, também era responsável por
definir o modo como as pessoas se inseriam socialmente no contexto local. Uma vez que tal
fato era responsável por limitar as suas possibilidades de ação, por exemplo, no período a um
analfabeto era proibido votar, pleitear cargos públicos e concorrer a cargos políticos. Da
mesma forma, tal circunstância atuava no sentido de limitar a busca de meios legais – justiça
pública – para a resolução de conflitos e problemas cotidianos22. Deve-se somar a isto, no
caso dos imigrantes, o não conhecimento da língua portuguesa como elemento a dificultar sua
inserção, especialmente quando deviam lidar com os aparelhos de Estado, embora, como
veremos no próximo capítulo, sua situação fosse diferenciada em relação aos nacionais,
negros e índios, especialmente porque muitos dos imigrantes dominavam a palavra escrita23.
Como fica visível a estrutura social aqui analisada é heterogênea e é bastante difícil
definir como se constituíam as relações entre esses diferentes grupos sociais. Esta constatação
também é válida para explicitar como internamente se constituíam as relações dentro desses
grupos. Em outros termos, os contatos entre indígenas e imigrantes eram diferentes das
relações que mantinham funcionários públicos e nacionais, bem como as que existiam entre
intelectuais e fazendeiros, negros e nacionais, imigrantes com imigrantes e assim por diante.
Para fins de análise as fontes possibilitam identificar que os grandes proprietários, os
funcionários públicos, os religiosos, os profissionais liberais e os comerciantes possuíam
opinião semelhante a respeito do grupo “mais pobre”. Dessa forma, para o grupo “mais rico”,
21 No capítulo 1 realizei uma breve apresentação de algumas dessas descrições. 22 José Cutilieiro, em interessante etnografia sobre uma comunidade rural portuguesa mostra como o não domínio da escrita é importante elemento de diferenciação social nas sociedades rurais e o quanto ele pode ser um dos eixos sobre os quais se definem as relações de dominação. O autor chama atenção para o fato de que, no caso por ele estudado, as pessoas que não dominavam a palavra escrita viam o mundo dos que sabiam ler e escrever como um mundo “misterioso” e “poderoso”. Evidencia também como isso era favorável aos alfabetizados, uma vez que toda a estrutura administrativa e a organização formal do controle político por parte dos indivíduos poderosos locais eram canalizadas por meio da palavra escrita. Ver, CUTILEIRO, José. A Portuguese rural society. London: Oxford University Press, 1971. 23 Nesse sentido, Paulo Zarth escreve: “Os colonos imigrantes eram tão ignorantes dos aspectos jurídicos como os caboclos; alguns sequer conheciam a língua portuguesa; no entanto um funcionário público levava-os até o lote rural e entregava-o para ser pago em suaves prestações, pois eram esses os agricultores encarregados do desenvolvimento agrícola e não os caboclos, na política oficial”. Cf.: ZARTH, Paulo. História agrária do planalto gaúcho (1850-1920). Iijuí: Unijui, 1997, p. 77.
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os negros eram pessoas violentas, os índios eram seres traiçoeiros, os nacionais eram
indivíduos vadios e os imigrantes eram aqueles que tornariam a região produtiva. Ademais, os
integrantes do grupo “mais pobre” também reconheciam diferenciações entre eles e os
participantes do grupo “mais rico”. Contudo, deve-se frisar que as expressões grupo “mais
rico” e “mais pobre” não correspondem a grupos ou organizações de elementos “ricos” ou
“pobres” estritamente falando, sendo apenas designativas do conjunto ou soma dos indivíduos
dessa ou daquela posição social. Em termos mais precisos, elas buscam ser uma forma de
tornar a realidade social que aqui se quer analisar mais fácil de ser descrita, ou seja, é uma
operação de classificação24.
O reconhecimento dessas diferenciações, por seu turno, não deve significar que as
relações travadas entre o grupo “mais rico” com o “mais pobre” se davam unicamente nos
termos da dominação e do estigma. Sem dúvida ambos aspectos estão presentes nestas
relações, mas elas não são uma via de mão única, ou seja, o grupo mais bem situado
economicamente não estava preocupado 24 horas por dia em dominar e em pensar formas
mais bem elaboradas para exercer sua dominação, assim como os dominados não faziam ou
estavam preocupados dioturnamente em resistir.
Trata-se de uma relação entre grupos econômica e socialmente desiguais, e, em termos
conceituais, seria muito precipitado tratar tal relação como se constituindo um exemplo
preciso e concreto de luta de classes. Nesta perspectiva, um elemento a ser destacado é que a
própria noção de classe não pode ser encontrada entre os participantes da relação,
especialmente no sentido identitário do termo, isto é, não é possível falar em identidade de
classe para o contexto e para o período. Não obstante, se tomarmos a classe como uma
construção/formação, como faz Thompson, talvez seja possível reconhecer alguns elementos
e comportamentos sociais indicativos dessa formação25. Por seu turno, para continuar dentro
dos quadros do pensamento Thompsoniano, tais indícios apontam e podem ser mais bem
compreendidos a partir da idéia de “economia moral”26, uma vez que, no caso específico, não
é possível verificar – pelo menos não encontrei exemplos significativos nas fontes analisadas
– a existência de protesto social organizado voltado para fins precisos e relacionados a uma
consolidada situação e/ou identidade de classe.
As fontes também mostram que o grupo “mais rico” tinha uma coesão maior e sua
unidade é muito perceptível no caso das opiniões/representações que expressam a respeito do
24 Para aprofundar as discussões sobre este tema, consultar: BOURIDEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. 25 Cf.: THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. São Paulo: Paz e Terra, 1997. 26 Cf.: THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
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grupo “mais pobre”. Tal coesão tornava maiores as condições para que esse grupo exercesse
seu domínio sobre os economicamente menos favorecidos. Além disso, outro fato que permite
identificar os “mais ricos” como dominantes são as relações que mantinham com o Estado e
seus aparelhos que, invariavelmente, eram usados em beneficio próprio e para consolidar sua
posição e status sociais. Contudo, as disputas por controlar os aparelhos de Estado na esfera
local definiram algumas cisões dentro do grupo “mais rico”, rupturas que se realizaram no
campo político, mas tinham existência prática e violenta no cotidiano regional e envolviam
todos setores da sociedade, como foi o caso da Revolução Federalista em 1891.
Além desse caso, outro exemplo de como as disputas políticas envolviam a sociedade
como um todo nos é fornecido por um processo crime datado de 1917. Em 24 de setembro
deste ano foi realizada, em Santo Ângelo, eleição para prover a cadeira de Intendente e
conselheiros municipais. Acontece que no 5º distrito do município – lugar denominado
Campinas – ocorreram algumas irregularidades no desenvolvimento do pleito. Segundo
informa o delegado de Santo Ângelo, no dia da eleição “alguns indivíduos que dizendo-se
cumprir ideais nobres, fins patrióticos, convulsionaram o recinto de uma mesa eleitoral com o
intuito de perturbar a ordem, amedrontar o eleitorado, impedindo a votação”27. Os autores da
confusão eram, de acordo com o delegado, Jorge Bauer e Valentim Pereira. O primeiro tinha
29 anos de idade, era casado, natural da Áustria e era ferreiro; Valentim tinha 31 anos, era
casado, natural do Rio Grande do Sul e residente no 6º distrito de Santo Ângelo – lugar
denominado Giruá. O delegado conta que Valentim Pereira havia sido demitido do cargo de
subintendente do 6º distrito às vésperas da eleição e quem o tinha demitido foi o então
intendente municipal, Álvaro Silveira, que estava concorrendo a reeleição naquele pleito.
Portanto, argumenta o delegado, a confusão gerada por Valentim e seu companheiro Jorge
Bauer tinham o sentindo da revanche. Entretanto, no interrogatório, datado de 10 de
novembro de 1917, Valentim diz não ter se envolvido na questão e que apenas viu a confusão
e retirou-se do local sem nada saber. No mesmo dia, Jorge Bauer também é interrogado e sua
versão esclarece melhor o fato. Bauer conta que estava em Campinas e se achava no lugar
onde funcionava a mesa eleitoral. Que, nesse dia e lugar, foi por diversas vezes provocado por
um indivíduo de nome Sigismundo Alexandroviz Kraskym e, para fugir das provocações, se
escondeu em um quarto da casa onde aconteciam as eleições. No entanto, Sigismundo entrou
no quarto e avançou contra ele de faca em punho, pelo que se viu obrigado a reagir vindo a
ferir Kraskym na cabeça.
27 APERGS. Processos Crime 1.445. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1917. Maço 49.
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Uma versão semelhante com a de Bauer é fornecida por José Duarte Lages (41 anos de
idade, casado, empregado público, natural do Rio Grande do Sul). De acordo com Lages, que
era secretário da mesa eleitoral, Sigismundo Kraskym estava embriagado e fazia provocações
aos presentes a ponto do Presidente da mesa eleitoral ordenar a sua prisão. Ainda segundo
Lages, Kraskym entrou em um quarto onde estava Jorge Bauer e ambos brigaram sendo que,
aproveitando a confusão, Valentim Pereira dirigiu-se a mesa eleitoral e rasgou grande número
de cédulas. Em 17 de dezembro de 1917 é ouvida uma testemunha de defesa que traz novos
elementos, os quais ajudam a entender a situação. Pedro Antunes da Silva (23 anos de idade,
solteiro, natural do Rio Grande do Sul, agricultor e residente no 5º distrito), conta que estava
junto de Valentim no momento da confusão e que o acusado não havia se envolvido nela.
Afirma que o processo estava sendo movido por perseguição política e que era obra do
Intendente municipal Álvaro Silveira porque Valentim não havia votado nele.
Em 18 de dezembro de 1917, Sigismundo Kraskym dá sua versão dos fatos: conta que
foi nomeado fiscal eleitoral do distrito de Campinas e que no caminho de sua casa até a mesa
eleitoral ouviu boatos de que Jorge Bauer, que não era eleitor daquela seção, queria assistir as
eleições e amedrontar o eleitorado. Afirma que havia tomado alguns goles de cachaça, mas
não estava embriagado e que, “na condição de fiscal” tinha discutido com o Presidente da
mesa eleitoral por este ter proibido que algumas pessoas votassem sob a alegação de que não
eram eleitoras daquele distrito e que Jorge Bauer se interpôs nessa discussão. Segundo
Kraskym, os ânimos haviam se acirrado muito e, por este motivo, resolveu ir até o hotel da
cidade buscar seu revólver e uma espada, sendo que nessa ocasião tomou “uns gollos de
Paratti”. No retorno do hotel até o local onde estava acontecendo a eleição viu chegar uma
banda de música composta por alguns seus conterrâneos tocando o hino russo e “ele
declarante sentindo-se arrebatado saiu da casa, chegou frente a banda de música dando um
viva a Rússia e outro ao Brasil, detonou para o ar doze tiros e depois voltou novamente para a
sala aonde se distribuíam cédulas”28. Em conseqüência desse ato, os responsáveis pela
segurança local tentaram prender Sigismundo que reagiu dando ensejo para o
desenvolvimento da confusão discutida no processo. Kraskym, afirma que Valetim Pereira
realmente não havia entrado no confronto muito menos rasgado as cédulas, logo, estava sendo
acusado apenas por questões políticas. Por fim, em 02 de abril de 1918 é realizado o
julgamento e os dois acusados, Bauer e Valentim, são absolvidos.
28 Idem, ibidem.
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O processo demonstra a importância de manter o controle sobre os aparelhos políticos
locais e como as disputas por esses lugares de poder perpassavam os diferentes níveis da vida
social. Em outros termos, o caso não só envolve questões relativas ao reconhecimento de uma
identidade nacional expressa no êxtase vivido por Kraskym ao reconhecer o hino da Rússia,
mas também demonstra o uso dos aparelhos oficiais da justiça para fins estritamente políticos.
No que diz respeito a primeira constatação cabe perguntar o que um banda formada por
imigrantes russos estava fazendo tocando o hino da Rússia naquele exato momento e local?
Uma resposta definitiva para a pergunta talvez seja impossível, no entanto, a situação é
inusitada. Acerca do segundo ponto levantando, isto é, o do uso da máquina administrativa
estatal para fins políticos, os diferentes depoimentos evidenciam que o envolvimento de
Valentim no caso só é confirmado pelas versões do delegado e do secretário da mesa eleitoral,
ambos funcionários públicos vinculados diretamente ao Intendente municipal que era o maior
interessado em ver seu desafeto político, Valentim Pereira, condenado.
Acerca da classificação aqui proposta para identificar os grupos envolvidos no
povoamento da região, ela parte do princípio de que o grupo “mais rico” tinha como seu
principal representante algumas pessoas que detinham e buscavam manter um controle
rigoroso sobre grandes extensões de terra – fato muito significativo no contexto de uma
sociedade rural. Este grupo também controlava o poder político local e estadual e, embora
seja possível verificar diferenças de riqueza entre grande proprietários, funcionários públicos
e comerciantes, por exemplo, eles expressavam opiniões idênticas a respeito das pessoas que
pertenciam ao grupo “mais pobre”. Além disso, partilhavam idéias semelhantes relativas ao
desenvolvimento da região e da população que ali residia. Evidentemente que tal grupo não se
comportava em uníssono e há espaços para divergências, mas alguns comportamentos são
preponderantes e possibilitam afirmar que entre o grupo economicamente mais forte há, em
certos aspectos, uma certa identidade de ação e de posição. Contudo, deve-se levar em conta
que a classificação proposta não é objeto de consenso. Existe uma certa arbitrariedade nela,
uma vez que o pertencimento a um ou outro grupo é por deveras escorregadio e é muito difícil
localizar nas fontes indícios da existência de uma “moral de grupo”29 efetivamente
consolidada, tanto para um lado como para outro da relação, principalmente entre o grupo
“mais pobre”.
Em outras palavras, é muito arriscado definir em termos precisos os critérios que
delimitam o pertencimento a um ou outro grupo, embora seja possível arriscar, sem grandes
29 Sobre a noção de “moral de grupo”, verificar: DURKHEIM, Émile. Lições de Sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 01-59.
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chances de erro, que a riqueza e a formação sejam pontos de diferenciação social importantes
naquele contexto. Igualmente a ligação das pessoas com o mundo da política, do trabalho e
com o campo também são fatores de diferenciação importantes. Embora se trate de uma
sociedade que tenha como principal ponto de sustentação a produção rural, existiam
diferenças de status social entre aqueles que viviam nas áreas rurais e praticavam uma
agricultura de subsistência com produção de algum excedente, daqueles que viviam nos
pequenos centros urbanos e eram os responsáveis pela comercialização desse excedente,
mesmo que eles não fossem muito mais ricos do que os habitantes do campo. Da mesma
forma, era outro o lugar e o status social ocupado pelos grandes proprietários que viviam nas
sedes dos municípios e tinham suas terras trabalhadas por peões ou agregados, bem como
também existiam questões de raça e cor definindo a relação entre as pessoas.
Para uma noção mais precisa do quanto é difícil estabelecer critérios fechados a
classificação aqui sugerida é importante destacar que existiam vários elementos que vão para
além da riqueza definindo como se constituíam as relações sociais naquele contexto, por
conseguinte, os possíveis vínculos identitários. Em 17 de fevereiro de 1923 ocorreu um fato
na cidade de Santo Ângelo demonstrativo disso. Trata-se de um baile que aconteceu nesse dia
na sede do “Club Gaúcho”, importante centro onde se reunia a “alta sociedade” santo-
angelense. Segundo consta na denúncia crime prestada por Perpedigna Rodrigues Camargo
ela estava no baile acompanhada de mais algumas senhoras quando foi insultada por Clarinda
Lourega e Eloyna Lourega Pinheiro. A queixosa conta que estava no “Toillet do Club”, onde
também se encontravam as acusadas, quando uma delas “como que chamando a atenção das
circunstantes, exclamou: ‘Mas aquela menina com a fantasia de Fulana!...’. Ao que a queixosa
acrescentou: ‘Talvez seja, mas não há só uma Maria na terra’”30. Em conseqüência da
resposta, a acusada Eloyna disse a Perpedigna “em tom rude e áspero: ‘Não é conversa
contigo negra à toa!’”. Na seqüência, depois de ser repreendida por uma de suas
companheiras, Eloyna continua referindo-se a Perpedigna nos seguintes termos: “Isso é uma
negra sem importância... que em São Luiz [município situado próximo a Santo Ângelo] não
era da sociedade e é até um desaforo se achar metida na sociedade desta vila... que era um
resto dos negros”31. É arriscado afirmar, com plena certeza, que a discussão tenha se
desenvolvido exatamente nos termos que constam na denúncia, já que ela foi escrita pelo
advogado da ofendida, o qual ainda faz o seguinte destaque ao final do texto: “exmo. Juiz!... a
honestidade, a honra, a dignidade e valor social da queixosa não devem, não podem ser assim
30 APERGS. Processos Crime 1.562. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1923. Maço 56. 31 Idem, ibidem.
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tão grosseiramente atacados, atassalhados em uma reunião da ELITE social desta nobre
terra”32 (grifo no original). No entanto, também não é impossível que o conteúdo da denúncia
seja fiel ao fato que descreve, visto o modo como a questão racial era tratada na época33.
O caso é levado a julgamento e, em 16 de março de 1923, o juiz alegando uma série de
problemas no processo considera a queixa improcedente. Como fica visível, o acontecimento
refere-se a uma situação onde a “elite social desta nobre terra” – para continuar usando os
termos do advogado da queixosa – estava reunida em festa, ou, nas palavras de Eloyna, estava
reunida a “sociedade” da vila de Santo Ângelo que freqüentava o Club Gaúcho. Ambos,
advogado e acusada, mostram a existência de uma diferenciação bem clara no contexto local,
ou seja, existe uma sociedade e aqueles que não fazem parte dela. Certamente Eloyna
empregue o termo sociedade como sinônimo de civilização. Assim, aqueles que como ela
pertenciam a sociedade, deviam se comportar de acordo com certos valores e preceitos, tais
como não ir a um baile da elite vestida com uma fantasia que tinha sido usada por outra
pessoa em um baile passado. Da mesma forma, o fato de Eloyna reconhecer que tal fantasia já
havia sido utilizada em um momento anterior e expressar esse reconhecimento indica também
que existia uma autovigilância exercida pelos integrantes dessa sociedade definindo o
comportamento de seus integrantes, bem como daqueles que gostariam de participar do grupo.
Do mesmo modo, carregar fisicamente algumas características também definia o
pertencimento ao grupo. No caso, ser da sociedade, para Eloyna, está muito vinculado a ser da
cor branca. Embora, a questão da ofensa racial não seja profundamente tematizada ao longo
do processo e só apareça como mais um elemento a comprovar que as acusadas haviam
ofendido a honra de Perpedigna é possível concluir que naquele contexto ser negro e
pertencer a elite são duas coisas que não se casam muito bem, o que não quer dizer que era
impossível a um indivíduo de cor participar da sociedade, mas também não era tranqüilo,
tanto para ele como para os seus outros relacionais34.
Uma das características das relações vividas entre o grupo “mais rico” e o “mais
pobre” é que ela se definia como uma relação de dominação, a qual descansava, entre outros
fatores, sob a impossibilidade de um representante do grupo “mais pobre” ocupar um lugar de
poder dentro da estrutura do Município ou do Estado e usufruir, em seu nome e em nome
32 Idem. 33 Esta problemática será aprofundada no próximo capítulo. 34 Para aprofundar as discussões sobre esta questão, consultar: NOGUEIRA, Oracy. Preconceito de marca: as relações raciais em Itapetininga. São Paulo: EDUSP, 1998.
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daqueles que representava, desse poder e suas benesses35. Vários fatores concorriam para isso:
o voto a descoberto, a proibição do voto e também da elegibilidade aos analfabetos, bem
como o forte controle exercido sobre a máquina administrativa36. Ou seja, a proximidade do
grupo “mais rico” com o Estado e seus aparelhos, somada a sua situação econômica e a sua
atuação política, são elementos centrais a definir e a manter a relação entre os dois grupos nos
termos da desigualdade e da dominação. Do mesmo modo, o fato de os “mais pobres”
participarem de forma muito modesta na distribuição da riqueza, de muito dificilmente
ocuparem cargos políticos e de entrarem em contato com o Estado, na maioria das vezes, em
função de algum conflito, também condicionava a desigualdade e a própria dominação.
Todavia, isso não quer dizer que havia uma dominação fechada, pelo contrário,
embora as relações entre os grupos fossem desiguais e existisse toda uma estrutura de
favorecimento aos econômica e politicamente mais fortes, havia trocas e, nas suas relações,
ambas as partes se influenciavam. Assim, é importante destacar que internamente não
existiam espaços seguros para consensos e, no contexto da Primeira República, como mostra
Sônia Mendonça em sua análise sobre o papel da Sociedade Nacional de Agricultura: mesmo
dentro dos grupos economicamente dominantes, existiam disputas dificultando o
estabelecimento de unidades fechadas e coesas de classe37. Nesse sentido, o interesse aqui é
visualizar as várias facetas da sociabilidade local objetivando pensar a região serrana e seus
habitantes a partir da idéia do espaço social como um
35 Exceção deve ser feita a alguns imigrantes que conseguiram realizar carreira política. Um exemplo da participação dos imigrantes na política estadual é a eleição de dois representantes da zona colonial para deputados já na primeira legislatura em 1891, Luís Englert e João Steenhagen, ambos comerciantes de origem alemã. Contudo, a atuação dos representantes coloniais nos quadros da política oficial rio-grandense se deu mais em “defesa do imigrante comerciante ou industrial do que a do camponês”. Da mesma forma, sua representatividade numérica no lesgislativo, ao longo de toda a Primeira República, era muito pequena. Cf.: PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imigrante na política Rio-Grandense, p. 170. In.: DACANAL, José Hildebrando (Org.). RS: imigração e colonização. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980, p. 156-182. 36 Para conhecer mais detalhadamente como funcionava a máquina eleitoral no Rio Grande do Sul da Primeira República, ver: TRINDADE, Hélgio; NOLL, Maria Izabel. Rio Grande da América do Sul: partidos e eleições (1823-1990). Porto Alegre: Editora UFRGS: Sulina, 1991. Ver também, NICOLAU, Jairo. História do voto no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. 37 Em O ruralismo brasileiro, Mendonça preocupa-se, a partir do uso de um referencial teórico centrado no materialismo histórico, em entender a “classe dominante” e suas ações e relações durante a Primeira República. Nesse aspecto, o estudo permite conhecer profundamente as relações sociais dentro do grupo, suas fissuras e ligações com o Estado. A autora desenvolve uma rigorosa análise a respeito das divergências existentes dentro da “classe dominante” brasileira e, com base nessa constatação, pensa o desenvolvimento das políticas agrárias e do próprio Estado durante o período. Para tanto, apropria-se do conceito de hegemonia desenvolvido por Antônio Gramsci e centra sua preocupação no exame do papel que teve a Sociedade Nacional de Agricultura (SNA) como elemento de congregação do que ela denomina “fração dominada da classe dominante”. Cf.: MENDONÇA, Sônia Regina de. O ruralismo brasileiro (1888-1931). São Paulo: Editora HUCITEC, 1997. Conferir também MENDONÇA, Sônia Regina. Estado, agricultura e sociedade no Brasil da primeira metade do século XX. In.: GIRBAL-BLACHA, Noemi; VALENCIA, Marta (Orgs.). Agro, tierra y política. Debate sobre la historia rural de Argentina y Brasil. Argentina: Red de editoriales universitárias, 1998, p. 131-163.
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espaço multidimensional, conjunto aberto de campos relativamente autônomos, quer dizer, subordinados quanto ao seu funcionamento e as suas transformações, de modo mais ou menos firme e mais ou menos direto ao campo de produção econômica, mas no interior de cada um dos subespaços, os ocupantes das posições dominantes e os ocupantes das posições dominadas estão ininterruptamente envolvidos em lutas de diferentes formas sem por isso se constituírem necessariamente em grupos antagonistas38.
Um dos pontos a ser priorizado na análise é o de que a relação entre os dois grupos
define-se como uma relação de poder e, em sociedade, existem “diferentes modos de poder,
cada um deles concernente a um nível distinto de relações sociais”39. Por conseguinte, deve-se
assinalar que existem dessemelhanças entre os contatos que os “mais pobres” mantinham
com os “mais ricos” e aqueles que eles mantinham no interior de suas fronteiras. Ambas
situações envolvem relações de poder e devem ser levadas em conta na análise do modo como
os grupos configuravam sua sociabilidade e pensavam a si próprios. Assim, o estudo dessas
relações será realizado levando em conta que o poder, mesmo o resultante da dominação,
produz coisas, induz ao prazer, forma saberes, produz discursos, bem como é “uma rede
produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que
tem a função de reprimir”40.
Todavia, se diferentes formas de relações sociais repercutem em diferentes modos de
poder, algumas dessas relações têm características de dominação e, como lembra Max Weber,
não envolvem apenas a situação econômica dos grupos, mas a dominação expressa-se quando
a vontade manifesta – mandado – do “dominador” ou dos “dominadores” busca influenciar as
ações de outras pessoas do “dominado” ou dos “dominados”. De fato, as influência “de tal
modo que estas ações, num grau socialmente relevante, se realizam como se os dominados
tivessem feito do próprio conteúdo do mandado a máxima de suas ações (‘obediência’)”41.
Logo, em termos weberianos, para funcionar a dominação tem de ser ou, pelo menos, parecer
ser legítima. Entretanto, o fundamento da legitimidade não acontece de forma unilateral, uma
vez que as vontades dos envolvidos nas relações podem se influenciar e, da mesma forma,
deve-se estar atento para o fato de que o dominante em uma determinada relação social pode
ser dominado em outra.
38 BOURDIEU, Pierre. Espaço social e gênese das “classes”. In.: ___. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrnad Brasil, 2005, p. 153. 39 WOLF, Eric. Encarando o poder: velhos insights, novas questões, p. 325. In.: BIANCO-FELDMAN, Bela; RIBEIRO, Gustavo Lins (Orgs.). Antropologia e poder: contribuições de Eric R. Wolf. Brasília: UNB, São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo e UNICAMP, 2003, p. 325-345. 40 FOCAULT, Michel. Verdade e poder. In.: ___. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 08. 41 WEBER, Max. Economia y sociedad: esbozo de sociologia compreensiva. México: Fondo de Cultura Econômica, 1964, p. 699.
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Estes são pontos importantes que, em alguns casos, ainda não foram profundamente
explorados. Algumas análises sobre a constituição do Estado, das políticas públicas colocadas
em prática e de alguns acontecimentos ocorridos no Rio Grande do Sul da Primeira República
insistem em apresentar os dominados como espectadores passivos do processo. Sofredores
imóveis de uma dominação que é legítima porque se autojustifica a partir do controle do
poder exercido por aqueles que dominam. Da mesma forma, tais pesquisas definem que a
legitimidade é essencial para existência da dominação, mas não se preocupam em pensar
como ela e a própria dominação são vivenciadas42.
Assim, considerar a legitimidade da dominação como fator importante para melhor
compreendê-la não deve anular o fato de que existem momentos em que ela é questionada ou
não é aceita. Encontrei alguns processos crime que trazem exemplos representativos de como
a dominação era questionada. Um deles, datado de 28 de dezembro de 1917, narra um
acontecimento que se deu no distrito de Santa Rosa, município de Santo Ângelo. A situação
ajuda a compreender melhor como a resistência a uma dominação que se pensa ou, no
mínimo, se quer legítima por parte do dominante acontece na prática.
De acordo com a queixa crime, feita por Dinarte Eugênio de Mello (casado, agricultor
e domiciliado em Santa Rosa), ele havia contratado um peão de nome Maurílio Borges (não
qualificado no processo) para trabalhar por dia. Segundo Dinarte, Maurílio era “acostumado a
sofrer os maiores horrores da vida”, situação que se modificou após ter sido contratado por ele
denunciante: o peão “sentia-se bem alegre, pois além de ganhar a alimentação e bons tratos
tinha 9:000 réis mensais, quando era costumeiro viver por um prato de comida”43. O queixoso
continua seu relato e conta que um certo dia Maurílio “saiu de seu patronato e pedindo-me
dinheiro para comprar camisa, com ele embebedou-se”44. Após esse fato, Maurílio retirou-se
da casa de Dinarte, contudo, os dois tornaram a se encontrar em uma picada, momento em que
Maurílio para “compensar os benefícios que lhe prestei”, afirma Dinarte, tentou agredir seu
ex-patrão com uma faca. Dinarte consegue reverter a situação e ao invés de ser agredido
acaba ferindo Maurílio, o qual procurou o inspetor do quarteirão e prestou denúncia contra
Dinarte. Alguns dias depois, Dinarte e o inspetor de quarteirão, um certo “senhor Belém”, se
encontram e o último dá voz de prisão a Dinarte, disso resulta um confronto entre os dois, no 42 Exemplo desse tipo de interpretação pode ser encontrado em TARGA, Luiz Roberto Pecotis. Elites regionais e formas de dominação. In.: ___. (Org.).Breve inventário de temas do sul. Porto Alegre: UFRGS; FEE; UNIVATES, 1998, p. 63-85 e WASSERMAN, Cláudia. O Rio Grande do Sul e as elites gaúchas na Primeira República: guerra civil e crise no bloco do poder. In.: GRIJÓ, Luiz Alberto; KÜHN, Fábio; GUAZZELLI, César; NEUMANN, Eduardo (Orgs.). Capítulos de história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2004, p. 273-291. 43 APERGS. Processo Crime 1.471. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1918. Maço 50. 44 Idem, ibidem.
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qual o inspetor dispara dois tiros, mas não acerta o alvo. Diante de tudo, o patrão ofendido
presta queixa crime e requer que o inspetor seja julgado, considerado culpado e condenado
pelo uso indevido da violência. Testemunhas são arroladas e ouvidas, mas não esclarecem a
questão e, nos seus depoimentos, não trazem novidades sobre os confrontos entre o peão, o
patrão e o inspetor. Em 26 de julho de 1918, o juiz considera que faltavam elementos que
comprovassem a queixa e absolve o inspetor acusado.
As expectativas que Dinarte demonstrava ter em relação a Maurílio evidenciam que,
naquele contexto, “ajustar-se” como peão ou, nas palavras de Dinarte, entrar no “patronato”
de alguém significava reconhecer a autoridade dessa pessoa, bem como reconhecer os
benefícios que poderiam ser auferidos da situação. Ademais, as ações de Maurílio,
demonstram que as coisas não precisavam se desenvolver necessariamente nestes termos e
que, dependendo da situação, o próprio aparato legal poderia ser utilizado em benefício
próprio como fica evidente na atuação do inspetor de quarteirão. Como veremos a seguir, o
inspetor era a autoridade maior nas pequenas comunidades interioranas, uma vez que ele era
nomeado diretamente pelo intendente do município ou pelo subintendente do distrito para ser
responsável pelo controle da ordem local.
Outro elemento presente no processo que explica quão complexas são as situações que
envolvem a relação entre grupos sociais diferenciados aparece no depoimento de uma das
testemunhas. Josias da Motta Ribeiro (24 anos de idade, lavrador, solteiro, residente em Santa
Rosa), afirma que estava próximo ao local em que ocorreu o conflito entre o inspetor de
quarteirão e Dinarte, contudo, diante da possibilidade de confronto entre os dois “saiu
incontinenti e foi para trás de casa para não presenciar algum conflito que se pudesse dar”45.
Existem algumas explicações possíveis que podem ser dadas a essa atitude: a primeira é que
Josias buscou escapar da possibilidade de se ver atingido por uma bala perdida, a segunda é
que não queria se envolver no confronto, a terceira pode ser a de que, em determinadas
situações, o melhor é fingir-se de cego mesmo e, por fim, ele pode ter presenciado tudo, mas
para não tomar partido preferiu dizer não ter visto nada. Em outras palavras, qualquer das
opções que justifiquem a atitude de Josias aponta para sua racionalidade.
A relação estabelecida entre Dinarte e Maurílio, assim como os outros casos parecidos
e que serão trabalhados no decorrer do estudo, podem ser interpretados como constituindo
uma relação de patronagem. Por patronagem entendo aqui um conjunto de relações cuja
marca mais característica é a existência de assimetria entre os envolvidos. De acordo com
45 Idem.
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Julian Pitt-Rivers, por exemplo, a patronagem é uma relação de “amizade desnivelada”46, ou
seja, é uma relação em que o favorecido tem pouco a oferecer em troca do favor recebido,
mas efetivamente o que ele tem a oferecer é importante no sentido de manter a própria
relação.
Segundo Eric Wolf, os patrões, devido a sua posição social, tem o papel de fazer a
conexão entre “indivíduos orientados para a comunidade que querem estabilizar ou melhorar
suas chances na vida, mas que não têm segurança econômica e as conexões políticas”47, assim
precisam de pessoas melhor orientadas para o extralocal: a nação, o Estado. Ponto de vista
que é partilhado por Sydel Silverman para quem um dos principais papéis do patrão é atuar
como um mediador entre aquilo que acontece na realidade local da aldeia ou da vila
camponesa e aquilo que constitui a realidade própria da nação48. Numa interpretação não
muito diversa, Jeremy Boissevain, mostra que as relações de patronagem devem ser
compreendidas como um sistema paralelo ao sistema estatal. Em outras palavras, nas
sociedades marcadas pelo desnível social uma das funções da patronagem é permitir que as
pessoas situadas em posições mais distanciadas do Estado tenham acesso facilitado a seus
aparelhos. A mediação é feita por “alguém” que esteja mais bem situado em relação ao
Estado, por sua vez, esse “alguém” pode exigir certos serviços em troca do favor prestado49.
Para tornar tais considerações mais claras volto ao caso de Dinarte e Maurílio. Embora
não se trate especificamente da mediação entre uma situação local com a extralocal, no caso
verifica-se a existência de elementos característicos da patronagem. Dessa forma, no
momento em que Maurílio desafiou seu patrão não fez mais do que questionar a assimetria
que é própria das relações patrão/cliente. Desnível que Dinarte não esperava ver questionado.
Além disso, quando presta queixa ao inspetor de quarteirão, Maurílio estava buscando auxílio
em outra pessoa que também poderia exigir algo em troca pela intermediação. Da mesma
maneira, quando Josias em seu depoimento diz que diante da possibilidade de conflito entre o
inspetor de quarteirão e Dinarte optou por não presenciá-lo não estava mais que evitando
qualquer possibilidade de se ver prejudicado perante uma necessidade futura. Fato que nos
leva a uma outra interpretação, qual seja, a de que os grupos que têm condições econômicas e
sociais escassas percebem que o mundo e as coisas desejadas da vida “como a terra, a saúde, a
riqueza, a amizade, o amor, a virilidade, a honra, respeito e status, poder e influência,
46 PITT-RIVERS, Julian. The people of the Sierra. London: The University of Chicago Press, 1971. 47 WOLF, Eric. Aspectos das relações de grupos em uma sociedade complexa: México, p. 88. In.: FELDMAN-BIANCO, Bela; RIBEIRO, Gustavo Lins. Idem, op. cit., p. 73-93. 48 SILVERMAN, Sydel. The community-nation mediator in traditional central Italy. In.: POTTER, Jack. M., DIAZ, May N., FOSTER, George M. Peasant Society: a reader. Boston: Little Brown, 1967, p. 279-293. 49 BOISSEVAIN, Jeremy. Patronage in Sicily. MAN, 1(1): 18-33, 1966.
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seguridade e proteção, existem em uma quantidade finita e limitada e são sempre escassos”50,
daí a importância que as relações de patronagem têm nesses contextos, uma vez que elas,
muitas vezes, são uma forma segura e rápida de alcançar alguns desses interesses.
Uma outra situação que demonstra que as relações que envolvem dominantes e
dominados não se constituem em vias de mão única é expressa no relatório da Diretoria de
Terras e Colonização de 1926. Nesse caso trata-se da relação Estado/nacionais. No relatório, o
diretor da DTC, Carlos Torres Gonçalves, sublinhava que uma das principais metas da
diretoria era “provar que os nacionais são suscetíveis de se fixarem rapidamente ao solo e
adquirirem hábitos regulares de trabalho”51. Contudo, muitas modificações tiveram de ser
feitas para que este objetivo fosse minimamente cumprido devido ao modo como os nacionais
relacionavam-se com a idéia de trabalho, bem como a forma que eles recebiam as políticas de
Estado. Para dar conta de mostrar que os nacionais poderiam ser “úteis socialmente”, Torres
Gonçalves registra em seu relatório que, entre outras coisas, foi necessário modificar o regime
de vencimentos dos chefes de colônia, extinguir as porcentagens advindas aos funcionários
públicos pela cobrança da dívida colonial, facilitar o pagamento de terras, tornar os contatos
da administração das colônias com os nacionais mais diretos e prolongados, além de exercer
uma ação protetora.
Por fim trago um último exemplo esclarecedor e demonstrativo de que na região
serrana existiam espaços importantes de resistência e que ela poderia adotar formas diversas.
Em 14 de dezembro de 1908, Joaquim Antônio Antunes Ribas, Pedro Basílio Severo,
Anacleto José Severo, Maria da Conceição Antunes Ribas, Thacila Antunes Ribas e Manuel
Marques de Meneses prestam queixa crime contra Francisco Ávila dos Santos, Felisbina
Pereira da Silva e Hermógenes Pereira da Silva (filho de Felisbina). Consta na queixa que
durante o mês de novembro de 1908, no terceiro distrito de Santo Ângelo, houve uma
“verdadeira derrama de escritos injuriosos, vulgo pasquins, contra famílias respeitáveis e, de
fato, honestas”52. O autor de tais pasquins foi Francisco Ávila, o distribuidor Hermógenes, e
Felisbina, de acordo com a queixa, foi a mandante e coordenadora de tudo. Na denúncia
também consta que em decorrência dos pasquins uma das ofendidas, Maria da Conceição,
50 FOSTER, George M. La sociedad campesina y la imagen del bien limitado, p. 64-65. In.: BARTOLOMÉ, Leopoldo J., GOROSTIAGA, Enrique E. Estúdios sobre el campesinado latinoamericano: la perspectiva de la antropologia social. Argentina: Ediciones Periferia SRL, 1974, p. 61-90. 51 GONÇALVES. Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 442. In.:OLIVEIRA, Sergio Ulrich de. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros presidente do Estado do Rio Grande do Sul pelo Dr. Sergio Ulrich de Oliveira Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas em setembro de 1926. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, Volume 2, 1926, P. 409-470. (AHRS - OP. 83). 52 APERGS. Processo Crime 1.347. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1908. Maço 45.
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havia ficado doente e outra, apenas identifica como “moça”, havia falecido. O processo crime
não permite esclarecer profundamente o caso, pois as testemunhas arroladas apenas
confirmam a versão da queixa e aos acusados não é dada palavra. Contudo, o referido
pasquim é juntado aos autos e a partir dele é possível ter uma idéia melhor do que se tratava:
O Sñr Cidadão53
O Cidadão Jango Riba No comércio é um graúdo
E o infame proceder É de um cachorro lanudo.
1 A Senhora dona tuca
É da mesma liberdade Ela junto com as filha Tudo cão da pá virada
2 Tudo cão da pá virada Tudo cão puta e cadela
Que os que não serve para as filha Sempre que serve para ela
3 Sempre que serve para ela Não gostam de perder nada Em qualquer fachinalzinho
Estão de anca bolhada
4 Em qualquer fachinalizinho
Estão de anca bolhada Porque o Senhor Julhomaia
É pastor da manada 5
O Jango toca ele de casa Pensando de ele saí
Mais para mode a Conceição Ele sai e tende vim
6 A Conceição quer ser uma dona
No fim é uma lijongera Foi achado co Gervásio Debacho da laranjera
7 A Carcidia quer ser uma fror
Que no jarro foi prantada Contai quem casar com ela Que é uma fror desfolhada
8 Que é uma fror desfolhada
Conta quem assistir ela Que as dez horas da noite
E lhe tirou pela janela
9 São falsos são faladores
Porcos de natureza E a gente do Manoel Marques
Estão na mesma carreira 10
Estão na mesma carreira Daqui pra lá e de lá pra cá
Quando for no fim do tempo Avemos de ver em que dá
11 A picucha e o neném
Estão de carijo armado Mais o que já diz o povo
É que o carijo já está canchiado 12
Vou dar fim neste papel Porque chega de fala
Eles mesmo são curpados Pois quem mandam no lugar.
É possível verificar que o conjunto das pessoas arroladas nos versos era composto por
indivíduos vinculados ao comércio, tinham um certo poder social, pois no fim o autor deixa
claro que a condição dos personagens do pasquim é a daqueles que “mandam no lugar”.
Também é visível que a maior parte das acusações busca ferir a honra dos envolvidos e
elementos como a conduta da mulher, sua virgindade principalmente, são constantemente
acionados. Registrei acima que não encontrei no processo o motivo que levou os três acusados
a comporem o folheto, consta apenas que Francisco e Hermógenes haviam reconhecido a
autoria dele, que Felisbina encontrava-se doente e, por isso, não pode ir ao tribunal. Quanto ao
julgamento, ele acontece em 26 de dezembro de 1908 e os três acusados são condenados a
seis meses de prisão e ao pagamento de uma multa de 400 mil réis cada um. Fato um tanto
interessante visto que, como veremos em alguns processos, casos mais violentos e que a
53 Idem, ibidem.
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autoria do crime é efetivamente reconhecida não são julgados com tanto rigor e, em grande
parte deles, os responsáveis são absolvidos. Enfim, apenas optei por incluir os versos de
Francisco para mostrar uma das alternativas políticas que os grupos economicamente menos
favorecidos tem de contestar a ordem responsável por sua condição e que a idéia de
imobilidade e resignação estão longe de poderem explicar a vida dessas pessoas54.
2.3 REPRESENTAÇÕES: OU SOBRE AQUELES QUE “SÃO VADIOS E DE MAUS COSTUMES”
Sem a audácia pioneira dos mamelucos, “irradiando os bandeirantes sertão adentro”, o território do Rio Grande atual não seria Brasil, mas província do antigo Vice-Reinado do Prata. Paraguai, Uruguai, Argentina? Não sei. Brasil é que não seria.
João Neves da Fontoura. Memórias.
Uma das características do primeiro período republicano brasileiro foi a produção de
um conjunto de obras que se preocuparam em descrever e pensar o Brasil. Livros como Os
Sertões de Euclides da Cunha, América Latina: males de origem de Manuel Bonfim, entre
outros, datam do início do século XX e expressam algumas das opiniões que a Sociedade
possuía a respeito de si mesma, especialmente das populações que viviam no interior do país.
Já registrei o quanto as descrições da região serrana escritas no período por intelectuais que ali
viviam – Hemetério Velloso da Silveira – ou por viajantes que por ali passavam –
Maximiliano Beschoren – fazem ecos dessa produção “nacional”, principalmente no que diz
respeito as suas ponderações sobre as populações rurais. Considero que estudar tais opiniões e
os seus motivos é elemento fundamental para compreender como se constituíam as relações
sociais que caracterizaram o povoamento. Nesse sentido, mais do que simples opiniões, elas
são representações e, como tal, lembra Pierre Bourideu, tem o caráter de ser
atos de instituição mais ou menos fundados socialmente, através dos quais um indivíduo agindo em seu próprio nome ou em nome de um grupo mais ou menos importante numérica e socialmente quer transmitir a alguém o significado de que ele possui uma dada qualidade, querendo ao mesmo tempo cobrar de seu interlocutor que se comporte em conformidade com a essência social que lhe é assim atribuída55.
54 Sobre o tema da resistência e o seu papel na vida cotidiana dos grupos camponeses, ver: SCOTT, Jim. Everday forms of peasant resistence. In.: The Journal of Peasant Studies, v. 13, n. 2, 1986, p. 05-35. Cosultar também, SCOTT, James C. Los dominados y el arte de la resistência: discursos ocultos. México: Ediciones Era, 2000. 55 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: EDUSP, 1996, p. 82.
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Dessa forma, considero que além de buscar definir uma identidade às populações
rurais, as representações presentes nos documentos e em algumas publicações da época,
especialmente àquelas que se referem mais diretamente a região sob análise, procuravam
também definir como as pessoas à quem elas se destinavam deveriam se comportar e,
particularmente, lembrá-las o lugar social a que pertenciam. Embora tal objetivo fique visível
na leitura das diferentes fontes, cabe ressaltar que isso não significava que estas
representações conseguiram atingir seu conteúdo pleno, pois foram questionadas por aqueles
a quem se destinavam. Elas não eram objeto de consenso, tanto por parte dos que “as
formulavam” como daqueles a quem referiam-se. Em outros termos, como parte da vida
social tais representações eram objeto de disputa e, portanto, não podem ser tomadas
isoladamente, mas devem ser analisadas como constituintes da e constituídas na figuração
social em que emergiram.
Tais representações encontram existência nos documentos por meio do uso de palavras
como colono, nacional, matuto, caipira. Termos complexos, de conteúdo muitas vezes
ambíguo e, em certos casos, contraditório e que têm a característica de carregarem tensões,
como é o caso do adjetivo colono, o qual faz referência a um indivíduo apresentado como um
trabalhador pacífico e morigerado, mas, dependendo da situação e, às vezes, do
comportamento daqueles a quem esta palavra buscava designar, o colono também é descrito
como uma pessoa portadora de um traço negativo, uma vez que é um estrangeiro que devia
ser assimilado para bem da Nação e da formação de uma almejada identidade nacional. Da
mesma forma, quando empregada, a palavra nacional servia para nominar indivíduos
caracterizados como vadios, mas que, em comparação ao colono, possuíam os valores do
patriotismo e carregavam a positividade de serem desbravadores natos, graças aos quais o
Brasil carrega sua enorme extensão territorial.
Embora seja difícil encontrar exemplos práticos da aplicação dessas diferenciações no
contexto da região serrana pelos grupos a quem elas faziam referência, é possível verificar
que o estabelecimento de fronteiras de relação eram amplamente utilizados. No município de
Cruz Alta, por exemplo, aconteceu um fato descritivo da constatação. Em janeiro de 1884, o
lavrador Manuel Corrêa de Moura – vulgo Maneco Biriba – envolve-se numa briga com o
curtidor João Hermes. Do conflito, resulta a morte do último. O motivo da desavença é um
encontro entre os dois, no qual Hermes dirigindo-se a Corrêa disse: “‘você prometeu acabar
com os alemães, eles aqui vão’, ao que respondeu Manuel Corrêa: ‘eu não prometi isso, mas
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sou homem’” 56. Em seguida, Manuel fez uso de um facão que trazia consigo e agrediu
Hermes que, por sua vez, lançou mão de uma pistola. Corrêa fez o mesmo e ambos
dispararam reciprocamente dois tiros, “sendo que o disparado por Corrêa acertando derrubou
por terra o mencionado Hermes”57.
O acontecimento é ilustrativo do quanto as relações sociais são complexas. Entre
outras coisas, mostra que pertencer a um grupo e se identificar com ele significa ser julgado e
julgar a partir dos padrões e valores que o grupo compartilha, embora não necessariamente
tais valores sejam dominantes em um contexto mais abrangente. Assim, quando Hermes lança
sua frase, ela soa, aos ouvidos de Corrêa, como uma provocação, a qual tem sentido ofensivo
dentro daquela determinada situação e, igualmente, foi possível na medida em que existia um
“outro”, no caso, os alemães. Em suma, quando Hermes dirige-se a Corrêa e cobra uma
promessa não cumprida, independentemente se ela tenha sido feita ou não, ele estava
desafiando seu interlocutor e infringindo um valor caro dentro daquela figuração social: o de
que o desafio pede uma resposta à altura e, invariavelmente, tal resposta é a ofensa física.
Além disso, a cobrança que Hermes faz a Corrêa sobre os alemães indica que existia uma
clivagem definindo e modelando a forma como se configuravam as relações sociais e,
também, um dos critérios de pertencimento e de identificação partilhado entre os habitantes
da região, bem como evidencia o quanto a presença de imigrantes naquele espaço era motivo
de insatisfação entre as populações que ali já residiam.
Exemplos dessas diferenciações podem ser facilmente encontrados em livros, artigos e
descrições produzidas na época. De uma maneira geral, as publicações do período – neste
caso refiro-me mais especificamente às obras que compõem o denominado pensamento social
brasileiro, no qual se inscrevem autores como Sílvio Romero, Oliveira Vianna, Paulo Prado,
Euclides da Cunha, Manuel Bonfim, Alberto Torres, Monteiro Lobato e outros –
preocuparam-se com aspectos vinculados a identidade nacional e tinham como centro de sua
atenção o “povo brasileiro”. Dessa preocupação e da tentativa de aplicar algumas teorias
comuns ao pensamento social da época – o racialismo, principalmente –, mostra Márcia
Naxara, nasceram oposições que são fundamentais para compreender o período e o
significado das representações veiculadas pelos pensadores de então:
a oposição civilização/barbárie, tomada como chave para compreensão da diferenciação entre os povos, levou à identificação de um segundo par daí
56 APERGS. Processos Crime 1.973. Cartório Civil Crime. Município de Cruz Alta, 1884. Maço 50. 57 Idem, ibidem.
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derivado, progresso/atraso que, por sua vez, conduziu a reflexões sobre uma terceira oposição, elite/povo. O povo brasileiro, visto por suas elites, aproximava-se do atraso e da barbárie, enquanto que o que se tinha em vista era alcançar o progresso e a civilização. Tal questionamento acabou levando a uma identificação do brasileiro pela ausência do que se esperava ele pudesse ser, ou seja, por aquilo que lhe faltava58.
Um exemplo do modo como esse tipo de interpretação foi aplicado é o livro
Populações Meridionais do Brasil59, de Oliveira Vianna, escrito em 1918. Nele, o autor
estabelece que no processo de formação do Brasil aturam dois grupos diferenciados: um deles
formado por “grupos familiares superiores”, cuja característica principal era o patriarcalismo
comum ao latifúndio. E um outro: a “família plebéia”, cujo principal traço era a sua
instabilidade proveniente da sua formação: “a mancebia, a ligação transitória, a poliandria
difusa”60. Este segundo grupo, de acordo com Vianna, compõem o “baixo povo dos campos”
ou “plebe rural” ou “baixo povo rural” é formado em sua maioria por mestiços. Eles também
são chamados de tabaréus, caipiras, matutos, mas tais termos são utilizados, de acordo com
Vianna, apenas pelos homens da cidade para troçar dos “homens de pura formação rural”, ou
seja, todos aqueles que vivem no interior, inclusive fazendeiros.
Para Vianna, o mestiço era um nômade, “liberto do trabalho rural, egresso dos
engenhos, mal fixo a terra, a sua instabilidade é evidente”61. Em conseqüência, transformava-
se facilmente no guerreiro, no sertanista, cuja existência interessa ao senhor rural, pois é esse
homem o responsável pela defesa de seus domínios. Da mesma forma, o crescente aumento
da população de mestiços exige a expansão do domínio territorial. Coube a eles no período
colonial, o papel de atuar nas bandeiras e serem os responsáveis pela incorporação de novos
territórios62. Convém ressaltar que essa idéia não era estranha nos escritos que tratam mais
diretamente sobre Rio Grande do Sul, publicados durante a Primeira República. Busquei
evidenciá-la ao usar como epígrafe deste tópico uma frase retirada do livro de memórias de
58 NAXARA, Márcia Regina Capelari. Estrangeiro em sua própria terra: representações do brasileiro, 1870/1920. São Paulo: Annablume, 1998, p. 18. 59 VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil: história, organização e psicologia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, vol. 1, 1938. 60 Idem, p. 45-46. 61 Idem, p. 80-82. 62 Outro pensador da época que também utiliza a idéia de que o brasileiro nato foi o verdadeiro responsável pela expansão territorial do Brasil foi o Conde de Afonso Celso. Em 1900, Afonso Castro publicou o livro Porque me ufano de meu país. Nesse texto, partindo de argumentos baseados em teorias raciais, o conde escrevia que os mestiços, identificados no livro com as palavras cabra, caboclo, mameluco e cafuzo “não prestam a serviços sedentários”. Contudo, eram exímios exploradores da riqueza pastoril, eram os vaqueiros sóbrios, saudáveis e desinteressados; os canoeiros e jangadeiros do norte capazes de peripécias nos rios mais caudalosos; os cearenses adaptáveis aos mais rudes climas; os caipiras independentes e fortes; os gaúchos aventureiros, audaciosos e astutos. Cf.: CELSO, Afonso. Porque me ufano de meu país. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1997.
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João Neves da Fontoura, um dos políticos rio-grandenses mais importantes no período.
Fontoura, além de ser eleito muitas vezes para os cargos de deputado estadual e federal
durante a Primeira República, ocupou em diferentes legislaturas o cargo de vice-presidente do
Estado e de intendente no município de Cachoeira do Sul e, no referido trecho de suas
memórias, deixa clara sua concepção de que se não fossem os mamelucos, ou seja, os
mestiços, o Rio Grande do Sul não seria Brasil63.
No caso da região serrana é possível verificar a existência de interpretações
semelhantes a realizada por Oliveira Vianna e nelas também está presente o esforço de
“identificação do brasileiro pela ausência”, de que trata Naxara. Evaristo de Afonso Castro,
por exemplo, em sua Notícia descritiva64 publicada em Cruz Alta em 1887, escreve que, em
geral, o “povo” da região era composto de indivíduos “indolentes e extraordinariamente
preguiçosos”. Em contrapartida, apresenta a “classe comercial” como exceção, pois era “forte,
ativa e moralizada, gozando de crédito e conceito nas principais praças da província”65. A
ação de qualificar “o baixo povo rural” – para continuar usando o termo cunhado por Vianna
– como preguiçoso, além de ser um dispositivo comum à época, era também argumento muito
usado para justificar a entrada de imigrantes europeus no Brasil66. Constatação que pode ser
comprovada na introdução do livro de Afonso Castro, onde o autor registra a colonização da
região de matas como o “almejado fim” do seu texto.
O significado social das observações realizadas por Castro pode ser lido como a
tentativa de instituir a um outro e a si uma identidade e, ao mesmo tempo, também impor uma
essência social. O que, a seu turno, é o mesmo que “impor um direito de ser que é também um
dever ser (ou um dever de ser). É fazer ver a alguém o que ele é e, ao mesmo tempo, fazer-lhe
ver que tem de se comportar em função de tal identidade”67. Assim, acreditar que a “classe
comercial” da região era composta apenas de pessoas moralizadas, ativas e que da população
em geral “entre 100 homens válidos, 80 são vadios, a ponto de que nem a fome e a nudez os
63 FONTOURA, João Neves da. Memórias: Borges de Medeiros e seu tempo. Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo: Editora Globo, vol. 1, 1958, p. 34. 64 CASTRO, Evaristo de Afonso. Notícia descritiva da região serrana na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul compreendendo os municípios de Cruz Alta, São Martinho, Palmeira, Passo Fundo, Santo Ângelo, São Luiz, Boqueirão, São Borja, São Francisco de Assis, São Vicente e Itaqui. Cruz Alta: Tipografia do Comercial, 1887. 65 Idem, p. 281. 66 Cf.: KOVARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1987. 67 Pierre Bourdieu. Economia das trocas lingüísticas. Idem, op. cit., p. 100.
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obriga ao trabalho, e destes 80 vadios, 40 pelos menos são ladrões”68 é aceitar o argumento de
apenas uma das partes.
A constatação de que os habitantes da região, em sua generalidade, eram destituídos
de valores de trabalho e que estavam na base dos argumentos que defendiam as políticas de
colonização com imigrantes redundava na elaboração de um tipo ideal de homem que deveria
ser guiado pelo trabalho, pela moralidade e por saber respeitar o seu lugar dentro das
estruturas sociais então existentes. Tal homem muitas vezes é personificado na figura do
colono imigrante, o qual deveria preencher as incompletudes comuns ao brasileiro nato69.
Entretanto, muitos imigrantes, devido a circunstâncias diversas, não deram conta de dar vida a
tal personagem, assim, foram objeto de críticas. Desse modo, os imigrantes que não eram
pacíficos, morigerados e trabalhadores acabavam sendo chamados de acaboclados70 ou
identificados como maus colonos ou intrusos. O habitante ideal para região, segundo Afonso
Castro, deveria se enquadrar nos seguintes termos:
a liberdade, bem definida e compreendida, tem como todas as coisas um limite. Ninguém pode consumir sem produzir. Quem trabalha para si e sua família não faz mais do que cumprir um dever que lhe impõem a natureza e a sociedade; e para os refratários ao trabalho deve o governo ter leis e meios que os obriguem. Isto não é tentar contra a liberdade do cidadão: pelo contrário, é concorrer para que ele possa manter a sua liberdade; porque não há maior escravidão que arrastar a miséria, filha da ociosidade, dependendo assim de todos e de tudo71.
A ação de apontar defeitos, que na maioria das vezes se resumem a sublinhar a falta de
aptidão para o trabalho dos “brasileiros natos” ou a dificuldade de assimilação dos
estrangeiros e, logo em seguida, evidenciar uma qualidade é muito comum nos documentos.
Dessa forma, as representações existentes sobre as populações rurais, seja imigrante ou
“brasileira”, cabe assinalar novamente, são marcadas pela ambigüidade de seu conteúdo.
Conseqüentemente, os nacionais são vadios, mas são “brasileiros” por excelência e não
representam perigo em termos do seu patriotismo e defesa da Nação. Os imigrantes 68 NORONHA, Francisco de Assis Pereira. Juízo dado pelo Ilmo. Sr. Dr. Francisco de Assis Pereira Noronha sobre o presente livro, p. IX. In.: Evaristo de Afonso Castro. Idem, op. cit., p.. I-XXVII. 69 Thomas Skidmore chama atenção para esse modo como os “brasileiros natos” eram tratados e evidencia que, no início do século XX, aos olhos da elite nacional, esse grupo era adequado apenas para exercer tarefas pesadas, cabendo ao imigrante europeu a realização de trabalhos “altamente organizados” como plantar e colher café. Cf.: SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 156. 70 “Acaboclar-se” é uma noção que, na literatura sobre o mundo agrário brasileiro, segundo Giralda Seyferth, conceitualmente, indica a passagem de uma prática agrícola considerada racional para uma agricultura extensiva, cujo traço é o esgotamento da terra rapidamente. Fato que leva à procura sistemática e incorporação de novas áreas, as quais, por sua vez, em pouco tempo são abandonadas. Cf.: SEYFERTH, Giralda. Identidade camponesa e identidade étnica (um estudo de caso). Anuário Antropológico/91. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993. 71 Evaristo de Afonso Castro. Idem, op. cit., p. 290.
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comparativamente aos nacionais são trabalhadores e civilizados – ou pelo menos deveriam
ser – no entanto, são estrangeiros e a sua assimilação devia ser objeto de atenção constante
por parte do governo. Quanto aos negros, as referências, principalmente nos documentos
produzidos pelo Estado, são mais escassas e se resumem a retratá-los como sujeitos aptos a
prática de todos os tipos de crimes. Os índios geralmente são tratados com o par
fetichismo/civilização72, sendo definidos como crianças que deviam ser tuteladas.
No ano de 1902, foi publicado um dos principais textos a partir do qual o Brasil rural e
seus habitantes passaram ao longo da história serem identificados e nomeados, trata-se de Os
Sertões, de Euclides da Cunha73. Este livro, seu autor e, principalmente o que, desde sua
publicação até os dias de hoje, foi escrito sobre os mesmos, foram muito importantes no
processo de fundamentação das representações existentes a respeito dos habitantes das áreas
de fronteira agrária. Assim constituíram-se e foram constituídos em fontes a partir das quais
esta população e o local onde ela vivia foram ao longo da história pensados, identificados,
representados e, por que não, elaborados74. Entretanto, como aponta Regina Abreu, há vários
modos de ler Os Sertões, não obstante, a leitura que predominou foi a que aponta o sertão e o
sertanejo como os “cernes da nacionalidade” brasileira em contraposição ao litoral e seus
habitantes75.
A definição que Euclides da Cunha faz do sertanejo não é diferente da que os autores
de época já citados faziam, antes está na origem de algumas delas. Para o autor, o sertanejo “é
desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo reflete no aspecto a fealdade típica
dos fracos.” (...). “É o homem permanentemente fatigado” 76, isto é, um “preguiçoso” que não
trabalha além da quantidade necessária para subsistir, mas que dentro do seu habitat natural –
o sertão – transmuta-se. Por conseguinte, basta o aparecimento de uma situação que exija sua
energia, como foram as investidas do exército nacional ao arraial de Canudos, para ele
transfigurar-se e “da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto
72 Considerações a respeito das opiniões existentes sobre os negros e os índios foram mais profundamente desenvolvidas no capítulo seguinte, no qual, inclusive, volto a tratar das representações existentes e do papel desempenhado pelos imigrantes e os nacionais no processo de povoamento da região serrana. 73 CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2006. 74 Para um maior aprofundamento sobre este tema, ver: ABREU, Regina. O enigma de os sertões. Rio de Janeiro: Funarte: Rocco, 1998. 75 Nessa perspectiva, Abreu analisa o papel que intelectuais como Sílvio Romero e José Veríssimo, que devido à origem interiorana e identificação com os temas abordados por Cunha, exerceram na consagração do livro. Também o quanto, a partir da ditadura Vargas, o Estado e sua política de marcha para o Oeste tomou Os Sertões como referência de suas ações e, dessa forma, ajudou no processo de consagração do livro, do autor e de uma leitura particular dos mesmos. 76 Euclides da Cunha. Idem, op. cit., p. 118-119.
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dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e
agilidade extraordinárias”77.
“Estrangeiro em sua própria terra”, assim Euclides da Cunha define o sertanejo, cujo
diferencial em relação ao homem litorâneo era o fato de ele viver em outro tempo, pois
existiam três séculos separando-os. Outra diferença era que os habitantes do sertão,
diferentemente dos homens litorâneos, não haviam sido contaminados pela Europa e os
costumes europeus. Em conseqüência, eram os únicos que portavam valores verdadeiramente
brasileiros e, por conseguinte, o Brasil só poderia ser compreendido e construído como nação
com identidade própria quando entendesse o sertão e os sertanejos. Entretanto, a visão do
sertanejo “como ‘cerne da nacionalidade’ era paradoxal ao se levar em conta que,
paralelamente, Euclides estava imbuído das teorias racistas que encontravam na mestiçagem
um obstáculo para o acesso da sociedade brasileira à civilização”78. Assim, mesmo que na
obra de Euclides da Cunha haja um esforço de valorização do sertão e de seu habitante típico,
o autor continua pensando essas pessoas como portadoras de “defeitos” e de certos
comportamentos que convinha modificar.
Contudo, modificar tais comportamentos, civilizar o sertanejo, também era perigoso,
uma vez que a realização dessa “necessidade” também poderia significar a perda daquelas
características que o diferenciavam dos litorâneos. Todavia, diante do problema, Euclides da
Cunha não via alternativa senão a civilização, à qual “estamos condenados”, “ou progredimos,
ou desaparecemos”. O problema era como a civilização chegaria ao sertão, pois, argumentava
o autor, depois de enjeitar os sertanejos por três séculos, procurar “levá-los para os
deslumbramentos da nossa idade dentro de um quadrado de baionetas, mostrando-lhes o
brilho da civilização através do clarão de descargas”79, como acontecera no caso de Canudos,
não era a melhor opção. Em outros termos, para Euclides da Cunha, o sertão era um espaço
que deveria ser incorporado, porém a incorporação deveria ser pensada e feita a partir de uma
valorização daquilo que o Brasil possuía de mais original: sua população do interior.
Nísia Trindade em pesquisa que realizou sobre os significados do sertão no contexto
da Primeira República, destaca como característica da época a existência de um “movimento
de valorização do sertão, seja enquanto espaço a ser incorporado ao esforço civilizatório das
elites políticas do país, seja como referência da autenticidade nacional”80. O livro de Euclides
77 Idem, ibidem 78 Regina Abreu. Idem, op. cit., p. 142. 79 Euclides da Cunha. Idem, op. cit., p. 350. 80 LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representação geográfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: REVAN, IUPERJ, UCAM, 1999, p. 65.
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da Cunha ocupou papel destacado na difusão desse ideal, visto que em torno dele se
aglutinaram os principais intelectuais da época, tais como Sílvio Romero, José Verissimo,
Coelho Neto, Araripe Junior e outros81. Intelectuais que tinham como temática principal de
suas produções o Brasil do interior e encontraram em Os Sertões um ponto de referência para
suas ponderações. Assim, assinala Regina Abreu, contribuíram de forma direta no processo de
transformação desse livro em um clássico para pensar o Brasil. Além disso, ajudaram a tornar
sertão e sertanejo, que no início do século XX eram categorias de sentido amplo, em palavras
que passaram a ser usadas para se referir a uma população e a “uma região geográfica
específica, região árida e desértica, como a que Euclides da Cunha pisou enquanto
correspondente de guerra”82. Até a qual, nas palavras do próprio Euclides da Cunha, “a
História não iria”, pois no caso de Canudos, existia “muito apropriadamente, em roda, uma
cercadura de montanhas. Era um parêntese; era um hiato; era um vácuo. Não existia.
Transposto aquele cordão de serras, ninguém mais pecava”83.
Em linhas gerais, essas são algumas das representações existentes na época sobre as
populações rurais brasileiras. Acerca dos “brasileiros natos”, cabe assinalar ainda que nos
relatórios da Diretoria de Terras e Colonização e nas mensagens dos Presidentes de Estado
enviadas à Assembléia dos Representantes eles são identificados com a palavra nacionais. É
comum a utilização desse termo no período e ele refere-se especificamente a uma população
pobre, população
(mal)nascida, em geral mestiça, pertencente ou egressa da escravidão. Os que observaram nessa população um abandono político e social tiveram a percepção de seu confinamento, do seu isolamento e do seu esquecimento dentro de sua própria terra e história. A partir dessa percepção, representaram-no através de um imaginário que exprimia, simultaneamente, uma sensibilidade, uma crítica e um lamento frente a tal situação84.
No entanto, como busquei demonstrar, nem todos tomavam como ponto referencial de
suas observações o problema social e político, ou o isolamento dos nacionais, mas utilizaram
como base para suas ponderações a idéia de raça85. Na maioria dos casos, na perspectiva de
tentar compreender o que era o Brasil e, mais precisamente, o “povo brasileiro”, o que temos
é a constituição de explicações formuladas a partir de uma mistura de todos esses elementos,
81 Para conhecer a importância destes autores na consagração de Euclides da Cunha e seu livro Os Sertões como clássico da literatura nacional, ver: Regina Abreu. Idem, op. cit. 82 Idem, p. 193. 83 Euclides da Cunha. Idem, op. cit., p. 547. 84 Márcia Naxara. Idem, op. cit., p. 15. 85 No próximo capítulo aprofundo as discussões sobre a “idéia de raça”, sua “origem” e significados no contexto da virada do século XIX para o XX.
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sendo que, em alguns casos, a centralidade das explicações está na questão racial e, em outros,
no social ou no político. Dessa forma, as representações aqui discutidas devem ser observadas
a partir das ambigüidades, das adaptações teóricas e das oposições provenientes da aplicação
de um modo particular de interpretação, característico do período, para pensar e, ao mesmo
tempo, definir a sociedade brasileira e sua identidade86.
Mediante tais constatações cabe ainda perguntar como tais representações chegavam e
encontravam existência na região serrana? Uma resposta possível a pergunta pode ser
formulada a partir da idéia de que a compreensão profunda do modo como se constitui a vida
social dos grupos rurais depende de analisá-la como parte da Sociedade da qual eles fazem
parte. Em outros termos, tais grupos vivem em um contato constante com a sociedade que os
envolve e o funcionamento das relações que caracterizam sua sociabilidade específica
depende desse contato. A intermediação entre esses dois mundos, na maioria dos casos, é
responsabilidade de algumas pessoas, as quais são reconhecidas pelos próprios envolvidos
como responsáveis por fazer a mediação: intelectuais, padres, professores, funcionários do
Estado, políticos, etc...
A sociabilidade característica dos grupos rurais, dessa forma, é uma expressão local da
Sociedade da qual eles fazem parte. Robert Redfield define essa “cultura maior”, ou seja,
aquela que diz respeito a uma determinada “civilização” como Great Tradition enquanto que
a “cultura” dos grupos rurais conforma uma Little Tradition87. Desde este ponto de vista,
pensar a sociabilidade dos grupos rurais exige, entre outras coisas, analisar o modo como se
desenvolvem as suas relações com a sociedade envolvente, já que “a cultura das comunidades
camponesas não é autônoma. Ela é um aspecto ou uma dimensão da civilização da qual elas
fazem parte”88. Não é a passividade a característica preponderante nos contatos mantidos
entre esses dois universos, pois existem espaços para heteronímias e acontecem diálogos
sucessivos entre as partes envolvidas na relação, logo, os seus resultados podem ser, ou
melhor, são imprevisíveis. Assim, parece ser bastante frutífero interpretar as representações
sobre a população rural brasileira aqui discutidas como expressão disso que Redfield chama
86 Nesta perspectiva, Márcia Naxara, escreve que no período “o Brasil era visto como um país despossuído de povo, ao qual faltava identidade para constituir e formar uma nação moderna. Tinha uma população mestiça, sem características próprias, que fossem definidas e homogêneas – não possuía face, não possuía identidade. De um lado, um caudatário de povos e raças diferentes que não formavam um corpo social; de outro, uma elite que não se identificava com as tradições de seu povo, distinguindo-se, e não o reconhecendo como tal”. Cf.: Márcia Naxara. Idem, op. cit., p. 39. 87 Cf.: REDFIELD, Robert. The social organization of tradition. In.: POTTER, Jack M.; DIAZ, May N.; FOSTER, George M. (Orges.). Peasant society: a reader. Boston: Little, Brown and Company, 1967, p. 25-34. 88 Idem, p. 25.
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de Great Tradition e, por assim ser, elas têm influência e são conhecidas, por vezes,
reconhecidas por aquelas pessoas que vivem dentro dos quadros da Little Tradition.
No contexto da região serrana essa característica é visível, por exemplo, no caso da
religião e no modo como os sacerdotes interpretavam sua prática entre os habitantes daquele
espaço. Em carta escrita pelo padre capuchinho Alfredo de Saint-Jean d’Arves, datada de
1903 e enviada a seus superiores na França, ao tratar da religiosidade local ele escreve:
topamos também com práticas supersticiosas intangíveis para alguns devotos. Experimente dizer-lhes que não se tem certeza de que as ervas colhidas e os ovos postos na poedeira na Sexta-feira Santa não têm propriedades medicinais de eficácia infalível; que certas fórmulas cabalísticas não têm privilégio de afastar ratos e as formigas; que a estátua ou imagem de um santo roubada não é mais milagrosa que outra; que é inútil batizar a sepultura de uma criança morta sem batismo; que se abstendo desta cerimônia não se expõem a ver a criança voltar sete anos mais tarde, para bater à porta e perturbar a paz do lar. Estas palavras são escutadas com desconfiança, e consideram-nos como um sábio orgulhoso que zomba da fé simples, mas com fundamento, do povo humilde89.
Nesse caso, o padre Alfredo é um representante da “religião católica oficial” – Great
Tradition – e os devotos que viviam na região e expressavam uma religiosidade particular
representam a leitura própria que eles faziam dessa religião – Little Tradition. O exemplo
também demonstra outros aspectos para os quais Redfield chama atenção em suas análises,
principalmente o da existência de uma hierarquia, reconhecida pelos participantes da relação,
entre o saber oficial do sacerdote e aquilo que era uma vivência local desse saber. Neste
sentido, embora os praticantes dos atos contestados pelo padre Alfredo o considerassem um
“sábio orgulhoso que zomba da fé simples” ainda assim o reconheciam enquanto sacerdote,
portanto, aquele que tinha autoridade superior em assuntos de religião.
Como assinalei acima, a idéia dos nacionais como pouco aptos para o trabalho e outras
mais, foi muito utilizada para justificar a vinda de imigrantes europeus e sua instalação em
espaços que há tempos eram por eles ocupados, bem como por negros e índios. Tinha o
sentido de definir lugares sociais e exigir comportamentos condizentes com as representações
89 D’APREMONT, Bernardin; GILLONAY, Bruno de. Comunidades indígenas, brasileiras, polonesas e italianas no Rio Grande do Sul (1896-1915). Porto Alegre: EST, Caxias do Sul: UCS, 1976, p. 55. Outro exemplo de como as práticas religiosas locais eram alvo de crítica por parte dos representantes da “religião oficial” (Great Tadition) é fornecido pelo padre Antoni Cuber, o qual escreve em suas memórias que “o povo brasileiro é de bom coração: conserva facilmente vestígios da fé sagrada e costumes de seus antepassados; a falta, porém, de sacerdotes, reduziu-lhe ao mínimo seus sentimentos religiosos. Existem brasileiros adultos que não conhecem as orações, os mandamentos de Deus e, muito menos, os da igreja. Há muitos adultos, residentes no campo, que jamais foram batizados, pois nunca viram um padre. Em Ijuí, ocorreu um fato fora de comum: dois filhos foram batizados e depois os pais. Onde não há fé, florescem as superstições de mãos dadas com a incredulidade”. Cf.: CUBER, Antoni. Nas margens do Uruguai. Ijuí: UNIJUI, 2002, p. 26.
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atribuídas. Ademais, elas eram objeto de contestação, a qual também pode ser lida como parte
desse processo de intermediação existente entre a Great Tradition e a Little Tradition de que
trata Redfield. Nos processos crime analisados encontrei outros exemplos que demonstram
como isso acontecia no universo da região serrana: em 1890, no município de Palmeira das
Missões, ocorreu uma desavença entre Rodrigo Xavier dos Santos (54 anos de idade, solteiro,
natural da Província de São Paulo, residente no 4º distrito do município de Palmeira das
Missões, lavrador) e Simplório Domingues de Oliveira (27 anos de idade, casado, lavrador,
analfabeto, nascido em Campo Novo – distrito do município de Passo Fundo). Consta na
queixa crime que em 27 de outubro de 1888, Simplório de Oliveira, armado de uma
espingarda de dois canos tentou assassinar ao “pacifico e honrado cidadão Rodrigo Xavier dos
Santos”90, desfechando-lhe um tiro. Em seu depoimento Simplório narra o motivo que o levou
a tentar contra vida de Rodrigo: afirma que era amigo do ofendido, o qual lhe havia proposto
mudar de Campo Novo para Serra do Paiol em Palmeira das Missões onde Rodrigo residia e
ali garantiria “a proteção que ele, réu, precisasse”.
Simplório relata que “confiando nesta promessa fora trabalhar na serra e que Rodrigo
em vez de o proteger, como tinha prometido, procurou desacreditá-lo chamando-o de vadio”91
e que esse foi o único motivo que o levou a cometer o crime. Algumas testemunhas do fato
são arroladas, prestam seus depoimentos e confirmam que o motivo da briga fora porque
Rodrigo havia chamado Simplório de vadio: “se deu o tiro foi de raiva por Rodrigo tê-lo
chamado de vadio, por ter o réu mandado buscar em casa de Rodrigo por sua mulher cinco
mãos de milho que ali tinha e que depois que dera o tiro em Rodrigo tinha se arrependido”92.
Essa é a versão do fato segundo a narrativa de uma das testemunhas de nome Belisário José
Pereira (45 anos de idade, estafeta do correio, casado e morador no 2º distrito do município de
Palmeira, natural do Rio Grande do Sul). O caso vai a julgamento em 25 de novembro de
1891 e Simplório foi absolvido.
Os processos crime em sua generalidade demonstram que carregar a pecha de “vadio”
ou ser chamado de “vadio” era motivo de conflito e, além disso, quando esse qualificativo é
confirmado pelas testemunhas e as provas do envolvimento do réu no crime sob julgamento
são contundentes invariavelmente ele é rigorosamente condenado. Também, é muito comum
nos processos crime as testemunhas serem perguntadas a respeito dos costumes dos réus e, na
generalidade a pergunta é feita nos seguintes termos: “Perguntado se sabe se os réus são
90 APERGS. Processos Crime 31. Cartório Civil Crime. Município de Palmeira das Missões, 1890. Maço 03. 91 Idem, ibidem. 92 Idem.
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trabalhadores e de bons costumes ou se pelo contrário são vadios e de maus costumes?”93 As
respostas variam de acordo com cada caso e, na situação específica de onde a pergunta foi
retirada a testemunha – Pedro Joaquim da Cruz (48 anos de idade, casado, criador, morador
do 1º distrito do município de Palmeira e natural deste estado) – responde que “Antônio
Bernardo [um dos acusados no processo] sabe que é vadio e de maus costumes, e outro [José
Ferreira da Rosa] ignora por não conhecer”94. Trata-se de um processo crime datado de 1889
em que Antônio Bernardo dos Santos (34 anos de idade, solteiro, lavrador, brasileiro, nascido
em Santo Ângelo, analfabeto) e José Ferreira (não qualificado no processo) são acusados de
terem furtado dois bois de propriedade de Elias Cortes e de dar dois tiros em Pedro Joaquim
da Cruz quando este tentou prendê-los pelo furto. Todas as testemunhas arroladas afirmam
que os réus eram “vadios e de maus costumes” e, ao fim do processo, Antônio é condenado a
4 anos de prisão, sendo que José achava-se foragido.
Os dois processos crime referem-se a diferentes momentos em que a idéia da
vadiagem podia ser acionada. No primeiro, trata-se do emprego do adjetivo vadio dentro
daquela sociabilidade específica. Ou melhor, é um exemplo do uso local da palavra, uma vez
que são duas pessoas pertencentes ao mesmo grupo social, que inicialmente se definem como
“amigos”, e entram em conflito a partir do momento que uma das partes se refere a outra
ofensivamente e lhe dá o qualificativo de vadio. Assim, não é o fato de Rodrigo ter chamado
Simplório de vadio que leva o caso a julgamento, mas sim porque, diante da ofensa,
Simplório desfechou um tiro de espingarda no seu ofensor. Ou seja, na região serrana, taxar
alguém de vadio era atitude extremamente ofensiva. Circunstância demonstrativa de que se
esse qualificativo era largamente usado e fazia parte das representações dominantes a respeito
dos nacionais, isso não quer dizer que tal representação era aceita tranqüilamente pelos
próprios. Ademais, é preciso assinalar que aqueles que eram adeptos da idéia de que os
nacionais eram vadios muito provavelmente não a defenderiam tão convictamente diante de
um nacional.
No segundo processo crime, trata-se do emprego “oficial” dessa representação, o que,
em parte, garante a efetividade de seu conteúdo, já que a pergunta é realizada por um
representante do Estado, portanto, é manipulada por um elemento externo a relação que deu
origem ao processo crime e isso acontece em um momento específico: no tribunal –
provavelmente fora desse espaço o emprego da palavra seria objeto de maior controle, visto
que a conseqüência da sua utilização poderia ser semelhante ao que aconteceu entre Rodrigo e
93 APERGS. Processos Crime 28. Cartório Civil Crime. Município de Palmeira das Missões, 1889. Maço 03. 94 Idem, ibidem.
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Simplório. A situação também demonstra que essa representação tem a força de definir um
lugar social ou, no mínimo um não-lugar, pois ser vadio é comportamento que está associado
a ter maus costumes e, no caso em particular, ter o mau costume da vadiagem está conectado
ao fato de os acusados terem roubado dois bois e atirado em outro indivíduo que tentava punir
ou regular esse mau costume. Enfim, um exemplo efetivo de como o conteúdo pejorativo
comum a representação do nacional como um vadio era empregada e tinha um papel
específico, visto que o suposto vadio Antônio Bernardo foi condenado a 4 anos de prisão,
entre outras coisas, por sua vadiagem que o levava preferir o roubo e a violência ao trabalho.
Agora que conhecemos algumas das representações existentes na época a respeito das
populações rurais, bem como alguns de seus conteúdos, cabe conhecer melhor o papel do
Estado no processo de construção, significação e ressignificação das mesmas. Dessa forma, é
importante assinalar novamente a ação desempenhada pelo Estado na gerência do
povoamento da região serrana, principalmente da colonização e seu esforço na perspectiva de
estabelecer uma “regularidade” ao problema fundiário.
2.4 ESTADO, GOVERNO E SOCIEDADE: OU SOBRE AQUELES QUE BUSCAVAM “CONSERVAR
MELHORANDO”
Das leituras possíveis a respeito do Estado, sua constituição e funcionamento, aqui
optei por aquelas que, na análise, permitem priorizar os aspectos relacionais característicos da
instituição, seus vínculos e origens sociais95. Assim, não aprofundarei as discussões sobre as
múltiplas dimensões das teorias de Estado, mas buscarei entendê-lo como uma relação social.
Como ponderei no tópico anterior, uma das prioridades será pensar o Estado enquanto
entidade responsável por elaborar representações. Dessa forma, ancorado em Émile
Durkheim, considero que o Estado é
um grupo de funcionários sui generis, no seio do qual se elaboram representações e volições que envolvem a coletividade, embora não sejam obra da coletividade. Não é correto dizer que o Estado encarna a consciência coletiva, pois esta o transborda por todos os lados. É em grande parte difusa; a cada instante há uma infinidade de sentimentos sociais, de estados sociais de todo tipo de que o Estado só percebe o eco enfraquecido. Ele só é a sede de uma consciência especial, restrita, porém mais elevada, mais clara, que tem de si mesma um sentimento mais vivo. Nada obscuro e vago como as
95 Para conhecer algumas das possíveis interpretações e pontos de vista existentes sobre o Estado, suas origens e funções sociais, ler: BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
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representações coletivas que se espalham em todas as sociedades: mitos, lendas religiosas ou morais, etc. Não sabemos de onde vêm, nem para onde vão; não as deliberamos. As representações que vêm do Estado são sempre mais conscientes de si mesmas, de suas causas e seus objetivos. (...). Podemos então dizer em resumo: o Estado é um órgão especial encarregado de elaborar certas representações que valem para coletividade. Essas representações distinguem-se das outras representações coletivas por seu maior grau de consciência e reflexão96.
Tomar o Estado como “órgão especial encarregado de elaborar certas representações”,
nos limites desta pesquisa, ajuda a compreender a eficácia e o sentido das representações aqui
analisadas, uma vez que elas encontravam espaço de discussão dentro do Estado e, em última
instância, o seu conteúdo era objeto de reflexão por parte do grupo de funcionários sui generis
que na época administrava o Estado. Nestes termos, a representação do nacional como um
indivíduo indolente, nômade e apático que deveria ser transformado em uma pessoa fixa a um
espaço, trabalhadora e morigerada, como veremos no próximo capítulo, foi tema de
constante discussão e inclusive objeto de políticas públicas, a ponto de ser criada, em 1910,
uma instituição, cuja tarefa era atuar no sentido da transformação: trata-se do Serviço de
Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN).
Embora uma leitura apressada da concepção de Durkheim possa levar a conclusão de
que aquelas representações das quais o Estado “só percebe o eco enfraquecido” sejam menos
complexas e/ou “piores” do que aquelas que partem do Estado é importante assinalar que em
nenhum momento o autor trabalha com tais categorias. Em outras palavras, não há hierarquia
de representações. Durkheim acertadamente destaca que as representações que encontram
espaço dentro do Estado ou que são obra dele têm a diferença de possuírem maior consciência
de suas causas e objetivos, visto que são objetos de um “concerto menos subterrâneo” do que
as representações coletivas. Assim, deve-se ter em conta que “o Estado, pelo menos em geral,
não pensa por pensar, para construir sistema de doutrinas, mas para dirigir a conduta
coletiva”97. Logo, quando ao longo das Mensagens dos Presidentes do Estado e dos Relatórios
da DTC seus responsáveis escreviam que um dos seus principais interesses era transformar os
nacionais nos “cidadãos operosos do amanhã” partiam de uma concepção de que essas
pessoas eram “inferiores em capacidade industrial”, mas a partir do desenvolvimento de uma
série de políticas e medidas era possível transformá-los. Isto é, partiam de uma representação
do nacional como produtivamente incapaz e buscavam dar vida a uma outra representação: a
do cidadão produtivo, apto para ajudar no processo de desenvolvimento do estado.
96 Émile Durkheim. Idem, op. cit., p. 70. 97 Idem, p. 71-72.
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Ainda segundo Durkheim, a execução do conteúdo comum as representações
formuladas pelo Estado é obra da máquina administrativa: “o conselho de ministros, o
príncipe, o Parlamento, não agem por si mesmos; eles dão ordens para que se aja. Organizam
idéias, sentimentos, resoluções e transmitem essas resoluções a outros órgãos que as
executam; mas seu papel limita-se a isso”98. É nesse caminho, entre a elaboração/discussão
das representações e sua execução que as mudanças podem acontecer. Também é importante
sublinhar que o conteúdo comum as representações concertadas pelo Estado não é
hermeticamente fechado, pelo contrário, a sua efetivação depende de como se dá a interação
entre governantes e governados, pois “em qualquer sociedade estratificada” – e a sociedade
que analiso é estratificada –, “existe um conjunto de limites sobre aquilo que tanto os
governantes como os súditos, os grupos dominantes e os subordinados, podem fazer. Há
também um conjunto de obrigações mútuas que mantém unidos os dois grupos”99. Para
melhor compreender como isso funciona na prática é necessário antes conhecer, em termos
estruturais, como estava organizado o Estado na época.
Nesse sentido, sublinha Max Weber, uma das principais características do Estado é o
fato de ele conter o monopólio da violência. De acordo com o autor, o Estado é uma
comunidade humana que, no interior de um determinado território, reclama para si o
monopólio da coação física legítima. Em conseqüência, as demais pessoas e associações
existentes dentro desse território só podem fazer uso da violência de forma legítima à medida
que o Estado permitir. O Estado, portanto, é uma relação de domínio de homens sobre
homens baseada na coação legítima100. Contudo, existem limites definindo aquilo que grupos
dominantes e dominados podem fazer: a dominação realizada pelo Estado está
proporcionalmente vinculada a capacidade que ele tem de tornar legítimas suas ações diante
do conjunto dos cidadãos e depende do reconhecimento, por parte dos súditos, da
autoridade101 que provém do Estado. O Estado pode conseguir tal submissão pelo uso da
violência legítima. Entretanto, como estamos tratando de ações e relações sociais, os
resultados do jogo político do qual se constitui um aspecto muito importante do Estado – o
Governo102 – pode influenciar e definir no modo como essa violência é empregada. Em outros
98 Idem, p. 71. 99 MOORE Jr, Barrington. Injustiça: as bases sociais da obediência e da revolta. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 39. 100 Max Weber. Idem, op. cit., p. 1056-1057. 101 Para compreender o sentido que emprego à palavra autoridade, ler artigo escrito por Hannah Arendt, cujo título é Que é autoridade. Este artigo encontra-se no seguinte livro: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001, p. 127-188. 102 Por governo deve-se entender “o complexo dos órgãos que institucionalmente têm o exercício do poder. Nesse sentido, o Governo constitui um aspecto do Estado. Na verdade, entre as instituições estatais que
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termos, as conseqüências das ações governamentais podem ser diferentes dos objetivos
almejados e, dessa forma, os propósitos de tais ações, por mais imprevisíveis que sejam seus
resultados, devem ser apresentados de maneira que, aos súditos, eles pareçam ou realmente
sejam legítimos. Assim, em certa medida, a legitimidade da violência empregada pelo Estado
para fundamentar seu poder e domínio é proporcional às suas funções sociais e àquilo que os
súditos esperam do Governo.
O Estado deve ser pensado, portanto, a partir das táticas de governo desenvolvidas
para legitimá-lo socialmente, bem como quanto a legitimidade do governo está vinculada à
ação e reação dos governados. Em outros termos, para funcionar, o governo deve ser justo e
os conceitos de justiça e injustiça dependem de fatores sociais e culturais que podem variar no
tempo e de sociedade para sociedade. Porém, em qualquer tipo de organização social,
sublinha Barrington Moore, “para ser aceitável, a injustiça tem evidentemente de parecer
justiça”103. Muitas vezes, a tarefa de dar ao injusto um tom de justo constitui um dos
principais papéis do Governo, e a origem dessa tarefa encontra-se na necessidade que o
Estado tem de, via Governo, ser considerado legítimo por seus súditos, senão por todos, pelo
menos por uma parte deles.
Nesses termos, as representações de mundo social, formuladas pelos funcionários do
Estado, longe de estarem totalmente desvinculadas da sociedade e dos indivíduos que a
compõem, buscam obter a adesão do maior número possível de pessoas para garantir sua
eficácia social. Dar esse passo é fundamental para que tais funcionários continuem no
controle do Estado, visto que ele, como lugar de poder, é alvo de disputa. Por conseguinte, os
funcionários sui generis de que trata Durkheim devem ser “profissionais capazes de
manipular ao mesmo tempo ideais e grupos, de produzir ideais capazes de produzir grupos
manipulando ideais de maneira a garantir-lhes a adesão de um grupo”104. Ou seja, como
pertencentes ao campo político, que sofre pressões tanto internas quanto externas, os
funcionários de Estado necessitam que seus ideais sejam reconhecidos interna e externamente
a seu campo. Por sua vez, para triunfarem nas lutas internas características do campo político,
tais profissionais têm de fazer apelos a “forças que não são totalmente internas”, o que, por
exemplo, “não se passa no campo científico ou artístico em que a invocação dos profanos
organizam a política da sociedade e que, em seu conjunto, constituem o que habitualmente é definido como regime político as que têm a missão de exprimir a orientação política do Estado são os órgãos do Governo”. Cf.: Norberto Bobbio, et. al. Dicionário de Política. Idem, op. cit., p. 553. 103 Barrington Moore Jr. Idem, op. cit., p. 89. 104 Pierre Bourdieu. A representação política. Elementos para uma teoria do campo político. In.: ___. O poder simbólico. Idem, op. cit, p. 175.
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desacredita”105. Em outros termos, administrar o Estado é uma tarefa política e, segundo
Bourdieu,
em política, ‘dizer é fazer’, quer dizer, fazer crer que se pode fazer o que se diz e, em particular, dar a conhecer e fazer reconhecer os princípios de di-visão do mundo social, as palavras de ordem que produzem a sua própria verificação ao produzirem grupos e, deste modo, uma ordem social106 (Grifos do autor).
Tais considerações podem ser utilizadas para compreender alguns traços
característicos do Rio Grande do Sul à época, por exemplo, o porquê de uma das principais
peculiaridades do grupo que administrou o estado após a proclamação da República ter sido
sua forte vinculação dentro dos quadros do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR).
Alguns estudiosos têm assinalado que uma das características mais marcantes desse partido
era a influência exercida sobre sua organização e preceitos de princípios positivistas, os quais,
por seu turno, eram resultado da leitura particular feita desta teoria por Júlio de Castilhos107.
Inclusive foi a influência do positivismo de Júlio de Castilhos – tradicionalmente denominado
castilhismo – e sua respectiva realização com a promulgação da Constituição Estadual em
1891, um dos elementos motivador das cisões partidárias e disputas políticas ocorridas no
período.
O grupo de pessoas aglutinado em torno do PRR e altamente influenciado pelo
positivismo que se consolidou na administração do Estado após o fim da Revolução
Federalista em 1891 era responsável pelo desenvolvimento das políticas de colonização e
povoamento. Tinha representantes vivendo na região ora estudada e, cabe frisar, na maioria
das vezes, as disputas para definir com quem ficaria o controle dos aparelhos de Estado nos
municípios foi motivo para conflitos: um exemplo disso foi o fato ocorrido no 5º distrito de
Santo Ângelo anteriormente analisado, no qual o candidato a Intendente do município
procurou aproveitar uma confusão ocorrida durante a eleição para incriminar um seu desafeto
político. Tais conflitos eram tão comuns, que o governo estadual fazia um grande esforço para
controlá-los. Ao longo das mensagens enviadas à Assembléia dos Representantes aparecem
105 Idem, p. 183. 106 Idem, p. 185. 107 Para conhecer as origens do PRR e das pessoas que se aglutinaram em torno deste partido, ler: PINTO, Celi Regina Jardim. Contribuição ao estudo da formação do Partido Republicano Rio-Grandense (1882-1891). Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1979. (Dissertação de Mestrado). Quanto ao positivismo e o modo como esta teoria foi interpretada e utilizada no Brasil, ver: ALONSO, Ângela. De positivismo e de positivistas: interpretações do Positivismo Brasileiro. In.: BIB: Revista Brasileira de informações bibliográficas em Ciências Sociais, n. 42. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996, p. 109-134.
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muitas referências à nomeação direta pelos Presidentes de Estado de Intendentes aos
municípios108.
Ao proceder assim, o Presidente estava desrespeitando um preceito constitucional (o
que dizia que os intendentes deveriam ser eleitos pelo voto da população local), mas
respeitando outro que dava plena autonomia a ele para interferir na política municipal. O
Presidente tinha poderes para definir a quem caberia a tarefa de administrar as intendências e,
mediante qualquer questão, visto que o problema poderia ser criado, nomear os intendentes.
Na Mensagem enviada, por Antônio Augusto Borges de Medeiros, à Assembléia dos
Representantes em 1904 é possível verificar como isso acontecia. Neste caso, Medeiros relata
que ao tomar conhecimento de algumas reclamações e recursos movidos em alguns
municípios por decorrência de supostas irregularidades ocorridas no processo eleitoral
expediu, como previa o artigo 20, nº 18 da Constituição Estadual, “atos e instruções tendentes
a garantir o livre exercício do voto, e em alguns casos anulei eleições, mandando proceder
outras com observância de todos os preceitos legais”109.
O grupo de pessoas que se aglutinava em torno do PRR também estava profundamente
envolvido na tarefa de construir uma “ordem social” e, em conseqüência, estava
comprometido em algumas disputas peculiares ao jogo político. Internamente elas realizavam-
se nas dissidências de alguns dos quadros inicias do PRR como Assis Brasil e Demétrio
Ribeiro, por exemplo, que, embora membros históricos do partido, desvincularam-se dele à
medida que o domínio de Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros sobre o partido e o Estado
aumentava. As externas, por seu turno, traduziram-se nas brigas entre castilhistas e
federalistas, sendo que os últimos ao longo do período se aglutinaram em diferentes partidos e
de modos variados, seja pela participação nos pleitos eleitorais ou pelo recurso às armas,
objetivaram chegar ao controle do Estado.
Diante disso, a adesão dos profanos era o fiel da balança, no sentido de que conseguir
o apoio de uma parte considerável da população rio-grandense era fundamental para garantir a
permanência dos funcionários sui generis na gerência do Estado. Daí os constantes esforços
108 Em suas memórias de João Neves da Fontoura, trata dessa questão nos seguintes termos: “O grave problema é que, nos municípios, as dissidências existiam em potencial ameaçador, principalmente pelas reeleições sucessivas dos prefeitos – os intendentes, como então se chamavam. Se os federalistas (os partidários de Gaspar Martins) não dispunham de eleitorado capaz de conquistar as prefeituras, nada mais fácil, porém, do que a derrota dos chefes oficiais pelos próprios companheiros divergentes. Em breve, a indisciplina preparava-se para vingar o longo período de obediência, perinde ac cadaver, que fora a base da formidável agremiação, precursora da República, sustentáculo da organização política estadual, vencedora militar ou paramilitar do abalo revolucionário de 93 a 95”. Cf.: João Neves da Fontoura. Idem, op. cit., p. 35-36. 109 MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros na 4ª sessão ordinária da 4ª Legislatura em 20 de Setembro de 1904. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1904, p. 13-14.
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feitos pelo governo estadual para conseguir o apoio das regiões coloniais ao seu projeto
político110. Contudo, em termos da Primeira República, a permanência de um grupo no
controle do Estado também era proporcional às possibilidades que o mesmo tinha de burlar
alguns preceitos que garantiam sua posição social sem necessariamente desacreditá-los
perante a opinião pública. Ou seja, as constantes fraudes eleitorais que permitiram a
permanência do PRR à frente do Estado durante mais ou menos 40 anos, embora alvos de
constantes críticas, não impossibilitavam a realização de eleições ou tornavam os governos
dos castilhistas ilegítimos.
Entretanto, tais governos só aconteceram porque, naquela quadra histórica, seus
profissionais, funcionários sui generis, mesmo diante de contestações que são naturais ao jogo
político, encontravam aceitação social. Tanto interna como externamente ao campo político a
que pertenciam, achavam espaços para realizar seus ideais e torná-los palavras de ordem que
produziam grupos, sua verificação e, conseqüentemente, uma ordem social. Ademais,
permanecer ou conquistar postos de poder numa determinada figuração social,
independentemente dos meios usados para isso, é uma forma de assegurar um poder sobre os
seus tributários, uma forma de dar às representações de mundo social características de um
determinado grupo, partido político ou instituição uma maior efetividade111.
Durante a Primeira República, no Rio Grande do Sul, um dos principais objetivos
perseguidos pelo Governo do Estado foi a garantia da ordem pública. Assim, no intento de dar
cumprimento a esse objetivo, a máxima que definiu as ações governamentais era retirada do
positivismo e ela sempre é citada quando alguma política pública é discutida ou são
apresentados seus resultados: trata-se do conservar melhorando. Divisa que está presente em
muitos relatórios, na maioria das vezes, na parte introdutória dos mesmos: “interpretando o
bem público de acordo com as leis e à luz dos princípios do inexcedível programa
republicano, resumirei toda a ação em conservar melhorando, e em praticar sempre a sã
110 Sobre os esforços governamentais para obter apoio da região colonial aos seus projetos políticos, ver: GERTZ, René. O aviador e o carroceiro: política, etnia e religião no Rio Grande do Sul dos anos 1920. Porto Alegre: EDIPUC, 2002. 111 Nesse sentido, Norbert Elias e John Scotson em Os estabelecidos e os outsiders, mostram como, na vida social, ocupar lugares de poder seja em esfera local ou nacional, somado à coesão dos grupos que ocupam tais posições, é fator importantíssimo no modo como os grupos definem suas identidades sociais. Por conseguinte, atribuem valores a seus outros relacionais e, a partir de tal relação, conseguem se manter no poder ou cerrar fileiras para que os seus outros não assumam tais posições e, assim, diminuam sua estabilidade ou questionem as representações por eles elaboradas. Cf.: ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
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política, filha da moral e da razão”112 (grifos do autor). Sobre essa característica, Sandra
Pesavento destaca que uma das principais preocupações dos governos castilhistas rio-
grandenses, ao longo da Primeira República, era encontrar meios de “dignificar a pobreza,
eliminando dela a miséria”. Questão que era resolvida através da busca de uma pretendida
“moralização dos ricos e dos pobres, para que aqueles não consumam o supérfluo em prejuízo
necessário destes, e estes só reclamem o necessário sem lançar olhos cobiçosos para as
superficialidades da opulência”113.
Em termos de organização estrutural e política, a Constituição estadual, promulgada
em 14 de julho de 1891, definiu a forma como o Estado deveria funcionar114. De acordo com
o texto da Constituição, o Governo seria formado pelo poder executivo, o legislativo e o
judiciário. O poder executivo ficava sob responsabilidade do Presidente que tinha “a suprema
direção governamental e administrativa do Estado”, exerceria o mandato durante cinco anos e
poderia ser reeleito se conseguisse somar três quartas partes do eleitorado. Era sua tarefa
também designar quem seria o vice-presidente e os secretários. Quanto à decretação das Leis,
cabia ao Presidente formulá-las e enviar os projetos aos intendentes municipais que se
incumbiriam de dar publicidade aos projetos em seus respectivos municípios. Depois de três
meses, tais projetos voltariam ao poder executivo com possíveis emendas e observações que
poderiam ser formuladas por qualquer cidadão, e o Presidente, ponderando sobre a
importância das mesmas, acata-las-ia ou não.
O poder legislativo era formado pela Assembléia dos Representantes, eleita pelo voto
direto, reunia-se uma vez por ano, funcionava por dois meses, e suas atribuições eram
estritamente orçamentárias. As funções judiciárias eram exercidas por um Superior Tribunal,
situado na capital do estado, por juízes de comarca, pelo júri e por juízes distritais. Ao
Superior Tribunal, cabia decidir conflitos entre as autoridades judiciárias e as administrativas,
julgar o Presidente e os Secretários de Estado, bem como julgar as causas propostas contra o
Governo. Os juízes de comarca eram nomeados pelo Presidente mediante concurso e sem
112 MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros na 2ª sessão ordinária da 8ª Legislatura em 20 de Setembro de 1918. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1918, p. 04. 113 Cf.: PESAVENTO, Sandra Jatahy. República Velha gaúcha: “Estado autoritário e economia”, p. 211. In.: DACANAL, José Hildebrando; GONZAGA, Sérgius (Orgs.). RS: economia e política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993, p. 193-229. 114 Os dados que seguem são retirados de OSÓRIO, Joaquim Luís. Constituição política do Estado do Rio Grande do Sul: comentário. Brasília: Editora UNB, 1981. Sobre a organização administrativa do Rio Grande do Sul, verificar também: RIO GRANDE DO SUL, Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos. Departamento de Arquivo Público. Fontes para história administrativa do Rio Grande do Sul: a trajetória das secretarias de Estado (1890-2005). Porto Alegre: CORAG, 2006 e FORTES, Amyr Borges; WAGNER, João Baptista Santiago. História administrativa, judiciária e eclesiástica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1963.
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dependência de diploma. Cabia-lhes a tarefa de julgar no cível as causas preparadas pelos
juízes distritais e as causas de mais de quinhentos mil réis. Os juízes distritais eram nomeados
pelo Presidente, sua permanência no cargo durava quatro anos e era sua tarefa julgar todas as
causas civis até o valor de quinhentos mil réis, com apelação para o Juiz de Comarca. O poder
judiciário era composto de um Ministério Público, coordenado por um Procurador-geral,
também nomeado pelo Presidente. A este Procurador-geral estavam ligados os promotores
públicos distribuídos um por cada comarca.
Do ponto de vista administrativo, o território do estado estava dividido em
municípios. O poder municipal era exercido por um Intendente, responsável por todos os
serviços, e por um Conselho que votava os meios de esses serviços serem criados e mantidos.
Os intendentes e os conselhos deveriam ser eleitos pelo sufrágio direto e seus mandatos
duravam quatro anos. No entanto, havia o artigo 20, nº 18 da Constituição, que dava liberdade
ao Presidente para anular as eleições quando entendesse que elas infringiam as leis Federais
ou do Estado. Cada município era regido por uma lei orgânica, a qual definia o número dos
membros dos conselhos e prescrevia tudo o que era da competência do município. O
município era dividido em distritos e, para cada distrito, os intendentes nomeavam um
subintendente que exercia as funções de autoridade policial. Intendentes, subintendentes e
membros do conselho, em caso de incorrerem em algum tipo de crime, seriam julgados e
processados pelo Juiz de Comarca, com possibilidade de apelação para o Superior Tribunal.
Cada município também possuía uma guarda municipal com funções preventivas e ficava sob
responsabilidade dos intendentes e subintendentes. Também existia uma polícia judiciária,
esta sob jurisdição de um chefe geral de polícia, como centro da direção do serviço em todo
estado e tinha subchefes, delegados e subdelegados distribuídos em todo o território. A polícia
judiciária tinha o papel de rastrear crimes, coligir provas, capturar delinqüentes e estava
totalmente sob jurisdição do Estado.
Em linhas gerais e de forma resumida, essa é a maneira como estava organizada parte
da máquina administrativa do estado no período e era por meio desses eixos que o Governo
chegava do centro aos municípios e distritos. A partir da descrição fica visível o quanto essa
estrutura estava centralizada nas mãos do Presidente, pois todas as funções administrativas
eram objeto de sua nomeação e, mesmo em algumas situações em que era realizado concurso
público para preencher algum cargo, o Presidente poderia escolher entre os três melhores
classificados quem ocuparia a função. Entretanto, essa forte centralização não impedia que na
prática os objetivos perseguidos pelo Governo fossem alterados. Exemplo disso são os atritos
existentes entre a polícia administrativa e a judiciária, o uso em benefício próprio por parte de
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intendentes, subintendentes e, principalmente, de inspetores de quarteirão do poder que lhes
era atribuído com a nomeação ao cargo de responsáveis pelo policiamento dos seus
respectivos municípios, distritos e quarteirões. Um dado interessante a esse respeito é que o
inspetor de quarteirão não é citado na Constituição a não ser para afirmar que as inspetorias
de quarteirão – resquícios do regime imperial – seriam substituídas pela criação de
subchefaturas regionais115. No entanto, nos processos crime os responsáveis pelas ações
policiais no interior dos distritos continuam sendo identificados como inspetores de
quarteirão e a ação desses homens ilumina algumas peculiaridades comuns ao jogo político
característico da época.
Em processo crime datado de 22 de fevereiro de 1928 em que é julgado um caso
ocorrido no município de Palmeira das Missões, encontra-se um exemplo a partir do qual é
possível observar os pormenores da questão. Os envolvidos eram João Hermógenes Paz
(Inspetor de Quarteirão – não qualificado no processo por estar foragido) e Maria José dos
Santos (casada com João Antônio Rodrigues, com 37 anos de idade, residente em uma roça a
margem do Lajeado Grande a 5 léguas, mais ou menos, da sede do Distrito). Maria José em
depoimento prestado ao delegado de polícia do município conta que seu marido trabalhava
“nas estradas em Santa Catarina pelo que ficou só com seus 5 filhos morando no sítio”116. No
dia 18 de fevereiro, o inspetor de quarteirão apareceu em sua casa e Maria “sabendo ser ele de
maus instintos, com medo, convidou-o a tomar um mate, ao que Hermógenes retrucou que
queria outra coisa” e convidou-a para ir até a roça “a fim de copular com ele”117. Maria diz ter
recusado a proposta, mas mesmo assim o inspetor tentou “por vários modos apoderar-se do
seu corpo, tendo lhe oferecido 15$000 para que ela fosse com ele debaixo dos
pessegueiros”118. Não conseguindo dar conta de seu intuito o inspetor retirou-se, mas
prometeu que retornaria outro dia e que era para ela pensar em suas propostas. No dia 19 de
fevereiro de 1928, um domingo, Hermógenes voltou a casa de Maria e novamente tentou
convencê-la a manter relações sexuais com ele. A vítima não cedeu e diante da recusa
incessante da mulher o inspetor ameaçou dizendo que “ele era autoridade e que era melhor ela
se entregar voluntária porque senão ela se arrependeria e seria dele de qualquer jeito, pois ele
mataria seu marido já que ela estava com tanto luxo”119.
115 Joaquim Luís Osório. Idem, op. cit., p. 237. 116 APERGS. Processos Crime 235. Cartório Civil Crime. Município de Palmeira das Missões, 1928. Maço 12. 117 Idem. 118 Idem. 119 Idem.
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Mesmo diante das ameaças Maria não satisfez os interesses de Hermógenes que
novamente se retirou prometendo voltar. No dia seguinte, ao entardecer, Maria conta que o
inspetor apareceu em sua casa, tentou agarrá-la a força e a empurrou em direção ao quarto.
Maria “pediu que ele a largasse, pois queria dizer uma coisa; que tendo ele lhe dado liberdade
de movimentos ela disse que não a levasse a mal, que ela não cedeu aos seus convites porque
já mais de mês andava com a ‘mãe do corpo’ ‘inferidade’”120 (grifos no original). A vítima
disse que logo chegaria a “mulher de seu Augusto para lhe curar e lhe benzer; em vista disso
Hermógenes disse que também era médico e queria ver com os olhos dele levantando-lhe a
saia e querendo que ela se deitasse; ela se negou dizendo que era feio um homem ver essas
coisas”121 (grifos no original). Em seguida Maria pediu para o inspetor se retirar ao que
Hermógenes concordou, pois “não queria encontros e gostava de coisas reservadas”. No
entanto, dentro de algumas horas ele voltou, mas Maria e seus filhos haviam fugido para mato
e foram para casa de um vizinho – “seu Augusto” –, onde pernoitaram.
No dia 21 de fevereiro, o marido da vítima voltou de Santa Catarina “para ver a
família e trazer recursos”. Maria, por sua vez, não contou nada a ele com medo de que fosse
tomar satisfação e o inspetor o matasse e, como João Rodrigues retornaria para o trabalho no
dia seguinte, resolveu que ficaria hospedada em casa do vizinho – “seu Augusto” – com quem
procuraria auxílio para “dar parte as autoridades do Povo para chamarem a ordem seu
Hermógenes para não a perseguir mais”122. Entretanto na madrugada do dia 22 o casal foi
despertado “pelo acuar do ‘guaipeca’ [cachorro de porte pequeno] e seu marido viu que a casa
estava sendo cercada, ouvindo voz do seu Hermógenes dando ordens e sabendo que ele era
muito bandido e, naquela hora, ele só podia ir fazer coisas, tratou de fugir”123. Nisso Maria diz
ter ouvido três tiros, acreditando terem matado o seu marido saiu de casa e viu que ele corria
em direção do lajeado perseguido por vários homens. Diante da situação ela e um filho de 12
anos correram pedindo “misericórdia a Hermógenes, mas ao vê-los ele disse para ela: eu não
te disse cadela, quando eu quero, eu quero mesmo! Vocês hão de se acostumar a respeitar a
autoridade e, ato contínuo, começou a espancar a ambos com um relho”124 e só parou de bater
nos dois quando seus homens voltaram da perseguição e disseram que João Rodrigues havia
conseguido escapar.
120 Idem. 121 Idem. 122 Idem. 123 Idem. 124 Idem.
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O inspetor de quarteirão ordenou aos homens que voltassem ao lajeado e procurassem
por João. Após a retirada desses homens Hermógenes voltou a espancar Maria dizendo:
“agora china velha, vai conhecer macho!”. Assim, obrigou-a a entrar no quarto, arrancou-lhe a
saia e “no meio de terríveis ameaças contra a vida do seu marido exigiu que ela se deitasse na
cama; que como ela não obedecesse ele empurrou-a e descobrindo-a procurou servir-se de seu
corpo, no que foi impedido por ter ela trancado as pernas”125. Diante disso, Hermógenes
voltou a bater com o relho em Maria até o ponto de ela perder os sentidos “por causa de tanta
dor” e “quando acordou estava meio morta de dor e cansada, toda descoberta em cima da
cama, com sangue em várias partes do corpo e seu Hermógenes sentado a beira da cama, ao
ver abrir os olhos me perguntou se eu tinha gostado”126 (grifos no original). Logo em seguida
chegaram algumas pessoas a casa de Maria para quem o inspetor obrigou-a a “dizer tudo
quanto ele quis que eu dissesse”. Após todos terem se retirado o marido de Maria voltou para
casa e ambos perceberam que, além de tudo o que acontecera, o inspetor havia levado consigo
“a faca e o bocó do seu marido, sendo que no bocó estavam 50$000 que o marido tinha
trazido”127 de Santa Catarina.
De acordo com os termos da Constituição Estadual o papel a ser desempenhado por
Hermógenes era o de exercer funções preventivas, uma vez que ele fazia parte da guarda
municipal. No entanto, fica claro o quanto ele utilizava-se de sua posição para executar
interesses próprios, inclusive, sustentado em sua autoridade, chegou a formar uma escolta
para atacar a casa da sua pretendida. Nesta perspectiva, os processos crime se demonstram
fontes interessantes, uma vez que permitem verificar alguns detalhes importantes, cujo traço
peculiar é proporcionar uma compreensão diferenciada do modo como a estrutura policial e
administrativa funcionava. É importante assinalar, nesta perspectiva, que o inspetor de
quarteirão não apenas era o responsável pelo policiamento local, mas também se incumbia de
resolver questões administrativas. Ele estava ligado aos intendentes, os quais indicavam
aqueles que deveriam atuar como subintendentes nos distritos e, por fim, estes nomeavam os
responsáveis pelo policiamento no interior dos distritos, isto é, os inspetores de quarteirão.
Todos eles poderiam, em caso de necessidade, recrutar seus “soldados” entre os habitantes do
município e, quando faziam isso, geralmente praticavam arbitrariedades.
O caso envolvendo Hermógenes e Maria José dos Santos também é exemplar nesse
sentido, pois os homens que perseguiram João Antônio Rodrigues e formavam a escolta
125 Idem. 126 Idem. 127 Idem.
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organizada por Hermógenes foram recrutados da seguinte forma: em depoimento Celestino
Rodrigues de Oliveira (62 anos de idade, branco, agricultor, residente a 1 légua da casa de
Hermógenes) conta que no dia 21 de fevereiro de 1928 recebeu uma intimação do inspetor de
quarteirão “que o intimava para ir se encontrar com ele a fim de fazer uma escolta para
prender João Rodrigues e ser testemunha dos ditos da mulher dele”. Celestino diz que por ser
“Hermógenes violento e por não querer desagradá-lo, e mesmo porque tinha o dever de
auxiliar a autoridade”128 se reuniu no lugar indicado com o inspetor e junto com ele também
estavam João Paz e Wenceslau de Tal.
Segundo Celestino, Hermógenes havia reunido aquela escolta porque a mulher de João
Rodrigues há muitos dias vinha lhe dirigindo insultos e porque o subintendente havia
ordenado a prisão do marido de Maria “por ele ser ladrão”. Na seqüência do relato Celestino
conta que por volta das nove horas da noite do dia 21 se aproximavam da casa de Gabriel
Alves, cuja localização ficava a cerca de 1.500 metros distante da casa de Maria e João. Nesse
local estava acontecendo um baile e lá a escolta ficou até a madrugada “quando seu
Hermógenes resolveu fazer o serviço e resolveu também intimar o dono da casa, Gabriel
Alves, e seu filho, Manuel Alves, para fazer parte da escolta”. Gabriel “implorou dispensa,
mas Hermógenes disse que não estava pedindo e sim mandando como autoridade, tendo
então se submetido com seu filho”129 (grifos no original). Em seguida a escolta partiu e a
narrativa dos acontecimentos feita por Celestino não difere muito da realizada pela ofendida,
sendo que acrescenta a informação de que as pessoas que chegaram a casa de Maria, depois
do acontecimento, foram chamadas pelo inspetor para ouvirem o que ela tinha a falar. Nesse
momento a vítima estava no quarto
em fraldas de camisa e escorrendo em sangue; estava sentada na cama e Hermógenes em pé, com um pé em cima da cama e com o cotovelo em cima da cocha e com o relho na mão sempre abanando, disse muitas coisas e no fim de cada coisa feia que ele dizia, sempre com o relho em ameaça, assim perguntava para D. Maria: ‘não é verdade que vancê disse isto, isto e isto, etc.?’ ao que ela respondia: ‘é sim senhor!’130.
Anteriormente escrevi que uma das principais características do Estado é o fato de ele
possuir o monopólio da coação física legítima e as ações de Hermógenes demonstram o
quanto essa violência pode ser usada para fins diversos. Evidentemente que em termos de
políticas públicas e de organização social a ação do Estado muito dificilmente encontrará
128 Idem. 129 Idem. 130 Idem.
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legitimidade, principalmente a longo prazo, se estiver sustentada só e somente só sobre a
violência, contudo, seria precipitado, ingênuo até, pensar que a possibilidade do seu emprego
não seja um regulador social eficiente. Os dados levantados não permitem afirmar se o caso
envolvendo Hermógenes e Maria José dos Santos era corriqueiro. Contudo, como assinalei
acima, a presença do inspetor de quarteirão nos processos crime é constante: por vezes em
função de sua arbitrariedade, outras por estarem utilizando o cargo em beneficio próprio ou de
algum correligionário político. Eles também são acionados para resolver problemas
específicos daquela sociabilidade, por exemplo, quando os porcos, galinhas, bois ou cavalos
de um indivíduo estraga a roça de seu vizinho. Nesses momentos, fica claro o quanto a
autoridade deles era reconhecida e, no caso de alguma das partes ficar insatisfeita com o
arbítrio do inspetor, invariavelmente ela procurava o seu superior hierárquico ou tentava
resolver a situação por meio do emprego da violência física direta.
Um outro meio pelo qual o governo fazia-se presente nas diferentes regiões do estado
era através da Diretoria de Terras e Colonização, que era responsável por organizar as
populações que viviam nas terras devolutas, administrar as colônias e exercer a tutela dos
grupos indígenas. A diretoria estava ligada à Secretaria dos Negócios das Obras Públicas
(SENOP) e tinha como um dos seus principais idealizadores e coordenadores o positivista
religioso Carlos Torres Gonçalves. Também a escola exercia papel fundamental no processo
de levar as representações formuladas pelos funcionários de Estado às populações do Rio
Grande do Sul. Ainda nesse sentido, o PRR e seu órgão de imprensa – o Jornal A Federação –
exerciam papel muito forte na difusão dessas representações. A respeito do partido, de seu
principal nome, bem como do Jornal, João Neves da Fontoura ressalta em suas memórias:
Júlio de Castilhos, filho da campanha, acrescentou aos antecedentes de caráter local sua impregnação positivista. O Partido, de que foi, em última análise, o modelador, recebeu em cheio a transfusão daqueles rumos de orientação. Eu creio já ter escrito que parecia menos um partido político do que uma escola filosófica, uma religião. Se quiserem diminuindo-o: uma seita. Mas era assim. A conduta de “A Federação”, que antes mencionei, e falando sem menor desaire, tinha tudo de um Tribunal de Santo Ofício partidário, que condenava também os correligionários quando viviam, se externavam ou atuavam fora da linha ortodoxa! Não admira, por isso, o descontentamento que essa atitude de órgão oficial provocava entre os chefes e subchefes, e até na massa de correligionários. Não o formulavam, mas jazia dentro de cada um131.
131 João Neves da Fontoura. Idem, op. cit., p. 35.
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Embora existisse uma forte coesão política das lideranças locais em torno do PRR e
seu órgão de imprensa, Fontoura também registra que a relação dos políticos com a população
em geral não se dava de forma unilateral. Pelo contrário, era mediada pelos interesses desta
em relação a questões práticas e que diziam respeito a sua vida cotidiana. Assim, enquanto os
políticos de carreira empunhavam a bandeira do progresso, do melhorar conservando e da
qualificação do homem rural, esses, por seu turno, estavam preocupados com a incidência dos
impostos, a atuação dos inspetores e a conservação das estradas, por exemplo.
Acerca disso, Fontoura relata uma situação em que ele e seu pai, então candidato a
intendente do município de Cachoeira do Sul, nas proximidades do pleito, andavam pelo
interior do município a pedir votos quando chegaram a uma casa e foram atendidos por uma
mulher que, ao perceber que procuravam por seu marido, chamou-o dizendo: “fulano, tem
visitas; chegou o tempo dos ricos andarem incomodando os pobres!”132. Em seguida ao
chamado, veio o “dono da casa”, ao qual, depois de “uma conversa sobre a chuva e o tempo”,
o pai de Fontoura pediu apoio no próximo pleito – “nessa altura, inevitavelmente começava
um rosário de queixas: o pontilhão da estrada do fundo que se achava em mau estado, o
imposto sobre veículos que tivera de pagar com multa, o inspetor que não viera a chamado
quando os porcos do vizinho invadiram o cercado. E assim por diante”133. Ou seja, a situação
demonstra que a relação entre governantes e governados não era e não é uma via de mão
única134.
Evidentemente que, nessa cadeia de relações, exerce papel muito importante o uso
institucional da violência e da coerção. No entanto, considero que analisar a relação
Estado/sociedade apenas pelo prisma da violência ou das relações de produção não é
suficiente, visto que é preciso dar a devida atenção aos diversos meios políticos que os
diferentes grupos usam para lidar com o Estado, seja para resistir à sua dominação, seja para
legitimá-la. Caso contrário, a vida em sociedade se tornaria insuportável135. Em outros termos,
considero que o Estado é um aparelho de dominação, que as representações por ele
concertadas, entre outros, tem o sentido de justificar tal dominação e que as suas ações têm a
perspectiva de favorecer os grupos mais bem posicionados socialmente. Contudo, isso não
deve ser tomado como condição de passividade e imobilidade por parte dos grupos menos 132 Idem, p. 168. 133 Idem, ibidem. 134 Para conhecer como era importante para os intendentes realizarem uma boa administração que repercutia na realização de trabalhos de melhoria da infra-estrutura dos municípios para que, assim, se garantissem no poder, ver: LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e regime representativo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997. 135 Para conhecer de forma mais profunda a relação entre política e violência, cf.: ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
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favorecidos. Alguns dos casos aqui relatados a partir dos processos crime dão força ao
argumento, uma vez que em muitos deles a resistência é o seu foco central. Embora, em
muitos casos, ela não tenha sido obra de planos previamente elaborados, a ação de pessoas
como Francisco Santos, Felisbina Silva e Hermógenes Silva (autores do pasquim antes citado)
demonstram a existência de estratégias diferenciadas de inserção e contestação social.
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3 NÃO ME CHAME DE GRINGO, POIS ISTO QUER DIZER LADRÃO: IMIGRANTES, NEGROS, ÍNDIOS E NACIONAIS NA REGIÃO SERRANA
Cesário Antonio Lopes, idade quarenta dois anos, natural da Província de São Paulo, negociante e morador nesta freguesia. Respondeu que sabe por ser público que indo uma escolta composta de bugres1 a fim de capturar a quatro bugres de nomes Marau, Luís, Thomé, Cauteau, os quais mataram a quatro moradores desta Freguesia, que estavam na Serra, a fim de os roubar, digo para roubar, e sendo estes bugres alcançados pela escolta dos outros bugres que por mandado do sub delegado deste distrito foram para os capturar, aqueles resistiram a escolta, e esta os matou, tendo lugar este fato nos matos da serra desta Freguesia, há três para quatro meses, disse mais, ela testemunha que uma das quatro mortes que aqueles bugres fizeram para roubar é um menor de nome Francisco.
APERGS. Processos Crime 1.703. Cartório Civil Crime. Município de Cruz Alta, 1855. Maço 43.
3.1 DE ESTRANGEIROS A COLONOS: OU SOBRE AQUELES QUE SÃO OS “OBREIROS DA NOSSA
RIQUEZA”
Um aspecto importante sobre a imigração, ou melhor, sobre a maneira como os
imigrantes se estabelecem nas sociedades de acolhimento é o de que, enquanto fenômeno
social e político, a imigração está intimamente vinculada à ordem nacional, visto que o
imigrante pertence a uma determinada nacionalidade, a qual, especialmente nos tempos mais
recentes, conforma e identifica-se com o Estado. Outra característica relevante da imigração é
que ela é dupla, pois o imigrante é, ao mesmo tempo, um emigrante. Assim, do ponto de vista
do pertencimento nacional, a imigração pode ser definida como a presença no seio da ordem
nacional de “indivíduos não-nacionais (...), e a emigração, por simetria, como a ausência da
ordem nacional (...); o imigrante é aquele que realiza essa presença estrangeira e,
correlativamente, o emigrante é aquele ausente que se encontra no estrangeiro”2. As pessoas
que vieram da Europa e estabeleceram-se no Rio Grande do Sul no período analisado eram
imigrantes em relação ao Brasil; o Estado brasileiro os considerava estrangeiros e impunha 1 Designação pejorativa dada aos índios no contexto local – geralmente é utilizada para fazer referência ao “índio bravo”. Sobre a utilização deste termo na região sul do Brasil, ver: SANTOS, Sílvio Coelho dos. Índios e brancos no sul do Brasil: a dramática experiência dos Xokleng. Florianópolis: EDEME, 1973. 2 SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Editora USP, 1998, p. 266.
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exigências para sua naturalização. Em relação a sua nação de origem, elas eram emigrantes e,
ao emigrarem, na sociedade de acolhimento tornavam-se estrangeiras, portanto, submetidas
às regras, preceitos e leis que a nação receptora definia àqueles que entravam nessa condição.
Desse modo, “as duas ordens (a ordem da emigração e a ordem da imigração) e a ordem
nacional, estão substancialmente ligadas uma à outra”3 e, como intimamente relacionada à
ordem da nação está a do Estado, a situação do imigrante também depende do modo como se
estabelecem as relações entre as diferentes ordens.
Todavia não é apenas o estatuto jurídico de estrangeiro e os vínculos do imigrante
com a sociedade de origem que define a sua inserção na sociedade de acolhimento. Via
naturalização, a qual é possível a partir do cumprimento de critérios exigidos pela sociedade
de imigração, o imigrante pode romper com a condição de estrangeiro. Entretanto, mesmo
que consiga resolver sua situação civil e passar da qualidade de estrangeiro para a de cidadão,
sua condição social, ou seja, a posição que ocupa na hierarquia da sociedade, geralmente
subordinada, tem o “efeito de lembrar a todos, ao imigrante e à sociedade de imigração, sua
origem nacional ou comunitária”4. Desse modo, o imigrante “seja ele naturalizado ou não,
sempre é remetido a sua condição de origem, ou seja, ao seu país e a sua nacionalidade”5. Em
outras palavras, a mudança do estatuto jurídico não significa mudança na condição social.
Conseqüentemente a situação do imigrante é paradoxal, visto que, por um lado, ele “não é
‘nacional’ da ordem nacional na qual a imigração o colocou e o levou a viver” e, por outro, a
“emigração o levou a viver (e viver de forma duradoura) fora da ordem nacional da qual é
‘nacional’!”6.
Para aplicar tais considerações – elaboradas por Abdelmalek Sayad para pensar
questões relacionadas ao fenômeno imigratório atual, principalmente os relativos a emigração
de “nacionais” de países pobres para países ricos – à realidade ora analisada é necessário
realizar um trabalho de adaptação dos temas e conceitos empregados pelo autor. Contudo,
mesmo que existam diferenças profundas entre a imigração que ocorria no início do século
XX e a que ocorre atualmente, alguns fatores são recorrentes. Por exemplo, a imigração, na
maioria das vezes e independente do tempo histórico em que ocorra, não é um fenômeno
única e estritamente econômico, a partir do qual as pessoas buscam encontrar em outros locais
melhores condições de vida. Ela é também um fenômeno político, cuja existência envolve,
entre outras coisas, as relações e tratados formados e firmados entre diferentes nações e
3 Idem, ibidem. 4 Idem, p. 268-269. 5 Idem, ibidem. 6 Idem.
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Estados nacionais. Um outro aspecto característico da imigração com o qual Sayad trabalha,
talvez o que mais interessa para esta análise, diz respeito à forma como o imigrante se insere
na sociedade de acolhimento, sua relação com a sociedade da qual é originário e o quanto sua
inserção social está vinculada ao complexo: Estado, nação, imigração.
Uma diferença a ser assinalada entre os casos que servem de referência para Sayad e
os aqui analisados é que os imigrantes que vinham ao Rio Grande do Sul no início do século
XX, em relação aos moradores originários do território, recebiam benefícios, tais como os
relativos à aquisição da propriedade da terra7. No caso da imigração argeliana para França
estudada por Sayad, não há nenhum tipo de favorecimento fundado em uma política pública
voltada à atração de imigrantes, facilitando a instalação de tais indivíduos na sociedade
francesa em relação aos “franceses” propriamente ditos. Entretanto, os privilégios recebidos
pelos imigrantes chegados ao Rio Grande do Sul não os livravam da condição de
estrangeiros, prova disso foi o esforço realizado no sentido da sua “assimilação”. Ademais, as
facilidades de instalação oferecidas e a própria imigração foram objeto de atrito dentro do
Estado. Veja-se, por exemplo, as críticas feitas por Torres Gonçalves na perspectiva de que os
favores oferecidos aos imigrantes fossem estendidos aos nacionais:
infelizmente aqui no meu estado, o nosso secretário das Obras Públicas [chefe direto de Torres Gonçalves] está muito longe de tal atitude [proteção aos indígenas e localização dos nacionais]. Por vezes já me tem objetado que os nossos patrícios do interior não passam de uns vadios, merecendo, em vez de proteção do governo, que lhe tenho indicado, a expulsão das terras que ocupam e que não sabem aproveitar! 8.
Pensar o problema da imigração, portanto, significa também pensar as formas como as
sociedades de imigração e as de emigração estabelecem seus acordos, elaboram seus projetos
e definem suas relações. Muitas vezes, os interesses das nações envolvidas são
complementares, fato que pode ser verificado no caso do movimento imigratório ocorrido no
período sob análise. Nesta perspectiva, alguns estudiosos do fenômeno têm pontuado o quanto
a imigração representou, para as sociedades de origem, um equilíbrio populacional, e, para as
de destino, um incremento de sua população adulta, logo, da camada capaz de trabalhar9.
7 Esta questão será mais detidamente abordada no próximo capítulo. 8 Carta de Torres Gonçalves a Miguel Lemos, 8 de Setembro de 1909. Apud. PEZAT, Paulo Ricardo. Carlos Torres Gonçalves, a família, a pátria e a humanidade: a recepção do positivismo por um filho espiritual de Augusto Comte e de Clotilde de Vaux no Brasil (1875-1974). Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2003, p. 184. (Tese de Doutorado). 9 Sobre esse tema, verificar: MARTINS, José de Souza. Imigração e crise no Brasil agrário. São Paulo: Pioneira, 1977.
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Todavia, a imigração também era fator de conflito e, geralmente, os atritos estavam
relacionados ao lugar social que o imigrante efetivamente ocupava aqui no Brasil e as
expectativas que, tanto a sociedade de emigração quanto o próprio imigrante, tinham em
relação a esse lugar. Também entrava nesse jogo os interesses e expectativas partilhados pela
sociedade brasileira como um todo a respeito dos imigrantes. O fato ocorrido, em meados do
século XIX, em uma fazenda de café situada no estado de São Paulo descrito por Thomaz
Davatz, é um exemplo significativo, tanto das ações realizadas pelos imigrantes no sentido de
verem respeitados seus interesses como da interferência das autoridades de seu país de origem
na perspectiva de resolver a situação10. Da mesma maneira, as constantes proibições que
alguns países europeus impunham a mudança de seus cidadãos para o Brasil também
demonstram a pertinência do argumento11.
Para conhecer mais detalhadamente como se constituía a relação entre o Brasil e as
sociedades de emigração, passo a analisar um relatório escrito em 1925 por Umberto Sala –
advogado originário da Itália, que trabalhou no Consulado Italiano de São Paulo entre 1922 e
192512. Sala atuava em atividades burocráticas próprias do Consulado e, algumas vezes, foi
representante do governo italiano em visitas feitas a fazendas que empregavam mão-de-obra
provinda da imigração. O relatório traz informações importantes a respeito da atuação dos
agentes do governo de um país de emigração no sentido de influenciar o modo como se dava
o estabelecimento dos imigrantes na sociedade de acolhimento. Da mesma forma, permite
conhecer os interesses, tanto da sociedade de emigração como da de imigração, relativos aos
imigrantes, assim como alguns detalhes relacionados ao lugar social que os imigrantes
italianos ocupavam no contexto do estado de São Paulo durante a Primeira República. Dados
que podem ajudar na compreensão de aspectos vinculados à forma como aconteceu a inserção
dos imigrantes na região serrana. Não obstante, também servem como ponto de partida na
10 Consultar: DAVATZ, Thomas. Memórias de um colono no Brasil(1850). São Paulo: Livraria Martins, 1972. Em suas memórias, Davatz descreve a experiência que teve como imigrante e trabalhador rural na fazenda de Ibicaba de propriedade do então Senador Nicolau de Campos Vergueiro. Trata-se de uma das primeiras experiências de utilização de mão-de-obra imigrante em forma de parceria ocorridas no século XIX. Contudo, diante das dificultades encontradas pelos colonos e da excessiva exploração a que eram submetidos, eles se revoltam e, sob a liderança de Thomas Davatz, passam a exigir melhores condições de vida e o cumprimento das promessas feitas ainda na Europa. Uma das principais conseqüências da revolta foi a proibição por parte dos governos da Suíça e da Alemanha da imigração para o Brasil. 11 Para conhecer mais detalhadamente a história da imigração no Brasil e as questões que lhe dizem respeito, ver: PETRONE, Maria Theresa Schorer. O imigrante e a pequena propriedade (1824-1930). São Paulo: Brasiliense, 1984; LANDO, Aldair Marli; BARROS, Eliane Cruxên. A colonização alemã no Rio Grande do Sul: interpretação sociológica. Porto Alegre: Movimento, 1981; DACANAL, José; GONZAGA, Sérgius (Orgs.). RS: imigração e colonização. Porto Alegre, 1980; José de Souza Martins. Idem, op. cit.; DIÉGUES JÚNIOR, Manuel. Imigração, urbanização e industrialização. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, 1964 e outros que serão citados ao longo deste texto. 12 SALA, Umberto. A emigração italiana no Brasil (1925). Maringá: EDUEM, 2005.
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perspectiva de comparar as diferenças e semelhanças entre o processo imigratório ocorrido no
estado de São Paulo e o no do Rio Grande do Sul, embora não seja esta a prioridade aqui.
Chamam atenção no relatório de Sala suas conclusões pessimistas a respeito da
situação dos imigrantes italianos que viviam em São Paulo. No entanto, isso não o impedia de
defender que a América do Sul – principalmente o Brasil e, dentro dele, São Paulo – fosse o
lugar ideal para onde os italianos que optassem ou se vissem obrigados a sair da Itália
deveriam rumar. De acordo com Sala, os imigrantes italianos que viviam em São Paulo
encontravam-se em um estado de penúria, cuja origem era a inexistência, no Brasil, de um
Estado estruturado capaz de fazer valer os acordos assinados com os países de origem dos
imigrantes. Assim, para demonstrar as deficiências do Estado brasileiro o advogado italiano
tece críticas a justiça pública e sublinha que muito dificilmente os pobres, situação em que a
maioria dos imigrantes se encontrava, teriam condições de mover um pleito contra seus
“exploradores”13 e, quando conseguiam, geralmente o resultado era a perda da causa.
Da mesma forma, ao tratar de um acordo assinado em meados da década de 20, entre o
Estado de São Paulo e o Governo italiano para entrada de imigrantes, Sala escreve que os
preceitos acordados, por exigirem uma estrutura administrativa sofisticada, a qual não existia
em São Paulo, dificilmente seria cumprido: “esse acordo é um puro exercício teórico, do qual
pouco de positivo pode surgir”14. Conforme o autor, as garantias oferecidas por São Paulo e
pelo próprio Governo Federal a respeito da “tutela e administração da nossa emigração são
desprovidas de qualquer confiabilidade, já que, contra elas, estão a desorganização geral, a
falta de um sistema administrativo e de uma burocracia capaz e imparcial”15.
Diante disso, ponderava que era necessária uma maior atuação do governo italiano no
sentido de proteger seus cidadãos emigrados. Uma das medidas propostas por Sala era que o
Estado italiano, conjuntamente com a iniciativa privada, fizessem aquisição de terras no
Brasil, as quais deveriam ser repassadas, mediante pagamento de preços módicos e via
financiamentos, aos imigrantes em forma de pequenas propriedades, pois era “inútil supor que
o problema da emigração italiana no Brasil possa ser resolvido através de acordos
convencionais entre os poderes públicos dos dois Estados”16.
Sala também trata da possibilidade da imigração italiana ser direcionada aos estados
situados mais ao sul do Brasil. Considera que Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná,
13 Nesse caso específico Sala refere-se aos fazendeiros paulistas que empregavam a maioria da mão-de-obra proveniente da imigração italiana e a alguns industriais que tinham os imigrantes como principal reduto fornecedor de trabalhadores. 14 Umberto Sala. Idem, op. cit., p. 47. 15 Idem, ibidem. 16 Idem, p. 55.
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embora pudessem oferecer “excelentes oportunidades para absorção de nossos emigrantes”17,
não ofereciam condições materiais para o estabelecimento dos mesmos. Tal circunstância era
resultado da má localização das colônias e da “inaptidão” dos imigrantes que estavam
chegando ao Brasil naquele período para viver “os sofrimentos inevitáveis da colonização de
terras virgens”18.
A questão da cidadania também foi alvo das reflexões de Sala. Para ele o assunto era
um dos principais pontos de divergência entre Itália e Brasil, especialmente em relação aos
filhos dos imigrantes, que, segundo o funcionário do governo italiano, encontravam-se “numa
situação de ambigüidade que não lhes permite gozar os direitos de participação cívica nem na
Metrópole nem no lugar onde vivem”19. Os emigrados, segundo Sala, “raramente se
preocupavam com tais questões”, seja por não conhecê-las, seja por não se preocuparem com
elas, a não ser quando por necessidade de exercer alguma profissão eram obrigados a pedir
cidadania brasileira. Assim, escreve o advogado, a maioria dos emigrados continuavam a
usufruir da sua cidadania italiana, a qual pouco os beneficiava em termos cívicos e políticos,
já que estavam ausentes da “Pátria-mãe, e não tinham como influenciar o ambiente onde
viviam e operavam, pois, do ponto de vista dos direitos civis, eram estranhos, uns
desconhecidos”20.
Sala considerava tal situação “absurda”, pois entendia que devido à circunstância de a
entrada de imigrantes no Brasil ser habitual e uma parte considerável da população do estado
de São Paulo ser composta de emigrantes italianos, não havia razões para que eles não se
tornassem cidadãos e tivessem acesso aos direitos e deveres que tal condição proporcionava.
Entretanto, não era apenas a falta de interesse dos imigrantes em pedir sua cidadania e a não
existência de uma política de Estado voltada a regularizar a situação dos mesmos que era
responsável pela situação. Os próprios imigrantes demonstravam resistência em renunciar sua
cidadania italiana, pois ela tinha um “grande valor simbólico e afetivo”:
no exercício das suas funções, o autor não se recorda de um único caso de colono que tenha requerido a cidadania local sem uma necessidade profissional imperativa. E aqueles poucos que o fizeram nessas condições são vistos pelos compatriotas como renegados ou traidores. Magnífica garantia para a manutenção da italianidade entre os nossos expatriados, mas os deixa ainda mais débeis no país que os acolhe21.
17 Idem, p. 117. 18 Idem, ibidem. 19 Idem, p. 122. 20 Idem, ibidem. 21 Idem, p. 124.
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Todavia, não era apenas por questões afetivas e simbólicas que os imigrantes italianos
não renunciavam a sua cidadania pátria. Thales de Azevedo, em estudo sobre a imigração
italiana no Rio Grande do Sul, assinala que “a disposição de se radicar no País nem sempre
acarretará a renúncia à cidadania antiga. São coisas distintas e essa ambígua situação pode até
resultar vantajosa em dadas circunstâncias”22. Para exemplificar, Azevedo narra a intervenção
do governo italiano em prol de alguns imigrantes que, em 1893, sofreram prejuízos por causa
da Revolução Federalista. Outro caso semelhante foi a organização, em 1897, de uma
comissão mista, composta por membros do governo italiano e brasileiro, a qual deveria julgar,
também em função da Federalista, “375 reclamações e avaliar os prejuízos alegados por
súditos italianos fixados na região colonial e na campanha”23.
Para uma idéia do quanto a questão da cidadania é complexa, no segundo exemplo
apresentado por Azevedo, o trabalho da comissão encontrou dificuldades em “verificar a
nacionalidade da grande maioria dos requerentes”, pois muitos dos interessados, “na opinião
do membro brasileiro da comissão deveriam já serem brasileiros”24 por exercer funções
públicas, ou por não ter feito declaração para conservar sua nacionalidade de origem como
exigia o nº 4 do Artigo 69 (Título IV, Seção I), da Constituição Federal de 24 de Fevereiro de
1891. A Constituição determinava que seriam considerados cidadãos brasileiros todos os
indivíduos nascidos no Brasil, ainda que filhos de pai estrangeiro, mas com a condição de que
este não residisse no Brasil a serviço da sua nação. Também estipulava que tornar-se-iam
brasileiros todos os estrangeiros que se achando no Brasil aos 15 de Novembro de 1889 não
declarassem, após seis meses da entrada em vigor da Constituição, a vontade de conservar a
nacionalidade de origem. Por fim, no parágrafo 3º, definia que uma lei federal determinaria as
condições para a requisição dos direitos de cidadão brasileiro25.
A questão da cidadania e da naturalização dos estrangeiros não foi regulada somente
pela Constituição Federal, mas, ao longo da Primeira República, uma série de decretos e
decisões a esse respeito foram tomadas. Considero que não cabe aqui fazer uma abordagem
aprofundada da legislação federal existente na época sobre a imigração e a conseqüente
naturalização dos imigrantes, não obstante, procurarei, sem fazer grandes pormenorizações,
apresentá-la e mostrar algumas das suas especificidades. Para tanto, me apoiarei basicamente
22 AZEVEDO, Thales. Italianos e gaúchos: os anos pioneiros da colonização italiana no Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1982, p. 267-268. 23 Idem, ibidem. 24 Idem. 25 REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Constituição de 1891. O texto integral da Constituição aqui utilizado encontra-se em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm. Dados coletados em 20/08/07, às 11h40min.
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em artigo escrito por Giralda Seyferth, no qual ela desenvolve abordagem iluminadora a
respeito do problema26. Em seu texto, Seyferth estabelece uma comparação entre a leis
imigratórias e os projetos de colonização existentes durante o período Imperial com os que
vigoraram no regime republicano e mostra que não existiu uma distinção absoluta entre os
dois momentos, sendo a grande diferença o fato de que “no Império, eram especificadas as
nacionalidades européias almejadas pelo agenciamento; na República, houve restrições
explicitas, baseadas em critérios raciais”27. Entretanto, ambas as legislações tomavam como
critério de aceitação dos imigrantes o primado da raça branca.
No caso da República, o exemplo mais significativo disto é o Decreto nº 528, de 28 de
junho de 1890, cujo objetivo era regularizar o serviço de introdução e localização de
imigrantes. Tal decreto, além de definir como impróprios para atuarem na colonização os
“indesejáveis de sempre – mendigos, indigentes, criminosos – a eles acrescentava os
‘indígenas da Ásia ou da África’, que só poderiam ser admitidos com autorização expressa do
Congresso Nacional”28. Ainda sobre o Decreto nº 528, a autora chama atenção para o Artigo
42, no qual há uma “abertura” para os “nacionais”, que possibilitava sua admissão em áreas
de colonização desde que somassem 25% do total de imigrantes localizados, mas para tanto
deveriam se demonstrar “morigerados, laboriosos e aptos para o serviço agrícola”29.
No Rio Grande do Sul, a tarefa de definir se os “nacionais” cumpriam ou não às
exigências do decreto cabia aos dirigentes das colônias e aos funcionários da DTC. Tal
situação trazia problemas, pois além de o montante de 25% ser bastante irrisório, era comum
os funcionários do Estado responsáveis pela administração das colônias não levarem tal artigo
em consideração. Nesse sentido, como já grifei no capítulo anterior, Carlos Torres Gonçalves,
em seu relatório de 1926, relata que uma das medidas tomadas para garantir que os
funcionários do estado dariam a devida atenção aos “nacionais” foi extinguir as porcentagens
que eles recebiam pela cobrança da dívida colonial, pois “estas induziam a preferência pelos
estrangeiros (geralmente italianos ou alemães), que pagavam mais pela terra e mais
prontamente”30. Este é um exemplo nítido do quanto as políticas de imigração e a prática da
26 SEYFERTH, Giralda. Imigração, ocupação territorial e cidadania: o vale do Itajaí e a política de colonização na Primeira República. In.: CUNHA, Olívia Maria Gomes da; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2007, p. 79-118. 27 Idem, p. 97. 28 Idem, p. 95. 29 Idem, p. 96. 30 GONÇALVES. Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 442. In.:OLIVEIRA, Sergio Ulrich de. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros presidente do Estado do Rio Grande do Sul pelo Dr. Sergio Ulrich de Oliveira Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas em setembro de 1926. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, Volume 2, 1926, p. 409-470. (AHRS - OP. 83).
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colonização foram responsáveis pela construção da diferença, a qual marcou de modo
decisivo e profundo as relações dos imigrantes com os outros grupos sociais que com eles
atuaram no povoamento da região.
Outra Lei que regulou a imigração no Brasil foi a de nº 97, de 15 de outubro de 1892,
a qual permitiu a livre entrada de chineses e japoneses, mas manteve a restrição imposta aos
“indígenas da África” pelo Decreto 528. Essa alteração, pondera Seyferth, adveio dos
interesses comerciais que o Brasil tinha na época com a China e o Japão. Assim é preciso
estar-se atento para o fato de que a tese da desigualdade das raças humanas, cujo traço mais
peculiar no Brasil foi o desenvolvimento da idéia de branqueamento31, foi responsável por
atribuir “aos europeus o lugar mais alto na hierarquia biológica que, no Brasil, se pautou pelos
fenótipos, forneceu ao nacionalismo e aos legisladores os ‘fundamentos científicos’ para
orientar a imigração”32. Dessa maneira, a concessão feita aos asiáticos estava longe de ter um
sentido igualitário e apenas “mostra a preeminência dos fatores econômicos no contexto
mundial, apesar da força ideológica do racismo”33.
Em 1907, por meio dos decretos nº 6.455 e nº 6.479 que criaram, respectivamente, o
Serviço de Povoamento do Solo Nacional (SPSN) e sua diretoria, nova alteração é realizada
na política imigratória brasileira, a qual devolveu à União um maior controle sobre a
imigração e a colonização, visto que ele havia sido legado aos estados ainda durante o
Governo Provisório. A partir desse momento, o serviço de povoamento deveria ser promovido
pelo Governo Federal diante “do acordo com os estados, empresas de viação férrea ou fluvial,
companhias e associações particulares”34. Tais dispositivos visavam dar maior centralização
às decisões relativas a imigração e tinham o sentido de garantir um maior controle sobre “à
formação do ‘tipo nacional’, isto é, à raça histórica preconizada nas teorias sobre a
miscigenação”, bem como carregavam um sentido pragmático, uma vez que na base de suas
motivações estavam a
falta de recursos dos estados, que poderia comprometer o desejado povoamento; a alta concentração de imigrantes em São Paulo desde a última
31 Sobre o ideal de branqueamento, Seyferth escreve que ele foi “convertido em tese científica por uma parte da inteligência brasileira, que anunciava a possibilidade de formação de uma raça histórica (desde o século XVI), através da miscigenação seletiva. Paradoxalmente inspirada em doutrinas raciais deterministas, que condenavam a miscigenação excessiva considerando-a causa da decadência das civilizações, a tese do branqueamento imaginava uma ‘redução étnica’ a partir do caldeamento entre raças desiguais. Baseado na crença da superioridade ‘branca’, esse caldeamento devia produzir um povo paulatinamente mais claro e o sumiço dos negros, índios e mestiços mais escuros, com o concurso da imigração européia”. Cf.: Giralda Seyferth. Imigração, ocupação territorial e cidadania. Idem, op. cit., p. 97. 32 Idem, p. 96-97. 33 Idem, ibidem. 34 Idem, p. 101.
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década do século XIX, por ser o único estado a garantir a imigração subsidiada; o fato de a maioria das empresas colonizadoras pertencer a estrangeiros, além do debate sobre os indesejáveis, diante da anunciada retração dos fluxos europeus e do início da imigração japonesa35.
Ao longo da Primeira República outros decretos e leis relativos à imigração são
sancionados com destaque especial para o Decreto nº 9.081 de 1911, responsável por dar um
novo regulamento ao Serviço de Povoamento. No entanto, ele manteve as considerações
existentes nas determinações anteriores, principalmente no que diz respeito as suas referências
aos nacionais e ao privilegiamento do imigrante europeu. Ainda sobre esse assunto, é
importante assinalar que existia uma distância entre as definições presentes nas leis e decretos
sobre como deveriam ser os núcleos coloniais e a efetiva prática da colonização. Nesse
sentido, ocorreram vários problemas dificultando a instalação dos imigrantes nas colônias, tais
como sua localização em terrenos acidentados e pouco adequados para o cultivo.
Circunstâncias que, entre outras coisas, resultaram numa maior mobilidade dos imigrantes,
fato que batia de frente com os interesses da política imigratória, visto que seu objetivo era
que eles se tornassem pessoas fixas à terra, morigeradas e dóceis politicamente36.
Por sua vez, como destaca Seyferth, o não cumprimento dessas expectativas por parte
dos imigrantes, especialmente a partir de 1930, definiu novos rumos à política imigratória,
resultou numa maior intervenção do Estado nas zonas coloniais objetivando apurar a
“assimilação”, bem como contribuiu na definição do estatuto de cidadania, no qual os
imigrantes se enquadravam ou, ao fim e ao cabo, foram enquadrados. Dessa forma, os
imigrantes que depois de instalados nas colônias passavam a ser identificados como colonos –
“termo oficial atribuído a um tipo específico de pequeno produtor rural associado à fronteira
agrícola” que “era sinônimo de imigrante ou descendente”37 – também foram alvo de
discriminação, assim como os negros egressos da escravidão, os índios e os nacionais.
O problema da cidadania era de tão difícil resolução que Umberto Sala chega a
escrever que os filhos de imigrantes nascidos no Brasil viviam sob duplo controle nacional:
“divididos entre obrigações e tendências contrastantes e incapazes de valorizarem-se seja em
um sentido seja em outro”38. Somado a isso, também ocorria uma “sobreposição das
35 Idem, p. 102. 36 Este problema será mais detidamente abordado no próximo capítulo. Sobre o tema da mobilidade social, suas causas e objetivos, ver: SEYFERTH, Giralda. Concessão de terras, dívida colonial e mobilidade. In.: Estudos, Sociedade e Agricultura, v.7, 1996, p. 29-58. 37 Giralda Seyferth. Imigração, ocupação territorial e cidadania. Idem, op. cit., p. 115. 38 Umberto Sala. Idem, op. cit., p. 125.
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autoridades brasileiras e italianas”39 dificultando a relação. Sobreposições que encontravam
existência prática, por exemplo, no caso da emissão de passaportes que poderiam ser
fornecidos tanto pelos cônsules italianos como pelas autoridades brasileiras. Assim, ocorriam
casos em que as autoridades brasileiras recusavam-se a darem vistos a documentos emitidos
para filhos de italianos pelos cônsules da Itália; estes, por sua vez, faziam o mesmo quando
era necessário que reconhecessem a validade de documentos emitidos pelas autoridades
brasileiras.
Outro problema era o da prestação do serviço militar, uma vez que os filhos de
imigrantes eram convocados a prestar serviço, tanto no exército brasileiro como no italiano.
Embora, na maioria dos casos, fossem dispensados pelo exército italiano, não estavam isentos
do alistamento e, segundo Sala, o número de desertores era relativamente baixo e sua ida à
Itália só era impedida devido à falta de recursos do governo italiano para fazer o transporte
dos recrutas. As opiniões de Sala sobre o exército brasileiro são bastante duras e chega a tratá-
lo como uma instituição “fraca e insignificante”. Suas críticas são mais ácidas quando escreve
sobre a convocação feita, pelo exército brasileiro, aos filhos de imigrantes que haviam
participado da Primeira Guerra Mundial e lutado em prol da Itália. Sala via nestes homens –
os “veteranos de guerra” – um dos grupos mais indicados para defender a italianidade, pois
eles haviam participado da “vida da Pátria em um momento de forte perigo e de despertar de
paixões”, assim, eram portadores dos traços psicológicos e idealistas “necessários para
cumprir uma fervorosa e concreta obra de propaganda entre os colonos”40.
Entretanto, não era apenas entre os veteranos da primeira guerra que Sala depositava
suas esperanças relativas a manutenção de uma certa identidade italiana entre os emigrados.
Ele também narra sua atuação como organizador de grupos ligados ao fascismo: “o fascio
local tem hoje dois mil associados, enquanto a Associação dos Veteranos de guerra tem mais
de três mil”41. O autor define tais grupos como “núcleos de italianidade”, quanto a seus
integrantes apresenta-os como a “fina flor da juventude italiana” e sobre a sua atuação escreve
que eles conseguiram grandes avanços no campo da propaganda. O exemplo mais claro era o
de que as organizações fascistas, até então, haviam conseguido fundar, apenas no estado de
São Paulo, cerca de 48 seções “espalhadas por toda parte e não raramente nas localidades
mais longínquas”42. Sala afirma que tal fenômeno estava se espalhando por todo Brasil e, se
39 Idem, p. 126. 40 Idem, p. 148. 41 Idem, p. 147. 42 Idem, ibidem.
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assim seguisse, seria possível criar “uma teia capaz de organizar e coordenar a nossa
nacionalidade de uma maneira que pareceria impossível até pouco tempo atrás”43.
Realizar uma análise detalhada sobre o fascismo nas regiões coloniais levaria o estudo
para uma direção inicialmente não pensada, de qualquer forma é necessário que se dê a devida
atenção para a importância do movimento fascista no contexto da colonização italiana e sua
atuação na defesa de uma certa identidade étnica entre os grupos de imigrantes44. Naquilo que
diz respeito à questão da identidade pátria – tão pontuada por Sala ao longo do relatório – ela
deve ser lida, nos termos de Thales de Azevedo, como uma luta pela italianidade. Ou melhor,
a elaboração de uma identidade italiana entre os imigrantes deve ser observada também como
“um movimento de defesa e conservação do complexo sócio-cultural e econômico-político da
sociedade ‘colonial’” e não só enquanto “uma tentativa de manter os laços afetivos, políticos e
econômicos com a metrópole de origem”45.
Todavia, para conhecer mais detalhadamente o processo de incorporação dos
imigrantes na sociedade de acolhimento, outros fatores tão importantes quanto os esforços
realizados no sentido de manutenção de sua identidade pátria, devem ser levados em
consideração. Assim, mesmo nas situações onde a pressão para se manter uma certa
estabilidade identitária é constante, como no caso das regiões coloniais a “mudança é uma
inevitável função social inerente a todos os grupos organizados, inclusive os isolados. E é
tanto mais irresistível quando o grupo está em contato com outro que lhe seja alguma coisa
diverso”46 e, como grifei ainda no primeiro capítulo, a diversidade de origens étnicas e
sociais, bem como o contato entre esses diferentes foi uma das características mais marcantes
da região serrana.
As questões relativas ao complexo Estado, nação e imigração, salientadas por Sala,
também eram interpretadas pelos próprios imigrantes de um modo particular. Tais
interpretações geralmente eram formuladas pelos imigrantes a partir da realização de uma
leitura étnica da sua inserção nos quadros da sociedade de acolhimento. Giralda Seyferth, em
artigo que trata do problema na esfera da imigração alemã, chama atenção para tal fato e
mostra como “a questão da nacionalidade e da cidadania no contexto de uma etnicidade teuto-
brasileira” foi resultado do confronto entre diferentes concepções sobre Nação e Estado.
Assim, no caso estudado por Seyferth, a busca de integração política efetivada pelos teuto-
43 Idem. 44 Para aprofundar analiticamente as questões relativas ao fascismo e a imigração italiana, consultar: BERTONHA, João Fábio. Fascismo e os imigrantes italianos no Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. 45 Thales de Azevedo. Idem, op. cit., p. 244. 46 Idem, p. 245
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brasileiros era realizada a partir de uma associação entre o reconhecimento do Estado
brasileiro, enquanto entidade política territorial, e a etnia ou comunidade étnica dos grupos
imigrantes, expressa na germanidade e na vida característica das colônias, enquanto ponto de
referência de uma identificação nacional:
dois conceitos são fundamentais na definição dessa especificidade: nação e pátria, traduzidas na própria categoria de identificação criada pelas lideranças locais – Deutschbrasilianer [teuto-brasileiro]. A nova pátria é a colônia, a nova cidadania a brasileira, mas a etnia continua sendo alemã; o ato de emigrar significou o rompimento com o país de origem, mas não com o Volk (povo/etnia) alemão. O pertencimento sugerido por tal categoria remete, por um lado, a uma entidade supraterritorial – a nação alemã, concebida como entidade cultural e lingüística que une um povo da mesma origem – e, por outro lado, à cidadania e a um território considerado como Heimat [pátria] ou Vaterland – o Estado brasileiro47.
Dessa forma, há uma dissociação, por parte dos teuto-brasileiros, entre Nação e
Estado, a qual é possível pelo próprio modo como a colonização se desenvolveu, pois ela
exigiu dos colonos uma forte organização comunitária para suprir as necessidades que não
eram providas pelo Estado. Tal organização, ou melhor, a dissociação entre Nação e Estado
também era possibilitada pela reapropriação, por parte dos teuto-brasileiros, “da ideologia
nacionalista anterior à unificação alemã, que podia falar de uma nação sem Estado”. Assim, a
ligação com a Alemanha baseava-se “na comunidade de sangue e língua, naturalizada através
de um modo de vida alemão preservado nas colônias”48. Seyferth define essa concepção de
nação como “basicamente étnica e não política (...) a nação, nesse caso, é uma comunidade
imaginada, mas não politicamente imaginada; muito mais próxima do conceito weberiano de
comunidade étnica”49. Entretanto, o fato de não ser politicamente imaginada não
impossibilitou reações por parte do Estado brasileiro no sentido da nacionalização dos
colonos e de sua exclusão de participar da vida política devido o fato de serem estrangeiros.
Da mesma maneira, tal exclusão serviu como suporte para os colonos na perspectiva de sua
inserção enquanto comunidade nos quadros da política nacional e para reivindicação de seus
interesses. Foi, assim, importante motivo de conflitos.
Em outros termos, durante a Primeira República a maioria dos colonos não se
enquadrava nos conceitos de abrasileiramento então vigentes e este fato definia sua inserção,
tanto em termos sociais quanto políticos. Contudo, eles eram os representantes por excelência
47 SEYFERTH, Giralda. Identidade étnica, assimilação e cidadania: a imigração alemã e o Estado brasileiro, p. 05. In.: http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_26/rbcs26_08.htm. Texto coletado no dia 22 de agosto de 2007, às 11h40min. 48 Idem, ibidem. 49 Idem, p. 07.
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daquilo que se entendia como “civilização”, uma vez que eram brancos e provenientes da
Europa. Tal traço, por um lado, lhes garantia alguns privilégios comparativamente a situação
a que estavam expostos os outros grupos social e economicamente subordinados da sociedade
brasileira. Por outro lado, o fato de serem estrangeiros também definia o seu não
reconhecimento como cidadãos. O que nos leva a uma outra pergunta: quem efetivamente era
considerado Cidadão no período50?
As questões relacionadas à imigração, principalmente ao estabelecimento dos
imigrantes no Brasil, nunca foram consensuais e, ao longo da história, tanto as posições como
as interpretações daqueles que eram contrários ou responsáveis politicamente pelo
desenvolvimento das políticas imigratórias sempre foram divergentes51. A mesma constatação
é válida para o campo da produção intelectual a respeito do tema, visto que existem
estudiosos da questão que a analisaram a partir do ponto de vista da raça e da assimilação,
como Oliveira Vianna52. Outros que a interpretaram a partir das teorias da aculturação e talvez
o principal representante dessa “corrente” tenha sido Emílio Willems53. Nos últimos anos,
alguns estudiosos têm se debruçado sobre o tema da imigração e dos imigrantes tomando
como ponto de partida de suas análises questões ligadas às teorias da etnicidade e os
problemas relativos à identidade nacional, como fazem Giralda Seyferth54 e Jeffrey Lesser55.
A entrada de imigrantes no Rio Grande do Sul da Primeira República, longe de ter
sido um assunto de consenso foi matéria de muita discussão. Da mesma forma que existiam
interesses por parte das nações de emigração a respeito da transferência de seus súditos a
outros territórios, também os interesses das sociedades de imigração relativos às pessoas que
buscavam nela se estabelecer eram objeto da relação. No caso do Rio Grande do Sul, vigorava
a necessidade de povoamento de uma parte de seu território, o interesse nos lucros que
50 Para aprofundar a discussão sobre esse tema, ver: CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. Conferir também a já citada obra de Olívia Maria Gomes da Cunha e Flávio dos Santos Gomes. Quase-cidadão. Idem, op. cit. 51 Para conhecer alguns detalhes dessas divergências, no caso específico da colonização alemã para Rio Grande do Sul, ver: PICCOLO, Helga Iracema Landgraf. Imigração alemã e construção do Estado nacional brasileiro: Rio Grande do Sul, século XIX. In.: Acervo: Revista do Arquivo Nacional, volume 10, número 02, julho/dezembro, 1997, p. 165-179. 52 Ver: VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil: história, organização e psicologia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, vol. 1, 1938 e ___.Raça e assimilação. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1932. 53 WILLEMS, Emílio. A aculturação dos alemães no Brasil. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1980 e ___. Imigrants and their assimilation in Brazil. In.: MARCHANT, T. L. Brazil: portrait of half a continent. New York: Dryden Press, 1951. 54 Cf.: SEYFERTH, Giralda. A colonização alemã no Vale do Itajaí-Mirim: um estudo de desenvolvimento econômico. Porto Alegre: Editora Movimento, 1974; ___. A assimilação dos imigrantes como questão nacional. In.: MANÁ: estudos de Antropologia Social, volume 3, número 1, abril de 1997, p. 95-131 e ___. Identidade étnica, assimilação e cidadania. Idem, op. cit. 55 Ver, LESSER, Jeffrey. A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2001 e ___. O Brasil e a questão judaica. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
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poderiam advir da entrada de imigrantes, a crença de uma parte da sociedade local na
superioridade do elemento europeu em relação ao nacional, entre outros mais. No mesmo
sentido, o problema do papel que os imigrantes deveriam desempenhar no âmbito local era
fator importante que marcou não só o modo como a imigração se desenvolveu, mas a forma
como aconteceu a inserção social do imigrante.
Em 1896 o Presidente do Estado, Júlio Prates de Castilhos, afirmava que a política de
colonização e imigração realizada no Rio Grande do Sul, diferentemente do que ocorria em
outros estados da Federação – São Paulo especialmente – não equivalia à importação de
“simples trabalhadores ou assalariados, a tanto por cabeça, que formam ordinariamente uma
massa flutuante ou movediça, inassimilável e refratária aos nossos costumes e as nossas leis,
encerrando um verdadeiro perigo nacional”56. Os imigrantes que se estabeleciam no Rio
Grande do Sul eram identificados com a palavra “colono”. Ser colono, sob a ótica dos
governantes, era equivalente a ser pequeno proprietário agrícola, fixado à terra, adaptado à
nacionalidade, respeitador das leis e autoridades e, sobretudo, ser um produtor de gêneros
voltados a “avolumar as rendas do Estado”. Assim, uma das principais expectativas em
relação aos colonos e à colonização era que definitivamente eles contribuíssem no sentido de
tornar o Rio Grande do Sul o celeiro do país e, para tanto, era necessário que eles se fixassem
à terra e a fizessem produzir: “ao invés do que geralmente se observa fora daqui, o colono
incorpora-se facilmente à massa sedentária da população, não mais pensando em abandonar a
terra, de que se tornou proprietário”57.
Como venho frisando, o termo colono possui um conteúdo específico. Em termos
sociais, a palavra “colono” pode ser pensada como um adjetivo designativo, portanto,
permeado de representações, as quais têm o papel de exigir que as pessoas para quem ela é
dirigida realizem o seu conteúdo58. Para uma idéia do sentido que o termo possuía transcrevo
parte do discurso do Major Euclydes Moura que, em 1908, foi nomeado pelo Presidente do
56 CASTILHOS, Júlio Prates de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Júlio Prates de Castilhos, na 4° e última sessão ordinária da 2° legislatura, 20 de Setembro de 1896. Porto Alegre: Tipografia de Cesar Renhardt, 1896, p. 24. 57 MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 4° sessão ordinária da 3° legislatura, em 20 de setembro de 1900. Porto Alegre: Oficinas Tipográficas de A Federação, 1900, p. 26. No mesmo sentido, consta no relatório da SENOP de 1895: “o Rio Grande do Sul é para o imigrante a terra da promissão, pois a par da excelência do clima e da uberdade do solo, encontra ele aqui a satisfação da sua principal aspiração, que é tornar-se proprietário da terra que cultiva, o que não acha em outros estados, onde é explorado como simples máquina de trabalho, seja assalariado, seja trabalhando de parceria”. Cf.: PAROBÉ, João José Pereira. Relatório dos negócios de Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Presidente do Estado, Dr. Júlio Prates de Castilhos, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, 1895. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1895, p. 16. (AHRS - OP. 02). 58 Consultar, BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: EDUSP, 1996.
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Estado para percorrer algumas capitais do Brasil divulgando os produtos da agricultura rio-
grandense. Sempre que chegava a uma capital e montava a exposição, no dia da abertura, o
Major iniciava o evento com o seguinte discurso:
Efetivamente o colono rio-grandense levanta-se antes da aurora e enceta logo sua rude tarefa, da qual só se afasta com o crepúsculo da tarde sempre acompanhado da numerosa prole. E quem passar em noites de luar pela casa de um desses obreiros da nossa riqueza, vê-lo-á ainda rompendo a terra para a plantação ou fazendo o ruído da colheita. O trabalho do colono só é interrompido pelo descanso dominical. As suas mãos deixam a terra, senão para se erguerem aos céus em agradecida prece pela divina sócia de seus rudes trabalhos59.
Os documentos também trazem informações sobre as ações que deveriam ser tomadas
por parte do Estado para que este ideal de colono acontecesse na prática e, uma delas, era a
imigração espontânea. Ao longo dos relatórios da DTC e das mensagens presidenciais é
bastante comum encontrar discursos defendendo este tipo de imigração, que geralmente é
apresentada como a “mais profícua e destituída de perigos no ponto de vista nacional e no
tocante a normalidade da atividade agrícola”60. Assim, enquanto não vigorou o tratado
assinado entre o Rio Grande do Sul e o SPSN (1908-1914) para introdução de imigrantes no
estado, a corrente imigratória era espontânea e, embora pequena, era classificada como
constituída pelos “melhores elementos”.
Constantemente era comparada à que se dirigia para São Paulo, a qual, por ser
subvencionada era adjetivada como um “desastroso inconveniente”, especialmente em função
de que a grande maioria dos imigrantes que chegavam eram caracterizados como “indivíduos
inteiramente inaptos para todos os trabalhos da vida agrícola”61. Em outros termos, implícita à
defesa da imigração espontânea estava o interesse de exercer um maior controle sobre a
“qualidade” dos imigrantes que desejavam entrar no estado. Sobre tal questão em texto escrito
por Ernesto Pellanda – chefe da repartição de estatística do Rio Grande do Sul, publicado em
1925, o qual foi encomendado pela presidência do Estado e deveria tratar do centenário da
colonização alemã –, o autor escreve que a partir da entrada em vigor do acordo com a União
em 1908 a qualidade dos imigrantes vindos para o Rio Grande do Sul “havia piorado”. De
59 MOURA, Euclydes B. de. Relatório da missão de propaganda e de defesa da produção do Rio Grande do Sul no norte da República. Pelo comissário oficial Major Euclydes B. de Moura, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, Presidente do Estado. Porto Alegre: L. P. Barcelos & Cia; Livraria do Globo, 1908, p. 13. 60 Júlio de Castilhos, 1896. Idem, op. cit., p. 24. 61 MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 2ª sessão ordinária da 4ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1902. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1902, p. 13-14.
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acordo com Pellanda, a maior parte deles eram “estranhos à lavoura e exigentes, em certos
casos com razão, visto as grandes vantagens oferecidas pela referida diretoria [SPSN] em sua
propaganda na Europa”62.
Em pesquisa que realizei em documentos que compõem a série Ministério da
Agricultura do Arquivo Nacional, encontrei alguns ofícios e correspondências enviadas por
agentes do governo do Rio Grande do Sul ao Ministério da Agricultura reclamando da vinda
de imigrantes indesejados e “difíceis de tratar”, visto que alguns eram classificados como
anarquistas, outros como desconhecedores dos trabalhos agrícolas, doentes, socialistas,
marginais, assassinos, etc., etc., etc63. Tais fatos são acionados por Borges de Medeiros
quando, em 1914, por meio de um oficio enviado ao Ministério da Agricultura resolve
rescindir o contrato feito com o SPSN para introdução de imigrantes. As outras justificativas
utilizadas por Medeiros eram as do grande aumento da população colonial, a da diminuição
do espaço para o estabelecimento dessas pessoas e especialmente porque nos últimos anos
havia ocorrido um extraordinário aumento na despesa dos cofres públicos relativas a
colonização “sem, todavia, trazer as vantagens compensadoras nem aumento proporcional da
produção, em conseqüência da inaptidão aos trabalhos agrícolas da maioria dos imigrantes
aliciados”64.
A intervenção do Estado não se resumia ao controle na entrada de imigrantes65,
também buscava estipular, depois deles instalados, de que forma deveriam praticar seus
trabalhos. Assim, em 1898, o chefe da seção de terras públicas, Francisco de Ávila Silveira,
determina que os diretores das colônias proibissem o desmatamento, visto que os colonos
estavam acostumados “para evitarem o trabalho de preparar as terras de capoeira em que,
depois da primeira colheita, a vegetação inventícia é em quantidade extraordinária, preferiam
62 PELLANDA, Ernesto. Repartição de estatística do Estado do Rio Grande do Sul: a colonização germânica no Rio Grande do Sul: trabalho organizado de ordem do governo do Estado em homenagem à colônia alemã em seu centenário. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1925, p. 15. 63 Cf.: ARQUIVO NACIONAL. Fundo Ministério da Agricultura e Série Agricultura, IA6 163 a IA6 174. 64 MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 1ª sessão ordinária da 8ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1914. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1914, p. 23. 65 “Quer na entrada de capitais, como na admissão de imigrantes, é preciso sempre que o Governo fique o juiz das condições em que elas se realizam, já que essas condições podem ser da maior importância para a constituição do Estado, moral, política e economicamente”. GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 70. In.: PAROBÉ, João José Pereira. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 20 de agosto de 1913. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Comércio, 1913, p. 59-105.
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fazer novas derrubadas”66. Em outras palavras, havia um esforço para que os imigrantes não
praticassem o mesmo tipo de agricultura que era considerada característica dos nacionais.
Contudo, Silveira reconhecia que seria muito difícil colocar em prática a medida devido à
impossibilidade de os diretores coloniais exercerem controle sobre os colonos, logo, definia
os praticantes desse tipo de agricultura como “maus colonos”67.
Um outro aspecto vinculado à entrada de imigrantes e que fazia parte das
considerações dos agentes governamentais era o da nacionalidade, o da raça e classe social a
que eles pertenciam. Tais circunstâncias diziam respeito, segundo Torres Gonçalves, a
aspectos morais e era de suma importância levá-las em consideração, uma vez que a
organização de uma sociedade, ponderava o diretor da DTC, não era obra só dos braços dos
indivíduos, mas das cabeças: “porque uma sociedade não é feita somente de atividade
industrial, mas principalmente pelas tradições, pelo grau de desenvolvimento intelectual, pelas
instituições políticas, pela religião”68. Assim, concluía Gonçalves, naquele momento não era
necessário introduzir mais pessoas no Rio Grande do Sul, antes era preciso cuidar das
condições para os que já viviam no estado se amalgamassem e se identificassem com a Pátria.
Uma medida a ser tomada era encontrar alternativas para que a população se desenvolvesse e,
para tanto, era necessário, do ponto de vista do diretor da DTC, introduzir entre elas os meios
que facilitassem “a ação do homem sobre o mundo, pela indústria, a arte e a ciência”69.
Ancorado nesse raciocínio Torres Gonçalves ponderava que os indivíduos “mais
aptos” para atuar na colonização não eram os imigrantes recém chegados que, na maioria das
vezes, traziam mais problemas que benefícios ao governo. Assim, eram os descendentes dos
colonos antigos que, segundo Gonçalves, melhor cumpririam a tarefa da colonização e do
povoamento, uma vez que eles “apresentavam um certo grau de assimilação em relação ao
nosso meio”70, tanto social como físico; e do ponto de vista financeiro, não “pesavam aos
cofres públicos”, pois geralmente dispunham de recursos para o pagamento das terras. Além
disso, constituíam “em relação à imigração passada de onde proveio, a seleção feita – a boa
parte – que fixou-se ao solo, prosperou e evoluiu sob o conjunto de condições propícias que
66 SILVEIRA, Francisco Ávila. Relatório da Secção de Terras Públicas e colonização. In.: PEREIRA, João José Pereira. Relatório dos Negócios de Obras Públicas, apresentado ao Exm. Sr. Presidente do Estado, Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, 1898. Manuscrito. 67 Idem, ibidem. 68 Carlos Torres Gonçalves, 1913. Idem, op. cit., p. 72-74. 69 Idem, ibidem. 70 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 107-108. In.: PAROBÉ, João José Pereira. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros presidente do Estado do Rio Grande do Sul pelo secretário de Estado João José Pereira Parobé em 25 de agosto de 1914. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1914, p. 93-186. (AHRS - OP. 37).
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lhe oferecemos”71. Torres Gonçalves considerava que os deveres do Estado em relação a essas
pessoas eram maiores do que com as políticas de atração de novos imigrantes. Tal constatação
também levava o diretor da DTC a registrar que o governo tinha uma certa dívida para com o
elemento genuinamente nacional, o qual “como capacidade industrial” era inferior aos
descendentes de imigrantes, mas mesmo assim deveria ser valorizado, pois moralmente era o
representante por excelência da Pátria72.
Igualmente havia classificações a respeito dos imigrantes a serem destinados ao
estado, as quais tomavam como pressuposto a origem étnica e a aptidão para o trabalho dos
mesmos e, a partir dela, era definido quais seriam as pessoas mais propícias a entrar no Rio
Grande do Sul. Ao tratar das diversas nacionalidades – russos, holandeses, alemães,
austríacos, polacos e suecos – que viviam na colônia Guarani, por exemplo, o diretor da DTC,
a partir das informações que havia recebido do diretor dessa colônia, escreve que, entre os
imigrantes, eram
preferíveis os russos alemães (barbados), os alemães, polacos e austríacos e não convém os russos pelados (cara raspada), nem holandeses. São toleráveis outros. Os russos pelados além de não servirem para o trabalho de mato, são dados a vadiagem, abandonam o lar para viverem pedindo esmolas; os holandeses são pouco dados ao trabalho e amigos de viverem de expedientes73.
Outro quesito importante na seleção do tipo de imigrante que deveria vir para o Rio
Grande do Sul era o de que eles fossem conhecedores do trabalho agrícola. No entanto, como
não era possível exercer controle sobre a entrada dos imigrantes, especialmente de 1908 a
1914, quando vigorou o tratado com o SPSN, era grande o número de pessoas que nunca
havia trabalhado na agricultura e chegava ao estado. Estes eram, em sua maioria, ex-operários
industriais da Europa, os quais, de acordo com Torres Gonçalves, eram “inábeis para manejar
a foice e o machado, cortam-se freqüentemente; além disso, deixam-se apanhar por árvores.
Descoroçoam por qualquer indisposição”74. Exemplo de que a constatação do diretor da DTC
não era de todo sem fundamento é o de que, em 1910, dos 1.067 imigrantes encaminhados à
Colônia Guarani, 140 haviam se retirado e 8 morreram de desastres, esmagados por árvores75.
71 Idem, ibidem. 72 Idem. 73 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 124. In.: GODOY, Candido José de. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves presidente do Estado do Rio Grande do Sul pelo secretário de Estado Candido José de Godoy em 10 de setembro de 1910. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1910, p. 93-157. (AHRS - OP. 24). 74 Idem, p. 125. 75 Idem, p. 124.
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A impossibilidade de exercer um maior controle sobre a entrada de imigrantes trazia
problemas como a chegada de algumas pessoas doentes. Em 1910, entraram no estado alguns
alemães e “polacos” vindos do Amazonas, onde estavam trabalhando na construção da estrada
de ferro Madeira-Mamoré, com os quais o governo foi “forçado a fazer despesas
extraordinárias, não só em alimentação, como de farmácias e médico”76. Alguns deles
morreram e outros iam para os lotes, mas voltavam “ao cabo de 6 ou 8 dias para a enfermaria
ou barracões que por eles estão transformadas em sanatórios ao longo da estrada”77. Da
mesma forma, havia o problema da adaptação dos imigrantes às condições físicas e climáticas
do estado, já que “qualquer picada de inseto transforma-se em ferida e muitas vezes sobrevém
a febre. Vão logo para cama e exigem tratamento”78. O relatório da DTC de 1910 também traz
informações de imigrantes doentes que foram encaminhados à Colônia Ijuí, os quais devido à
mudança de clima e alimentação apresentavam problemas de estômago e intestinos. Da
mesma maneira, em 1911, dos imigrantes direcionados à Colônia Guarani, 300 estavam
doentes, sendo que metade deles veio a falecer79.
Se a vinda de imigrantes pertencentes a determinadas etnias, de indivíduos doentes e
de difícil adaptação ao clima rio-grandense não eram incentivadas, existia, nesse sentido, a
defesa de posições um tanto ambíguas. Em seu relatório de 1916, por exemplo, o diretor da
DTC crítica a existência de dois projetos de lei sendo discutidos na Assembléia Legislativa
Federal e que tinham por intenção proibir a entrada de mutilados de guerra no Brasil. Segundo
Torres Gonçalves, tais projetos, do ponto de vista moral, eram de uma “dura cegueira” porque
não levavam em conta os “princípios da fraternidade internacional”. Sob o ponto de vista
material, esqueciam de levar em conta que as nações necessitam para se constituir mais de
cérebros do que de braços. Assim, argumentava Torres Gonçalves, o Brasil não só devia
receber, “mas agasalhar fraternalmente os mutilados de guerra que porventura procurem o
nosso país”80.
76 Idem, p. 125. 77 Idem, ibidem. 78 Idem. 79 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 133. In.: GODOY, Candido José de. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves presidente do Estado do Rio Grande do Sul pelo secretário de Estado Candido José de Godoy em 08 de setembro de 1911. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1911, p. 101-174. (AHRS - OP. 25). 80 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e colonização, p. 152. In.: ALVES, Protásio. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. General Salvador Ayres Pinheiro Machado vice-presidente, em exercício, do Estado do Rio Grande do Sul Dr. Protásio Alves Secretário de Estado, interino, dos Negócios das Obras Públicas em 09 de setembro de 1916. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1916, p. 111-212. (AHRS - OP. 41).
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A posição do diretor da DTC pode ser lida como resultado da sua interpretação da
sociedade baseada na sua leitura particular do positivismo81. Um outro exemplo de como os
princípios positivistas influenciavam no modo como a colonização era administrada encontra-
se no relatório de 1915. Neste caso, trata-se da aplicação da idéia de incorporação do
proletariado a sociedade moderna, tão cara aos positivistas. Devido a guerra mundial os
trabalhos nas obras do porto de Rio Grande foram paralisadas, assim como os da viação
férrea, conseqüentemente um grande número de trabalhadores foi dispensado e, “para ampará-
los, o Governo do Estado resolveu instalar nas colônias Erechim e Guarani os que quisessem
para lá ser encaminhados”82. Aqueles que aceitassem a proposta receberiam transporte
gratuito, um lote de terras e, aos casados, seria adiantado o valor de 200$000 réis em dinheiro,
mais 200$000 réis como auxilio para serviços na construção de estradas. Entretanto, segundo
informações do diretor da Colônia Erechim, tal medida não vinha se demonstrando muito
profícua porque “o grande número de proletários enviados para cá nos últimos meses trouxe
alguns casos de tuberculose, muitos de sífilis e alcoolismo”83.
Em 1917, o tema da qualidade dos imigrantes a serem destinados ao Rio Grande do
Sul e a possibilidade de se imporem algumas restrições volta a ser objeto das reflexões de
Torres Gonçalves. Para o diretor da DTC, no Brasil não deveriam existir proibições
“vexatórias” como aquelas que existiam nos Estados Unidos, as quais impediam “a entrada no
território do país dos velhos, dos doentes, dos que não dispõem de certo capital, e chegam até
a indagar do grau de moralidade feminina”84. Além de desonrosas, tais limitações eram
definidas por Torres Gonçalves como “contrárias à fraternidade humana”. Entretanto, são
contínuas, ao longo dos relatórios, queixas, tanto por parte do diretor da DTC como de seus
subordinados, das dificuldades provindas da chegada de imigrantes seja doentes,
desconhecedores da atividade agrícola, etc... Portanto, na prática, a fraternidade humana tinha
um limite.
81 Aspectos vinculados a utilização do positivismo como teoria para pensar a imigração serão mais detidamente abordados no próximo capítulo. 82 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 95. In.: PAROBÉ, João José Pereira. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas apresentado ao Exmo. Sr. General Salvador Ayres Pinheiro Machado presidente do Estado do Rio Grande do Sul pelo secretário de Estado Engenheiro João José Pereira Parobé em 31 de agosto de 1915. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1915, p. 73-139. (AHRS - OP. 40). 83 Idem, p. 132. 84 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 356. In.: ALVES, Protásio. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros presidente do Estado do Rio Grande do Sul pelo Dr. Protásio Alves Secretário de Estado, interino, dos Negócios das Obras Públicas em 14 de setembro de 1917. Porto Alegre: Tipografia da Empresa Gráfica Rio-Grandense, 1917, p. 345-441. (AHRS - OP. 46).
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Outro fato que influenciava muito no modo como acontecia a inserção dos imigrantes
nos quadros da sociedade regional era o da localização das colônias. Como sublinhei acima,
Umberto Sala, funcionário do governo italiano, considerava esse o principal problema a
desaconselhar a vinda de italianos para se estabelecerem nos estados do sul do Brasil. No caso
dos agentes governamentais do Rio Grande do Sul, tal assunto era um dos mais importantes a
ser resolvidos: “por falta de viação conveniente, a maior parte da região agrícola do estado
não tem o desenvolvimento que poderia ter”85. Para o diretor da DTC, a forma mais
apropriada para solucionar as questões ligadas à má localização de algumas colônias estava no
desenvolvimento da viação e dos contatos que seriam possibilitados por ela. Tais contatos,
segundo Gonçalves, teriam o papel importante de facilitar o processo de “assimilação” dos
imigrantes. Da mesma forma, a possibilidade de imigrantes e nacionais poderem pagar seus
lotes com a prestação de serviços na construção e conservação das estradas era definida como
útil. A prática de aproximar colonos e nacionais era apresentada como facilitadora no
processo de introdução dos nacionais no mundo do trabalho sistemático. Para os imigrantes,
os contatos atuariam no sentido de eles criarem laços de identidade com a nova pátria – isto é,
na perspectiva de sua nacionalização.
Para uma idéia de quanto a presença de obras de viação em uma colônia, sobretudo de
uma estrada de ferro, poderia influenciar no seu desenvolvimento, segundo dados da
mensagem presidencial de 1914, o frete de uma saca de cereal de Erechim a Porto Alegre
custava cerca de 920 réis percorrendo uma distância de 812 quilômetros. Enquanto isso, o
transporte de uma saca de Guaporé a Porto Alegre, numa distância de 200 quilômetros,
custava 3 mil e 500 réis86. Baseado nesses dados, Borges de Medeiros escrevia que a situação
da colônia Erechim era “edificante” em relação às colônias mais antigas, visto que essa
colônia que havia sido “fundada há cinco anos, deve a sua admirável prosperidade à
circunstância privilegiada de estar próxima à grande linha férrea Rio Grande/São Paulo, cujo
frete reduzido lhe permite a exportação para todos os mercados nacionais”87.
Aproximar colonos e nacionais é tema recorrente nos relatórios da DTC e nas
mensagens dos presidentes de Estado. Geralmente quando a comparação é acionada, tem o
sentido de pontuar as diferenças entre os dois grupos e, igualmente, definir objetivos
pretendidos. Em seu relatório de 1914, o diretor da DTC pontuava que existiam dois
elementos colonizadores no Rio Grande do Sul: os de origem estrangeira – que eram
85 Carlos Torres Gonçalves, 1911. Idem, op. cit., p. 167. 86. Cf.: Antônio Augusto Borges de Medeiros, 1914. Idem, op. cit.,, p. 24. 87 Idem, ibidem.
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imigrantes ou descendentes de colonos velhos – e os nacionais – em sua maioria luso-
brasileiros. Para Torres Gonçalves, do ponto de vista prático, o primeiro era superior e, do
ponto de vista moral, o segundo. Também existiam classificações determinando diferenças no
interior dos grupos como aquelas que diziam que o filho de imigrantes era superior ao recém
chegado e aquelas que definiam diferenças dentro do grupo dos nacionais, como veremos no
capítulo a seguir.
No caso dos colonos, ainda existiam os inconvenientes relacionados ao pertencimento
étnico, uma vez que para evitar possíveis obstáculos decorrentes da formação de nações
dentro da nação, as colônias públicas fundadas durante o período republicano eram mistas,
portanto, compostas de imigrantes originários de diversos países europeus. Atitude que, por
seu turno, não evitava os contratempos relativos aos conflitos étnicos. Ademais, apesar de os
colonos pertencentes a uma mesma origem étnica tradicionalmente serem apresentados como
portadores de estilizações de vida e comportamentos semelhantes, eles não eram homogêneos.
Pelo contrário, “apresentam clivagens. Seus antepassados procediam de várias regiões da
Europa e entraram no Brasil em períodos diversos”88. No caso específico da colonização
alemã, por exemplo, Jean Roche, escreve que
desde a origem da colonização, existiu grande heterogeneidade dos elementos humanos. Certamente, fundiu-se por vezes, sob a influência dos grupos majoritários, mas provocou, com muito mais freqüência, aglutinação dos imigrantes que tinham a mesma origem, falavam o mesmo dialeto e praticavam a mesma religião; contribuiu, ainda, a limitar o raio de seu horizonte de vida e a conservar tradições familiares ou regionais; fortaleceu a tendência a segregação, que a orientação essencialmente rural da colonização só favoreceu em demasia89.
O padre Silésio, Antoni Cuber, em sua descrição da Colônia Ijuí, apresenta alguns
exemplos de como os conflitos, tanto os provenientes de questões étnicas e religiosas90 como
os relativos à inserção dos imigrantes na colônia, desenvolviam-se. Assim, havia alguns
colonos poloneses que, de acordo com Cuber, “mais esclarecidos e sensatos”, tão logo
recebiam as primeiras ajudas provenientes dos auxílios governamentais ou dos trabalhos
realizados na construção de estradas, dirigiam-se aos seus lotes e os faziam produzir de modo
que “quando o auxílio governamental foi retirado, eles já podiam viver do fruto de seus
88 RENK, Arlene. Sociodicéia às avessas. Chapecó: Grifos, 2000, p. 131-132. 89 ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora do Globo, 1969, p. 158-159. 90 Sobre o assunto da religião e os conflitos que lhe são peculiares, especificamente no caso das colônias alemãs, ver: GERTZ, René. O aviador e o carroceiro: política, etnia e religião no Rio Grande do Sul dos anos 1920. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.
- 126 -
trabalhos”91. Entretanto, alguns outros “não laboriosos”, tiveram que “espiar sua estupidez e
preguiça passando fome e miséria”. Conseqüentemente aumentava o número de “roubos
desavenças, maldições e bebedeiras desesperadas”92 na colônia. Cuber relata casos em que a
“ignorância e a discórdia entre poloneses e outros colonos” davam lugar a que certos
funcionários, “como o escrivão e o interprete, se atribuíssem o direito de atar os homens ao
palanque, expostos ao sol ardente, durante muitas horas, ou de açoitá-los sem compaixão”93.
Em outras palavras, o interesse do governo estadual de fundar colônias mistas objetivando
apurar o processo de nacionalização dos imigrantes acabou dando resultados não muito
satisfatórios, já que, ao fim e ao cabo, serviu como elemento para apurar ainda mais as cisões
étnicas94.
Neste sentido, os casos de conflitos envolvendo diferentes etnias e baseados em
questões étnicas como os ocorridos na colônia Ijuí, cuja descrição foi feita pelo padre Antoni
Cuber, são um exemplo de que, como mostra Fredrik Barth, é nos contatos que os grupos
mantêm que se definem as suas respectivas identidades étnicas95. Por sua vez, a ação dos
funcionários da colônia de atar e açoitar os colonos, mesmo que isolada, vai de encontro aos
discursos de fraternidade humana, corriqueiramente defendidos pelos responsáveis pela
colonização.
A defesa da imigração e da fundação de colônias na região serrana era sustentada,
entre outros, pelo argumento de que aquele espaço, em termos de produção agrícola, era mal
aproveitado e apenas a vinda de imigrantes poderia reverter o quadro. Nessa perspectiva, a
possibilidade do desenvolvimento agrícola, somada ao interesse nos lucros que poderiam
advir pela comercialização das terras96 e a idéia comum à época de que o imigrante era
superior eram motivos constantemente lembrados pelos defensores da colonização. Por sua
vez, a presença de pessoas produzindo gêneros até então de difícil acesso na região também
era importante, pois, de uma maneira geral, barateava o consumo. Hemetério Velloso, nos
relatos sobre a região e seus habitantes, salienta que produtos como “aves e leitões”,
91 CUBER, Antoni. Nas margens do Uruguai. Ijuí: Editora UNIJUI, 2002, p.18-19. 92 Idem, ibidem. 93Idem. 94 Um estudo que trata sobre a questão étnica para o contexto específico da Colônia Ijuí é: WEBER, Regina. Os operários e a colméia: trabalho e etnicidade no sul do Brasil. Ijuí: Editora UNIJUI, 2002. 95 Cf.: BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In.: POUTIGNAT, Philipe, STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade: seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: UNESP, 1998. 96 Sobre a valorização das terras, Hemetério Velloso da Silveira escreve: “é surpreendente o modo por que o solo missioneiro, que há 48 anos, encontramos na maior parte desvalorizado, ou constando ainda de prédios rústicos baratíssimos, hoje, ninguém os adquire, senão por bem alto preço”. Cf.: SILVEIRA, Hemetério Velloso da. As missões orientais e seus antigos domínios. Porto Alegre: Companhia União de Seguros Gerais, 1979, p. 145.
- 127 -
anteriormente muito caros e escassos, a partir da fundação das primeiras colônias e das
transações comerciais que com elas se desenvolveram, passaram a ser facilmente encontrados
na cidade de Cruz Alta e, além de tudo, segundo Velloso, eram “baratíssimos”97.
Os discursos laudatórios da imigração e dos imigrantes, comuns à época, por um lado,
tomavam como ponto de partida uma valorização excessiva do imigrante representado como
indivíduo trabalhador e preocupado com o futuro e, por outro, sustentavam-se na depreciação
dos outros grupos sociais, os quais eram apresentados como vadios e degenerados. Para
Hemetério Velloso, por exemplo, enquanto o “povo missioneiro” em geral procurava “tirar da
terra o que esta pode produzir-lhes”, os colonos “juntam a isso o enriquecimento da
propriedade rústica com obras sólidas e até elegantes”98. Tal circunstância advinha do fato de
os “brasileiros de origem portuguesa e os mestiços” não darem tanta importância a seus
pequenos estabelecimentos agrícolas quanto davam os estrangeiros, sobretudo os de origem
germânica99.
FIGURA 8:
CASA PARTICULAR DE UM COLONO EM ERECHIM
CASA DO CACIQUE EDUARDO DOBLE EM LAGOA VERMELHA
FONTE: Carlos Torres Gonçalves, 1911. Idem, op. cit., anexos.
FONTE: Carlos Torres Gonçalves, 1919. Idem, op. cit., anexos.
Um outro exemplo utilizado por Velloso e que também está presente nos relatórios da
DTC, inclusive com imagens, para pontuar as diferenças entre nacionais, índios, negros e
97 Idem. 98 Idem, p. 175. 99 Idem.
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colonos, era o da casa em que viviam. A casa do imigrante caracterizava-se, segundo Silveira,
por ter uma cozinha inteiramente separada dos outros cômodos, um paiol, uma horta com
verduras e flores, laranjeiras, pessegueiros, potreiro bem gramado, roçados para legumes,
chiqueiro de porcos e galinheiro100. Logo, uma habitação bem diferente da casa, morada típica
dos nacionais, dos índios e dos negros, sempre descrita como uma choça ou tapera,
geralmente escorada por algumas madeiras (ver figura 8, acima).
As comparações entre imigrantes e os outros grupos sociais, nos mais diversos
aspectos que elas aconteceram, foram importantes na perspectiva de influenciar no processo
de constituição do conteúdo comum ao termo colono, inclusive elas são um dos pontos chave
para compreender o modo como as pessoas que são identificadas com essa palavra e também
se identificam com ela dão significados, por vezes diferenciados, a essa representação.
Thales de Azevedo, para o caso da colonização italiana, sublinha que colono é o
“homem da zona rural, cujo isolamento relativo, ainda que acentuado, o leva a participar de
elementos da cultura nacional, porém se conserva muito mais tempo italiano”101. Contudo, a
ressocialização do imigrante no contexto das colônias, à medida do tempo, transforma-o e –
principalmente no caso dos filhos de imigrantes – com o passar dos anos, eles já não são mais
“realmente italianos nem inteiramente brasileiros”. Assim, “o qualificativo ‘italiano’ deixa de
ser unicamente o gentílico, para denominar um tipo social”102. Por sua vez, esse “tipo social”,
denominado colono, segundo Azevedo, “adquire a consciência de uma particular identidade
social e cultural que se opõe à do roceiro do Brasil tradicional”103 (grifo do autor).
No mesmo sentido, Giralda Seyferth sublinha que, no caso da colonização alemã, o
“pioneirismo” dos colonos e a eficiência do colonizador teuto, “são contrapostos a uma
imagem estereotipada do brasileiro rural, desqualificado como caboclo por todo um conjunto
de características desabonadas, remetidas a uma condição de inferioridade racial”104. Emilio
Willems também chama atenção para esse fato e sublinha que a palavra “caboclo” na “boca
do teuto-brasileiro” chega a ser um insulto e é usada como símbolo de inferioridade cultural:
“‘caboclo’ é o homem que não trabalha, que é analfabeto, cachaceiro, sifilítico e opilado, que
não educa seus filhos e não pensa no dia de amanhã”105.
Outro elemento importante que ajuda a compreender a importância dessas
diferenciações é que elas servem como ponto de referência para inserção dos imigrantes no
100 Idem. 101 Thales de Azevedo. Italianos e gaúchos. Idem, op. cit., p. 269. 102 Idem, ibidem. 103 Idem. 104 Giralda Seyferth. Identidade étnica, assimilação e cidadania. Idem, op. cit., p. 06. 105 Emílio Willems. A aculturação dos alemães no Brasil. Idem, op. cit., p. 134-135.
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contexto da sociedade de acolhimento. Em seu estudo sobre a questão da italianidade na
região de Santa Maria, município situado na parte central do Rio Grande do Sul, Maria
Zanini, sublinha o quanto, para os descendentes de imigrantes italianos que vivem naquele
espaço, a etnicidade tem um “papel político pelo qual o descendente se percebe, por ser
portador de determinados valores [relativos a italianidade], melhor situado socialmente, o que
permite também que sua auto-estima se eleve”106. Além disso, a elaboração deste
pertencimento étnico possibilita aos descendentes orientarem-se temporalmente, visto que
produzem uma historicidade própria, a qual tem sua origem na travessia – isto é, na viagem
realizada pelos primeiros imigrantes que saíram da Itália e vieram ao Brasil. Dessa forma,
conferem um sentido ao mundo no qual eles, como descendentes de imigrantes italianos,
atualmente vivem.
Em 16 de julho de 1917 ocorreu um fato na Colônia Rio Branco, sétimo distrito do
município de Santo Ângelo que possibilita compreender como, no contexto local, ocorriam
tais diferenciações. Em interrogatório ocorrido neste dia, Nicanor Paz (22 anos de idade,
solteiro, residente no sétimo distrito de Santo Ângelo há cinco meses, jornaleiro) conta que
estava “serrando madeira em companhia de Jacob Dorasso Filho, estando este pelo lado de
cima, em um dado momento despendeu-se a cabrita da serra e foi bater na testa de Jacob que,
indignando-se, o chamou de brasileiro infeliz, dizendo-lhe mais impróprios”107. De acordo
com a narrativa de Nicanor, após dizer-lhe as referidas ofensas, Jacob armado de uma faca
desceu de cima da tora que estava sendo serrada e tentou agredi-lo e, para se defender, ele
também usou de uma faca que trazia e feriu Jacob. Pedro Carnelluti (24 anos de idade, casado,
agricultor, natural do Rio Grande do Sul e morador no município a três anos) que havia
contratado Nicanor e Jacob para serrarem a madeira, levou Nicanor até o delegacia onde foi
preso e o processo foi instaurado.
No mesmo dia, Carnelluti também dá sua versão dos fatos e descreve como a briga se
desenvolveu, mas não chega a mencionar o fato de Jacob ter chamado Nicanor de “brasileiro
infeliz”. No entanto, quando é perguntado sobre o “procedimento” dos brigões, responde que
Nicanor “era bastante ruim” enquanto que Jacob, embora o conhecesse a pouco tempo, sabia
“ser bom”108. Seria precipitado, diante da falta de informações presentes no processo crime,
afirmar que Pedro Carnelluti ao qualificar Nicanor como “bastante ruim” e Jacob como
“bom” estava tomando uma posição étnica, uma vez que ele e Jacob são de origem italiana,
106 ZANINI, Maria Catarina Chitolina. Italianidade no Brasil meridional: a construção da identidade étnica na região de Santa Maria-RS. Santa Maria: UFSM, 2006, p. 24. 107 APERGS. Processos Crime 1.460. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1918. Maço 49. 108 Idem, ibidem.
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como fica visível nos sobrenomes de ambos, contudo, essa suposição não deixa de ter
fundamento. De qualquer forma, a situação é demonstrativa do emprego pejorativo da palavra
“brasileiro” como elemento de diferenciação. Por fim, em 19 de setembro de 1917, o caso foi
levado a julgamento e Nicanor foi absolvido.
As diferenciações existentes entre colonos e nacionais, tanto serviram como
argumento de defesa para justificar a entrada de imigrantes no Brasil – visto que tais
indivíduos, aos olhos de seus defensores portavam valores e comportamentos que os
identificavam com a idéia de civilização que, por sua vez, era vinculada a Europa e a
costumes europeus – como eram empregadas pelos grupos – ítalo-brasileiros, teuto-
brasileiros, etc... – no sentido de se diferenciarem daqueles que, ao lado deles, estavam
envolvidos no processo de povoamento e colonização, como fica visível na briga ocorrida
entre Nicanor e Jacob. Nesta perspectiva, a proximidade com o Estado, as políticas de
colonização, os favores destinados aos imigrantes, a idéia de branqueamento e o discurso
racial não estavam isentos de serem utilizados pelos próprios colonos para justificar sua
posição na hierarquia social e para conformar um determinado status. Nestes termos, é
importante estar atento para o fato de que, em sociedade,
as pessoas podem cooperar uma com as outras numa situação comunitária sem estar conscientes daquilo que há de característico no seu grupo. Quando encontram estranhos, tornam-se conscientes de aspectos a seu respeito que até então tinham tomado como seguros, e a espécie de conscientização que adquirem da sua identidade pode ser influenciada por um desejo de se diferenciarem dos que são os seus vizinhos mais próximos109.
Nessa perspectiva, a circunstância de os imigrantes provindos de diferentes lugares se
auto-reconhecerem a partir de princípios étnicos vinculados às suas nações de origem e de,
como assinalei acima, existir um esforço por parte do governo no sentido de que tais grupos
abandonassem tais identidades em prol de uma identidade nacional, definia a forma como os
colonos elaboravam suas identidades próprias. Todavia, como foi assinalado, tais identidades
tomavam por base a diferenciação e devido a conjuntura, especialmente ao discurso
apologético existente em relação ao imigrante, tal auto-identificação expressava e consolidava
a diferenciação, cujo o tema central era a “superioridade” prática e moral dos imigrantes e dos
descendentes em relação aos outros grupos que com eles conviviam. Ao fazer isso, os
imigrantes “simultaneamente exteriorizavam o seu ser no mundo social e interiorizavam esse
último como realidade objetiva e, nesse processo, produziam a si mesmos e a sociedade”110.
109 BANTON, Michel. A idéia de raça. Lisboa: Edições 70, 1979, p. 153. 110 Maria Catarina Chitolina Zanini. Idem, op. cit., p. 68.69.
- 131 -
Tal ação, em termos sociais, leva a uma idealização do pertencimento e do que
significa participar dos valores colocados como característicos de um determinado grupo.
Idealização que, no caso dos descendentes de imigrantes italianos estudados por Zanini, os
leva a elaborarem uma “representação romântica de seus antepassados e da própria Itália”111,
fazendo que elas valham mais do que a própria realidade. Dessa forma, eles dão uma ordem
ao mundo, pela qual encontram “seus lugares e podem estabelecer classificações, bem como
repassar valores aos seus descendentes por meio de enredos apresentados nas narrativas
míticas, como a coragem frente ao desconhecido e ao novo”112 e sua disposição para o
trabalho. Assim,
a construção da alteridade inicia-se, os brasileiros passam a ser ‘a negrada’, termo que até hoje é utilizado pelos descendentes para se referirem aos nacionais. Negrada não se refere à cor a pele, mas designa também aqueles que são nativos, portadores de hábitos e valores distintos, gente considerada de menor valia113.
Nesse processo, o “emigrado se transformava em imigrante e colono italiano
proprietário no Brasil, estabilizava-se material e psicologicamente”, assim, “a colônia
transformava-se em lugar; e o colono em ser”114. Não só isso, mas a leitura idealizada de sua
atuação e de sua origem leva os imigrantes a produzirem uma imagem genérica de si próprios
como aqueles que triunfaram economicamente, devido sua capacidade de trabalho e
desprendimento. Além disso, aqueles que por algum motivo “não deram certo” e não
obtiveram sucesso, embora também sejam descendentes, “são tidos como anti-exemplo, ou
seja, gente de moral fraca e de vícios, a quem os próprios descendentes diminuem”115. Assim,
o colono é aquele que devido ao seu esforço “vence a natureza, que transforma a terra virgem
(...). Ele é o produtor de riquezas que não se corrompe e, dessa forma, o mito de herói
civilizador se constrói e se legitima por entre gerações e adquire o reconhecimento dos demais
grupos com os quais se relaciona”116.
Ser colono, portanto, significava e ainda significa ser diferente dos nacionais, não ser
“caboclo” e/ou “brasileiro”, ou seja, ser trabalhador, morigerado, pacífico, “obreiro da
riqueza” como definia o Major Euclydes Moura. No entanto, assim como não foi possível
elaborar a pretendida identidade nacional única e estática que supostamente emergiria da
111 Idem, p. 69. 112 Idem, p. 90. 113 Idem, p. 119. 114 Idem, p. 125. 115 Idem, p. 129. 116 Idem, p. 131.
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assimilação dos imigrantes, do branqueamento e do aperfeiçoamento dos nacionais, o ideal do
homem sóbrio e trabalhador expressos na palavra colono, em alguns casos, também não
encontrou existência prática e, como veremos no próximo capítulo, aqueles imigrantes que
fugiam a tais preceitos eram tratados como intrusos ou como acaboclados.
No caso específico da identidade nacional, como mostra Jeffrey Lesser, os imigrantes
e seus descendentes “desenvolveram maneiras sofisticadas e bem-sucedidas de tornarem-se
brasileiros, alterando a idéia de nação, tal como proposta pelos que ocupavam posições de
domínio”117. Desse modo, segundo Lesser, no Brasil, “uma identidade nacional única e
estática jamais existiu”, pois “a fluidez do próprio conceito fez com que ele se abrisse a
pressões vindas tanto de baixo quanto de cima”118. No que diz respeito ao caso do ser colono,
uma conclusão semelhante é possível, ou seja, embora existissem pressões vindas de cima,
sobretudo do Estado, para que os imigrantes se tornassem agricultores pacíficos, fixos a terra
e morigerados eles, a seu modo, encontraram formas para alterar tal proposta. E, muito
embora a existência de divisões étnicas, as quais eram motivos para conflitos internos, o
conjunto dos imigrantes que viviam no interior das colônias reconheciam-se e eram
reconhecidos pela sociedade nacional como colonos, da mesma maneira tinham um modo de
vida mais ou menos semelhante. Tal modo de vida era definido a partir de um outro, qual seja
o dos nacionais. Fato que era um ponto de diferenciação importante para os próprios colonos.
Veja-se, por exemplo, o caso da palavra “caboclo” ser sinônimo de insulto entre os teuto-
brasileiros, como lembra Willems. Assim, foi lidando com esse conjunto de possibilidades
que os imigrantes se inseriram e atuaram no processo de povoamento da região serrana e, por
fim, tornaram-se colonos: em certas situações tornando reais e, em outras, negando ou
alterando alguns dos conteúdos próprios dessa representação.
3.2 DA ESCRAVIDÃO AO SILÊNCIO: OU SOBRE AQUELES QUE VIVEM “NUM ESTADO SEMELHANTE
AO SELVAGEM E AO BÁRBARO”
Um primeiro aspecto para o qual chamo atenção a respeito da presença afro-
descendente no Rio Grande do Sul no pós-abolição é o constante silêncio de parte dos
documentos aqui analisados a seu respeito. Muito dificilmente, no período, os negros
receberam atenção e foram alvos de descrições detalhadas, tanto por parte do Estado como
por parte dos autores que escreveram sobre a região. As fontes não permitem desenvolver
117 Jeffrey Lesser. A negociação da identidade nacional. Idem, op. cit, p. 20. 118 Idem, ibidem.
- 133 -
uma resposta definitiva ao porquê do silêncio, no entanto uma observação atenta da produção
bibliográfica da época e do conjunto de informações disponibilizados nos Relatórios da DTC
e nas mensagens dos presidentes de Estado indicam possibilidades de interpretação. Nesta
perspectiva, uma questão que deve ser destacada é que a idéia de branqueamento encontrava
forte aceitação e era largamente utilizada por intelectuais que pensavam o Brasil e sua
população119. Ou seja, a crença científica de que os “elementos de cor”, principalmente os
afros-descendentes, desapareceriam devido aos constantes cruzamentos pode justificar o
silêncio, mas isso, por ora, é apenas uma hipótese.
Um texto a partir do qual é possível conhecer como se dava a aplicação da idéia de
branqueamento para pensar o Brasil e o “povo brasileiro” é o artigo escrito por Tristão de
Alencar Ararripe, publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)
do ano de 1893, sob o título Movimento colonial da América120. No texto, Araripe apresenta a
humanidade como perpétua, enquanto as raças não o são. Conseqüentemente, as raças
transformam-se e a tendência é o surgimento de um “produto evoluído”. Para o autor, o
resultado dos diversos cruzamentos entre raças seria, ao fim e ao cabo, o desaparecimento das
“inferiores” (negros, orientais e índios) e a predominância da mais “inteligente”: a “ariana”
(brancos). No Brasil, preconizava o autor, as ditas “raças inferiores” seriam primeiramente
substituídas pelos “tipos mesclados”, os quais são: “o mameluco (descendente do caboclo e
do branco) e o mulato (descendente do branco e do preto)”121. Tais “tipos mesclados”,
segundo Araripe, poderiam se aproximar mais do “tipo superior”, mas também podiam
retroceder, “pela renovação do fator preto ou vermelho”122.
Outra publicação da época que pensava o Brasil e a sociedade brasileira com base na
idéia de branqueamento é o livro Retrato do Brasil123 de Paulo Prado, publicado em 1928.
Nesse texto, além da previsão de que com o tempo a população brasileira branquearia, está
presente também a noção de que no Brasil, diferentemente dos outros países que tiveram
119 Thomas Skidmore, lembra que nem “todos os membros da elite brasileira esposavam as teses conhecidas como ‘ideal de branqueamento’. Não obstante, no período entre 1889 e 1914, a grande maioria tinha certamente essas idéias. Uns poucos, como Nina Rodrigues, adotavam a teoria racista ortodoxa de que as diferenças eram inatas e de que o processo de ‘branqueamento’ não triunfaria em todo o país. Outros poucos, inclusive imigrantes alemães radicados nos estados do Sul, mantinham opiniões rigidamente racistas e tratavam de segregar-se da população nascida no país. Finalmente, havia uns poucos livres pensadores que rejeitavam completamente a moldura de referência da teoria científica racista, na sua busca por uma definição mais autêntica da nacionalidade brasileira”. Cf.: SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 94. 120 ARARIPE, Tristão de Alencar. Movimento colonial da América. In.: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 56, parte II. Rio de Janeiro: Companhia Tipográfico do Brasil, 1893, p. 91-115. 121 Idem, p. 95-98. 122 Idem, Ibidem. 123 PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1962.
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escravidão – Estados Unidos, principalmente –, existia uma democracia racial facilitando os
cruzamentos e, em conseqüência, também o branqueamento. Para o autor, a “arianização” dos
habitantes do Brasil era “um fato de observação diária (...). E assim na cruza contínua de
nossa vida, desde a época colonial, o negro desaparece aos poucos, dissolvendo-se até a falsa
aparência do puro ariano”124. Prado preconizava que, no espaço de 5 ou 6 gerações, o
processo da arianização se completaria.
Tal modo de interpretar o social advinha do lugar hegemônico ocupado pela idéia de
progresso e evolução na maneira como as pessoas da época pensavam a sociedade. Assim, o
positivismo, o darwinismo social, o racialismo e alguns dos outros “ismos” em voga no
período, quando aplicados à realidade brasileira, faziam vir a tona alguns “problemas”, como
a questão da mestiçagem. No caso brasileiro, ela era o “tendão de Aquiles” dos defensores das
teorias raciais, visto que aceitar completamente os pressupostos desta teoria significaria
concordar que grande parte da população brasileira, inclusive da elite, devido ao
mestiçamento era humanamente inferior aos brancos, considerados puros. Dessa forma, a
solução de alguns destes problemas, principalmente das questões relacionadas à conformação
do “povo brasileiro” e de uma identidade nacional, já que o presente não apontava soluções
imediatas, era relegada ao futuro125.
Nesse sentido, o mesmo Tristão de Alencar Araripe, em outro artigo também
publicado na revista do IHGB e datado de 1894, escrevia que a massa da população nacional
historicamente era formada de indivíduos descendentes do cruzamento do “indígena brasílico,
do colono português e do escravo africano”126. Contudo, devido ao desenvolvimento de novas
correntes imigratórias européias que estava ocorrendo na época, especialmente em função da
chegada de imigrantes europeus de origem não ibérica – italianos, alemães, franceses, etc... –
e também de asiáticos, o intérprete do Brasil deveria, de acordo com Araripe, perguntar-se
como “do amálgama de tantas espécies se organizará um povo, cujo caráter, índole e aptidões
só no futuro se poderá reconhecer e apurar”127.
124 Idem, p. 159-160. 125 Sobre a questão do “povo brasileiro” e da constituição de uma identidade nacional, Márcia Naxara escreve que, no início do século XX, o Brasil era visto como “um país despossuído de povo, ao qual faltava identidade para constituir e formar uma nação moderna. Tinha uma população mestiça, sem características próprias, que fosse definidas e homogêneas – não possuía face, não possuía identidade. De um lado, um caudatário de povos e raças diferentes que não formavam um corpo social; de outro, uma elite que não se identificava com as tradições de seu povo, distinguindo-se, e não o reconhecendo como tal”. Cf.: NAXARA, Márcia Regina Capelari. Estrangeiro em sua própria terra: representações do brasileiro, 1870/1920. São Paulo: Annablume, 1998, p. 39. 126 ARARIPE, Tristão de Alencar. Indicações sobre a história nacional, p. 272. In.: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 57, parte II. Rio de Janeiro: Companhia Tipográfica do Brasil, 1894, p. 259-290. 127 Idem, ibidem.
- 135 -
No caso dos documentos produzidos pelos aparelhos de Estado no Rio Grande do Sul,
as posições relativas aos afros-descendentes, nacionais e índios eram altamente influenciadas
pelo positivismo, especialmente pela idéia de incorporação destes grupos a sociedade. O
diretor da DTC, por exemplo, era um dos principais representantes do positivismo religioso
no Rio Grande do Sul e, durante o período em que foi responsável pela administração da
Diretoria, tentou colocar em prática vários dos princípios característicos dessa teoria128.
Augusto Comte, o fundador do positivismo, no que tange à questão racial, entendia
que existiam três raças distintas: a branca, a amarela e a negra. Cada uma delas correspondia a
um aspecto fundamental da natureza humana: a inteligência, a atividade e o sentimento e uma
era superior à outra em um desses aspectos. Assim, para Comte, a crescente combinação das
raças, “sob a sistemática direção do sacerdócio universal”, produziria “o mais precioso de
todos os aperfeiçoamentos, o que diz respeito ao conjunto da nossa constituição cerebral,
tornada assim mais apta para pensar, agir e até amar”129. As apreciações de Comte sobre a
questão racial estiveram na base de muitas ponderações feitas por Torres Gonçalves. Em
1914, por exemplo, ele escreve em seu relatório que:
a nossa evolução política como povo, é essencialmente a mesma dos povos ocidentais, dos quais constituímos apenas, na realidade, um prolongamento. Porém, como acontece em cada caso, há alguma coisa de original nessa evolução. A nossa constituição biológica, já por mestiçagem, já em virtude de influências puramente cerebrais, representa a fusão das três raças humanas, branca, preta e amarela, o que equivale dizer dos três aspectos fundamentais da natureza humana, inteligência, sentimento e atividade, pois que cada uma dessas raças é superior as outras por um desses atributos fundamentais130.
A referência ao pensamento de Comte aparece no Relatório no momento em que
Torres Gonçalves tratava do problema da assimilação dos imigrantes europeus recém-
chegados ao Rio Grande do Sul. Baseado em Comte, o diretor da DTC argumentava que os
estrangeiros eram representantes de um dos aspectos naturais à condição humana e, portanto,
deveriam ser aproximados dos outros grupos para estimular a sua assimilação e, igualmente, o
aprimoramento dos outros. No Relatório de 1915, Torres Gonçalves escrevia que “a fusão das
raças é uma previsão tão certa como a dos fenômenos astronômicos”131. Contudo, ela dever-
128 No próximo capítulo apresentarei de maneira mais profunda a história e atuação de Carlos Torres Gonçalves como diretor da DTC. 129 COMTE, Augusto. Catecismo positivista ou exposição sumária da Religião Universal em onze colóquios entre uma mulher e um sacerdote da humanidade. Portugal: Europa América, coleção livros de bolso, n. 213, p. 216-217. 130 Carlos Torres Gonçalves, 1916. Idem, op. cit., p. 115-116. 131 Carlos Torres Gonçalves, 1915. Idem, op. cit., p. 85.
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se-ia realizar sem abalos sociais, visto que era necessário atingir “uma situação social tal que
permita a apreciação justa e real das virtudes e vícios das diferentes populações e o seu
aproveitamento”132. Para Gonçalves, enquanto as condições ideais para que a “fusão das
raças” acontecesse sem abalos não se realizassem, era preciso ter cuidado com as “tentativas
prematuras e imprudentes”, uma vez que elas poderiam “comprometer para todos este
grandioso problema reservado ao futuro”133. Ou seja, o problema da “fusão das raças” era
uma questão que só o devir poderia responder.
A idéia de raça, como lembra Michael Banton, foi desenvolvida pela Europa para
ajudar a compreender as relações sociais. Entretanto, a sua utilização passou a ser maior à
medida que os europeus foram percebendo a existência de um crescente número de pessoas
diferentes deles. Nos fins do século XIX, quando os contatos da Europa com outros povos
tornaram-se maiores, principalmente com o continente africano, a idéia de raça passa a ser
utilizada para defender a noção de que certos povos eram menos aptos a avançar do que
outros. Portanto, passou a ser empregada para justificar a dominação dos europeus sobre
outros povos. Dominação que se efetivou por um processo tradicionalmente denominado
imperialismo134.
A proximidade entre imperialismo e a utilização da idéia de raça como princípio da
estrutura política, além do desenvolvimento da burocracia como princípio de domínio
exterior, sublinha Hannah Arendt, são fenômenos correlatos. Assim, a raça, de acordo com a
autora, foi uma tentativa de explicar a existência de seres humanos que ficavam à margem da
“compreensão dos europeus, e cujas formas e feições de tal forma assustavam e humilhavam
os homens brancos, imigrantes ou conquistadores, que eles não desejavam mais pertencer à
mesma comum espécie humana”135. Dessa idéia, que “sempre atraiu os piores elementos da
civilização ocidental”, continua a autora, “resultaram os mais terríveis massacres da
historia”136. Quanto à burocracia, “foi a base organizacional do grande jogo de expansão, no
qual cada zona era considerada um degrau para envolvimentos futuros, e cada povo era um
instrumento para futuras conquistas”137. Assim, foi a partir da utilização conjunta da idéia de
raça para substituir a nação e da burocracia para substituir o governo que, segundo Arendt, os
europeus justificaram sua dominação e conquista de outros povos e territórios.
132 Idem, ibidem. 133 Idem. 134 Cf.: Michael Banton. Idem, op. cit. 135 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo e totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 215-216. 136 Idem, ibidem. 137 Idem.
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No caso do Brasil, lembra Thomas Skidmore, devido às suas peculiaridades históricas,
expressas principalmente na presença de um contingente considerável de mestiços, a
aplicação da teoria racial, como fora pensada na Europa, encontrou certos obstáculos. Em
conseqüência, a idéia de branqueamento foi a solução brasileira ao problema racial. Dada a
experiência da sua sociedade multiracial, segundo Skidmore, a tese do branqueamento
oferecia aos brasileiros uma explicação para o que acreditavam estar já em curso, isto é, o
desaparecimentos dos “indivíduos de cor”. Assim, no Brasil, a idéia de raça era tomada de
empréstimo da Europa e, ao mesmo tempo, eram descartadas “duas das suas principais
presunções: o caráter inato das diferenças raciais e a degenerescência dos sangues mestiços –
a fim de formular sua própria solução do ‘problema negro’”138.
Conforme Lilia Schwarcz, no Brasil, o termo raça, antes de ser utilizado como um
conceito fechado, era entendido como um objeto de conhecimento, cujo significado foi
constantemente “renegociado e experimentado nesse contexto histórico específico [1870-
1930], que tanto investiu em modelos biológicos de análise”139. Assim, as teorias raciais, em
meio as transformações em que o Brasil estava submerso devido ao final da escravidão, se
apresentavam como um “modelo teórico viável na justificação de um complicado jogo de
interesses”140, bem como para manter uma determinada hierarquia social e também definir
“critérios diferenciados de cidadania”. Entretanto, a aplicação das teorias raciais não poderia
ser efetivada sem a realização de alguns ajustes. Dessa maneira,
do darwinismo social adotou-se o suposto da diferença entre as raças e sua natural hierarquia, sem que se problematizassem as implicações negativas da miscegenação. Das máximas do evolucionismo social sublinhou-se a noção de que as raças humanas não permaneciam estacionadas, mas em constante evolução e ‘aperfeiçoamento’, obliterando-se a idéia de que a humanidade era una. Buscavam-se, portanto, em teorias formalmente excludentes, usos e decorrências inusitados e paralelos, transformando modelos de difícil aceitação local em teorias de sucesso141.
O silêncio, ou melhor, os silêncios existentes sobre os negros nos documentos não
devem ser tomados unicamente como resultados das influências exercidas pela “tese do
branqueamento” e pelas teorias raciais. Uma outra possibilidade de interpretação desses
silêncios é formulado por Hebe Mattos, segundo a qual, no Brasil, desde o período colonial a
noção de cor “não designava, preferencialmente, matizes de pigmentação ou níveis diferentes
138 Thomas Skidmore. Idem, op. cit., p. 93-94. 139 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 17. 140 Idem, p. 18. 141 Idem, ibidem.
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de mestiçagem, mas buscava definir lugares sociais, nos quais etnia e condição estavam
indissociavelmente ligadas”142. Para a autora, a cor inexistente antes de significar apenas
branqueamento era um signo de cidadania.
Elione Guimarães, em estudo sobre os “viveres de afrodescendentes” na escravidão e
no pós-abolição no município de Juiz de Fora/MG, discute a questão da cor ausente nos
documentos e assinala que “a presença ou a ausência da cor na documentação tem uma forte
relação com o tipo de fonte que se está utilizando e com a carga de preconceitos embutidos na
elaboração dessas”143. A documentação consultada para elaboração desta pesquisa permite-me
concordar com a afirmação de Guimarães, pois, como no caso da autora, a presença da cor é
evidente nos processos crime, contudo, nos Relatórios da DTC e nas mensagens dos
presidentes de Estado o que prepondera é o silêncio.
Assim sendo, uma outra pergunta vem à tona: porquê a cor está presente nos processos
criminais, enquanto que nos documentos produzidos diretamente pelos governantes na,
maioria das vezes, ela está ausente? Conforme Ivana Stolze Lima, tais ausências compõem
estratégias complexas, segundo as quais não falar sobre a cor em instâncias mais centrais “era
complementar a uma série de outras práticas mais imediatas em que a cor, como um dos
elementos constitutivos da condição social, era algo indelével”144. De acordo com Lima,
existe uma imbricação entre cor e condição social, que pode explicar os silêncios. Em outros
termos, não havia porque evidenciar a cor se os afros-descendentes viviam em condições
semelhantes aos demais grupos que compunham a massa da população nacional e o objetivo
único em relação aos mesmos era torná-los disciplinarizados e aptos para o trabalho,
independentemente se eram índios, negros, mestiços ou brancos. Além disso, outro elemento
entra na equação, uma vez que na base dos silêncios também está o desejo de constituição de
uma “nação homogênea”, onde as diferenças de cor e os conflitos a elas relacionados deviam
desaparecer145.
Todavia, esta discussão é bem mais complexa, pois a noção de cor e os qualificativos
empregados para representar os afros-descendentes envolve um longo processo, no qual
142 MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p. 109. 143 GUIMARÃES, Elione Silva. Múltiplos viveres de Afrodescendentes na Escravidão e no Pós-Emancipação: família, trabalho, terra e conflito (Juiz de Fora – MG, 1828-1928). São Paulo: Annablume; Juiz de Fora: Funalfa, 2006, p. 309. 144 LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: sentidos da mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 127. 145 Para aprofundar as análise sobre o problema, conferir artigo de Sidney Chalhoub publicado no livro Quase-cidadão. CHALHOUB, Sidney. Solidariedade e liberdade: sociedades beneficentes de negros e negras no Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX. In.: Olívia Maria Gomes da Cunha; Flávio dos Santos Gomes (Orgs.). Idem, op, cit., p. 219-239.
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aspectos relacionados a escravidão, a abolição, ao branqueamento, a constituição de uma
identidade nacional e de uma idéia de civilização entram no jogo e definem não só lugares
sociais, mas também identidades sociais. Lilia Schwarcz, neste sentido, ao tratar do processo
de emancipação e dos significados que ela adotou, tanto para os afros-descendentes quanto
para a elite branca envolvida nas lutas da abolição demonstra o quanto a aplicação de termos
como “preto” e “negro” adotavam significados diversos no período. Dessa forma, segundo a
análise da autora, há uma diferença entre essas duas categorias mesmo que ambas tenham
como ponto de referência a cor, visto que, na documentação estudada por Schwarcz, “equanto
o ‘preto’ é o escravo comumente representado, violento por vezes, mas dependente e
vinculado à sua condição; o ‘negro’ é antes de tudo um fugitivo, perigoso e pouco
confiável”146. Esta divergência de conteúdos nos termos utilizados para nomear a população
afro-descendente aponta para outro problema característico do período pós-emancipação: o
dos ajustes que as representações sobre os ex-escravos estavam passando a fim de definir o
papel que eles deveriam ocupar na sociedade.
Outro elemento comum no uso destas representações é associação entre cor e
criminalidade de modo que “as atitudes e os costumes de uma pessoa podia torná-la mais ou
menos negra”, pois, na época e, em muitos casos ainda hoje, “ter sua identidade marcada pela
cor negra era associar sua condição à de ‘ladrão’, ‘vagabundo’, ‘preguiçoso’, ‘mal-educado’,
etc.”147. Daí o porque de a presença da cor ser mais nítida nos processos criminais, já que o
crime é o seu motivo principal. Tal associação entre criminalidade e cor não é objeto apenas
dos documentos oficiais e da literatura jornalística, mas encontrava lugar no cotidiano das
populações.
No caso da região serrana, tal situação fica visível em um processo crime movido na
Comarca de Santo Ângelo, datado de 1916. O processo trata de um crime ocorrido no quinto
distrito do município e envolve o subdelegado e uma escolta por ele organizada. Conforme
está relatado no processo, José Soares da Rosa e Manoel Alexandre de Lima, dirigiam-se, no
dia 08 de julho de 1916, as 11 horas, mais ou menos, até um casamento onde José foi
convidado para “tocar gaita”. Contudo, no caminho foram “tocaiados” pela escolta, sendo que
antes disso, José Rosa, “ouvindo pequeno barulho no mato, disse ao seu companheiro:
‘cuidado com os negros’”148 e, logo em seguida, ele foi atingido por um tiro de espingarda.
146 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Dos males da dádiva: sobre as ambigüidades no processo da Abolição brasileira, p. 31. In.: Olívia Maria Gomes da Cunha; Flávio dos Santos Gomes (Orgs.). Idem, op, cit., p. 23-54. 147 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Um reduto negro: cor e cidadania na Armada (1870-1910), p. 298. In.: Olívia Maria Gomes da Cunha; Flávio dos Santos Gomes (Orgs.). Idem, op, cit., p. 283-314. 148 APERGS. Processos Crime 1.404. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1916. Maço 47.
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Segundo consta no processo, José Rosa era jurado de morte por um dos membros da escolta
em função de desavença ocorrida anteriormente entre os dois em uma carreira de cavalos. O
que chama atenção no processo é que ao perceber movimento estranho dentro da mata e sentir
um certo perigo em tal circunstância José Rosa imediatamente faz a associação entre a
possibilidade de sofrer alguma ofensa e ela ser executada por um indivíduo de cor. Em outras
palavras, um exemplo nítido da associação entre cor e criminalidade149.
Tais questões apontam para um problema que ainda não foi profundamente
problematizado pela historiografia brasileira, qual seja, o da história dos ex-escravos e ex-
escravas nos anos posteriores ao 1888. Nesse sentido, Frederick Cooper, Thomas Holt e
Rebecca Scott no livro Além da escravidão150, preocupam-se em pensar o lugar dos afros-
descendentes em sociedades pós-emancipação. Os textos reunidos no livro apontam questões
importantes tais como as relacionadas à transformação dos ex-escravos em mão-de-obra
disciplinada e o quanto a utilização de interpretações raciais está ligada a tal interesse. Outro
ponto interessante tematizado pelos autores é o da ligação entre as possibilidades de ingresso
na terra e o modo como os ex-escravos inseriam-se no mercado de trabalho e construíam
noções próprias de cidadania, bem como de trabalho. Daí o interesse das elites das sociedades
escravagistas em controlar o acesso a terra nos anos posteriores às emancipações e assim
garantir o controle sobre a mão-de-obra recém liberta.
Ao interpretar a questão da ausência da cor em alguns documentos da época a partir
das constatações realizadas por esses autores e suas leituras sobre o pós-emancipação em
Cuba, na Jamaica, no estado da Louisiana dos Estados Unidos e na África colonial francesa, é
possível tomá-lo também como conseqüência da dispersão dos ex-escravos pelo território rio-
grandense no pós-emancipação . Bem como pelas possibilidades de refúgio oferecidas a esses
indivíduos, pelas zonas economicamente ainda não incorporadas, como era a região serrana.
Tais possibilidades afastaram os ex-escravos do espaço público e, conseqüentemente,
redundaram e deram sustentação aos silêncios, uma vez que as referências a sua presença se
tornaram maiores apenas nos momentos em que os espaços de fronteira agrária estavam em
149 Sobre essa associação, Álvaro Pereira do Nascimento, ao tratar sobre a presença da cor em notícias de jornais da Primeira República, escreve: “mencionar a cor de uma pessoa negra, enfim, era mais explicativo e importante do que identificá-la pelo nome. Ao identificar o indivíduo por causa da cor, o jornalista acessava todo um conhecimento arraigado entre os leitores. (...). Havia um conhecimento prévio em relação ao negro entre os que tinham acesso à escrita e à leitura das folhas e revistas do Rio e de boa parte do país. O não-branco – preto, crioulo, negro, mulato, moreno, etc. – carregava estereótipos construídos há décadas e, por isso mesmo, se chegava a preconceitos dos mais complicados...”. Cf.: Álvaro Pereira do Nascimento. Idem, op. cit., p. 300. 150 COOPER, Frederick; HOLT, Thomas C.; SCOTT, Rebecca J. Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
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fase de esgotamento ou nas situações em que eles se envolviam em algum conflito, seja pela
terra, seja por questões dos mais diferentes matizes.
Em outros termos, no caso das situações estudadas por Cooper, Holt e Scott, a
criminalização dos afros-descendentes, a leitura racista de sua atuação e as políticas
governamentais discriminatórias se tornaram maiores à medida que eles organizavam suas
demandas em movimentos de reivindicação, agrupavam-se em sindicatos, inseriam-se em
movimentos de independência e lideravam greves. Evidentemente que as situações variaram
de acordo com o contexto. Por conseguinte, o que aconteceu em Cuba foi diverso do que
aconteceu na Louisiana e na África e, um dos pontos que definiu a diferença, segundo os
autores, foi o acesso que os ex-escravos tiveram a terra.
Em linhas gerais, pode parecer um tanto anacrônico falar em uma possível
organização reivindicatória por parte dos ex-escravos do Rio Grande do Sul no início do
século XX. Contudo, o importante não está na suposição propriamente dita, mas na pergunta
que dela emerge: por que os ex-escravos da Louisiana, na virada do século XIX para o XX,
conseguiram desenvolver um certo grau, ainda que frágil, de organização e na situação aqui
analisada isso não aconteceu? Evidentemente que se trata de contextos sociais diferentes, os
quais repercutem em comportamentos sociais variados. Porém, o acesso a terra, que no estado
norte americano era bem mais limitado do que no Rio Grande do Sul, aparece como uma
resposta intrigante que merece ser aprofundada. Outra diferença existente entre a realidade da
região serrana e a da Louisiana, no que diz respeito à questão dos ex-escravos, refere-se ao
modo diferenciado como o preconceito racial desenvolveu-se nos dois contextos. Nesse
sentido, a questão da terra também é um elemento explicativo, pois, segundo Scott, a
construção de uma linha de cor binária e altamente politizada na Louisiana
não foi simplesmente um ato discursivo ou uma trama retórica. A recusa de arrendar terras de canaviais a ex-escravos, a reconstrução dos grupos de trabalho e o recrutamento de trabalhadores sazonais afro-americanos da Virginia e das Carolinas combinaram-se para criar uma realidade na qual o trabalho canavieiro assalariado se associasse fortemente à negritude. O processo de construir a linha de cor pode ser visto como recíproco, no qual a ideologia racial deu forma às relações de classe e as relações de classe, por sua vez, deram forma à construção da raça e da política151.
Scott registra que no caso de Cuba o acesso constante à terra de subsistência garantia,
aos ex-escravos, ainda que de maneira restrita, algum poder de barganha como indivíduos,
enquanto na Louisiana, as limitações impostas para que o ingresso de ex-escravos a terra não
151 SCOTT, Rebecca J. Fronteiras móveis, “linhas de cor” e divisões partidárias: raça, trabalho e ação coletiva em Louisiana e Cuba, 1862-1912, p. 163. In.: Frederick Cooper, et alli. Idem, p. 131-201.
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ocorresse “preparou o palco para a segregação”. Talvez o caso aqui estudado esteja mais
próximo do que ocorreu em Cuba, no entanto, qualquer afirmação nesse sentido pode ser
precipitada. Assim, apenas o desenvolvimento de pesquisas que se preocupem em pensar os
ex-escravos no pós-emancipação aqui no Brasil pode iluminar melhor o problema.
A associação entre cor e status social, como já frisei, é um dos motivos que sustenta os
silêncios sobre a cor, porém, ela não é apenas uma questão de discurso, uma vez que uma
análise atenta da sociedade brasileira mostra que a maior parte da população afro-descendente
faz parte da camada mais pobre da população. Da mesma forma, o preconceito, segundo
Oracy Nogueira, por um lado, aumenta na medida que subimos na escala social das camadas
mais pobres até as mais ricas e, por outro, a possibilidade de um indivíduo de cor ascender
socialmente tropeça nos preconceitos existentes, fato que torna tal ascensão bem mais difícil
para um negro pobre do que para um branco pobre152. Constatação esta que é bastante
elucidativa para o caso sob estudo, uma vez que no processo de povoamento da região
serrana, estão envolvidos imigrantes, negros, índios e nacionais. O exemplo citado no capítulo
anterior do baile ocorrido no club gaúcho de Santo Ângelo comprova a situação, uma vez que
o conflito ocorreu exatamente porque uma das envolvidas dizia que sua antagonista não
deveria participar daquele baile porque ela era “um resto de negros”. Ou seja, a cor expressa
um lugar social e, como veremos dentro em pouco, na região, esse lugar é o mato. Ademais, a
constatação de que o preconceito aumenta na medida em que subimos na hierarquia social,
não quer dizer que entre as camadas menos favorecidas ele não encontre espaço, pelo
contrário, aí o preconceito também pode existir como elemento de diferenciação social,
especialmente, quando existe algum tipo de disputa entre as partes.
Assim, a insistência em esconder a presença afro-descendente e em diminuir a sua
atuação e importância seja pelo silêncio ou pela utilização de eufemismos, bem como em
camuflar os preconceitos e os conflitos que lhe dizem respeito em nome de uma certa
homogeneidade nacional e de um igualitarismo social redundaram na estruturação de um tipo
particular de preconceito que tem suas principais expressões na idéia do branqueamento e da
existência de uma democracia racial no Brasil. A conseqüência disso, conforme Nogueira, é
que esse tipo de preconceito é diverso daquele existente nos Estados Unidos, pois não tem o
152 “Pode-se dizer que o preço da ascensão social ou da consideração social é tão mais alto quanto mais escuro o indivíduo ou quanto mais carregados os seus caracteres negróides. Acresce, ainda, que a intransigência do branco é tão mais acentuada quanto mais elevada sua posição social, sendo mais completa a confraternização entre indivíduos brancos e de cor nas camadas menos favorecidas, em que é menor, inclusive, a resistência ao intercasamento ou à união permanente entre pessoas de traços raciais contrastantes, especialmente na zona rural”. Cf.: NOGUEIRA, Oracy. Preconceito de marca: as relações raciais em Itapetininga. São Paulo: USP, 1998, p. 200.
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mesmo poder de dividir a “sociedade em dois grupos com consciência própria, como duas
castas ou dois sistemas sociais paralelos, em simbiose, porém impenetráveis um ao outro,
apesar de participarem, fundamentalmente, da mesma cultura”153. No Brasil, o preconceito
“tende a situar os indivíduos, uns em relação aos outros, ao longo de um continuum que vai do
extremamente ‘negróide’, de um lado, ao completamente ‘caucasóide’, de outro”154.
Tal tipo de preconceito, que Nogueira denomina preconceito de marca, pois na sua
base está a cor e o fato de o indivíduo portar traços físicos que lhe identifiquem como mais ou
menos negro, não deve ser hierarquizado em relação aos preconceitos existentes em outros
territórios que conheceram a escravidão, principalmente para defini-lo como mais
humanitário. Ele carrega traços negativos e positivos, visto que opõe obstáculos a mobilidade
social dos homens e mulheres de cor, bem como, subjetivamente, atua no sentido de
desencorajar suas ações devido a ameaça de humilhação. Positivamente, por seu turno, a
“ideologia brasileira de relações raciais” oferece as pessoas de cor argumentos em que basear
“suas reivindicações e seus protestos, nas situações em que se sente preterido, também torna a
opinião pública propensa a se exaltar e a condenar manifestações ostensivas de
preconceito”155. No entanto, não lhe tira o status de ser um preconceito e, assim, um
importante elemento de diferenciação social que, ao fim e ao cabo, deve ser questionado e
combatido.
No Rio Grande do Sul, por mais que, ao longo da história, a intenção fosse silenciar a
presença dos afros-descendentes, eles sempre encontraram formas de se fazerem ver156. No
153 Idem, p. 199. 154 Idem, ibidem. 155 Idem, p. 202. 156 No Rio Grande do Sul, existe uma idéia, ainda não totalmente superada, de que durante os anos de vigência do regime escravocrata eram poucos os escravos existentes no estado e que aqueles que existiam viviam em melhores condições do que os escravos das outras regiões do país. João Neves da Fontoura em suas memórias nos dá um exemplo de como esta idéia funcionava: “pela nossa insularidade, a democracia abrangia também a sociedade, que era despretensiosa, mesmo entre os ricos. A índole da nossa formação, os hábitos da “campanha”, a necessidade de mútuo auxílio entre o fazendeiro e o peão, a fraternidade das urnas e das armas, tudo contribuía para fazer do Rio Grande o reino da igualdade. Preconceitos raciais nunca houve”. Cf.: FONTOURA, João Neves da. Memórias: Borges de Medeiros e seu tempo. Porto Alegre: Editora Globo, vol. 1, 1958., p. 50. O Rio Grande do Sul como reino da igualdade onde preconceitos nunca houve foi tema longamente tematizado por alguns historiadores rio-grandenses que escreveram entre as décadas de 50 e 60, tais como Jorge Salis Goulart e seu A formação do Rio Grande do Sul .Cf.: GOULART, Jorge Salis. A formação do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro; Caxias do Sul: EDUCS, 1985. A partir da década de 80 do século XX, essas idéias passam a ser criticadas por uma nova geração de historiadores. Contudo, estes autores que passam a criticar a idéia da democracia racial relegam aos grupos subalternos um papel pouco representativo, principalmente na esfera política estadual, e passam a tratar-lhes como massa de manobra na mão de uma elite muitas vezes apressadamente identificada. Quanto à questão dos negros e da escravidão propriamente ditas, um dos primeiros pesquisadores a criticar a noção de que no Rio Grande do Sul o número de escravos era pequeno a ponto de ser, por vezes, considerado inexistente, bem como da democracia racial, foi Fernando Henrique Cardoso. Cf.: CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
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caso dos documentos que tratam de descrever a região serrana, sua aparição geralmente
ocorre por questões ligadas à terra ou, no caso dos processos crime, devido a participação de
um “elemento de cor” em algum conflito. No relatório da SENOP de 1899, ou seja, 11 anos
após a assinatura da Lei Áurea, Nelson Coelho Leal (engenheiro responsável pela Comissão
Verificadora de Posses e de discriminação de terras públicas no município de Santa Cruz)
relata uma situação que envolve alguns ex-escravos e um certo Carlos Trein Filho. Este
último buscava legitimar uma área de 29.602.200 metros quadrados (2.960 hectares) que
alegava ter comprado de João Fidêncio e onde pretendia estabelecer uma colônia, no
Relatório identificada como Colônia Preta.
João Fidêncio havia requerido a legitimação da área em 1882 a partir da medição de
áreas que dizia serem ocupadas por seus agregados: Virissimo Bibiano da Fontoura e Miguel
Severo. O Juiz Comissionário de Santa Cruz julgou verdadeiras as alegações de João Fidêncio
e considerou que as posses haviam sido estabelecidas antes do Regulamento de Terras de
1854. Quando é realizada a verificação de posse efetiva e morada habitual, é arrolado mais
um agregado de nome Honorato Silveira. Junto aos autos do requerimento encaminhado por
Carlos Trein, também constam escrituras de compra de terras em nome dos já referidos
Virissimo Bibiano, Miguel Severo e de Cristiano Hirsch, inicialmente não citado. Cristiano
declarava ter comprado suas terras de Joaquim Miguel dos Santos pagando por elas o valor de
400$000 réis. Todavia, a efetividade da alegação de Joaquim Miguel não era comprovada nos
autos. Diante de tudo, escreve o responsável pela Comissão Verificadora: “todas essas
irregularidades e contradições são completamente suficientes para invalidarem todo o
processo de legitimação”157.
Na continuidade do relato Coelho Leal apresenta dois dos indivíduos arrolados no
processo e descreve o modo como se dava a sua inserção nas estruturas sociais e econômicas
da época. Virissimo Bibiano tinha cerca de 70 anos de idade, até o ano de 1864 era escravo de
D. Dortéia Pacheco e “ia seguidamente ao erval com vários cargueiros e aí demorava-se
algum tempo fabricando erva-mate. Em 1870, mudou-se para o erval, onde estabeleceu-se
com a família”158. Miguel Severo, já falecido em 1899, era escravo do Capitão Cirino Severo,
“libertou-se em 1871, mais ou menos, seguindo pouco depois para o Erval, onde estabeleceu-
157 PAROBÉ, João José Pereira. Relatório dos negócios de Obras Públicas apresentado ao Exm. Sr. Desembargador Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo secretário de Estado João José Pereira Parobé, em 31 de julho de 1899. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1899, p. 226-233. (AHRS - OP. 07). 158 Idem, ibidem.
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se”159. Em outras palavras, a área de matas do Estado, sobretudo a que continha grande
quantidade de ervais, era um espaço ocupado e, embora os silêncios, existem registros da
presença de negros vivendo naquele espaço e trabalhando na produção de erva-mate.
Paulo Zarth afirma que em Cruz Alta, “uma população livre expressiva dedicava-se ao
extrativismo de erva-mate, setor que não contava com escravos e que demandava uma grande
quantidade de mão-de-obra”160. Contudo, as informações presentes no Relatório da SENOP
demonstram que, diferentemente da afirmação de Zarth, havia presença de escravos
trabalhando nos ervais. A atração que a erva-mate exercia sobre as pessoas era tamanha que,
segundo o relato descritivo da região elaborado em 1909 por Hemetério Velloso da Silveira,
uma grande multidão de homens pobres, procedente da fronteira sul e de outros pontos, atraídos pela notícia da extraordinária abundância e superioridade da erva-mate; para aí concorreu, procurando arranchar-se como agregados da grandes propriedades rurais, ou dentro dos matos baldios, ou mesmo comprando frações de campos, para criações em pequena escala161.
Ao escrever sobre a população que vivia do trabalho nos ervais, Maximiliano
Beschoren, evidencia a presença de “indivíduos de todas as cores” atuando nesta atividade.
Pessoas que aos olhos do agrimensor alemão eram “selvagens e ousadas e cuja pigmentação
da pele varia numa escala de cores, desde o preto, mulato, até o branco, apesar da aparência
perigosa, são sujeitos amáveis e não são tão maus quanto aparentam”162. Como é possível
perceber, a base sobre a qual Beschoren sustenta seu argumento é a diferença, mas não é
qualquer uma, visto que trata-se da diferença física que tem seu principal traço na cor.
Outro ponto presente na passagem se refere as representações existentes a respeito
desta população, pois até Beschoren entrar em contato direto com as pessoas que ele descreve,
tinha-as como perigosas e muitas vezes em seu texto define-as como pouco trabalhadoras.
159 Idem. 160 ZARTH, Paulo. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: UNIJUI, 2002, p. 123. 161 Hemetério Velloso da Silveira. Idem, op. cit., p. 326. 162 BESCHOREN, Maximiliano. Impressões de viagem na Província do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1989, p. 101-102. Uma circunstância que deve ser levada em conta na análise das observações feitas por Beschoren sobre a população da região, principalmente da negra, é o fato de que ele possuía um escravo, cujo apelido era Sexta-feira. Beschoren diz tê-lo alforriado “como recompensa pela sua lealdade e afeição”. De acordo com Júlia Schütz Teixeira, organizadora e tradutora da descrição, o verdadeiro nome do negro era Carlos Beschoren, que sempre acompanhou o alemão por suas andanças e fora comprado numa feira porque Beschoren “deixou-se penalizar pelo negrote”. Entretanto, isso não isenta o agrimensor de ter sido proprietário de outro ser humano. Demonstra que ele partilhava de valores que eram comuns à época em que viveu e, por seu turno, evidência sua crença na superioridade do elemento branco sobre o de cor, situação muito visível nas opiniões emitidas e nas várias apologias que faz aos colonos, principalmente os de origem germânica como, por exemplo, quando tratando sobre o potencial agrícola e econômico da região, escreve: “lançada a primeira pedra pelos colonos, o resto virá por si”.
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Mesmo depois do contato, a impressão continuou dominando sua escrita a ponto de apresentá-
las como “selvagens” e “ousadas”. Embora os tais “indivíduos de todas as cores”
aparentassem ser mais perigosos do que realmente eram, após os primeiros contatos, concluía
que não eram tão maus assim, talvez bem menos do que se falava e se acreditava. Ao entrar
em contato com alguns indígenas, Beschoren expressava opinião semelhante e escrevia que
“os índios não são tão maus: a gente pode muito bem tratar com eles. Deve-se, contudo, ter
cuidado com a traição e a perfídia visível em seu olhar”163. Assim, baseado em tais
apreciações a respeito dos “habitantes típicos da região”, Beschoren concluía que apenas a
colonização com europeus, principalmente alemães, poderia tirá-la do atraso em que se
encontrava164.
As informações arroladas por Nelson Coelho Leal, Velloso da Silveira e Beschoren
evidenciam que a região era um local de refúgio. Também mostram o quanto a grande
presença de ervais era um incentivo para o deslocamento de pessoas naquela direção. Essa
mobilidade e o avanço constante para a zona de matas não devem ser lidos como uma simples
fuga ou tomados como provas de que tais populações não se adequavam ao trabalho
sedentário como geralmente se argumentava na época. Essa “fuga” deve ser compreendida
como “uma das mais freqüentes e eficazes respostas humana à opressão”165. Por conseguinte,
os afros-descendentes que antes de 1888 se estabeleciam dentro das regiões de matas estavam
buscando formas para escapar da opressão da vida de escravo. Depois dessa data, por seu
turno, o sentido da ação não muda, embora os registros da opressão passassem a ser mais
velados a ponto de muito dificilmente a sua presença ser mencionada.
Todavia, à medida que o povoamento avançou, os grupos que tinham encontrado nela
uma possibilidade de vida mais digna passam a ser alvo de outra pressão tão excludente
quanto era a da escravatura: as terras por eles ocupadas tornam-se interessantes e ganharam
maior valor no mercado, conseqüentemente ações como as ocorridas com Veríssimo Bibiano
e Miguel Severo passaram a ser freqüentes. A mobilidade continuou sendo a principal atitude
tomada pelas pessoas que, de alguma forma, não conseguiram se enquadrar às exigências do
processo e, assim, participar completamente dele. Dessa maneira, à medida que os espaços
esgotavam-se ou eram ressignificados a resistência destes grupos aumentava e,
163 Idem, p. 45. 164 Em outra passagem, à página 52, o Beschoren escreve que o Vale do Goio-Em, que fica a quinze quilômetros de Nonoai, era a parte mais privilegiada do estado, “o que falta são apenas trabalhadores capacitados. Quem aqui se estabelecer e tiver vontade de trabalhar, logo verá seu esforço recompensado, ainda mais se dispuser de capital para instalar uma fábrica de aguardente, serraria, moinho ou indústria de café”. (Grifo meu). 165 MOORE Jr, Barrington. Injustiça: as bases sociais da obediência e da revolta. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 180.
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conseqüentemente, a sua presença nas pautas de discussão também aumentou e, como aponta
Rebecca Scott para o caso da Louisiana e de Cuba, a racialização das opiniões a respeito dos
envolvidos tendia a aumentar.
Um exemplo esclarecedor a respeito da mobilidade é encontrado em um processo
crime datado de 1890, movido na Comarca de Palmeira das Missões, o qual passo a
descrever. No processo, José Marceliano (preto, solteiro, com 23 anos de idade, jornaleiro,
natural do Rio Grande do Sul) é acusado de, em conjunto com sua mãe e irmãos, furtarem
animais da propriedade de um fazendeiro local de nome Fernando Westphalen. Segundo
consta na denúncia, os acusados cometeram o furto quando estavam realizando mudança do
município de Palmeira para o de Vacaria e o número de animais roubados era de oito, entre
cavalos e muares. No interrogatório, Maria Eufrágia (40 anos de idade, mais ou menos, viúva,
jornaleira, de Santa Catarina e que não sabe ler nem escrever) conta que José Marceliano era
seu filho e havia “pegado três cavalos de Fernando Westphalen ou de gente de sua casa, assim
como pegou mais uma mula ou macho que encontraram na estrada e ajuntou com os animais
que traziam na recolhida”166.
José Marceliano é interrogado e, diverso do que traz a denúncia, afirma que é natural
de Lages/Santa Catarina e que “não iam fugidos, mas de mudança para Vacaria, onde se havia
criado e por necessidade foi que furtou os animais, tendo em mente restituí-los a seus
donos”167. Marceliano também afirma que quando entrou nos campos de Westphalen
“escolheu animais que não fossem da marca dele, isto por gratidão a benefícios recebidos do
mesmo”168. Um irmão de Marceliano de nome Virgílio (16 anos de idade, mais ou menos,
solteiro, jornaleiro, brasileiro, nascido em Cruz Alta, não sabe ler nem escrever) afirma em
interrogatório que não sabia que os animais eram furtados, pois só tinha visto eles na noite em
que haviam partido em direção a Vacaria. Na continuidade do processo são interrogados mais
um irmão e uma irmã de Marecliano, ambos nascidos em Cruz Alta: ele de nome João, com
11 anos de idade e ela de nome Maria, com 20 anos de idade. Os dois dizem ser verdade o
fato de os animais terem sido furtados, mas afirmam não saber a quem pertenciam.
Embora, no restante do processo crime, não exista mais informações sobre a cor dos
envolvidos, além daquela presente na denúncia escrita pelo Promotor Público da Comarca, a
partir dessa única referência é possível supor que tratava-se de uma família de afros-
descendentes. Os depoimentos também possibilitam conhecer melhor a inserção dessa
166 APERGS. Processos Crime 98. Cartório Civil Crime. Município de Palmeira das Missões, 1890. Maço 08. 167 Idem. 168 Idem.
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família, uma vez que Marceliano diz ter furtado os animais por necessidade e que escolheu
aqueles que não pertencessem a Fernando Westphalen, porque havia recebido benefícios do
mesmo. Entretanto, na denúncia, consta que todos os animais furtados pertenciam ao referido
Westphalen. Quanto a mobilidade, ela fica visível se tomarmos o local de nascimento dos
diferentes interrogados, pois Marceliano e sua mãe dizem ser naturais de Santa Catarina, os
outros filhos(as) de Maria Eufrágia haviam nascido em Cruz Alta e todos estavam de
mudança para Vacaria, onde José Marceliano diz ter se criado, sendo que, no momento do
crime, todos residiam no segundo distrito de Palmeira das Missões.
No primeiro capítulo, chamei atenção para um documento produzido por sacerdotes
capuchinhos franceses que percorreram a região no início do século XX. Em suas andanças
pelo interior, os capuchinhos também dão notícias da presença de negros residindo “nas zonas
de ‘mato’, ocupadas pelos antigos escravos libertados em 1888 e que vivem num estado
semelhante ao selvagem e ao bárbaro”169. Em outro momento, um dos padres relata a
necessidade de atravessar a “mata virgem” para encurtar caminhos quando se vê em meio aos
“encantos da solidão e a sombra das matas. Árvores frondosas podiam nos abrigar. Algumas
cabanas de negros apareciam aqui e acolá nas clareiras das matas; papagaios, pombos,
pássaros de toda espécie esvoaçavam a nossa volta”170. Ou seja, aos olhos do sacerdote
capuchinho, não há muita diferença entre os referidos negros e a vida animal.
Enfatizei, linhas acima, que a cor expressava um lugar social e que, na região serrana,
esse lugar é o mato. As observações feitas pelos padres capuchinhos dão base a essa
constatação, visto que os negros são colocados lado a lado com papagaios, pombos, etc...
Ademais, o registro também dá a entender que as “zonas de mato” eram habitadas
exclusivamente por egressos da escravidão e que ali era o lugar deles por excelência. Em
1914 acontece um fato interessante na Freguesia de São Miguel, terceiro distrito do município
de Santo Ângelo, que também demonstra a associação entre mato, criminalidade, perigo e
negritude. Consta no processo crime que os filhos de Ricardo Ribas (51 anos de idade,
casado, empregado público, natural do Rio Grande do Sul e residente em São Miguel) haviam
visto por diversas vezes, próximo a uma fonte de água, um “indivíduo desconhecido de cor
preta”, o qual trajava “camisa vermelha, calças pretas e chapéu de palha”, sendo que toda vez
em que era visto, ele “corria para o interior do mato”171, fato que vinha ocorrendo a, mais ou
menos, quatro dias. Ricardo Ribas, ao ficar sabendo do que estava acontecendo, “foi tomando
169 D’APREMONT, Bernardin; GILLONAY, Bruno de. Comunidades indígenas, brasileiras, polonesas e italianas no Rio Grande do Sul (1896-1915). Porto Alegre: EST, Caxias do Sul: UCS, 1976, p. 236. 170 Idem, p. 174. 171 APERGS. Processos Crime 1370. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1914. Maço 45.
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sérias desconfianças, pois há tempos já o haviam saqueado o cartório” e, assim, resolveu
“convidar algumas pessoas para fazer busca e ver se descobriam o tal indivíduo”172. Para
tanto, Ricardo Ribas convidou um seu sobrinho de nome Amado de Souza e seu vizinho
Antônio Ferreira, os quais combinaram “convidar mais algumas pessoas e fazerem uma busca
geral para a descoberta do misterioso negro”173 (Grifos no original).
Na noite do dia 28 de novembro de 1914, Antônio de Souza, sua mulher e filhos
resolveram ir posar na casa de Ricardo para, na manhã seguinte, realizarem a busca. Nessa
mesma noite, na sala do cartório que ficava junto a casa de Ricardo, estavam reunidos Ricardo
Ribas, seus filhos e um seu peão, Amado de Souza, Antônio Ferreira – que tocava gaita – e
sua mulher. Em um dado momento Ricardo sentiu “fortes trombadas na porta da varanda,
então chamou que viessem ajudá-lo”174. Nisso chegou Antônio, segurando uma espada e uma
pistola, Ricardo exigiu que ele cuidasse daquela porta e que reagisse caso alguém quisesse
entrar, voltando à sala do cartório para prevenir Amado e o peão, no entanto, quando chegou
lá, ambos tinham saído. Ricardo voltou para porta onde tinha ficado Antônio e este também
tinha saído fora de casa, sendo que em seguida aconteceu forte tiroteio e Ricardo passou a
gritar para que parassem de atirar.
Quando os tiros pararam Ricardo perguntou o que havia acontecido ao que Amado
Rodrigues respondeu: “segurei o bandido” (Grifos no original). Contudo, quando foram
verificar tiveram a surpresa de que “em vez de ser o suposto bandido era o cadáver de
Antonio Ferreira que se achava com suas armas nas mãos, (...), tendo recebido de Antônio
dois balaços sendo um no peito e outro no crânio que morreu instantaneamente”175 (Grifos no
original). Os envolvidos no fato são interrogados e todos confirmam a versão descrita acima.
Alguns dizem terem visto o referido negro e sempre que ele era encontrado sua atitude era
“correr para o mato”. Amado Rodrigues é levado a julgamento, mas o Juiz não o pronuncia.
Outro fato que chama atenção no processo é que a cor é constantemente utilizada para
identificar o desconhecido: mais um indício de que a cor ausente ou presente está
proporcionalmente ligada ao tipo de fonte e de situação com que está se lidando.
O processo não só demonstra o lugar social que os negros ocupavam na região, como
também permite perceber que esse lugar era reconhecido como seu pelos próprios afros-
descendentes, uma vez que, segundo o processo, sempre que era visto o “misterioso negro”,
“fugia para o mato”. A associação entre negritude e perigo também é visível, pois a presença
172 Idem. 173 Idem. 174 Idem. 175 Idem.
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de uma pessoa de “cor preta” rondando a casa de Ricardo Ribas levou-o a toda uma série de
prevenções e, independentemente se o desconhecido fosse um criminoso ou representasse um
perigo concreto a Ribas, sua família e seus vizinhos ele tratou de organizar uma escolta para
procurá-lo. Da mesma forma, deve-se levar em conta que a desventura vivida por Antônio
Ferreira e Amado Rodrigues teve por base apenas a suposição de que o misterioso negro fosse
um bandido e de que era ele o responsável pelo barulho na porta da casa onde o grupo estava
reunido. Poderia ter sido o vento ou algum animal? Contudo, esta é uma pergunta que ficará
sem resposta, pois, no processo, ao misterioso negro não é dada a palavra. Ou seja, o caso é
mais uma demonstração do quanto é difícil “discernir o vivido pelos ex-escravos daquilo que
aqueles que deixaram registros sobre eles quiseram ver e nos fazer acreditar”176.
Pelo conjunto de informações até agora arroladas sobre a presença negra na região, é
possível verificar que ela era considerável. Conforme os dados do censo de 1872, o número de
escravos vivendo em Cruz Alta177, Palmeiras das Missões, Passo Fundo e Santo Ângelo,
naquele momento, era de 4.289 pessoas178. Como já relatei em capítulo anterior, Evaristo de
Afonso Castro afirma que, em 1888, o contingente de escravos vivendo na região missioneira
– um espaço maior do que o aqui analisado, mas que abrange o território dos municípios sob
estudo – era de 15 a 20 mil pessoas179. Ou seja, um número importante de indivíduos que, no
pós-abolição, participou direta e indiretamente no povoamento daquelas terras. Lembrando
que, além de eles enfrentarem os obstáculos relativos ao seu pertencimento a camada menos
favorecida da população local, também deveriam lutar contra os preconceitos raciais
peculiares à época e ao contexto.
Quanto às representações formuladas sobre o grupo, elas tendiam a destacar
qualidades negativas e a depreciar a sua presença. Atitude justificada, como apontei acima,
pelas interpretações raciais dominantes na época e pelo sentido social que elas tinham, visto
que eram argumentos fortes para justificar a subordinação. Cabe salientar que aos negros não
foi formulada nenhuma política de incorporação como foram as desenvolvidas
176 MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. De rebeldes a fura-greves: as duas faces da experiência de liberdade dos quilombolas do Jabaquara na Santos pós-emancipação, p. 255. In.: Olívia Maria Gomes da Cunha; Flávio dos Santos Gomes (Orgs.). Idem, op, cit., p. 241-282. 177 Sobre a escravidão e a resistência escrava no município de Cruz Alta, ver: DARONCO, Leandro Jorge. À sombra da cruz: trabalho e resistência servil no noroeste do Rio Grande do Sul – segundo os processos criminais (1840-1888). Passo Fundo: UPF, 2006. 178 Cf.: http://ich.ufpel.edu.br/economia/conteudo.php?pagina=15. Informações coletadas em 29.08.2008, as 17:25 horas. Esta página é ligada ao Departamento de Economia da Universidade Federal de Pelotas, no qual costam dados censitários a respeito da história do Rio Grande do Sul. 179 CASTRO, Evaristo de Afonso. Noticia descritiva da região serrana na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul compreendendo os municípios de Cruz Alta, São Martinho, Palmeira, Passo Fundo, Santo Ângelo, São Luiz, Boqueirão, São Borja, São Francisco de Assis, São Vicente e Itaqui. Cruz Alta: Tipografia do Comercial, 1887, p. 273-274.
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especificamente para indígenas e nacionais a partir da criação do SPILTN. Entretanto, não é
de todo errado supor que as medidas estabelecidas e que buscavam ajustar os nacionais e
indígenas aos interesses do Estado também valiam para os afros-descendentes. Em outras
palavras, eles também eram alvo das políticas de incorporação, as quais, no Rio Grande do
Sul, tinham o objetivo de tornar produtivas e disciplinadas as populações que viviam nas
regiões de fronteira agrária e que tinham um modo de vida particular.
Dessa forma, se o modo de vida dos afros-descendentes, a sua relação com a natureza
e com a sociedade, eram os característicos daqueles grupos que vivem em áreas de fronteira
agrária; se existia uma crença muito forte no desaparecimento dos negros pelo seu constante
branqueamento; se existia uma imbricação entre a noção de cor e a de status social; se a idéia
da inferioridade de negros, índios e mestiços encontrava forte aceitação social; se, de acordo
com os preceitos do positivismo, os afros-descendentes representavam um dos aspectos da
natureza humana que deveria ser combinado com os das outras raças para surgir um ser
humano aperfeiçoado; se a opção, comum na época, era silenciar os conflitos em nome de
uma “nação homogênea” e se a possibilidade de refugiar-se na zona de matas os colocava fora
da esfera pública, pode-se compreender porque os afros-descendentes aparecem muito pouco,
tanto nos relatórios da DTC como nas mensagens enviadas pelos presidentes de Estado a
Assembléia dos Representantes.
Em outras palavras, talvez os homens que escreviam tais documentos não viam motivo
para mencionar a existência de um grupo fadado a desaparecer. O silêncio, por sua vez, era
interessante na medida em que não tornava pública uma questão e, assim, dava amplas
margens de manobra para soluções locais relacionadas ao problema de conformação de uma
mão-de-obra disciplinada. Talvez por serem homens de Estado escrevendo sobre o território
que governavam que tinham como uma de suas principais metas a incorporação do
proletariado à sociedade moderna180, encontravam no silêncio uma forma de ocultar a falta
de políticas públicas dirigidas ao melhoramento das condições de vida desse grupo social. Ou,
talvez, a necessidade de esquecer as marcas deixadas pelo recém extinto regime escravocrata
180 Sobre a incorporação do proletariado à sociedade moderna, o Presidente do Estado em 1917, Antônio Augusto Borges de Medeiros, devido ás repercussões da Primeira Guerra no estado e de greves ocorridas em Porto Alegre, escrevia: “Encarando assim esse grave problema e adotando resolutamente as soluções indicadas, segui os exemplos de muitos países bem organizados e obedeci ao influxo da sã política republicana, baseada na moral positiva. À luz dos ensinamentos de A. Comte, cumpre afinal promover definitivamente a incorporação do proletariado na sociedade moderna e considerar o salário como a equivalência da subsistência e não como recompensa do trabalho humano, que não comporta nem exige nenhum pagamento propriamente dito, mas o reconhecimento devido”. (Grifos no original). Cf.: MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros na 1ª sessão ordinária da 8ª Legislatura em 20 de Setembro de 1917. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1917, p. 04.
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levava-os a camuflarem a presença daqueles que o simples fato de existirem tornava esse
passado considerado obscuro um eterno presente.
3.3 DO FETICHISMO À IDADE POSITIVA: OU SOBRE OS “NOSSOS IRMÃOS CUJOS CÉREBROS SE
ACHAM AINDA EM ESTADO DE INFATILIDADE”
Os bugres desta província faziam parte dos Goytacases, que tendo sido expulsos por seus inimigos naturais, os Guaranis, aliados aos portugueses, se refugiaram para as matas, do interior do continente no principio do século XVII, onde eram conhecidos pela denominação de Bororernos, Coroados e Bugres do Sul. Em meados, mais ou menos do século passado, estes últimos penetraram nesta província, ocupando toda a serra do Alto Uruguai, até o Ijuí Grande. (...). Faziam (os coroados) contínuas emboscadas aos Guaranis, e quando estes aprisionavam algum daqueles, vendiam-no como escravo, e desse fato é que se origina o vocábulo – Bugre – que quer dizer escravo.
Evaristo de Afonso Castro. Notícia descritiva da Região Serrana
Ao longo da história do Brasil, desde a chegada dos colonizadores portugueses e o
processo de conquista do território e dos povos que aqui viviam que lhe é peculiar181, até os
dias atuais, as sociedades indígenas vêm participando das mais variadas formas na
constituição daquilo que denominamos de “sociedade nacional”. Esta, por seu turno, é
resultado de um longo processo que envolve questões variadas, tais como a formação de um
Estado nacional. Porém um dos seus principais traços é o esforço realizado na perspectiva de
181 Antônio Carlos de Souza Lima, em sua tese de doutoramento, desenvolve mais detalhadamente a análise da ocupação do Brasil, a constituição do Estado nacional e, principalmente, a relação do Estado e seus aparelhos de governo com as populações indígenas a partir da idéia de guerra de conquista. Para este autor, “a idéia de conquista supõe uma certa disposição de linhas de força entre um eu/nós e um outro radicalmente distinto, ao ponto de se duvidar de sua humanidade, oscilando das relações de violência (características de toda guerra) a relações de poder, e implica numa certa forma de busca de sentidos alheios nos atos alheios, tarefa essencialmente semiótica. As empresas conquistadoras envolvem uma grande e necessária agilidade frente ao desconhecido humano e o seu nicho geográfico, de modo a dar as respostas adequadas à obtenção dos fins pretendidos. Por processos essencialmente criativos, ainda que fora do estoque imaginário original do conquistador, age-se, se necessário, encenando aquilo em que não se acredita: o ponto de partida fundamental e o operador da conquista é a própria consciência da alteridade e a capacidade de utilizá-la instrumentalmente para prever os passos e manipular o inimigo. Distingue-se, destarte, da descoberta, ato que se dirige à natureza, a espaços conhecidos, onde o encontro entre seres humanos não é o centro mesmo da empresa”. Em linhas gerais, como veremos, a constatação de Souza Lima descreve perfeitamente o processo de constituição de políticas indígenas e as ações práticas realizadas pela DTC no Rio Grande do Sul da Primeira República. Cf.: LIMA, Antônio Carlos de Souza. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 47.
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conformar uma dada “identidade nacional” que, do meu ponto de vista, deve ser lida como
uma tradição inventada182. Nestes termos, no processo de invenção do Brasil, ou melhor, de
uma almejada identidade brasileira homogênea e livre de conflitos sociais, bem como do povo
portador de tal identidade, as sociedades indígenas vêm, desde o período colonial até os dias
de hoje, ocupando lugares diferenciados nas representações elaboradas a respeito desse povo e
dessa identidade.
Em termos históricos, tais diferenças são verificáveis no modo como a questão
indígena foi legislada e abordada desde o período colonial até o republicano. Assim, se na
colônia, como mostra Beatriz Perone, a questão da liberdade e da utilização da mão-de-obra
dos índios foi o foco que ocupou a preocupação das principais forças políticas da época183; no
período imperial, conforme Manuela Carneiro da Cunha, a questão indígena deixou de ser
“essencialmente uma questão de mão-de-obra para se tornar uma questão de terras”184. Já,
com o fim do regime monárquico e a proclamação da Republica, alguns aspectos presentes
nas legislações dos períodos anteriores incrementaram-se e outros são deixados de lado. O
grande diferencial da República, portanto, foi a instituição, em 1910, de um aparelho de
Estado responsável por pensar e lidar com a questão indígena: o Serviço de Proteção ao Índio
e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN) que, a partir de 1918, passa a ser
apenas Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Contudo, questões de longa data discutidas
continuaram coordenando e definindo o papel da nova instituição. Nesse sentido, a terra e a
ocupação do território, o índio e o seu grau de civilidade, a produção e a possibilidade de
transformar o índio em um trabalhador pacífico foram, de uma maneira geral, os pontos que
definiram a ação do SPILTN ao longo de sua existência.
De acordo com Antônio Carlos de Souza Lima, o objetivo do SPILTN era duplo:
“conhecimento-apossamento dos espaços grafados como desconhecidos nos mapas da época e
a transformação do índio em trabalhador nacional”185 (Grifos do autor). Tais objetivos eram
estratégicos e inseriam-se num processo geopolítico, cujo ponto de convergência é a
constituição do antes referido Estado nacional. Nesses termos, pode-se compreender porque o
positivismo exerceu tamanha influência e foi a teoria base sobre a qual o SPILTN foi
estruturado. Tal teoria tinha forte aceitação no Exército de onde saíram os principais quadros
182 HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. 183 PERONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indígena do período colonial (séculos XVI a XVIII). In.: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP, 1992, p. 115-133. 184 CUNHA, Manuela Carneiro da. Política indígena no século XIX. In.: ___ (Org.). Idem, p. 133-154. 185 LIMA, Antônio Carlos de Souza. O governo dos índios sob a gestão do SPI, p. 161. In.: Manuela Carneira da Cunha (Org.). Idem, p. 155-172.
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que formaram a nova instituição – Cândido Rondon, por exemplo. Outro ponto que deve ser
frisado é que o Exército era a principal instituição preocupada em demarcar o território
nacional, daí o porque de a responsabilidade por lidar com a questão indígena foi a ele
delegada, uma vez que uma parte considerável dos grupos nativos viviam em territórios de
fronteira.
Devido ao fato de na Primeira República ter sido instituída uma agência de Estado
responsável por lidar com o problema indígena, a produção literária que trata sobre o tema
insiste em definir este período como a idade de ouro das políticas indígenas no país186.
Entretanto, esta maneira de contar a história não leva em conta a existência de períodos
históricos anteriores à criação do SPILTN, nos quais também existia uma legislação relativa
aos povos indígenas. Da mesma forma, não percebe o quanto de continuidade existe entre os
diferentes momentos históricos e, conseqüentemente, dificulta pensar as mudanças.
Conforme Souza Lima, a transformação do SPILTN em um espaço sagrado é uma
representação derivada das disputas que caracterizaram o momento histórico em que esta
agência foi elaborada, suas repercussões históricas e, ao mesmo tempo, busca suprimir tais
conflitos na perspectiva de definir um consenso. A estruturação do SPILTN não aconteceu de
forma tranqüila, ela é resultado de confrontos e, como agência de Estado, ele passa a ter poder
para arbitrar “sobre um dos grandes temas do período: os limites de intervenção do Estado
sobre a sociedade civil ou, caso se queira, as concepções da nação em jogo na cena
política”187. Limites que, ao longo da Primeira República, tenderam a ser diminuídos
resultando conseqüentemente em um maior nível de intervenção do Estado na sociedade.
Assim, o SPILTN é fruto da expansão do Estado nacional e enquanto instituição é regido e
organizado dentro dos quadros do Ministério da Agricultura Indústria e Comércio (MAIC).
Ainda, remonta a discussões relacionadas à intervenção do Estado em zonas de fronteira que,
a seu turno, são anteriores à constituição do MAIC e, concordando com Mendonça188, como
parte do MAIC, o SPILTN estava nacionalmente sob a égide de uma posição então dominada
no campo político, contudo, dominante no que dizia respeito à política indigenista189.
Na produção bibliográfica que trata da questão indígena no Rio Grande do Sul da
Primeira República, a idéia de uma idade de ouro também é visível. Outro traço peculiar
186 Cf.: LIMA, Antônio Carlos de Souza. Sobre indigenismo, autoritarismo e nacionalidade: considerações sobre a constituição do discurso e da prática da proteção fraternal no Brasil. In.: FILHO, João Pacheco de Oliveira (Org.). Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ: Editora Marco Zero, 1987. 187 Idem, p. 195. 188 Cf.: MENDONÇA, Sônia Regina de. O ruralismo brasileiro (1888-1931). São Paulo: Editora HUCITEC, 1997. 189 Antônio Carlos de Souza Lima. Um grande cerco de paz. Idem, op. cit., p. 101-159.
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dessa bibliografia é a insistência em apontar o Rio Grande do Sul como estado “pioneiro” e
“autônomo” frente a Federação no que se refere ao trato com os índios. Assim, tanto
pesquisas acadêmicas190, quanto artigos publicados em jornais de divulgação regional191
tomam a constituição do SPILTN como o grande momento da legislação indígena e
sublinham que antes da instituição desta agência nacional o Rio Grande do Sul já vinha
atuando entre os indígenas e que, mesmo após sua fundação, o SPILTN exerceu pouca
influência no território rio-grandense. Ponto de vista que considero precipitado, visto que
toma as informações das fontes sem realizar a sua devida crítica. Ademais, em termos das
políticas indigenistas, essa suposta vanguarda não torna o Rio Grande do Sul e seus
governantes melhores e movidos por ímpetos mais humanitários do que qualquer outro estado
da Federação como geralmente se pretende fazer entender.
Em linhas gerais, se comparado com as práticas anteriores, o grande mérito do
SPILTN foi sua eficácia e os sucessos que obteve em algumas de suas tentativas de
incorporação e modificação dos modos de vida tradicionais de alguns povos nativos. Então,
em grande medida, cumpriu com o papel que lhe foi definido no processo de construção da
pretendida “sociedade nacional”. Outro ponto que as interpretações centradas na idéia de
espaço sagrado obscurecem é o das disputas relativas ao modo como a discutida instituição
responsável pela proteção aos indígenas deveria funcionar, quais seriam seus objetivos e a
maneira mais apropriada de ação.
No geral, tais textos tomam o SPILTN como resultado de discussão travada entre o
diretor do Museu Paulista, Hermann von Ihering, e os positivistas aglutinados em torno da
Igreja Positivista do Brasil, Teixeira Mendes e Miguel Lemos. O primeiro supostamente
defendendo o extermínio dos indígenas em detrimento dos imigrantes; os dois últimos
190 Um exemplo dessa produção são as pesquisas de Paulo Pezat e Breno Sponchiado. Cf.: Paulo Pezat. Idem, op. cit. e SPONCHIADO, Breno Antônio. O positivismo e a colonização do Norte do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2000. (Dissertação de Mestrado). De certa forma, a pesquisa de Ligia Simonian também partilha desse ponto de vista, contudo diferentemente de Pezat e Sponchiado não é tão apologética dos governos da Primeira República e é mais crítica em relação às políticas adotadas por tais governos. Cf.: SIMONIAN, Ligia T. L. Terra de posseiros: um estudo sobre as políticas de terras indígenas. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional, 1981. (Dissertação de Mestrado). Outro exemplo mais recente desse tipo dessa interpretação apologética encontra-se em CARINI, Joel João. Estado, índios e colonos: o conflito na reserva indígena de Serrinha norte do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Editora UPF, 2005. Cabe destacar também, a tese de doutoramento de Cíntia Régia Rodrigues, na qual a idéia do “pioneirismo” e/ou “vanguarda” do Rio Grande do Sul e de sua autonomia frente a Federação no que diz respeito a questão indígena é por deveras apologizada. Cf.: RODRIGUES, Cíntia Régia. As populações nativas sob a luz da modernidade: a proteção fraterna no Rio Grande do Sul (1908-1928). São Leopoldo: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2007. (Tese de doutorado). 191 Refiro-me aqui especificamente ao conjunto de artigos publicados no jornal Correio do Povo entre as décadas de 60 e 80 produzidos por Moisés Westphalen e agrupados por Ligia Simonian no livro: SIMONIAM, Lígia T. L. A defesa das terras indígenas: uma luta de Moysés Westphalen. Ijuí: Editora UNIJUI, 1979.
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defendendo a incorporação dos grupos fetichistas à sociedade. De acordo com essa versão, a
disputa encontra ecos quando Alberto Vojtech Fric, um americanista, em comunicação feita
no XVI Congresso Internacional de Americanistas, realizada em Viena no ano de 1910,
tornou a questão indígena brasileira um problema internacional mostrando que a conquista do
território no Brasil estava acontecendo a partir do extermínio dos grupos nativos.
Conseqüentemente, o governo se viu pressionado e resolveu instituir o SPILTN optando,
entre as vertentes em disputa, pela proposta dos positivistas apresentada como mais
humanitária192. Ou seja, uma simplificação de todo processo que, entre outras coisas, esquece
de frisar que, tanto von Ihering quanto os positivistas, tinham como principal preocupação
incorporar os índios para assim conformar uma identidade nacional. Por outro lado, as
diferenças de interpretações dos positivistas e do Diretor do Museu Paulista representam
apenas uma face do processo193.
Todavia, os motivos que levaram o SPILTN ser estruturado a partir das propostas
veiculadas pelos positivistas longe de ser uma “decisão humanitária” dos grupos que
administravam o Estado estava vinculada a uma opção estratégica realizada pelo governo. Em
outros termos, como os problemas discutidos à época giravam em torno da necessidade de
incorporação dos povos indígenas e dos nacionais. Já que se objetivava à expansão do
território nacional, à proteção da fronteira, dos espaços conquistados pelo avanço das
populações em direção a esses territórios e à elaboração de uma identidade nacional a partir
do anulamento das diferenças. Como um dos principais problemas da época era encontrar
modos para definir um povo e, também, governamentalizar as relações levando o Estado e
seus aparelhos para os mais distantes confins e, assim, definir a nação. Coube ao SPILTN
realizar parte da tarefa. Restava, portanto, decidir entre as propostas de ação existentes aquela
que mais propriamente daria conta do objetivo194.
192 Um exemplo desse tipo de interpretação encontra-se em Silvio Coelho dos Santos. Idem, op. cit. 193 Antônio Carlos de Souza Lima aponta que essa interpretação é resultado da influência exercida pelo texto A política indigenista brasileira, de Darcy Ribeiro, sobre a produção bibliográfica brasileira relativa à questão indígena. Nesse livro, de acordo com Souza Lima, Ribeiro faz uma “defesa apologética do Serviço de Proteção aos Índios, elaborada num momento em que, como diversas vezes ao longo de sua trajetória, a instituição achava-se ameaçada de extinção”. Cf.: Antônio Carlos de Souza Lima. Sobre indigenismo, autoritarismo e nacionalidade. Idem, op. cit., p. 154. 194 Conforme Antônio Carlos de Souza Lima, no início do século XX, existia um campo de disputas sobre a questão indigenista, o qual estava estruturado a partir da constituição de categorias de agentes e, em torno dessas categorias, aglutinavam-se etnógrafos, políticos, juristas, jornalistas, propagandistas e engenheiros militares. Os atores sociais que compunham estas categorias também se propunham a formular projetos indigenistas que “visavam solucionar alguns objetivos, através de certos métodos, que deveriam ser implementados por determinados agentes diretos” (Grifos do autor). Tais projetos tinham pontos em comum, bem como divergências, disputavam qual era a representação mais fiel à condição indígena, que tipo de proteção deveria ser proporcionada e apresentavam diferenciadas metodologias de ação para realizar o trabalho. Para conhecer mais detalhadamente as especificidades de cada projeto, as disputas, os pontos em comum, bem como os agentes
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O exército, onde se aglutinavam os principais representantes do positivismo do país,
como vimos, era a principal instituição preocupada em demarcar as fronteiras territoriais e
simbólicas da nação, bem como definir uma identidade nacional. Candido Rondon, na época,
atuava em regiões de fronteira na instalação de linhas telegráficas e em seus trabalhos vinha
mantendo contato com as populações indígenas. Fato que lhe garantia um conhecimento
específico a respeito dos indígenas, assim como das regiões de fronteira. Além disso, ele era
um engenheiro-militar, portanto, o exemplo maior do “soldado-cidadão”: representação que,
no período, simbolizava um indivíduo especial a quem caberia o papel maior na “missão
civilizadora” então em curso195. Tudo somado, nada mais prático do que, entre as
possibilidades existentes, optar pela que parecia mais viável e autorizada socialmente e
convidar Rondon para ser o principal organizador do SPILTN196. Em outras palavras, o que
define a estruturação desta agência nos moldes como ela foi elaborada são antes motivos
estratégicos e políticos do que humanitários: afinal, gerir um Serviço que seria quase sempre
“deficitário, em termos de receita e suporte, num ministério (MAIC) igualmente secundário
parece ter sido em grande medida uma tarefa cênica, para a qual os positivistas estavam
especialmente preparados”197 (Grifos do autor).
A presença militar no SPILTN rio-grandense, segundo dados disponibilizados pela
bibliografia competente, é menor do que é registrada na secretaria nacional, cabendo à DTC a
tarefa de administrar a questão indígena no estado. Entretanto, a influência positivista é
dominante e a preocupação central é a da incorporação desses povos, sua transformação em
agricultores e a sua paulatina passagem do fetichismo à idade positiva198. Ação que, de acordo
envolvidos nas discussões, verificar: Antônio Carlos de Souza Lima. Sobre indigenismo, autoritarismo e nacionalidade. Idem, op. cit. 195 Sobre a questão, Antônio Carlos de Souza Lima escreve: “o soldado-cidadão – em especial o engenheiro militar – era representado como o agente indicado para o trabalho de ‘salvação’ da nacionalidade, ‘missão civilizadora’ que consistia em descobrir e demarcar o território geográfico, submeter e ‘civilizar’ os que estivessem à margem da Nação, tal significando inseri-los num sistema nacional de controle gestado a partir do centro do poder, tornando-os produtivos e engajados nesse mesmo esforço. Impunha-se uma representação da Nação como indíviduo coletivo a quem toda diferença deveria se achar reduzida”. Cf.: LIMA, Antônio Carlos de Souza. O governo dos índios sob a gestão do SPI, p. 161. Idem, op. cit. 196 Não aprofundarei aqui, mas existem outros motivos mais que levaram à decisão de deixar a organização do SPILTN sob a responsabilidade de Rondon e dos positivistas. Tais razões são detalhadamente trabalhadas por Souza Lima no conjunto de textos de sua autoria citados ao longo deste texto. Também é interessante conferir a tese de doutorado de Laura Maciel: MACIEL, Laura Antunes. Nação por um fio: caminhos, práticas e imagens da comissão Rondon. São Paulo: EDUC, 1999. 197 Antônio Carlos de Souza Lima. Um grande cerco de paz. Idem, op. cit., p. 116. 198 De acordo com a teoria positivista formulada no século XIX por Auguste Comte, a humanidade em sua evolução passa por diferentes estágios de desenvolvimento: o teológico, o metafísico e o positivo. O estágio teológico, por sua vez, é dividido em outros três: o fetichista, o politeísta e o monoteísta. Os índios, de acordo com essa teoria, encontravam-se no primeiro estágio do desenvolvimento humano, no qual “o homem é a medida de tudo atribuindo aos acontecimentos os mesmos impulsos que o guiam na luta pela sobrevivência”. Cf.: Paulo Ricardo Pezat. Idem, op. cit., p. 59.
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com a interpretação positivista, seria facilitada pelo fato de os nativos não terem passado pelo
período metafísico. No Rio Grande do Sul a atuação da União é reconhecidamente menor do
que em outros estados da Federação. Circunstância que leva alguns estudiosos, como Paulo
Pezat, Breno Sponchiado e Cíntia Rodrigues, a afirmar que o Rio Grande do Sul foi
“pioneiro” e “autônomo” na formulação das políticas indígenistas. Contudo, tal “autonomia”
provinha da maneira como os índios eram classificados pelo SPILTN e o critério que regulava
a classificação era o grau de sua incorporação na sociedade nacional. O pioneirismo, desse
modo, deve ser relativizado, uma vez que a ação da DTC – que foi criada em 1908, portanto,
2 anos antes do que o SPILTN – entre os indígenas se tornou maior a partir de 1910, sendo
que a tarefa de proteger os índios, até então, surge apenas como um preceito da DTC e não
como uma prática efetivamente realizada.
Há que se considerar ainda que as discussões para a criação de um órgão federal para
se dedicar a proteção dos povos nativos é anterior a 1910. Da mesma forma, a Constituição
do Rio Grande do Sul de 1891, a lei de terras estadual de 1899 e seu regulamento de 1900 não
definem propostas concretas a respeito dos indígenas. Em outros termos, se o Rio Grande do
Sul era a vanguarda nacional no quesito política indigenista, porque a questão não é tratada no
texto destas duas leis, sendo que os responsáveis por sua elaboração permaneceram a frente
do Estado nos anos que compreendem a Primeira República. E, especialmente no caso da lei
de terras, se a demarcação das áreas indígenas é, ao longo dos relatórios da DTC, apresentada
como o principal fundamento da proteção, porque os povos nativos não recebem a atenção
devida nesta lei?
Anteriormente afirmei que a ação do SPILTN entre os indígenas era definida pelo grau
de incorporação deles a “sociedade nacional”, sendo sua prioridade agir entre os grupos mais
resistentes. As populações nativas que viviam no estado eram concebidas como participando
de um processo de incorporação bem mais avançado do que, por exemplo, acontecia com os
Xokleng de Santa Catarina199. Tal leitura pode ajudar a compreender porque, em 1911, foram
reunidas em uma só as inspetorias do SPILTN dos dois estados e a sede foi instalada em Santa
Catarina. Esta medida, portanto, tem muito pouca relação com uma certa idéia de autonomia
do Rio Grande do Sul em relação ao governo central e, entre outras coisas, é resultado da falta
de recursos disponíveis ao SPILTN, situação que levava seus quadros a optar por agir mais
diretamente em espaços onde os conflitos entre indígenas e ocidentais eram mais fortes.
199 Sobre o processo de incorporação dos Xokleng, verificar o livro de Silvio Coelho dos Santos citado anteriormente.
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Quanto ao grau de “incorporação” a que estavam submetidos os indígenas que viviam no Rio
Grande do Sul, o relatório da DTC de 1910 traz uma descrição esclarecedora:
Pelos contatos em que se acham [os índios] há muitos anos com os ocidentais, poucos hábitos e costumes da vida primitiva conservam. Perderam a sua indústria, talvez por encontrarem nos ocidentais o equivalente dela, e mais, se bem que a custa de sofrimentos sem conta, que se prolongam até os nossos dias. Desconhecem a medicina dos antepassados. Não guardam sequer lembrança das suas tradições. E o único traço de nacionalidade que conservam vivaz, aliás o mais característico, é a linguagem. Os homens conhecem quase todos o português; as mulheres, porém, raramente e pouco200.
Em seus relatórios, o Diretor da DTC, constantemente afirma que a propriedade da
terra era o principal aspecto que deveria ser regulado pela política indígenista. Por
conseguinte, a partir de 1910, com a criação de uma secretaria do SPILTN no estado, iniciam-
se os trabalhos de demarcação das terras indígenas, considerados “o fundamento de toda a
proteção”. A partir desse momento, as descrições sobre os índios tornam-se mais constantes
nos relatórios da DTC e nas mensagens dos presidentes. Tais informações primam por
caracterizar os índios como humildes, submissos, vingativos, vivendo em “miseráveis
ranchos, sem camas, as crianças nuas”. Apresentam a agricultura praticada pelos indígenas
como insuficiente, restringindo-se à produção de milho e feijão. Definem as populações
indígenas como conformando uma “raça abatida, deprimida e decadente”201 que nada haviam
lucrado nos seus contatos com a sociedade ocidental e, assim, cabia ao Estado proteger tais
populações.
Carlos Torres Gonçalves, propõe um conjunto de medidas a fim de “levantar o moral”
dos índios e torná-los mais “úteis socialmente”. Dentre elas, destacam-se o fornecimento de
vestuário e ferramentas agrícolas; alguns animais, cavalares e bovinos; gaitas de foles para
aproveitar suas aptidões musicais; carpinteiros que os auxiliem na construção de suas
habitações; uniformes militares, aos caciques e seus ajudantes, para aumentar a convergência
entre eles e desenvolver o espírito de subordinação dos inferiores para com os superiores.
Outra medida era torná-los guardas florestais para aproximá-los do Estado e, ao mesmo
tempo, utilizá-los na proteção e fiscalização “que o Estado tem de exercer sobre as
mesmas”202.
200 Carlos Torres Gonçalves, 1910. Idem, op. cit., p. 152. 201 O conjunto de citações aqui utilizadas são retiradas do Relatório Sobre os Indígenas escrito por Torres Gonçalves em 1910 e que se encontra no relatório da DTC deste ano, Idem, p. 147-157. 202 Idem, ibidem.
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Acerca do ensino da leitura e da escrita, ponderava Torres Gonçalves, mesmo os
índios demonstrando interesses no aprendizado, era necessário primeiramente mudar as
condições em que eles viviam, pois não obstante reconhecer a utilidade de ambas, para
Gonçalves, existiam coisas mais importantes, tais como a necessidade de orientá-los na
prática de uma agricultura que os tornassem auto-suficientes. Um outro traço característico da
política indigenista no Rio Grande do Sul era o caráter leigo dado à proteção. No conjunto
dos relatórios, é possível verificar a existência de um esforço por parte dos agentes da DTC
para que a igreja não interviesse no processo e, aos encarregados, era proibida a prática do
ensino religioso aos nativos203.
No conjunto de propostas feitas pelo diretor da DTC, congregam-se de forma clara as
ações características do SPILTN. Movidos pelo objetivo de incorporação, os agentes do
Serviço buscavam incentivar os índios a adotarem costumes comuns aos “civilizados”. Assim,
pretendiam torná-los dependentes das “benesses da civilização” e tal dependência, por seu
turno, responsabilizaria-se por fazer com que os índios “por si mesmos” passassem a fazer
esforços no sentido de suprimi-la. Nesta perspectiva, um dos principais pontos que o SPILTN
e a DTC buscavam combater era o nomadismo característico dos grupos indígenas, pois
pôr-lhe um fim era destituir de vez o nativo de uma vivência cultural e politicamente diferenciada do espaço geográfico (uma territorialidade específica), obrigando-o ao reconhecimento de um território alheio e imposto de fora. Este processo tem sua explicação nas preocupações simultâneas: a) circunscrever porções de terra para localizar e fixar populações nativas, inserido-as no estoque fundiário disponível sob controle estatizado, e b) liberar o espaço em torno para a empresa privada.204.
Nos relatórios, o diretor da DTC também deixa clara sua convicção na existência de
uma moral indígena, cujos valores foram alterados devido aos constantes contatos com os
ocidentais e que, mesmo assim, os índios deveriam ser respeitados a partir de suas
especificidades: isto é, levando em conta que as populações nativas eram povos que ainda se
encontravam no período fetichista da existência histórica. Para dar força ao seu argumento,
descreve o caso da prisão de seis índios do Toldo de Rio Carreteiro em Passo Fundo, porque
haviam matado “dois brasileiros ocidentais”. O que levou ao crime foi o fato desses
brasileiros terem anteriormente assassinado dois índios. Para Torres Gonçalves, perante a
moral e os costumes dos seus pares, os índios não eram criminosos, já que, “por serem índios”
203 Sobre as relações entre igreja e Estado no que se refere a questão indígena no Rio Grande do Sul, especialmente, sobre a atuação da Igreja Católica e da Luterana em meio os povos nativos, verificar a tese de doutorado de Cíntia Régia Rodrigues, anteriormente citada. 204 Antônio Carlos de Souza Lima. Um grande cerco de paz. Idem, op. cit., p. 197.
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haviam cumprido seu dever de vingar a morte de seus irmãos. Em conseqüência, ponderava
Gonçalves, “não é sábio nem justo pretendermos nós resolvermos casos passados com
fetichistas, servindo-nos para isso de um código criminal feito para ocidentais”205.
Por estarem no período fetichista, deveriam ser respeitados como nações autônomas e
tratados como “irmãos cujos cérebros se acham ainda em estado de infantilidade”206. Em
outras palavras, a tutela deveria ser exercida para o próprio bem dessas populações, e o
objetivo era, através da proteção, reanimar os “nossos silvícolas” e “reerguer o seu moral
abatido” para que “comecem conforme as suas disposições manifestadas, a cuidar de melhorar
a sua situação”207. Esta posição do diretor da DTC, cabe ressaltar, insere-se num contexto de
discussões comuns do período de instituição do serviço de proteção e diz respeito à definição
jurídica dos índios, cujo princípio, entre outras coisas, era definir o poder de ação do SPILTN
– leia-se também, do Estado – sobre os povos nativos208.
Os relatórios da DTC também trazem detalhes sobre o modo como se desenvolviam as
relações entre os índios e os ocidentais referentes à questão da terra. Em 1911, Carlos Torres
Gonçalves acusa, que no Toldo de Nonoai – situado no município de Palmeira – os
“civilizados” convivem muito próximos e arrendam as terras indígenas “por uma ninharia,
além do que o arrendamento é pago em mercadorias, vendidas por preços excessivos”209.
Nesse toldo, as relações dos indígenas com as autoridades locais são descritas como
conflituosas, pois os índios tinham-nas “em conta de seus perseguidores e espoliadores, e isso
porque em qualquer dúvida ou qualquer questão surgida entre eles e os brasileiros, sobre
pretextos fúteis, são sempre sacrificados”210. As terras do Toldo de Serrinha, em Passo Fundo,
também eram arrendadas para um certo Manuel Bento Souza pela quantia anual de R$
100$000 réis. Na continuidade do seu relato, Torres Gonçalves afirma que a invernada que os
índios arrendavam poderia conter cerca de 400 cabeças de gado e que
os índios não têm toldo organizado, vivem espalhados pelos campos e matos. Atualmente a população é reduzida a cerca de 150 habitantes, devido as perseguições sofridas, especialmente daquele arrendatário, até pouco tempo ainda subdelegado de polícia, o qual após haver apunhalado o índio João
205 Carlos Torres Gonçalves, 1910. Idem, op. cit., p. 152. 206 Carlos Torres Gonçalves, 1914. Idem, op. cit., p. 184. 207 Carlos Torres Gonçalves, 1910. Idem, op. cit., p. 157. 208 Para aprofundar o conhecimento sobre a definição jurídica dos índios e as disputas que lhe dizem respeito, verificar o capítulo 9 da já citada tese de doutorado de Antônio Carlos de Souza Lima: Um grande cerco de paz, p. 198-216. 209 Carlos Torres Gonçalves, 1910. Idem, op. cit., p. 155-156. 210 Idem, ibidem.
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Oliveira, na ocasião em que este lhe oferecia um mate, matou pouco depois o índio Ângelo de Oliveira, e está hoje impune destes crimes211.
A descrição relata a distância existente entre os discursos de proteção, as supostas
razões humanitárias que lhe fundamentavam e o que realmente se dava no contexto local. Em
outros termos, o arrendatário Manuel Bento era parte do conjunto de pessoas que na região
representavam o Estado, visto que era subdelegado de polícia. Como sublinhei no capítulo
anterior, para um indivíduo exercer este cargo precisaria fazer parte de um conjunto complexo
de relações, uma vez que, de acordo com as disposições da Constituição estadual, o
subdelegado deveria ser nomeado pelo Intendente, o qual, na maioria das vezes, era
representante do Presidente do Estado e líder local do PRR. Nessa perspectiva, um ponto que
convém sublinhar é que, entre as propostas e projetos formulados nas instituições centrais e as
práticas locais havia um espaço a ser percorrido. Espaço que era definido pelo próprio modo
como o processo de ocupação do território vinha se desenvolvendo. Assunto sobre o qual me
deterei de forma mais profunda no próximo capítulo.
Em 1926, no município de Palmeira das Missões ocorre um fato descritivo, tanto do
lugar social que os índios ocupavam, como do lugar que lhes era destinado e das ações e
desavenças existentes entre as autoridades locais. O fato ocorreu no distrito de Nonoai e
resultou na morte de um índio e ferimentos em outros tantos. Consta na denúncia que José
Joaquim de Moura (casado, brasileiro, com 53 anos de idade), subintendente de Nonoai,
acompanhado de escolta formada de praças da polícia administrativa e de civis, no dia 24 de
Abril de 1926, armados de “revolveres, facas e relhos” foram “a casa comercial de Miguel do
Carmo Flores, onde achavam-se pacatamente, na mais perfeita ordem, uns 20 índios fazendo
compras”212. O objetivo de José Moura era fazer com que os índios saíssem da cidade e ao
chegar na venda “a referida escolta entrou a espancar brutalmente o grupo de índios tirando-
os para rua e levando-os por esta a fora, sempre debaixo dos maiores atos de crueldade”213.
Enquanto estava praticando tal ato a escolta formada pelo subintendente de Nonoai foi
abordada pelo capitão da Brigada Militar Antônio Pinto Ribeiro Deiró (com 53 anos de idade,
viúvo, residente em Passo Fundo), que apoiado em uma força de seu comando, “intimou o
referido subintendente a fazer cessar tão lamentável cena, quando os pobres índios foram
deixados em paz, sendo acompanhados pelo mesmo capitão Deiró até fora do povoado”214.
Diante dos fatos, o promotor público, encerra a denúncia com a seguinte reflexão:
211 Idem. 212 APERGS. Processos Crime 254. Cartório Civil Crime. Município de Palmeira das Missões, 1926. Maço 12. 213 Idem. 214 Idem.
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Destes atos de vandalismo, partidos de pessoas a quem a lei delegou o grande dever de zelar pela ordem e sossego do povo de Nonoai e tutelar índios indefesos resultou saírem feridos os índios João Lucidio, Sebastião Coió, Francisco Anastácio, Antônio Anastácio, Francisco Manuel, Joaquim Florentino e a índia Joaquina Frederico215. (Grifos meus).
Conforme a testemunha de Dinarte Ayres de Toledo (30 anos, casado, deste estado,
barbeiro, residente no município), o subintendente esteve em sua barbearia no dia do
acontecido e enquanto cortava o cabelo “referiu-se aos índios dizendo que a distração deles
encerrava-se em beber e cantar”216. Logo após cortar o cabelo o subintendente saiu, voltando
um tempo depois acompanhado de escolta seguiu em direção a venda de Miguel Flores que
ficava em frente a barbearia. Segundo Toledo, na venda se achavam uns 15 índios “em
completa ordem, e sem motivo algum, pois não houve discussão (...) foram espancados a
pranchaços de espada, de facão e a relhaços”217, fato que só cessou quando José Moura foi
interceptado pelo capitão da Brigada Militar.
Em sua versão dos fatos José Joaquim de Moura, afirma que a razão pela qual agiu
daquela forma com os índios era porque um seu irmão de nome Marcírio e dois índios haviam
brigado, também devido a grande quantidade de índios presentes na Vila e ao fato de que eles
já estavam exaltados por causa da bebedeira “achou mais conveniente retirá-los do povoado”.
No entanto, como os índios não obedeceram a seu pedido, pelo contrário “portaram-se
incovenientes”, tendo um deles, inclusive, dado-lhe “uma bofetada” viu-se obrigado a resistir
fazendo-os, pela força, saírem dali. Neste momento, “saiu pela frente o capitão Deiró, com
uns 30 homens, armados a fuzil, o qual lhe intimou a que não mais fizesse aquilo com os
índios, porquanto eles eram do governo”218. Durante o processo são ouvidas 14 pessoas e,
com exceção do subintendente, todas as versões são iguais a do barbeiro e, enfim, para dar
mais eficácia a sua defesa José Moura alega que a ação dos índios fora planejada por seus
“inimigos políticos”, cujo interesse era destituir-lhe do posto de subintendente. Argumenta
também que a maior parte das testemunhas faziam parte do grupo que lhe devotava inimizade
e que a única versão verdadeira dos fatos era a sua.
Por algum motivo, difícil de ser conhecido, o processo não chegou ao fim e assim não
é possível saber qual seu resultado, contudo, ele é demonstrativo da situação vivida pelos
índios na região. Entre os pontos que devem ser ressaltados é a confusão reinante sobre a
215 Idem. 216 Idem. 217 Idem. 218 Idem.
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quem caberia a tarefa de regular as ações dos indígenas, uma vez que no conflito entre as duas
forças policiais o capitão da Polícia Militar deixa claro que os “índios pertencem ao governo”,
o que, por seu turno, não impedia que o subintendente exercesse sua “autoridade” entre os
indígenas. Portanto, para Deiró, caberia a Brigada Militar resolver as questões relativas aos
índios e não a José Moura que fazia parte da polícia administrativa, logo, deveria se preocupar
apenas com assuntos de ordem municipal219. Por outro lado, também fica nítida a forma como
os índios eram percebidos pela população local, isto é, na voz do subintendente, eles eram
pessoas que encontravam distração em “beber e cantar”; na do barbeiro eram “pessoas
humildes e obedientes”; na do Promotor Público eles surgem como indivíduos que deviam ser
tutelados, pois eram índios indefesos. Ou seja, uma partilha plena das noções típicas,
dominantes na época, sobre os indígenas.
No fato acontecido em Palmeira das Missões, também é possível visualizar a antes
referida distância existente entre as políticas e projetos de proteção e tutela com o que
acontecia nos contatos estabelecidos entre as populações nativas e a sociedade ocidental. Se,
para os integrantes da DTC e para os membros do SPILTN, a incorporação era a meta
principal de suas atividades, ela não encontrava eco entre as populações que viviam próximas
aos Toldos, visto que a ação do subintendente foi expulsar os índios do povoado, ou seja, fica
patente que existia um espaço definido para os indígenas, o qual não ficava dentro da Vila de
Nonoai. Ademais, o processo também indica que o conflito é um elemento central para
compreender tais contatos, já que o motivo primeiro apontado por José Moura para expulsar
os índios foi porque seu irmão havia brigado com dois índios, os quais faziam parte do grupo
que estava fazendo compras na venda de Miguel Flores. Embora o motivo pelo qual o irmão
do subintendente tenha brigado com os índios não apareça, o conflito é indicativo de que as
relações mantidas entre os indígenas e a sociedade envolvente, no contexto da região serrana,
se caracterizavam como relações de fricção interétnica, nos termos de Roberto Cardoso de
Oliveira.
Em outras palavras, é o encontro entre duas situações e culturas distintas, cuja marca é
a competitividade, lembrando que o modo como a “sociedade nacional” se encontra com a
“sociedade tribal” é variável e está proporcionalmente delimitado pelas diferenciações 219 Acerca do confronto entre a polícia administrativa e a brigada militar é interessante ressaltar que o caso relatado não é único, mas, em Cruz Alta, aconteceu algo semelhante: devido a rixas existentes entre guardas da Polícia Militar e soldados do Exército, em 18 de Outubro de 1910, alguns soldados atacaram o quartel da Brigada Militar resultando na morte de dois deles. Em outros termos, parece que os limites das jurisdições, embora estipulados pela Constituição estadual, não estavam bem claros para aqueles que exerciam algum cargo de policiamento. Da mesma forma, é importante ressaltar que, invariavelmente, tais cargos eram usados em beneficio próprio devido aos mais diferentes motivos. Cf.: APERGS. Processos Crime 2.221. Cartório Civil Crime. Município de Cruz Alta, 1910. Maço 62.
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próprias, tanto dos grupos tribais como dos segmentos nacionais que entram em contato com
os indígenas, pois “nem o contingente indígena, nem o contingente nacional apresentam
aspectos unívocos”220. Isto é, existem diferenças profundas nos contatos estabelecidos entre
indígenas e posseiros daqueles que são mantidos entre grandes proprietários e indígenas ou
entre imigrantes e índios e assim por diante. No entanto, deve-se ter bem claro que, não se
“trata de relações entre entidades contrárias, simplesmente diferentes ou exóticas, umas em
relação a outras; mas contraditórias, isto é, que a existência de uma tende a negar a outra”221
(Grifos do autor). Portanto, conforme Oliveira, uma relação de fricção interétnica, cuja
característica mais marcante é a expansão da sociedade brasileira sobre os territórios tribais,
da qual o resultado histórico principal foi a “destruição dos indígenas (depopulação,
desorganização tribal, desagregação e dispersão das populações tribais, etc.)”222. Tal
“destruição” pode ser questionada, uma vez que a incorporação nunca se dá de forma
completa e total: as diferentes sociedades fazem leituras próprias dos processos sociais e dos
contatos que estabelecem com outros grupos. O que significa que dificilmente rompem
completamente com certos aspectos que caracterizam sua “cultura original”, os quais
continuam sendo importantes elementos de interpretação da sociedade, das mudanças de que
estão participando e da situação que tais grupos vivem. Contudo, é importante frisar que a
“sobrevivência de algumas sociedades tribais, se bem que descaracterizadas, não é suficiente
para esconder o sentido destruidor do contato”223. Isto é, por mais humanitários que os
contemporâneos da Primeira República pretendiam ser em seus projetos para as populações
nativas, o resultado de sua ação foi altamente destruidor.
Um outro exemplo de conflito envolvendo índios e ocidentais pode ser encontrado no
relatório da DTC de 1921, quando no Toldo do Ligeiro em Passo Fundo, um italiano
assassinou um índio, segundo Torres Gonçalves, “por simples perversidade”. O assassino é
capturado e condenado. No Relatório não consta qual é especificamente a condenação, mas o
motivo que, segundo o diretor da DTC, levava a se cometerem crimes contra os indígenas
consistia em “os ocidentais, especialmente os de origem estrangeira, considerarem ainda os
silvícolas animais inferiores do que como seres humanos”224. Nesta perspectiva, em alguns
relatórios, o diretor da DTC tecia criticas ao fato de não existirem verbas destinadas ao 220 OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O índio e o mundo dos brancos. São Paulo: UNICAMP, 1996, p. 177. 221 Idem, p. 46. 222 Idem, p. 47. 223 Idem, ibidem. 224 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 463. In.: PINTO, Ildefonso Soares. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 16 de agosto de 1921. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1921, p. 369-503. (AHRS - OP. 60).
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melhoramento dos serviços de proteção aos indígenas, enquanto a União gastava “milhares de
contos com a introdução de imigrantes no país”225. As críticas tornam-se mais fortes quando,
em 1914, devido à crise econômica resultante do confronto mundial, o Governo Federal fez
grandes reduções na verba destinada ao SPILTN. No mesmo ano, em contrapartida, o diretor
da DTC comemorava o início da execução e da organização, por parte do Governo Federal, de
um centro agrícola voltado à atração e instrução de indígenas que passou a funcionar na área
do Toldo do Rio Ligeiro em Passo Fundo.
Uma medida executada pela DTC e voltada a apurar o processo de incorporação e
proteção dos índios era a instalação no interior dos Toldos de “um homem com família, tendo
capacidade para dar aos indígenas educação compatível com a receptividade deles”226. Tais
indivíduos, chamados de encarregados, seriam responsáveis por auxiliar os índios na
construção de casas de madeira, cujo modelo seria fornecido pelas Comissões de Terras e
Colonização (Ver figura 9, abaixo). Era sua tarefa também ajudar na construção de
mobiliário, principalmente leitos, e auxiliar os índios na execução de suas lavouras. Às
esposas dos encarregados, caberia a tarefa de ensinar trabalhos caseiros às índias,
especialmente os de costura e, enfim, era obrigação do encarregado proteger os indígenas de
possíveis perseguições e explorações feitas pelos ocidentais. Com essa série de práticas,
objetivava-se encaminhar no mais curto prazo possível os índios a poderem viver de seus
próprios recursos e, sobretudo, respeitar e “fazer respeitar a sua organização própria e as suas
crenças”227.
Um ponto interessante e muito presente ao longo dos relatórios da DTC e também das
mensagens dos presidentes de Estado era a defesa da idéia de que o “conforto” seria um
estimulante para que os grupos que deveriam ser incorporados – índios e nacionais,
principalmente – alterassem seus costumes e modos de relação com o trabalho. Nesse caso,
uma das principais medidas tomadas a fim de torná-los conhecedores do conforto, “um dos
maiores estimulantes para a atividade”228, era construir-lhes habitações. Conforme as
informações constantes nos relatórios, tal medida levava em “consideração o justo grau do
egoísmo necessário e útil à vida humana” e, assim, buscava-se estimular tais grupos ao “gosto
pelo conforto próprio e da família, isto é, pelas vantagens da vida industrial moderna e o
conseqüente esforço para obtê-las”229. Para os responsáveis pela proteção, essa era uma
225 Carlos Torres Gonçalves, 1914. Idem, op. cit., p. 183. 226 Protásio Alves. Relatório da Secretaria dos Negócios das Obras Públicas, 1917. Idem, op. cit., p. XVI. 227 Idem, p. 385-386. 228 Idem, p. 383-384. 229 Idem, ibidem.
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“satisfação egoísta” que, sem alterar profundamente a ordem, permitiria incorporar essas
populações e inseri-las em uma outra ordem, qual seja, a da “vida industrial moderna”, isto é,
o projeto de incorporação tão caro aos positivistas.
FIGURA 9:
MODELO DE HABITAÇÃO PARA INDÍGENAS
FONTE: Carlos Torres Gonçalves. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, 1918.
Em linhas gerais, as políticas indigenistas formuladas e postas em prática pela DTC
foram instrumentos utilizados na perspectiva de tornar a incorporação dos grupos nativos a
referida “vida industrial moderna” mais eficaz e, portanto, carregam muito pouco dos valores
humanitários que geralmente lhes são atribuídos. Ao fim e ao cabo, os Toldos seriam centros
de formação, onde o encarregado e sua família teriam papel de preparar os índios para a sua
incorporação definitiva. Coisa que não é peculiar à política indígena da Primeira República,
pois, como demonstra Manuela Carneiro da Cunha, durante o século XIX, a prática de
ampliar as necessidades dos índios e, ao mesmo tempo, restringir as possibilidades que eles
tinham de satisfazê-las era política muito utilizada para sujeitá-los ao trabalho230.
Outra questão importante e pouco discutida no quadro da produção bibliográfica sobre
os índios no Rio Grande do Sul diz respeito ao modo como eles receberam as políticas
governamentais voltadas a sua proteção. Os relatórios trazem informações sobre o problema,
as quais, além de serem escassas, são manejadas pela pena do diretor da DTC. No relatório de
1918, por exemplo, Carlos Torres Gonçalves traz notícias de uma visita que fizera ao Toldo
de Inhacorá, situado no município de Palmeira das Missões, e informa: a questão que os 230 Manuela Carneiro da Cunha. Idem, op. cit.
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índios mais reclamavam era a da demarcação de suas terras. Em visita que fez ao Toldo de
Guarita, também em Palmeira, o pedido repetia-se. Torres Gonçalves escreve que ao insistir
com o cacique do Toldo sobre seu interesse em outras coisas “conforme nos haviam pedido
alguns de seus índios, ele acrescentou firme: depois que o Governo demarcar nossas terras,
então eu vou fazer uma reclamação de tudo que nós precisamos”231. (Grifos do autor).
A fala do cacique, manejada por Torres Gonçalves, evidencia alguns pontos
interessantes: 1) aos olhos do diretor da DTC, que estava falando para a sociedade e pensando
ações governamentais, fica patente sua convicção sobre a necessidade da tutela e que ela é
bem-vinda pelos próprios indígenas, pois além de aceitarem, exigiam a demarcação de suas
terras que, como escrevi acima, era apresentada como o “fundamento de toda a proteção”; 2)
para o cacique, que estava falando em nome dos índios, a partir de sua situação local e para
um representante da sociedade envolvente, a ação do governo em demarcar suas terras
também era apresentada como bem-vinda. No entanto, não necessariamente sua leitura era
feita em termos de tutela, visto que ter suas terras demarcadas, numa visão estratégica,
embora significasse reconhecer o poder do Estado, daria novos contornos à relação dos índios
com os ocidentais, principalmente no que diz respeito à disputa pela terra. A demarcação
significava a abertura de um conjunto de preceitos que os indígenas poderiam manipular e, a
partir deles, poderiam acionar o Estado no sentido de exigir o respeito pelas terras
demarcadas. Pensar diferente equivale a concordar com os positivistas que os índios não
passavam de crianças que deviam ser tuteladas. Em outras palavras:
A política indigenista não é mera aplicação de um projeto a uma massa indiferenciada de habitantes da terra. É, como toda política, um processo vivo formado por uma interação entre vários atores, inclusive indígenas, várias situações criadas por esta interação e um constante diálogo de valores culturais. A legislação que define, do mesmo modo, é muito mais do que o mero projeto de dominação mascarado em discussão jurídica, e merece ser olhada com outros olhos, para que dela se possa tirar toda a informação que ela pode nos fornecer232.
Assim, as políticas indigenistas formuladas no Rio Grande do Sul durante a Primeira
República, que tradicionalmente são apresentadas como exemplos da alta preocupação e da
vanguarda dos agentes governamentais, influenciados pelo positivismo, em relação aos povos
fetichistas, deve ser problematizada. Como frisei acima, alguns pesquisadores que se 231 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 311. In.: PINTO, Ildefonso Soares. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 13 de agosto de 1918. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1918, p. 256-320. (AHRS - OP. 50). 232 Beatriz Perrone-Moisés. Índios livres e índios escravos, p. 129. In.: Manuela Carneiro da Cunha (Org.). Idem, op. cit.
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propuseram a pensar a questão indígena no Rio Grande do Sul da Primeira República, do meu
ponto de vista, deram muito valor e, por vezes, exaltaram as políticas indígenas do período e
seus respectivos valores positivistas sem fazer a devida relação do ideal com o possível. Em
outras palavras, a teoria positivista que, em alguns casos, é muito bem explicitada, desde o
ponto de vista histórico até o filosófico, acaba virando uma “camisa de força”, a partir da qual
os autores buscam perceber a sua ação na prática e não fazem um retorno da prática à teoria.
Conseqüentemente ao fim dos textos, o leitor fica com a impressão: e se não fosse o
positivismo e os positivistas o que seria dos índios?
Um exemplo de quanto esse tipo de interpretação pode ser problemática está na forma
como alguns autores tecem críticas aos governos sucessores à Primeira República,
especialmente a administração Getúlio Vargas, tanto quando ele foi governador do estado
como quando Presidente da República. De acordo com a leitura de Pezat, por exemplo, os
governos passaram a não demonstrar interesse pela questão indígena. Em conseqüência, na
década de 1960, um herdeiro do legado getulista, Leonel de Moura Brizola, quando
governador do Rio Grande do Sul, instituiu um projeto de “reforma agrária” que foi realizado
em terras que, no início do século, haviam sido demarcadas como indígenas. Não vejo
problema em criticar tal ação, contudo, penso que algumas perguntas muito importantes que
podem ajudar a compreender o porquê das mudanças ainda não foram feitas. Assim, deve-se
questionar o quanto, quando analisados no longo prazo, todos esses processos se
complementam. Se verdadeiramente há e quais são as rupturas existentes entre aquilo que o
SPI fazia durante os sucessivos governos nacionais que vieram depois da Primeira República
em relação às práticas existentes nos primeiros anos do século XX233, visto que o interesse da
incorporação sempre esteve presente nas diferentes políticas indigenistas formuladas ao longo
da história brasileira?
Torres Gonçalves, em 1921, escrevia que um dos motivos principais das violências
cometidas contra os índios ligava-se ao fato de não lhes ser reputada, pelos ocidentais, a
condição de seres humanos e sim de “simples animais domésticos”. Em conseqüência, era
tarefa do Estado proteger o índio, demarcar-lhe as terras, construir-lhe casas, levá-lo sem
alterações bruscas e a partir de sua própria vontade, pensavam os positivistas, do fetichismo
ao estado positivo. De maneira geral, o objetivo teórico dos positivistas foi perseguido e
233 Para conhecer as mudanças relativas às políticas indígenas e a constituição de um projeto indigenista no Brasil a partir da década de 30 do século XX, consultar: LIMA, Antônio Carlos de Souza. O indigenismo no Brasil: migração e reapropriações de um saber administrativo. In.: L’ESTOLE, Benoit de; NEIBURG, Federico; SIGAUD, Lygia (Orgs.). Antropologia, Impérios e Estados Nacionais. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002, p. 159-186.
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fundamentado na idéia de uma ação humanitária para com “nossos irmãos fetichistas”. O
grande papel do Estado, via DTC, foi tentar incorporar os grupos indígenas à dita “sociedade
moderna” e, assim, torná-los “socialmente produtivos” para, a partir de então, poderem ser
respeitados enquanto seres humanos completos e não mais como crianças incapazes de
sustentarem-se a si próprias. Entretanto, essa humanidade dependia do modo como os
indígenas agiam e reagiam às políticas formuladas pelo Estado, isto é, quando as aceitavam
demonstravam estar caminhando rumo à civilização e à civilidade, mas quando resistiam a
elas, os termos usados para nomeá-los eram outros. Geralmente passavam a ser chamados de
bugres. Palavra que no Rio Grande do Sul tem diferentes significados e é utilizada para
qualificar o índio como bravo, bêbado, vadio, escravo, etc.
3.4 DE NACIONAIS A COLONOS REGULARES: OU SOBRE COMO FORMAR OS “CIDADÃOS OPEROSOS
DO AMANHÔ
Diz uma grande verdade de que eu andava suspeitando as escondidas – que somos todos uns Jecas Tatus. Pura verdade. Com mais ou menos letras, mais ou menos roupas, na Presidência da República sob o nome de Wenceslau ou na literatura com a Academia de Letras, no comércio como na indústria, paulistas, mineiros ou cearenses, somos todos uns irredutíveis Jecas. O Brasil é uma Jecatatusaia de oito milhões de quilômetros quadrados.
Monteiro Lobato. Carta a Godofredo Rangel, 1915.
Antes de iniciar a análise propriamente dita, considero conveniente grifar, como fiz na
introdução desta pesquisa, que o emprego que faço da palavra “nacional” e seus derivados, ao
longo deste texto, é decorrência de ela ser utilizada nos documentos que analiso. Dessa forma,
sempre que a utilizo no sentido que as pessoas da época lhe davam e, para ressaltar essa
opção, venho as grafando em itálico. Entretanto, quando relativizar o ponto de vista dos
contemporâneos da Primeira República, especialmente em seus argumentos pejorativos a
respeito da população que eles identificavam com tais termos, os emprego de forma normal,
sem nenhum destaque gráfico.
Ao longo destas linhas, venho utilizando dados colhidos em documentos produzidos
pelo Estado, tais como os constantes nas mensagens dos presidentes enviadas à Assembléia
dos Representantes e nos relatórios da DTC. Também venho servindo-me de processos crime
- 171 -
e de informações coletadas em publicações de época, cuja maioria é composta de livros que,
ao longo da história, desde sua publicação no início do século XX até os dias de hoje,
transformaram-se e foram transformadas em clássicos da literatura brasileira, como os livros
de Euclides da Cunha e Oliveira Vianna, para citar dois.
Meu objetivo ao utilizar tais obras, tanto as já citadas como as que ainda serão
mencionadas, é tentar compreender como as pessoas que viveram o período que estou
estudando o pensavam e, principalmente, construíam interpretações e representações sobre o
Brasil e sobre sua população rural. Em alguns casos, trata-se de autores que foram objeto de
pesquisas particulares – dissertações de mestrado ou teses de doutorado, biografias, etc...
Considero importante registrar que, em termos quantitativos, não discuto totalmente com a
vasta produção, uma vez que meu interesse é utilizar autores que compuseram seus livros no
início do século XX como fontes para pensar o período e não como objetos de estudo
propriamente ditos. Além disso, a leitura do conjunto de publicações a respeito desses autores
e seus textos seria tarefa que, para cada caso, exigiria um estudo à parte e, sem dúvidas,
significaria um desvio muito grande do problema aqui pesquisado. Contudo, à medida do
possível, procuro fazer referências a tais pesquisas.
Até aqui, aspectos importantes foram tematizados e, em linhas gerais, procurei
aprofundar a análise sobre como a região serrana estava socialmente estruturada na época.
Também, apresentei e descrevi como o Estado estava organizado, sua estrutura de Governo e
algumas representações comuns à época a respeito das populações rurais. Naquilo que diz
respeito aos grupos que viviam na região e que de alguma forma atuaram no processo de
povoamento, sublinhei a existência de um grupo que mantinha o domínio político e
econômico. Tal grupo constituía a parcela “mais rica” da população local e era composta
basicamente por grandes proprietários, profissionais liberais, políticos, funcionários públicos
e intelectuais, sendo que, alguns deles, se dedicaram a pensar e administrar o povoamento.
Entretanto, quem atuou de forma direta no processo realizando o trabalho de tornar as terras
de matos cultiváveis e dando a elas um sentido econômico maior do que até então tinham
foram pessoas pobres: um grupo econômica e politicamente subordinado da população,
formado por nacionais, negros, índios e colonos.
Da mesma forma, chamei atenção para a inexistência de uma coesão total garantindo a
unidade dos diferentes grupos, pelo contrário, tanto a parcela “mais rica” como a "mais
pobre” eram marcados por peculiaridades internas que definiam certas fissuras. Entretanto, no
caso dos primeiros, tais diferenças eram mais fáceis de serem superadas devido ao seu
pequeno número de integrantes e, sobretudo, sua unidade era mais visível no quesito relativo
- 172 -
às opiniões que expressavam a respeito do grupo “mais pobre” e no seu interesse de exercer
controle, principalmente político, sobre ele. Assim, se tomarmos o exemplo das divisões
políticas características da época, tanto governistas como os oposicionistas ao governo do
PRR, tinham opinião semelhante a respeito do grupo “mais pobre”. Em outras palavras,
mesmo não concordando sobre o modo como o Estado era administrado, concordavam, por
exemplo, que os nacionais não gostavam de trabalhar, que os índios deviam ser tutelados, que
os negros eram violentos por natureza e que os colonos eram trabalhadores ideais e, em
alguns aspectos, melhores do que todos os outros indivíduos.
Outro ponto interessante que se torna visível ao comparar as fontes é que os
documentos de Estado e as publicações citadas, na maioria das vezes, não fazem eco um do
outro nas palavras utilizadas para identificar os nacionais. Ou melhor, livros como o de
Oliveira Vianna, Euclides da Cunha, Paulo Prado, para ficar nos já abordados, utilizam, para
nomear a população rural brasileira que não era imigrante, termos como tabaréu, caboclo,
caipira, sertanejo, jagunço, etc... Já nos documentos produzidos pelo Estado no Rio Grande
do Sul, os termos aplicados são nacional, nacionais e elemento genuinamente nacional.
Embora a diferença existe um ponto comum marcando o emprego das diversas palavras: o seu
conteúdo busca expressar peculiaridades de um certo modo de vida que é apresentado como
dono de determinadas especificidades, por exemplo, a “mobilidade” e a “falta de aptidão para
o trabalho produtivo”. Outra semelhança é que os termos empregados, quando definidos,
sempre buscam evidenciar qualidades e defeitos, sendo que aquelas podem ser aperfeiçoadas
e estes corrigidos. Cabe registrar que, na maioria dos casos, os pontos negativos desse modo
de vida em particular são os que têm presença mais constante nas fontes.
Em sua generalidade, as críticas direcionadas aos nacionais tomam como alvo
principal a sua mobilidade, visto que viviam sem “moradia certa”. Em processo crime datado
de 1906, José Fidelis Machado (21 anos de idade, solteiro, lavrador, natural deste estado, não
sabe ler nem escrever), Graciano Bello (com 19 para 20 anos de idade, casado, lavrador,
natural deste estado, residente na Colônia Bocaina, estado de São Paulo onde está sua mulher,
não sabe ler nem escrever) e um certo “Lau de tal” são acusados de furtar reses no município
de Santo Ângelo. Já na denúncia o Promotor Público os apresenta da seguinte forma: os dois
primeiros denunciados, “verdadeiros vagabundos, sem paradeiro certo, encontraram na pessoa
do terceiro denunciado Lau de tal um exímio auxiliar que mais adiante tomou a chefia do
grupo”234. Os três acusados, segundo a denúncia, vinham de Campo Novo – distrito de
234 APERGS. Processos Crime 1.340. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1906. Maço 44.
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Palmeira – foram até o segundo distrito de Santo Ângelo – “lugar denominado Nhum-Corá” –
onde roubaram algumas reses e as levaram “até seu quilombo e fizeram charqueada”235.
Enquanto faziam o trajeto de volta até seu quilombo, José e Graciano foram capturados e
presos. O delgado de polícia, ao descrever Graciano registra que ele apresentava
o tipo próprio para bandido; pois este é um rapaz de 18 para 20 anos de idade, não tem moradia certa, já percorreu parte da República Argentina e Paraguai, parte do Rio Grande do Sul, Estados do Mato Grosso, Paraná e São Paulo; por onde, creio, só viveu ambulante roubando, pois consta, ou ao menos ele declara que na República Argentina foi preso, aonde lhe tomaram os cavalos e aperos que possuía; e que tinha vindo a este município para dar louvado a sua mãe. Vê-se que ele é habituado a roubar, porque não faz mistério em dizer que o prejuízo que tiveram foi terem vindo fazer os roubos neste município, porque se fosse noutro, não seriam descobertos e estariam passando muito bem (palavras textuais)236. (Grifos no original).
Nota-se que a mobilidade é associada a criminalidade. Contudo, ela é perceptível, pois
Graciano Bello verdadeiramente era um homem cujo paradeiro era um tanto incerto, embora
no interrogatório registre que estava residindo na dita Colônia Bocaina, situada no estado de
São Paulo, onde havia ficado sua mulher ele tinha percorrido parte da Argentina, Paraguai,
Mato Grosso, Paraná, São Paulo e foi preso em Santo Ângelo, onde tinha ido, segundo consta,
para “dar louvado a sua mãe”. O processo crime também demonstra que os habitantes da
região serrana estavam envolvidos numa rede de relações que ultrapassa as fronteiras da
região e envolvia contatos com outros estados da Federação bem como com outros países e,
no caso das nações vizinhas, esses contatos parecem ser constantes, sendo que ultrapassar a
fronteira significava escapar das malhas da lei e, igualmente, ter acesso a alternativas de
sobrevivência peculiares. Neste sentido, em agosto de 1908, em Santo Ângelo, Miguel Pinto
Sobrinho encontrou uma vaca de sua propriedade carneada e foi prestar queixa ao inspetor de
quarteirão Policarpo Kruel. O inspetor, a partir de vestígios deixados no local onde a vaca
havia sido carneada realizou uma busca, cuja base foi a informação de que um pedaço de pala
encontrado no local pertencia “ao mulato de nome Mateus Antunes dos Santos”237 (com 28
anos de idade, solteiro, natural do terceiro distrito deste termo, jornaleiro).
Munido desta informação, Kruel foi até a casa do suspeito onde encontrou “um pedaço
de carne e um caracu”, diante do que Mateus foi preso e levado “a presença do subintendente
e lá chegando confessou o crime com todos os pormenores dizendo mais que para um gaúcho
235 Idem. 236 Idem. 237 APERGS. Processos Crime 1.334. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1904. Maço 44.
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da Fronteira, como ele é, não lhe faltava carne em parte alguma”238 (Grifo meu). No
interrogatório, Mateus afirma que furtou a rês porque “estava com fome, não tinha dinheiro e
nem achava trabalho para ganhar e que por isso a fome o obrigou a carnear uma vaca de seu
vizinho sem lhe dar parte”239. Mateus é levado a julgamento e condenado a dois anos e 15
dias de prisão mais uma multa de 12,5% do valor da rês furtada e as custas do processo.
Entretanto, devido a sua pobreza, a multa e o valor das custas são convertidas em um dia e 22
horas de prisão, os quais deveriam ser somadas ao tempo de condenação.
No processo descrito anteriormente, quando José Fidelis e Graciano Bello, em
interrogatório, são perguntados sobre os motivos que os levaram a furtar a resposta é a mesma
que a dada pelo “mulato” Mateus: a “prova que tem é que furtaram porque estavam com
fome”, responde Graciano, enquanto que José diz que “roubou porque tinha necessidade”240.
Neste caso, José foi condenado a dois anos e 15 dias de prisão, mais multa de 12,5% do valor
do objeto furtado e Graciano a sete meses de prisão com multa no valor de 5% , sendo ambos
condenados a pagarem a metade das custas do processo. O terceiro envolvido, Lau de tal não
foi a julgamento por encontrar-se foragido. Consta também que a multa imposta a José Fidelis
foi convertida em mais quinze dias de prisão com trabalhos. Os dois processos permitem
verificar que na base da mobilidade estava a pobreza vivida por seus praticantes e que ela,
desse modo, era uma alternativa efetivamente posta em prática pelas pessoas que como
Mateus “não tinha dinheiro e nem achava trabalho para ganhar”, na perspectiva de manterem
sua subsistência.
Como venho escrevendo, nos documentos produzidos pelos funcionários do Estado,
principalmente os elaborados pela mão do diretor da DTC, o termo utilizado para identificar
pessoas como José Fidelis, Graciano Bello, Lau de tal e Mateus dos Santos era a palavra
nacional. A opção pelo termo dá-se, muito provavelmente, pela influência do positivismo e a
idéia de nação e nacionalismo que caracterizam a leitura dessa teoria no Brasil. Michael Hall,
em artigo sobre a Sociedade central de imigração, sublinha que os positivistas brasileiros em
geral “eram não somente altamente nacionalistas e apoiavam vigorosamente a
industrialização, como também se opunham explicita e ardentemente à imigração, à pequena
propriedade e ao racismo”241. No caso da imigração, no Rio Grande do Sul o que se dava era
diverso, pois grande foi a entrada de imigrantes no estado durante o período de governo dos
238 Idem. 239 Idem. 240 Processo Crime n.1.340, Santo Ângelo. Idem, op. cit . 241 HALL, Michael M. Reformadores de classe média no Império brasileiro: a sociedade central de imigração, p. 170. Revista de História, v. 105, 1976, p. 147-171.
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positivistas e o objetivo inicial era exatamente torná-los pequenos proprietários242. Todavia,
tanto nos relatórios da DTC como nas mensagens dos presidentes, é possível perceber que a
imigração era objeto de divergências e que foi realizada muito em função dos benefícios
econômicos que advinham dela, da necessidade de povoar e tornar “produtivos” espaços
considerados com potencial pouco aproveitado e da pressão exercida pelo Governo Federal,
especialmente a partir da criação do SPSN.
Assim, o emprego de palavras como nacionais e elemento genuinamente nacional
motiva, entre outras coisas, definir a condição pátria das pessoas para quem elas eram
destinadas e objetivava contrapor tais indivíduos a um estrangeiro – o imigrante – e,
principalmente, justificar as políticas governamentais desenvolvidas e voltadas à perspectiva
de incorporar, tanto imigrantes como os próprios nacionais. Em outras palavras, para aqueles
que diziam que não deveriam existir políticas públicas voltadas aos nacionais devido ao fato
de eles serem vadios por natureza, o governo – ou pelo menos alguns de seus funcionários –
argumentava que, por portarem valores relativos à pátria, eles mais do que ninguém deveriam
receber atenção e, assim, evitar o surgimento de possíveis movimentos de autonomia nacional
por parte dos grupos imigrantes. Daí o fato de uma das principais preocupações do governo
estadual referente aos imigrantes era apurar a sua assimilação e a maneira utilizada para isso
era formar colônias mistas e buscar, à medida do possível, incentivar os contatos entre os
diferentes grupos.
No capítulo anterior, abordei questões relativas à constituição de representações sobre
a população rural brasileira e o sentido nominativo que elas tinham, tanto na época como hoje
em dia. Ainda sublinhei, baseado nas observações de Pierre Bordieu, que a ação social de
nominar tem o sentido específico de exigir dos nominados comportamentos de acordo com o
conteúdo que o discurso nominativo carrega. De acordo com Márcia Naxara, as
representações sobre os nacionais foram apropriadas socialmente e, ao longo do tempo,
assumiram um caráter de abrangência tal que tornaram-se símbolos de identidade para os
brasileiros. Símbolos, cuja força social tornou-se tão robusta que nem mesmo os autores dos
mesmos, como é o caso de Monteiro Lobato, quando tentaram, conseguiram revertê-los243.
Naxara também destaca o quanto no processo de constituição desses símbolos e as
representações que lhes são comuns, entraram elementos vinculados ao modo como as
pessoas daquela época interpretavam o desenvolvimento da sociedade brasileira. Por
242 Ver a discussão sobre os planos de futuro de Carlos Torres Gonçalves em relação à pequena propriedade no próximo capítulo. 243 Nesse caso, a autora refere-se à criação do Zé Brasil por Monteiro Lobato para contrapor ao Jeca Tatu, contudo, socialmente a imagem do Jeca prevaleceu. Cf.: Márcia Regina Capelari Naxara. Idem, op. cit., p. 146.
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conseguinte, a idéia de civilização, de progresso, de raça e do trabalho como único meio a
partir do qual conseguir-se-ia chegar à civilização foram fundamentais no processo de
constituição desses símbolos.
Na época, escreve Naxara, era comum o Brasil ser interpretado, pelas suas elites ou
por estrangeiros que aqui estiveram, “como um lugar onde o potencial de trabalho e o
conseqüente aproveitamento dos recursos naturais mantinham-se à margem do processo
produtivo”244, fato que, para tais pessoas entravava o desenvolvimento material da sociedade
e dificultava a marcha para o progresso e a civilização. Conseqüentemente, a responsabilidade
pelo mau aproveitamento dos recursos oferecidos pelo país era atribuída aos nacionais que,
como é comum encontrar nos documentos da época, “não estavam aptos para o trabalho”,
sobretudo, para o trabalho do qual deveria advir as luzes da civilização. A solução encontrada
para dar cabo deste “problema” foi incentivar a entrada de imigrantes europeus no Brasil, os
quais, além de estarem disponíveis na Europa, “ensinariam” os nacionais a trabalhar e, para
alguns defensores da imigração, ajudariam no processo de branqueamento do país.
Tal conjunto de situações, por um lado, resultou no fortalecimento e condensação das
representações preconceituosas a respeito dos nacionais e, por outro, no elogio do imigrante.
O imigrante passou a ser tratado como o trabalhador ideal, sóbrio e morigerado, “elemento
capaz de, por si só, promover a recuperação da decadente raça brasileira nos mais diversos
aspectos: sangue novo, raça superior (branca), civilizado, disciplinado, trabalhador, poupador,
ambicioso...”245. Os nacionais, por sua vez, eram apresentados como vadios, racialmente
inferiores, mestiços, indisciplinados e toda uma série inumerável de adjetivos. Em outros
termos, “foi da depreciação do brasileiro que emergiu a valorização do imigrante”246.
Entretanto, no caso da região serrana, nem todos os imigrantes enquadraram-se perfeitamente
nos ideais de seus defensores e, quando isso acontecia, o discurso sobre eles e a imigração
deixava de ser tão apologético. Ademais, no processo de povoamento o contato entre
imigrantes e nacionais também foi marcado pelo conflito e os processos crimes trazem
exemplos paradigmáticos da constatação.
Em 28 de Janeiro de 1901, por exemplo, na Comarca de Cruz Alta, é movido processo
contra João Signori (39 anos de idade, casado, natural da Itália, residente no município,
agricultor). João foi acusado de matar Claudino José de Mello em uma “casa de negócio” de
Cruz Alta. No momento do crime, estavam reunidos na venda cerca de 10 pessoas, dentre elas
244 Idem, p. 48. 245 Idem, p. 63. 246 Idem, ibidem.
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o réu, a vítima e Mário Virissimo da Silva, o qual conta que em um dado momento ouviu João
dizer a Claudino: “‘já é a segunda vez que te peço que não me chame de gringo, pois isto quer
dizer ladrão’. Ao que Claudino respondeu que no seu entender ‘gringo queria dizer,
estrangeiro’ e por esta razão começaram a altercar”247. Mário, o proprietário da venda, conta
que os dois brigões estavam embriagados, mas João aparentava estar mais bêbedo. Para evitar
o conflito no interior da casa, Mário pede que os dois se retirem, sendo que a briga continua e
o resultado foi João matar Claudino. O caso é levado a julgamento em 08 de agosto de 1901 e
Signore foi condenado a 6 anos de prisão. O ocorrido demonstra, por um lado, que as relações
entre imigrantes e nacionais eram marcadas pelo conflito e que, como ficou claro em processo
discutido anteriormente, se o termo brasileiro na boca do imigrante poderia ter conteúdo
ofensivo, igualmente existiam nominações ofensivas, usadas pelos nacionais e direcionadas
aos imigrantes. Além disso, o desencontro do conteúdo expresso pela palavra gringo também
indica a fluidez destas nominações, uma vez que para Signore ela era sinônimo de ladrão e,
para Claudino, de estrangeiro.
A leitura que Signore faz do uso da palavra gringo encontra ecos em outras situações.
Em 1919 aconteceu um caso em Santo Ângelo que demonstra o quanto o termo poderia ser
ofensivo. Segundo a denúncia, no dia 15 de agosto, Antônio Ribas de Lima (37 anos, casado,
natural deste estado, agricultor) foi ao “bolicho” de propriedade de José Darli a fim de
comprar uma garrafa de vinho. Ao pedir pelo preço, Darli responde que a garrafa custava R$
800 réis, ao que Antônio disse que “era muito caro e que em qualquer parte se comprava por
R$ 400 réis”248. Darli respondeu que não era possível vender por esse preço e que daria a
garrafa de vinho para Antônio, o qual “insultando-se com o presente que lhe era oferecido,
disse que não precisava de esmolas e passou a chamar Darli de gringo pomadista e a dizer que
não tinha medo e passaria relho em todos ali”249. Essa ameaça resultou na intervenção de
outras pessoas que estavam presentes no bolicho, pelo que muitos saíram feridos, fato que dá
ensejo ao processo crime. O que exatamente quer dizer a expressão “pomadista” naquela
determinada situação é difícil decifrar, entretanto, o contexto indica que a utilização do termo
gringo tem sentido ofensivo. Outro ponto que deve ser destacado é que esta palavra é
geralmente utilizada para fazer referência a indivíduos de origem italiana, sendo que, muitas
vezes o adjetivo “alemão” também poderia ter sentido pejorativo.
247 APERGS. Processos Crime 3.896. Cartório Civil Crime. Município de Cruz Alta, 1910. Maço 125. 248 APERGS. Processos Crime 1.479. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1919. Maço 50. 249 Idem.
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Nesta perspectiva, em março de 1919, na casa de negócio de Antônio Martinelli
situada em Santo Ângelo ocorre conflito entre Francisco Manuel da Costa e Ziguemundo
Christo (21 anos de idade, solteiro, natural deste estado, residente em Santa Rosa, carroceiro).
De acordo com o testemunho de Virgílio José dos Santos, Francisco estava na casa de negócio
quando chega Ziguemundo montado em um cavalo, motivo pelo qual Francisco dirige-se a
Christo nos seguintes termos: “alemão não anda em cavalo gordo, você comprou este cavalo?
Sendo respondido pelo alemão que sim, que tinha comprado, Francisco retrucou dizendo que
alemão não podia andar em cavalo gordo”250. Ziguemundo sentindo-se ofendido dá uma
chicotada em Francisco e fere-o com uma faca, pelo que ele “retirou-se e disse: tu me paga
alemão, em seguida tomou um copo de cachaça montou a cavalo e saiu do local”251.
Ainda conforme Virgilio, existia uma rixa antiga entre Ziguemundo e Francisco, cuja
origem era o cavalo montado pelo primeiro, pois o alemão o havia recebido como pagamento
de uma dívida que um sobrinho de Francisco tinha com ele. Virgilio também conta que
conhecia os dois brigões já fazia um ano e que “Francisco era dado ao vício da embriaguez e
pouco trabalhador e que o denunciado [Zigmundo] é muito quieto, não bebe e é
trabalhador”252. Este é mais um exemplo de que as relações entre nacionais e imigrantes não
era pacífica e que, ambos tinham maneiras e palavras próprias para se ofenderem, adjetivos
que por serem bastante fluídos dependiam muito da situação na qual eram usados. Neste caso,
também é perceptível a associação entre imigrante e trabalho, bem como entre nacional e
vadiagem, a qual pode ter um fundo de veracidade. Entretanto, não deve ser generalizada de
modo a se afirmar que todos os imigrantes e seus descendentes eram trabalhadores e, em
contrapartida, de que todos os nacionais eram pouco aptos para o trabalho. Na verdade o que
está no fundo da questão é que se trata de concepções diferenciadas dos significados do
trabalho e de quais são seus objetivos.
Diante de tudo, uma pergunta vem à tona: quem exatamente eram os nacionais? Um
primeiro ponto que deve ser frisado é que essa categoria, enquanto símbolo nominativo e
identitário é, como venho sublinhando, extremamente fluída e variava de acordo com a
situação na qual ela é empregada. No que se refere à presença dessa categoria nos documentos
produzidos pelos aparelhos de Estado, o relatório da DTC do ano de 1909 traz o relato de uma
situação que demonstra um dos principais aspectos envolvidos no processo de povoamento e
250 APERGS. Processos Crime 1.498. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1919. Maço 52. 251 Idem. 252 Idem.
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que, além disso, ajuda a compreender os significados e conteúdos comuns ao emprego de
determinadas nominações.
A situação descrita pelo diretor da DTC acontece na colônia Ijuí e refere-se a
dificuldade no estabelecimento de imigrantes. Naquela data, havia cerca de 30 lotes vagos na
colônia e os mesmos eram “recusados pelos imigrantes, uns por não terem água, outros por
não terem madeiras, sendo terras que durante muitos anos já foram cultivadas por
nacionais”253. A situação evidencia que, ao contrário do que era voz corrente na época, a
região era habitada há bastante tempo, embora não densamente. Da mesma forma, mostra o
quanto a idéia dos nacionais, comparados aos imigrantes, terem “reduzidos hábitos de
trabalho” mais fundamentava uma opinião do que uma prática, já que as terras em questão
eram cultivadas antes da chegada dos colonos. A contradição fica mais evidente à medida que
as representações formuladas vão sendo contrapostas à atuação dos nacionais. No entanto,
isso não impedia que elas tivessem força social e fossem ponto de referência a partir do qual o
próprio grupo pensava e formulava sua identidade, bem como seu lugar dentro das mudanças
que estavam acontecendo.
O fato de os nacionais “não possuírem hábitos sistemáticos de trabalho”, segundo
Carlos Torres Gonçalves, devia-se à circunstância de terem nascido em um meio social onde
“as necessidades de existência individual são muito limitadas”254. Conseqüentemente
desconheciam o conforto, facilmente poderiam garantir sua existência devido às condições
oferecidas pelo meio onde habitavam, o qual por não conhecer o “industrialismo compressor
das classes menos protegidas”, livrava-os do “aguilhão da cobiça”255. Todas essas
características eram tomadas como inconvenientes que cumpria modificar, pois eram
responsáveis por tornar o trabalhador nacional inferior em relação ao estrangeiro. Contudo,
aos olhos de Torres Gonçalves, esta era uma inferioridade prática, cuja importância,
comparada à superioridade moral dos nacionais, que se expressava principalmente no seu
amor a pátria, era menor. Dessa forma, ponderava o diretor da DTC, em 1910: “não é justo
que os favores concedidos aos colonos estrangeiros não sejam estendidos, e por mais forte
razão, aos nacionais”256.
253 GONÇALVES. Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 102. In.: GODOY, Candido José de. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo secretário de Estado, Candido José de Godoy, em 27 de agosto de 1909. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1909, p. 77-114. (AHRS - OP. 20) 254 Carlos Torres Gonçalves, 1910. Idem, op. cit., p. 106. 255 Idem, ibidem. 256 Idem.
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A noção que a “falta de hábito para o trabalho”, característica dos nacionais advinha
de seu isolamento não é peculiaridade de Torres Gonçalves, mas expressão de um ponto de
vista que tinha adeptos na época. Um exemplo desse tipo de interpretação pode ser localizado
no já discutido Os Sertões, de Euclides da Cunha, que é, sem dúvidas, um dos principais
pontos de referência a partir do qual a temática do isolamento e o seu par relacional – o atraso
– foram, ao longo da história, discutidos no Brasil257. Outra publicação da época que
apresenta a suposta preguiça comum dos nacionais como resultado de seu isolamento é o
livro América Latina: males de origem258, datado de 1905 e de autoria de Manuel Bonfim.
Este pensador, um crítico da utilização de teorias raciais para interpretar o Brasil,
argumentava que a preguiça característica dos nacionais era resultado da sua falta de convívio
com a civilização e da escassez de instrução a que estavam submetidos259; não tinha ligação,
portanto, com a “in-pureza” de raça dos mesmos, como tradicionalmente era argumentado.
Nessa perspectiva, escrevia Bonfim, “um cabra do sertão Norte” do Brasil que vivia fora da
“civilização”, que não precisava grandes recursos para sobreviver e, dessa forma, não sentia
necessidade de trabalhar além do necessário para subsistência, não tinha por que: “esbofar-se,
da manhã à noite tangendo uma enxada de dois quilos, num massapé rebelde, se ele pode
viver sem isto, se não saberia, sequer, o que fazer do preço desse trabalho?”260. De acordo
com a interpretação do autor, a suposta inferioridade racial de negros, índios e mestiços, tão
defendida em toda América Latina, tinha um único sentido: justificar a dominação
historicamente exercida sobre tais grupos261.
257 Sobre esta constatação, Maria Isaura Pereira de Queiroz escreve: “Apesar de Euclides da Cunha reconhecer (...), ainda assim predominou sua sensibilidade diante da paisagem, sobre o raciocínio diante dos fatos; criou então a lenda do isolamento das populações caboclas, que perdura até hoje como explicação aceita sem maiores críticas por parte dos estudiosos, ou melhor, passando a constituir o primeiro dado que se constata, quando se empreende a análise de um grupo rural tradicional. E ninguém procurou definir o que significa ‘distância’ ou ‘isolamento’ em termos de vida cabocla real ou da maneira de pensar dos indivíduos que a essa vida estão ligados”. Cf.: QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O campesinato brasileiro: ensaios sobre civilização e grupos rústicos no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1973, p. 09. 258 BONFIM, Manuel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993. 259 Outro exemplo desse tipo de interpretação é fornecido por Alberto Torres para quem os problemas característicos da população rural brasileira eram resultado do seu isolamento, da sua falta de instrução, da ausência de políticas públicas voltadas a esta população. Cf.: TORRES, Alberto. O problema nacional brasileiro: introdução a um programa de organização nacional. São Paulo: Editora Nacional; Brasília: Editora UNB, 1982. 260 Manuel Bonfim. Idem, op. cit., p. 265. 261 Sobre o modo como Manuel Bonfim descrevia os nacionais, Márcia Naxara escreve: “A representação de Manuel Bonfim confirma a do caboclo indolente, incapaz de ambição. Uma diferença, no entanto: ao refutar e desvendar os mecanismos de dominação presentes nas teorias raciais e analisar as causas de atraso pela herança cultural; ainda que ele utilize metáforas explicativas semelhantes, tomadas ao cientificismo predominante, inclusive na sua formação, retira a questão do âmbito da natureza e a traz para o âmbito da sociedade e da política, num processo de biologização do social, que conserva, no entanto, uma tensão permanente entre natureza e cultura. A formação da nação civilizada, já que este é o caminho inevitável da evolução dos povos, poderia ser alcançada pela educação social”. Cf.: Márcia Regina Capelari Naxara. Idem, op. cit., p. 101.
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O interesse de estender os favores concedidos para os estrangeiros aos nacionais,
pontuado por Torres Gonçalves tinha por objetivo aproximar os dois grupos e, a partir de tal
movimento, dar maior velocidade ao processo de assimilação dos imigrantes. Da mesma
forma, pelo contato, pelas relações inerentes à propriedade do solo e pelo sentimento de
proteção recebida, argumentava o diretor da DTC, os nacionais passariam a modificar suas
“disposições cerebrais” e conseqüentemente adquiririam hábitos de trabalho e se tornariam
“socialmente úteis”. Em outras palavras, tornar-se-iam “civilizados”. Por conseguinte, a
presença no Rio Grande do Sul de nacionais vivendo em seu modo habitual de vida, bem
como de imigrantes não assimilados, eram desinteressantes para o governo. No caso
específico dos nacionais, o objetivo principal era mudar seu modo de vida. Para tanto, cabia
ao Estado “ir ao encontro dele, estimulá-lo pela proteção, orientá-lo e guiá-lo na
sistematização de sua atividade concorrendo para transformá-lo no cidadão operoso do
amanhã” 262. O modo de vida particular do nacional, a seu turno, era caracterizado pela
mobilidade em conseqüência da qual ele vagava “hoje aqui, amanhã ali, seja em terras do
Estado, seja em terras particulares agravando cada vez mais os seus defeitos”263.
Portanto, os nacionais eram definidos como pessoas portadoras de defeitos e deveriam
ser alvo de atenção especial por parte do Estado a fim de que se tornassem “aptas para o
trabalho produtivo”. A justificativa para a proteção, na maioria das vezes, é apresentada como
um “dever de fraternidade”, uma “atitude altamente patriótica”, “republicana” e, é nesses
termos que Torres Gonçalves registra a fundação SPILTN no relatório da DTC de 1910. No
mesmo ano, na mensagem enviada por Carlos Barbosa Gonçalves à Assembléia dos
Representantes, o Presidente do Estado sugere modificar o regulamento de terras e
colonização para conferir aos nacionais os mesmos auxílios destinados aos colonos264.
Ponderação comemorada por Torres Gonçalves no relatório da DTC de 1911. O ano de 1910,
cabe registrar, representa um marco na estruturação das políticas estaduais referentes aos
indígenas e aos nacionais e também é o momento em que os esforços para transformar o
elemento genuinamente nacional em morigerado e útil ficam mais visíveis.
Assim, em 26 de outubro de 1911, era instalada em Porto Alegre a sede da Inspetoria
do SPILTN e, uma das primeiras medidas tomadas foi regularizar a situação das terras
indígenas. Como havia nacionais estabelecidos dentro de terras demarcadas para os índios, o
262 Carlos Torres Gonçalves, 1910. Idem op. cit., p. 107. 263 Idem, ibidem. 264 GONÇALVES, Carlos Barbosa. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul pelo Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, na 2° sessão ordinária da 6° legislatura, em 20 de setembro de 1910. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1910, p. 30.
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governo, por meio da ação da DTC, passa a agir para afastá-los das áreas e conceder-lhes
lotes em outros territórios, em condições apresentadas como “melhores” e objetivando fazê-
los sentirem “a necessidade do Estado de respeitar a situação dos índios. Na maioria dos
casos, eles têm recebido a solução conciliadora dos deveres do Estado tanto para com os
índios como para com eles próprios”265. Muito provavelmente esse tenha sido o primeiro
contato dos nacionais que viviam em terras indígenas estabeleceram com o Estado e seus
aparelhos e, é importante registrar, a primeira aproximação acontece por meio da intervenção
do Estado em favor dos indígenas e é motivada pela propriedade da terra.
Como já referi no primeiro tópico deste capítulo, no relatório da DTC de 1914, consta
que o Rio Grande do Sul possuía dois grandes elementos colonizadores: o genuinamente
nacional e o de origem estrangeira. O de origem estrangeira era em maior número
contabilizava em torno de 1/3 da população total do Estado, ou seja, mais ou menos umas 580
mil pessoas – na maioria italianos e alemães – ocupando uma área de 2.800.000 hectares
(cerca de 1/9 da superfície total do território Rio-Grandense). Quanto ao elemento
genuinamente nacional, “como capacidade industrial é, sem dúvida, inferior ao anterior, o que
nos dias materialistas que correm tem levado freqüentemente a menosprezá-lo”266. A
inferioridade dos nacionais, segundo Torres Gonçalves, circunscrevia-se à esfera da atividade,
“justamente o menos importante da nossa natureza”. Não era responsabilidade dos mesmos,
mas do atraso industrial característico das regiões onde eles viviam, sendo um “fenômeno
antes social que individual”. Conseqüentemente a solução era elevar o nível industrial da
região para que tais pessoas “levantem rapidamente o nível das suas aptidões práticas” e, para
cumprir a meta cabia ao governo, via DTC, promover seu “progresso e fixação ao solo” por
todos os meios possíveis267. No geral, estas linhas resumem o ponto de vista dos funcionários
da DTC a respeito dos nacionais e é a partir dele que foram elaborados projetos relativos a sua
almejada fixação ao solo e transformação em “cidadãos operosos do amanhã”.
A ação do Estado devia, segundo Torres Gonçalves, “limitar-se a procurar auxiliar a
tendência humana espontânea ao aperfeiçoamento”268. Assim, uma medida sugerida era
oferecer aos nacionais lotes que continham ervateiras, pois eles “conhecem as condições de
vida da erva-mate, cujos pés cuidam com verdadeiro carinho quando lhes pertencem, já pelo
próprio uso muito apreciado que dela fazem, já pelo seu valor comercial, que não ignoram”269.
265 Carlos Torres Gonçalves, 1911. Idem, op. cit., p. 156. 266 Carlos Torres Gonçalves, 1914. Idem, op. cit., p. 107-110. 267 Idem, ibidem. 268 Idem. 269 Idem.
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Ao sugerir a medida, como no caso do interesse em aproximar nacionais e estrangeiros, o
objetivo era, escrevia o diretor da DTC, resolver duas questões: a da fixação dos nacionais e
também a do desenvolvimento da indústria de erva-mate que, como sublinhei no primeiro
capítulo, era um dos principais produtos geradores de divisas para a região estudada.
Outra ação proposta por Torres Gonçalves para facilitar a transformação dos nacionais
sem atrapalhar a natural tendência humana para o aperfeiçoamento era aproveitá-los no
serviço de conservação e exploração florestal devido a “notória aptidão para percorrer as
matas e derrubar árvores”270. Nesse caso, como no da erva-mate, havia interesses de ordem
econômica definindo as ponderações de Torres Gonçalves, uma vez que a exploração de
madeira era uma das atividades bastante lucrativas na época, e transformar os nacionais em
guardas florestais ajudaria ao Estado, sem realizar grandes despesas, a exercer controle sobre
a exploração florestal. Além disso, seria possível garantir que os tributos que deveriam ser
destinados ao Estado teriam rumo mais certo. Inclusive indígenas foram utilizados nesse
serviço e os argumentos para justificar esta ação eram os mesmos: a aptidão natural destas
pessoas para percorrer as matas e, principalmente, o fato de que assim “eles se
desenvolveriam”271.
Em 1915, foi fundada a Colônia Santa Rosa, na qual alguns dos projetos até o
momento descritos passam a serem colocados em prática. A região onde a colônia foi
estabelecida inicialmente era habitada por cerca de 3.000 nacionais que passam a ter seus
lotes demarcados e, para evitar que eles os vendessem, os títulos de propriedade que recebiam
eram inalienáveis por 5 anos. Neste sentido, para os nacionais que quisessem adquirir lotes
em Santa Rosa, o pagamento dos terrenos seria facilitado pela prestação de serviços na
construção de estradas e, por fim, seriam fornecidos “modestos projetos de habitação, com o
intuito de induzi-los a procurarem um modesto conforto, o que constitui um dos maiores
estimulantes para atividade”272 (ver figura 10, abaixo). Tais medidas, por sua vez, teriam
maior eficácia, segundo Torres Gonçalves, se o Estado realizasse maior esforço no
desenvolvimento da viação interna pela qual os contatos entre as diferentes populações seria
mais intenso o que, a seus olhos, facilitaria o processo de assimilação dos estrangeiros e de
aperfeiçoamento dos nacionais.
270 Idem. 271 Uma abordagem mais detalhada sobre a exploração da madeira e os grupos que se envolveram nela na região encontra-se em TEDESCO, João Carlos; SANDER, Roberto. Madeireiros, comerciantes e granjeiros: lógicas e contradições no processo de desenvolvimento sócio-econômico de Passo Fundo (1900-1960). Passo Fundo: UPF, 2005; RÜCKERT, Aldomar. A trajetória da terra: ocupação e colonização do centro-norte do Rio Grande do Sul, 1827-1931. Passo Fundo: Editora UPF, 1997 e Joel João Carini. Idem, op. cit. 272 Carlos Torres Gonçalves, 1915. Idem, op. cit., p. 104.
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Em 1917, ou seja, sete anos depois da criação da SPILTN, e de terem sido tomadas
medidas mais concretas relativas ao “melhoramento” dos nacionais, Carlos Torres Gonçalves
comemora os primeiros resultados das ações executadas. O diretor da DTC registra que “a
transformação de antigos ocupantes de terras em colonos regulares tem sido com habilidade
feita pelas Comissões”273. De acordo com Torres Gonçalves, devido às políticas adotadas pelo
Estado, um “grande número de indivíduos que eram quase nômades” encontravam-se
“fixados em suas propriedades dando impulso ao movimento agrícola do Estado”274. No caso,
fica evidente que tipo de pessoa deveria resultar do processo de “aperfeiçoamento” dos
nacionais: eles deveriam se tornar “colonos regulares” e com isso impulsionar o movimento
agrícola e, sobretudo, adotar novas formas, consideradas ideais, de se relacionar com o espaço
e de praticar agricultura.
FIGURA 10:
MODELO DE HABITAÇÃO PARA NACIONAIS
FONTE: GONÇALVES. Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização 1919.
Em linhas gerais, como é possível perceber, existia uma concordância na época de que
os nacionais eram preguiçosos. Outro ponto em comum partilhado refere-se à utilização de
pares relacionais para descrever tais indivíduos, ou seja, sempre que são mencionados são
apresentados como portadores de características positivas e negativas. Em outros termos, são
vadios, mas em comparação com os trabalhadores – os imigrantes – são portadores dos
273 Carlos Torres Gonçalves, 1917. Idem, op. cit., p. XVI. 274 Idem, ibidem.
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valores comuns à Pátria. São isolados, no entanto ninguém melhor que eles sabe sobreviver
no sertão e, devido a mobilidade e à capacidade de se adaptarem a diferentes situações e
climas, são os verdadeiros responsáveis pela expansão do território nacional.
Acerca das idéias depreciativas sobre os nacionais e seu modo de vida, o livro Urupês,
de Monteiro Lobato, publicado na segunda década do século XX, marca a edição de um texto
que, segundo Márcia Naxara, condensou “todo um conjunto de representações que fazia parte
de um imaginário que vinha sendo formulado desde épocas anteriores sobre o brasileiro”275. O
texto de Lobato juntou e materializou idéias dispersas permitindo, dessa forma, a elaboração
de “uma imagem estereotipada, que catalisou, naquele momento, opiniões que antes não
encontravam endereço certo”276. Nesta obra, e a partir da condensação das representações
depreciativas existentes sobre os nacionais, consolida-se a figura do caboclo277 que Lobato
chama de Jeca Tatu, cuja aceitação social foi tão ampla que acabou, de acordo com Naxara,
sendo identificado como síntese de brasilidade. Nas palavras de Lobato, o caboclo é uma
espécie de homem baldio, semi-nômade que não se adapta à civilização,
mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças. À medida que o progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a valorização da propriedade, vai ele refugindo em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, a picapau e o isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo e sorna. Encoscorado numa rotina de pedra, recua para não adaptar-se278.
É nesses termos que, ao longo da história, os nacionais vêm sendo apresentados e foi a
partir da crença e na generalização social destas representações, tanto por parte de quem as
formulava como daqueles para quem elas eram destinadas, que a idéia dos nacionais e do
povo brasileiro como vadio e sem ambição “à custa de tanto ser repetida, tornou-se quase que
uma verdade absoluta e parte integrante da cultura brasileira, disseminada em todas as
275 Márcia Regina Capelari Naxara. Idem, op. cit., p. 24. 276 Idem, ibidem. 277 Quanto a esta palavra, Câmara Cascudo destaca, em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, que até fins do século XVIII ela era sinônimo oficial de indígena e, devido ao seu conteúdo pejorativo, pelo Alvará de 4 de Abril de 1755, El Rei D. José de Portugal, “mandava expulsar das vilas os que chamassem aos filhos indígenas de caboclos”. Nos dias atuais, a palavra serve para indicar “o mestiço e mesmo o popular, um caboclo da terra. Discute-se ainda a origem do vocábulo, indígena ou africano”. Cascudo também sublinha dois aspectos importantes relativos ao termo: 1) que, no folclore brasileiro, o termo designa “o tipo imbecil, crédulo, perdendo todas as apostas e sendo incapaz de uma resposta feliz ou de um ato louvável” e, 2) que “essa literatura humilhante é toda de origem branca, destinada a justificar a subalternidade do caboclo e o tratamento humilhante que lhe davam”. Cf.: CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1962, p. 156-157. Para conhecer o Alvará na íntegra, verificar: SILVA, Antônio Delgado da. Coleção da Legislação Portuguesa desde a última compilação das ordenações, redigida pelo Desembargador Antônio Delgado da Silva. Legislação de 1750 a 1762. Lisboa: Na Tipografia Maigrense, 1830, p. 367-368. 278 LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Editora Brasiliense, 1957, p. 271-272.
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camadas sociais, e raramente contradita”279. Por fim, como destaquei anteriormente, o
emprego que um grupo faz de uma representação para identificar a um “outro” relacional tem
por objetivo exigir que as pessoas que compõem tal grupo ajam a partir dessa representação.
No caso dos nacionais, o interesse era mostrar sua inaptidão para o trabalho, justificar a série
de benefícios destinados aos imigrantes e a partir da imposição exigir alterações no seu
comportamento. Dessa forma, a série de medidas governamentais e a ação da parcela “mais
rica” da população local voltadas a gerenciar o povoamento da região serrana, durante a
Primeira República, tinham por objetivo transformar os nacionais em pessoas fixadas a terra e
economicamente produtivas, sendo um dos seus principais interesses definir as questões
relativas a propriedade da terra, visto que com a colonização as terras da região ganham um
expressivo valor de mercado. Quando tais objetivos eram alcançados, os nacionais deixavam
de ser nacionais e provavam a tese defendida por Torres Gonçalves que eles eram tão aptos
ao trabalho agrícola produtivo quanto os colonos. Entretanto, quando não cumpriam com as
expectativas continuavam nacionais, ou seja, semi-nômades, bandidos, vadios, incivilizados,
etc... Ponto de vista este que, como já sublinhei, por ser dominante e generalizado, tornou-se
símbolo de identificação.
Dessa maneira, compreender tal representação e seus conteúdos significa, entre outras
coisas, conhecer o modo como aconteceu a inserção dos nacionais no processo de
povoamento da região. Um exemplo disto é o modo como a questão fundiária foi legislada no
período, uma vez que as políticas de Estado referentes ao assunto foram pensadas e aplicadas
a partir do pressuposto de que os nacionais não sabiam dar o devido valor à terra e fazê-la
produzir em toda sua potencialidade. Em contrapartida, também justificou o favorecimento
recebido pelos imigrantes, considerados trabalhadores morigerados e capazes de proporcionar
o desenvolvimento agrícola almejado para o Rio Grande do Sul, mas este é um tema que
desenvolverei no capítulo seguinte.
279 Márcia Regina Capelari Naxara. Idem, op. cit., p. 147.
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4 GOVERNAR É PROMOVER A FELICIDADE DA PÁTRIA: INTRUSÃO, COLONIZAÇÃO E AS POLÍTICAS DE POVOAMENTO
Os que se apossarem de terras do domínio público e nelas derrubarem matos ou lhes puserem fogo, serão obrigados a despejo, com a perda de benfeitorias, e demais sofrerão as penas estabelecidas nas leis penais em vigor além da satisfação do dano causado.
Regulamento da Lei de Terras do Estado, 04 de Julho de 1900.
4.1 A GESTÃO DAS “TERRAS DEVOLUTAS”
Em alguns momentos dos capítulos anteriores, grifei o quanto o povoamento da região
serrana foi marcado pela disputa entre Estado e particulares. Cabe agora analisar, de maneira
mais detalhada, o modo como se desenvolveu tal disputa, bem como alguns de seus
resultados. Em linhas gerais, os funcionários de Estado responsáveis por gerenciar os assuntos
relativos à apropriação do espaço esforçaram-se para discriminar o domínio público do
privado e, a partir disso, definir o modo como a propriedade fundiária organizaria-se.
Especialmente, no caso dos grupos em que a noção de propriedade não estava alinhada com
critérios considerados ideais, fazê-los mudar suas maneiras tradicionais de relacionamento
com o território, buscando instituir entre eles a noção de propriedade característica do “mundo
ocidental moderno”. Isto é, uma propriedade com suas fronteiras efetivamente demarcadas,
cuja produção deveria estar voltada para abastecer e consolidar o mercado.
A execução dos projetos governamentais de colonização e povoamento foi
acompanhada por uma série de alterações no modo como os habitantes da região
relacionavam-se com o espaço, com a produção e também foi responsável por definir
alterações profundas na sociabilidade local. Nesta perspectiva, embora se trate de contextos e
situações bastante diferenciadas, é interessante realizar uma aproximação entre aquilo que
ocorreu no Rio Grande do Sul com o caso analisado por Beatriz Heredia1, que, em seu estudo,
aborda a “modernização conservadora” da agricultura, ocorrida na década de 19702, na região
de Tabuleiros do Sul, estado de Alagoas.
1 HEREDIA, Beatriz Alasia de. Formas de dominação e espaço social: a modernização da agroindústria canavieira em Alagoas. São Paulo: Marco Zero; Brasília: MCT/CNPq, 1988. 2 Esta data refere-se ao período em que a autora realizou sua etnografia, no entanto, as mudanças relacionadas à modernização e expansão da agricultura canavieira na região analisada por Heredia são datadas da década de 1950.
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Assim, na passagem do complexo do engenho para o da usina, acontece um sem
número de alterações nas práticas comuns de vida e relações sociais das pessoas que vivem a
mudança. A partir dela, os espaços são ressignificados3 e tais ressignificações fazem parte de
um complexo quadro de jogos sociais. Desse modo, a mencionada “modernização” não foi
capaz de romper profundamente com os laços de dependência e de dominação característicos
daquela figuração social. De modo geral, ela acrescentou a tais laços novos conteúdos e
significados, cuja variação foi proporcional e dependeu da forma como as mudanças
ocorreram naquele contexto em particular. Em outras palavras, as transformações analisadas
por Heredia carregavam também permanências.
No processo de ocupação das terras da região serrana, também é possível verificar a
ocorrência de mudanças e permanências. Nesse sentido, as análises de Beatriz Heredia podem
iluminar o estudo ora desenvolvido. Como no caso da modernização agrícola de Alagoas, o
Estado teve papel importante na maneira como a ocupação do território e as novidades que lhe
são características aconteceram na situação ora analisada. No Rio Grande do Sul, o objetivo
primordial do Estado era separar o domínio público do privado e, a partir disso – conforme
escreviam os responsáveis por colocar em prática tais intenções – incentivar a constituição de
um tipo específico de trabalhador rural, cuja peculiaridade deveria ser sua vinculação e
fixidez a um espaço territorial e a prática de uma agricultura definida como “racional” e
“produtiva”.
Um traço característico do Rio Grande do Sul no primeiro período republicano foi a
busca por tornar o estado polivalente na produção de gêneros destinados a sua sustentação
econômica. Diferentemente do que ocorria em outros territórios do Brasil e daquilo que havia
caracterizado o próprio Rio Grande durante o período imperial em relação a produção bovina,
especialmente a do charque. Na Mensagem do Presidente do Estado, enviada à Assembléia
dos Representantes em 1895, Júlio de Castilhos relatava que durante sua administração um
dos principais esforços feitos foi o de aproveitar os “prodigiosos recursos naturais que
distinguem o Rio Grande do Sul”, visto que sua força criadora não deveria residir na
exploração de um único produto “a semelhança do café em alguns estados, ou do açúcar em
3 Sobre essa questão, Heredia escreve: “a ruptura do sistema social engenho e o domínio de um novo sistema de dominação que impera atualmente tem expressão também na organização do espaço. No passado, o cultivo de cana ocupava apenas uma parte reduzida de terras do engenho que também eram destinadas à criação do gado, às matas, ao cultivo dos moradores e, por fim, às construções. Mesmo nos vales, a plantação de cana também dividia espaço com o gado e as construções. Hoje essa distribuição foi mudada, as terras da propriedade, especificamente as dos tabuleiros [até então consideradas impróprias para o cultivo da cana e destinadas aos moradores], foram ocupadas totalmente pela cana que expulsou o cultivo dos roçados, os pastos, as matas e as construções. A cana domina, pois, a paisagem atual”. Idem, p. 205.
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outros, ou da borracha no extremo-norte do país”4. Ao Rio Grande do Sul, segundo Júlio de
Castilhos, cabia o papel de ser fornecedor de produtos agrícolas e pastoris para os mercados
nacionais e para os estrangeiros do que lhe proviria o título de “celeiro do Brasil”5. Por sua
vez, a região de matas ocupava papel destacado, pois devido a sua “extraordinária produção
agrícola” a ela era dada a condição de ser “o primeiro celeiro do estado”6.
Todavia, a produção agrícola que, nas palavras do Presidente Borges de Medeiros em
1898, garantiria ao Rio Grande do Sul a condição de “provido celeiro da grande República”
era portadora de problemas, principalmente no que diz respeito à sua industrialização.
Conseqüentemente a condição de celeiro do país era constantemente colocada em perigo, uma
vez que a quantidade e a qualidade da produção rio-grandense não era suficiente para disputar
a primazia nacional contra a produção similar estrangeira: “os mercados consumidores do
norte do Brasil e até de nossa própria terra ainda recebem avultado suprimento de produtos
das indústrias da América do Norte e repúblicas do Prata”7. Tal inferioridade, de acordo com
o Presidente do Estado, era conseqüência, entre outros fatores, de uma “imperfeita instrução
agrícola”. Dessa maneira, cabia ao governo auxiliar na difusão do ensino racional e uma das
primeiras medidas tomadas foi a criação de uma estação agronômica industrial instalada em
Porto Alegre, que deveria servir de modelo para outras a serem implantadas nas regiões
agrícolas do estado.
Durante à Primeira República, grandes foram os esforços realizados pelo Estado no
sentido da difusão do ensino agrícola. É impossível realizar aqui uma descrição detalhada dos
mesmos, pois a política educacional rio-grandense, especialmente a voltada à instrução
agrícola, merece um estudo mais aprofundado. Entretanto, é necessário grifar a importância
da escola, dos cursos técnicos e dos esforços governamentais voltados a difundir o ensino
entre as populações rurais no período. Embora os resultados não tenham sido satisfatórios,
principalmente devido ao reduzido número de alunos(as) formados, os projetos e práticas de
instrução rural alcançaram certo êxito na difusão de conhecimentos e no treinamento das
populações rurais do Rio Grande do Sul8.
4 CASTILHOS, Júlio Prates de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Júlio Prates de Castilhos, na 3ª e penúltima sessão ordinária da 2ª legislatura, 20 de Setembro de 1896. Porto Alegre: Tipografia de César Reinhardt, 1895, p. 25. 5 Idem, ibidem. 6 MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 2ª sessão ordinária da 3ª legislatura, em 20 de Setembro de 1898. Porto Alegre: Oficinas tipográficas de A Federação, 1898, p. 30. 7 Idem, p. 12. 8 Sobre os cursos técnicos de agricultura, de capatazes rurais, postos zootécnicos e os institutos de formação técnica existentes no Rio Grande do Sul, a Mensagem enviada por Borges de Medeiros à Assembléia dos Representantes em 1920 traz uma descrição detalhada dos mesmos, suas atribuições, número de alunos e
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A análise das fontes evidencia que o foco das ações estatais era exercer um controle
sobre a privatização das terras devolutas, sendo que o motivo de tal interesse era garantir os
lucros que poderiam advir da comercialização das terras. Nesta perspectiva, a própria política
de colonização era um dos meios utilizados para aumentar os rendimentos, uma vez que
juntamente com a fundação de núcleos coloniais, fossem eles públicos ou privados, ocorria
uma valorização considerável das terras.
José do Nascimento, em sua tese de doutorado9, argumenta que a ação do Estado na
região de matas foi “tardia” e a razão do “atraso” governamental em gerenciar o processo de
ocupação daquele espaço esteve vinculada aos interesses de auferir lucros sobre a venda de
terras. Contudo, ao se analisar os documentos de época, especialmente os relatórios da DTC e
as mensagens dos presidentes é possível verificar que desde o início do período republicano
os esforços governamentais no sentido de controlar a apropriação de terras na região são
consideráveis e definem os rumos do povoamento, bem como o povoamento influi na
elaboração e alteração de alguns projetos políticos. Desse modo, penso que ao contrário de ser
tardia, a intervenção do Estado acompanhou o próprio ritmo do processo, se acentuou na
medida em que os espaços foram sendo consolidados, bem como foi proporcional a
capacidade administrativa de um governo recém formado em um regime ainda não
suficientemente consolidado. Em outros termos, dissociar o processo de formulação de
políticas públicas e a ação estatal do próprio processo de povoamento e suas vicissitudes pode
levar a conclusão de que o Estado agiu com uma certa morosidade. Entretanto, o próprio
Nascimento ao longo de seu estudo aponta circunstâncias que evidenciam não a morosidade
do Estado, mas um diálogo constante entre o que acontecia no “fazer-se” do povoamento e no
desenvolvimento das ações estatais. Por exemplo:
a preocupação com a apropriação e conseqüente ampliação do povoamento da região ao lado esquerdo do rio Uruguai foi antiga, basicamente desde a incorporação deste território ao Brasil. No entanto, (...), este aspecto somente será concretizado no final do século XIX, quando, entre outros, a pressão demográfica das primeiras colônias de imigrantes impulsionou os colonos para as áreas de matas do Planalto e do Alto Uruguai, concomitante a uma preocupação das autoridades de Cruz Alta em ampliar a sua presença, para diversificar a produção de alimentos. A floresta foi transformada em lavoura, a ferrovia impulsionou a agricultura, pois representou frete mais barato,
funcionamento. Cf.: MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Rio Grande do Sul, pelo Presidente do Estado Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 4ª sessão ordinária da 8ª legislatura, em 20 de setembro de 1920. (Documento datilografado do original, do serviço de pesquisa e documentação histórica do Museu da Assembléia – Rio Grande do Sul), p. 14-31. 9 NASCIMENTO, José Antônio Moraes. Derrubando a floresta, plantando povoados: a intervenção do poder público no processo de apropriação da terra no norte do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2007. (Tese de doutorado).
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permitindo acesso ao comércio. Assim, ao longo do final do século XIX e início do XX várias colônias de imigrantes, oficiais e particulares, foram fundadas na região, além de migrações espontâneas10.
Outro fator que leva Nascimento a definir a ação estatal na região como tardia foi a
atuação das companhias privadas de colonização, contudo, como o próprio autor reconhece, a
maior parte das colônias particulares fundadas no período, foram estabelecidas em áreas
adquiridas não do Estado, mas de proprietários locais11. Embora seja verificável que num
primeiro momento o Estado pouco interferiu em relação as práticas de colonização adotadas
por tais companhias, na medida em que o século XX avança, como veremos no próximo item,
o Estado passa a exercer maior controle sobre tais empreendimentos.
Considero que, no início do século XX, a pouca interferência do Estado nas áreas e
nos projetos de colonização particular foi resultado – especialmente, mas não só – da falta de
um aparato de governo consolidado capaz de gerenciar tal questão. Circunstância que fica
visível nas constantes críticas realizadas por parte dos agentes governamentais em relação a
falta de funcionários para controlar e definir a discriminação das terras, assim como para
gerenciar as colônias públicas e as questões relativas à demarcação das terras indígenas e ao
estabelecimento dos intrusos12. Portanto, antes de ser indício de uma “intervenção tardia”, as
práticas adotadas são reflexo do próprio contexto e encaixam-se dentro das possibilidades de
intervenção então vigentes. Assim, deve-se levar em conta, em primeiro lugar, que a principal
preocupação do Estado não estava na fundação e organização de colônias particulares, e sim
em garantir que os lucros provenientes da venda das terras teriam que ficar sob seu controle.
Em segundo, estava a necessidade de formar agricultores produtivos, os quais deveriam
produzir gêneros que garantissem ao Rio Grande do Sul a qualidade de “celeiro da nação” e,
dessa forma, aumentassem as rendas do Estado.
Quanto à questão fundiária propriamente dita, quando da passagem do Império para a
República, mais precisamente a partir de 1891, a administração das terras públicas passou a
ser responsabilidade dos Estados. No caso do Rio Grande do Sul, coube a lei de terras
estadual – decretada em 05 de outubro de 1899 e aprovada em 04 de julho de 1900 – o papel
de regular as questões relacionadas a constituição da propriedade da terra no estado. Segundo
a lei, eram consideradas terras devolutas aquelas áreas que não estavam aplicadas a algum
tipo de uso público da União, do Estado ou do Município; as que não haviam sido revalidadas
10 Idem, p. 188. 11 Neste sentido o autor escreve: “A apropriação das matas do vale do Uruguai também ocorreu pela ação de particulares, os quais compravam terras do Estado, mas principalmente de particulares, e procediam à criação de colônias particulares”. Idem, p. 312. 12 Este termo será definido mais detalhadamente adiante.
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e, caso fossem posses, legitimadas na forma da lei nº 601, de 18 de setembro de 1850; as
posses que, embora processadas de acordo com a lei de 1850, ainda não estivessem julgadas;
as posses sujeitas à legitimação pela nova lei estadual e as que não se achavam em domínio
particular por qualquer título legítimo.
A lei de terras estadual também estipulava normas para exploração e conservação das
regiões florestais, tanto públicas como particulares. Determinava que as posses anteriores a 15
de Novembro de 1899 só poderiam ser legitimadas “quando, constituídas de boa fé, tivessem
cultura efetiva e morada habitual do posseiro, uma vez que a legitimação seja requerida no
prazo irrevogável de dois anos, a contar da regulamentação da lei”13. Nesses casos, a área
legitimável resumiria-se a extensão cultivada e, sempre que possível, não deveria ser inferior
a 25 hectares nas terras de mata e a 50, nas de campo.
No texto da lei de terras do estado, está presente uma categoria que convém conhecer
melhor: a de posseiro. Paulo Zarth chama atenção para a existência, nas fontes, de uma série
de denominações que eram aplicadas aos homens livres pobres, as quais estavam, de acordo
com o autor, vinculadas às atividades econômicas de tais pessoas14. Quanto à categoria
posseiro propriamente dita, Zarth escreve que ela era destinada àqueles que “viviam em terras
públicas ou em processo de privatização, podendo ser ocupante de pequenas ou médias áreas
de terra”, mas, de um modo geral, “o posseiro era um camponês que ocupava pequenas áreas
e era vítima constante de expulsão à medida que avançava a fronteira agrícola”15. Em função
de não possuir documentos que legalizassem sua situação, os posseiros sofriam dificuldades
de toda ordem e, quando não eram alvo de contestações, “tinham problemas de falta de
recursos financeiros para legitimar as áreas que ocupavam”16. Assim, em algumas situações,
eram expulsos da terra, por exemplo, quando um proprietário poderoso legitimava a área sem considerar os direitos do posseiro. Em outros casos, o posseiro aparece como “vendedor” de sua posse: o trabalhador nacional era utilizado para permitir ao grande proprietário a legitimação da terra, à medida que argumentava que “comprara-a” do posseiro (...). Por outro lado, diante de um processo de mercantilização da terra, o lavrador nacional, na condição reconhecida de posseiro, vendia seus direitos sobre a terra a algum proprietário abastado ou aos imigrantes europeus17.
13 MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Lei nº 28 de 5 de Outubro de 1899: decreta e promulga a lei sobre terras públicas, p. 748. In.: IOTTI, Luiza Horn (Org.). Imigração e colonização: legislação de 1747 a 1915. Porto Alegre: Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul; Caxias: EDUCS, 2001, p. 747-749. 14 ZARTH, Paulo. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: UNIJUI, 2002, p, 168. 15 Idem, p. 169. 16 Idem, Ibidem. 17 Idem, p. 169-170.
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Em artigo sobre a origem da palavra posseiro, Márcia Motta sustenta que o termo, de
fato, “só existe na língua portuguesa, ou melhor, no português falado no Brasil”18. Ainda
segundo Motta, a palavra posseiro é obra de uma construção histórica e “seu sucesso depende
de todo um conjunto de procedimentos que fazem com que, ao pronunciá-la, possamos
expressar a dramaticidade do seu conteúdo”19. Tal construção está profundamente vinculada
ao processo de apropriação das terras no Brasil, ao conjunto de leis que ao longo da história
tentaram regular a questão e, igualmente, à forma como tais leis foram aplicadas, geralmente
beneficiando aos grandes proprietários.
No caso analisado pela autora, o Rio de Janeiro no período entre 1822 e 1850 – ou
seja, o espaço de tempo em que não existiu uma lei específica sobre terras no Brasil e em que
a posse foi a única forma de apropriação fundiária – Motta registra uma divisão no interior
dessa categoria social, pela qual de um lado estavam aqueles que “detinham poder de
imprimir pela força os limites de sua posse”; de outro, “os que privados deste mesmo poder,
eram obrigados a abandonar suas terras em cultivo para outrem”20. Conseqüentemente, nesse
período, as ações judiciárias – ações de embargo e de despejo – eram utilizadas para expulsar
pequenos posseiros, instalados em terras devolutas, visto que “ao abrir uma roçada, produzir
cultivos de subsistência e construir uma pequena choupana, os pequenos lavradores limitavam
a expansão dos fazendeiros”21.
As ações judiciais eram elaboradas a partir da “consagração da noção de invasor de
terras”, o que dificultava aos pequenos posseiros de se defenderem perante a justiça. Não
bastasse isso, a luta desses pequenos lavradores por preservar uma parcela de terra “era
obstaculizada pela ação violenta de expulsão, e pela consagração – na justiça – de que eram
eles, e não os fazendeiros os reais invasores”22. Há ainda outro elemento que gostaria de
enfatizar aqui. A relação entre pequenos e grandes posseiros é também marcada pela
intermediação, uma vez que, em muitos casos, um grande fazendeiro “usava” o pequeno
posseiro como um “testa de ferro” a fim de se apropriar de extensas áreas de terras. Em outros
termos, a terra era registrada em nome de um pequeno posseiro – muitas vezes com sua
anuência – para logo em seguida ser “vendida” a um grande.
18 MOTTA, Márcia Menendes. A coerção na ausência da lei: posseiros e invasores nos oitocentos (1822-1850), p. 147. In.: ASSIS, Ângelo Adriano Faria de; SANTANA, Nara Maria Carlos de; ALVES, Ronaldo Sávio Paes. Desvelando o poder: histórias de dominação: Estado, religião e sociedade. Niterói: Vício de Leitura, 2007, p. 147-162. 19 Idem, p. 148. 20 Idem, p. 155. 21 Idem, p. 159. 22 Idem, ibidem.
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Mesmo após a lei de terras de 1850, a situação dos pequenos posseiros não muda,
embora tal lei expressasse um esforço no sentido de reconhecer a legitimidade da posse como
um direito pretérito à terra. Aos lavradores pobres existiam um sem número de problemas
comprometendo seu acesso à propriedade da terra: desinformação sobre o funcionamento das
leis, a falta de recursos, a própria estrutura social em que estavam inseridos, etc... Assim,
mesmo após a lei de 1850, na prática, “as tentativas de regularizar as posses dos pequenos
posseiros foram fracassadas, seja pela cumplicidade dos órgãos de justiça, seja pela ação
direta de violência contra os cultivadores humildes”23.
Motta demonstra que há uma diferença entre ser um posseiro rico e ser um pobre, uma
vez que enquanto os fazendeiros eram identificados como desbravadores e tomados como
cúmplices do enriquecimento das províncias, o que, entre outras coisas é resultado da sua
proximidade com o Estado e da sustentação que davam ao governo, os lavradores pobres eram
identificados como invasores. No caso do Rio Grande do Sul do período republicano, como
veremos adiante, também é possível encontrar registros da separação entre posseiros ricos e
pobres, sendo que em específico uma outra categoria também é constante nos documentos: a
de intruso, que em muitas situações também é acionada como sinônimo de invasor.
Entretanto, tal categoria não se restringe apenas aos nacionais como tradicionalmente é
afirmado, mas a partir de um dado momento, quando as populações das colônias velhas
passam a se direcionar para as zonas de fronteira agrária sem a intervenção dos aparelhos de
Estado responsáveis por gerenciar o povoamento, elas também passam a receber o
qualificativo de intrusas.
Todavia, antes de fazer a análise desse processo, convém conhecer mais
detalhadamente a lei e o regulamento de terras estadual de 1899 e 1900. De acordo com o
regulamento da lei, aprovado em 04 de julho de 190024, o serviço de terras públicas ficaria
sob direção e fiscalização da SENOP. Era tarefa desta secretaria zelar pelo patrimônio
territorial do Estado, extremar o domínio público do particular, providenciar sobre a
conservação, medição, divisão, demarcação, verificação, concessão, venda e reserva das terras
públicas, bem como sobre a legitimação de posses. Expedir títulos de domínio de terras que
fossem assinados pelo Presidente do Estado e, para cumprir estas e outras obrigações poderia
pedir auxílio aos agentes do Ministério Público, às autoridades policiais e aos agentes fiscais
do Estado. Segundo os termos da lei, também seriam nomeadas algumas comissões especiais
23 Idem, p. 160. 24 PAROBÉ, João José Pereira. Decreto nº 313 de 4 de Julho de 1900: aprova o regulamento para execução da Lei nº 28, de 5 de Outubro de 1899. In.: Luiza Horn Iotti (Org.). Idem, op, cit., p. 752-774.
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– as Comissões Verificadoras – que se responsabilizariam pela discriminação de terras e de
verificação, medição e legitimação de posses.
Da mesma maneira, o regulamento determinava que as posses estabelecidas
posteriormente a data de 15 de novembro de 1889 não seriam legitimáveis, mas poderiam ser
adquiridas mediante a indenização dos seus devidos valores e que “o posseiro, sesmeiro ou
concessionário” que não solicitasse o título de propriedade dentro do prazo fixado de dois
anos incorreria em “multa equivalente ao dobro dos emolumentos que tivesse de pagar”25. Em
termos legais, embora o apossamento juridicamente fosse proibido desde a lei de terras de
1850, que determinava a compra como única forma de acesso à terra, a partir da República e
com a passagem do controle das terras devolutas aos estados, no caso do Rio Grande do Sul,
apenas as posses estabelecidas a partir da Proclamação não seriam legitimáveis e deveriam ser
compradas. Isto é, a lei de terras estadual de 1899 anulava uma determinação da lei de terras
de 1850. Conseqüentemente, as posses estabelecidas entre 1850 e a proclamação da
República, no Rio Grande do Sul, de acordo com os dispositivos da lei de terras estadual,
poderiam ser legitimadas sem necessariamente terem sido compradas. Diante da situação a
que estavam submetidos os pequenos posseiros, isto é, impossibilidade de, em sua maioria,
conseguirem o registro oficial das terras que ocupavam devido ao conjunto de entraves
relatados acima, este dispositivo da lei de terras estadual teve como fim preciso, não há
dúvidas, beneficiar os grandes proprietários locais.
Tradicionalmente a historiografia que trata da questão agrária no Rio Grande do Sul da
Primeira República estabelece a lei de terras estadual como um marco, um divisor de águas
entre um antes e um depois, cuja característica principal é legitimar a propriedade privada e o
avanço de relações capitalistas em direção ao campo, além de ser um exemplo de como
ocorreu o processo de implantação do projeto de hegemonia peculiar ao PRR e aos
castilhistas26. Em conseqüência, tais análises observam essa lei apenas a partir de alguns de
seus pontos e não levam em consideração que, durante a Primeira República, como é possível
verificar ao longo dos relatórios da Diretoria de Terras e Colonização e das mensagens dos
presidentes de Estado, o processo de aplicação da lei foi mais complexo do que a primeira
vista pode parecer. Assim, se é possível estabelecer os motivos e os fins da legislação agrária,
sua prática e a aplicação dos preceitos da lei acabaram resultando em processos diferenciados,
muitos dos quais fugiam ao controle dos legisladores e levaram a alteração em alguns dos
25 Idem, ibidem. 26 Um exemplo desse tipo de interpretação encontra-se em: KLIEMANN, Luiza H. Schmitz. RS: terra e poder. História da questão agrária. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986.
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dispositivos da lei, seja para torná-los mais de acordo com a realidade que estava sendo
legislada, seja para garantir um controle sobre os conflitos que poderiam advir da sua
aplicação ipsis litteris.
Muitas das prescrições da lei de terras estadual não eram possíveis de serem colocadas
em prática, justamente em função do modo como se desenvolvia o processo de povoamento.
A impossibilidade de aplicar a lei de terras em sua totalidade estava vinculada também às
pressões que o Governo do Estado sofria por parte dos grandes proprietários que viam na
aplicação da referida lei um entrave na efetivação de seus interesses de apossamento. Da
mesma forma, os grupos “mais pobres” não ficaram imóveis a aplicação dos preceitos
estabelecidos pela lei de terras e, a seu modo, exerceram pressão no sentido de que algumas
alterações fossem realizadas. Tais circunstâncias levaram à expedição de um grande número
de decretos e instruções que buscavam solucionar situações que a referida lei de terras não
conseguia resolver ou que, ao fim e ao cabo, eram resultado das tentativas de sua implantação.
Nessa perspectiva, José Braz de Faria, chefe da seção do expediente, em relatório apresentado
ao secretário de Obras Públicas em 1916, escrevia:
o artigo 13 do regulamento de 4 de julho de 1900 determina que seja consignado em sentença dos autos, prazo para que o legitimante extraia o título de sua posse, sob pena de pagamento de emolumento em dobro. Apesar de marcado tal prazo, não deu resultado a medida. Uma providência, pois, que ativasse a extração ou compelisse o interessado a isso, seria não só conveniente como necessária27.
No mesmo sentido, no relatório da DTC de 1919, Carlos Torres Gonçalves registrava
que “modificações sucessivas introduzidas no último Regulamento de 4 de Julho de 1900
foram fazendo sentir a necessidade da reforma do mesmo, afim de harmonizá-lo com as
condições atuais dos serviços”28. Dentre as mudanças sugeridas por Torres Gonçalves,
destacam-se a simplificação dos processos de legitimação sujeitos ao regulamento de 1900 –
“transformando-os em simples concessões das áreas que seriam legitimáveis, mediante o
pagamento somente das despesas de demarcação”29 –, a facilitação no andamento dos
processos pendentes pela lei de 1850, a instituição de medidas voltadas a proteção dos
27 FARIA, José Braz de. Relatório da secção do expediente, p. 08. In.: ALVES, Protásio. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. General Salvador Ayres Pinheiro Machado, vice-presidente em exercício, do Estado do Rio Grande do Sul pelo Dr. Protásio Alves Secretário de Estado, interino, dos Negócios das Obras Públicas, em 09 de setembro de 1916. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1916, p. 03-15. (AHRS - OP. 41). 28 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 360. In.: PINTO, Ildefonso Soares. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 27 de agosto de 1919. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1919, p. 347-452. (AHRS - OP. 54). 29 Idem, ibidem.
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nacionais, cuja prática já era realizada desde a implantação da Colônia Santa Rosa em 1915,
mas que ainda não era regulada por lei.
Além dessas, Gonçalves também sugere a instituição de novas medidas voltadas à
proteção dos indígenas, melhoramento nos trabalhos de colonização para facilitar a
“assimilação dos estrangeiros pelos nacionais, de modo a conservar, aperfeiçoando-os, nas
características de nossa nacionalidade”30, entre outras mais, cuja presença verificava-se no
regulamento de 1900, mas que, sublinhava o diretor da DTC, a prática de sua aplicação exigia
que elas fossem reformadas. Como é possível verificar, o conjunto de mudanças propostas
não oferecia grandes facilidades aos lavradores pobres, apesar de referir-se à regularização e
melhoramento dos serviços referentes aos nacionais, aos indígenas e à colonização. Conforme
já tratei no capítulo anterior, tais medidas tinham o sentido de transformar esses grupos em
economicamente produtivos e alterar as suas formas tradicionais de se relacionarem com o
espaço e com a agricultura.
Assim, em 1923, pelo decreto nº 3.004 de 10 de agosto, foi aprovado novo
regulamento de terras públicas, o qual consolidou as modificações entendidas como
necessárias para “atualizar” e “aperfeiçoar” o regulamento de 1900 e “dispôs sobre as
condições fundamentais mais gerais e estáveis dos serviços, deixando os detalhes de execução
destas para instruções que já se achavam quase concluídas” 31. As mudanças, de acordo com o
secretário de Obras Públicas, Idelfonso Soares Pinto, foram feitas a partir da experiência
adquirida ao longo dos anos e, como fica visível na citação, a experiência também
determinava que o novo regulamento deveria se preocupar apenas com problemas mais
fundamentais enquanto que os “detalhes” seriam regulados por “instruções”.
Em outras palavras, o que o secretário de obras públicas chama de “detalhes” pode ser
traduzido por problemas, os quais foram peculiares ao processo de ocupação do espaço e
constituição dos limites entre propriedade pública e privada da terra no Rio Grande do Sul.
Conseqüentemente, compreendê-los é de importância inquestionável para conhecer o modo
como a questão de terras foi legislada e a propriedade fundiária estabelecida. Logo, entender a
lei de terras estadual, seus respectivos regulamentos e os diversos decretos e instruções
referentes à apropriação de terras elaborados no Rio Grande do Sul da Primeira República
apenas como uma representação do domínio dos castilhistas ou tratá-los como simples
30 Idem, ibidem. 31 PINTO, Ildefonso Soares. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Ildefonso Soares Pinto Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 15 de agosto de 1923. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1923, p. LIII. (AHRS - OP. 65).
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expressões do avanço de relações capitalistas em direção ao campo sem aprofundar o sem
número de problemas relacionados a esse processo é não dar a devida atenção a aspectos
importantes que, não à toa, o secretário de obras públicas, o próprio Torres Gonçalves e os
presidentes de Estado insistiam em apresentar como detalhes. Assim, passo a descrever
alguns desses detalhes.
Em 1900, Nelson Coelho Leal, engenheiro responsável pela Comissão Verificadora de
Posses e Discriminação de Terras em Santa Cruz escreve que a discriminação de terras
públicas era medida urgente mais até do que a verificação das medições de posses já
legitimadas. O engenheiro registra que estava ocorrendo “uma constante invasão de terras
públicas por parte de imorais especuladores, que, usando dos mais criminosos processos,
conseguem a cada dia apossar-se de preciosas parcelas do domínio territorial do Estado”32
(grifos meus). Nota-se aqui o emprego do termo invasão para identificar especuladores que se
apossavam de terras públicas e depois as revendiam divididas em lotes, geralmente de 25
hectares, seja a posseiros que já viviam nessas áreas, a imigrantes ou a indivíduos vindos das
colônias velhas. Em tal caso, como exemplificarei adiante, os posseiros que viviam nessas
áreas, quando não tinham meios de comprar suas posses, eram expulsos de modo violento.
A situação descrita por Nelson Coelho Leal e seu ato de identificar os especuladores
como invasores está relacionada ao interesse do Estado em exercer um controle sobre o
povoamento e os possíveis lucros que poderiam advir da comercialização das terras33. Desse
modo, um outro aspecto vem à tona: para os funcionários de Estado, principalmente para
aqueles que atuavam em instâncias mais centrais, exercer um controle sobre o a ocupação das
terras, enquanto discurso e política de Estado, era fundamental. Contudo, a prática da
ocupação fugia ao controle e, nas fontes analisadas, não encontrei nenhum exemplo de
anulação dos “atos criminosos”, a não ser alguns casos em que o pedido de reconhecimento
de áreas extensas pelo registro Torrens são negadas, porém tratavam-se de pedidos que eram
notoriamente mau elaborados. Não obstante, exemplos de pequenos posseiros expulsos são
recorrentes.
32 LEAL, Nelson Coelho. Comissão verificadora de posses e de discriminação de terras públicas em Santa Cruz, p. 179. In.: PAROBÉ, João José Pereira. Relatório dos Negócios de Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Desembargador Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 31 de julho de 1900. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1900, p. 179-188. (AHRS - OP. 08). 33 Sobre esta questão José Nascimento escreve: “(...) o problema não se encontrava no fato de ‘invadir-se’ terras devolutas, mas sim desses ‘especuladores’ fazerem-no à margem do Estado, ou seja, sem que este fizesse a concessão e, portanto, vendesse e lucrasse com tal ato. De fato, não havia preocupação efetiva em proteger as matas, mas sim em evitar prejuízos em não comercializá-la, nem tampouco a preocupação com a cobertura vegetal das florestas do estado”. Cf.: José Antônio Moraes do Nascimento. Idem, op. cit., p. 178.
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Ainda de acordo Nelson Coelho, passado o regime imperial e “devido à severidade do
governo republicano”, os especuladores haviam abandonado o sistema de aquisição fornecido
pela lei de terras de 1850 e “encastelaram-se sofregamente no registro Torrens”34. Os
relatórios da DTC trazem uma série de exemplos sobre as tentativas de utilizar o Torrens para
legitimar áreas reconhecidamente do Estado. Na generalidade, tratam-se de áreas extensas
como a “negada inscrição requerida por Adão Hoffmann, no município de Passo Fundo, de
um imóvel com área de 49.158.484 metros quadrados [4.915 hectares]” ou as petições de
“Mathias Steffens e Diogo da Silva Rocha, também de Passo Fundo, relativas a imóveis com
área total de 67.237.845 metros quadrados [6.723 hectares]”35.
Segundo informações do relatório de Francisco Ávila Silveira, chefe da 2ª seção da
Secretaria de Obras Públicas, a qual, antes da criação da DTC, era responsável pelos assuntos
relacionados a terras e colonização, o engenheiro Augusto Pestana, chefe da comissão de
terras de Cruz Alta, Passo Fundo, Santo Ângelo e Palmeira das Missões, havia embargado as
petições de registro Torrens feitas por Mathias Steffens e Diogo Rocha por considerar as
terras requeridas devolutas, “em vista da falta de documentos que provem o direito dos
requerentes”36. Ainda acrescentava que o exame de muitos Registros realizados nesses
municípios daria lugar a muitas ações de nulidade, pois “principalmente em Passo Fundo, o
patrimônio do Estado se acha extraordinariamente lesado, tendo sido abusivamente inscritas
grandes extensões de terras do domínio público”37. No entanto, não há informações se
realmente tais Registros foram anulados.
Em 1904, o relatório de Augusto Pestana traz novas informações a respeito da
utilização do registro Torrens e afirma que “felizmente cessou a prática abusiva das tentativas
de inscrição no registro Torrens de terras pertencentes ao Estado e em geral de grandes
áreas”38. No período a que se referia o relatório, segundo Pestana, não havia sido requerido
nenhum novo registro na área sob responsabilidade da comissão por ele administrada. Os
relatórios dos responsáveis pelas comissões de verificação e da Secretaria de Obras Públicas
34 Nelson Coelho Leal. Idem, op, cit., p. 179. 35 SILVEIRA, Francisco de Ávila. Diretoria de Obras Públicas, 2ª secção de terras e colonização em Porto Alegre, p. 37. In.: PAROBÉ, João José Pereira. Relatório dos negócios de Obras Públicas apresentado ao Exmo. Sr. Desembargador Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 31 de julho de 1902. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1902, p. 33-48. (AHRS - OP. 10A). 36 Idem, ibidem. 37 Idem. 38 PESTANA, Augusto. Comissão verificadora de posses e discriminação de terras públicas em Ijuí, p. 115. In.: PAROBÉ, João José Pereira. Relatório dos negócios de Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 24 de Agosto de 1904. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1904, p. 113-116. (AHRS - OP. 11).
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mostram também os meios utilizados para burlar os preceitos estipulados, tanto pelo registro
Torrens como pela lei de terras estadual.
Assim, no relatório da Secretaria de Obras Públicas de 1904, C. Silva da Silveira,
responsável pela comissão verificadora de posses de Passo Fundo e Soledade, escreve que
após ser substituído o juiz da comarca de Passo Fundo, “cessaram por completo as inscrições
no registro Torrens nessa cidade e no da Soledade”39. Inclusive o chefe dessa comissão
menciona a existência de autos de Registro onde as escrituras apresentadas por um certo
Ângelo Cornélio de Almeida Gralha, “para terem cunho de antiguidade, sofreram a pressão de
um ferro quente, conforme se nota a primeira vista”40. Ainda segundo Silva da Silveira, os
abusos na região de Passo Fundo e Soledade das legitimações pela lei de 1850 e regulamento
de 1854 “foram tão grandes que existem obtidas por este meio uma fazenda com área de 21
léguas quadradas [75.600 hectares], outra com a área de 16 léguas quadradas [57.600
hectares] e várias de 5 [18.000 hectares] a 8 [28.800 hectares] léguas quadradas de áreas”41.
Carlos Torres Gonçalves, no relatório da DTC de 1909, anota que boa parte dos
registros Torrens realizados não davam a devida atenção às exigências da lei. Muitos dos
títulos expedidos reportavam-se a situações imaginárias, portanto, nada garantiam quanto à
legitimidade das terras e freqüentemente as plantas realizadas não passavam “de grosseiros
levantamentos a bússola, ou mesmo de simples croquis”42. Fato que trazia sérios problemas
ao Estado, já que a tarefa de definir os limites entre a propriedade pública e privada das terras
estava na base dos serviços de colonização e, como passarei a tratar dentro em pouco, a
inexistência de certezas sobre tais limites levou à fundação de colônias em áreas
posteriormente consideradas privadas. Em conseqüência, o Estado teve que fazer todo um
trabalho de indenizações, que acarretaram no aparecimento de novos inconvenientes.
Contudo, deve-se questionar se tais áreas realmente eram privadas ou, no caso de serem
devolutas, foram requeridas com anuidade de alguns funcionários do Estado, a partir do uso
de formas escusas de legitimação, pois segundo as ponderações de Torres Gonçalves:
39 SILVA SILVEIRA, C da. Comissão verificadora de posses e de discriminação de terras públicas em Passo Fundo e Soledade, p. 133-134. In.: João José Pereira Parobé, 1904. Idem, p. 129-134. 40 Idem, ibidem. A prática utilizada por Ângelo Gralha pode ser definida como uma típica ação de grilagem, isto é, ato de falsificação dos documentos de propriedade a fim de dar-lhes cunho de antiguidade e veracidade, cuja presença é constante na história da apropriação da terra no Brasil. 41 Idem, ibidem. 42 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 81. In.: GODOY, Candido José de. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, Candido José de Godoy, em 27 de agosto de 1909. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1909, p. 77-114. (AHRS - OP. 20).
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o que esta Diretoria acaba de expor [sobre os limites das propriedades] equivale, portanto, a dizer que, nos casos figurados, o Governo deve desistir de qualquer discussão sobre a origem da propriedade, para promover uma verdadeira acomodação, as circunstâncias que revestiram a constituição da propriedade. E compreende que assim como, nos pedidos de indenização de terras de que o Estado dispôs e cujos títulos possam ser considerados bons ou já o tenham sido, segundo o critério que vimos de expor, as áreas consignadas nesses títulos nem sempre poderão ser tomadas para base das indenizações. De fato, casos há em que a área do terreno é maior do que a dos títulos outros em que ela é menor, e ainda outros em que existe a complicação de títulos se superpondo. Não falando nos casos em que os títulos descrevem uma situação imaginária. Portanto, cada caso precisa ser considerado em separado, e resolvido segundo as suas condições particulares43. (Grifos do autor).
Ao propor uma “verdadeira acomodação” e a desistência do Governo em entrar nas
discussões a respeito da origem da propriedade, Torres Gonçalves não estava mais que
reconhecendo a ineficácia do Estado para gerenciar a questão fundiária. Assim, dava amplas
margens de manobras para que os grandes proprietários continuassem praticando o
apossamento de extensas áreas. Situação que deixava os pequenos posseiros, em certo sentido,
alheios ao processo de apropriação fundiária, contudo, como veremos adiante, não lhes
retirava completamente as margens de ação e resistência ao processo.
Antes de seguir adiante na análise das fontes, cabe fazer uma breve reflexão sobre o
Registro Torrens, uma vez que sua presença é constante nos documentos, especialmente nos
primeiros anos da recém implantada República. O Registro tem por fonte de inspiração uma
proposta de lei elaborada por Robert Torrens e seu objetivo original era “por fim à confusão
em matéria de títulos de domínio, transferências e aquisições da propriedade imóvel”44 na
região onde vivia seu autor, filho de um dos fundadores da colônia da Austrália do Sul. No
Brasil, foi implantado em 1890 e, enquanto política de Estado, segundo Márcia Motta e Sônia
Mendonça, “se coadunava com a percepção de certo segmento de políticos liberais
[aglutinados em torno de Rui Barbosa] acerca dos ‘reais problemas’ do país e das possíveis
soluções a serem postas em prática” 45. Assim, além de em seus 85 artigos buscar consolidar
um mercado de terras no país, o Registro também visava acabar com os problemas
“envolvendo os títulos de domínio e aquisição da propriedade imóvel”46. Em linhas gerais,
43 Idem, ibidem. 44 As citações utilizadas são retiradas de texto fornecido pelas autoras em formato WinWord, portanto, não tenho como fazer referência às páginas das mesmas. O artigo foi publicado na Revista Brasileira de Pós Graduação em Ciências Sociais da Universidade de Brasília. Cf.: MOTTA, Márcia Menendes; MENDONÇA, Sônia Regina. Continuidade nas rupturas: legislação agrária e trabalhadores rurais no Brasil de inícios da República. In.: Revista Brasileira de Pós Graduação em Ciências Sociais, Brasília, v. VI, p. 127-147, 2002. 45 Idem. 46 Idem.
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pretendia ser um “acerto de contas” com o passado e almejava definir os limites entre os
domínios para, “ao menos em tese, minimizar a prática de invasão de terras devolutas e sua
transformação em propriedade privada, tal como instituído ao arrepio da lei de 1850”47. Para
fazer o Registro funcionar, o Governo Provisório da República reorganizou a Inspetoria Geral
de Terras e Colonização – instituição que havia sido criada em 1854 com o regulamento da lei
de terras e que havia fracassado no objetivo de regularizar as terras devolutas do Império,
além de não ter conseguido discriminá-las.
No contexto da Primeira República, o registro Torrens demonstra a existência de um
esforço, pelo menos por parte da coalizão de forças envolvida na sua formulação e
implementação, no sentido de “redefinir as funções do Estado no que dizia respeito à
discriminação e demarcação de suas terras” e visava “reorganizar o espaço, definindo as terras
privadas”48. Contudo, a primeira Constituição Republicana promulgada em 1891, ao passar
para os governos estaduais a responsabilidade pela discriminação das terras devolutas, acabou
retirando força do Registro e favorecendo os chefes políticos locais.
Assim, “a opção por descentralizar o problema das terras devolutas acabou por agravar
o problema da distribuição de terras no país”49, pois deu maior margem de manobras às elites
locais e para seus conchavos com os governos estaduais. Embora a Constituição de 1891
tenha retirado o papel central que havia sido pensado ao Registro Torrens quando de sua
implantação, no caso do Rio Grande do Sul ele continuou sendo utilizado em alguns
processos de legitimação de terras, visto que há pedidos datados dos primeiros anos do século
XX. Entretanto, à medida que o século avança, as referências ao Torrens, tanto nos relatórios
da DTC como nas mensagens dos presidentes, diminuem a ponto de na segunda década
desaparecerem.
Efetivamente, como venho pontuando, o problema, além de estar na legislação e na
sua parcialidade, está na forma como aconteceu a aplicação das leis. Por conseguinte, a
pergunta que me preocupa diz respeito ao porquê de, mesmo diante da existência de uma
legislação, seja ela parcial ou não, voltada a definir uma solução ao problema fundiário, ao
longo dos relatórios dos responsáveis por administrar a tarefa, são constantes os registros da
“insignificante quantidade do número de posseiros que têm requerido a legitimação de
posses”50. Da mesma forma, a presença de denúncias a respeito de fraudes na legitimação de
47 Idem. 48 Idem. 49 Idem. 50 PESTANA, Augusto. Comissão verificadora de posses e de discriminação de terras públicas em Ijuí, p. 104. In.: João José Pereira Parobé, 1902. Idem, op. cit., p. 102-104.
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áreas também ocupa espaço importante nos relatórios. A fraude e a relativa ausência de
pedidos para legitimação de posses – especialmente as pequenas –, portanto, foram aspectos
importantes para regular o modo como aconteceu a constituição da propriedade fundiária no
Rio Grande do Sul. Foi burlando as leis ou as “desconsiderando” que o processo de
apropriação da maior parte das terras no estado se desenvolveu. Daí a ser importante, para
análise, realizar um esforço de interpretação das diferentes legislações que existiram, já que
elas por si só não explicam muita coisa.
O relatório da comissão verificadora de posses de Jaguari, datado de 1902, traz um
exemplo esclarecedor dessa circunstância. No caso descrito por Vespasiano de Souza
Almeida, então responsável pela comissão, consta a legitimação de uma posse no nome de
Jacob Luiz Laydner, o qual “não havia residido um só dia e nem cultivado a área requerida”51,
mas que mesmo assim, a partir do uso de uma série de estratagemas, havia conseguido
legitimar a posse em seu nome. Segundo o chefe da comissão, a área tinha em torno de
8.000.000 metros quadrados (800 hectares), era habitada a mais de 30 anos por “pobres
agricultores”, que acreditavam estar estabelecidos em terrenos do governo e “em virtude da
mais odiosa das espertezas, vêem-se obrigados judicialmente a abandonarem suas lavouras e
verem incendiados seus ranchos e seus estabelecimentos”52. Vespasiano de Almeida conclui
que sobravam motivos para o governo mandar reverter tal posse ao domínio do Estado,
contudo, no relatório, não consta se isso realmente foi feito. Este é um exemplo concreto de
quanto a legislação formulada para resolver o problema fundiário foi parcialmente aplicada,
pois quem realmente tinha direitos, nos termos das leis, para requerer a posse – os pobres
agricultores – não o fizeram. No entanto, a propriedade da posse foi legitimada a partir de uso
de recursos ilícitos.
Uma outra questão possível de ser formulada a partir das situações que venho
descrevendo refere-se às razões da existência da lacuna entre as exigências contidas nos textos
das leis responsáveis por legislar a questão fundiária e a sua aplicação efetiva. As pesquisas
referentes a esse assunto ultimamente têm demonstrado que a propriedade no Brasil,
principalmente a grande, foi estabelecida ao arrepio da legislação ou a partir do uso escuso da
mesma. Márcia Motta, no artigo Sesmarias e o mito da primeira ocupação, demonstra como,
mesmo diante da circunstância de a maioria das concessões de sesmarias não terem sido
acompanhadas dos procedimentos exigidos para sua regulamentação e, portanto, estarem
51 ALMEIDA, Vespasiano de Souza. Comissão verificadora de posses e de discriminação de terras públicas em Jaguari, p. 114. In.: João José Pereira Parobé, 1902. Idem, op. cit., p. 113-119. 52 Idem, ibidem.
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majoritariamente em situação de comisso, os documentos de sesmarias eram, durante o
oitocentos e são ainda hoje, recorrentemente “apresentados como se eles expressassem – sem
discussão – a verdade absoluta da área ocupada”53. Assim, argumenta a autora, não é o
cumprimento dos procedimentos que exigia a lei que determina a efetividade da ocupação,
mas a posse do documento de sesmaria, visto que o simples fato de possuí-lo traz “vantagens
incomensuráveis ao litigante, autor de um processo envolvendo pequenos posseiros. A carta,
ao revelar a dimensão simbólica de seu poder, tornava-se a expressão da verdade que se
queria imprimir”54.
Ao aplicar as constatações de Márcia Motta para situação aqui analisada, poder-se-á
perceber que o procedimento de burlar os preceitos da legislação agrária com fins de
apropriação de extensas áreas, geralmente habitadas por pequenos posseiros, é tão antiga
quanto a história da ocupação da terra no Brasil. O que aconteceu no Rio Grande do Sul da
Primeira República pode ser compreendido como uma atualização de tais procedimentos em
relação a outras leis. O estudo de Leonarda Musumeci sobre o processo de ocupação de terras
no estado do Maranhão, em áreas consideradas de fronteira agrária, igualmente evidencia
como, naquele contexto, em meados das décadas de 60 e 70 do século XX, tais fatos
repetiam-se e as mais diferentes estratégias foram usadas para legitimar a propriedade de
grandes áreas em nome de alguns poucos indivíduos em detrimento de muitos lavradores
pobres55.
De maneira geral, especificar que historicamente existe uma distância entre as leis e
sua aplicabilidade não explica o porquê dessa peculiaridade. Muito provavelmente tal
característica não seja singular ao contexto estudado, porém é comum aos diferentes sistemas
jurídicos existentes. Assim, a explicação do fenômeno pode estar relacionada à forma como se
estrutura, em termos bourdiesanos, o campo jurídico, cuja compreensão deve ser apreendida
no universo social específico em que tal campo se produz e se exerce. Segundo Bordieu, a
autoridade jurídica, responsável, entre outras coisas, por formular as leis e, sobretudo, por sua
universalidade e aplicabilidade constitui-se de maneira relativamente independente em relação
às pressões externas a que constantemente é submetido. Conseqüentemente,
53 MOTTA, Márcia Menendes. Sesmarias e o mito da primeira ocupação, p. 03. In.: http://www.tj.rs.gov.br/institu/memorial/RevistaJH/vol4n7/03_%20M%E1rcia%20M_%20Menendes%20Motta%20formatado.pdf. Artigo coletado no dia 15/08/2007, as 14 horas. A versão impressa desse artigo encontra-se na Revista Justiça & História, Rio Grande do Sul, v. 4, nº. 7, p. 61-83, 2004. 54 Idem, p. 08. 55 Cf.: MUSUMECI, Leonarda. O mito da terra liberta: colonização ‘espontânea’, campesinato e patronagem na Amazônia Oriental. São Paulo: Edições Vértice, 1988.
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as práticas e os discursos jurídicos são produto do funcionamento de um campo cuja lógica específica está duplamente determinado: por um lado, pelas relações de força específicas que lhe conferem sua estrutura e que orientam as lutas de concorrência ou, mais precisamente, os conflitos de competência que nele têm lugar e, por outro lado, pela lógica interna das obras jurídicas que delimitam em cada momento o espaço dos possíveis e, deste modo, o universo das soluções propriamente jurídicas56.
A Lei, nessa forma de pensar, na sua significação prática, determina-se pela e na
confrontação entre diferentes corpos animados de interesses específicos divergentes, os quais
ocupam, mas não necessariamente, posições diversas na hierarquia interna do corpo que
forma o campo jurídico. A aplicação de uma regra estipulada por uma determinada Lei a um
caso particular é uma confrontação “de direitos antagonistas entre os quais o Tribunal deve
escolher”57. A escolha feita pelo Juiz é influenciada por outras regras retiradas de casos
precedentes. No entanto, como nunca há dois casos perfeitamente idênticos, cabe ao Juiz
“determinar se a regra aplicada ao primeiro pode ou não ser estendida de maneira a incluir um
novo caso”58. O Juiz tem uma certa autonomia de escolha que, por sua vez, define a sua
posição “na estrutura da distribuição do capital específico de autoridade jurídica”59. Em
exemplo supra citado, trato da substituição, em 1904, do Juiz da Comarca de Passo Fundo e
Soledade em função de ele estar reconhecendo registros Torrens fraudulentos. A partir das
constatações de Bourdieu, é possível melhor compreender tal substituição, visto que, segundo
informações do chefe da comissão verificadora de posses, C. Silva Silveira, depois da
mudança os pedidos de registro Torrens cessaram naqueles municípios. Então, era a
autoridade do referido Juiz que provinha da posição que ocupava dentro do campo jurídico
que conferia a ele poder para definir como legítimas posses notoriamente fraudulentas.
Em outros termos, o veredicto do Juiz devido ao seu papel social e ao seu poder de
resolver conflitos pertence, segundo Bourdieu, “à classe dos atos de nomeação ou de
instituição” e representa por excelência a “palavra autorizada, palavra pública, oficial,
enunciada em nome de todos e perante todos” 60. A capacidade dos agentes que atuam como
mandatários autorizados da coletividade de formular categorizações reconhecidas
universalmente são “atos mágicos”, já que conseguem que “ninguém possa recusar ou ignorar
o ponto de vista, a visão, que eles impõem”61. Por conseguinte, “o direito consagra a ordem
56 BOURDIEU, Pierre. A força do direito. Elementos para uma sociologia do campo jurídico. In.: ___. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p. 211. 57 Idem, p. 222. 58 Idem, ibidem. 59 Idem. 60 Idem, p. 236-237. 61 Idem, ibidem.
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estabelecida ao consagrar uma visão desta ordem que é uma visão do Estado, garantida pelo
Estado”, ele é “a forma por excelência do poder simbólico de nomeação”, que tem o poder de
criar as coisas nomeadas e “em particular, os grupos; ele confere a estas realidades surgidas
das suas operações de classificação toda a permanência (a das coisas) que uma instituição
histórica é capaz de conferir a instituições históricas”62.
Entretanto, o direito só faz o mundo social em função de ele ser feito por este. Só na
medida em que os atos simbólicos de nomeação formulados pelo direito e pelas leis estão
ajustados àquilo que caracteriza o mundo social de que fazem parte que “tais atos têm toda a
sua eficácia de enunciação criadora”63. Voltando ao caso do Juiz da Comarca de Passo Fundo
e Soledade, seus atos estavam tão de acordo com o contexto e as práticas sociais em que eles
aconteciam que os Registros por ele reconhecidos – mesmo fraudulentos – tornavam-se
legítimos, e a alternativa encontrada pelo Estado para combater tais atos foi transferi-lo para
outra Comarca, sendo que em momento algum a autoridade de nomeação do Juiz foi
questionada. Em outros termos, favorecer um grande proprietário em seus interesses de
apossamento de grandes áreas de terras não era considerado uma falha grave, pelo contrário, a
simples transferência do Juiz para uma outra Comarca dá a entender que ele apenas cometeu
um erro habitual desmerecedor de punições mais severas, por exemplo, seu afastamento do
cargo que exercia.
O campo jurídico, segundo Bourdieu, obedece a uma lógica relativamente autônoma
em relação aos outros campos. Em contrapartida, isso não impede que ele mantenha relações
fora de suas fronteiras, cuja importância é fundamental no modo como se desenvolvem e
definem “os meios, os fins e os efeitos específicos que são atribuídos à ação jurídica”64. Como
agentes responsáveis por produzir o direito ou aplicá-lo, os detentores do poder jurídico
mantêm afinidades com os “detentores do poder temporal, político ou econômico, e isto não
obstante os conflitos de competência que os podem opor”65. Tal proximidade e a afinidade
dos habitus, conectadas a “formações familiares e escolares semelhantes, favorecem o
parentesco das visões de mundo”, em conseqüência das escolhas que os integrantes do campo
jurídico têm de fazer “entre interesses, valores e visões de mundo diferentes ou antagonistas
têm poucas probabilidades de desfavorecer os dominantes”66. Assim, essa proximidade pode
definir o modo como o direito é aplicado e, por seu turno, explica por que, em muitos casos de
62 Idem. 63 Idem. 64 Idem, p. 242. 65 Idem, ibidem. 66 Idem.
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litígio envolvendo grandes proprietários contra posseiros pobres, os primeiros foram
favorecidos e obtiveram ganho de causa. Um exemplo é o caso acima relatado que aconteceu
na região de Jaguari em 1902, no qual Jacob Luiz Laydner, que não havia residido um só dia e
nem cultivado a área de 800 hectares requerida, cuja extensão era habitada há mais de 30 anos
por “pobres agricultores”, mas a partir do momento em que, mesmo de forma fraudulenta,
judicialmente as terras foram reconhecidas como de propriedade de Laydner, as pessoas que
nela residiam foram obrigadas a abandoná-las e tinham seus ranchos incendiados.
No relatório da SENOP de 1898, o secretário João Pereira Parobé comenta que o
grande problema da administração de terras não provinha do “pequeno posseiro ou do colono
que compra por preço exorbitante o lote que cultiva e de que tira os meios precisos e, às
vezes, escassos para sustentar a família”, mas dos especuladores “que chegam a formar
sindicatos para a compra de posses manifestadamente fraudulentas”67. Parobé comenta a
formação de comanditas68, voltadas a se apoderar de terras públicas “fantasiando posses cuja
legitimação conseguiam por meio das influências políticas”69 que possuíam. A prática de tais
associações, após conseguirem legitimar as posses, era vender as terras conseguidas aos
especuladores, os quais “apesar de não praticarem a fraude, não tinham, contudo, escrúpulo
de usufruir as vantagens que ela proporcionava, reputando por alto preço aquilo que haviam
adquirido por valor insignificante”70. No mesmo ano, no relatório da comissão verificadora de
posses de Santa Cruz, o chefe da mesma escreve que existiam as mais extravagantes notícias
a respeito das posses existentes naquela área, inclusive algumas diziam do “emprego da
acústica para determinar-se o comprimento das linhas”71 divisórias entre as propriedades.
Segundo informações do chefe dessa comissão, Francisco Smich, a fraude foi o meio
dominante pelo qual a propriedade definiu-se em Santa Cruz. Um dos estratagemas usados
pelos ditos especuladores era convencer “os posseiros verdadeiros, em maior parte leigos e
analfabetos” a vender suas posses “visto que a colonização se estendia cada vez mais à região
serrana”72. O avanço da colonização era argumento forte em função de que, de acordo com
67 PAROBÉ, João José Pereira. Relatório dos negócios de Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Presidente do Estado, Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, 1898. Manuscrito sem páginas. (AHRS - OP. 05) 68 “Espécie de sociedade comercial em que há um ou mais associados de responsabilidade ilimitada e solidária e um ou mais sócios capitalistas (comanditários) cuja responsabilidade não excede o capital subscrito”. Definição retirada do Dicionário da Língua Portuguesa On-line: http://www.priberam.pt/dlpo/dlpo.aspx em 12/09/2007 às 17h45min. 69 João José Pereira Parobé, 1898. Idem, op. cit. 70 Idem, ibidem. 71 SMICHI, Francisco José. Comissão verificadora de posses e de discriminação de terras públicas em Santa Cruz, 28 de Junho de 1898. In.: João José Pereira Parobé, 1898. Idem, op., cit. 72 Idem, ibidem.
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Smich, ela incomodaria os posseiros em seus labores tradicionais, já que “quase todos se
dedicavam ao fabrico de erva-mate e alguma criação”73. Mediante isso, argumentava Smich, e
devido, sobretudo, ao respeito que os posseiros tributavam àqueles que estavam interessados
na compra de suas posses, os quais “se intitulavam representantes do Governo e chefes
políticos das localidades e da época”74, muitas áreas foram vendidas e compradas. Assim,
legitimava-se “em nome do vendedor, áreas muito superiores a que à lei permite, e ficando em
alguns casos ao posseiro garantido a área de 50 ou 100 hectares, como prêmio do negócio
efetuado”75. Em outros casos, segundo informações do relatório, os posseiros ficaram
tolerados nas terras como arrendatários mediante o pagamento de uma anuidade76. Ainda
sobre os especuladores, o chefe da comissão de terras de Santa Cruz, escreve:
Os tais especuladores não esmoreciam diante de qualquer obstáculo, expunham-se a longas e penosas viagens, inventavam posseiros, faziam justificações de idades perante o juízo competente, mediam áreas enormes em nome de alguém e quando não conseguiam legitimação, subdividiam-se estas mesmas áreas em 3 ou 4 partes, simulando novas medições, conseguindo assim a obtenção dos respectivos títulos em nome de posseiros in nomine. Tudo isto passou-se por cima de todas as Leis, Regulamentos, Avisos e Instruções, desprestigiando o Governo, estabelecendo uma verdadeira anarquia, negociando o que não era seu, ilaqueando a boa fé de muitos, só podia ter bom êxito porque os interessados o faziam com muita astúcia e ardileza e contando com os poderosos auxílios dos agentes que tinham em toda parte, e sem medo de errar digo: até na Capital do Estado; se assim não fosse, como explicar o fato que certos zelosos funcionários passaram por alto nas informações que ministravam sobre tais legitimações desprezando completamente o que a legislação preceitua, despachando autos com rapidez, ao passo que outros ficavam retidos até por anos embora legais!77
No relatório do chefe da comissão de terras de Santa Cruz, são evidentes as críticas à
figura do especulador. Como escrevi acima, tais críticas, por um lado, estavam vinculadas ao
interesse de o Estado exercer controle sobre o processo de apropriação das terras devolutas. 73 Idem. 74 Idem. 75 Idem. 76 Este fato é importante e ilumina muito as questões relativas à forma como se deu a apropriação da terra no Brasil. Leonarda Musumeci, em seu já citado estudo, descreve situação idêntica a esta, mas para um período posterior e para o Estado do Maranhão. Nesse caso, a autora descreve como o prefeito do município de Poção das Pedras, Carlos Bastos, segundo os moradores da região, usocapiou 50 mil hectares de terras pertencentes ao município e instituiu um foro municipal que deveria ser pago pelos posseiros para garantir a propriedade das terras que ocupavam, sendo que “a verdadeira intenção de Carlos, segundo os camponeses teriam percebido a posteriori, era deixar o terreno livre para que ele próprio, associado a outros comerciantes fortes da área e aos ‘bacharéis de direito’, seus amigos, pudesse dar largada na grilagem”. A autora também descreve situações em que grandes áreas eram legitimadas por grileiros depois revendidas aos posseiros ou dadas em arrendamento. Cf.: Leonarda Musumeci. Idem, op. cit., p. 113-120. 77 SMICHI, Francisco José. Comissão verificadora de posses e de discriminação de terras públicas em Santa Cruz, 28 de Junho de 1898. In.: João José Pereira Parobé, 1898. Idem, op. cit.
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Por outro, também está o fato de que os especuladores auferiam grandes lucros na venda de
terras e o Estado não arrecadava nada dessas transações. Um aspecto que merece
consideração, neste sentido, é o de que à medida que o século XX avança, esse tipo de
acusação diminui. Nas fontes analisadas, a diminuição das fraudes é apresentada como
resultado do maior controle exercido pelo governo republicano sobre o processo de
apropriação.
Todavia, reconhecer a continuidade das fraudes, seria admitir a ineficácia do governo
para controlar uma questão, na maioria das vezes apresentada como de alta prioridade.
Sobretudo, seria reconhecer a existência de conflitos agrários, o que poderia ser
desinteressante do ponto de vista daqueles que estavam obtendo grandes vantagens com o
processo de privatização das terras devolutas. Assim, de um dado momento em diante, a
eficácia do governo republicano em discriminar o domínio público do privado passa a ser um
tema dominante nas fontes.
Tais informações não devem ser tomadas isoladamente, pois podem levar a conclusão
de que o Estado foi eficiente em sua ação de controle sobre o processo de apropriação de
terras. Contudo, os próprios relatórios também trazem indícios de que ele não se desenvolveu
de forma tão tranqüila e que a ausência de fraudes antes foi um ideal perseguido do que uma
prática efetiva. Em termos proporcionais, as fraudes passam a ocupar espaço muito pequeno
nos documentos comparativamente aos primeiros anos do governo republicano. Característica
que, por seu turno, não significa que na prática as burlas tenham diminuído ou deixado de
existir, apenas é mais difícil encontrar registros delas nos documentos oficiais, uma vez que
tal reconhecimento exigiria uma ação do Estado no sentido de regularizar a situação.
Por conseguinte, o discurso de que “graças às severas e continuas providências do
Governo, cessaram completamente as simuladas legitimações de posses artificiosas e os
múltiplos abusos que a caracterizam”78 passa a ser dominante a medida que o tempo avança.
O que faz pensar, visto a impossibilidade das fraudes terem desaparecido completamente de
uma hora para outra, que o Estado passa a lidar com elas de outra forma. Mediante a
impossibilidade de exercer um controle total sobre o processo de apropriação das terras
devolutas, o silêncio sobre as fraudes pode ser lido como uma forma de dar-lhes legitimidade
e, assim, favorecer os grandes proprietários e os especuladores que tinham frente ao Estado
um poder de barganha bem maior do que os lavradores pobres.
78 CASTILHOS, Júlio Prates de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Júlio Prates de Castilhos, na 4ª e última sessão ordinária da 2ª legislatura, 20 de Setembro de 1896. Porto Alegre: Tipografia de Cesar Renhardt, 1896, p. 23.
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As fontes igualmente trazem registros dos motivos que levavam a tamanho interesse
por discriminar o público do privado, pois “os lucros pecuniários que aufere o Estado da
venda de e suas terras aumentam na razão direta da sua crescente prosperidade agrícola”79
escrevia o Presidente Borges de Medeiros em 1898. Para uma idéia da importância desses
lucros, segundo dados constantes na mensagem de Medeiros, apenas a comissão verificadora
de posses de Santa Cruz havia reivindicado para o Estado uma área de 193.153.274 metros
quadrados de terras (19.315 hectares). As quais “calculadas aquém do seu justo valor, ainda
assim representam uma soma muito superior a 200:000$000 réis; ao passo que é de
28:048$694 réis a despesa feita pela referida comissão”80.
O serviço de discriminação trazia sérios problemas ao Estado, já que, à medida que a
propriedade ia sendo discriminada, descobriu-se que muitos indivíduos haviam comprado
áreas, geralmente pequenos lotes, de especuladores que tinham usado meios escusos para
legitimação. Da mesma forma, revelou-se que algumas colônias públicas haviam sido
fundadas em áreas que posteriormente foram requeridas como de “domínio privado”. Muito
provavelmente tal “domínio privado” era resultado de apropriações feitas ao arrepio das leis.
Para resolver o primeiro caso – o dos posseiros que haviam comprado terras de especuladores
–, o governo decidiu ceder os terrenos a seus ocupantes mediante a cobrança de uma
“razoável indenização arbitrada de acordo com o valor relativo das posses ou prazos
coloniais”81. O objetivo era, assim agindo, não agravar a situação dos “pequenos agricultores
que detêm hoje as ditas terras, por compras feitas em boa fé a particulares ou a associações
que exploravam no extinto regime esses bens do domínio do Estado”82. Em outras palavras, o
problema estava no Império, e ao invés de taxar os especuladores, o Estado taxava os
posseiros, logo, o argumento de “não agravar a situação dos pequenos agricultores”, assim
como o de que as fraudes eram coisas do passado imperial eram mera retórica. Quanto à
segunda problemática, a da fundação de colônias públicas em terras de “domínio particular”,
resolveu-se por indenizar os “legítimos proprietários” dessas áreas, que de legítimos muito
provavelmente não tinham nada, com outras terras situadas na região de matas do estado.
No ano de 1900, o montante total de terras que as diferentes comissões verificadoras
tinham restituído ao Estado somava em torno de 1.169.786.097 metros quadrados (116.978
hectares) havendo a possibilidade desse número ser aumentado em 990.636.142 metros
quadrados (99.063 hectares) que deveriam ser julgados. No entanto, não consta se esses 99
79 Antônio Augusto Borges de Medeiros, 1898. Idem, op. cit., p. 23. 80 Idem, ibidem. 81 Idem. 82 Idem.
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mil hectares foram realmente revertidos ao domínio público. A estimativa era de que o total
dessas terras que seriam vendidas sobre a base de um real por metro quadrado renderia aos
cofres públicos “a avultada cifra de 1.169:786$97 réis”83.
Em 1903, voltando à questão das indenizações que deveriam ser pagas por aqueles que
haviam comprado terras de “terceiros e fraudulentamente legitimadas”, o Presidente Borges
de Medeiros expede o decreto nº 596 de 10 de fevereiro, o qual isentava “os colonos nacionais
ou estrangeiros do pagamento de qualquer indenização ao Estado”84. Nos diferentes
documentos analisados, não consta exatamente o motivo que levou o Presidente a tomar a
decisão. No entanto, possivelmente ela advenha da resistência imposta por esses indivíduos
em pagar novamente por terras já pagas. Em 1906, novo decreto é expedido e dessa vez a
decisão é que aqueles que haviam feito pagamento de indenizações ao Estado, antes do
decreto de 1903, receberiam restituição dos montantes gastos85. Assim, os favorecidos pelo
decreto receberiam como compensação novas terras que estavam sendo demarcadas no
município de Passo Fundo e “quando a restituição fosse tão pequena que não possa constituir
a área de um lote colonial de 25 hectares, far-se-á em dinheiro, conforme o desejo dos
interessados e a própria conveniência do Estado”86.
Os problemas relativos à instalação de colônias públicas em “terras de particulares”
também passam a ser alvo de preocupação e, na sua mensagem de 1911, o Presidente do
Estado, Carlos Barbosa Gonçalves, descreve o modo como o problema era tratado. O governo
procurava resolver os casos de forma administrativa, dessa maneira nas questões propostas ao
Estado “acusado de ter invadido, com a colonização oficial, terras de propriedade particular,
temos chegado a acordo com muitos dos litigantes, mediante indenizações equivalentes de
terras devolutas, em pontos diversos, à escolha dos interessados”87. De acordo com Carlos
Barbosa, o local preferido pelos lesados era a região de Passo Fundo, devido à presença da
linha férrea que valorizava as terras. Na mensagem do ano posterior, o mesmo Presidente
83 MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 4ª sessão ordinária da 3ª legislatura, em 20 de setembro de 1900. Porto Alegre: Oficinas Tipográficas de A Federação, 1900, p. 24. 84 MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, em 20 de Setembro de 1903. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1903, p. 14 . 85 Cf.: MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 2ª sessão ordinária da 5ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1906. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1906, p. 17. 86 MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 3ª sessão ordinária da 5ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1907. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1907, p. 21. 87 GONÇALVES, Carlos Barbosa. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, na 3ª sessão ordinária da 6ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1911. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1911, p. 29.
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relata que as indenizações realizadas entre 1911 e 1912 somavam o total de 1.153.849.148
metros quadrados de terras (115.384 hectares), todas situadas na região de matas. Também
sublinhava que os trabalhos de indenizações e de discriminação era serviço ainda “para
algumas dezenas de anos”. Em 1912, cabe registrar, a área de terras devolutas do estado
contabilizava em torno de 30.000 quilômetros quadrados (3.000.000 hectares),
“aproximadamente a oitava parte do Rio Grande”, área constituída, em sua maior parte, por
terras de matas88.
O Presidente do Estado, Salvador Ayres Pinheiro Machado, em 1916, registra que o
número de reclamações feitas ao Estado pela ocupação de terras pertencentes a particulares
havia diminuído e que o valor aproximado das terras devolutas chegava a cerca de
90.000:000$000 réis89. No ano seguinte, Borges de Medeiros volta a tratar do assunto e
escreve que a região serrana era a principal área para onde estavam se dirigindo as populações
oriundas da imigração e também das correntes internas de migração provindas das colônias
velhas, ou daqueles que estavam recebendo indenização:
nestes últimos tempos, vai se fixando uma numerosa população de colonos nacionais e estrangeiros que, disseminados por vários núcleos florescentes, multiplicam-se e progridem com uma rapidez assombrosa. Tudo nessa região, fadada para ser nosso grande celeiro do futuro, facilita, estimula e recompensa prodigamente o trabalho do homem90.
Como é possível perceber, Borges de Medeiros deixa clara a intenção de que a região
deveria se constituir no celeiro do Rio Grande do Sul. Contudo, para que isso acontecesse, era
preciso, primeiro, por ordem na questão de terras e, para tanto, como venho demonstrando, o
discurso presente nas fontes é o de que era sumamente importante discriminar com a maior
precisão possível o público do privado e regularizar a situação fundiária. A intenção de
discriminar o público do privado foi efetivamente perseguida e, de modo geral, o Estado
atuou como carro chefe do processo, de modo a poder se afirmar que a região foi construída
pela ação do Estado. Entretanto, acreditar que o interesse em discriminar o público do privado
foi efetivado a partir do exercício de um controle sobre as fraudes, como algumas fontes dão a
88 GONÇALVES, Carlos Barbosa. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, na 4ª sessão ordinária da 6ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1912. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1912, p. 39-41. 89 MACHADO, Salvador Ayres Pinheiro. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Vice-presidente em exercício, General Salvador Ayres Pinheiro Machado, na 4ª sessão ordinária da 7ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1916. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1916, p. 44. 90 MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 1ª sessão ordinária da 8ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1917. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1917, p. 28.
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entender, é aceitar sem levantar maiores questões que no Rio Grande do Sul não havia nem
nunca houve conflitos no campo e que a propriedade fundiária no estado foi estabelecida
seguindo a risca os preceitos legais. Em outras palavras, é aceitar uma visão ideal de mundo e
realizar uma ordem social, cuja uma das principais características é escamotear que o
processo de ocupação de terras no Rio Grande do Sul foi benéfico apenas para uma pequena
parcela de sua população.
Um outro ponto que convém conhecer sobre o processo de povoamento da região
serrana diz respeito ao serviço de indenizações de particulares que alegavam que “suas terras
legítimas” haviam sido usadas pelo Estado para a fundação de colônias. Na documentação,
tais proprietários são definidos como pessoas que foram lesadas pelo Estado e, em sua maior
parte, eles receberam novas terras em troca daquelas que tinham sido utilizadas para fundação
de alguma colônia. Assim, como “a área de terras devolutas do Estado encontrava-se toda na
região norte”91, foi na região de matas, especialmente em Passo Fundo, onde eles receberam a
restituição. Em 1911, só neste município, haviam sido demarcadas e entregues 106.403
hectares de terras destinadas a resolver indenizações. Por sua vez, esta prática era responsável
por trazer uma outra série de problemas à administração, visto que os beneficiários
geralmente buscavam depreciar o valor das terras que recebiam em comparação à que haviam
“perdido” para, assim, garantir a aquisição de espaços maiores.
Outro fator a dificultar o acerto entre o Estado e os lesados dizia respeito à localização
das terras, visto que as escolhas sempre tendiam a ser por áreas melhor situadas. Entretanto,
em 1914, Torres Gonçalves registrava que muito dificilmente encontrar-se-iam terras de
domínio público que não fossem habitadas por intrusos e “a acomodação deles é sempre uma
operação laboriosa, que retarda os trabalhos de discriminação e a entrega das terras destinadas
às permutas”92. Diante da situação, o diretor da DTC sugere que era preferível realizar as
indenizações em dinheiro ou em apólices, o que tornaria as permutas mais econômicas para o
Estado, livraria os seus funcionários de fazer “uma tarefa fastidiosa”, apressaria o trabalho de
“regularização de milhares de intrusos tumultuariamente estabelecidos, o que constitui um dos
91 GODOY, Candido José de. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo secretário de Estado, Candido José de Godoy, em 08 de setembro de 1911. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1911, p. 09. (AHRS - OP. 25). 92 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 99. In.: PAROBÉ, João José Pereira. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 25 de agosto de 1914. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1914, p. 93-186. (AHRS - OP. 37).
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problemas mais urgentes a atender”93. Para uma idéia mais detalhada a respeito de como as
duas questões – intrusão e discriminação de terras – estavam imbricadas e o tipo de problema
que representavam, transcrevo um trecho do relatório da DTC de 1916, bastante esclarecedor:
neste Estado, não existem terras desembaraçadas da presença de posseiros e intrusos, senão em pequenas áreas, particularmente nas zonas mais valorizadas onde os permutantes fazem suas escolhas. A acomodação dos posseiros e intrusos é uma operação sempre onerosa e laboriosa, que retarda os trabalhos de discriminação e a entrega das terras das permutas. Freqüentemente, respeitadas as áreas dos posseiros e ocupantes, o líquido apurado para as indenizações fica muito reduzido. E pior ainda do que isto, muitas vezes, ultimada a demarcação e a permuta, entregues por fim as terras com todas as formalidades, ao cabo de 2 ou 3 meses, reaparecem os interessados, queixando-se de que novas levas de intrusos acabam de instalar-se nelas94.
Em conseqüência desses problemas, no relatório da DTC de 1924, consta que o
costume do “Estado indenizar indivíduos devido a ter estabelecido colônias em propriedades
privadas” continuava comum e, ao invés de oferecer “novas áreas aos lesados”, a
compensação estava sendo feita em dinheiro, porém “a prática de trocas por outras áreas não
havia desaparecido totalmente”95. Torres Gonçalves era a favor de que as indenizações fossem
feitas em dinheiro, uma vez que considerava perigosa a prática de expulsar intrusos de áreas
para serem destinadas a saldar dívidas do Estado. Alguns dos motivos que levavam o diretor
da DTC a tomar tal posição serão mais detalhadamente analisados no próximo tópico quando
dedicar-me-ei a pensar a intrusão de forma mais pormenorizada. Não obstante, entre expulsar
os intrusos das terras que ocupavam para usá-las para fins de indenização e pagar as
reparações em dinheiro, o diretor da DTC considerava a segunda opção mais condizente, visto
que a primeira poderia significar a emergência de conflitos.
Uma outra circunstância importante relacionada ao povoamento da região é o de que
interpretar a apropriação dos espaços de fronteira agrária a partir do estabelecimento de um
encontro entre duas lógicas opostas, sendo uma mais próxima ao capitalismo – grandes
proprietários, empresas e o próprio Estado – e outra divergente – pequenos posseiros,
intrusos, colonos, etc... – dificulta pensar às peculiaridades e diferenças que caracterizam não
só a ocupação, mas a noção de espaço peculiar a cada grupo, a forma como ocorreu o 93 Idem, ibidem. 94 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 122-123. In.: Protásio Alves, 1916. Idem, op. cit., p. 111-212. 95 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 483. In.: PINTO, Ildefonso Soares. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Engenheiro Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 15 de agosto de 1924. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, Volume 2, 1924, p. 477-511. (AHRS - OP. 77).
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povoamento e as relações mantidas entre os indivíduos que atuaram no processo e disputaram
o território96. Em outras palavras, embora os grupos que se envolveram no povoamento
fossem economicamente desiguais, tivessem diferentes tipos de relação com o Estado e a
sociedade envolvente, nenhum deles vivia em completo isolamento, conseqüentemente, todos
não estavam isentos de reproduzir em contexto local comportamentos peculiares à sociedade
da qual faziam parte.
Assim, parte das pessoas que viviam na região e que viram, de uma hora para outra, o
Estado ou particulares chegarem e se dizerem donos das áreas onde há tempos elas residiam,
nas palavras de Torres Gonçalves, eram “quase sempre ignorantes das leis e regulamentos de
terras”, mas em alguns casos desejavam “ser proprietários e trabalhavam para conseguirem
isso”97. Em outros eram “verdadeiros negociantes, servindo-se da propriedade do Estado para
suas transações de benfeitorias, revendidas muitas vezes”98. Ou seja, muitos deles poderiam
não conhecer as leis, porém isso não significava que vivam num mundo a parte.
Nessa perspectiva, encontrei um processo crime99 datado de 1923, ocorrido na
Comarca de Santo Ângelo que, em linhas gerais, descreve como acontecia a inserção dos
grupos “mais pobres” na ocupação das terras e na discriminação dos domínios público e
privado. Segundo consta no processo crime Antônio Pacheco, agregado de Silvino José
Vargas foi obrigado a retirar-se de sua casa que foi em seguida incendiada. Silvino José de
Vargas (brasileiro, casado, residente no quarto distrito de Santo Ângelo, lugar denominado
Limeira, patrão de Antônio Pacheco), abre queixa contra Procópio Francisco Fraga, Edgar
Francisco Fraga, João Luiz Gonçalves e Gaudêncio Hipólito, residentes no mesmo distrito,
acusando-os de expulsarem e atearem fogo na casa de seu agregado.
Procópio Fraga, (51 anos de idade, casado, criador), declara em interrogatório ser
inocente em relação ao ato, visto estar na Vila de Santo Ângelo no momento em que ocorreu
o crime. Francisco Fraga, filho de Procópio, (com 21 anos de idade, solteiro e criador),
também declara inocência, pois afirma que estava acompanhando seu pai no momento do
crime. Segundo o testemunho dado em julho de 1923 por Hilário Martins Pinto, (60 anos,
96 Para Leonarda Musumeci, as interpretações sobre a ocupação de regiões de fronteira realizadas a partir da contraposição entre duas lógicas opostas compõem “uma visão (ou versão) parcial, que realça algumas dimensões da realidade e omite ou deixa em segundo plano outras, não menos importantes. E que, aos se erigir em modelo genérico de análise, passa também a construir a realidade dos confrontos radicais, a legitimá-los como objeto exclusivo e a só selecionar do real os elementos que reafirmem o estatuto teórico e político das ‘grandes questões’, elidindo ou subestimando outros processos e fatores muitas vezes mais decisivos para entendimento das situações concretas do que tais ‘grandes questões’”. (grifos da autora) Cf.: Leonarda Musumeci. Idem, op. cit., p. 40-41. 97 Carlos Torres Gonçalves, 1914. Idem, op. cit., p. 158-159. 98 Idem, ibidem. 99 APERGS. Processos Crime 1.563. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1923. Maço 56.
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viúvo, criador), João Luiz Gonçalves (com idade ignorada, casado, agricultor) e que no
processo é identificado como agregado de Procópio Fraga, contou-lhe, em dia posterior ao
crime, que Procópio Fraga havia determinado que ele (João) o acompanhasse até o rancho de
Antônio Pacheco, o qual pretendia incendiar, porém “a isto se negou dizendo que não
auxiliaria no crime, mas, apenas podia assisti-lo visto que era seu peão”100. Em seu
depoimento, datado de novembro de 1923, João Luiz nega a versão de Hilário e diz nunca ter
conversado com ele sobre o caso, e que Procópio nunca lhe havia ordenado ir até o rancho de
Pacheco. Devido à contradição entre os dois depoimentos, é requerida uma confrontação entre
as duas testemunhas, entretanto eles mantêm suas versões.
A versão de Antônio Pacheco, (33 anos de idade, jornaleiro) é a seguinte: disse que
“morava em um rancho de capim e paredes de barro, sito em campos de propriedade de
Silvino”, que numa manhã de fevereiro de 1923, chegou ao seu rancho Procópio Fraga, que
“lhe perguntou com que ordem o depoente ali morava, tirava madeira dos matos e fizera
lavoura”, ao que respondeu que “por ordem de seu patrão, Silvino Vargas”. Diante da
resposta, Fraga respondeu que os referidos campos não eram de Silvino, mas sim dele. No
mesmo dia, pelas quatro horas da tarde, Procópio, “acompanhado de seu filho Edgar
conhecido como Nenê, Gaudêncio de tal e um tal João Doce, cujo nome verdadeiro o
depoente não sabe” chegaram a seu rancho. Nesse momento, Procópio, de revólver em punho,
após perguntar a Antônio se já havia desocupado o rancho, recebendo resposta negativa,
apeou de seu cavalo e, seguido por seus companheiros, todos armados de revolver e espada,
agrediram Antônio e exigiram que ele desocupasse o rancho imediatamente. Assim, diante a
atitude ameaçadora de seus agressores, Antônio “não lhes opôs resistência alguma, tendo
apenas tirado um colchão e uma lata contendo banha, quando o rancho ia caindo, pois João
Doce havia cortado com um machado os respectivos esteios”101. Em seguida, o rancho foi
incendiado e o “depoente ficou no campo com sua amásia Diamantina Ramoni, sendo mais
tarde, às oito horas da noite, recolhidos à casa de seu patrão”102.
No depoimento de João Luiz Gonçalves, aparecem alguns outros elementos
importantes, tanto para entender a situação quanto o contexto em que ela aconteceu: ao ser
perguntado pelo advogado de defesa de Procópio Fraga se o rancho de Antônio estava ou não
nos campos fechados de Procópio, João responde que sim. Ou seja, o que está em jogo é
propriedade destes campos, visto que Silvino, o autor da queixa e patrão de Antônio, alegava
100 Idem, ibidem. 101 Idem. 102 Idem.
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que aqueles campos eram seus. O mesmo advogado faz uma pergunta mais esclarecedora
ainda, visto ter acontecido em 29 de novembro de 1923 e o processo ter sido aberto em abril
do mesmo ano: “perguntado se o depoente conhece o preto Antônio Pacheco (...) e se pode
informar quem seja ele e onde mora atualmente?”103 Isto é, sete meses após ser aberto o
processo e terem sido questionadas uma série de testemunhas, aparece a cor de um dos
envolvidos e ela é lembrada exatamente pelo advogado de defesa. João responde que conhecia
Antônio porque o tinha visto duas vezes e “não sabia quem ele seja nem onde mora hoje”104.
Na mesma data, novembro de 1923, Hilário Pinto é chamado a depor novamente e
dessa vez o advogado de defesa pergunta-lhe se os campos onde estava o rancho eram ou não
cercados por Procópio, o que respondeu afirmativamente. Também lhe é perguntado “se
conhecia o preto Antônio Pacheco” e se podia dizer quem era ele. Sua resposta é que o
conhecia “agora e que esse negro é novato lá, portanto, não pode dizer quem ele é”105.
Conforme Hilário, naquele momento Pacheco estava morando em Espimilho, um outro
distrito de Santo Ângelo. Cabe perguntar por que no primeiro depoimento de Hilário, em que
não há a presença do advogado de defesa, não há menção à cor de Pacheco, mas no segundo
sim?
Um outro depoimento ajuda a compreender o fato. Artur Motta (com 33 anos, casado,
funcionário público, testemunha de defesa), também afirma que os campos onde estava o
rancho eram cercados por Procópio. Descreve que o rancho tinha mais ou menos uns três
metros de comprimento, um metro e meio de largura, “era coberto de capim, beira no chão e
de paredes de ramas murchas”106. Motta confirma que Procópio, no dia do crime, estava na
Vila de Santo Ângelo e que pernoitou em sua casa. Quando é perguntado se “conhecia o preto
Antônio Pacheco e se podia informar quem seja ele?” Artur responde que conhecia e que
antes de ele ir “para o quarto distrito onde morava de agregado de Silvino Vargas, residiu no
oitavo distrito, de onde foi expulso pelas autoridades dali por ser gatuno contumaz e de mui
péssimos costumes”107. No seu depoimento, Motta também relata que Silvino havia lhe
contado que “tinha feito aquele rancho para garantir uma posse que estava sendo disputada
por Procópio” e que fora o próprio Silvino quem havia incendiado o rancho e atribuía a culpa
a Procópio para “fazer mal àquele”108. Outras testemunhas são arroladas, mas as versões não
103 Idem. 104 Idem. 105 Idem. 106 Idem. 107 Idem. 108 Idem.
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mudam e, em dezembro de 1923, após análise do processo, o Juiz considera improcedente a
denúncia por falta de provas que legitimassem a acusação.
O processo crime traz informações interessantes sobre o movimento de apropriação de
terras na região, visto que além de mostrar as disputas locais pela propriedade evidencia como
os grupos “mais pobres” poderiam entrar nela e, nesse caso, a atuação de Antônio Pacheco é
esclarecedora. Um primeiro ponto que chama atenção é que Pacheco é procedente de um
outro distrito e, a convite de Silvino José Vargas, se estabelece como agregado em uma posse
que estava em disputa. Outro é o de que, segundo a acusação, Procópio também interessado
na propriedade desta posse, expulsa Pacheco e incendeia o rancho onde ele morava. Um outro
é que Antônio segue adiante e, no decorrer do tempo, segundo consta no processo crime, tinha
se mudado para um outro distrito onde, provavelmente, também havia se instalado como
agregado. Um quarto ponto interessante do processo crime é o da cor ausente e presente, uma
vez que ela prepondera justamente quando o advogado ou as testemunhas de defesa querem
criminalizar Pacheco. Enfim, um último aspecto que deve ser destacado diz respeito aos
motivos que levavam Antônio Pacheco a agir da forma como agiu na situação, pois seria
muito precipitado, ingênuo até, considerar que em meio a tudo isso o “preto Antônio
Pacheco” era um ignorante e tenha atuado apenas como massa de manobra.
Assim, sejam quais forem os motivos de Antônio, no que diz respeito aos resultados
do povoamento, as vantagens auferidas por fazendeiros como Procópio e Silvino, que usavam
dos mais diferentes estratagemas para se apossarem de terras públicas, foram e são, diante do
que aconteceu com Pacheco, questionáveis. Por fim, um último problema para o qual chamo
atenção é o de que mais apropriado do que descrever as ações de pessoas como Antônio
Pacheco como práticas de homens ingênuos que atuaram em benefício de interesses alheios, é
importante pensar tais ações como resultado de escolhas racionais. Em outros termos,
escolhas de pessoas que pertenciam ao seu tempo, o viveram a partir de sua inserção social e
das possibilidades que o contexto do qual elas participavam oferecia.
Aqui é importante destacar que os conflitos por terra não se resumiam ao embate entre
a camada “mais rica” e a “mais pobre” da população local, mas eles aconteciam dentro desses
grupos. Em 1916, por exemplo, no segundo distrito do município de Santo Ângelo, ocorreu
conflito entre Leopoldino de Oliveira Bueno e Lúcio Soares Siqueira, cujo motivo era as
divisas de seus “roçados”. Segundo depoimento de Policarpo Antônio Rodrigues (com 47
anos de idade, solteiro, jornaleiro, natural do Rio Grande do Sul) que presenciou a briga, os
contendores e ele estavam se dirigindo a uma carreira de cavalos, quando Leopoldino e Lúcio
começaram a conversar sobre uma roça que Leopoldino havia mandado fazer em um mato
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próximo aonde eles se encontravam, no qual Lúcio também possuía um roçado. De acordo
com Policarpo, em um dado momento da conversa
Lúcio perguntou a Leopoldino se a roça que mandou fazer era nos matos que contornava as suas plantas ou não; que Leopoldino respondeu já com maus modos; é ali naquele mato, você não enxerga, está se fazendo de tolo; que ele testemunha ouviu o denunciado [Lúcio] perguntar à vitima [Leopoldino], mas a roça que fez é para dentro dos meus fechos ou para fora; que a vitima respondeu que era para dentro; que tanto direito tinha um como outro naquele terreno; que o denunciado então respondeu a vitima, então voceis são uns atrevidos não respeitam a propriedade de ninguém, deviam respeitar meus feichos; que a vitima perguntou ao denunciado, então você é o tutu aqui, foi você que mandou arrancar uns esteios que eu finquei ali; que o denunciado respondeu que não foi ele quem mandou arrancar e sim as autoridades; que a vitima insistindo, disse ao denunciado, foi você mesmo ruivo. Fala ruivo: você quer ser o tutu daqui e atravessou o cavalo na frente do denunciado; que o denunciado vendo-se atracado puxou na rédea do cavalo e apeou-se e arrancou de um facão que trazia consigo; que a vitima quase ao mesmo tempo também apeou-se e de revolver em punho investiu contra o denunciado109.
Se na primeira situação descrita, Silvino Vargas e Procópio Fraga, cuja riqueza é
evidenciada durante o processo, especialmente no caso de Procópio que em depoimento diz
ter ido de sua propriedade a Vila de Santo Ângelo em automóvel próprio – coisa muito rara na
região, portanto, um indício de que era possuidor de um certo capital econômico – no segundo
exemplo temos dois pequenos lavradores disputando espaço para realizar suas plantações.
Comparativamente os processos indicam que a disputa pela terra perpassava todas as camadas
sociais e que o uso da violência física era um dos meios utilizados para regular tais contendas.
Afirmar que a violência estava presente nas relações sociais e era uma maneira de
regular as tensões sociais não significa postular que ela é um dos elementos centrais e
constituintes de uma suposta “cultura rural brasileira” como definem alguns autores110.
Diferentemente, deve-se pensar esta violência como reflexo do próprio contexto, uma vez que
se trata de uma região onde os aparelhos de Estado responsáveis por regular a violência ainda
não estavam consolidados ou eram utilizados em beneficio próprio pelos grupos dominantes
locais, a partir de práticas que a historiografia define como coronelísticas111. Principalmente,
deve-se levar em conta um fato para o qual já chamei atenção em capítulo anterior, qual seja:
109 APERGS. Processo Crime nº 1.422. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1916. Maço 48. 110 Um exemplo deste tipo de interpretação pode ser encontrado em: FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: UNESP, 1997.. 111 Sobre esta questão, verificar: LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o municipio e o regime representativo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997. No caso especifico do coronelismo na região, ver: Loiva Otero Félix. Idem, op. cit. e ARDENGHI, Lurdes Grolli. Caboclos, ervateiros e coronéis: luta e resistência no norte do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: UPF, 2003.
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o de que os grupos rurais guardam uma certa desconfiança a respeito dos aparelhos de estado,
especialmente dos órgãos de justiça.
Por sua vez, isto também não significa que o grupo “mais pobre” não acionasse os
meios legais quando de seu interesse, pelo contrário, encontrei muitos processos crimes, cuja
base era o fato de que um dos envolvidos havia movido processo judiciário contra outro. Um
exemplo elucidativo ocorreu no 1º distrito do município de Palmeira das Missões, lugar
denominado Potreiro Bonito, em novembro de 1889. Neste caso, Estevão Ribeiro do
Nascimento (com 40 anos de idade, casado, natural do Paraná, negociante) relata em seu
depoimento que estava “em monjolo em serviço de erva e aí foi agredido por Valentim
Rodrigues Duarte [43 anos de idade, casado, lavrador, brasileiro do município de Alegrete,
analfabeto]”112. O motivo da agressão foi o de que Estevão estava “demandando
judicialmente” uma porção de terras de matos com Valentim. Marcelina Marques do
Nascimento (30 anos de idade, casada, moradora do 1º distrito, esposa de Estevão) afirma em
seu depoimento que
seu marido já a tempo, isto é, a um ano e meses comprou de Valentim uma posse de matos, como Valentim ainda a pouco tempo não lhe tivesse documentado, seu marido procurou a realização do referido negócio, porém Valentim nessa ocasião negou-se pondo dúvida no negócio que fizeram e daí para cá ficaram inimigos por ter Estevão procurado a justiça para por meio realizar seu negócio, e que daí para cá ela testemunha sempre ouvia dizer que Valentim prometia matar a seu marido113.
Embora Estevão se identifique no processo como negociante, os depoimentos
evidenciam que não se tratava de um representante da elite comercial palmeirense, pois
negociava erva-mate que ele próprio fabricava em “seu monjolo”. O fato de beneficiar erva
em monjolo indica também que produzia em pequena escala, situação que mostra a existência
um certo equilíbrio econômico entre ele e Valentim. O processo demonstra, igualmente, o
quanto a utilização dos meios legais para dirimir conflitos poderia ser motivo para tornar as
contendas ainda mais graves, ou seja, mais um motivo a justificar a pouca procura por parte
da população local dos órgãos de Estado para intermediar suas questões.
De um modo geral, as situações até o momento analisadas são algumas das questões
presentes no cotidiano do processo de privatização das “terras devolutas” existentes na região
serrana. Assim, se por um lado, temos o Estado atuando como carro-chefe do processo e
fazendo um enorme esforço para manter um controle sobre ele, especialmente sobre as rendas
112 APERGS. Processos Crime 28A. Cartório Civil Crime. Município de Palmeira das Missões, 1889. Maço 03. 113 Idem.
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que poderiam advir da venda das terras públicas, bem como desenvolvendo toda uma
legislação que, ao fim e ao cabo, favoreceu apenas uma pequena parcela da população
regional. Por outro, também temos as pessoas que vivenciaram todo esse processo, bem como
o conjunto de relações sociais originárias e peculiares ao desenvolvimento do povoamento.
Em outros termos, tudo somado resulta na constituição de uma sociabilidade específica, na
qual a terra toma o lugar central, pois, se para o grupo “mais rico”, ela era meio de
especulação e de manutenção de um certo status social, para o grupo “mais pobre”, ela era
meio de sobrevivência e de manutenção de um modo de vida particular, daí os vários conflitos
relacionados a sua aquisição.
4.2 COLONIZAÇÃO E INTRUSÃO: AS MÚLTIPLAS FACES DO MESMO PROCESSO Raríssima... a invasão selvagem dos particulares às florestas do estado, quer em cortes de madeira, quer em colheita de erva mate. No entanto, a fiscalização... tem de ser contínua e assídua. Deste modo, não se teve a registrar novas apreensões de madeira clandestinamente derrubadas nos matos do Estado... Outro tanto não se pode dizer com relação aos decantados intrusos... Estes vêm principalmente das colônias antigas, onde a população se torna densa e a terra demais dividida, cara. Entram em todas as terras, quer sejam colonizáveis, quer sejam em florestas reservadas fazendo logo ranchos e derrubando matos para roças. Às vezes compra de sertanejos que já aí habitavam, as capoeiras, os pretendidos direitos que lhes convencem ter. Por sua vez, este sertanejo que vendeu as capoeiras e os direitos é um novo intruso... De modo que a repressão deste abuso tem de ser feito um tanto rápida e às vezes um tanto violenta, com a derrubada dos ranchos e obrigar-se mesmo a retirada imediata dos ocupantes.
Lindolfo Silva, 1915. Fiscal florestal de Passo Fundo, Lagoa Vermelha e Palmeira das Missões.
O trabalho de discriminar o domínio público do privado, que estava na base dos
serviços de colonização, fazia vir à tona, ou melhor, elaborava o problema da intrusão114. Isto
é, o problema daquelas pessoas, geralmente lavradores pobres, que haviam se estabelecido em
114 Sobre a categoria, Paulo Zarth escreve: “algumas fontes denominam intruso ao camponês que ocupava terras públicas ou privadas sem consentimento prévio das autoridades ou de proprietários”. Cf.: Paulo Zarth. Do arcaico ao moderno. Idem, op. cit., p. 170.
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terras do Estado, “particulares”, ou que no decorrer do povoamento tornaram-se particulares,
sem a intervenção do Estado ou dos proprietários e, principalmente, sem pagar pelas terras
que ocupavam. De acordo com as fontes, intruso era o indivíduo que, independente de sua
origem social ou étnica, não se enquadrava nos termos da lei de terras estadual de 1899. Era
uma pessoa que havia se estabelecido em um espaço territorial em data posterior à
Proclamação da República, mais precisamente após o momento em que os chefes das
Comissões Verificadoras115 fixassem editais proibitivos à intrusão.
Segundo Torres Gonçalves, eram três os motivos que estavam na base da intrusão: 1º)
o abandono em que havia ficado a zona de matas em função de durante longo período as
atividades no Rio Grande do Sul estarem concentradas na campanha; 2º) o movimento
revolucionário – Revolução Federalista – que aconteceu entre 1893-1895 do qual muitas
pessoas buscaram escapar penetrando na região florestal; 3º) a grande corrente imigratória que
havia entrado no estado entre 1908-1914 quando da vigência do acordo com o Povoamento do
Solo116. Por conseguinte, ponderava o diretor da DTC, a intrusão tinha se tornado um hábito e
havia se avolumado “à medida do rápido crescimento da população colonial que tendo se
constituído sempre viveiro de agricultores ascende hoje a mais de terça parte da população do
estado”117.
Inicialmente, uma das principais medidas tomadas para discriminação de terras era a
criação das Comissões Verificadoras as quais, quando instaladas, uma das primeiras ações era
afixar os referidos editais e, assim, criar a intrusão e os intrusos. Ato prático que carrega um
conteúdo simbólico e, como ato de nomeação, formula categorizações: elabora o mundo ao
impor ou tentar impor sua visão de mundo118. Assim, em 1919, quando “a zona das matas
devolutas do norte do estado achava-se repartida entre comissões de terras e colonização que
atendem aos interessados, foram largamente afixados editais, mediante a prévia autorização
presidencial”119. Os editais tratavam de quatro pontos em específico: 1) que estavam sujeitos a
despejo e perda completa de benfeitorias todos os indivíduos que haviam se estabelecido nas
áreas sob responsabilidade das comissões verificados após a fixação dos editais proibitivos à
intrusão; 2) que o Estado, quando resolvesse fazer a divisão em lotes das terras ocupadas por
pessoas estabelecidas após os editais, não levaria em conta as benfeitorias construídas e as 115 Instituição criada pelo Decreto nº 95, de 05 de Março de 1897. As comissões funcionaram até março de 1905, quando foram extintas por decreto do Presidente do Estado. Elas tinham tarefa de controlar e administrar o processo de apropriação das terras devolutas no Rio Grande do Sul e estavam subordinadas a Diretoria de Terras e Colonização. 116 Carlos Torres Gonçalves., 1919. Idem, op. cit. p. 351. 117 Idem, ibidem. 118 Cf.: Pierre Bourdieu. O poder simbólico. Idem, op. cit. 119 Carlos Torres Gonçalves, 1919. Idem, op. cit., p. 352.
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terras só lhes seriam concedidas a preço corrente e mediante pagamento de 50% de seus
valores; 3) que os ocupantes anteriores aos editais deviam permanecer nas terras e aguardarem
a demarcação dos lotes; 4) que o Estado não recusaria terras a nenhum agricultor que as
desejasse, mas para tê-las deveria procurar as comissões verificadoras para que lhes fossem
designados lotes e, quando não tivessem dinheiro para pagá-las, poderiam saldar suas dívidas
mediante prestação de serviços na construção de estradas e caminhos. Trabalho do qual só
poderiam se afastar mediante licença escrita e para realizar serviços relativos a suas lavouras
ou “outras obrigações imperiosas”120.
À primeira vista, pode parecer que o Estado estava sendo justo, já que, de acordo com
o texto dos editais, não exercia um despejo puro e simples, mas oferecia terras aos
agricultores – leia-se intrusos – que as desejassem e ainda facilitava o pagamento das mesmas
com a prestação de serviços nas estradas. No entanto, ao se levar em conta que os intrusos
eram por direito os verdadeiros donos das terras que ocupavam visto residirem nelas, como
reconhece o próprio Torres Gonçalves em seus relatórios, desde tempos bastante anteriores ao
estabelecimento das comissões verificadoras ou seguiam o processo descrito na epígrafe
acima, não há como negar a arbitrariedade da ação. Também, deve se levar em conta que
eram os funcionários responsáveis pelas comissões verificadoras que teriam a última palavra
– quem definia se uma pessoa era intrusa ou não geralmente eram os chefes das comissões ou
das colônias e estes, como veremos dentro em pouco, não eram tão confiáveis assim.
* * *
Antes de seguir adiante na análise da intrusão e da colonização, entendo ser necessário
conhecer a atuação de Carlos Torres Gonçalves como diretor da DTC, uma vez que ela foi
definidora do processo de colonização. O povoamento da região estudada aconteceu sob a
coordenação dele, que, de 1909 a 1928, esteve à frente da DTC e tentou colocar em prática os
preceitos da lei de terras estadual de 1899 e seus regulamentos, antes discutidos.
Carlos Torres Gonçalves nasceu em 1875 no município de Rio Grande, onde morou
até os 12 anos quando, após a morte do pai, mudou, juntamente com sua mãe e irmãos, para o
município de São Leopoldo. Ali iniciou seus estudos em colégio religioso dos padres jesuítas.
Em 1894, transfere-se para a cidade de Ouro Preto, onde pretendia se matricular na Faculdade
de Engenharia, mas como a instituição direcionava os estudos para área de engenharia de
120 Idem, ibidem.
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minas, Torres Gonçalves desiste da idéia inicial e passa a se preparar para ingressar na Escola
Politécnica do Rio de Janeiro. Em 1895, ingressa nessa escola e, três anos depois, termina sua
formação em engenharia civil. No ano de 1899, Torres Gonçalves ingressa, por meio de
concurso público, nos quadros da SENOP com o cargo de 2º condutor. Três anos depois, é
promovido ao cargo de ajudante e, em 1906, a chefe de seção. Permanece nesse cargo por três
anos quando, novamente por concurso público, em 1909, chega ao cargo de diretor da DTC,
no qual permaneceu até 1929, quando a diretoria é extinta por Getúlio Vargas, que a um ano
havia sucedido Borges de Medeiros na presidência do Estado121.
Outra data importante na vida de Torres Gonçalves é o ano de 1903, quando foi
admitido para Igreja Positivista do Brasil. De acordo com Paulo Pezat, foi exatamente a forte
ligação com o positivismo religioso que garantiu a permanência de Torres Gonçalves à frente
da DTC durante tanto tempo122. Mesmo que, durante o período, a SENOP tenha ficado sob
responsabilidade de diferentes secretários, alguns dos quais, inclusive, tinham divergências
com Torres Gonçalves. Nas palavras de Pezat, a presença de Torres Gonçalves e outros
positivistas religiosos nos quadros da SENOP garantia uma “certa reserva moral” para os
positivistas políticos ligados ao PRR e que administravam o Estado. Igualmente, serviam
como elo de ligação do Estado com a Igreja Positivista Brasileira e seus membros,
principalmente Teixeira Mendes e Miguel Lemos. Relação considerada importante, visto a
grande influência do positivismo no contexto da Primeira República, especialmente nos
primeiros anos do regime.
Enquanto diretor da DTC, a principal tarefa de Torres Gonçalves foi administrar o
processo de povoamento e colonização da região de matas do estado, a busca de uma
definição ao problema da propriedade fundiária e a gerência dos assuntos vinculados à
proteção dos indígenas e localização dos nacionais, visto que, como sublinhei no capítulo
anterior, a atuação do SPILTN no Rio Grande do Sul estendeu-se de 1910 a meados de 1911,
quando a secretaria foi transferida para Santa Catarina. Com a transferência da secretaria para
o estado vizinho, ficou sob a gerência do SPILTN apenas a reserva do Ligeiro, situada no
município de Passo Fundo, cabia a Torres Gonçalves, portanto, os assuntos relacionados aos
outros 11 toldos existentes.
121 As informações aqui utilizadas são retiradas de: PEZAT, Paulo Ricardo. Carlos Torres Gonçalves, a família, a pátria e a humanidade: a recepção do positivismo por um filho espiritual de Augusto Comte e de Clotilde de Vaux no Brasil (1875-1974). Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2003. (Tese de Doutorado) e CASSOL, Ernesto. Carlos Torres Gonçalves: vida, obra e significado. Erechim: Editora São Cristóvão, 2003. 122 Paulo Pezat. Idem.
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Acerca da influência do positivismo sobre a atuação de Torres Gonçalves, ela é visível
ao longo dos relatórios nos quais as menções a tal teoria são constantes. Um exemplo
encontra-se no relatório de 1916 quando, ao tratar da organização DTC, escrevia que os
trabalhos conexos a 1ª seção da diretoria, relativos ao problema da discriminação das terras,
tinham por tarefa dar ordem à propriedade territorial. Para a 2ª e 3ª seções, responsáveis pelas
atividades vinculadas à colonização, às florestas e à agropecuária cabiam os trabalhos
condizentes com o progresso. Assim, ponderava que a ordem e o progresso são sempre
intimamente conexos: “onde quer que se desenvolva a ordem, estimula-se o progresso; e onde
se promove o progresso, consolida-se a ordem. Em suma, o verdadeiro progresso não é senão
o desdobramento da ordem correspondente”123.
Como grifei, as referências ao positivismo são comuns ao longo dos relatórios da DTC
e também das mensagens dos presidentes. Elas são usadas nas mais diferentes situações e,
geralmente, são empregadas como justificativas a algum projeto político ou para fundamentar
os possíveis resultados da aplicação de algumas políticas públicas. No relatório de 1914, por
exemplo, ao tratar sobre regime de propriedade adotado no Rio Grande do Sul, o Diretor da
DTC define-o como “não normal”, pois era o do pequeno agricultor. O “normal” era,
portanto, “o da grande indústria, em agricultura, como em qualquer outro ramo da atividade
humana”124. Segundo Gonçalves, apenas a grande propriedade poderia utilizar, de modo
satisfatório, as máquinas, bem como “as capacidades diretoras, sempre raras em nossa
espécie”125. Ele estipulava que o regime colonial deveria ser provisório. Entretanto, mesmo
que considerasse a pequena propriedade como provisória e anormal, Torres Gonçalves
entendia que ela era de suma importância, uma vez que tinha a tarefa de “na quadra social que
atravessamos, deixar o proletariado agrícola que sob ele vive, liberto dos abusos maiores do
industrialismo contemporâneo”126.
Em outros termos, o princípio positivista de incorporação do proletariado à sociedade
onde se encontrava acampado é utilizado por Torres Gonçalves para explicar o porquê de a
colonização ser realizada daquele modo. Da mesma forma, baseado no princípio positivista do
prover para prever, Gonçalves fazia uma previsão de futuro segundo a qual, com o passar do
tempo e a partir do desenvolvimento da sociedade, o grande número de pequenas
123 Carlos Torres Gonçalves. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, 1916. In.: Protásio Alves. Idem, op. cit., p. 133. 124 Carlos Torres Gonçalves, 1914. Idem, op. cit., p. 106. 125 Idem, ibidem. 126 Idem.
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propriedades existentes nas regiões coloniais fundiriam-se e, definitivamente, o regime de
propriedade seria normal:
à medida que se for tornando possível a grande indústria agrícola na região colonial do estado, não será tão difícil quanto geralmente se imagina conseguir-se a fusão das duas ou três centenas de milhar de pequenas propriedades agrícolas, que então existirão, em número limitado de grandes propriedades rurais, por livre assentimento de todos os interessados e reconhecimento dos benefícios maiores que passarão a gozar. O exemplo dos trusts da quadra anárquica que atravessamos, os quais representam uma concentração até exagerada das indústrias, e por motivos egoístas, não pode deixar dúvida quanto à possibilidade futura de uma concentração limitada e baseada em motivos de ordem social, como aquela a que nos referimos127.
Como fica visível nas citações, um dos objetivos de Torres Gonçalves era, com a
colonização, incorporar os “proletários agrícolas”, bem como protegê-los do industrialismo
que caracterizava a época. O Industrialismo, nas palavras do Diretor da DTC, era os
“processos pelos quais, servindo-se da indústria como instrumento, os capitalistas realizam a
exploração da sociedade, em vez do seu serviço, onde reside o destino social da indústria”128.
Aqui entra em jogo outra máxima do positivismo segundo a qual o capital é social, logo, sua
destinação deveria também ser social, quesito que os referidos industrialistas não cumpriam,
daí as críticas de Torres Gonçalves.
Em capítulo anterior, a partir de artigo de Michael Hall129, destaquei que os
positivistas brasileiros, em geral, eram desfavoráveis à imigração, à pequena propriedade e
que os do Rio Grande do Sul não se enquadravam nesses critérios, visto que grande foi o
movimento de entrada de estrangeiros no estado durante o período que os seguidores de
Comte estiveram à frente do governo. Torres Gonçalves também era contrário à imigração,
mas a subvencionada e a que era realizada apenas tendo em vista os possíveis ganhos
materiais que poderiam dela advir. Para ele, os motivos de ordem econômica não eram
suficientes para incentivar a entrada de imigrantes, visto existirem motivos de ordem moral
relacionados, por exemplo, “à fusão de povos de civilização, crenças e costumes
diferentes”130. Contudo, tal constatação era válida apenas para os “imigrantes engajados”, pois
127 Idem. 128 Carlos Torres Gonçalves. Relatório da Diretoria de Terás e Colonização , p 159. In.: Candido José de Godoy, 1911. Idem, op. cit. 129 Ver, HALL, Michael M. Reformadores de classe média no Império brasileiro: a sociedade central de imigração. Revista de História, v. 105, 1976, p. 147-171. 130 Carlos Torres Gonçalves, 1909. Idem, op. cit., p. 90.
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os espontâneos não acarretariam tantos problemas no sentido de sua assimilação e também era
“um dever de fraternidade agasalhar os estrangeiros que espontaneamente nos procurem”131.
A posição adotada por Torres Gonçalves também é fruto de sua leitura particular do
positivismo, visto que, naquele contexto, incentivar a entrada de imigrantes significava
aumentar a competição entre os grupos proletários e, assim, dificultar sua “incorporação”132.
Sustentado por tais noções, Torres Gonçalves defendia que, ao contrário dos interessados
apenas nos lucros econômicos que poderiam advir da imigração – segundo ele, adeptos da
máxima: povoar é governar – no Brasil, governar era promover a felicidade da pátria. Dessa
forma, além do econômico deveria se pensar no problema da identidade nacional,
principalmente, na “fusão das raças” que, de acordo com o positivismo de Comte, envolvia
questões como os costumes, as crenças e as raças mais propícias a povoar determinado
território.
Assim, Torres Gonçalves defendia que não bastava trazer imigrantes ao Brasil para
povoar suas terras, era preciso estudar a situação e a qualidade dessas terras, estabelecer
meios de transporte que facilitassem a vida dos imigrantes e seus contatos. Do ponto de vista
moral, era necessário pensar na questão da raça melhor adaptável ao país de destino, à
nacionalidade e à classe social a que pertenciam os imigrantes. Havia também o problema dos
nacionais e dos índios que, segundo o diretor da DTC, deveriam receber a mesma atenção que
era destinada aos imigrantes.
Na década de 20, a Sociedade Nacional de Agricultura encaminha um questionário ao
governo do Rio Grande do Sul tratando do problema da imigração. Tal questionário é
respondido por Torres Gonçalves e, em uma pergunta que tratava da aptidão do trabalhador
nacional para o serviço agrícola, o diretor da DTC volta a fazer críticas aos partidários da
idéia de que governar é povoar. Para Gonçalves, os adeptos de tal noção não eram capazes de
apanhar o verdadeiro valor dos nacionais e por isso seriam mais aptos a apoiar a imigração.
Nesta perspectiva, aqueles que como ele eram críticos a ela e defendiam que governar é
promover a felicidade da Pátria, por civismo “não se conduzirão pelas vantagens ilusórias da
imigração” e, por honra e fraternidade, saberiam dar o devido valor aos nacionais, pois,
131 Idem, ibidem. 132 Neste sentido, Ângela Alonso, escreve que a posição dos positivistas brasileiros em relação ao problema da imigração além de ser formulada a partir da lógica da incorporação do proletariado, especialmente dos escravos recém libertos, também levava em conta a questão da identidade nacional, uma vez que ela dependeria da “fusão das raças” e, de acordo com Comte, tal fusão envolveria uma série de elementos tais como a moral, o clima, a diferença de costumes entre a sociedade de acolhimento e os imigrantes, etc... Cf.: ALONSO, Ângela. Idéias em movimentos: a geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002, pg. 249.
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embora houvesse “sua falta de aptidões para vida industrial”, tinham maior apego e amor à
Pátria133.
Em decorrência dessa posição a respeito do problema da imigração, Torres Gonçalves
foi um crítico do acordo assinado entre o Rio Grande do Sul e a União em 1908 para entrada
de imigrantes. O acordo com a Comissão de Povoamento do Solo foi alvo de críticas por parte
do diretor da DTC já em seu relatório de 1909 e, até sua extinção em 1914, Gonçalves insiste
na impraticabilidade do mesmo, bem como, por vezes, trata-o como um erro134. O governo do
Estado, na perspectiva de Gonçalves, deveria utilizar o dinheiro gasto na introdução de novos
imigrantes na organização e melhoramento das colônias existentes, assim como na localização
dos nacionais, na regularização dos intrusos, na proteção dos indígenas e no estabelecimento
da descendência da população colonial residente no estado.
Como é possível verificar, Torres Gonçalves tinha um projeto e planos de futuro
respectivos à colonização, à agricultura, à indústria e à inserção dos indivíduos que
participaram do processo de povoamento do estado. Todos eram permeados por noções
provindas do positivismo e muitos foram alvos de disputas e confrontos, tanto entre os grupos
a quem eles se destinavam como entre os próprios membros do governo e que exerciam
alguma atividade relacionada aos problemas administrados por Gonçalves. Um exemplo
dessas divergências pode ser encontrado em carta escrita pelo Diretor da DTC a Teixeira
Mendes em 1908. Nela, Gonçalves afirma que o então Secretário da Fazenda – Octávio Rocha
– era uma “alma pequenina e divergente” que fora afastado por Júlio de Castilhos, mas que
devido a “fraqueza” de Borges de Medeiros havia retornado ao cargo. Ao tratar do Secretário
das Obras Públicas – Candido Godoy, seu chefe direto – define-o como um “tipo estreito,
‘especialista’, sem vistas de conjunto e, sobretudo, sem preocupações sociais”135,
principalmente em relação aos nacionais.
Cabe aqui fazer uma discussão a respeito da aplicação dos princípios positivistas, tanto
por parte de Torres Gonçalves como dos presidentes de Estado, já que a menção a tal teoria é
133 GONÇALVES, Carlos Torres. A questão da imigração: parecer apresentado pelo Dr. Carlos Torres Gonçalves, diretor de terras e colonização do Estado do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Comércio, 1925, p. 10. 134 No relatório de 1913, Torres Gonçalves escreve: “esta diretoria propõe-vos que seja desfeito o acordo celebrado com a União para introdução de imigrantes, voltando o Estado a realizar a instalação somente de imigrantes espontâneos, de acordo com o regulamento de terras vigente”. Cf.: GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 74. In.: PAROBÉ, João José Pereira. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 20 de agosto de 1913. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Comércio, 1913, p.59-105. (AHRS - OP. 36). 135 Carta de Carlos Torres Gonçalves a Teixeira Mendes, 1º de Junho de 1908. Apud: Paulo Pezat. Idem, op. cit., p. 253.
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constante nas fontes. Ângela Alonso, em seu estudo sobre os intelectuais da geração de 1870 e
as respectivas teorias por eles empregadas demonstra o quanto elas eram armas fortes no
sentido de empreender críticas a ordem saquarema. Assim, eram instrumentos de contestação
utilizados por uma parte da elite intelectual brasileira, a qual devido ao modo como o 2º
Reinado estava estruturado tinha uma inserção social subordinada. Nos termos da autora:
os grupos da geração de 1870 que se mobilizaram não estavam preocupados com a constância doutrinária porque não visavam formar escolas nativas de pensamento. Assim, seu interesse por novas teorias [e o positivismo de Comte é uma delas] pode ser melhor entendido como busca por argumentos e justificativas para expressar seu dissenso e imaginar projetos de reforma em termos novos, distantes da maneira de pensar e das formas de expressão da tradição imperial. (...). Estamos diante de um movimento político intelectual de contestação, formado por grupos sociais dispares em origem social, mas vivendo uma comunidade de experiência: marginalizados pela dominação saquarema136. (Grigo da autora).
A constatação de Alonso pode ser empregada para compreender o papel do
positivismo no Rio Grande do Sul, visto que seus principais adeptos – Julio de Castilhos,
Assis Brasil, Borges de Medeiros, Ramiro Barcelos, Faria Lemos, Torres Gonçalves, entre
outros mais – de uma forma ou de outra, estavam ligados ou eram integrantes ativos da
geração de 1870. Assim, se num primeiro momento o positivismo serviu como ferramenta de
contestação a ordem imperial, especialmente no sentido de buscar uma maior autonomia do
Rio Grande do Sul em relação ao poder central, daí a sua forte defesa do federalismo. Num
segundo, já no período republicano, o positivismo continuou sendo empregado, mas não mais
na perspectiva de contestação, e sim da justificação das ações governamentais e ainda na
defesa da autonomia do estado em relação ao governo federal. Portanto, no que se refere as
políticas de Estado, continuou sendo objeto de uso político e recebeu pouca atenção no seu
sentido doutrinário. O diferencial, por sua vez, está na atuação de Torres Gonçalves como
responsável pela Igreja Positivista do Rio Grande do Sul, onde a ação doutrinária – a
religiosa, em especial – é mais evidente137.
Dessa forma, Torres Gonçalves foi um dos principais positivistas rio-grandenses
preocupados com o aspecto doutrinário religioso da teoria de Comte, bem como empenhou
grande esforço em utilizar o positivismo como plano de fundo para definir as políticas de
colonização e discriminação das terras públicas. Tal empenho, como demonstra João Ehlert
136 Ângela Alonso. Idem, op, cit., p. 162. 137 Para conhecer mais detalhadamente a atuação de Carlos Torres Gonçalves enquanto membro da Igreja Positivista do Rio Grande do Sul, conferir estudo de Paulo Pezat. Carlos Torres Gonçalves, a família, a pátria e a humanidade. Idem, op. cit.
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Maia, deve ser tomado como resultado da sua formação em engenharia, já que ela traduzia
“uma experiência social e intelectual” marcada pela “formação de subjetividades orientadas
para um forte código moral de sabor positivista, que dotava seus adeptos de uma constante
sensação de estranhamento diante da vida social”138. Assim, se empregarmos os termos de
Maia para pensar a atuação de Torres Gonçalves enquanto engenheiro, ele era um
protagonista do mundo da técnica e da organização da vida material, que reconhecia “no
positivismo característico da engenharia politécnica menos uma doutrina que uma forma de
atuar no mundo”139. O positivismo dos engenheiros, nestes termos, operava como “uma
espécie de código moral, capaz de animar personagens disciplinados, austeros e obstinados
para o tema da reforma e do engajamento ético-existencial”140. Tais engenheiros, em linhas
gerais, eram pessoas portadoras de um “forte senso de missão, pertinácia e celebração da
atividade produtiva”, não eram “profissionais da engenharia no sentido restrito, mas tinham
em comum um código moral [o positivismo] que lhes dava disciplina”141. Características que
são facilmente percebidas ao se levar em conta a atuação e a história de vida de Torres
Gonçalves.
Todavia, em muitas situações a teoria não dava conta da prática do povoamento, uma
vez que sua realização exigia reformulações, as quais são visíveis, por exemplo, na atuação
dos subordinados do Diretor da DTC, senão vejamos.
* * *
Já que conhecemos mais detalhadamente um pouco da história, da atuação e dos
planos de futuro de Carlos Torres Gonçalves sobre o povoamento, convém tratar mais
detidamente das ligações existentes entre a gestão das terras públicas, a colonização e a
intrusão. Para tanto, inicialmente utilizarei informações constantes em um processo crime
datado de 1916, no qual o diretor da Colônia Guarani, situada no município de Santo Ângelo,
Clarimundo Almeida dos Santos, foi acusado de desvio de dinheiro público, porque não
estava repassando corretamente as somas arrecadadas da cobrança da dívida colonial para o
138 MAIA, João Marcelo Ehlert. A terra como invenção: o espaço no pensamento social brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 19. 139 Idem, p. 119. 140 Idem, ibidem. 141 Idem, p. 122.
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Tesouro do Estado. No processo crime, particularmente na defesa escrita por Clarimundo e
nos documentos que ele junta aos autos, constam dados esclarecedores sobre a questão142.
Um primeiro tema a ser destacado é a pequena história que Clarimundo escreve sobre
sua atuação enquanto funcionário público e de suas atividades relacionadas ao tema imigração
e colonização. Outro assunto interessante diz respeito ao modo como se dava a fundação de
uma colônia, uma vez que o acusado trabalhara na Colônia Guarani desde o seu início e
escreve um relato sobre as ações que eram realizadas nos momentos anteriores e posteriores à
chegada dos primeiros imigrantes. Por fim, uma terceira temática que a fonte permite
conhecer refere-se a acusação e o desenvolvimento do processo crime propriamente dito, já
que neles estão contidos alguns dos mecanismos usados pelo Estado para controlar ou, no
mínimo, tentar fiscalizar a ação de seus funcionários.
No dia 16 de julho de 1916, Clarimundo Almeida dos Santos junta aos autos do
processo uma defesa escrita de punho próprio, que havia sido encaminhada a Marinho
Loureiro Chaves, então secretário de Estado dos Negócios da Fazenda. Nela consta um
histórico de sua atuação no serviço de terras e colonização. Em 1886, Clarimundo foi
nomeado pelo Ministério da Agricultura para servir como agrimensor na comissão de terras
da Colônia Caxias. Em 1890, mediante a emancipação de Caxias, ele entra em contato com
Pheodoro Pnferson, então chefe de seção da diretoria de obras públicas, e informa sobre a
existência de grande área de terras devolutas “excelentes para colonizar”, situadas na região
norte do estado. O referido Pheodoro “foi ao Rio de Janeiro e conseguiu organizar a Colônia
Lucena da qual fiz parte como agrimensor e depois ajudante até 1892”143. Extinto o cargo de
ajudante, Clarimundo consegue emprego como sub-empreiteiro do Banco Iniciador de
Melhoramentos – instituição criada no início da República e que tinha a tarefa de dividir lotes
coloniais que depois seriam vendidos aos imigrantes. Em 1893, ele muda-se de Santo Ângelo
para São Leopoldo, onde desempenha o cargo de Juiz Distrital e, em 1897, é nomeado diretor
da Colônia Guarani – função que exerceu até 1916, quando é acusado de lesar os cofres
públicos.
Clarimundo escreve que seu primeiro ato como diretor de colônia foi estabelecer os
seus limites territoriais, “especialmente extremando o público do particular” e, nos primeiros
anos, seu principal intuito foi “salvaguardar os interesses do Estado”144. Contudo, todos esses
trabalhos e uma série de outros foram feitos, segundo o diretor, sem auxílio de funcionários
142 APERGS. Processo Crime nº 1404. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1916. Maço 47. 143 Idem, ibidem. Colônia Lucena era o nome inicialmente dado à Colônia Guarani. 144 Idem.
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competentes, sendo que a maioria dos serviços, inclusive o de médico, tinham que ser
executados por ele mesmo. Diante disso, em 1908, com a celebração do tratado entre o
governo do Estado e a União para entrada de imigrantes pelo Povoamento do Solo, quando
chega a primeira leva de imigrantes holandeses, a Colônia Guarani não oferecia condições
para instalá-los.
A falta de funcionários para trabalhar na instalação do grande número de imigrantes
que passa a ser direcionado à colônia a partir de 1908, bem como a não existência de
condições para o abrigo dos mesmos enquanto esperavam para serem encaminhados aos seus
respectivos lotes, leva à eclosão de conflitos. De acordo com o diretor da colônia, as
dificuldades enfrentadas pela comissão eram agravadas com as constantes revoltas e
reclamações “absurdas dos imigrantes que por diversas vezes assaltaram o escritório travando
luta com o pessoal da administração que nem sequer era garantido por força que o pusesse a
coberto de tais afrontas”145. Devido à falta de funcionários que poderiam auxiliá-lo no serviço
de colonização e administração da colônia, viu-se “obrigado” a delegar tarefas a pessoas “não
confiáveis”. Tais indivíduos passaram a falsificar os vales que eram utilizados para realizar
pagamentos aos colonos e, em decorrência disso, ele precisou desviar o saldo do pagamento
da dívida colonial para pagar os aludidos vales falsos.
Para compreender melhor o argumento de defesa apresentado pelo diretor da colônia,
cuja veracidade não está em causa aqui, é necessário conhecer a origem dos mencionados
vales. No momento da assinatura do tratado entre o Estado e a União para o estabelecimento
de imigrantes, o acordo estipulava que a União forneceria a hospedagem dos imigrantes
enquanto eles precisassem ficar em Porto Alegre até serem direcionados a alguma colônia,
pagando por isso a quantia de 1$500 réis por dia e por imigrante de qualquer idade. Era sua
responsabilidade também o transporte dos imigrantes até Cruz Alta além de entrar com a
quantia de 400$000 réis por família de imigrante estabelecida, dos quais 150$000 seriam
destinados à distribuição gratuita de sementes e ferramentas e os 250$000 réis restantes
seriam destinados à construção de casas. Montante que o imigrante, posteriormente, deveria
restituir ao Estado, juntamente com o valor do lote. O Estado teria que devolver à União
150$000 réis por família estabelecida, à medida que elas fossem saldando seus débitos146.
Quando o imigrante chegava na colônia, esses valores eram distribuídos da seguinte forma:
trinta mil réis para ferramentas, vinte mil réis para sementes e duzentos e cinqüenta mil réis para construção de casa, sendo esses últimos auxílios só
145 Idem. 146 Informações constantes no Relatório da Diretoria de Terras e Colonização de 1909. Idem, op. cit., p. 88.
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aplicáveis aos imigrantes encaminhados pelo Povoamento do Solo; além dessas despesas, haviam as de transporte, agasalho, dietas e assistência médica e construção de caminhos vicinais, para cujo serviço dava-se ao imigrante cento e vinte e cinco mil réis; esses pagamentos eram feitos a proporção da necessidade do imigrante requisitando-se os respectivos pagamentos147.
Para fazer tais pagamentos, o diretor da colônia utilizava vales ao portador148, os quais
eram fornecidos pela Repartição de Terras. Os vales eram aceitos no comércio local, serviam
como moeda de troca e eram transacionados por dinheiro ao final dos meses, quando o
Tesouro do Estado fazia o depósito das verbas destinadas aos diferentes serviços. No entanto,
a partir de meados de 1914, segundo Clarimundo dos Santos, tais vales passam a ser
falsificados e daí emerge a dívida dele para com o tesouro estadual, a qual somava, quando da
acusação, o montante de 212:446$490 réis.
Juntamente com a carta de defesa o diretor da Colônia Guarani, junta uma série de
ofícios por ele encaminhados aos responsáveis pelos serviços de terras e colonização nos
quais narra o desenvolvimento de suas atividades. Num primeiro, datado de 13 de novembro
de 1897, relata que na zona sudoeste da colônia viviam alguns “posseiros e intrusos que ali se
estabeleceram a pretexto de desfrutar terras nacionais, que como suas consideram”149. Tais
indivíduos, de acordo com o diretor da colônia, eram “essencialmente nômades, prejudicavam
o Estado devastando os matos sem aproveitá-los firmando-se em um ponto, o que também
redundava em prejuízo seu e de sua família”150. Para resolver o “nomadismo” dessas pessoas,
Clarimundo os proíbe de derrubarem matas e circunscreve-lhes “para cultura e usufruto as
capoeiras adjacentes as suas moradias”, assim como começou a “incutir-lhes a noção de
trabalho produtivo pela intenção permanente e construção de casa para sua família”151. Aqui
fica visível a ação do Estado e seus funcionários no sentido de transformar a forma como as
populações que viviam na região relacionavam-se com o espaço e a prática agrícola.
147 APERGS. Processo Crime nº 1404, Santo Ângelo. Idem, op. cit. 148 Esta prática não era singularidade do Rio Grande do Sul ou do período, Giralda Seyferth em artigo que trata sobre a colonização do vale do Itajaí-Mirim em Santa Catarina no século XIX e sobre os conflitos e resistências relacionados ao processo, chama atenção para o uso de vales como forma de pagamento, bem como o quanto tal prática era motivo de insatisfação entre os colonos, uma vez que, além de em muitas vezes os débitos do Estado para com os colonos não serem saldados, os vales deixavam os colonos numa situação de dependência para com os comerciantes locais que tinham autorização para transacionar os vales por dinheiro ou por produtos. Cf.: SEYFERTH, Giralda. Colonização e conflito: estudo sobre “motins” e “desordens” numa região colonial de Santa Catarina no século XIX. In.: SANTOS, José Vicente Tavares dos (Org.). Violências no tempo da globalização. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 285-330. 149 APERGS. Processo Crime nº 1404, Santo Ângelo. Idem, op. cit. 150 Idem. 151 Idem.
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Em outro ofício datado de 15 de março de 1899, descreve os habitantes da região mais
detalhadamente: “em quase sua totalidade eram paupérrimos e desleixados nas suas
habitações, simples ranchos de capim da forma mais primitiva”152. Na seqüência de sua
narrativa escreve que raras eram as casas “verdadeiramente habitáveis, em sua maioria
engenhos. A produção principal é o fumo, alguma aguardente, rapadura e feijão”153. Ele
também constrói três categorias para classificar os moradores da área sob sua
responsabilidade, a saber: 1) plantadores intensos, os quais se dedicavam à fabricação de
aguardente, rapadura, fumo e plantas de feijão. Donos de casas regulares e “ambição de
domínio sobre as terras que cultivam” desejando a legitimação das mesmas; 2) plantadores
extensos, que só plantavam milho e feijão, faziam uma derrubada de 2, 3 e mais alqueires de
mata (de 5 a 8 hectares) que “plantam e logo abandonam pra fazer nova derribada”.
Clarimundo escreve que encontrou vários indivíduos que se enquadravam nessa categoria,
dentre eles um tal Joaquim Gonçalves que “há 40 anos devasta terras na margem esquerda do
Rio Ijuí Mirim, aonde fez um campo de mais de 20 alqueires [54 hectares], entretanto mora
numa choça de palha cercada de varejões e já escorada em diversas partes”154. De acordo com
o diretor, esse grupo era o mais atrasado e pernicioso, “entendem ter mais direito que outro
qualquer pelo alargamento da área, entretanto, em sua maioria, nem têm meios para pagar as
terras que por longos anos desfrutam”155; 3) os nomadas ou intrusos, os quais “hoje fazem
uma roça aqui e outra além e que vivem a vender – ‘os meus cultivados’”156. Grupo este que,
dividia-se em outras duas categorias: a) vagabundos sem paradeiro – que eram “eternos
fazedores de posses” e b) estancieiros e moradores de povoados – “que mandam também
fazer posses e colocar agregados em terras alheias”157. Diante de tal situação, o diretor conclui
que era urgente fazer a discriminação e legitimação das terras ocupadas por tais indivíduos
para, assim, estabelecer uma ordem ao serviço de terras devolutas na região.
Em um ofício datado de 03 de abril de 1914, ele volta a tratar dos moradores
tradicionais da região, dessa vez deixa clara sua posição a respeito deles. Em linhas gerais,
concorda com as representações discutidas no capítulo anterior existentes sobre essas pessoas.
No mesmo ofício, refere-se aos especuladores e registra que a intrusão só acabaria quando se
acabasse com eles, pois era comum usarem alguns “posseiros como testa de ferro e os
mandarem adiante explorando terras e florestas, mediante qualquer remuneração
152 Idem. 153 Idem. 154 Idem. 155 Idem. 156 Idem. 157 Idem.
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insignificante”158. As classificações elaboradas além de mostrarem como era variada a forma
como as pessoas que viviam na região relacionavam-se com o espaço, apontam para um
elemento que é comum nas fontes: o de classificar os posseiros ricos como especuladores e os
pobres como intrusos. O diretor igualmente reproduz a intenção principal das ações
governamentais direcionadas aos grupos que viviam nas áreas – nesse caso os nacionais – que
estavam sendo incorporadas pelo Estado ou por particulares, isto é, transformá-los em
agricultores produtivos:
quando iniciei os trabalhos de medição e povoamento de Santa Rosa, eu tinha desejo de trazer o meu patrício, o caboclo para a comunhão do trabalho fazendo-o agricultor e arrebatando-o da falsa miragem de pseudo dono de centenares de hectares aproveitados por especuladores. Nunca pretendi expulsar da terra que ocupam, qualquer individuo, mas sempre procurei ligá-lo a terra para assegurar-lhe o futuro da prole pela posse legitima de um farto pedaço de terra produtiva159.
Além das questões relativas à presença de intrusos, posseiros e especuladores,
também existiam as relacionadas à imigração preocupando o diretor da colônia, especialmente
após a entrada em vigência do acordo entre Estado e União. Em 14 de dezembro de 1908,
Clarimundo dos Santos escreve ofício a Vespasiano Rodrigues Corrêa, então diretor da DTC,
e relata as dificuldades no estabelecimento dos imigrantes. Faltavam casas para o alojamento
dos recém chegados, estradas para o transporte dos imigrantes da sede da colônia até os lotes.
A permanência dos imigrantes na sede atrasava os trabalhos relacionados ao cultivo e preparo
dos lotes e ainda existia o risco de epidemias, visto que muitos recém chegados vinham
doentes e não havia nenhum médico na colônia. Outros problemas enfrentados diziam
respeito à falta de lotes medidos para o estabelecimento dos recém chegados, a recusa de
alguns lotes devido sua má localização. Tudo somado repercutia no êxodo de imigrantes para
Argentina. Assim, buscando evitar o deslocamento para o país vizinho, o diretor da colônia
passa a tomar medidas de controle, especialmente no sentido de impedir que aqueles que
haviam recebido verbas públicas assim procedessem. Entretanto, os imigrantes desenvolvem
estratégias para fugir ao controle do diretor, tais como “simular trabalhar para obter os
auxílios” ou enviar alguém em seus lugares para escolha dos lotes.
A transferência de colonos de Guarani para Argentina repercute em problemas para o
diretor da colônia, o qual é cobrado por Carlos Torres Gonçalves que havia recebido um
requerimento de alguns colonos acusando Clarimundo de não saldar as promessas feitas a eles
158 Idem. 159 Idem.
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ainda na Europa. Em ofício datado de 7 de março de 1909, encaminhado a Torres Gonçalves,
Clarimundo dos Santos justifica-se argumentando que os signatários do requerimento eram
“vagabundos que estão contemporanisando e procurando obter favores do Estado para
seguirem para Argentina”160. Eles estavam revoltados, conforme justificava, porque ele se
recusava a lhes dar os auxílios antes de se instalarem e cultivarem os lotes, bem como proibia
que o comércio local trocasse os vales recebidos por tais imigrantes por dinheiro, a não ser
por ferramentas e alimentos: “agora mesmo estão mais de cem a porta do escritório
reclamando auxílios e ameaçando-me. Até agora tenho empregado a máxima prudência,
porém estou aparelhado para empregar a força caso excedam os limites da tolerância”161.
Diante disso, ele pedia a Torres Gonçalves que não encaminhasse mais “esse tipo de
imigrantes”.
Também existia o problema da instalação dos imigrantes em seus respectivos lotes.
Devido à grande quantidade de recém chegados, muitos escolhiam seus lotes sem a
intermediação dos responsáveis por organizar esse aspecto da colonização. A conseqüência
era o aparecimento de conflitos: “se um toma o lote que outro achou bom, é certo ambos se
questionarem e lançarem mãos de todos os meios para obter o lote, iludindo os
empregados”162. Outros abandonavam os lotes e quando resolviam voltar já os encontravam
ocupados. Igualmente, existiam questões relativas à construção das casas, pois alguns colonos
queriam fazê-las eles próprios, outros desejavam que elas fossem construídas pela diretoria da
colônia, alguns pretendiam usar o dinheiro destinado à construção da casa para fins diversos e
outros iniciavam a construção das casas, paravam a obra em uma certa altura, abandonavam o
lote e exigiam restituição pelo trabalho feito163.
Os fatos relatados por Clarimundo possibilitam visualizar a distância existente entre os
projetos e propostas de colonização daquilo que acontecia nas colônias. Também é verificável
a presença de falhas na política de colonização, sendo que a culpa pelos problemas é imputada
aos colonos, os quais quando agiam de forma contestatória eram definidos como
“vagabundos” ou “interesseiros”. Da mesma forma, os exemplos apresentados evidenciam
que o processo de colonização com imigrantes foi marcado pelo conflito e que o ideal do
160 Idem. 161 Idem. 162 Idem. 163 No relatório da DTC de 1911, consta mais um exemplo, ocorrido na Colônia Ijuí, relacionado à construção das casas dos colonos: “devido à grande distância em que foram colocados os imigrantes chegados ultimamente e ao pouco pessoal de que dispõe esta comissão, torna-se impossível uma fiscalização completa do emprego deste auxílio [para construção de casas], o que deu lugar a abusos, tendo alguns imigrantes dado outro destino às importâncias recebidas, fazendo moradias provisórias e mesmo retirando-se sem ter feito coisa alguma”. Carlos Torres Gonçalves, 1911. Idem, op. cit, p. 139.
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colono como um indivíduo resignado e obediente estava longe de acontecer. Giralda Seyferth
ao tratar sobre as ações sociais levadas a cabo por colonos residentes na região de Brusque em
Santa Catarina, ainda durante o século XIX, relata fatos semelhantes aos ocorridos na colônia
Guarani e motivados pelas mesmas circunstâncias. Registra que a existência de ações
reivindicatórias por parte dos colonos levava as autoridades governamentais e a opinião
pública a considerarem a colônia Brusque como um empreendimento fracassado164, bem
como a tratar os envolvidos nas ações com termos pejorativos objetivando, assim,
deslegitimar suas ações. Em outras palavras, do ponto de vista do governo e dos idealizadores
das políticas de colonização, tanto no período imperial como no republicano, o sucesso de
uma colônia estava intimamente vinculado a docilidade dos colonos. Contudo, a análise dos
documentos demonstra o quanto ela não era regra.
Um outro aspecto possível de conhecer a partir do processo crime envolvendo
Clarimundo dos Santos diz respeito à ação fiscalizadora do Estado em relação a seus
funcionários. Na origem do processo esteve uma visita feita por Carlos Torres Gonçalves à
Colônia Guarani em maio de 1915, quando “conversando com Clarimundo a propósito dos
serviços a seu cargo, nesta ocasião o acusado aludiu ao atraso em que se encontrava quanto ao
recolhimento de dinheiro aos cofres públicos do Estado”165. Quando retorna a Porto Alegre,
Torres Gonçalves faz um levantamento geral da dívida e descobre que ela era maior do que o
montante inicialmente informado por Clarimundo. Logo em seguida, é montada uma
comissão de sindicância composta por Torres Gonçalves e por João Carlos de Barros que era
funcionário do Tesouro do Estado. A sindicância é realizada in loco e, a partir da análise de
documentos depositados no arquivo do escritório da diretoria da colônia e em documentos que
estavam guardados na casa de Clarimundo, Torres Gonçalves e Carlos Barros consideram que
o principal argumento da defesa – o da falsificação dos vales – não era suficiente para
justificar o valor do débito.
Também era papel da comissão avaliar os bens do acusado, mas “o agrimensor não
possui bens acumulados em parte alguma e sob nenhuma forma e a situação de seus filhos e
genros é também de inteira pobreza”166. Em conseqüência, os responsáveis pela investigação
concluem que “a explicação do alcance está no excesso de suas despesas particulares sobre os
vencimentos que recebia”167. Os imóveis pertencentes a Clarimundo e que deveriam ser
seqüestrados para pagamento da dívida montavam a aproximadamente 39:000$000 réis,
164 Cf.: Giralda Seyferth. Colonização e conflito. Idem, op. cit., p. 297. 165 APERGS. Processo Crime nº 1403. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1916. Maço 47. 166 Idem, ibidem. 167 Idem.
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contudo, como a dívida do acusado com o Estado era de 212:446$490 réis, ficaria devendo
ainda 173:446$490 réis. Munidos dessas informações, forma-se uma outra comissão,
composta de secretários de Estado e de diretores de diferentes diretorias que analisam o
processo, consideram Clarimundo culpado e pedem a sua demissão.
Concomitante ao processo administrativo, também é aberto um processo judiciário
contra Clarimundo, que aguardava o desenvolvimento do mesmo preso na Intendência do
município de Santo Ângelo. Na noite do dia 29 para 30 de outubro de 1916, o acusado
consegue fugir do cárcere. Em conseqüência da fuga, em dezembro de 1916, o Promotor
Público de Santo Ângelo interpõe processo contra Benjamim Prates Osório, que na época da
evasão era delegado no município e, portanto, encarregado junto com seus guardas por vigiar
a Intendência. Um dos responsáveis pela guarda, em seu depoimento, diz não ter percebido a
fuga e acreditava que Clarimundo havia escapado “vestido de mulher”168. O processo contra
Benjamim é levado adiante, porém, no fim, o Juiz considera ele e seus guardas inocentes. De
acordo com informações presentes nos autos, Clarimundo havia se refugiado na Argentina e,
em 1932, ele entra com um requerimento pedindo a extinção da ação penal, visto já terem
passado 16 anos, logo, a ação estava prescrita. Em 22 de setembro de 1932, o pedido é aceito,
e o Juiz da Comarca de Santo Ângelo decreta o fim do processo.
* * *
De maneira geral, a fundação de colônias no Rio Grande do Sul seguia as normas
estipuladas pela lei de terras estadual de 1899 e seus regulamentos: o de 1900 e o de 1922. A
partir deste último foram feitas algumas alterações visando dar melhor organização aos
serviços. Tais mudanças tinham, entre outras, a meta de dar aos lotes uma distribuição de
acordo com a geografia do local, onde seriam fundadas as colônias e cuidar para que todos
tivessem fácil acesso a fontes de água e viação169. Como os municípios originários de colônias
públicas foram organizados a partir da observância dos preceitos reguladores da lei de terras
168 APERGS. Processo Crime nº 1401. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1916. Maço 47. 169 Os cuidados que deveriam ser tomados na instalação das novas colônias resumiam-se basicamente à observação das seguintes condições: “1ª) que a região disponha já, ou venha a dispor em poucos anos, de saída fácil para a exportação; 2ª) o estudo prévio dos principais cursos d’água da região; 3ª) simultaneamente, o estudo prévio das principais estradas de rodagem; 4ª) subordinação da demarcação dos lotes aos cursos d’água e estradas estudadas; 5ª) delimitação de faixas de mata ao longo das estradas, destinadas à prévia exploração florestal, antes da concessão de lotes, bem como delimitação das florestas reservadas para proteção do solo e do clima, ou simplesmente reservados como fontes de matéria-prima; 6ª) escolha do local, estudo topográfico do mesmo e organização dos projetos, para sede e outros povoados de cada novo núcleo colonial”. Cf.: Carlos Torres Gonçalves, 1914. Idem, op. cit., p. 119-120.
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estadual e seus regulamentos, principalmente no que diz respeito à distribuição dos lotes e
organização espacial dos povoados, ainda hoje os municípios originários destas colônias
carregam características semelhantes quanto a sua organização, tais como as relativas à
distribuição de suas avenidas, praças, prédios públicos e a nomeação das ruas170 (Ver mapas
abaixo). No caso das ruas, elas eram nomeadas seguindo uma seqüência pela qual uma
carregaria o nome de uma pessoa considerada importante, por exemplo, Benjamim Constant,
e a sua paralela seria nomeada com uma data importante: 7 de setembro, assim
sucessivamente em ambas direções Norte/Sul, Leste/Oeste.
FIGURA 11:
COLÔNIA GUARANI – PROJETO PORTO LUCENA
SEDE DA COLÔNIA SANTA ROSA
FONTE: GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, anexos. In.: PINTO, Ildefonso Soares. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 13 de agosto de 1918. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1918, p. 265-320. (AHRS - OP. 50).
De acordo com o texto da lei de terras estadual, no capítulo que trata sobre
colonização e formação de núcleos coloniais, as áreas onde seriam instaladas as sedes das
colônias deveriam ser repartidas em duas zonas concêntricas, separadas por uma avenida de
20 metros de largura. Na área central, demarcar-se-iam quadras, das quais duas ou três eram
170 Sobre isso, Carlos Torres Gonçalves escreve em 1918: “Erechim é também a primeira colônia organizada segundo um programa prévio, obedecendo a regras técnicas, especialmente no traçado das estradas de rodagem, na subdivisão em lotes rurais e na organização dos povoados. E conquanto incompletamente observado este programa, por diversos motivos, entre os quais o atropelo na instalação de imigrantes introduzidos pela União, na primeira fase da colônia, entretanto, resultados apreciáveis foram obtidos”. Cf.: Carlos Torres Gonçalves, 1918. Idem, op. cit., p. 276.
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reservadas para praças públicas. Nas imediações da praça central, seriam construídos os
prédios públicos. Próximo à povoação também deveria ser demarcado um terreno de cerca de
40 hectares, cujo destino era acomodar uma estação experimental de agronomia.
O regulamento estadual de terras de 1900 também estabelecia normas para a recepção
e estabelecimento dos imigrantes, as quais valiam para todos os estrangeiros que objetivassem
se estabelecer no Rio Grande do Sul, exceto aqueles que, a partir de 1908, são encaminhados
pelo Povoamento do Solo, que só seguiriam o regulamento nas questões que não eram
reguladas pelo contrato estabelecido com a União. O regulamento determinava que todos os
imigrantes espontâneos que entravam no estado, independente de nacionalidade, que
quisessem se dedicar à agricultura e ser pequenos proprietários teriam direito a transporte
gratuito do porto de Rio Grande até o núcleo colonial de seu destino. Receberiam abrigo em
Porto Alegre por prazo que não excedesse dez dias e, nas sedes dos núcleos coloniais para
onde fossem transportados, obteriam hospedagem e alimentação por espaço de oito dias. No
entanto, tais prazos, na maioria das vezes, não foram cumpridos fato que repercutiu em
diversas divergências entre os imigrantes e os funcionários das colônias, como ficou evidente
nos relatos feitos por Clarimundo dos Santos, antes mencionados.
Quando chegassem a colônia, receberiam um lote com área de 25 hectares, pelo qual
pagariam um valor não inferior a 1 real por metro quadrado dependendo da qualidade e da
situação das terras. Para o pagamento dos lotes e das importâncias recebidas, a chamada
dívida colonial, os imigrantes teriam prazo de 5 anos e aqueles que conseguissem saldar suas
dívidas antes desse prazo receberiam alguns descontos. Após o fim do prazo, os colonos que
não dessem conta de pagar suas dívidas incorreriam em multas de 20% (no sexto ano) e 30%
(no sétimo ano) sobre o valor das terras.
Já os nacionais e estrangeiros residentes no estado, pagariam a metade do valor dos
lotes no ato da concessão ou dentro de um ano. Depois de findo o primeiro ano, ocorreria um
aumento no valor da dívida em 10%. A outra metade seria paga após o prazo de dois anos,
tempo que poderia ser prorrogado, mas com a incisão de multas de 20 a 30% sobre o valor das
terras. Ainda sobre a divida colonial é importante frisar que os prazos estipulados para seu
pagamento dificilmente foram cumpridos e, diante disso, o Estado se viu obrigado a expedir
uma série de decretos aumentando os prazos ou perdoando dívidas. Segundo José
Nascimento, tal prática estava vinculada a necessidade do governo em obter apoio político
junto a população colonial e para que os colonos “continuassem produzindo alimentos,
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valorizando as terras da região onde residiam e atraindo novos compradores de terras”171, um
outro fator muito importante nesse sentido era o de evitar a emergência de mais conflitos entre
Estado e colonos.
O regulamento estabelecia uma série de outras normas relativas às obrigações dos
colonos depois de estarem estabelecidos sobre os lotes e os passos que deveriam ser seguidos
para a aquisição dos títulos de propriedade. Também definia os preceitos vinculados à
transferência e abandono de terrenos, à forma como o serviço de terras e colonização deveria
funcionar e a quem ficaria a incumbência de colocar o regulamento em prática, assim como
fiscalizar a sua execução. Tal tarefa ficou sob responsabilidade da Secretaria de Obras
Públicas, dentro da qual inicialmente funcionou uma seção denominada Terras e Colonização
que, em 1907, pelo decreto nº 1.018, de 5 de Janeiro, é extinta e, em seu lugar, passa a
funcionar a Diretoria de Terras e Colonização172. A DTC, por sua vez, ao longo de sua
história e devido à complexificação dos trabalhos dos quais estava encarregada também
conheceu uma série de subdivisões173.
Outra característica interessante da DTC, como fica visível na tabela que segue, foi
que, na maior parte do período analisado, ela atuou sob déficit. Nos relatórios, são constantes
as queixas dos diretores devido à falta de dinheiro para melhorar os serviços ao seu encargo.
Raros foram os anos em que a arrecadação feita pela diretoria foi maior do que as despesas. É
interessante ressaltar que durante a administração dos positivistas no Rio Grande do Sul, que
se estende por toda a Primeira República, mais precisamente até o primeiro governo Getúlio
Vargas que inicia em 1928, em nenhum ano o Estado encerrou seu orçamento em déficit174.
Então, a característica de a DTC fechar seu caixa negativamente, entre outras coisas, pode ser
tomada como decorrência da natureza dos serviços que realizava e também do orçamento
171 José Nascimento. Derrubando florestas, plantando povoados. Idem, op, cit., p. 191. 172 As informações citadas referentes à lei de terras estadual e seus regulamentos foram coletados em Luiza Horn Iotti (Org.). Idem, op. cit. 173 Nesse sentido, em 1913, o secretário de Obras Públicas escrevia: “atualmente a Diretoria de Terras e Colonização tem 3 seções, tratando a 1ª do serviço de terras, a 2ª do serviço de colonização e a 3ª do serviço florestal, agro-pecuário, etc”. Cf.: João José Pereira Parobé, 1913. Idem, op. cit., p. 09. 174 Sobre esse fato, Pedro Dutra Fonseca escreve “a defesa do orçamento equilibrado (...) obrigava freqüentemente a haver apelos à iniciativa privada a fim de realizar certas obras essenciais. O orçamento equilibrado era também um dogma comtiano, e sua defesa baseava-se em um argumento moral: o Estado é o ‘cérebro da sociedade’, e seu dinheiro é o da coletividade; o déficit orçamentário era também um déficit dos cidadãos: nesse caso, o governo estaria devendo o que não era dele. Por outro lado, as ‘finanças sadias’ do governo constituíam-se em um exemplo para sociedade. Não raro ao equilíbrio orçamentário associou-se uma boa situação econômica, sendo aspecto importante na legitimação do governo republicano: freqüentemente apresentava-se o castilhismo como saneador dos males do Império, onde o déficit seguidamente ocorria”. Cf.: FONSECA, Pedro Dutra. RS: economia e conflitos políticos na República Velha. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983, p. 97-98.
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reduzido que recebia, o qual era estritamente controlado a fim de evitar que o Estado fechasse
suas contas em déficit.
TABELA 1:
RECEITA E DESPESA DA DTC ENTRE 1907 E 1925
Anos Receita total Despesa Déficits Saldo
1907 265:606$676 322:002$322 56:395$646 ++++ 1908 416:330$114 467:084$512 50:754$398 ++++ 1909 656:179$956 973:768$884 317:588$928 ++++ 1910 317:720$316 870:403$281 552:682$965 ++++ 1911 876:973$070 1.142:290$790 265:317$720 ++++ 1912 1.376:672$960 1.835:416$487 458:743$527 ++++ 1913 1.437:843$946 1.901:535$109 463:691$163 ++++ 1914 828:707$996 1.503:009$845 674:301$849 ++++ 1915 653:565$000 870:216$611 216:651$691 ++++ 1916 1.178:282$618 717:804$668 ++++ 460:477$050 1917 1.517:416$301 1.234:157$923 ++++ 283:258$378 1918 2.409:379$724 1.940:199$349 ++++ 469:180$375 1919 2.391:420$291 2.163:189$954 ++++ 228:230$437 1920 2.500:438$355 3.402:603$800 902:165$445 ++++ 1921 2.006:071$245 2.201:602$691 195:531$446 ++++ 1922 2.391:868$972 3.526:508$346 1.134:639$374 ++++ 1923 1.271:953$914 1.594:032$800 322:078$886 ++++ 1924 2.842:077$361 1.762:626$281 ++++ 1.079:451$080 1925 3.737:713$702 1.950:010$479 ++++ 1.787:703$223
FONTE: Números coletados ao longo dos relatórios da DTC. Nestes dados são excluídas as despesas com o pessoal do quadro, isto é, os funcionários diretos da DTC.
A partir dos dados expostos, é possível realizar algumas análises importantes. Em
primeiro lugar, cabe sublinhar os esforços promovidos por parte dos funcionários públicos
ligados à DTC e orientados por Carlos Torres Gonçalves para fazer valer as determinações da
lei de terras estadual: “estou com a lei escrita e promulgada, tenho procurado fazê-la respeitar
e com ela cairei”175. Nesses termos, Clarimundo dos Santos descreve os trabalhos que vinha
realizando na discriminação do domínio público do privado na Colônia Guarani.
Evidentemente que o próprio desenvolvimento do processo de ocupação das terras
impossibilitava a execução de alguns preceitos presentes na lei e muitas propriedades,
especialmente as grandes, foram legitimadas burlando tais normas, seja inventando
175 APERGS. Processo Crime nº 1404, Santo Ângelo. Idem, op. cit.
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documentos, seja contando com auxílio dos responsáveis por avaliar os pedidos de
legitimação.
Um outro fato que deve ser destacado é que, de acordo com os termos da lei de terras
estadual e seus regulamentos, os nacionais, os negros e os índios foram preteridos em relação
aos imigrantes. Assim, mesmo que ocupassem a terra onde residiam desde tempos bem
anteriores às leis que regulavam o assunto e se considerassem donos legítimos dos espaços
que, a seu modo, exploravam, a partir do avanço da colonização, do interesse intensivamente
perseguido de discriminar o público do privado visando os lucros que poderiam advir da
venda das terras, da intenção de construir um tipo de agricultor produtivo e afeito à
propriedade, tais indivíduos foram pressionados a se inserir no processo, mas em condições
não tão acessíveis como as que eram dadas aos imigrantes. Muitos deles, inclusive alguns
colonos, não se enquadraram as exigências, resistiram as políticas de colonização, foram
expulsos, tratados como intrusos, taxados de vadios, nômades, acaboclados, etc...
Assim, para melhor compreender o processo de povoamento é importante sublinhar
que os grupos que viviam na região serrana, mesmo residindo num espaço de fronteira
agrária, não participavam de um mundo à parte, isolado, autônomo, nem sua atividade
produtiva se “guiava única ou primordialmente pela lógica do consumo e da subsistência
familiar, (...). Eles estavam dentro da sociedade e, de um modo específico, participavam da
produção social”176. No caso analisado, é visível que distintas eram as concepções e
diferenciadas as avaliações das vantagens e desvantagens que poderiam advir das estratégias
adotadas pelos participantes do processo de povoamento. Da mesma forma, as percepções de
tempo e previsões de futuro não eram partilhadas em bloco. Entretanto, a existência entre os
“mais pobres” de
estratégias diferenciadas, e até competindo entre si, não implica necessariamente em ‘lógicas’ econômicas e sociais antagônicas na sua essência; podem significar a escolha de distintos meios para se atingir os mesmos fins, ou distintas ‘apostas’ dentro de um mesmo ‘jogo’. Não se excluindo, neste sentido, a possibilidade de estratégias mistas177.
Em outras palavras, qualquer tentativa de explicar o povoamento como resultado das
brigas entre blocos coesos e antagônicos ou afirmar que alguns grupos apenas sofreram o
processo e o leram a partir de uma lógica peculiar e imutável que os colocava em oposição
direta com outro grupo “mais poderoso” e com aquilo que estava acontecendo pode
obscurecer a análise de alguns detalhes importantes e que iluminam muito sobre o
176 Leonarda Musumeci. O mito da terra liberta. Idem, op. cit., p. 165. 177 Idem, p. 109.
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desenvolvimento do povoamento. Em termos mais específicos, nem todos os colonos eram
colonos nos moldes que os burocratas do Estado desejavam. Alguns nacionais e negros que
viviam na região fixaram-se a terra e, assim, passaram a ser vistos e descritos como úteis
socialmente. Outros “por fazerem bom negócio, transferiram as suas terras, ou simplesmente
os seus pretendidos ‘direitos de posse’ ao primeiro colono de origem estrangeira que aparecia
propondo-se a isto”178. O projeto de incorporação dos grupos indígenas, cuja origem situa-se
em períodos bastante anteriores à Primeira República, também encontrou algum “sucesso”
entre os próprios índios. Entretanto, todos responderam a seu modo, baseados em suas
experiências sociais próprias e a partir de escolha de estratégias específicas e diferenciadas
para se inserirem no contexto de mudanças característico da situação que estavam vivendo.
Assim, uma das principais transformações que aconteceu, especialmente para os
grupos indígenas, foi relativa à forma como as pessoas que viviam na região relacionavam-se
com o espaço, o definiam e o interpretavam. Nessa perspectiva, o estudo de Beatriz Heredia,
antes citado, permite compreender mais detalhadamente o que tais mudanças representam na
vida das pessoas. As fontes que venho utilizando trazem informações importantes no sentido
de perceber que existia um esforço por parte do Estado para que tais populações mudassem o
modo como se relacionavam com o território e com a agricultura, principalmente para que
adquirissem uma noção de propriedade conformada aos moldes de uma suposta e desejada
sociedade ocidental moderna. Contudo, tais informações devem ser contrapostas a
constatação de que a forma como as populações de uma determinada região se inserem num
contexto sócio-cultural mais amplo e a maneira como essas pessoas compreendem o que
acontece no “mundo externo” têm influência direta e indireta na forma como os processos
sociais se desenvolvem na esfera local e, igualmente, na extra-local179. Em outras palavras, o
povoamento da região serrana esteve longe de ser uma via de mão única e envolveu
discussões profundas e conflitos corriqueiros entre os diferenciados grupos envolvidos no
processo.
Dessa forma, mesmo que o grupo “mais rico” tenha sido beneficiado devido a sua
proximidade com o Estado e a sua situação econômica, as benesses das quais ele poderia
desfrutar também eram alvo de limitações, pois as suas relações com Estado também são 178 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 383. In.: ALVES, Protásio. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Protásio Alves, Secretário de Estado, interino, dos Negócios das Obras Públicas, em 14 de setembro de 1917. Porto Alegre: Tipografia da Empresa Gráfica Rio-Grandense, 1917, p. 345-441. (AHRS - OP. 46). 179 Cf.: WOLF, Eric. Tipos de campesinato latino-americano: uma discussão preliminar, p. 121-122. In.: FELDMAN-BIANCO, Bela; RIBEIRO, Gustavo Lins (Orgs.). Antropologia e poder: contribuições de Eric R. Wolf. Brasília: Editora UNB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; São Paulo: Editora UNICAMP, 2003, p. 117-145.
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regidas pelo conflito, principalmente no caso dos oposicionistas ao governo. Em outros
termos, embora as leis não necessariamente fossem aplicadas em toda sua potencialidade e
fossem constantemente burladas pelos grandes fazendeiros, sua existência exigia um mínimo
de controle por parte do Estado no sentido de sua aplicação. Assim, devido a sua
“universalidade” as leis que regulavam a questão fundiária no estado também poderiam,
dependendo da situação, ser acionadas pelos lavradores pobres em defesa de seus interesses.
Dessa forma, também limitavam a ação do grupo “mais rico” que, tradicionalmente, é
apresentado como beneficiário das leis e das ações governamentais.
A tese de doutorado de Márcia Motta é um exemplo de pesquisa que consegue romper
com tal visão e está longe de se inserir na categoria dos estudos que tratam os lavradores
pobres como atores passivos de um teatro no qual atuam apenas como coadjuvantes. Em sua
pesquisa, ao analisar a Lei de Terras de 1850, “geralmente reduzida pela historiografia ao seu
primeiro artigo”, a autora mostra como essa lei também limitou a ação dos fazendeiros no
sentido da expansão de seu domínio sobre terras e homens, além de ter sido usada, em alguns
casos, pela população pobre para defesa de seus interesses. As ações dos homens livres
pobres, segundo Motta, não eram resultado simplesmente de sua fome ou por se sentirem
oprimidos, mas “fundamentalmente, porque suas ações tinham a ver com suas experiências de
luta e suas tradições culturais acerca do acesso à terra. Esses homens, aos trancos e barrancos,
no vai e vem da justiça, tinham lá os seus poderes”180. Em outro termos, é necessário pensar o
universo rural como um universo que não está reduzido única e somente ao poder dos grandes
fazendeiros, já que, como registra Motta, mesmo eles estando
seguros em seu poder se depararam, algumas vezes, com a necessidade de seguir os parâmetros legais e medir e demarcar suas terras, oriundas de uma concessão de sesmarias. Os processos de embargo não conseguiam impedir a reiterada disputa de terras dos confrontantes, tornando as áreas limítrofes fontes de tensões e conflitos entre vários agentes sociais, transformando as fronteiras em espaços de lutas, em fronteiras em movimento181.
Iniciei este tópico tratando da intrusão e registrei algumas de suas características.
Cabe agora aprofundar um pouco mais a análise da mesma e conhecer melhor como
aconteceu a construção dessa categoria e sua aplicação. Um aspecto importante a ser
registrado sobre a intrusão é o de que à medida que o tempo avança e o processo de
colonização se desenvolve, o número de intrusos aumenta, e os descendentes dos primeiros
180 MOTTA, Márcia Menendes. Nas fronteiras do poder: conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998, p. 45. 181 Idem, p. 105.
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imigrantes chegados ao Rio Grande do Sul, devido ao incremento populacional e o aumento
das pressões por terra em suas localidades de origem – as colônias velhas –, passam a
constituir a maior parte dessa categoria. Torres Gonçalves, em 1913, escreve que “nas divisas
do município de Passo Fundo com o da Lagoa Vermelha, tem havido invasão das matas do
Estado por intrusos, vindos das antigas colônias”182. No seu relatório de 1914, Gonçalves
volta a tratar do problema da intrusão e escreve: “os intrusos estabelecidos em terras do
Estado são indivíduos nacionais e, na maioria, agricultores de origem estrangeira,
procedentes das antigas colônias”183 (Grifo meu). Tais indivíduos eram descritos como os
menos “apropriados para a cooperação no bem comum”, uma vez que eram “imprevidentes e
sem amor pelo pedaço de terra que se apossam, na generalidade dos casos, cortam a mata
muito além da necessidade da cultura que fazem”184. Torres Gonçalves estimava que o
contingente de intrusos vivendo no Rio Grande do Sul contava em torno de 50.000 pessoas e
era de suma importância regularizar a situação “dessa enorme população o quanto antes”185.
Naquele momento, para Torres Gonçalves, as principais causas da intrusão eram a
falta de lotes demarcados capazes de atender as demandas provindas do aumento da
população colonial, a ausência de funcionários para atender os serviços relativos à
colonização e a “falsa noção de poder cada qual dispor para seu estabelecimento das terras do
domínio público, alimentada até por autoridades municipais”186. Aqui o Diretor da DTC
demonstra a existência de uma distância entre aquilo que era determinado pelo Estado como
medida a ser tomada em relação à intrusão e àquilo que as autoridades locais faziam. No
relatório de 1916, ele volta a tratar do problema e pondera que uma das principais
dificuldades para acabar com a intrusão era a existência de autoridades municipais que
opunham obstáculos às determinações dos funcionários do Estado, “alimentando francamente
a intrusão, indicando aos nacionais que se queixam da falta de terras o estabelecimento nas
que encontrarem baldias, em vez de induzi-los a entenderem-se com os chefes de serviço”187.
Em um dos trechos citados acima, Gonçalves dá a entender que existia uma “noção”,
por ele definida como “falsa”, de que o estabelecimento em terras de domínio público ficava a
critério de “cada qual”. Para eliminar tal prática e, conseqüentemente, acabar com a intrusão,
Gonçalves sugeria que era necessário transformar “o intruso em proprietário”. Em outros
termos, apenas a partir da transformação que tinha por principal objetivo inserir os intrusos
182 Carlos Torres Gonçalves, 1913. Idem, op. cit., p. 95. 183 Carlos Torres Gonçalves, 1914. Idem, op. cit., p. 110-111. 184 Idem, ibidem. 185 Idem. 186 Idem. 187 Carlos Torres Gonçalves, 1916. Idem, op. cit., p. 123.
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nas “vantagens da vida industrial moderna” e torná-los proprietários, eles deixariam de ser
intrusos e teriam seus direitos reconhecidos. Na passagem da condição de intruso para a de
proprietário, Torres Gonçalves almejava que aqueles que se enquadravam, ou melhor, eram
enquadrados nessa categoria, experimentassem “as reações inerentes à posse da residência,
desenvolvendo-se neles o instinto conservador e reduzindo-se o da destruição”188.
Além disso, tal mudança, de acordo com o diretor da DTC, acarretaria no
desenvolvimento de um maior senso de respeito por parte dessas pessoas em relação às
autoridades. No mesmo sentido, permitiria que uma parte considerável da população que
habitava na região serrana fosse enquadrada nos termos das leis e regulamentos que
gerenciavam a questão das terras – ou seja, reconhecessem o Estado e o legitimassem. Ainda
sobre tal questão, em sua mensagem encaminhada à Assembléia dos Representantes em 1911,
o Presidente do Estado defendia que o papel da administração estadual em relação aos
intrusos e aos nacionais que, dependendo da situação, poderiam também ser taxados de
intrusos assim como os colonos, era não afugentá-los, mas “sobretudo elevar-lhes o moral,
tornando-os proprietários das terras que inconscientemente devastam e as quais saberão
apreciar e devidamente amar com a posse legal e legítima”189.
Evidentemente que a intrusão não ocorria apenas em terras do domínio público, mas
em áreas privadas e, quando assim acontecia, os problemas eram ainda maiores. Em tais
casos, de acordo com Torres Gonçalves, os “legítimos proprietários” procuravam solucionar a
questão por meio das vias administrativas – realizando de acertos, muitas vezes intermediados
pelos funcionários da DTC – ou em juízo. A segunda opção era a “menos comum”, porém a
mais conflituosa, visto que “os proprietários particulares, munidos previamente de ordens de
despejo judicial, procuram executá-las, surgindo daí incidentes desagradáveis”190. Diante
disso, Torres Gonçalves argumentava que o Estado deveria se colocar “no ponto de vista geral
da coletividade” e reconhecer “o caráter complexo desses fatos e a sua delicadeza”. De acordo
com o diretor da DTC, era preciso considerar que a intrusão não era resultado de instintos
criminosos, uma vez que havia surgido de causas remotas, tais como: “a constituição irregular
188 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 138. In.: GODOY, Candido José de. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, Candido José de Godoy, em 10 de setembro de 1910. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1910, p. 93-157. (AHRS - OP. 24). Sobre a questão de se pretender reduzir o “instinto de destruição” dos intrusos, é conveniente sublinhar que nos relatórios tais indivíduos são constantemente apontados como os “principais inimigos da floresta”, a qual de acordo com a visão de Torres Gonçalves, destruíam bem mais do que suas necessidades de cultivo. 189 Carlos Barbosa Gonçalves, 1911. Idem, op. cit., p. 30. 190 Carlos Torres Gonçalves, 1916. Idem, op. cit., p. 119.
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da propriedade privada, determinando incertezas sobre a mesma”191, a grande extensão de
terras devolutas existentes no estado, e do aumento vertiginoso da população colonial,
principalmente após o acordo com o Povoamento do Solo192. Em contrapartida, o argumento
de que o Estado deveria se pautar a partir do ponto de vista da coletividade não é fruto, pura e
simplesmente, de uma noção de Estado ideal baseado em fins humanitários como geralmente
as fontes dão a entender, mas de uma opção político-administrativa, cujo objetivo era definir a
governabilidade e a tranqüilidade no estado.
O próprio Torres Gonçalves demonstra a pertinência de tal constatação quando, na
seqüência de seu texto sobre o problema da intrusão, presente no relatório da DTC de 1916,
escreve que “se o Governo realizasse ou consentisse no despejo das 5 ou 6 dezenas de
milhares de intrusos espalhados pelo território do estado, arriscar-se-ia a provocar uma
explosão social comparável à que acabam de sofrer os Estados irmãos de Santa Catarina e
Paraná”193. Em outras palavras, temia-se o risco de acontecer, em território rio-grandense,
uma revolta semelhante à que foi a do Contestado. Por sua vez, tal receio não é expresso
apenas por Torres Gonçalves, mas, em 1915, o Presidente do Estado, Salvador Ayres Pinheiro
Machado, relatou à Assembléia dos Representantes o envio de uma tropa da brigada militar
até a fronteira do estado com Santa Catarina objetivando conter o possível avanço dos
“rebeldes do Contestado” em direção ao Rio Grande do Sul194. Assim, para evitar qualquer
tipo de problema que pudesse vir a perturbar a ordem, Torres Gonçalves aconselhava que o
Estado deveria continuar tomando medidas no sentido de satisfazer alguns dos interesses dos
intrusos, já que, ao fim e ao cabo, eram “agricultores essencialmente comparáveis aos demais
colonos”195. Era necessário, no entanto, incutir-lhes mais profundamente a noção de
propriedade e suas benesses.
191 Idem, ibidem. 192 Sobre a questão do acordo com a União para a instalação de imigrantes e a intrusão, o diretor da DTC escreve, no relatório de 1914: “se em vez da instalação que realizamos nestes últimos 6 anos, dos 41.938 imigrantes introduzidos pelo Povoamento do Solo, tivéssemos consagrado os nossos esforços em normalizar a situação dos intrusos existentes em terras do Estado, conforme não temos cessado de lembrar, enormes benefícios teríamos já colhido, que podem ser assim resumidos: 1º) grande redução nas despesas públicas; 2º) aumento considerável na receita proveniente da venda de terras; 3º) redução da devastação das florestas; 4º) a vantagem inapreciável do desenvolvimento da ordem da propriedade territorial, com todos os benefícios decorrentes”. Cf.: Carlos Torres Gonçalves, 1914. Idem, op. cit., p, 111. 193 Carlos Torres Gonçalves, 1916. Idem, op. cit., p. 119. 194 MACHADO, Salvador Ayres Pinheiro. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Vice-presidente em exercício, General Salvador Ayres Pinheiro Machado, na 1ª sessão ordinária da 9ª legislatura, em 20 de outubro de 1915. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, p. 10. 195 Carlos Torres Gonçalves, 1916. Idem, ibidem.
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Outra fonte de problemas para o Estado, vinculada à colonização e à discriminação
dos domínios públicos e privados, era a da colonização particular196. João Parobé, no relatório
da SENOP de 1902, acusa os promotores da colonização particular de estarem desviando
imigrantes das colônias do Estado causando prejuízos ao poder público que “faz despesas de
alimentação e transporte dos imigrantes que são aproveitados pelos particulares”197. Em 1914,
Torres Gonçalves escreve que é freqüente o número de pedidos para concessão de grandes
áreas para serem destinadas à colonização. Contudo, o diretor da DTC pondera que tal
transferência de terras, do ponto de vista financeiro, poderia ser lucrativa para o Estado,
porém, “do ponto de vista social”, era preferível vender as terras diretamente ao pequeno
produtor. Assim, além de adquirir o valor da terra, o Estado também obteria um ressarcimento
dos valores indiretos vinculados à instalação dos colonos. Enquanto que, pondera Gonçalves,
o “colonizador particular, por menos cobiça que tenha, precisa assegurar o juro capital que
empregou”198. Dessa forma, a colonização particular pouco se importaria com problemas de
ordem moral, visto que visava “simplesmente operações mercantis, só atendendo a condições
materiais e industriais”199.
No relatório da DTC de 1917, Torres Gonçalves anota que o Governo do Estado não
cedia terras para a colonização particular, mas fazia a venda direta aos pequenos produtores.
Entretanto, não era possível ter um controle completo sobre tal questão, já que muitas terras
situadas na região – e que foram recebidas em indenização porque o Estado havia fundado
colônias em áreas posteriormente definidas como “privadas” – eram revendidas a
colonizadores particulares. Tais colonizadores, de acordo com Gonçalves, fundavam colônias
com a única preocupação de lucrar e, assim, não atentavam para a organização dos povoados,
denominavam as ruas e praças com nomes de sua escolha e não se preocupavam com a
preservação das florestas. Outro problema muito comum era o de que os colonizadores
particulares não observavam “a proteção devida aos nacionais que encontram nas terras, antes
os vão gradualmente afastando”200. Também não misturavam indivíduos de diversas
196 Cabe ressaltar, como fiz na introdução deste trabalho, que pouco abordarei as questões relacionadas a colonização particular, uma vez que tratar tal tema exigiria a realização de pesquisas em um conjunto bastante grande de documentos. Para conhecer mais detalhadamente os aspectos relacionados a colonização privada na região verificar o trabalho de José Nascimento mencionado ao longo deste capítulo. 197 João José Pereira Parobé, 1902. Idem, op. cit., p. 07. 198 Carlos Torres Gonçalves, 1914. Idem, op. cit., p.120-121. 199 Idem, ibidem. 200 Carlos Torres Gonçalves, 1917. Idem, op. cit., p. 362-363. Os estudos sobre a colonização particular evidenciam que a prática de expulsar os nacionais que habitavam território que posteriormente foram usados para fundação de colônias particulares era comum. Um exemplo é a ação da companhia colonizadora de propriedade de Arno Mayer. Para conhecer mais detalhadamente estas ações, conferir: José Nascimento. Derrubando florestas, plantando povoados. Idem, op. cit., p. 154-155.
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“nacionalidades, entre si com os nacionais, organizam núcleos de uma só nacionalidade, onde
a língua e os costumes do país são às vezes totalmente estranhos, com grave perturbação para
a marcha da nossa evolução política”201. Diante disso, o regulamento de terras de 1922, em
seus artigos 34º e 35º, estipula um maior nível de interferência dos poderes públicos sobre a
administração das colônias privadas. Dentre os assuntos regulados por tais artigos, estavam o
de que a instalação de colônias particulares só poderia acontecer a partir da prévia aprovação
dos seus respectivos projetos pela SENOP. Da mesma forma, aqui novamente aparece a
influência do positivismo, os nomes dos núcleos coloniais, das ruas, praças e etc..., deveriam
ser aprovados pela SENOP202.
Em 1917, segundo dados da Mensagem enviada pelo Presidente de Estado à
Assembléia dos Representantes, o Rio Grande do Sul possuía uma população colonial de
cerca de 750.000 habitantes com um crescimento anual de 18.000 pessoas. Desse montante:
120.000 eram nacionais; 300.000 alemães e seus descendentes; 230.000 italianos e
descendentes; 70.000 polacos, russos e descendentes e os outros 30.000 eram enquadrados na
categoria diversos. Da população total, 560.000 viviam em núcleos fundados ou pela União
ou pelo Estado e 190.000 em colônias particulares. A superfície colonizada era, nos núcleos
públicos, de 2.350.000 hectares e nos particulares de 850.000 hectares – o que fechava o total
de 3.200.000 hectares destinados às colônias. Na região colonial, a densidade demográfica era
de 23,4 habitantes por quilômetro quadrado e no estado como um todo era de 6,8 habitantes.
Quanto aos núcleos coloniais existentes, o número era de 125, dos quais 52 haviam sido
fundados pelos poderes públicos e 73 por particulares. No ano de 1917, achavam-se em
funcionamento e sob direção do Estado apenas os núcleos coloniais de Erechim, Guarani,
Santa Rosa e Guarita – os outros já haviam se constituído em municípios, sendo o primeiro
São Leopoldo emancipado em 1846 e último Ijuí em 1912203.
Em 1924, o número de colônias fundadas pela iniciativa privada sobe para 112, e as
públicas para 60. O estado possuía 73 municípios sendo que, em 48 deles, existia algum tipo
de colonização. Das colônias públicas, a última fundada fora Guarita, em 05 de janeiro de
1917, e a emancipada Erechim, em 30 de abril de 1918204. Em 1925, o total da população das
colônias sobe para 924.000 habitantes, sendo que 600.000 viviam em núcleos fundados pelos
poderes públicos e 324.000 em áreas de colonização privada. A média de habitantes por
201Idem, ibidem. 202 Cf.: Carlos Torres Gonçalves, 1923. Idem, op. cit., p. 495. 203 Números retirados de: Antônio Augusto Borges de Medeiros, 1917. Idem, op. cit., p. 29-30. 204 Carlos Torres Gonçalves, 1924. Idem, op. cit., p. 491-493.
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núcleo colonial era de 10.800 nas colônias públicas e 3.200 nas particulares205. Tais números
traduzem de uma maneira clara o expressivo aumento populacional que a região conheceu
durante o período analisado e para o qual chamei atenção ainda no primeiro capítulo.
Ainda de acordo com os dados presentes no relatório da DTC, em 1924 restavam cerca
de 2.200.000 hectares de terras devolutas sob o domínio do Estado, dos quais 1.858.123
hectares eram parte do território das cinco colônias em funcionamento. No ano de 1925, o
número de hectares disponíveis para colonização nas colônias baixa para 1.632.341, ou seja,
uma redução anual de 225.782 hectares. Este número, ao ser dividido por 25 – que era o
tamanho médio em hectares dos lotes coloniais – indica que foram estabelecidas cerca de
9.031 famílias no espaço de um ano. Mediante tais números, Carlos Torres Gonçalves
conclui: “não conseguindo o Estado atender a instalação de boa parte da descendência da sua
população colonial (...), é claro que não pode admitir, para estabelecer em suas colônias,
novas levas de imigrantes”206. Em outros termos, por volta de 1925, a fronteira norte já estava
fechada senão total, pelo menos parcialmente.
Cabe registrar, para findar este capítulo, que ainda existe uma série de outras questões
relacionadas ao tema terras e colonização respectivos à Primeira República que poderiam ser
desenvolvidos. Por exemplo, o problema do imposto territorial, o modo como se desenvolveu
o processo de fundação das colônias e as realidade particulares a cada uma delas. As fontes
aqui utilizadas permitem analisar todas essas questões e outras mais de forma pormenorizada.
Contudo, não desenvolverei tais temas por considerar que os assuntos até o momento
desenvolvidos são suficientes para entender a maneira como se processou o povoamento da
região serrana. Também por entender que eles possibilitam visualizar o quanto o projeto de
colonização pensado pelo grupo de funcionários do Estado, teve que ser alterado a partir da
sua prática e do modo como as populações a quem ele se destinava o recebia.
205 Carlos Torres Gonçalves. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 357. In.: CHAVES, Antônio Marinho Loureiro. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Antônio Marinho Loureiro Chaves, Secretário de Estado, interino, dos Negócios das Obras Públicas, em 28 de julho de 1925. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, Volume 1, 1925, p. 347-423. (AHRS - OP. 82). 206 Idem, p. 361.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Meu canto é rio, Meu canto é sol,
Meu canto é vento, Eu tenho berço, Eu tenho pátria,
Eu tenho glória, Eu só não tenho terra própria
Porque a história Que eu escrevi,
Me deserdou no testamento.
Cenair Maicá Jaime Caetano Braum
Índios, nacionais, imigrantes e negros são os personagens principais deste estudo. Atores
de uma história que em muitos de seus aspectos ainda não recebeu atenção proporcional a sua
importância. Ao longo desta análise busquei abordar alguns destes assuntos e uma das conclusões
a que chego é a de que ainda resta um longo caminho a ser trilhado na tentativa de dar voz a tais
pessoas e/ou grupos sociais. Como muito grifei ao longo das linhas que compõem este trabalho,
as histórias que se contam a respeito do povoamento do Rio Grande do Sul, com algumas
excessões, tendem a priorizar a análise da imigração européia definindo a atuação dos outros
grupos sociais como secundária. Da mesma forma, um dos principais assuntos relacionados ao
povoamento e a colonização - o problema da apropriação fundiária - é “romantizada” de maneira
a camuflar os conflitos que lhe são peculiares. Confrontos que ganharam os mais diferentes
matizes e envolvem discursos diversos e, muitas vezes, divergentes. Tais como aquele que diz
que o imigrante europeu era mais capacitado e melhor trabalhador que os outros grupos sociais
por representar uma raça superior e, dessa forma, um ideal de civilização.
Nesta perspectiva, busquei demonstrar o quanto a região sob análise foi construída
historicamente pela ação daqueles que, de alguma forma, participaram de seu povoamento. Longe
de ter sido um processo harmônico, o povoamento da região de matas do Rio Grande do Sul na
Primeira República, mais precisamente do território formado pelos municípios de Cruz Alta,
Palmeira das Missões, Passo Fundo e Santo Ângelo, envolveu um sem número de disputas, cujo
principal elemento de conflito foi a terra e o estabelecimento da propriedade fundiária.
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Todavia, ao analisar aquilo que em algum momento desta tese denominei de o “fazer-se”
do povoamento, é possível verificar que grande parte dos ideais e das idéias defendidas por
aqueles que estavam a frente da colonização, seja dos agentes governamentais ou do grupo
economicamente mais bem situado da sociedade local, não encontraram efetividade na prática.
No caso específico dos adjetivos utilizados para denominar os diferentes grupos e o conteúdo que
lhes é caracterítico, tratei-os como representações. Isto é, eram “atos de instituição mais ou
menos fundados socialmente”, cujo objetivo era transmitir a tais grupos a idéia de que eles
possuiam determinadas qualidades e deveriam se comportar em conformidade com a essência
social a eles atribuída1. Contudo, isso não significou que na prática tais discursos alcançassem
efetividade plena; pelo contrário, muitos destes atos de instituição passaram por mudanças
exatamente porque os grupos a quem eles se destinavam resistiram em aceitá-los pacatamente.
Na época, o padre Antoni Cuber – primeiro vigário da colônia Ijuí – definia-a como Babel
do Novo Mundo. A analogia bíblica de Cuber, como busquei evidenciar, era fiel aquilo que ele
estava vivenciando, pois ela marca de forma exata a presença na região de pessoas provindas das
mais diversas origens sociais e étnicas. Ela também consegue expressar a existência de diferentes
tipos de sociabilidade, cuja convivência naquele espaço definiu uma de suas principais
características, isto é, a presença de diferentes gupos socias disputando e conformando um
território. Nestes termos, a região era palco de um teatro, cujos atores, muitas vezes não se
entendiam, mas, mesmo assim, precisaram conviver uns com os outros, visto que todos estavam
envolvidos na mesma trama: eram agentes históricos de um processo e mergulharam de forma
profunda nele, dando seus contornos e fazendo ele acontecer.
De certa forma, esta Babel foi vigiada pelo Estado e por seus funcionários – Carlos Torres
Gonçalves, por exemplo –, os quais buscavam tornar a realidade local menos dissonante. Assim,
a busca de construir indivíduos uteis socialmente definiu a ação do Estado que fez grande esforço
na perspectiva de anular diferenças. Não obstante tal interesse também tenha encontrado
dificuldades em se realizar, os discursos e as posições apologéticas em relação aos imigrantes
ajudaram na construção do mito civilizador e na diminuição dos outros grupos sociais que, como
grifei, foram tão importantes no processo de conquista e povoamento da região quanto os
próprios imigrantes. Não se deve esquecer, neste sentido, que um dos principais interesses do
1 Cf.: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: EDUSP, 1996, p. 82.
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Estado era garantir que os lucros advindos da privatização das terras públicas ficassem sob seu
controle. Fato que justifica também o porque da defesa da imigração, pois, como Torres
Gonçalves deixou claro em um dos seus relatórios, os colonos se demonstravam mais aptos e
dispostos a pagar pelas terras que lhes eram destinadas do que os outros grupos2. Entretanto, nem
todos os imigrantes se enquadravam neste ideal e, quando demonstravam seu descontentamento
em relação a sua situação social e as políticas de colonização, eram definidos como “maus
colonos” ou, em certos casos, “intrusos”.
Ao longo deste estudo foram abordados os mais diversos temas a respeito do processo de
povoamento da região serrana. Assim, o silêncio sobre a presença afro-descendente, as políticas
indigenistas do período, a política de colonização, as leis relativas a questão agrária, o problema
da intrusão e outros mais foram objeto da análise. O objetivo principal foi demonstrar o quanto
tais questões estão conectadas, definem e são resultado do processo de povoamento. Busquei
sublinhar que a região conformava uma figuração social específica dona uma sociabilidade
própria, cuja marca maior foi a polissemia de inserções sociais, as quais são perceptíveis ao se
comparar as diferentes formas de relacionamento com o espaço territorial e social característico
de cada grupo. Em outras palavras, a interpretação do povoamento era diverssa entre os
diferentes grupos, ou seja, os imigrantes faziam uma determinada leitura do que estavam
vivendo, assim como o faziam também os indígenas, os negros e os nacionais. Ademais, se para o
Estado e para o grupo social “mais rico” o principal interesse estava em garantir os possíveis
lucros que poderiam advir da comercialização das terras, para o grupo “mais pobre” o que estava
em jogo era sua “subsistência”. Fato que, por seu turno, não quer dizer que a existência dessas
diferentes leituras levou automaticamente ao extermínio uma da outra. Embora tenham existido
esforços no sentido de eliminar determinados comportamentos e práticas, eles permaneceram ou
foram ressignificados e, assim, demontram o quanto faziam parte do mesmo jogo social e deram
vida a ele.
Neste sentido, busquei evidenciar que o fato de um grupo ter sua inserção social
subordinada, bem como o de ser alvo de diferentes formas de dominação, não equivale a sua
passividade. Longe de serem meros espectadores da história ou simples alienados, pessoas como
2 GONÇALVES. Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 442. In.:OLIVEIRA, Sergio Ulrich de. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros presidente do Estado do Rio Grande do Sul pelo Dr. Sergio Ulrich de Oliveira Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas em setembro de 1926. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, Volume 2, 1926, P. 409-470. (AHRS - OP. 83).
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o “preto Antônio Pacheco”, cujo processo crime em que está envolvido foi analisado no capítulo
4, são seus produtores diretos. Ademais, é conveniente salientar que os esforços realizados no
sentido de ocultar a ação destas pessoas, ou simplesmente defini-las como pouco aptas para o
trabalho ou dispostas ao crime e a violência, tem como intenção principal justificar a
desigualdade e a própria dominação.
Enfim, na região serrana, no Rio Grande do Sul e no Brasil, a história da conquista do
território é uma história de luta. É preciso chamar atenção para este fato, especialmente para
demonstrar o quanto o processo de ocupação da terra foi e é marcado pela diversidade de
condições, expressa na situação experimentada por aqueles que vivenciaram e vivenciam esta
história, a qual, em sua desigualdade e em seu favorecimento a algumas poucas pessoas, se
atualiza a cada momento, seja por meio da ação legítima organizada pelos diferentes movimentos
sociais de luta pela terra hoje existentes, seja pela ação violenta de fazendeiros, do Estado ou
empresas multinacionais sustentadas pelo discurso do progresso. Em outros termos, as pedras
continuam rolando.
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6 FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FONTES: 6.1 MENSAGENS ENVIADAS PELOS PRESIDENTES DE ESTADO À ASSEMBLÉIA DOS
REPRESENTANTES1 (Em ordem cronológica)
LEITÃO, João de Freitas. Relatório apresentado a S. Ex. o Sr. Conselheiro Gaspar Silveira Martins, Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, pelo 2° vice-presidente Exm. Sr. Coronel João de Freitas Leitão ao passar-lhe a administração da Província em 24 de Julho de 1889. ABBOTT, Fernando. Mensagem à Assembléia dos Representantes enviada, pelo Presidente do Estado Fernando Abbott, em 25 de Junho de 1891. (Manuscrito). CASTILHOS, Júlio Prates de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes, pelo presidente do Estado do Rio Grande do Sul Júlio Prates de Castilhos, em 28 de Julho de 1891. (Manuscrito). MONTEIRO, Victorino. Mensagem à Assembléia dos Representantes, enviada pelo Presidente do Estado, Victorino Monteiro, em 19 de Julho de 1892. (Manuscrito). ABBOTT, Fernando. Mensagem apresentada em 3 de janeiro de 1893 à Assembléia dos Representantes, pelo Dr Fernando Abbott. (Manuscrito). CASTILHOS, Júlio Prates de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes, pelo Presidente do Estado, Júlio Prates de Castilhos, em 20 de Setembro de 1894. (Manuscrito). ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Júlio Prates de Castilhos, na 3° e penúltima sessão ordinária da 2° legislatura, 20 de Setembro de 1896. Porto Alegre: Tipografia de César Reinhardt, 1895. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Júlio Prates de Castilhos, na 4° e última sessão ordinária da 2° legislatura, 20 de Setembro de 1896. Porto Alegre: Tipografia de Cesar Renhardt, 1896. ___. Mensagem que acompanhou a proposta do orçamento para o exercício de 1897, apresentada à Assembléia dos Representantes do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Júlio Prates de Castilhos, em 24 de Outubro de 1896. Porto Alegre: Tipografia de Cesar Reinhardt, 1896. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Júlio Prates de Castilhos, na 1° sessão ordinária da 3° legislatura, em 20 de Setembro de 1897. Porto Alegre: Tipografia de Cesar Reinhardt, 1897. MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 2° sessão ordinária da 3° legislatura, em 20 de Setembro de 1898. Porto Alegre: Oficinas tipográficas de A Federação, 1898.
1 As mensagens dos presidentes do Estado, aqui analisadas, encontram-se disponíveis digitalmente na página do Center For Research Libraries da Universidade de Chicaco, cujo endereço eletrônico é: http://www.crl.edu/. Eles também podem ser encontrados no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS).
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___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes, pelo Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, Antônio Augustos Borges de Medeiros, na 3° sessão ordinária da 3° legislatura, em 20 de Setembro de 1899. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1899. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 4° sessão ordinária da 3° legislatura, em 20 de setembro de 1900. Porto Alegre: Oficinas Tipográficas de A Federação, 1900. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 1ª sessão ordinária da 4ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1901. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1901. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 2ª sessão ordinária da 4ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1902. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1902. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, em 15 de Outubro de 1902. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1902. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, em 20 de Setembro de 1903. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1903. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 4ª sessão ordinária da 4ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1904. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1904. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 1° sessão ordinária da 5° legislatura, em 20 de setembro de 1905. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1905. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 2ª sessão ordinária da 5ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1906. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1906. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 3ª sessão ordinária da 5ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1907. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1907. GONÇALVES, Carlos Barbosa. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, na 4ª sessão ordinária da 5ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1908. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1909. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, na 1ª sessão ordinária da 6ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1909. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1909.
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___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, na 2° sessão ordinária da 6° legislatura, em 20 de setembro de 1910. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1910. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, na 3ª sessão ordinária da 6ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1911. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1911. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, na 4ª sessão ordinária da 6ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1912. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1912. MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 1ª sessão ordinária da 7ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1913. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1913. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 1ª sessão ordinária da 8ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1914. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1914. MACHADO, Salvador Ayres Pinheiro. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo vice-presidente em exercício General Salvador Ayres Pinheiro Machado, na 1° sessão ordinária da 9° legislatura, em 20 de outubro de 1915. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1915. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Vice-presidente, em exercício, General Salvador Ayres Pinheiro Machado, na 4ª sessão ordinária da 7ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1916. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1916. MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 1ª sessão ordinária da 8ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1917. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1917. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 2ª sessão ordinária da 8ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1918. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1918. ___. Mensagem e proposta de orçamento enviadas à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 3ª sessão ordinária da 8ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1919. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1919. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Rio Grande do Sul, pelo Presidente do Estado Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 4ª sessão ordinária da 8ª legislatura, em 20 de setembro de 1920. (Documento datilografado do original, do serviço de pesquisa e documentação histórica do Museu da Assembléia – Rio Grande do Sul). ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 1ª sessão ordinária da 9ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1921. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1921. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 2ª sessão ordinária, da 9ª
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Legislatura, em 20 de Setembro de 1922. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1922. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 3ª sessão ordinária da 9ª Legislatura, em 29 de Novembro de 1923. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1923. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 4ª sessão ordinária da 9ª Legislatura, em 25 de Outubro de 1924. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1924. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Rio Grande do Sul, pelo Presidente do Estado Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 1ª sessão ordinária da 10ª legislatura, em 22 de setembro de 1925. ___. Mensagem especial enviada à Assembléia dos Representantes do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 1ª sessão ordinária da 10ª legislatura, em 25 de setembro de 1925. 6.2 RELATÓRIOS DA SECRETARIA DE ESTADO DOS NEGÓCIOS DAS OBRAS PÚBLICAS
2 (Em
ordem cronológica) PAROBÉ, João José Pereira. Relatório apresentado ao Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado das Obras Públicas, João José Pereira Parobé, em 17 de Setembro de 1891. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1891. ___. Relatório dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exm. Sr. Presidente do Estado, Dr. Júlio Prates de Castilhos, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, 1894. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1894. ___. Relatório dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exm. Sr. Presidente do Estado, Dr. Júlio Prates de Castilhos, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, 1895. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1895. ___. Relatório dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exm. Sr. Presidente do Estado, Dr. Júlio Prates de Castilhos, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, 1896. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1896. ___. Relatório dos Negócios de Obras Públicas, apresentado ao Exm. Sr. Presidente do Estado, Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, 1898. Manuscrito. ___. Relatório dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exm. Sr. Desembargador Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 31 de julho de 1899. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1899.
2 Os Relatórios da Diretoria de Terras e Colonização, citados ao longo do texto, fazem parte dos Relatórios da Secretaria dos Negócios das Obras Públicas, os quais são disponibilizados pelo Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS).
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___. Relatório dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exm. Sr. Desembargador Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 31 de julho de 1900. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1900. ___. Relatório dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exm. Sr. Desembargador Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 31 de julho de 1902. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1902. ___. Relatório dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exm. Sr. Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 31 de julho de 1903. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1903. ___. Relatório dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exm. Sr. Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 24 de Agosto de 1904. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1904. ___. Relatório dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exm. Sr. Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 12 de Agosto de 1905. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1905. GONÇALVES, José Barboza. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, pelo Secretário de Estado, Engenheiro José Barbosa Gonçalves, em 15 de setembro de 1906. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1906. ___. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, Engenheiro José Barbosa Gonçalves, em 24 de agosto de 1907. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1907. GODOY, Candido José de. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, Candido José de Godoy, em 28 de agosto de 1908. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1908. ___. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, Candido José de Godoy, em 27 de agosto de 1909. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1909. ___. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, Candido José de Godoy, em 10 de setembro de 1910. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1910. ___. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, Candido José de Godoy, em 08 de setembro de 1911. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1911. ___. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul,
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pelo Secretário de Estado, Candido José de Godoy, em 13 de setembro de 1912. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1912. PAROBÉ, João José Pereira. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 20 de agosto de 1913. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Comércio, 1913. ___. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 25 de agosto de 1914. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1914. ___. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. General Salvador Ayres Pinheiro Machado, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, Engenheiro João José Pereira Parobé, em 31 de agosto de 1915. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1915. ALVES, Protásio. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. General Salvador Ayres Pinheiro Machado Vice-presidente, em exercício, do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Protásio Alves Secretário de Estado, interino, dos Negócios das Obras Públicas, em 09 de setembro de 1916. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1916. ___. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Protásio Alves, Secretário de Estado, interino, dos Negócios das Obras Públicas, em 14 de setembro de 1917. Porto Alegre: Tipografia da Empresa Gráfica Rio-Grandense, 1917. PINTO, Ildefonso Soares. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 13 de agosto de 1918. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1918. ___. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 27 de agosto de 1919. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1919. ___. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 16 de agosto de 1921. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1921. ___. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 15 de agosto de 1923. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1923. ___. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Engenheiro Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 15 de agosto de 1924. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, Volume 1, 1924. ___. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Engenheiro Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 15 de agosto de 1924. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, Volume 2, 1924.
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CHAVES, Antônio Marinho Loureiro. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Antônio Marinho Loureiro Chaves, Secretário de Estado, interino, dos Negócios das Obras Públicas, em 28 de julho de 1925. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, Volume 1, 1925. OLIVEIRA, Sergio Ulrich de. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Sergio Ulrich de Oliveira, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em setembro de 1926. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, Volume 2, 1926. 6.3 FONTES BIBLIOGRÁFICAS E DIGITAIS ARARIPE, Tristão de Alencar. Indicações sobre a história nacional. In.: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 57, parte II. Rio de Janeiro: Companhia Tipográfica do Brasil, 1894, p. 259-290. ___. Movimento colonial da América. In.: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 56, parte II. Rio de Janeiro: Companhia Tipográfico do Brasil, 1893, p. 91-115. ARQUIVO NACIONAL. Fundo Ministério da Agricultura e Série Agricultura, IA6 163 a IA6 174. ATLAS SOCIOECONÔMICO DO RIO GRANDE DO SUL. In.: http://www.scp.rs.gov.br/atlas. BESCHOREN, Maximiliano. Impressões de viagem na Província do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1989. BONFIM, Manuel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1962. CASTRO, Evaristo de Afonso. Noticia descritiva da região serrana na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul compreendendo os municípios de Cruz Alta, São Martinho, Palmeira, Passo Fundo, Santo Ângelo, São Luiz, Boqueirão, São Borja, São Francisco de Assis, São Vicente e Itaqui. Cruz Alta: Tipografia do Comercial, 1887. CELSO, Afonso. Porque me ufano de meu país. Rio de Janeiro: Expressão e cultura, 1997. CUBER, Antoni. Nas margens do Uruguai. Ijuí: UNIJUI, 2002. CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2006. D’APREMONT, Bernardin; GILLONAY, Bruno de. Comunidades indígenas, brasileiras, polonesas e italianas no Rio Grande do Sul (1896-1915). Porto Alegre: EST, Caxias do Sul: UCS, 1976. DAVATZ, Thomas. Memórias de um colono no Brasil(1850). São Paulo: Livraria Martins, 1972. FONTOURA, João Neves da. Memórias: Borges de Medeiros e seu tempo. Porto Alegre: Editora Globo, vol. 1, 1958. FORTES, Amyr Borges; WAGNER, João Baptista Santiago. História administrativa, judiciária e eclesiástica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1963. FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA. De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul: censos do Rio Grande do Sul 1803-1950. Porto Alegre, 1981, p. 94.
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6.4 PROCESSOS CRIME
CRUZ ALTA Número dos Maços Número dos Processos Anos
Inicial Final Inicial Final 56 2074 2099 1897 1899 62 2207 2228 1909 1911 66 2285 2301 1916 1917 124 3881 3891 1888 1910 125 3892 3913 1910 1917 126 3914 3924 1917 1925
PALMEIRA DAS MISSÕES Número dos Maços Número dos Processos Anos
Inicial Final Inicial Final 1 1 15 1890 1900 2 16 26 1901 1915 3 26 36 1888 1890 4 38 48 1890 1900 5 51 60 1901 1904 6 62 71 1904 1906 7 72 83 1906 1907 8 275 300 1890 1891 7 243 274 1887 1890 8 84 97 1891 1909 9 167 181 1882 1931 10 182 199 1903 1945 11 200 225 1901 1945 12 226 254 1906 1930
PASSO FUNDO Número dos Maços Número dos Processos Anos
Inicial Final Inicial Final 4 68 79 1902 1915 58 2391 2420 1891 1899 61 2473 2484 1905 1908 62 2485 2505 1901 1909 73 2421 2881 1899 1924
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SANTO ÂNGELO Número dos Maços Número dos Processos Anos
Inicial Final Inicial Final 43 1304 1323 1900 1901 44 1324 1344 1901 1908 45 1345 1371 1908 1914 46 1372 1399 1914 1916 47 1400 1420 1916 1916 48 1421 1443 1916 1917 49 1444 1462 1917 1918 50 1463 1480 1918 1919 51 1481 1493 1919 1919 52 1494 1508 1919 1920 53 1509 1524 1920 1921 54 1525 1540 1921 1922 55 1541 1556 1922 1923 56 1557 1573 1923 1924 57 1574 1593 1924 1925 77 2058 2099 1875 1928 78 2094 2143 1877 1955
REFERÊNCIAS
6.5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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