Babel do novo mundo · 2014-11-28 · BABEL DO NOVO MUNDO: povoamento e vida rural na região de...

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Marcio Antônio Both da Silva

BABEL DO NOVO MUNDO: povoamento e vida rural na região de matas do Rio Grande do Sul

(1889-1925)

Niterói 2009

- 2 -

Marcio Antônio Both da Silva

BABEL DO NOVO MUNDO: povoamento e vida rural na região de matas do Rio Grande do Sul

(1889-1925) Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em História. Orientadora: Professora Doutora Márcia Menendes Motta

Niterói 2009

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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

B749 Both, Marcio.

Babel do novo mundo: povoamento e vida rural na região de matas do Rio Grande do Sul (1889-1925) / Marcio Both. – 2009.

274 f. ; il. Orientador: Márcia Motta.

Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, 2009.

Bibliografia: f. 256-274.

1. História do Rio Grande do Sul – 1889-1925. 2. Povoamento territorial regional – Rio Grande do Sul. 3. Representação. I. Motta, Márcia. II. Universidade Federal Fluminense. III. Título.

CDD 981.05

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Marcio Antônio Both da Silva

BABEL DO NOVO MUNDO: povoamento e vida rural na região de matas do Rio Grande do Sul

(1889-1925) Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em História.

BANCA EXAMINADORA ___________________________________________________________________________

Professora Doutora Giralda Seyferth – PPGAS-Museu Nacional/UFRJ

___________________________________________________________________________ Professora Doutora Sônia Regina de Mendonça – PPGH-UFF

___________________________________________________________________________ Professora Doutora Márcia Menendes Motta – PPGH-UFF (Orientadora)

___________________________________________________________________________ Professor Doutor Moacir Gracindo Soares Palmeira – PPGAS-Museu Nacional/UFRJ

___________________________________________________________________________ Professor Doutor Paulo Afonso Zarth – UNIJUÍ

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Para Graziele

(Nobody feels any pain Tonight as I stand inside the rain

Ev’rybody knows That Baby’s got new clothes

But lately I see her ribbons and her bows Have fallen from her curls.

Bob Dylan)

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AGRADECIMENTOS

Em 1998 ingressei no curso de história, neste mesmo ano, um professor, que depois

venho a se tornar um amigo, me apresentou a história agrária. Desde então, venho me

dedicando a conhecer assuntos relacionados a esta área do conhecimento. Assim, esta tese é

resultado e faz parte de uma trajetória acadêmica e quer expressar alguns aprendizados que

tive ao longo deste tempo. Longe de ser um trabalho definitivo este estudo busca ser uma

contribuição, uma ferramenta que tem o objetivo de ajudar no desenvolvimento de novas

pesquisas, críticas e conhecimentos.

Durante todo este tempo de formação muitas pessoas foram importantes e

fundamentais. Por isso é muito difícil escrever este texto, pois o risco de não citar alguém é

bastante grande. Contudo, algumas pessoas e acontecimentos são inesquecíveis. Assim, faço

um agradecimento especial à minha família – meu pai, minha mãe e meus irmãos – que, longe

ou perto, sempre estiveram junto comigo, dando apoio diante das mais diferentes situações.

Agradeço também à Graziele que viveu e conhece todas as vicissitudes desse processo e,

junto comigo, ajudou a construir uma história que é a nossa história, a qual gostamos tanto de

cuidar.

Em termos acadêmicos faço um agradecimento especial ao professor Paulo Zarth que,

sem dúvidas, é o grande responsável pela minha inserção no mundo da pesquisa. Ao professor

Cláudio Garcia e a professora Ercília Cazarin também agradeço pelo apoio e incentivos

recebidos quando da graduação em Ijuí, bem como em momentos posteriores. Ainda neste

sentido, agradeço a professora Regina Weber que foi minha orientadora de mestrado e, ao seu

modo, contribuiu muito na perspectiva de me fazer conhecer o mundo acadêmico e suas

surpresas. Expresso minha gratidão ao professor Temístocles Cezar que sempre foi um

exemplo de profissional e nunca faltou com suas palavras de apoio e com seus incentivos.

O curso de doutorado, além de me proporcionar a oportunidade de conhecer o Rio de

Janeiro e Niterói, também trouxe consigo pessoas que se tornaram importantes e que

contribuíram muito na minha formação. Refiro-me aqui, especialmente, a professora Márcia

Motta que não só foi minha orientadora, mas uma amiga que soube me incentivar e sempre

esteve presente nos momentos que precisei. Agradeço também ao professor Mário Grynszpan

que acompanhou o desenvolvimento desta pesquisa desde antes de minha entrada no curso de

doutorado. Ademais, ele e a professora Giralda Seyferth, como integrantes da banca de

qualificação, teceram críticas ao texto e apontaram caminhos que, na medida do possível,

busquei dar conta. Meu sincero obrigado vai também para o professor Moacir Palmeira que,

- 7 -

em 2005, proporcionou-me a oportunidade de participar do curso Sociedades Camponesas por

ele ministrado no Museu Nacional. Destaco o conjunto de aprendizados que obtive na

realização deste curso, o qual influenciou muito nos rumos que tomaram esta pesquisa.

Agradeço a professora Sônia Mendonça por ter aceitado participar da banca de defesa e

sublinho minha admiração por sua trajetória acadêmica e pelas pesquisas que realizou, as

quais contribuíram muito para meu aprendizado.

Agradeço o apoio recebido pelos amigos e amigas que acompanharam o processo de

desenvolvimento desta tese: Graciela Garcia (valeu amiga Gra!), Alessandra Gasparotto,

Guinter Leipnitz, Alisson Droppa, Rodrigo Turin, Bruno Zorek, Aristeu Machado, Victor

Passuello, Helder Cyrelli, Fernando Nicolazzi, Hilton Costa, Marina Machado, Carlos

Leandro, Elione Guimarães, Antônio Henrique Lacerda e aos integrantes do Núcleo de

Referência Agrária, meu cordial obrigado. Em nome de Edson Cadore, José Luiz Patrola,

Miguel Stédile, Janaina Stronzake, Léo Haua, Marina dos Santos e Paulo César agradeço aos

amigos e amigas que atuam no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, os quais, em

momentos diversos, seja no Rio Grande do Sul ou no Rio de Janeiro, muito me ensinaram

sobre o presente da luta pela terra no Brasil.

Na categoria amigos e amigas também entram as pessoas que conheci em Marechal

Cândido Rondon e que, desde 2008, vem partilhando seu dia-a-dia comigo. Obrigado

Alexandre Blankl, Juliana Wandpap, Sandra Popiolek, Gilberto Calil, Carla Silva, Rafael

Silva Calil (Guri), Rinaldo Varussa, Danilo George, Luis Fernando Zen e aos colegas de

trabalho do Colegiado de História da UNIOESTE pela acolhida e pela convivência. Agradeço

também a Agenor Junior, Henrique de Paula, Ellen de Paula e Lívia Fonseca, os quais

tornaram o primeiro ano de doutorado e a vida no Rio de Janeiro e em Niterói menos solitária

e mais interessante.

Aos funcionários(as) das diferentes instituições onde realizei pesquisas – Arquivo

Público do Rio Grande do Sul, Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Biblioteca Pública

do Rio Grande do Sul, Arquivo Histórico Nacional, Biblioteca Nacional, Biblioteca da

Academia Brasileira de Letras – também agradeço pelo empenho em dar informações e

disponibilizar documentos e bibliografias, os quais dão vida a esta tese. Meu obrigado

também aos funcionários da secretaria do Curso de Pós-Graduação em História e seu

empenho em resolver as mais diferentes questões burocráticas.

Por fim, agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e

Tecnológico (CNPq), que durante os quatro anos de curso financiou os meus estudos.

- 8 -

Por onde passei, plantei

a cerca Farpada, plantei a queimada.

Por onde passei, plantei

a morte matada. Por onde passei,

matei a tribo calada, a roça suada,

a terra esperada... Por onde passei,

tendo tudo em lei, Eu plantei o nada.

(Pedro Casaldáliga

e Pedro Tierra)

- 9 -

RESUMO

A pesquisa objetiva compreender como se desenvolveram as relações entre grupos

sociais na dinâmica de ocupação da região de matas – especificamente no território abrangido

pelos municípios de Cruz Alta, Palmeira das Missões, Passo Fundo e Santo Ângelo – no Rio

Grande do Sul, entre 1889 e 1925. O texto discute como se elaboraram algumas

representações sobre tais grupos e o quanto elas estão relacionadas a sua atuação no

povoamento. Nestes termos, a obra re-visita a região, enfocando-a como espaço de luta pela

terra, priorizando a análise das políticas governamentais de povoamento e administração das

“terras devolutas”, bem como o complexo das relações sociais estabelecidas entre colonos,

nacionais, negros e índios.

Palavras-chave: História agrária, povoamento, representação.

ABSTRACT

This dissertation aims to understand how were developed the relations among different

social groups in the occupation process of the região de matas (woods region) - in the

territory comprehended by the cities of Cruz Alta, Palmeira das Missões, Passo Fundo and

Santo Ângelo - in Rio Grande do Sul, between 1889 and 1925. It discusses how some

representations about those groups were created and were related to their action through the

settlement process. In these terms, this paper rethinks the region, emphasizing it as a space of

struggle for land. It prioritizes the analysis of the government policies of settlement and

administration of the public lands (terras devolutas), as well as the complex dynamics of the

social relations established among the immigrant settlers, Brazilian peasant (nacionais), black

people and indians.

Keywords: agrarian history; settlement; representation.

- 10 -

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 – Biomas Rio Grande do Sul 28 FIGURA 2 – Estrutura Fundiária 29 FIGURA 3 – Divisão municipal do Rio Grande do Sul 31 FIGURA 4 – Planalto do Rio Grande do Sul 32 FIGRUA 5 – Toldos indígenas do Rio Grande do Sul entre 1889-1925 43 FIGURA 6 – Questão de Palmas 48 FIGURA 7 – O Rio Grande do Sul e as principais colônias fundadas entre 1889 e 1925 51 FIGURA 8 – Casa de colono e casa de indígenas 127 FIGURA 9 – Modelo de habitação para indígenas 167 FIGURA 10 – Modelo de habitação para nacionais 184 FIGURA 11 – Mapas das sedes coloniais de Porto Lucena e Santa Rosa 239

LISTA DE TABELAS TABELA 1 – Receita e despesas da DTC entre 1907 e 1925 242

- 11 -

LISTA DE ABREVIATURAS

AHRS – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul APERGS – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul DTC – Diretoria de Terras e Colonização FUNAI – Fundação Nacional do Índio IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro MAIC – Ministério da Agricultura Indústria e Comércio PRR – Partido Republicano Rio-Grandense SENOP – Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas SNA – Sociedade Nacional de Agricultura SPI – Serviço de Proteção ao Índio SPILTN – Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais SPSN – Serviço de Povoamento do Solo Nacional

- 12 -

SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS RESUMO/ABSTRACT LISTA DE FIGURAS LISTA DE TABELAS LISTA DE ABREVIATURAS INTRODUÇÃO

06

09

10

10

11

13

1 BABEL DO NOVO MUNDO

24

2 E ELES AQUI VÃO: ESTADO, REPRESENTAÇÕES E POVOAMENTO 2.1 A Região Serrana: um espaço de fronteira agrária 2.2 Sobre aqueles que “pertencem a sociedade”: ou das relações estabelecidas entre os grupos sociais envolvidos no povoamento da região serrana 2.3 Representações: ou sobre aqueles que “são vadios e de maus costumes” 2.4 Estado, governo e sociedade: ou sobre aqueles que buscavam “conservar melhorando”

52 52

58 74

87

3 NÃO ME CHAME DE GRINGO, POIS ISSO QUER DIZER LADRÃO: IMIGRANTES, NEGROS, ÍNDIOS E NACIONAIS NA REGIÃO SERRANA 3.1 De estrangeiros a colonos: ou sobre aqueles que são os “obreiros de nossa riqueza” 3.2 Da escravidão ao silêncio: ou sobre aqueles que vivem “num estado semelhante ao selvagem ao bárbaro” 3.3 Do fetichismo à idade positiva: ou sobre os “nossos irmãos cujos cérebros se acham ainda em estado de infantilidade” 3.4 De nacionais a colonos regulares: ou sobre como formar os “cidadãos operosos do amanhã”

103

103

132

152

170

4 GOVERNAR É PROMOVER A FELICIDADE DA PÁTRIA: INTRUSÃO, COLONIZAÇÃO E

AS POLÍTICAS DE POVOAMENTO 4.1 A gestão das terras devolutas 4.2 Colonização e intrusão: as múltiplas faces do mesmo processo

187 187 221

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

252

6 FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 6.1 Mensagens enviadas pelos presidentes de Estado à Assembléia dos Representantes 6.2 Relatórios da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas 6.3 Fontes bibliográficas e digitais 6.4 Processos Crime 6.5 Referências bibliográficas

256

256 259 262 264 265

- 13 -

INTRODUÇÃO

Vem teçamos a nossa liberdade,

braços fortes que rasgam o chão, sob a sombra da nossa valentia, desfraldemos a nossa rebeldia e

plantemos nesta terra como irmãos!

Hino do Movimento Sem Terra.

Ao longo destas linhas buscarei contar a história da terra, seus homens e suas relações.

Trata-se da história do povoamento de uma região do Rio Grande do Sul, a qual abrange o

território dos municípios de Cruz Alta, Palmeira das Missões, Passo Fundo e Santo Ângelo,

durante o período da Primeira República (1889-1925). Não só, mas também o conjunto de

relações sociais características desse processo, tendo como ponto de referência a disputa pela

terra e os conflitos que lhe são característicos, serão objeto do estudo. Esta história, embora já

tenha sido tematizada em alguns de seus aspectos pela produção historiográfica, ainda oferece

possibilidades de abordagem importantes, cuja análise é fundamental para a compreensão

profunda do povoamento e de seus resultados. Nestes termos, aqui serão abordados temas

como a colonização com imigrantes, os conflitos que caracterizaram o encontro entre os

diferentes grupos sociais (negros, indígenas, nacionais e imigrantes), a atuação do Estado

enquanto agente formador/implementador de políticas para gerir a questão das terras

devolutas e a constituição de representações a respeito da população que vivia ou, à medida

que a fronteira agrária era expandida, passou a viver na região.

Em termos historiográficos o principal assunto tematizado sobre o povoamento do

espaço que forma a região de matas do Rio Grande do Sul, situada mais ao norte/noroeste do

estado, foi o da colonização com imigrantes europeus de origem não-ibérica e seus

descendentes. Em 1824 foi fundada a primeira colônia no estado, sendo que, a partir dessa

data, o movimento de colonização passou a avançar e encontrou sua consolidação em 1890,

ao ser criada a Colônia Ijuí, que na época fazia parte do município de Cruz Alta. Entretanto,

esse processo não parou aí, visto que Ijuí foi a base a partir da qual ele se direcionou rumo à

fronteira do Rio Grande com Santa Catarina e os países vizinhos quando, nas primeiras

décadas do século XX, são fundadas as colônias de Erechim, Santa Rosa, Marcelino Ramos,

Três Passos e outras tantas, sendo que, por volta da década de 1920, toda a região norte do

estado estava, conforme as palavras do geógrafo Nilo Bernardes, “salpicada de colônias”1.

1 BERNARDES, Nilo. Bases geográficas do povoamento do Estado do Rio Grande do Sul. Ijuí: UNIJUI, 1997.

- 14 -

O movimento de colonização, sumariamente descrito, foi organizado e levado a cabo

pelo Estado, cuja atuação passou a ser mais forte na região a partir da Proclamação da

República2. Também foi importante no processo a ação da iniciativa privada que fundava

colônias particulares, mas, em termos de República, comparativamente à ação estatal, ela foi

pequena e aconteceu, como veremos nos próximos capítulos, a partir de um certo controle

exercido pelo Estado. Não obstante, a disputa entre Estado e particulares em relação ao

processo de privatização das terras públicas tenha sido também um dos elementos centrais a

definir o modo como se desenvolveu o povoamento. Aqui cabe ressaltar que pouco abordarei,

ao longo do estudo, os assuntos relativos a colonização particular, uma vez que tratar deste

tema exigiria desenvolver uma outra pesquisa, cuja efetivação está proporcionalmente ligada

a consulta de documentos que, na maioria dos casos, não são fáceis de serem localizados,

devido a sua dispersão em diferentes arquivos e museus localizados nos municípios

originários de colônias privadas.

É conveniente salientar que os territórios onde foram estabelecidas as colônias, tanto

públicas como privadas, já eram ocupados. Da mesma forma, deve-se sublinhar que as

populações originárias de tais espaços – em sua maioria nacionais, indígenas e negros3 –

agiram de forma peculiar frente ao povoamento e, como veremos, à medida que a colonização

avançava na zona de matas, tais grupos se inseriam no processo a partir do desenvolvimento

de uma série de estratégias formuladas com base em suas experiências de vida e relação com

a sociedade. Aqui convém abrir um parêntesis para definir mais explicitamente o emprego do

termos “nacionais”, uma vez que ele será recorrente e trata-se de um adjetivo bastante usado

nas fontes, especialmente nos Relatórios da Diretoria de Terras e Colonização e nas

mensagens dos presidentes de Estado. Nestas fontes, o termo é utilizado para adjetivar um

grupo de pessoas que na literatura é comumente nominada como “brasileiros”, “caboclos”,

“caipiras”, etc. Assim, a opção pelo termo “nacionais” e seu derivados, como veremos no

capítulo 3, é resultado de uma apropriação. Cabe assinalar também que sempre que a palavra

for utilizada em itálico estará sendo empregada no sentido que ela adotava na época, isto é,

nestas situações buscarei ser fiel ao conteúdo das fontes. Por seu turno, quando ela aparecer

sem algum destaque gráfico o intuito será demonstrar a não concordância com as opiniões

pejorativas existentes a respeito desse grupo de pessoas.

2 Prova desta afirmação pode ser encontrada no aumento do número de imigrantes que chegaram ao Rio Grande do Sul a partir da República, bem como no desenvolvimento de uma série de políticas de Estado que tinham a meta de acelerar o processo de colonização e fundação de colônias. Cf.: ROCHE, Jean. A colonização alemã no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Globo, vols. I e II, 1969. 3 No capítulo 2 e 3, desenvolvi de forma mais profunda uma análise sobre os critérios aplicados para utilização de alguns termos empregados para denominar os grupos que atuaram no povoamento.

- 15 -

De uma maneira geral, embutido ao processo de colonização, estava o interesse de

desenvolver um projeto de civilização. Projeto pensado a partir de critérios como a introdução

do Rio Grande do Sul e seus habitantes no contexto da sociedade moderna, cuja uma das

principais metas era tornar o estado competitivo em relação a outras economias regionais do

país4. Cabe frisar, igualmente, que tal objetivo foi perseguido e posto em prática sem levar em

consideração as diversas concepções, expressas pelos diferentes grupos sociais, a respeito da

terra e seu uso5.

Assim, um dos objetivos da pesquisa é compreender problemas sociais que estão

presentes e são definidores da atual realidade não só regional como nacional. Tais situações

estão relacionadas com à questão da apropriação da terra, a qual tem raízes ainda no período

colonial, mas que passa a ter contornos mais nítidos a partir do século XIX com a

promulgação da Lei de Terras em 18506. Além desse, outro objetivo que definiu a realização

da pesquisa e o formato que ela tem foi pensar o modo como os diferentes grupos sociais que

se envolveram no povoamento participaram dele. Dessa forma, priorizei a análise de temas

que, com algumas exceções, foge à tradição historiográfica “dominante” no Rio Grande do

Sul. Cuja premissa principal para tratar do povoamento é priorizar a análise do papel dos

imigrantes e definir a ação de outros grupos como secundária ou mesmo inexistente. Tais

pesquisas destacam a importância dos imigrantes como agentes modernizadores e tratam os

“outros” grupos sociais como representantes da tradição e do atraso7.

4 Cf.: PESAVENTO, Sandra Jatahy. República Velha gaúcha: “Estado autoritário e economia”. In.: DACANAL, José Hildebrando; GONZAGA, Sérgius (Orgs.). RS: economia e política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993, p. 193-229 e SILVA, Elmar Manique da. Ligações externas da economia gaúcha (1736-1890). In.: José Dacanal; Sérgius Gonzaga (Orgs.). Idem, p. 55-91. 5 Sobre este tema, conferir: ZARTH, Paulo. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: UNIJUI, 2002; ___. História agrária do planalto gaúcho 1850-1920. Ijuí: UNIJUI, 1997; RÜCKERT, Aldomar A. A trajetória da terra: ocupação e colonização do centro-norte do Rio Grande do Sul – 1827-1931. Passo Fundo: Ediupf, 1997; GEHLEN, Ivaldo. Uma estratégia camponesa de conquista da terra e o Estado: o caso da fazenda Sarandi. Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1983, (Dissertação de Mestrado) e TAMBARA, Eleomar. RS: modernização e crise na agricultura. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985. 6 Existem diferentes leituras sobre as origens e repercussões históricas da Lei de Terras. Algumas são sustentadas por análises históricas, outras sociológicas. Para uma idéia geral sobre tal produção suas diferenças e divergências, ver: LIMA, Ruy Cirne. Pequena história territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 1990; MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder: conflitos de terras e direito agrário no Brasil de meados do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura/Arquivo Público do Estado, 1998; SILVA, Ligia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996; COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à Republica: momentos decisivos. São Paulo: Grijalbo, 1977 e MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: LECH, 1981. 7 Exemplo dessa interpretação são os trabalhos de WAIBEL, Leo. Capítulos de geografia tropical e do Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 1979; WILLEMS, Emílio. A aculturação dos alemães no Brasil. São Paulo: Editora Nacional; Brasília: INL, 1980 e Jean Roche. Idem, op. cit.

- 16 -

Esta pesquisa inscreve-se dentro de um campo de análise histórica, cuja consolidação

no Brasil se dá a partir da década de 70 do século XX, momento em que, de acordo com Hebe

Maria Matos, ela “tornou-se generalizada entre os historiadores profissionais”, sendo

caracterizada por sua “perspectiva de síntese, como reafirmação do princípio de que, em

história, todos os níveis de abordagem estão inscritos no social e se interligam”8, ou seja, a

História Social. De forma mais específica, as considerações aqui desenvolvidas estão

inseridas em um campo de pesquisa denominado “história social da agricultura”9. Logo, têm

por objeto estudar, entre outras coisas, os resultados e as formas de apropriação e uso do solo.

Da mesma maneira, inscrevem-se na produção historiográfica, dentro de uma série de

pesquisas que, como se verá adiante, a partir da década de 1980/90, passaram a ser

desenvolvidas no Rio Grande do Sul e no Brasil e estão diretamente ligadas a trabalhos

realizados, principalmente na França10 e Inglaterra11, no campo da história social e agrária.

Como veremos, especialmente no capítulo dois, o Estado teve um papel muito

importante no desenvolvimento da colonização, visto que buscou assumir, principalmente a

partir da República, a responsabilidade de levar a cabo o processo e atuou, ou pelo menos

tentou atuar, como seu carro-chefe. Estudos sobre a formação e organização do Estado

moderno têm destacado o quanto o processo de monopolização de poder é importante nessa

constituição12. No caso do Rio Grande do Sul, com a implantação da República e a construção

de um governo autoritário sustentado em bases positivistas, esse processo ganhou forma e

acompanhou a colonização: foi à medida que o povoamento com imigrantes avançou em

direção à zona de matas, que Estado passou a ter presença mais forte na região. Prova disso é

que, juntamente com a fundação das colônias, eram instaladas algumas instituições antes

inexistentes nesses locais – por exemplo, a criação de Comissões Verificadoras, escolas, a

constituição de municípios e do aparato de administração que lhe é característico

acompanharam o ritmo de desenvolvimento das colônias.

8 MATTOS, Hebe Maria. História Social, p. 46. In.: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 45-61. 9 Cf.: LINHARES, Maria Yeda. História Agrária, p. 168. In.: Ciro Flamarion; Ronaldo Vainfas (Orgs.). Idem, p. 165-185. 10 Por exemplo, BLOCH, Marc. A terra e seus homens: agricultura e vida rural nos séculos XVII e XVIII. Bauru: EDUSC, 2001; LE ROY LADURIE, Emmannuel. Montaillou povoado occitânico (1294-1324). São Paulo: Companhia das Letras, 1997; ___. Camponeses do Languedoc. Portugal: Editora Estampa, 1997. 11 Por exemplo, THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores: a origem da Lei Negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; HOBSBAWM, Eric. Rebeldes primitivos: estudos sobre formas arcaicas de movimentos sociais nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978; THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação a plantas e aos animais (1500-1800). São Paulo: Companhia das Letras, 1989 e WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 12 Cf.: BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política. São Paulo: Paz e Terra, 2004; DÜLMEN, Richard Van. Los inícios de la Europa moderna (1550-1648). Madrid: Siglo XXI, 1998 e DUSO, Giuseppe (Org.). O poder: história da filosofia política moderna. Petrópolis: Vozes, 2005.

- 17 -

A atual produção historiográfica sobre o povoamento do Rio Grande do Sul tende a

priorizar novos problemas e vem desviando seu centro de análise unicamente da imigração.

Tal perspectiva de análise, inaugurada nos fins da década de 1980 e início dos anos 1990,

toma como centro de observação grupos que até então não haviam recebido a devida

importância. Assim, pesquisas relacionadas ao modo de vida dos nacionais, ao problema

indígena e à questão da escravidão no Rio Grande do Sul, por exemplo, vêm recebendo uma

atenção significativa por parte dos pesquisadores que se preocupam em pensar a questão

agrária. No entanto, ainda há uma série de lacunas a serem preenchidas e problemas a serem

resolvidos, como o do lugar que os negros ocuparam no pós-escravidão, por exemplo.

Uma das principais dificuldades relacionadas ao desenvolvimento de tais temas deve-

se ao problema das fontes, visto que esses grupos dificilmente deixaram vestígios de sua

presença. Geralmente os documentos utilizados não são produzidos por eles, mas são

resultados de observações externas: descrições realizadas por viajantes estrangeiros,

documentos produzidos pelas autoridades, registros deixados por imigrantes, inventários post

mortem, processos crime, correspondências de autoridades ou relatórios de chefes de Estado e

das igrejas, geralmente, são as bases que dão sustentação às análises que se fazem. Contudo,

embora produzidas externamente, tais fontes têm demonstrado precisão nas informações e

permitem construir interpretações a respeito do passado dos diferentes grupos.

É importante mencionar a existência de uma produção bibliográfica considerável sobre

a questão agrária, tanto em esfera local como nacional. À medida que as pesquisas sobre o

assunto vêm avançando, trazem junto consigo uma série de indagações, algumas novas, outras

recorrentes, dentre elas destacam-se as análises sobre a apropriação da terra e as relações

mantidas entre as pessoas que se envolveram no processo. Nesta perspectiva, alguns estudos

têm demonstrado avanços no sentido de melhor compreender a questão agrária a partir do

ponto de vista dos grupos sociais que a produção historiográfica tradicional tinha

desconsiderado13, embora ainda haja um vasto campo a ser trilhado. Também há uma

produção importante de trabalhos relacionados à imigração e que têm a característica de

analisá-la a partir de uma interpretação menos apologética em relação aos imigrantes14. Tais

13 São exemplos destes estudos as abordagens desenvolvidas por Paulo Afonso Zarth. Idem, op. cit; Aldomar Rückert. Idem, op. cit.; ARDENGHI, Lurdes Grolli. Caboclos, ervateiros e coronéis: luta e resistência no norte do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: UPF, 2003; GARCIA, Graciela Bonassa. O domínio da terra: conflitos e estrutura agrária. Porto Alegre: Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005. (Dissertação de Mestrado), entre outros. 14 São exemplos de tais abordagens, as pesquisas de SEYFERTH, Giralda. A colonização alemã no Vale do Itajaí-Mirim: um estudo de desenvolvimento econômico. Porto Alegre: Editora Movimento, 1974; LESSER, Jeffrey. A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. São

- 18 -

pesquisas tendem a priorizar uma análise mais “terra-a-terra” da colonização, inserindo-a não

só no contexto regional, mas apontando sua relação com o contexto nacional, além do próprio

processo de expansão e implantação de relações capitalistas de trabalho e produção no Brasil.

Nesse sentido, assumem papel importante os trabalhos que passam a pensar a imigração a

partir do ponto de vista da etnicidade ou da inserção dos imigrantes no contexto da sociedade

de acolhimento15.

Esse processo de construção de novos temas também está intimamente relacionado a

um diálogo que a historiografia regional tem estabelecido com pesquisadores que trataram de

questões semelhantes em outras regiões do país. Assim, obras produzidas a partir dos

diferentes campos dos saberes das ciências sociais, seja por historiadores, geógrafos,

sociólogos, antropólogos ou cientistas políticos vêm inspirando os pesquisadores da questão

agrária no Rio Grande do Sul no sentido de se elaborarem novas perguntas a seus objetos de

estudo16. Numa perspectiva mais geral, também é importante mencionar a influência exercida

por trabalhos clássicos que tratam da formação histórica da sociedade brasileira no modo

como as pesquisas sobre o Rio Grande do Sul vêm sendo desenvolvidas. Cabe destacar

perguntas importantes que passaram a ser realizadas para o contexto regional, a partir da

leitura de obras como a de Victor Nunes Leal17 sobre o coronelismo, de Raymundo Faoro18,

Florestan Fernandes19 e José Murilo de Carvalho20 sobre a formação do capitalismo e da elite

nacional. Na pesquisa aqui desenvolvida, a intenção foi aprofundar esse diálogo que vem se

demonstrando produtivo.

Paulo: Editora UNESP, 2001 e ___. O Brasil e a questão judaica. Rio de Janeiro: Imago, 1995; SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Editora USP, 1998. 15 Por exemplo, WEBER, Regina. Os operários e a colméira: trabalho e etnicidade no sul do Brasil. Ijuí: UNIJUI, 2002 e WOORTMANN, Ellen F. Herdeiros, parentes e compadres: colonos do sul e sitiantes do nordeste. São Paulo-Brasilia: Hucitec; Edunb, 1995. 16 Por exemplo: CANDIDO, Antônio. Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e as transformações do seu modo de vida. São Paulo: Duas Cidades: Editora 34, 2001; José de Souza Martins. Idem, op. cit; HAESBAERT, Rogério. Dês-territorialização e identidade: a rede gaúcha no nordeste. Niterói: EDUFF, 1997; FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: UNESP, 1997; SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001; Márcia Menendes Motta. Idem, op. cit; MENDONÇA, Sônia Regina de. O ruralismo brasileiro (1888-1931). São Paulo: Editora HUCITEC, 1997; VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo autoritário e campesinato: um estudo comparativo a partir da fronteira em movimento. São Paulo/Rio de Janeiro: DIFEL, 1976. 17 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o municipio e o regime representativo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997. Outro livro importante sobre o coronelismo é o de Marcos Vilaça e Roberto de Albuquerque, ver: VILAÇA, Marcos Vinícios; ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcanti de. Coronel, coronéis: apogeu e declínio do coronelismo no nordeste. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. 18 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo, vol. I e II, 1995. 19 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975. 20 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial; Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, Relume-Dumará, 1996.

- 19 -

Quanto à questão das fontes, utilizei documentos demonstrativos da ação do Estado e

fontes que têm por característica apresentar de forma mais direta a atuação dos diferentes

grupos sociais. Tais documentos, em sua maioria, estão depositados no Arquivo Histórico do

Rio Grande do Sul (AHRS) e no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul

(APERGS), ambos localizados em Porto Alegre. No caso da atuação do Estado, priorizei a

análise de material elaborado pelas pessoas que ocupavam lugar de direção no período:

Mensagens dos Presidentes de Estado enviadas à Assembléia dos Representantes

disponibilizados digitalmente na página do Center For Research Libraries21, vinculado à

Universidade de Chicago. Nas mensagens, constam descritas de ano a ano em todo período

analisado as políticas públicas de colonização, o modo como o Estado lidava com os

diferentes grupos sociais, bem como a situação geral do estado no período. Também utilizo os

Relatórios da Secretaria dos Negócios das Obras Públicas (SENOP) que estão depositados

no AHRS. Nos relatórios da SENOP estão inseridos os relatórios da Diretoria de Terras e

Colonização (DTC), organizados por Carlos Torres Gonçalves, um dos principais

funcionários de Estado, responsável por pensar e colocar em prática as políticas de

colonização no Rio Grande do Sul22. Nos relatórios da DTC, encontram-se descrições da

situação geral que vivenciavam as diferentes colônias, como se desenvolvia a prática de

colonização e os problemas relacionados à apropriação e gerência das terras consideradas

devolutas.

Ainda sobre os relatórios da DTC e as mensagens dos presidentes de Estado é

importante sublinhar que são documentos produzidos por pessoas que tinham a incumbência

de administrar o povoamento e buscavam dar a ele uma certa ordem. O objetivo principal

perseguido pelos funcionários de Estado era manter o controle sobre o processo de

apropriação territorial, buscando garantir que as rendas advindas da privatização das terras

devolutas ficassem com o Estado. Além disso, também existia a preocupação de formar um

tipo específico de trabalhador rural, cuja peculiaridade deveria ser o reconhecimento da

propriedade e a prática de uma agricultura definida como racional e geradora de divisas para

o estado. Dessa forma, tais fontes caracterizam-se por sua parcialidade e pela presença

constante de críticas aos comportamentos considerados desviantes, como é o caso das

posições preconceituosas a respeito do modo de vida característico dos nacionais. Ademais,

tanto os relatórios como as mensagens, são documentos administrativos produzidos

21 Cf.: http://www.crl.edu/ 22 Desenvolvi uma descrição mais detalhada da atuação e da história de vida de Carlos Torres Gonçalves no terceiro capítulo.

- 20 -

anualmente, a partir dos quais buscava-se prestar conta dos serviços realizados. Assim,

tendem a esconder ou diminuir a importância dos problemas enfrentados pela administração.

Contudo, mesmo que parciais estas fontes são importantes na medida em que fornecem

indícios que podem ser elucidados a partir da sua contraposição com outros documentos e

com a produção bibliográfica competente.

Para realizar a análise, também utilizei artigos e livros produzidos na época23. Trata-se

de publicações que tiveram repercussão nacional como o livro Os Sertões de Euclides da

Cunha24. A partir da análise de tais obras procurei compreender o modo como as populações

rurais brasileiras eram representadas, bem como conhecer o período e as principais discussões

em voga. Neste caso, é importante pontuar que tal produção intelectual representa a percepção

dominante a respeito do Brasil e do povo brasileiro, a qual também buscava definir um lugar

social a esse determinado povo, assim como exigir que ele se comportasse de acordo com o

conteúdo das representações veiculadas.

Outro segmento de fontes utilizadas compõe-se de descrições elaboradas por pessoas

que viviam na região ou que por ela passavam. Assim, textos como o de Evaristo de Afonso

Castro25 e José Hemetério Velloso da Silveira26 – dois representantes da elite político-

econômica de Cruz Alta, sendo o primeiro Promotor Público e o segundo uma influente

liderança política local – oferecem em seus textos detalhes importantes a respeito da região e

de seus habitantes. Não obstante seus preconceitos sobre a população nativa e sua posição

apologética em relação aos imigrantes, as descrições elaboradas por estes personagens são

fontes interessantes para o pesquisador preocupado em conhecer os costumes locais, bem

como o modo como funcionava a economia dos municípios e aspectos relativos a

sociabilidade local. Também se destacam as descrições produzidas por estrangeiros que

passaram pela região como o livro do agrimensor alemão Maximiliano Beschoren27 e os

relatórios produzidos pelos padres capuchinhos franceses Bernardin D’Apremont e Bruno

23 Por exemplo: BONFIM, Manuel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993; VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil: história, organização e psicologia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, vol. 1, 1938; PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1962; ARARIPE, Tristão de Alencar. Indicações sobre a história nacional. In.: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 57, parte II. Rio de Janeiro: Companhia Tipográfica do Brasil, 1894, p. 259-290, entre outros. 24 CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2006. 25 CASTRO, Evaristo de Afonso. Noticia descritiva da região serrana na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul compreendendo os municípios de Cruz Alta, São Martinho, Palmeira, Passo Fundo, Santo Ângelo, São Luiz, Boqueirão, São Borja, São Francisco de Assis, São Vicente e Itaqui. Cruz Alta: Tipografia do Comercial, 1887. 26 SILVEIRA, Hemetério José Velloso da. As missões orientais e seus antigos domínios. Porto Alegre: Companhia União de Seguros Gerais, 1979. 27 BESCHOREN, Maximiliano. Impressões de viagem na Província do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1989.

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Gillonay28. Neste caso, destaca-se a visão eurocêntrica de seus autores, os quais

invariavelmente tratam a região como um deserto. Assim, aos olhos destes estrangeiros,

embora rica em condições a região era um espaço pouco povoado, além de não ser

aproveitada em toda sua potencialidade devido à preguiça comum de seus habitantes.

Situação que, segundo tais autores, poderia ser alterada com a vinda de imigrantes, visto que

eles seriam responsáveis por levar as luzes da civilização àquele “espaço tão esquecido”.

Sustentado na análise desse material, procurei conhecer o processo de colonização e

povoamento, a partir do ponto de vista daqueles que estavam de alguma forma envolvidos na

direção do mesmo ou o presenciaram diretamente. Por seu turno, como tal conjunto de fontes

define-se por sua parcialidade e por representar uma opinião externa a respeito do

povoamento, busquei contrapor as suas informações com dados colhidos em processos crimes

movidos nas Comarcas dos municípios que compõe o espaço sob análise29. Em linhas gerais,

os processos crime permitem ao pesquisador conhecer, entre outras coisas, o modo como as

populações que habitavam a região em estudo se organizavam. Ademais, possibilitam uma

visualização de problemas específicos que dizem respeito, por exemplo, às questões étnicas,

de mobilidade social ou política e os confrontos pela terra.

A utilização de processos crime como fontes para pensar a questão agrária,

principalmente aspectos relacionados a sociabilidade dos grupos rurais demonstra-se bastante

profícua. Assim, a partir das informações presentes em interrogatórios, depoimentos de

testemunhas, em denúncias, em defesas escritas por advogados, em sentenças e veredictos é

possível desenvolver um conjunto de referenciais, cuja característica mais marcante é o acesso

a algumas questões que são peculiares da vida social dos grupos rurais, bem como das

disputas e resistências provenientes do processo de ocupação das terras na região.

No que se refere ao conhecer a vida das populações que não dominavam a palavra

escrita, os processos crime se demonstram uma das fontes que mais bem permitem ao

pesquisador vasculhar esse mundo. Entretanto, é preciso estar atento para o fato de que os

dados disponibilizados nestas fontes são resultado de uma mediação, isto é, sua produção

também está vinculada ao Estado e é resultado de um ritual. Por conseguinte, os processos

crime inserem-se dentro de um “campo” de produção e são atravessados pelo conjunto de 28 D’APREMONT, Bernardin; GILLONAY, Bruno de. Comunidades indígenas, brasileiras, polonesas e italianas no Rio Grande do Sul (1896-1915). Porto Alegre: EST, Caxias do Sul: UCS, 1976. 29 Aqui chamo atenção para o fato de que a maior parte dos processos crime analisados pertencem as Comarcas dos municípios de Palmeira das Missões e Santo Ângelo. O motivo de tal escolha é porque na pesquisa de mestrado priorizei a análise dos processos movidos nas Comarcas de Cruz Alta e Passo Fundo. Cf.: SILVA, Márcio Antônio Both. Por uma lógica camponesa: caboclos e imigrantes na formação do agro do planalto rio-grandense. Porto Alegre: Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2004. (Dissertação de Mestrado).

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regras e preceitos que definem este “campo”30, assim, expressam uma opinião e se adaptam a

um modelo que é ditado pela Justiça Pública. As informações presentes nos processos crime,

portanto, não devem ser tomadas sem sua devida crítica, pois há o risco de tornar algumas

opiniões características da época consensuais quando, na verdade, expressam apenas um

ponto de vista.

Do mesmo modo, analisar uma determinada situação a partir do uso das informações

presentes em processos crime pode levar o pesquisador a tomá-la como profundamente

atravessada pela violência, à medida que ela é o foco principal destes documentos. No

entanto, a violência é apenas um dos aspectos com o qual o pesquisador pode trabalhar. O

profundamente interessante está nos relatos que estas fontes disponibilizam a respeito das

relações sociais características de um determinado contexto. Assim, a partir destes dados é

possível construir um quadro geral de como se davam os contatos étnicos, as relações de

parentesco e vizinhança, a noção de honra característica do grupo com o qual se está

trabalhando e muitos outros mais, cujo aparecimento é proporcional às perguntas que o

pesquisador faz. Os processos crime, por conseguinte, são um excelente referencial para os

historiadores da questão agrária, especialmente na perspectiva de preencher algumas lacunas

existentes sobre o passado das populações rurais. Em outras palavras, os processos crime

possibilitam conhecer fatos e situações que, caso eles não existissem, provavelmente seriam

relegadas ao esquecimento, mas isso não os torna infalíveis, daí a ser aconselhável que os

dados disponibilizados pelos processos sejam contrapostos a informações presentes em outras

fontes.

Até aqui, apresentei alguns dos temas que serão abordados ao longo deste estudo, bem

como as fontes utilizadas para realização da pesquisa; cabe agora descrever, em linhas gerais,

o modo como o texto está organizado. A tese é composta por quatro capítulos, sendo que no

primeiro, desenvolvo uma análise descritiva da região, trato de apresentá-la a partir de

informações colhidas nas descrições acima apresentadas. Além dessas fontes, também faço

uso das informações contidas nos relatórios da DTC e nas mensagens dos presidentes de

Estado. Em termos gerais, o objetivo principal do capítulo é elaborar uma apresentação

detalhada da região, das suas cidades, das opiniões existentes a respeito da população que a

habitava e sobre a colonização da mesma com imigrantes. Dessa forma, baseado em tais

informações, procuro apresentar elementos que possibilitem ao leitor conhecer minimamente

o espaço alvo de estudo.

30 A noção de “campo” aqui empregada descansa sob as análises desenvolvidas por Pierre Bourdieu. Conferir os artigos que compõem o livro: BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

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No segundo capítulo, elaboro uma análise mais detalhada das representações

existentes a respeito dos grupos que atuaram no povoamento, bem como discuto o papel do

Estado e das políticas públicas elaboradas para gerenciar o processo. As fontes utilizadas são

as mesmas citadas para o desenvolvimento do primeiro capítulo acrescidas da análise de

algumas publicações de época que tratam de contextos diferenciados. Contudo,

diferentemente do primeiro, neste capítulo, a principal fonte de referência são os relatórios da

DTC, as mensagens dos presidentes e alguns processos crime. Assim, elementos como a

desigualdade econômica existente entre os habitantes da região, as interpretações raciais

características do período, o modo como o Estado gerenciava a ocupação e a imigração e as

opiniões (i.e. representações) existentes sobre os grupos envolvidos no processo são os alvos

centrais da análise.

No capítulo três, procuro apresentar cada grupo em particular. Assim, abordo temas

relativos a inserção dos imigrantes no contexto local, as políticas imigratórias do período, o

lugar social ocupado pelos afros-descendentes, a inserção dos grupos indígenas no processo

de povoamento e a atuação e presença dos nacionais na região. O objetivo principal é pensar

os significados característicos das diferentes opiniões existentes a respeito destes grupos e o

quanto elas foram importantes e definidoras do modo como a questão agrária foi definida no

período.

No quarto capítulo, analiso de forma mais direta o povoamento da região. O principal

aspecto abordado foi o desenvolvimento das políticas públicas de colonização e de gerência

das terras devolutas. O motivo do capítulo é analisar e descrever as políticas de Estado

desenvolvidas para administrar o processo de povoamento. Nesse sentido, dois assuntos em

especial foram observados: a política de terras e a construção da categoria intruso para

identificar as pessoas que, de alguma forma, não se enquadravam nos interesses perseguidos

por aqueles que administravam ou buscavam administrar o processo de povoamento da

região.

Por fim, como sublinhei no início, esta pesquisa busca contar a história da terra e seus

homens. Pessoas que viveram em um contexto específico, construíram uma história particular,

a qual ainda está por ser contada e que carrega como traço principal o fato de ser uma história

de luta, sendo que a terra é o seu eixo central. Assim, é importante lembrar que nesse processo

muitos foram preteridos, inseriram-se nele de forma subordinada, mas não ficaram imóveis e,

ao seu modo, definiram os rumos do povoamento da região.

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1 BABEL DO NOVO MUNDO

Eis que são um só povo, disse ele, e falam uma só língua: se começam assim, nada futuramente os impedirá de executarem todos os seus empreendimentos. Vamos: desçamos para lhes confundir a linguagem, de sorte que já não se compreendam um ao outro. Foi dali que o Senhor os dispersou daquele lugar pela face de toda a terra, e cessaram a construção da cidade.

Gênesis 11; 6-9. A torre de Babel.

Aceitei com alegria o convite e assim eis-me novamente no “far oeste”. (...). Em cada quarto de légua, uma casa, um rancho, e ao longe, no horizonte, a aromática floresta da serra.

Maximiliano Beschoren. Impressões de viagem.

A ocupação das terras que conformam o hoje estado do Rio Grande do Sul já foi

objeto de diferentes abordagens. Muitos dos estudos sobre o problema são resultado de

pesquisas acadêmicas como as análises de Paulo Zarth1 – que se preocupou em estudar a

ocupação da parte norte do estado – e as pesquisas de Helen Osório2 – que tem como objeto

de suas análises a região platina –, isto é, as regiões de campo situadas na parte sul do

território rio-grandense, principalmente os espaços de fronteira com os países vizinhos

(Argentina, Uruguai e Paraguai). Para ter uma idéia da amplitude da produção, ela não está

circunscrita apenas ao domínio de historiadores e historiadoras, mas é alvo da análise de

pessoas ligadas a outras áreas das ciências humanas: sociologia, antropologia, economia,

geografia e ciência política. Fora do mundo acadêmico, também existe uma produção extensa

de textos que tem por tema a ocupação do Rio Grande do Sul. Estes são escritos por

intelectuais “autônomos”, os quais, na maioria das vezes, intitulam-se autodidatas; enfim,

1 Consultar a dissertação de mestrado e a tese de doutorado desse pesquisador, ambas publicadas pela Editora Unijui: ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Editora UNIJUI, 2002 e ___. História agrária do planalto gaúcho (1850-1920). Ijuí: Editora UNIJUI, 1997. 2 Em suas pesquisas de mestrado e doutorado, Helen Osório também se preocupou em pensar o povoamento do Rio Grande do Sul. Cf.: OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da estremadura portuguesa na América (1737-1822). Niterói: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, 1999. (Tese de Doutorado) e ___. Apropriação da terra no Rio Grande de São Pedro e a formação do espaço platino. Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul, 1990. (Dissertação de Mestrado).

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pessoas que se interessam pelo tema, mergulham no mundo da pesquisa e, ao seu modo,

contribuem no desenvolvimento dos saberes a respeito do assunto.

Uma das perguntas que vem interessando aos pesquisadores do povoamento do Rio

Grande do Sul refere-se ao porquê de a imigração ter sido direcionada para o norte e a região

central do estado, enquanto que o sul não conheceu de forma profunda o mesmo fenômeno.

Nesse caso, os mais variados argumentos explicativos são usados, até mesmo os físico-

geográficos, que dizem que o solo dos espaços para onde o movimento de colonização com

imigrantes foi direcionado, cujo relevo original era composto pela mata atlântica – daí a esse

território ser conhecido também como região de matas –, era mais propício à agricultura do

que os lugares onde a vegetação original era formada por campos, destinados inicialmente a

criação de gado e localizados, principalmente, no sul do Rio Grande3.

Motivos econômicos também são acionados e, segundo estes, os estancieiros4 do sul,

ciosos de manterem domínio sob suas propriedades, não queriam correr o risco de se ver

pressionados a vendê-las para fins de colonização e, sobretudo, ter a legitimidade delas

questionadas. Além disso, era idéia comum na época sob análise que as terras de matas

situadas ao norte do Rio Grande do Sul deveriam ter uma destinação agrícola e assim

impulsionar a produção de gêneros destinados ao consumo interno. Por fim, existiam também

os interesses estratégico-militares, uma vez que a região de matas era o espaço menos

povoado e sempre houve a possibilidade de uma ocupação por parte dos países vizinhos,

sendo urgente para o governo brasileiro povoá-lo5.

O marco temporal a ser analisado aqui é o período que compreende a Primeira

República, mas precisamente os anos que se estendem entre 1889 e 1925. Justifico a escolha

do espaço cronológico pela circunstância de que a data inicial, 1889, define o começo do

período republicano e demarca os primeiros passos do domínio exercido pelo Partido

Republicano Rio-Grandense (PRR) no Rio Grande do Sul, cuja hegemonia perdurou pelos

primeiros 40 do século XX. Contudo, o motivo principal é ter sido este o momento em que o

processo de ocupação da região objeto de análise conheceu um desenvolvimento até então

inédito.

3 Sobre esta questão, ver: BERNARDES, Nilo. Bases geográficas do povoamento do Estado do Rio Grande do Sul. Ijuí: UNIJUI, 1997. 4 “Estancieiro” é uma palavra corriqueiramente utilizada no Rio Grande do Sul e nos países vizinhos de fala espanhola para denominar os grandes proprietários de terras. 5 Consultar: DACANAL, José Hildebrando (Org.). RS: imigração e colonização. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980; RÜCKERT, Aldomar A. A trajetória da terra: ocupação e colonização do centro-norte do Rio Grande do Sul – 1827-1931. Passo Fundo: Ediupf, 1997 e Paulo Afonso Zarth. Idem, op. cit.

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Tal circunstância estava vinculada a constituição e aplicação de uma série de políticas

pensadas para apurar o povoamento e desenvolver uma agricultura “mais racional” no estado

e, mais diretamente, na região de matas. Nesse sentido, os pontos a serem focados ao longo do

estudo serão, em linhas gerais, pensar tais políticas, seus resultados e o modo como elas foram

aplicadas no contexto local. De uma maneira mais específica, o objetivo é compreender o

quanto a aplicação e desenvolvimento dos projetos governamentais sofreram alterações a

partir da forma como as populações locais os receberam, entenderam e manejaram. Assim,

além de pensar os planos de aperfeiçoamento agrícola e de colonização desenvolvidos pelo

governo republicano, igualmente estarei preocupado em observar o quanto as populações a

quem eles se destinavam, a partir de suas experiências, impuseram ou tentaram impor

modificações aos mesmos.

Daí o fato de a data inicial da análise coincidir com o início da República no Brasil,

pois embora muitos dos projetos políticos de colonização e povoamento do governo

republicano tenham herdado características e concepções do período imperial, a partir da

República novos elementos são introduzidos nas políticas públicas relacionadas à agricultura,

à imigração, ao controle sobre as terras devolutas e à constituição de um tipo de agricultor

ideal. A criação, pelo Governo Federal, em 1909, do Ministério da Agricultura Indústria e

Comércio (MAIC) e, em 1910, do Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos

Trabalhadores Nacionais (SPILTN), são exemplos disso. Já em termos locais, entre

1907/1908, acontece a estruturação da Diretoria de Terras e Colonização (DTC), a qual no

Rio Grande do Sul foi responsável por gerenciar os temas relacionados à questão indígena, à

agricultura e à colonização. Antes da criação dessas instituições também temos outro fato

muito importante que é decorrente da primeira Constituição republicana e representou um

marco da República no que tange ao problema agrário, isto é, a passagem do controle sobre as

terras devolutas da União para os Estados. Um outro motivo muito importante que definiu a

escolha do período é que, como registrei acima, é a partir desse momento que a região passa a

conhecer um processo intensivo de colonização e povoamento.

A data final da análise foi escolhida porque representa uma conjuntura de mudanças e,

dentre elas, interessa a diminuição do domínio do PRR e a estruturação de um novo momento

na história política e econômica do estado6. De maneira mais pontual, sobressai o fato de que,

6 Sobre as mudanças políticas e econômicas que ocorreram no contexto do Rio Grande do Sul na década de 20, conferir: VIZENTINI, Paulo Fagundes. A crise dos anos 20: conflitos e transição. Porto Alegre: Editora UFRGS, 1998; ver também ANTONACCI, Maria Antonieta Martines. A luta oligárquica no Rio Grande do Sul na República Velha: o movimento das oposições na conjuntura de 1921/23. São Paulo: Departamento de

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a partir da década de 1920, o Rio Grande do Sul passou a ser um “exportador” de migrantes

para outros territórios da Federação: especialmente Santa Catarina e Paraná. Tal situação

demarca o fim de uma continuidade histórica, cujos traços peculiares, como mostrarei ao

longo destas linhas, foram o constante incremento populacional provindo da entrada de

imigrantes europeus, além do crescimento e migração da população colonial proveniente das

colônias velhas7 em direção à região de matas. Enfim, na década de 1920 o “processo de

ocupação das terras florestais já estava praticamente consolidado”8 e as terras ainda devolutas

que existiam nessa década, como mostra Paulo Zarth, foram ocupadas nos mesmos moldes

dos anos anteriores. Por seu turno, estender a análise para um período maior, por exemplo, até

1930 – data que tradicionalmente é tomada como fim da Primeira República – significaria a

realização de um esforço (coleta de fontes e leitura bibliográfica) que, nos termos deste

estudo, poderia trazer resultados não muito diferenciados. Da mesma maneira, por se tratar de

um período conturbado onde as mudanças políticas, tanto no Rio Grande do Sul como no

Brasil, são profundas optei por não abordá-las. Também justifico esta opção pelo fato de que,

em termos das políticas agrárias e de colonização, grandes alterações aconteceram somente a

partir de 1928 quando Getúlio Dornelles Vargas tornou-se Presidente do Estado. Exemplo de

tais alterações são a extinção da DTC, a criação de uma Secretaria Estadual da Agricultura e o

desenvolvimento de novas políticas relacionadas à imigração; mas tais problemas são objetos

para outro estudo.

Agora que conhecemos os motivos que levaram a delimitação do espaço temporal,

cabe apresentar mais detalhadamente a região a que a análise se refere, seus contornos e o

modo como aconteceu o seu povoamento. Nessa perspectiva, uma fonte interessante pela qual

é possível visualizar o povoamento do Rio Grande do Sul é o mapa do estado, mais

precisamente a maneira como se constituíram sua divisão municipal e a distribuição da

propriedade fundiária. Atualmente, o estado possui 496 municípios espalhados ao longo de

seu território, a grande maioria deles situado na parte norte e central. Essa forma de

distribuição, como veremos, é demonstrativa de um processo de povoamento em alguns

pontos ainda não bem explicitado, sobretudo naquilo que diz respeito às relações mantidas

entre as pessoas que nele atuaram.

História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1978 (Dissertação de Mestrado). 7 Colônias Velhas é o nome que recebem tradicionalmente as primeiras colônias fundadas no Rio Grande do Sul, as quais, em sua maioria, situam-se mais próximas a Porto Alegre: São Leopoldo, Novo Hamburgo e Caxias, por exemplo. Adiante, na página 51, segue um mapa com a distribuição dessas colônias. 8 Paulo Afonso Zarth. História agrária do planalto gaúcho. Idem, op. cit., p. 20.

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Algumas das pesquisas existentes sobre o povoamento priorizaram a análise da

apropriação das terras centrando sua atenção na constituição da estrutura fundiária e nos

meandros que lhe dizem respeito. Nesse sentido, uma das questões trabalhadas pelos

pesquisadores refere-se aos resultados estruturais, na perspectiva da distribuição da

propriedade fundiária, advindos do fato da imigração ter sido direcionada quase que

completamente para um espaço específico: a região florestal9, cuja localização está destacada

em verde no mapa abaixo.

FIGURA 1:

BIOMAS RIO GRANDE DO SUL

FONTE: Atlas socioeconômico do Rio Grande do Sul. In.: http://www.scp.rs.gov.br/atlas. Material coletado às 14:00 horas do dia 19/01/2008.

No mapa visualiza-se a localização dos biomas mata atlântica e pampa no Rio Grande

do Sul. A região de matas, que em termos ambientais conforma o bioma mata atlântica10, é o

9 Nilo Bernardes, geógrafo ligado ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na década de 50 do século XX, desenvolveu interessante pesquisa, cujo motivo era compreender o porquê da existência de uma diferença tão gritante entre as regiões Norte e Sul, pois a menos povoada e que contém menor número de municípios – a região Sul – é exatamente a de mais antiga ocupação. Para Bernardes, a origem da diferença encontra-se no processo de ocupação do espaço Norte rio-grandense, cujo desenvolvimento se dá mediante a fundação de colônias de imigrantes e do estabelecimento, a partir de meados do século XIX, de uma quantidade considerável de pessoas na região. A conseqüência é a sua atual densidade demográfica, bem como o número de municípios existentes. Cf.: Nilo Bernarde. Idem, op. cit. 10 “Os biomas são classificados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística como ‘conjunto de vida (vegetal e animal) constituído pelo agrupamento de tipos de vegetação contíguos e identificáveis em escala regional, com condições geoclimáticas similares e história compartilhada de mudanças, o que resulta em uma diversidade biológica própria’”. Informação retirada às 14 horas do dia 19/01/2008 do seguinte endereço

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espaço para onde o movimento de colonização foi, desde o século XIX – mais

especificamente a partir da fundação da Colônia São Leopoldo em 1824 – direcionado. Das

conclusões possíveis a respeito do processo, umas das mais frisadas é a de que, em

decorrência desse fenômeno, surge a constituição de realidades totalmente diversas. Assim, o

norte e o centro do Rio Grande do Sul, onde predomina a floresta e que foram os principais

espaços alvos dos projetos de colonização com imigrantes, são caracterizados pela presença

de uma grande quantidade de municípios e também por possuir uma maior densidade

demográfica, cuja proporção é circunstancialmente superior, em comparação à região do

pampa, situada ao sul. Quanto a questão da estrutura fundiária, 60 a 90% das propriedades do

estado com mais de 500 hectares situam-se na parte sul (bioma pampa), enquanto que, nas

regiões de colonização (bioma mata atlântica), localizam-se a maior parte das pequenas

propriedades (ver mapa abaixo).

FIRGURA 2:

ESTRUTURA FUNDIÁRIA

FONTE: Atlas socioeconômico do Rio Grande do Sul. In.: http://www.scp.rs.gov.br/atlas. Material coletado às 15:00 horas do dia 27/06/2007.

eletrônico: http://www.scp.rs.gov.br/atlas/atlas.asp?menu=59. Este site é elaborado pela Secretaria do Estado da Agricultura e trata de assuntos gerais relativos ao Estado do Rio Grande do Sul.

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A região11 sob análise situa-se dentro do bioma mata atlântica e conforma um espaço

abrangido pelo território de quatro municípios: Cruz Alta, Passo Fundo, Santo Ângelo e

Palmeiras das Missões – emancipados em 1834, 1857, 1873 e 1874, respectivamente. Dentro

do território desses municípios, foi estabelecida uma série de colônias povoadas por

imigrantes europeus, em sua maioria de origem não-ibérica, as quais começaram a ser

fundadas a partir de 1890. Cruz Alta é o município mais antigo e todos os outros três

pertenciam-lhe antes de suas emancipações. Por fim, ao longo do período analisado, são

criados mais dois municípios: Ijuí (emancipado de Cruz Alta em 1912) e Erechim (que fazia

parte de Passo Fundo e foi emancipado em 1918)12.

No mapa que segue é possível visualizar de forma mais detalhada a referida região. O

espaço alvo de análise é o demarcado em verde, a malha mais escura representa a divisão

municipal do estado em 1900 e a mais clara a atual. Por essa justaposição das duas malhas,

fica visível o quanto os espaços de colonização com imigrantes sofreram, ao longo do século

XX, um intenso processo de divisões e subdivisões enquanto, no sul, alguns municípios –

Alegrete, por exemplo – continuam atualmente com a mesma dimensão que tinham no início

do século passado. Grande parte dos municípios criados na região de matas são originários de

colônias públicas e privadas. No espaço que em 1900 situavam-se Cruz Alta, Passo Fundo,

Santo Ângelo e Palmeiras das Missões, foram fundados, desde 1912 até o ano de 2009, em

torno de 170 municípios, sendo alguns originários de linhas coloniais que, inicialmente, eram

as divisões tradicionais dadas às colônias.

11 Em termos conceituais a base que tomo para definir a região são as observações de Marc Bloch a respeito desse assunto. Para Bloch, “a noção de região é essencialmente relativa”. Por conseguinte, “o historiador não tem que usar quadros administrativos anacrônicos; cabe a ele fazer-se por si mesmo, cada vez, sua região, regulando-se sobre as condições do tempo estudado”. Ou seja, é o historiador a partir de suas fontes e das perguntas que faz a elas que tem, segundo Bloch, que definir o espaço alvo de sua atenção. A constatação do autor faz parte de uma discussão que alguns pesquisadores – Pierre Bourdieu, por exemplo – chamam de as lutas de classificações. Em outros termos, para tornar a realidade compreensível, é preciso classificá-la. Se, por um lado, a “noção de região é essencialmente relativa”, como mostra Marc Bloch, por outro, também é importante lembrar que ao definir os contornos de um determinado espaço, o pesquisador está atuando sobre a realidade que pretende analisar e, tal atuação, pode entrar de forma direta ou indireta no processo de constituição do próprio espaço e, o que é mais importante, influenciar nos resultados de suas análises. Assim, quando o historiador define a região a partir de seus próprios critérios, ou melhor, de critérios que ele localiza nas fontes está também construindo essa região. Nessa construção, ocupam lugar destacado as informações que as fontes trazem a respeito do lugar e, sobretudo, elas devem ser a base a partir da qual o espaço é definido. Ademais, outro elemento que tem peso muito importante no sentido de legitimar tal construção é a autoridade do historiador, cujo fundamento encontra-se na sua inserção dentro do campo cientifico. Contudo, lembra Bourdieu, “a ciência que pretende propor critérios mais bem alicerçados na realidade não deve esquecer que se limita a registrar um estado da luta de classificações, quer dizer, um estado da relação de forças materiais ou simbólicas entre os que têm interesse num ou noutro modo de classificação e que, com ela, invocam freqüentemente a autoridade científica para fundamentarem na realidade e na razão a divisão arbitrária que querem impor”. Cf.: BLOCH, Marc. A terra e seus homens: agricultura e vida rural nos séculos XVII e XVIII. Bauru: EDUSC, 2001, p. 202-203 e BOURDIEU, Pierre. A identidade e a representação. Elementos para uma reflexão crítica sobre a idéia de região, p. 115. In.: ___. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p. 107-132. 12 Cabe frisar que Ijuí e Erechim são municípios originários de colônias públicas.

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FIGURA 3:

DIVISÃO MUNICIPAL DO RIO GRANDE DO SUL

FONTE: Atlas socioeconômico do Rio Grande do Sul. In.: http://www.scp.rs.gov.br/atlas. Material coletado às 19 horas do dia 23/01/2007.

Na época analisada existia uma maneira particular de denominar a região. A

nomenclatura varia de acordo com a fonte utilizada, mas no geral ela era conhecida e, de certa

forma ainda é, como região serrana13 ou região das missões14. Outra nomenclatura bastante

comum nas fontes é identificar a região a partir de sua localização físico-geográfica, isto é, ela

conforma o espaço situado em cima da serra. Os quatro municípios se localizam no planalto

rio-grandense e é exatamente a escarpa do planalto (ver mapa abaixo) que seus habitantes

chamam de serra. Um exemplo dessa nomenclatura é encontrado nos diários de campanha do

General Antônio Ferreira Prestes Guimarães escritos no início do século XX, cujo título é A

Revolução Federalista em cima da serra15. Outro exemplo são os jornais de circulação local,

cujos nomes, invariavelmente, fazem menção ao espaço utilizando nomenclaturas que na

13 Aqui é importante destacar que a denominação “região serrana” atualmente é muito utilizada, especialmente na mídia, para identificar a região nordeste do Rio Grande do Sul, contudo, no século XIX e em parte do XX ela era empregada para referir-se a toda região do planalto rio-grandense. 14 Tal denominação é decorrente do fato de ter sido este o espaço onde estavam dispostos os sete povos das missões, fundados pelos padres jesuítas ainda no período colonial.. 15 Prestes Guimarães era natural de Passo Fundo, bacharel em direito e, durante o período imperial, foi uma das principais lideranças do Partido Liberal na região. Cf.: GUIMARÃES, Antônio Ferreira Prestes. A revolução federalista em cima da serra – 1892/1895. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1987.

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época eram de uso corrente, como o Correio Serrano de Ijuí e o Aurora da Serra de Cruz

Alta.

FIGURA 4:

O PLANALTO DO RIO GRANDE DO SUL

FONTE: Atlas socioeconômico do Rio Grande do Sul. In.: http://www.scp.rs.gov.br/atlas. Material coletado às 15 horas do dia 19/01/2008.

A região de cima da serra é aquela que está acima da escarpa do planalto, por isso

também é identificada como região serrana. Cabe sublinhar que o espaço a ser analisado não

é o que compreende toda a extensão do Planalto, mas alguns municípios ali situados. Ainda

em termos ambientais é conveniente destacar que o Planalto é o espaço em que a dicotomia

campo-floresta aparece de forma mais saliente, lembrando que, no Rio Grande do Sul, as

regiões de campo são tradicional e historicamente o lugar da criação de gado e da grande

propriedade, enquanto que as áreas florestais são o espaço da agricultura e da pequena

propriedade16. Conseqüentemente, na região do planalto os contatos entre “estancieiros e

pequenos lavradores é mais direto, o que possibilita visualizar mais bem as contradições

existentes entre os dois grupos sociais”17.

16 Evidentemente que esta constatação no pode ser tomada por regra, pois é possível encontrar grandes propriedades na região florestal, assim como pequenas propriedades nas regiões dominadas pelo bioma pampa. 17 Paulo Zarth. História agrária do Planalto gaúcho. Idem, op. cit.: p. 26.

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Algumas circunstâncias se sobressaem na escolha do espaço e as principais são a

presença de um considerável contingente de pessoas vivendo da agricultura de subsistência e

do extrativismo da erva-mate – produto que juntamente com a criação de gado, como

veremos, era o principal a gerar divisas para a região. A forte presença de contingentes

indígenas “organizados” em Toldos18 ou espalhados dentro da zona de matas, também é um

fator que está na base da definição. Outro elemento orquestrador da escolha é que, a partir de

1890, com a fundação da Colônia Ijuí, o espaço passa a conhecer um intensivo processo de

colonização com imigrantes, o qual põe em contato indivíduos provindos de diferentes

situações e condições sociais: os índios, principalmente Caingangues, que habitavam a área a

bastante tempo19; os nacionais20, que estavam ligados ao extrativismo da erva-mate ou eram

posseiros, peões ou agregados das grandes estâncias de criação, quando não exerciam

diferentes papéis ao longo de sua existência; os colonos vindos direto da Europa ou das

colônias velhas do estado à procura de terra. Também é importante dar o devido destaque à

presença na região de um contingente considerável de afros-descendentes.

O mapa do Rio Grande do Sul, portanto, apresenta indícios que ajudam a compreender

a história de um processo, no qual grupos com perspectivas e interpretações de mundo

diferenciados encontraram-se, constituíram representações uns a respeito dos outros e também

disputaram e formaram um território que, nos fins do século XIX, era apresentado, nos

documentos que descrevem a região, como um “monótono deserto”. Tal processo, por sua

vez, não terminou, sendo que ainda hoje as disputas por definir o espaço e seus habitantes

continuam significando e ressignificando as relações, assim como as identidades sociais das

pessoas que ali residem. Em outros termos, os grupos indígenas continuam enfrentando

problemas relativos ao reconhecimento das terras que ocupam. Alguns moradores da região

ainda argumentam que tais terras são extensas demais para o número de índios ali vivendo,

bem como afirmam que os indígenas não “sabem” explorar devidamente tais terras e, por fim,

os grupos de nacionais e negros prosseguem sendo reduto fornecedor de mão-de-obra barata.

Existem algumas descrições da região produzidas nas últimas décadas do século XIX e

início do XX que ajudam a conhecer aspectos ligados ao seu povoamento. Dentre elas,

destacam-se a de Maximiliano Beschoren21 (engenheiro alemão que chegou no Brasil em

1869 e trabalhou como agrimensor na região entre 1875 e 1887). A Notícia descritiva da

18 Palavra usada no Rio Grande do Sul para nomear os aldeamentos indígenas. 19 Sobre a presença indígena na região, ver: BECKER, Ítala. O índio Kaingáng no Rio Grande do Sul. São Leopoldo: UNISINOS, 1995. 20 No capítulo 3, desenvolverei uma explicação mais detalhada do termo e seus significados. 21 BESCHOREN, Maximiliano. Impressões de viagem na Província do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1989.

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região serrana22, escrita em 1887, de autoria de Evaristo de Afonso Castro (português

radicado em Cruz Alta, onde exercia a função de promotor) também é um texto que traz

informações sobre aquele espaço e sua população. Missões orientais e seus antigos domínios23

de Hemetério José Velloso da Silveira (importante líder político de Cruz Alta que por longos

anos ocupou o posto de vereador e Presidente da Câmara do município) é outro texto

descritivo, datado de 1909, que fornece notícias importantes para conhecer mais

profundamente a realidade local.

Além de ser um lugar onde a dicotomia campo-floresta é comum, outra característica

da região é a forte presença de ervais, os quais, de acordo com Beschoren, eram à época

conhecidos como ervais “de rima ou de Cima”. Tal denominação servia para diferenciá-los do

“Herval de São João, localizado na parte baixa da Serra”24. Os espaços onde a presença da

erva-mate era grande eram bastante explorados, visto que, como expõe o engenheiro alemão:

“caminhos e picadas cruzam-no em todas as direções e levam para casebres e ranchos bem

escondidos. Foragidos da lei encontram nesta mata um refúgio seguro, onde as mãos da

justiça dificilmente os alcançam”25.

Para uma idéia geral do quanto era diversificada a paisagem, tanto a humana quanto a

geográfica e a econômica, nos primeiros deslocamentos de Beschoren – que saía da região de

colonização alemã antiga situada mais ao centro do estado para trabalhar como agrimensor

nas terras situadas “em cima da serra” –, o engenheiro escreve que tinha se deslocado de uma

parte da Província – a “dos celeiros da colônia alemã” –, onde a agricultura estava no auge da

floração, havia passado pelas “matas ervateiras da Serra Geral, cujos habitantes dedicam-se ao

cultivo da erva-mate” e, finalmente, no município de Soledade, chegava “aos campos da

região montanhosa, onde a principal fonte de renda é a criação de gado”26.

Beschoren também faz comentários sobre a existência de uma “idéia generalizada” a

respeito das áreas florestais, segundo a qual “a região de ‘Cima da Serra’ se localizava no fim

do mundo, era coberta de campos e pinheiros e habitada por alguns maus elementos”27. A

maior parte das observações de Beschoren sobre a região e seus habitantes tem esse sentido e,

22 CASTRO, Evaristo de Afonso. Notícia descritiva da região serrana na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul compreendendo os municípios de Cruz Alta, São Martinho, Palmeira, Passo Fundo, Santo Ângelo, São Luiz, Boqueirão, São Borja, São Francisco de Assis, São Vicente e Itaqui. Cruz Alta: Tipografia do Comercial, 1887. 23 SILVEIRA, Hemetério José Velloso da. As missões orientais e seus antigos domínios. Porto Alegre: Companhia União de Seguros Gerais, 1979. 24 Maximiliano Beschoren. Idem, op. cit., p. 21. 25 Idem, ibidem. 26 Idem, p. 27. 27 Idem, p. 29.

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a todo momento, ele sugere a necessidade de alterar tal quadro. Do seu ponto de vista, esta

alteração só seria possível a partir do desenvolvimento da colonização e povoamento daquele

território com imigrantes europeus, principalmente germânicos. Além disso, sugere a

necessidade de “aperfeiçoar” os habitantes da região, principalmente incentivando-os a adotar

novas técnicas de produção agrícola. Neste sentido, quando passava por Nonoai, que à época

era um distrito de Passo Fundo, escreveu que a Vila era cercada por “campos fecundos” e

“estava destinada a um futuro promissor”, mas, para tanto ainda faltava a presença de “uma

população hábil e trabalhadora”28, leia-se, imigrantes.

No livro de Afonso Castro, também é possível encontrar descrições da população

típica que habitava a região. No prefácio, escrito por Francisco de Assis Pereira Noronha, por

exemplo, o prefaciador se refere a tal população como conformando uma raça específica: a

raça missioneira. Os missioneiros, segundo Noronha, com exceção de algumas poucas

famílias de origem germânica que “conservavam a pureza do sangue”, eram produto das

mistura das raças brancas, indígena e africana. Assim, era possível encontrar na região desde

o “mais fino espécime do tipo branco até ao negro azeviche, percorrendo de um a outro

extremo a escala possível de todas as nuanças da coloração humana”29. Devido a abundância

de riquezas naturais oferecidas pela região, o povo missioneiro, de acordo com Noronha, era

“indolente e extraordinariamente preguiçoso”. Além disso, “para os trabalhos agrícolas eram

absolutamente inservíveis” e passavam a maior parte do ano “comendo milho assado ou

cozido que pedem ou roubam dos 20 por centro que trabalham; da caça e do gado que roubam

do estancieiro que os avizinha”30.

Em linhas gerais, o ponto de vista sobre o povo missioneiro expresso por Noronha é

muito comum nos documentos que descrevem a região. Na verdade, ele expressa a opinião de

uma parte das pessoas envolvidas no povoamento, as quais presenciaram o desenvolvimento

do mesmo e atuaram nele, especialmente como seus incentivadores e gerenciadores. Assim, o

ponto recorrente nestas fontes é a insistência de seus autores em definir a região como

desabitada ou, quando muito, ocupada por pessoas que não sabiam fazer a terra produzir de

forma apropriada:

percorrendo a região, ou seja nos campos, ou seja nas matas, o viajante vê, aqui e ali, uma pequena cabana, às vezes mal coberta, toda esburacada. Encostado a cabana, um fecho com meia dúzia de varas, tanto quanto seja

28 Idem, p. 45. 29 NORONHA, Francisco de Assis Pereira. Juízo dado pelo Ilmo. Sr. Dr. Francisco de Assis Pereira Noronha sobre o presente livro, p. IX. In.: Evaristo de Afonso Castro. Idem, op. cit., p. I-XXVII. 30 Idem, ibidem.

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suficiente para recolher o cavalo; fecho a que dão o pomposo nome de mangueira. Além disto nada mais. Não existe a mais pequena plantação de um único vegetal útil. Tudo em roda é monótono e deserto31.

O autor do comentário escreve que ele é resultado de observações pessoais realizadas

na região, cujo território percorreu na função de médico ao longo de seus 28 anos de

domicílio ali. No mesmo sentido, Maximiliano Beschoren, ao descrever uma viagem que fez

de Passo Fundo a Nonoai em 1875, escreve: “numa paisagem uniforme e deserta, podíamos

ver a cada duas a três léguas uma casa cercada por pequena floresta, variando a monotonia”32.

Noutro momento, Beschoren escreve o seguinte comentário sobre a região: “este território,

abrangendo centenas de milhas quadradas, é na sua maior parte, ainda terra selvagem, coberta

de mato, de mata-virgem, um chão ainda não tocado pelo homem civilizado”33.

Outra narrativa semelhante é apresentada pelo padre capuchinho Bruno de Gillonnay,

mas para uma região diferente, a área de colonização italiana que, embora fosse alvo de

grandes correntes imigratórias desde 1875, ainda era apresentada, no início do século XX, nas

viagens feitas pelo sacerdote de uma paróquia a outra, principalmente quando se deslocava

em direção ao município de Lagoa Vermelha ou entrava em Passo Fundo, da seguinte forma:

“viaja-se horas a fio sem encontrar uma só fazenda”34. O padre Bruno era um capuchinho

francês que juntamente com o padre Bernardin D’ Apremont vieram ao Rio Grande do Sul no

início do século XX para atuar nas regiões de colonização italiana e pregaram algumas

missões no território aqui analisado, onde atuaram sobretudo entre as populações indígenas.

Baseados nessas constatações e partilhando do ponto de vista dos autores das fontes,

ou melhor, em tópicos previamente selecionados das mesmas que apresentam a região como

um deserto, alguns intelectuais, preocupados em contar a história do povoamento do Rio

Grande do Sul e sem levar em consideração outros elementos presentes nas descrições,

passam a defender a idéia do pioneirismo do colono imigrante. Assim, a tarefa de povoamento

é contada como se fosse obra unicamente do esforço dos imigrantes europeus, tratados como

civilizadores, moralizados e trabalhadores. Tais histórias “esquecem” de contar a participação

dos outros grupos sociais no processo de povoamento ou, quando os grupos não-europeus são

mencionados, sua atuação é diminuída, como acontece no caso das obras de Jorge Salis

31 Idem. 32 Maximiliano Beschoren. Idem, op. cit., p. 41. 33 Idem, p. 192. 34 D’APREMONT, Bernardin; GILLONAY, Bruno de. Comunidades indígenas, brasileiras, polonesas e italianas no Rio Grande do Sul (1896-1915). Porto Alegre: EST, Caxias do Sul: UCS, 1976, p. 66.

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Goulart35, Leo Waibel36 e Jean Roche37, para citar alguns. Esse tipo de explicação, segundo

Paulo Zarth, observa o povoamento sem levar em conta e dar a devida importância à fronteira

agrária, pois

atribuir o sucesso da empresa agrícola na região exclusivamente à obra dos colonos imigrantes [perspectiva que tomam os autores citados acima] é incorrer num erro capaz de mascarar o processo de ocupação e apropriação das terras na fronteira agrícola. Não se trata apenas de uma questão ideológica com objetivos enaltecedores do trabalho desta ou daquela etnia em detrimento de outra, mas sim de analisar a questão da fronteira sob outro prisma que não seja excludente e nem apoiado na análise étnica ou numa expansão pura e simples da pressão demográfica de áreas mais antigas de colonização no Rio Grande, que, nesse sentido e nessa forma de analisar, estariam fadadas a emigrar para novas áreas. Isso é uma explicação cujo centro está fora da fronteira38.

Como ficou visível até aqui, tanto na época como hoje em dia, as pessoas que

habitavam e habitam a região sob análise têm uma maneira particular de denominá-la. Assim,

os espaços onde vestígios da presença jesuítica ainda são fortes (as ruínas da redução de São

Miguel das Missões, por exemplo) normalmente são identificados como solo missioneiro. Da

mesma forma, a utilização de temos como região serrana ou cima da serra para identificar

aquele espaço são comuns. Nestes termos, a preocupação central aqui é analisar o processo de

povoamento das terras que no início do século XX eram, em termos administrativos, ocupadas

por quatro municípios: Cruz Alta, Passo Fundo, Santo Ângelo e Palmeira das Missões. Tais

municípios situam-se, em termos físico-geográficos, no Planalto do Rio Grande do Sul. Por

seu turno, o espaço territorial abrangido pelo Planalto é tradicionalmente denominado como

região das matas, serrana, missioneira ou ainda região de cima da serra. Portanto, este estudo

trata do povoamento dessa região e, assim, sempre que os termos “região serrana”, “cima da

serra” ou “região de matas” for utilizado no contexto desta análise estará fazendo referência

ao território desses quatro municípios, embora a abrangência territorial de tais nominações

seja maior.

Para uma idéia mais pormenorizada de como estavam configurados os municípios na

época, de acordo com dados de Evaristo de Afonso Castro, em 1887, Cruz Alta era habitada

por “população de origem latina, onde a presença germânica não exercia influência” e possuía

35 GOULART, Jorge Salis. A formação do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro; Caxias do Sul: EDUCS, 1985. 36 WAIBEL, Leo. Capítulos de geografia tropical e do Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 1979. 37 ROCHE, Jean. A colonização alemã no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Globo, vols. I e II, 1969. 38 Paulo Zarth. História agrária do planalto gaúcho. Idem, op. cit., p. 99-100.

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cerca de 50 a 60 escravos39. A cidade propriamente dita contava com o total de 240 casas e

uma população de 2.500 pessoas, sendo que das casas, 24 eram comerciais, 2 farmácias, 3

sapatarias, 2 alfaiatarias, 3 ferrarias, 3 ourivesarias, 2 relojoarias, 2 marcenarias, 2 selarias, 1

retratista, 1 funilaria, 3 carpintarias, 4 hotéis, 2 padarias, 2 curtumes, 3 açougues, 1 fábrica de

cerveja e uma fábrica de sabão. Ou seja, era uma cidade, para a época e para sua localização,

dona de uma infra-estrutura regular, caracterizada pela ligação com o mundo rural, visto que

toda essa infra-estrutura vinculava-se à produção local de gêneros agrícolas e pastoris40. Em

linhas gerais, segundo os relatos da época, era um município que se auto-sustentava e só

buscava fora da região gêneros ali não produzidos, pois os principais produtos de exportação

consistiam em gado, couros, melado, aguardente, erva-mate, rapadura, farinha de mandioca,

feijão, milho e fumo. Importava-se “fazendas [tecidos], armas, papel, farinha de trigo, louça,

ferro, zinco, drogas, quinquilharias e miudezas da capital da província e praças da fronteira”41.

Em Passo Fundo, as pessoas só tinham em vista “o consumo dos produtos no

município. Fora disso, a maior parte do povo dedica-se por meses à fabricação de erva-mate,

cuja indústria extrativa é presentemente o ramo mais importante da nossa exportação”42. O

número de habitantes do centro urbano girava em torno de 2.000 pessoas. Da mesma forma

que em Cruz Alta, a presença germânica, segundo as anotações de Afonso Castro, é nula. Por

sua vez, Maximiliano Beschoren registra em sua passagem por Passo Fundo que 1/3 da

população era composta por “famílias alemãs e outro terço de famílias brasileiras de origem

alemã”43. Em 1883, o centro urbano contava com o total de 200 lareiras, possuía 19 casas de

comércio, 1 curtidor, 2 seleiros, 4 sapateiros, 3 ferrarias, 3 açougueiros, 7 marceneiros e

carpinteiros, 3 pedreiros, 1 funileiro, 1 relojoeiro, 1 fabricante de cerveja e 2 hospedarias44.

Sobre Passo Fundo, Hemetério Velloso escreve que a fama da fertilidade das suas terras e a

abundância da erva-mate foram fatores que atraíram grande quantidade de homens pobres

para o município45.

39 Evaristo de Afonso Castro. Idem, op. cit., p. 220. 40 Em sua descrição, escrita em 1909, portanto, 22 anos após o registro de Afonso Castro, José Velloso da Silveira anota que em Cruz Alta existiam “802 casas térreas, 3 sobrados, o edifício da intendência com a cadeia ao lado, e quartel da polícia, a igreja matriz, o teatro Carlos Gomes, a loja maçônica Cruz-altense, dois chafarizes e um cemitério extra-muros”. Cf.: Hemetério Velloso da Silveira. Idem, op. cit., p. 269. 41 Evaristo de Afonso Castro. Idem, op. cit., p. 281-282. 42 Idem, p. 137. 43 Maximiliano Beschoren. Idem, op. cit., p. 34-35. 44 Idem, ibidem. 45 Hemetério Velloso registra que em 1909 a cidade de Passo Fundo possuía “26 casas comerciais, algumas com um ativo maior de cem contos de réis, 2 padarias, 2 hotéis, 3 farmácias, 3 médicos, 2 ferrarias, 2 ourivesarias, 4 carpintarias, 2 marcenarias, 2 curtumes, 3 olarias, 4 sapatarias, 1 fábrica de massas, 3 alfaiatarias, 2 seleiros e lombilheiros, 4 advogados, os juízes de comarca e distrital, escrivões e mais pessoal do foro”. Cf.: Hemetério Velloso da Silveira. Idem, op. cit., p. 303-304.

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Evaristo de Afonso Castro caracteriza Palmeira das Missões como um município

habitado por “grande número de aventureiros de diversas províncias, sendo na maior parte

proveniente de São Paulo (...) vindos uns por pobreza, outros foragidos por crimes cometidos

em suas províncias e outros desertores”46. O principal gênero produzido era a erva-mate, e a

sede do povoado contabilizava, em 1887, o total de 80 fogos (casas), com uma população de

600 almas, onde 9 casas destinavam-se ao comércio, 2 eram ferrarias e havia também 1

lombilheiro47. José Velloso da Silveira, ao tratar do município de Palmeira, escreve que ele

formava uma vasta extensão de terras, as quais

na Europa, poderia formar um pequeno estado independente com população maior de três milhões de habitantes, conterá entretanto, 30.000 almas, não podendo ser perfeito qualquer recenseamento oficial, por causa dos verdadeiros esconderijos, onde por dentro dos bosques vive muita gente pobre e ignorada48.

Acerca da origem de alguns habitantes da região serrana, Maximiliano Beschoren

constantemente destaca a presença de pessoas provindas de outros estados do país,

principalmente de São Paulo e Paraná. Segundo Beschoren, o rio-grandense típico não

gostava de praticar agricultura, preferia se dedicar a criação de gado e a produção de erva-

mate. No caso dos paulistas e paranaenses que habitavam a região os registros de Beschoren

são bastante interessantes, pois, em alguns momentos, os define como pessoas que dão “muito

valor ao cultivo do solo”49. Por exemplo, quando andava pelo território do município de Passo

Fundo, mais precisamente na Vila de Campo Novo, escreve que a população que ali vivia era

“bem pobre”. Anota que a erva-mate era a sua principal fonte de renda e que as pessoas se

dedicavam somente ao trabalho com a erva “durante o ano todo não observando os períodos

de colheita”50. Para o engenheiro alemão, tais pessoas não tinham consciência de que era

necessário cultivar a “floresta ervateira, dispensando-lhe todo cuidado. Não se davam conta

de que mesmo não sendo os donos da terra, vivem da produção que lhes dá tanto lucro,

extraída do terreno que pertence ‘a todos nós’”51. Aqui é importante pontuar o modo como se

dá construção da diferença, uma vez que o “nós” de Beschoren não engloba a “população

ervateira”. Ainda escreve que em Campo Novo a atividade agrícola era bastante descuidada a

46 Evaristo de Afonso Castro. Idem, op. cit., p. 103. 47 Indivíduo encarregado pelo conserto ou fabricação da sela: espécie de assento colocado no dorso da cavalgadura, para comodidade do cavaleiro. 48 Hemetério Velloso da Silveira. Idem, op. cit., p. 323. 49 Maximiliano Beschoren. Idem, op. cit., p. 28. 50 Idem, p. 62. 51 Idem, ibidem.

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não ser por um pequeno número de “imigrantes do Paraná e São Paulo que tem interesse pela

conservação do solo”52.

O registro dessa diferenciação entre parananenses, paulistas e rio-grandenses realizada

por Beschoren e pelos outros autores foi realizado aqui para chamar atenção a uma

ambigüidade presente nas descrições. Nesse sentido, se em alguns momentos os paulistas e

paranaenses são apresentados como mais aptos e dedicados à agricultura do que o rio-

grandense típico, noutros as pessoas provindas de outros territórios são tratadas como simples

fugitivas da Justiça. Fato que fica evidente, por exemplo, quando Evaristo de Afonso Castro

escreve que a população residente em Palmeira das Missões, na sua maioria, era formada por

“aventureiros provindos de diversas provinciais” ou, no mesmo sentido, quando ao tratar de

Soledade – município vizinho de Passo Fundo e Cruz Alta – escreve que “seus primeiros

habitantes, segundo a tradição, foram criminosos que nele se homiziaram vindos de São Paulo

e Paraná, perseguidos pela justiça”53. Ou seja, o fato de, em alguns momentos, serem

apresentados como melhores agricultores do que o rio-grandense e sua característica

predileção pelo trabalho com o gado e extração de erva-mate não isentava paulistas e

paranaenses de serem taxados como criminosos e, dessa forma, para a região realmente se

desenvolver, aos olhos daqueles que escreviam sobre ela, não restava outra solução do que

colonizá-la com imigrantes europeus.

As narrativas sobre a cidade de Santo Ângelo são bastante interessantes, pois

demonstram a existência de uma divisão social na distribuição das casas, pela qual no interior

da Vila, habitada por mais ou menos 600 pessoas, “não se vê um casebre”, isto porque,

segundo Afonso Castro, a população pobre morava toda nos “arrebaldes em chácaras e em

terrenos distribuídos, em sua maioria, gratuitamente, pela câmara municipal (...) de forma que

ficou o povo situado no centro do círculo de chácaras, na pitoresca colina”54. No mesmo

sentido, Beschoren e José Velloso sublinham a beleza da cidade. O agrimensor alemão, por

exemplo, descreve-a como pequena e dona de “muitas ruas indicadas por casas isoladas.

Somente a praça principal está completamente cercada pelas casas, constituídas por elegantes

construções, maciças e com bonita aparência”55.

Augusto Pestana, engenheiro responsável pela Comissão Verificadora de posses e de

discriminação de terras públicas em Cruz Alta, Santo Ângelo, Palmeira e Passo Fundo, em

52 Idem. 53 Evaristo de Afonso Castro. Idem, op. cit., p. 175. 54 Idem, p. 206. 55 Maximiliano Beschoren. Idem, op. cit., p. 72.

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relatório enviado à Diretoria de Obras Públicas em 1899, fornece as seguintes informações

sobre a região:

São incalculáveis as áreas de matos devolutos nos municípios de Passo Fundo, Palmeira e Santo Ângelo. No de Cruz Alta, não há tanto mato devoluto já por não ser tão grande a extensão dos seus matos, já por haver maior número de posses legitimadas, porém mesmo assim penso haver mais de 20 léguas quadradas [72.000 hectares] de matos do Estado. (...). Além disso, há grande número de posses cujas legitimações estão requeridas e que só poderão ser despachadas depois de feitas as verificações que determinam a lei e o regulamento em vigor. Como sabeis ultimamente tem-se desenvolvido de um modo espantoso o negócio de terras nesta ubérrima região. Tem havido muitas compras e vendas de terras, dizendo todos pretenderem colonizar as terras que adquirem. Tem-se fundado 3 ou 4 colônias particulares. As terras de cultura têm aumentado de valor de modo espantoso. Tem-se vendido colônias de 25 hectares a razão de 2, 3, e até 4 réis por metro quadrado. Tem-se medido grandes áreas de matos e dividido em colônias que já têm sido vendidas. Esses matos em geral têm pertencido a diversas pessoas. Se não se tratar já de verificar o direito de propriedade dos que se dizem donos dessas terras e as têm vendido, mais tarde será esse serviço cheio de dificuldades, tornando-se assim muitíssimo moroso e complicado56. (grifo meu).

A descrição de Augusto Pestana é demonstrativa de como a área era classificada na

época e faz ver as mudanças que estavam acontecendo devido ao desenvolvimento dos

projetos de colonização. Além do aumento do valor comercial das terras, mostra a existência

de uma disputa para definir com quem ficaria o controle do processo, uma vez que o sentido

de sua presença e de sua atuação é exatamente garantir que ele ficasse com o Estado. No

relatório do ano seguinte (1900), volta a tratar da questão e escreve que havia realizado “o

recenseamento completo dos moradores de tais matos, tomando as indicações necessárias para

poder-se mais tarde julgar do direito dos mesmos posseiros”57. Medida que, como veremos no

quarto capítulo, era uma das principais tomadas quando da constituição de novas colônias.

Outra característica da região, em termos populacionais, é a forte presença de grupos

indígenas. Segundo Evaristo de Afonso Castro, a população silvícola, vivendo no espaço em

1887, contabilizava o total de 909 almas espalhadas pelos aldeamentos de Nonoai, onde

56 PESTANA, Augusto. Comissão Verificadora de poses e de discriminação de terras públicas em Cruz Alta, Santo Ângelo, Palmeira e Passo Fundo, p. 248. In.: PAROBÉ, João José Pereira. Relatório dos negócios de Obras Públicas apresentado ao Exm. Sr. Desembargador Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 31 de julho de 1899. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1899, p. 247-249. (AHRS - OP. 07). 57 PESTANA, Augusto. Comissão verificadora de posses e discriminação de terras públicas, p. 189. In.: PAROBÉ, João José Pereira. Relatório dos negócios de Obras Públicas apresentado ao Exm. Sr. Desembargador Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 31 de julho de 1900. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1900, p. 189-191. (AHRS - OP. 08).

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viviam 226 índios distribuídos em 56 casas; de Pinheiro Ralo, com população de 217 pessoas

vivendo em 47 casas. Estes dois aldeamentos situavam-se no município de Passo Fundo. Em

Palmeira das Missões existiam outros três: Estiva (composto por 126 índios e índias),

Campina (com 159 almas distribuídas em 32 fogos) e, por fim, Inhacorá (aldeamento que

contava com 181 indivíduos morando em 41 casas). O já citado padre capuchinho Bruno

Gillonay, em missão que realizou entre os indígenas moradores das matas da região, descreve

seu encontro com eles da seguinte forma: “uma emoção profunda nos invadiu quando, no seio

da floresta descobrimos uma série de palhoças, onde se abriga uma parte da espécie humana,

mais ou menos no estado como os havia encontrado Cabral”58.

Beschoren apresenta o aldeamento de Nonoai como composto de uma série de cabanas

espalhadas numa área considerável. Tais cabanas eram, segundo o engenheiro, “as mais

miseráveis que poderiam existir (...) não há utensílios domésticos, a não ser algumas esteiras e

cestos trançados de taquara, servindo como guarda comida”59. Hemetério Velloso, ao longo

de sua descrição, apresenta as populações indígenas como “indolentes por natureza e com

tendência para o roubo e o homicídio”60. Mostra como, principalmente em Santo Ângelo, à

medida que a população “branca” ia se estabelecendo, os índios cediam seus territórios a

estes. Apresenta os índios como dados a embriaguez e, por fim, conclui sobre a necessidade

do governo do Estado “a quem não faltam meios, lançar suas paternais vistas sobre esses

aborígines e, com poucas medidas, tirá-los desse deplorável embrutecimento e trazê-los para a

vida social”61. Tais considerações evidenciam de forma clara o ponto de vista preconceituoso

preponderante na época a respeito dos habitantes tradicionais da região. Assim, elas devem

ser compreendidas em sua significação concreta, uma vez que sua intenção é produzir a

diferença. Em outros termos, seu objetivo é justificar o lugar social e a situação vivida por tais

indivíduos, bem como o processo de povoamento que vinha se desenvolvendo a partir do

favorecimento de alguns grupos em detrimento de outros.

No mapa que segue abaixo, visualiza-se a localização dos toldos indígenas do Rio

Grande do Sul no período. Ele foi retirado do relatório da DTC de 1910, no qual encontram-se

dados mais precisos sobre a presença de índios na região. No relatório, consta uma narrativa

escrita por Carlos Torres Gonçalves62, então chefe da Diretoria, tratando especificamente

58 Bernardin D’Apremont. Idem, op. cit., p. 70. 59 Maximiliano Beschoren. Idem, op. cit., p. 43-44. 60 Hemetério Velloso da Silveira. Idem, op. cit., p. 18. 61 Idem, p. 350. Uma análise crítica sobre o modo como as populações da região são apresentadas nas descrições será realizada no capítulo 3 deste estudo. 62 No capítulo 4, abordarei mais profundamente temas relativos à atuação e importância de Carlos Torres Gonçalves no contexto do Governo do Estado e no processo de povoamento da região.

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sobre a situação dos indígenas no Rio Grande do Sul. Ela é escrita a partir de observações

feitas in loco realizadas pelo próprio Torres Gonçalves e traz informações gerais a respeito

dos usos e costumes dos índios, número e localização dos toldos, etnia a que as populações

pertenciam, etc. De acordo com os dados colhidos pelo diretor da DTC, o número de índios

vivendo no estado girava em torno de 2.940 pessoas, distribuídas em 12 toldos situados nos

municípios de Palmeira, Passo Fundo e Lagoa Vermelha63.

FIGURA 5:

TOLDOS INDÍGENAS DO RIO GRANDE DO SUL ENTRE 1889-1925

FONTE: GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, 1910, anexos.

Outra população presente na região, mas de quem as informações são mais raras, é

composta de afros-descendentes. Evaristo de Afonso Castro registra que o número de

escravos vivendo em toda a região que abrangia o antigo território dos Sete Povos das

Missões em 1887 – um espaço bem maior do que o tratado aqui – contabilizava o total de 15 a

20.000 indivíduos64. Após 1888, com a abolição da escravatura, grande parte dessas pessoas,

63 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 155. In.: GODOY, Candido José de. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo secretário de Estado Candido José de Godoy, em 10 de setembro de 1910. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1910, p. 93-157. (AHRS - OP. 24). 64 É preciso questionar os números apresentados por Evaristo de Afonso Castro, pois no Rio Grande do Sul, especialmente no período em análise, há uma tendência em diminuir a presença negra em função de uma suposta democracia racial. Enfim, os números apresentados por Castro podem não ser corretos, no entanto, servem apenas para demonstrar que havia uma quantidade considerável de negros vivendo na região serrana.

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como veremos adiante, encontra na região de matas um refúgio e passa a viver nesse espaço

praticando uma agricultura de subsistência e trabalhando na produção de erva-mate65.

Ainda quanto a população que habitava a região serrana, o desenvolvimento do

processo de fundação de colônias públicas e particulares a partir de 1890 trouxe como

resultado um expressivo aumento populacional, cuja conseqüência mais significativa foi

diminuir o espaço territorial disponível para acomodar tal população. Logo, os conflitos, tanto

os relacionados à disputa pela terra como os vinculados ao encontro de grupos social e

etnicamente diferenciados, também aumentam. Nas colônias, como é o caso de Ijuí, a prática

do Estado de fundar núcleos etnicamente heterogêneos colocava em contato populações que

em suas regiões de origem na Europa eram “inimigas”. Antoni Cuber, padre polonês

originário da Silésia e primeiro vigário da Colônia Ijuí, em suas memórias descreve-a como

Babel do Novo Mundo e, entre outras coisas, relata as dificuldades de convivência entre os

diferentes grupos étnicos que lá viviam.

Um fato representativo dessa circunstância acontece em 1917 numa comemoração do

7 de setembro na Colônia Ijuí, quando “um brasileiro” presente no evento, tomando a palavra

e se referindo à invasão alemã da Polônia, disse: “‘se ainda existem verdadeiros filhos da

Polônia, mais cedo ou mais tarde irão retomar o que lhes pertence’. Os alemães que se

encontravam presentes baixavam as cabeças, enquanto os brasileiros e os italianos batiam

palmas”66. No mesmo sentido, corroborando com a constatação de Cuber, Hemetério Velloso

registra que a colônia Ijuí, em 1909, tinha uma população de 8.000 indivíduos, dos quais mais

da metade “eram nacionais, 1.600 polacos, outros tantos teutos (prussianos e austríacos), 600

italianos, 54 suecos, 40 espanhóis, 36 orientais e argentinos, os demais são norte-americanos,

franceses, belgas, sírios, etc...”67, enfim, a analogia bíblica de Cuber tinha um sentido social

profundo68.

65 Sobre a presença de negros e escravidão no Rio Grande do Sul, ver: CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; MAESTRI, Mário. O escravo no Rio Grande do Sul: trabalho, resistência e sociedade. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2006; BAKOS, Margaret Marchiori. RS: escravidão e abolição. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. Sobre a presença de escravos e a sua atuação no Norte do estado, ver: os já citados estudos de Paulo Afonso Zarth e, igualmente, DARONCO, Leandro Jorge. À sombra da cruz: trabalho e resistência servil no noroeste do Rio Grande do Sul – segundo os processo criminais (1840-1888). Passo Fundo: UPF, 2006. Verificar também o livro recentemente publicado da historiadora Regina Xavier, no qual a autora faz um levantamento geral a respeito da produção historiográfica sobre os temas relacionados à escravidão no Rio Grande do Sul: XAVIER, Regina Célia Lima. História da escravidão e da liberdade no Brasil Meridional: guia bibliográfico. Porto Alegre: UFRGS, 2007. 66 CUBER, Antoni. Nas margens do Uruguai. Ijuí: UNIJUI, 2002, p. 27. 67 Hemetério Velloso da Silveira. Idem, op. cit., p. 282-283. 68 O próprio Antoni Cuber dá um exemplo da diversidade étnica presente na Colônia Ijuí: “segundo as estatísticas oficiais, aqui se encontram as seguintes nacionalidades: 500 polonesas, 30 lituanas, 20 rutenas, 10 tchecas, 200 alemãs, 100 austríacas, 100 italianas, 50 suecas e várias finlandesas. Além dessas, aqui moram

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É avultado o número de imigrantes que entraram no Rio Grande do Sul no período que

se estende entre os anos de 1889 a 1925. A grande maioria dos recém chegados dirigia-se para

a região florestal e, além deles, também havia o grande número dos descendentes de colonos

oriundos das colônias velhas, os quais também se encaminhavam para cima da serra em

busca de novas terras. Conseqüentemente, o aumento populacional nessa região foi tão

intensivo que, entre os anos de 1872 e 1920, o número de habitantes que lá viviam cresceu

mais de 8 vezes o seu montante inicial passando de 34.822 habitantes para 284.777. No

mesmo período, a população do Rio Grande do Sul, que era de 446.962 pessoas em 1872,

passou para 2.182.713 em 1920, ou seja, cresceu 4 vezes seu número inicial. O Brasil, por seu

turno, registrou um crescimento populacional de 3 vezes a sua quantidade inicial: de

10.112.061 habitantes em 1872, passou para 30.635.605 em 192069.

Tais números são representativos do quanto o processo de chegada de pessoas à região

foi intensa. Para uma idéia geral do que estavam vivendo os indivíduos que eram

contemporâneos dessas situações, de 1889 a 1915, segundo dados de Jean Roche, entraram no

estado mais de 115 mil imigrantes, dos quais a maioria foi se estabelecer em terras da região

serrana. Este número, somado ao montante de imigrantes que haviam entrado anteriormente

no estado, levam Roche a definir a imigração como um enxerto vigoroso70. Dessa forma, a

constatação realizada pelo padre Antoni Cuber é mais abrangente, uma vez que não só a

Coloni Ijuí pode ser definida como uma Babel do novo mundo, mas a região como um todo.

Quanto a chegada de imigrantes no estado, ela foi maior entre os anos de 1908 e 1914.

Tal fenômeno deve-se ao fato de que, nesse período, estava em vigor um convênio entre o Rio

Grande do Sul e a Federação para o estabelecimento de imigrantes no território rio-grandense.

A partir de 1915, não só a entrada de imigrantes despenca como nos relatórios da DTC

começam a constar registros de pessoas saindo do Rio Grande e indo para outros estados em

busca de terras para ocupar: “mais ou menos cedo, a semelhança de outros países, o Rio

Grande se terá transformado em viveiro de colonos, não só para os Estados de Santa Catarina

portugueses, brasileiros e seus descendentes, espanhóis, franceses, árabes, gregos, mulatos e bugres. Surgiu por aqui também um representante de Israel, mas como não estivesse disposto a trabalhar duramente, atirou fora o machado deixando suas plantações de milho aos cristãos”. Antoni Cuber. Idem, op. cit., p. 28. 69 Estes números são retirados das seguintes fontes: FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA. De Província de São Pedro ao Estado do Rio Grande do Sul, 1803-1950. Porto Alegre: 1981; JARDIM, Maria de Lourdes Teixeira; BANDEIRA, Marilene Dias. Um século de população do Rio Grande do Sul (1900-2000). Porto Alegre: Fundação de Economia Estatística Siegfried Emanuel Heuser, 2001 e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatísticas do século XX. In.: http://www.ibge.gov.br/seculoxx Informações coletadas nos dia 31/01/2007, às 17 horas. 70 Jean Roche. Idem, op. cit. p. 157-243.

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e Paraná, como ainda para Mato Grosso, a República do Paraguai, etc”71. Conseqüentemente,

em 1919, Borges de Medeiros, então Presidente do Estado, encaminha ofício ao Ministério da

Agricultura recusando a proposta de vinda de novos imigrantes ao Rio Grande do Sul e

justifica a recusa alegando que as terras devolutas existentes eram suficientes apenas para

garantir o estabelecimento da sua população colonial, bem como regularizar a situação de

“numerosos intrusos”72. Sobre essa grande progressão populacional na região, Hemetério

Velloso da Silveira escrevia em 1909:

desde que tão baixa é a mortalidade e os nascimentos se sucedem com freqüência, devido à fecundidade das mulheres, em regra sadias, a população cresceria independente das emigrações. Estas sempre se têm dado, quer do próprio Estado, quer dos Estados de São Paulo e Paraná, de onde os homens pobres vêm com freqüência procurar e conseguir melhorar de sorte e até mesmo enriquecer. Mas, como se isso não bastasse, a colonização estrangeira que até 1887 parecia impossível, começou a desenvolver-se de modo a contar atualmente 12 núcleos coloniais bem desenvolvidos e alguns reclamando com justiça a constituição de municípios autônomos73.

Acerca da saída de pessoas do Rio Grande do Sul para Santa Catarina e Paraná antes

pontuado, Carlos Torres Gonçalves, no relatório da DTC de 1918, escreve que sempre houve

movimento de colonos entre os três estados, mas nos últimos anos havia acontecido um

acréscimo considerável na transferência. Aumento que, segundo o diretor da DTC, devia-se a

dois motivos: o estabelecimento da linha férrea que ligava os três estados e o preço mais

barato das terras fora do Rio Grande do Sul. Para evitar o deslocamento de agricultores,

Torres Gonçalves sugeria como providência melhorar o serviço de colonização. Entretanto,

também argumentava que a mudança de pessoas que vinha acontecendo não era nada

alarmante, pois a procura por terras nas colônias novas do Rio Grande do Sul ainda era

bastante grande.

O diretor da DTC também sublinhava que havia um “regulador espontâneo” das

retiradas, pelo qual “o apego das melhores naturezas, portanto, dos melhores colonos, ao solo

onde se acham radicados” garantiria a tranqüilidade do processo. Assim, “num estado com as

condições naturais de progresso do Rio Grande, seria vão o receio da retirada de alguns

71 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 278. In.: PINTO, Ildefonso Soares. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Ildefonso Soares Pinto Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 13 de agosto de 1918. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1918. (AHRS - OP. 50). 72 MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Rio Grande do Sul pelo Presidente do Estado, Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 4ª sessão ordinária da 8ª legislatura, em 20 de setembro de 1920. (Documento datilografado do original, do Serviço de Pesquisa e Documentação Histórica do Museu da Assembléia – Rio Grande do Sul), p. 59. 73 Hemetério Velloso da Silveira. Idem, op. cit., p. 265.

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agricultores de seu território”74. No relatório de 1921, o diretor da DTC registra que “o

trabalho intenso de colonização promovido por Santa Catarina, longe de prejudicar-nos” 75,

estava concorrendo para melhorar os trabalhos de colonização no Rio Grande do Sul, visto

que diminuía a pressão por terras e resultava em maior tempo de trabalho para realizar “as

medidas preliminares a todo o serviço regular de criação e organização de novos núcleos na

promissora zona Norte do Estado”76. Em outras palavras, mesmo que o referido “regulador

espontâneo” não funcionasse, como evidentemente não funcionou, pois haviam questões mais

importantes regulando o deslocamento dos colonos do que o “apego ao solo” – a necessidade

de terra para garantir a sobrevivência77, por exemplo –, do ponto de vista do diretor da DTC, o

Rio Grande do Sul poderia tirar proveito da migração.

Um ponto importante que deve ser levado em conta para melhor compreender as

relações entre os estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná e as constantes

migrações das pessoas que viviam nas suas áreas de colonização é o fato de que os espaços

nos quais ocorriam os deslocamentos formavam frentes de expansão. Ademais, não só eram

zonas de fronteira agrária, como conformavam a fronteira físico-geográfica do Brasil em

relação aos países vizinhos: Paraguai e Argentina. Eram frentes de expansão78 na medida em

que, na época, formavam áreas pouco exploradas do ponto de vista da sociedade envolvente e

do mercado. Eram habitadas por uma população relativamente pequena, comparada à

extensão de seu território, principalmente nos primeiros anos do século XX, quando iniciou o

movimento de fundação de colônias. Os espaços em questão, da mesma forma, eram centros

de atração para populações vindas de outras regiões, sobretudo das áreas coloniais antigas, de

imigrantes vindos da Europa e também homens pobres que vinham de outros estados da

Federação em busca de melhores condições de vida, como registrou Hemetério Velloso.

A condição de fronteira com outros países das áreas de colonização dos três estados do

sul do Brasil também foi elemento importante para definir os rumos do seu povoamento.

Conforme evidenciei no início do capítulo, um dos argumentos muito utilizados pelos

pesquisadores que se preocuparam em pensar a colonização, a imigração e os seus motivos é

74 Carlos Torres Gonçalves, 1918. Idem, op. cit., p. 277-278. 75 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 527. In.: PINTO, Ildefonso Soares. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 16 de agosto de 1921. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1921, p. 369-537. (AHRS - OP. 60). 76 Idem, ibidem. 77 Sobre os motivos que estão na base da mobilidade dos colonos, consultar: SEYFERTH, Giralda. Concessão de terras, dívida colonial e mobilidade. In.: Estudos, Sociedade e Agricultura, v.7, 1996, p.29-58. 78 No próximo capítulo aprofundo as discussões sobre o conceito de frentes de expansão e sobre os autores que o utilizaram.

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o da necessidade de povoar espaços relativamente desocupados e que historicamente eram

alvos de disputas entre os países vizinhos da região do Prata. Torres Gonçalves, ao definir as

razões que levavam as pessoas a migrarem do Rio Grande do Sul para Santa Catarina, aponta

entre elas a existência de uma via férrea que ligava os estados do Sul e que tornava os

deslocamentos mais baratos e fáceis. Contudo, as causas da construção da via férrea, mais

precisamente do traçado que ela tomou, não são lembradas pelo diretor da DTC, pois entre

outros, um fator que foi decisivo na construção da ferrovia e dos lugares por onde ela passa

foi de ordem geopolítica.

Trata-se da disputa entre Brasil e Argentina de um território que historicamente estava

sob jurisdição brasileira, mas que a Argentina dizia pertencer-lhe. Este episódio é conhecido

como A questão de Palmas e refere-se a uma extensa área de terras situada no Estado de Santa

Catarina, que faz divisa com o Rio Grande do Sul (ver mapa abaixo) e que, devido à

existência desse litígio, foi alvo de grande atenção por parte de brasileiros e argentinos na

virada do século XIX para o XX79.

FIGURA 6:

A QUESTÃO DE PALMAS

FONTE: http://www.mre.gov.br. Material coletado às 11 horas do dia 03/07/2007.

79 Não realizarei uma descrição das vicissitudes vinculadas à disputa desse território, visto que fugiria muito do interesse desta pesquisa, apenas cito o caso para caracterizar a região estudada. Contudo, para conhecer mais detalhadamente a história da disputa e suas conseqüências históricas na relação entre Brasil e Argentina, bem como o modo como se desenvolveu o povoamento da região litigada, ver: HEINSFELD, Adelar. A questão de Palmas entre Brasil e Argentina e o início da colonização alemã no baixo vale do Rio do Peixe- SC. Joaçaba: UNOESC, 1996.

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Em 1895, depois de uma série de discussões e tratados assinados, os governos do

Brasil e Argentina – visto a impossibilidade de ambos se entenderem e os ânimos estarem se

acirrando a ponto de se cogitar a eclosão de um conflito armado – resolvem levar a questão ao

arbitramento do Presidente dos Estados Unidos, cujo julgamento da causa foi a favor do

Brasil. Tal circunstância gerou mais crise entre os dois países e, mediante isso, a necessidade

de povoar as terras litigadas e recém ganhas no arbitramento tornou-se questão de ordem para

o governo brasileiro. Daí o traçado dado à referida via férrea, pois além de buscar dar maior

facilidade para o povoamento da região disputada também tinha motivos militares e visava

agilizar o deslocamento de tropas brasileiras para lá, caso fosse necessário.

Em relação ao espaço aqui estudado, como é possível visualizar no mapa, a área em

litígio era sua vizinha direta e, certamente, não era interesse do governo rio-grandense

aumentar sua fronteira com a Argentina. Ademais, a existência de um litígio demonstra como

as regiões situadas ao norte do Estado do Rio Grande do Sul e ao sul de Santa Catarina –

geralmente caracterizadas como regiões florestais – eram espaços que estavam em disputa e

só se consolidaram geopoliticamente à medida que o seu povoamento se desenvolveu e no

momento em que o Estado passou a se fazer presente de forma mais direta nos mesmos.

Circunstância que, por sua vez, resultou em outros conflitos, vinculados principalmente à

questão fundiária, sendo o episódio mais representativo dessa constatação a Guerra do

Contestado, ocorrida em Santa Catarina na segunda década do século XX80.

Um outro exemplo demonstrativo do quanto a região serrana era um espaço em

disputa é fornecido por Hemetério Velloso em seu As missões orientais. Nessa obra, o autor

relata os interesses de alguns políticos que viviam na região, ainda no século XIX, em fazer

dela uma nova província. O novo território seria denominado Província do Alto Uruguai81 e,

segundo Velloso, a idéia de sua fundação datava de 1858 e era de autoria de Antônio Gomes

Pinheiro Machado. Inicialmente, devido às resistências que encontrava, a proposta foi

abandonada por seu criador que, na época, era deputado. No entanto, em 1884 ela é retomada

e são realizadas várias reuniões no município de Cruz Alta no sentido de colocá-la em prática

e os jornais regionais passam a defendê-la. Entretanto, de acordo com o autor, a proclamação

da República em 1889 e a subida de diversos políticos da região à frente do governo estadual,

80 Sobre a guerra do Contestado, consultar: MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado: a formação e a atuação das chefias caboclas (1912-1916). Campinas: Editora UNICAMP, 2004; AURAS, Marli. Guerra do contestado: organização da irmandade cabocla. Florianópolis: Editora UFSC, 2001 e MONTEIRO, Duglas Teixeira. Errantes do novo século: um estudo sobre o surto milenarista do Contestado. São Paulo: Duas Cidades, 1974. 81 Hemetério Velloso da Silveira. Idem, op. cit., p. 288.

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assim como a posterior construção da via férrea que corta aquele espaço levaram ao abandono

definitivo do projeto82.

Em linhas gerais, esses são alguns traços que caracterizam a região estudada: ela era

um espaço de fronteira agrária83 que, a partir de 1890, passou a ser alvo de intenso movimento

de colonização com imigrantes europeus. Fato que levou-a a ser caracterizada, por um seu

conterrâneo e contemporâneo, como Babel do novo mundo. Outra característica foi o

considerável aumento de valor que tiveram as suas terras. Situação que aguçou o interesse dos

então chamados capitalistas, que passaram a fazer investimentos diretos na região e atuar

como agentes colonizadores.

Todavia, também foram desenvolvidas uma série de políticas de Estado voltadas a

garantir um maior controle sobre o processo de apropriação fundiária, principalmente das

rendas que poderiam advir da comercialização de terras, madeiras e erva-mate. Uma das

peculiaridades que definiram a atuação do Estado e de alguns agentes colonizadores foi o seu

esforço no sentido de constituir um tipo ideal de habitante para região, o qual deveria portar

uma série de características e comportamentos que lhe garantiriam a condição de “civilizado”.

Dessa maneira, retomando a analogia de Antoni Cuber, se no caso da Babel narrada na Bíblia

uma força externa agiu no sentido de tornar os iguais diferentes, para que, no futuro, não

viessem a executar todos os empreendimentos possíveis e que tivessem vontade. No caso da

região serrana ocorreu algo parecido, mas em sentido contrário, uma vez que vários esforços

foram realizados na perspectiva de que seus habitantes, em futuro próximo, se tornassem

iguais, isto é, úteis socialmente. Mas este é um tema que será abordado nos próximos

capítulos.

82 Idem, p. 280-281. 83 Tratarei deste aspecto mais profundamente no próximo capítulo.

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FIGURA 7:

O RIO GRANDE DO SUL E AS PRINCIPAIS COLÔNIAS FUNDADAS ENTRE 1889 e 1925

Antigas colônias alemãs (Colônias Velhas): 1. São Leopoldo; 2. Novo Hamburgo; 3. Caí; 4. Montenegro; 5. Taquara; 6. Rolante; 7. Três Forquilhas; 8. Torres; 9. Gramado; 10. Nova Petrópolis; 11. Estrela; 12. Roca Sales; 13. Arroio do Meio; 14. Lajeado; 15. Venâncio Aires; 16. Santa Cruz; 17. Candelária; 18. Sobradinho; 19. São Lourenço; 20. São Feliciano; 21. Barão do Triunfo. Novas colônias: 22. Jaguari (1889); 23. Selbach (1906); 24. Não-Me-Toque (1897); 25. Carazinho; 26. Ijuí (1890); 27. New Wurttemberg (Panambi) (1899); 28. Cerro Azul (1902); 29. Santa Rosa (1915); 30. Três Passos; 31. Sarandi (1916); 32. Erechim (1908); 33. Getúlio Vargas; 34. Marcelino Ramos; 35. Sananduva. Antigas colônias italianas: 36. Caxias; 37. Garibaldi; 38. Bento Gonçalves; 39. Guaporé; 40. Nova Prata. FONTE: ROCHE, Jean. Idem, op., cit., vol.1, p. 08.

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2 E ELES AQUI VÃO: ESTADO, REPRESENTAÇÕES E POVOAMENTO

2.1 A REGIÃO SERRANA: UM ESPAÇO DE FRONTEIRA AGRÁRIA

Se se tentar estabelecer um balanço da marcha pioneira, nos planaltos ocidentais de São Paulo e do norte do Paraná ressaltará a obra destruidora dos pioneiros: destruição da mata e, com isso, destruição da terra. A mola propulsora da marcha para o oeste reside no tenaz desejo do ganho. Para satisfazê-lo, são necessárias abundantes colheitas de produtos que se exportam e se vendem no ultramar. Impôs a economia do mundo pioneiro uma técnica agrícola devastadora àqueles homens demais apressados. Repelia tal técnica esse respeito pela terra que é próprio do camponês.

Pierre Monbeig. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo.

No capítulo anterior, apresentei a região e descrevi como ela constituía-se em um

território habitado por pessoas provindas das mais diferentes origens, bem como o quanto tal

circunstância foi responsável por demarcar as peculiaridades daquele espaço em detrimento

de outros contextos, tanto do estado como do próprio país. Feito isso a tarefa agora é, até

aonde as fontes permitirem, conhecer mais profundamente alguns traços da sociabilidade

local, bem como alguns aspectos relacionados as representações existentes sobre as pessoas

e/ou grupos sociais que atuaram no povoamento. Assim, a partir da análise dos contatos, das

fronteiras relacionais e do fato de todos viverem em um território em disputa, procurarei

compreender e descrever algumas das relações que caracterizam esta sociabilidade específica.

Antes, um ponto que considero importante ser analisado é o da aplicação da idéia de

fronteira para definir a região sob análise. Tratar a região serrana como um espaço de

fronteira agrária significa pensá-la como um território ainda não completamente incorporado

nos quadros da sociedade nacional, ou melhor, como um lugar que estava passando por um

processo de incorporação, cuja principal característica, do ponto de vista econômico, era

torná-lo produtivo em termos agrícolas e, do militar, povoar um território que historicamente

era alvo de disputa. Além desses, também existiam motivos políticos definindo a necessidade

e o modo como aconteceu o povoamento da região, pois, entre outras coisas, com o passar dos

anos ela se tornou um dos principais celeiros de votos no estado. Também é importante

registrar, nesta perspectiva, que os principais personagens políticos do Rio Grande do Sul que

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estavam a frente do Estado durante a Primeira República, eram originários da região ou, de

alguma forma, estavam ligados a ela.

A idéia de fronteira já foi alvo de diferentes abordagens. A princípio ela foi bastante

utilizada, por volta da década de 1940, pela geografia agrária e, dentro dessa área do

conhecimento, tem como seus principais expoentes, mas não os únicos, pensadores como

Pierre Monbeig1, Leo Waibel2 e Orlando Valverde3. Tais autores pensaram às regiões de

fronteira agrária sustentados pela noção de frente pioneira. Em momentos diversos e

posteriores aos estudos “clássicos” da geografia agrária alguns outros intelectuais, ligados a

sociologia e a antropologia, desenvolveram críticas a idéia de frente pioneira e, em

substituição a essa categoria de análise, passaram a pensar as regiões de fronteira embasados

na idéia de frentes de expansão. Contudo, mesmo entre aqueles que adotam a frente de

expansão como ponto de referência para suas análises é possível encontrar divergências em

certos aspectos de suas considerações, como é o caso das abordagens diferenciadas sobre a

frente de expansão amazônica desenvolvidas por José de Souza Martins e Otávio Guilherme

Velho, por exemplo.

De todo modo, a principal diferença entre as duas noções – frente pioneira e frente de

expansão – é que, enquanto a primeira aborda as regiões de fronteira a partir da idéia do

progresso, de que esse progresso chega a tais regiões em um determinado momento e, em

alguns casos, a partir da atuação de um determinado personagem, geralmente o imigrante. A

segunda, por seu turno, dá maior atenção as pessoas que já viviam nos espaços de fronteira e

que, até então, não haviam recebido atenção analítica proporcional a sua importância. Dessa

forma, tal perspectiva de análise permite pensar mais detalhadamente o modo como se davam

os contatos entre aqueles que já viviam na fronteira com aqueles que, de um dado momento

em diante, passam a chegar a esse território.

No entanto, essa preocupação não está ausente nos estudos que tomam como ponto de

partida o pioneirismo, tanto é que Monbeig, por exemplo, assinala que as zonas pioneiras são

habitadas por “tipos sociais distintos que aparecem à medida que o movimento pioneiro

avança”, por conseguinte, “a originalidade do mundo pioneiro é assegurada pela coexistência

de todos esses tipos”4. Não obstante, mesmo sublinhando que a “sociedade pioneira” é

dinâmica e que é composta e habitada por diferentes tipos sociais, para Monbeig o pioneiro,

no pleno sentido da palavra, não é outro homem senão o responsável por levar o progresso a

1 MONBEIG, Pierre. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: HUCITEC, 1998. 2 WAIBEL, Leo. Capítulos de geografia tropical e do Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 1979. 3 VALVERDE, Orlando. Estudos de geografia agrária brasileira. Petrópolis: Vozes, 1985. 4 Pierre Monbeig. Idem, op. cit., p. 127

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“franja pioneira”. Em outros termos, os índios, ou aqueles grupos que inicialmente viviam na

região oeste do estado de São Paulo, os quais – reconhece Monbeig – contribuíram no avanço

pioneiro, são pioneiros apenas pelo fato de terem chegado primeiro a essa região. Logo, para

esse autor, são os fazendeiros do café e aqueles que os acompanhavam e compartilhavam de

seus interesses e projetos ou, ao fim e ao cabo, eram responsáveis pela sua execução os

verdadeiros Pioneiros. Neste sentido escreve: “quem abre a lista dos trabalhadores que

transformaram a grande floresta em campo cultivado não é o derrubador da mata e sim o

agrimensor”5, isto é, aquele que estabelece uma certa ordem ao dinamismo que caracteriza a

“sociedade pioneira”. Portanto, o verdadeiro pioneiro, para Monbeig, é o “homem que

prepara o caminho para o vasto movimento de que ele é parte integrante, ao contrário do

caboclo, desbravador que permanece à margem do mundo”6.

A interpretação desenvolvida por Leo Waibel não é muito diferente. Segundo ele, o

termo “fronteira” pode ter dois sentidos: um político que se refere as linhas nitidamente

demarcadas que separam países diferentes e também um sentido econômico, cujo conteúdo

foi desenvolvido nos Estados Unidos a partir dos estudos de F. Jackson Turner e diz respeito a

uma área “que se intercala entre a mata virgem e a região civilizada”, território que Waibel

denomina de “zona pioneira”7. No caso do Brasil, sublinha o geógrafo, existem territórios que

possuem uma paisagem que não pode ser definida “nem terra civilizada nem mata virgem, e

para o qual se tem a expressão muito feliz de ‘sertão’”8. O autor escreve que considerar

pioneira a população que habita o sertão ou o próprio sertão como uma zona pioneira é

atitude equivocada, visto que somente em alguns trechos da extensa área denominada sertão,

ao longo da história do Brasil, verdadeiramente ocorreram zonas pioneiras.

Para Waibel, o conceito de pioneiro “significa mais do que o conceito de

frontiersman, isto é, do indivíduo que vive numa fronteira espacial”, visto que o pioneiro

“procura não só expandir o povoamento espacialmente, mas também intensificá-lo e criar

novos e mais elevados padrões de vida”9. Assim, no campo da agricultura, nem o extrativista,

o caçador e o criador de gado podem ser considerados pioneiros, mas apenas aqueles que são

capazes de transformar “a mata virgem numa paisagem cultual e de alimentar um grande

número de pessoas numa área pequena”10 o são. Por seu turno, os grupos que, aos olhos de

Waibel, inicialmente poderiam suprir tais exigências – os imigrantes europeus – muitas vezes

5 Idem, p. 215. 6 Idem, p. 254. 7 Leo Waibel. Idem, op. cit., p. 281. 8 Idem, ibidem. 9 Idem, p. 281-282. 10 Idem, ibidem.

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acabavam não dando conta das expectativas e decaindo em seu nível de vida. Circunstância

que levou Waibel a defini-los como acaboclados. A caboclização, para o autor, era resultado

da prática agrícola adotada pelos colonos e dependia muito diretamente dos locais onde eram

fundadas as colônias:

no sul do Brasil (...) nem toda região povoada pelos colonos tem o caráter de zona pioneira. Estas só se desenvolvem onde um transporte barato permitia colocar os produtos excedentes em um mercado com capacidade para absorvê-los ou em um porto de exportação, e onde, além disso, havia bastante terra à disposição para receber grande número de colonos. Em todas as outras regiões, ou a colonização estagnava completamente, ou então fazia progressos espaciais e econômicos tão lentos que lhes faltava por completo o caráter dinâmico, próprio de uma frente pioneira11.

O ponto de vista adotado por autores como Monbeig e Waibel foram objeto de críticas

por parte de pesquisadores ligados a outras áreas das ciências sociais – a antropologia e a

sociologia, especialmente –, os quais conjuntamente com alguns historiadores passam a

pensar as áreas de fronteira agrária dando maior atenção as suas populações originais.

Ocupam lugar de destaque, nesse sentido, as pesquisas desenvolvidas por Darcy Ribeiro12,

Roberto Cardoso de Oliveira13, José de Souza Martins14 e Otávio Guilherme Velho15. Autores

que desenvolveram análises das situações de fronteira tomando como ponto de partida para

suas abordagens a própria fronteira, interpretando-a como uma frente de expansão. Para isso,

Roberto Cardoso de Oliveira, por exemplo, desenvolve a idéia de fricção interétnica e a partir

dela procura compreender os aspectos conflituosos e competitivos relacionados ao avanço da

sociedade nacional em direção aos territórios indígenas e os respectivos contatos entre os

índios e os brancos.

Ainda na área de antropologia, Otávio Guilherme Velho também desenvolve análise

importante que ilumina aspectos significativos referentes as sociedades de fronteira. Assim, as

frentes de expansão são observadas pelo autor a partir do ponto de vista do desenvolvimento

de um tipo especifico de capitalismo no Brasil que ele denomina “capitalismo autoritário”. É

dentro dos quadros do desenvolvimento desse sistema singular que Velho analisa o papel da

fronteira e de seus habitantes. Nesta perspectiva, a fronteira é apresentada como um local de

11 Idem, p. 293. 12 Cf.: RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno. Petrópolis: Vozes, 1977. 13 Cf.: OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O índio e o mundo dos brancos. Campinas: UNICAMP, 1996. 14 Cf.: MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: HUCITEC, 1997. 15 Cf.: VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo autoritário e campesinato: um estudo comparativo a partir da fronteira em movimento. São Paulo, Rio de Janeiro: DIFEL, 1976.

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“refúgio” daquelas populações que essa formação social não deu conta de enquadrar. Em

conseqüência, as frentes de expansão também são áreas de equilíbrio, cujo papel é ajudar no

controle dos possíveis conflitos que são característicos do desenvolvimento do capitalismo em

sua forma autoritária. No entanto, elas também são responsáveis pela perpetuação de tais

conflitos, uma vez que nas zonas de fronteira eles não desaparecem, mas assumem outras

formas ou, no mínimo, possibilitam o deslocamento de alguns problemas sociais que ocorrem

em espaços já incorporados a outros que ainda estão em fase de incorporação e, por isso, se

tornam objetos de menor atenção por parte da sociedade envolvente.

José de Souza Martins, numa tentativa de aproximar analiticamente as duas

abordagens – a da geografia agrária e a da antropologia – aborda as áreas de fronteira na

perspectiva dos diferentes tempos históricos que caracterizam tais regiões. Assim, existe o

tempo dos índios, o tempo do posseiro que, na maioria dos casos, é o primeiro a entrar em

contato com os grupos indígenas, o tempo do extrativista, o do grileiro, o do fazendeiro e,

atualmente, o tempo das grandes empresas multinacionais que se estabelecem nos territórios

da fronteira agrária amazônica. Sustentado pela constatação da existência desses diferentes

tempos sociais, cada qual característico de um grupo em específico, Martins propõe que o

movimento de expansão da sociedade nacional em direção as zonas de fronteira acontece de

duas formas que podem ser sucessivas ou concomitantes. Nesta perspectiva, segundo o autor,

é possível visualizar e diferenciar o movimento característico das frentes de expansão, que

tem como principal traço o avanço das populações pobres que saem de suas regiões

originárias em busca de novas terras para se estabelecer e praticar uma agricultura de

subsistência. Da mesma forma, também existem frentes pioneiras, as quais são responsáveis

por inserir as áreas de fronteira no mercado nacional e internacional, modernizando-as e

incorporando-as definitivamente16.

Assim, o avanço das frentes pioneiras pode ser responsável pelo o das frentes de

expansão e, desse modo, os dois fenômenos estão intimamente ligados, pois caracterizam a

vida nas zonas em fase de incorporação, aquilo que se deve entender por fronteira e definem

uma determinada realidade social que Martins denomina como situação de fronteira.

Contudo:

o avanço da frente pioneira sobre a frente de expansão e a conflitiva coexistência de ambas é mais do que contraposição de distintas modalidades de ocupação do território. Ao coexistirem ambas na situação de fronteira, dão aos conflitos que ali se travam, entre grandes proprietários de terra e

16 José de Souza Martins. Idem, op. cit., p. 145-203.

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camponeses e entre civilizados, sobretudo grandes proprietários, e índios, a dimensão de conflitos por distintas concepções de destino. E, portanto, dimensão de conflitos por distintos projetos históricos ou, ao menos, por distintas versões e possibilidades de projeto histórico que possa existir na mediação da referida situação de fronteira17 (grifo do autor).

Considero que adotar qualquer uma das interpretações aqui apresentadas para definir o

que acontecia na região serrana no início do século XX é atitude precipitada, principalmente

porque elas foram elaboradas para tratar de regiões e períodos diferentes, excetuando, no caso

do contexto, a obra de Leo Waibel que muito escreveu sobre o processo de colonização no

Rio Grande do Sul. Contudo, definir a região serrana como frente pioneira nos termos deste

autor significaria ignorar uma parte considerável da população que ali vivia e que, de forma

alguma, se enquadra na noção de pioneiro desenvolvida por Waibel.

As fontes que descrevem a região e as pesquisas existentes sobre o processo de seu

povoamento permitem defini-la como um espaço de fronteira agrária e, dessa forma, ela

efetivamente era uma frente de expansão da sociedade rio-grandense e nacional, como ficou

claro na discussão realizada ainda no primeiro capítulo. Ademais, se pensarmos a noção de

frente pioneira apenas pelo viés do desenvolvimento da região, sua urbanização, inserção nos

quadros da sociedade envolvente e da própria modernização e seus sinônimos mais

tradicionais que são a construção de meios mais eficientes de transporte e comunicação

também é verificável que a região, ao longo do período, passou por um profundo processo de

desenvolvimento social e econômico, o qual está intimamente ligado ao modo como se

constituiu a colonização.

Em outros termos, a idéia sublinhada por José de Souza Martins que há diferenças

entre zonas de expansão e zonas pioneiras, que uma não nega a outra e que tais diferenças se

traduzem no fato de que a primeira carrega a peculiaridade de ter como principal traço o

avanço de uma população pobre que ocupa as áreas de fronteira buscando principalmente a

manutenção da unidade familiar e outra – a frente pioneira – que se caracteriza por inserir tais

zonas no mercado e assim, do ponto de vista da sociedade envolvente, modernizá-las pode ser

aplicada para pensar a região serrana. Entretanto, é necessário ter clareza de que se trata de

outra situação histórica, de outro desenvolvimento e que no caso da região serrana em

específico, o processo de apropriação das terras que conformavam a fronteira agrária

aconteceu a partir do exercício de um forte controle por parte do Estado e da atuação de

algumas empresas particulares de colonização18.

17 Idem, p. 182. 18 Aspectos relacionados a estas questões serão abordados no capítulo 4.

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Assim, o que caracteriza a região é que ela era há bastante tempo habitada por

indígenas e nacionais. Também é possível encontrar registros de negros e alguns imigrantes

vivendo nela antes de 1890, quando a sua colonização com imigrantes europeus de origem

não-ibérica foi acelerado. Essa população era relativamente pequena para a extensão da região

e, da mesma forma, existia um certo preconceito generalizado a seu respeito, dizendo que ela

não era apta para o trabalho produtivo. Na maioria dos casos os primeiros habitantes,

principalmente os lavradores pobres, não eram portadores dos títulos de propriedade das terras

que ocupavam e, diante do avanço da colonização, muitos viram-se obrigados a deslocarem-

se adiante na fronteira em busca de terras ainda não incorporadas, mas que em pouco tempo

passaram a ser alvo de interesse e foram objetos de políticas de colonização, tanto pública

como particular.

Não há como negar que o desenvolvimento da região e sua incorporação está muito

ligado ao processo de fundação de colônias, contudo, isso não deve obscurecer o fato de que

tais colônias foram construídas em terras historicamente ocupadas, que o trabalho das

populações não imigrantes também foi fundamental no desenvolvimento da região e das

próprias colônias. Outro fato que permite definir a região como se constituindo em um espaço

de fronteira agrária é a existência dentro do seu território de diferentes tipos de sociabilidades

que, nos termos de Martins, apontam para a existência de noções diferenciadas de tempo

histórico e de seu desenvolvimento. Em linhas gerais, ignorando as possíveis divergências

presentes nas abordagens desenvolvidas pelos diferentes pesquisadores que se preocuparam

em pensar a fronteira, todos apresentam um ponto em comum: os principais traços que

caracterizam e definem uma região como sendo de fronteira é a existência de conflitos sociais,

especialmente o conflito pela terra, bem como o encontro de grupos com perspectivas de

mundo diferenciadas e, como veremos ao longo dessas linhas, esses traços são facilmente

localizáveis na região serrana durante o período analisado.

2.2 SOBRE AQUELES QUE “PERTENCEM A SOCIEDADE”: OU DAS RELAÇÕES ESTABELECIDAS

ENTRE OS GRUPOS SOCIAIS ENVOLVIDOS NO POVOAMENTO DA REGIÃO SERRANA

Para melhor entender as questões relacionadas à forma como ocorreu o encontro entre

os grupos que atuaram no povoamento da região, é importante sublinhar que se trata de um

contexto marcado pela presença de formas de sociabilidade extremamente complexas. Nesse

espaço, desenvolvia-se uma teia de relações constitutivas de uma figuração social específica

onde se faziam presentes vários dos complexos que caracterizam as relações sociais. Tais

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complexos envolvem temas de ampla discussão como a dominação, a resistência, a

interdependência, a patronagem, a amizade, o parentesco, a subordinação e a vizinhança, para

citar alguns.

Conseqüentemente, para realizar a análise do povoamento é necessário conhecer o

conjunto variado de inter-relações que caracterizam a sociabilidade local, visto que são os

indivíduos, interligados em grupos ou não, que definem e conformam a sociedade que aqui se

pretende conhecer. Em outras palavras, essa sociedade só existe porque um grande número de

pessoas “isoladamente querem e fazem certas coisas e, no entanto, sua estrutura e suas

grandes transformações históricas independem, claramente, das intenções de qualquer pessoa

em particular”19. Ela não é, portanto, uma coleção de indivíduos isolados, mas uma sociedade,

uma estrutura de indivíduos interdependentes, na qual as pessoas, por mais que não se

conheçam ou pertençam a grupos diferenciados, estão ligadas por laços invisíveis que as

tornam interdependentes. Tais laços e o conjunto de ligações resultantes deles formam

“cadeias” que prendem uns indivíduos aos outros e, embora tais “cadeias” não sejam “tão

visíveis e tangíveis, como grilhões de ferro, são mais elásticas, mais variáveis, mais mutáveis,

porém não menos reais, e decerto não menos fortes”20. Portanto, conhecê-las é fundamental

para compreender como se definem os processos e relações sociais.

Assim, um primeiro ponto a ser frisado é que o povoamento da região foi efetivado

por grupos diferenciados. Em termos econômicos, por exemplo, é perceptível naquela

figuração social a presença de um grupo constituído por grandes proprietários de terras. Mais

ou menos alinhados no entorno dos grandes proprietários situavam-se, defendendo idéias e

posições semelhantes, um outro grupo formado basicamente por funcionários públicos,

profissionais liberais, religiosos, comerciantes e alguns intelectuais que na região reproduziam

temas, conceitos e ideais que caracterizavam o pensamento social peculiar da época. A fontes

analisadas evidenciam que há uma maior identidade de situação e posições entre esses dois

primeiros grupos que, de agora em diante, passarei a identificar como grupo “mais rico”. No

outro extremo da escala econômica, estavam as pessoas que atuaram diretamente no

povoamento: pequenos proprietários, agregados, peões, ervateiros e posseiros – grupo

constituído basicamente por nacionais, negros, índios e imigrantes europeus, os quais

conformavam o grupo social “mais pobre” que vivia na região. Os registros existentes a

respeito deste último grupo, na maioria dos casos, não são obra sua, mas as informações

existentes sobre ele provêm da pena dos grupos econômica e socialmente mais bem situados.

19 ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994, p. 13. 20 Idem, p. 23.

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Especialmente, das considerações registradas pelos diferentes relatos descritivos da região21 e,

em particular no caso deste estudo, das informações constantes nos processos crime que

igualmente são resultado de uma produção externa.

Tal fato aponta para uma das principais peculiaridades do grupo “mais pobre”, isto é, a

grande maioria de seus integrantes era composta por analfabetos. O não domínio sobre a

escrita, além de ser um fator que impossibilitou a existência de fontes históricas que permitam

conhecer mais detalhadamente o grupo a partir dele próprio, também era responsável por

definir o modo como as pessoas se inseriam socialmente no contexto local. Uma vez que tal

fato era responsável por limitar as suas possibilidades de ação, por exemplo, no período a um

analfabeto era proibido votar, pleitear cargos públicos e concorrer a cargos políticos. Da

mesma forma, tal circunstância atuava no sentido de limitar a busca de meios legais – justiça

pública – para a resolução de conflitos e problemas cotidianos22. Deve-se somar a isto, no

caso dos imigrantes, o não conhecimento da língua portuguesa como elemento a dificultar sua

inserção, especialmente quando deviam lidar com os aparelhos de Estado, embora, como

veremos no próximo capítulo, sua situação fosse diferenciada em relação aos nacionais,

negros e índios, especialmente porque muitos dos imigrantes dominavam a palavra escrita23.

Como fica visível a estrutura social aqui analisada é heterogênea e é bastante difícil

definir como se constituíam as relações entre esses diferentes grupos sociais. Esta constatação

também é válida para explicitar como internamente se constituíam as relações dentro desses

grupos. Em outros termos, os contatos entre indígenas e imigrantes eram diferentes das

relações que mantinham funcionários públicos e nacionais, bem como as que existiam entre

intelectuais e fazendeiros, negros e nacionais, imigrantes com imigrantes e assim por diante.

Para fins de análise as fontes possibilitam identificar que os grandes proprietários, os

funcionários públicos, os religiosos, os profissionais liberais e os comerciantes possuíam

opinião semelhante a respeito do grupo “mais pobre”. Dessa forma, para o grupo “mais rico”,

21 No capítulo 1 realizei uma breve apresentação de algumas dessas descrições. 22 José Cutilieiro, em interessante etnografia sobre uma comunidade rural portuguesa mostra como o não domínio da escrita é importante elemento de diferenciação social nas sociedades rurais e o quanto ele pode ser um dos eixos sobre os quais se definem as relações de dominação. O autor chama atenção para o fato de que, no caso por ele estudado, as pessoas que não dominavam a palavra escrita viam o mundo dos que sabiam ler e escrever como um mundo “misterioso” e “poderoso”. Evidencia também como isso era favorável aos alfabetizados, uma vez que toda a estrutura administrativa e a organização formal do controle político por parte dos indivíduos poderosos locais eram canalizadas por meio da palavra escrita. Ver, CUTILEIRO, José. A Portuguese rural society. London: Oxford University Press, 1971. 23 Nesse sentido, Paulo Zarth escreve: “Os colonos imigrantes eram tão ignorantes dos aspectos jurídicos como os caboclos; alguns sequer conheciam a língua portuguesa; no entanto um funcionário público levava-os até o lote rural e entregava-o para ser pago em suaves prestações, pois eram esses os agricultores encarregados do desenvolvimento agrícola e não os caboclos, na política oficial”. Cf.: ZARTH, Paulo. História agrária do planalto gaúcho (1850-1920). Iijuí: Unijui, 1997, p. 77.

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os negros eram pessoas violentas, os índios eram seres traiçoeiros, os nacionais eram

indivíduos vadios e os imigrantes eram aqueles que tornariam a região produtiva. Ademais, os

integrantes do grupo “mais pobre” também reconheciam diferenciações entre eles e os

participantes do grupo “mais rico”. Contudo, deve-se frisar que as expressões grupo “mais

rico” e “mais pobre” não correspondem a grupos ou organizações de elementos “ricos” ou

“pobres” estritamente falando, sendo apenas designativas do conjunto ou soma dos indivíduos

dessa ou daquela posição social. Em termos mais precisos, elas buscam ser uma forma de

tornar a realidade social que aqui se quer analisar mais fácil de ser descrita, ou seja, é uma

operação de classificação24.

O reconhecimento dessas diferenciações, por seu turno, não deve significar que as

relações travadas entre o grupo “mais rico” com o “mais pobre” se davam unicamente nos

termos da dominação e do estigma. Sem dúvida ambos aspectos estão presentes nestas

relações, mas elas não são uma via de mão única, ou seja, o grupo mais bem situado

economicamente não estava preocupado 24 horas por dia em dominar e em pensar formas

mais bem elaboradas para exercer sua dominação, assim como os dominados não faziam ou

estavam preocupados dioturnamente em resistir.

Trata-se de uma relação entre grupos econômica e socialmente desiguais, e, em termos

conceituais, seria muito precipitado tratar tal relação como se constituindo um exemplo

preciso e concreto de luta de classes. Nesta perspectiva, um elemento a ser destacado é que a

própria noção de classe não pode ser encontrada entre os participantes da relação,

especialmente no sentido identitário do termo, isto é, não é possível falar em identidade de

classe para o contexto e para o período. Não obstante, se tomarmos a classe como uma

construção/formação, como faz Thompson, talvez seja possível reconhecer alguns elementos

e comportamentos sociais indicativos dessa formação25. Por seu turno, para continuar dentro

dos quadros do pensamento Thompsoniano, tais indícios apontam e podem ser mais bem

compreendidos a partir da idéia de “economia moral”26, uma vez que, no caso específico, não

é possível verificar – pelo menos não encontrei exemplos significativos nas fontes analisadas

– a existência de protesto social organizado voltado para fins precisos e relacionados a uma

consolidada situação e/ou identidade de classe.

As fontes também mostram que o grupo “mais rico” tinha uma coesão maior e sua

unidade é muito perceptível no caso das opiniões/representações que expressam a respeito do

24 Para aprofundar as discussões sobre este tema, consultar: BOURIDEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. 25 Cf.: THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. São Paulo: Paz e Terra, 1997. 26 Cf.: THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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grupo “mais pobre”. Tal coesão tornava maiores as condições para que esse grupo exercesse

seu domínio sobre os economicamente menos favorecidos. Além disso, outro fato que permite

identificar os “mais ricos” como dominantes são as relações que mantinham com o Estado e

seus aparelhos que, invariavelmente, eram usados em beneficio próprio e para consolidar sua

posição e status sociais. Contudo, as disputas por controlar os aparelhos de Estado na esfera

local definiram algumas cisões dentro do grupo “mais rico”, rupturas que se realizaram no

campo político, mas tinham existência prática e violenta no cotidiano regional e envolviam

todos setores da sociedade, como foi o caso da Revolução Federalista em 1891.

Além desse caso, outro exemplo de como as disputas políticas envolviam a sociedade

como um todo nos é fornecido por um processo crime datado de 1917. Em 24 de setembro

deste ano foi realizada, em Santo Ângelo, eleição para prover a cadeira de Intendente e

conselheiros municipais. Acontece que no 5º distrito do município – lugar denominado

Campinas – ocorreram algumas irregularidades no desenvolvimento do pleito. Segundo

informa o delegado de Santo Ângelo, no dia da eleição “alguns indivíduos que dizendo-se

cumprir ideais nobres, fins patrióticos, convulsionaram o recinto de uma mesa eleitoral com o

intuito de perturbar a ordem, amedrontar o eleitorado, impedindo a votação”27. Os autores da

confusão eram, de acordo com o delegado, Jorge Bauer e Valentim Pereira. O primeiro tinha

29 anos de idade, era casado, natural da Áustria e era ferreiro; Valentim tinha 31 anos, era

casado, natural do Rio Grande do Sul e residente no 6º distrito de Santo Ângelo – lugar

denominado Giruá. O delegado conta que Valentim Pereira havia sido demitido do cargo de

subintendente do 6º distrito às vésperas da eleição e quem o tinha demitido foi o então

intendente municipal, Álvaro Silveira, que estava concorrendo a reeleição naquele pleito.

Portanto, argumenta o delegado, a confusão gerada por Valentim e seu companheiro Jorge

Bauer tinham o sentindo da revanche. Entretanto, no interrogatório, datado de 10 de

novembro de 1917, Valentim diz não ter se envolvido na questão e que apenas viu a confusão

e retirou-se do local sem nada saber. No mesmo dia, Jorge Bauer também é interrogado e sua

versão esclarece melhor o fato. Bauer conta que estava em Campinas e se achava no lugar

onde funcionava a mesa eleitoral. Que, nesse dia e lugar, foi por diversas vezes provocado por

um indivíduo de nome Sigismundo Alexandroviz Kraskym e, para fugir das provocações, se

escondeu em um quarto da casa onde aconteciam as eleições. No entanto, Sigismundo entrou

no quarto e avançou contra ele de faca em punho, pelo que se viu obrigado a reagir vindo a

ferir Kraskym na cabeça.

27 APERGS. Processos Crime 1.445. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1917. Maço 49.

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Uma versão semelhante com a de Bauer é fornecida por José Duarte Lages (41 anos de

idade, casado, empregado público, natural do Rio Grande do Sul). De acordo com Lages, que

era secretário da mesa eleitoral, Sigismundo Kraskym estava embriagado e fazia provocações

aos presentes a ponto do Presidente da mesa eleitoral ordenar a sua prisão. Ainda segundo

Lages, Kraskym entrou em um quarto onde estava Jorge Bauer e ambos brigaram sendo que,

aproveitando a confusão, Valentim Pereira dirigiu-se a mesa eleitoral e rasgou grande número

de cédulas. Em 17 de dezembro de 1917 é ouvida uma testemunha de defesa que traz novos

elementos, os quais ajudam a entender a situação. Pedro Antunes da Silva (23 anos de idade,

solteiro, natural do Rio Grande do Sul, agricultor e residente no 5º distrito), conta que estava

junto de Valentim no momento da confusão e que o acusado não havia se envolvido nela.

Afirma que o processo estava sendo movido por perseguição política e que era obra do

Intendente municipal Álvaro Silveira porque Valentim não havia votado nele.

Em 18 de dezembro de 1917, Sigismundo Kraskym dá sua versão dos fatos: conta que

foi nomeado fiscal eleitoral do distrito de Campinas e que no caminho de sua casa até a mesa

eleitoral ouviu boatos de que Jorge Bauer, que não era eleitor daquela seção, queria assistir as

eleições e amedrontar o eleitorado. Afirma que havia tomado alguns goles de cachaça, mas

não estava embriagado e que, “na condição de fiscal” tinha discutido com o Presidente da

mesa eleitoral por este ter proibido que algumas pessoas votassem sob a alegação de que não

eram eleitoras daquele distrito e que Jorge Bauer se interpôs nessa discussão. Segundo

Kraskym, os ânimos haviam se acirrado muito e, por este motivo, resolveu ir até o hotel da

cidade buscar seu revólver e uma espada, sendo que nessa ocasião tomou “uns gollos de

Paratti”. No retorno do hotel até o local onde estava acontecendo a eleição viu chegar uma

banda de música composta por alguns seus conterrâneos tocando o hino russo e “ele

declarante sentindo-se arrebatado saiu da casa, chegou frente a banda de música dando um

viva a Rússia e outro ao Brasil, detonou para o ar doze tiros e depois voltou novamente para a

sala aonde se distribuíam cédulas”28. Em conseqüência desse ato, os responsáveis pela

segurança local tentaram prender Sigismundo que reagiu dando ensejo para o

desenvolvimento da confusão discutida no processo. Kraskym, afirma que Valetim Pereira

realmente não havia entrado no confronto muito menos rasgado as cédulas, logo, estava sendo

acusado apenas por questões políticas. Por fim, em 02 de abril de 1918 é realizado o

julgamento e os dois acusados, Bauer e Valentim, são absolvidos.

28 Idem, ibidem.

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O processo demonstra a importância de manter o controle sobre os aparelhos políticos

locais e como as disputas por esses lugares de poder perpassavam os diferentes níveis da vida

social. Em outros termos, o caso não só envolve questões relativas ao reconhecimento de uma

identidade nacional expressa no êxtase vivido por Kraskym ao reconhecer o hino da Rússia,

mas também demonstra o uso dos aparelhos oficiais da justiça para fins estritamente políticos.

No que diz respeito a primeira constatação cabe perguntar o que um banda formada por

imigrantes russos estava fazendo tocando o hino da Rússia naquele exato momento e local?

Uma resposta definitiva para a pergunta talvez seja impossível, no entanto, a situação é

inusitada. Acerca do segundo ponto levantando, isto é, o do uso da máquina administrativa

estatal para fins políticos, os diferentes depoimentos evidenciam que o envolvimento de

Valentim no caso só é confirmado pelas versões do delegado e do secretário da mesa eleitoral,

ambos funcionários públicos vinculados diretamente ao Intendente municipal que era o maior

interessado em ver seu desafeto político, Valentim Pereira, condenado.

Acerca da classificação aqui proposta para identificar os grupos envolvidos no

povoamento da região, ela parte do princípio de que o grupo “mais rico” tinha como seu

principal representante algumas pessoas que detinham e buscavam manter um controle

rigoroso sobre grandes extensões de terra – fato muito significativo no contexto de uma

sociedade rural. Este grupo também controlava o poder político local e estadual e, embora

seja possível verificar diferenças de riqueza entre grande proprietários, funcionários públicos

e comerciantes, por exemplo, eles expressavam opiniões idênticas a respeito das pessoas que

pertenciam ao grupo “mais pobre”. Além disso, partilhavam idéias semelhantes relativas ao

desenvolvimento da região e da população que ali residia. Evidentemente que tal grupo não se

comportava em uníssono e há espaços para divergências, mas alguns comportamentos são

preponderantes e possibilitam afirmar que entre o grupo economicamente mais forte há, em

certos aspectos, uma certa identidade de ação e de posição. Contudo, deve-se levar em conta

que a classificação proposta não é objeto de consenso. Existe uma certa arbitrariedade nela,

uma vez que o pertencimento a um ou outro grupo é por deveras escorregadio e é muito difícil

localizar nas fontes indícios da existência de uma “moral de grupo”29 efetivamente

consolidada, tanto para um lado como para outro da relação, principalmente entre o grupo

“mais pobre”.

Em outras palavras, é muito arriscado definir em termos precisos os critérios que

delimitam o pertencimento a um ou outro grupo, embora seja possível arriscar, sem grandes

29 Sobre a noção de “moral de grupo”, verificar: DURKHEIM, Émile. Lições de Sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 01-59.

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chances de erro, que a riqueza e a formação sejam pontos de diferenciação social importantes

naquele contexto. Igualmente a ligação das pessoas com o mundo da política, do trabalho e

com o campo também são fatores de diferenciação importantes. Embora se trate de uma

sociedade que tenha como principal ponto de sustentação a produção rural, existiam

diferenças de status social entre aqueles que viviam nas áreas rurais e praticavam uma

agricultura de subsistência com produção de algum excedente, daqueles que viviam nos

pequenos centros urbanos e eram os responsáveis pela comercialização desse excedente,

mesmo que eles não fossem muito mais ricos do que os habitantes do campo. Da mesma

forma, era outro o lugar e o status social ocupado pelos grandes proprietários que viviam nas

sedes dos municípios e tinham suas terras trabalhadas por peões ou agregados, bem como

também existiam questões de raça e cor definindo a relação entre as pessoas.

Para uma noção mais precisa do quanto é difícil estabelecer critérios fechados a

classificação aqui sugerida é importante destacar que existiam vários elementos que vão para

além da riqueza definindo como se constituíam as relações sociais naquele contexto, por

conseguinte, os possíveis vínculos identitários. Em 17 de fevereiro de 1923 ocorreu um fato

na cidade de Santo Ângelo demonstrativo disso. Trata-se de um baile que aconteceu nesse dia

na sede do “Club Gaúcho”, importante centro onde se reunia a “alta sociedade” santo-

angelense. Segundo consta na denúncia crime prestada por Perpedigna Rodrigues Camargo

ela estava no baile acompanhada de mais algumas senhoras quando foi insultada por Clarinda

Lourega e Eloyna Lourega Pinheiro. A queixosa conta que estava no “Toillet do Club”, onde

também se encontravam as acusadas, quando uma delas “como que chamando a atenção das

circunstantes, exclamou: ‘Mas aquela menina com a fantasia de Fulana!...’. Ao que a queixosa

acrescentou: ‘Talvez seja, mas não há só uma Maria na terra’”30. Em conseqüência da

resposta, a acusada Eloyna disse a Perpedigna “em tom rude e áspero: ‘Não é conversa

contigo negra à toa!’”. Na seqüência, depois de ser repreendida por uma de suas

companheiras, Eloyna continua referindo-se a Perpedigna nos seguintes termos: “Isso é uma

negra sem importância... que em São Luiz [município situado próximo a Santo Ângelo] não

era da sociedade e é até um desaforo se achar metida na sociedade desta vila... que era um

resto dos negros”31. É arriscado afirmar, com plena certeza, que a discussão tenha se

desenvolvido exatamente nos termos que constam na denúncia, já que ela foi escrita pelo

advogado da ofendida, o qual ainda faz o seguinte destaque ao final do texto: “exmo. Juiz!... a

honestidade, a honra, a dignidade e valor social da queixosa não devem, não podem ser assim

30 APERGS. Processos Crime 1.562. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1923. Maço 56. 31 Idem, ibidem.

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tão grosseiramente atacados, atassalhados em uma reunião da ELITE social desta nobre

terra”32 (grifo no original). No entanto, também não é impossível que o conteúdo da denúncia

seja fiel ao fato que descreve, visto o modo como a questão racial era tratada na época33.

O caso é levado a julgamento e, em 16 de março de 1923, o juiz alegando uma série de

problemas no processo considera a queixa improcedente. Como fica visível, o acontecimento

refere-se a uma situação onde a “elite social desta nobre terra” – para continuar usando os

termos do advogado da queixosa – estava reunida em festa, ou, nas palavras de Eloyna, estava

reunida a “sociedade” da vila de Santo Ângelo que freqüentava o Club Gaúcho. Ambos,

advogado e acusada, mostram a existência de uma diferenciação bem clara no contexto local,

ou seja, existe uma sociedade e aqueles que não fazem parte dela. Certamente Eloyna

empregue o termo sociedade como sinônimo de civilização. Assim, aqueles que como ela

pertenciam a sociedade, deviam se comportar de acordo com certos valores e preceitos, tais

como não ir a um baile da elite vestida com uma fantasia que tinha sido usada por outra

pessoa em um baile passado. Da mesma forma, o fato de Eloyna reconhecer que tal fantasia já

havia sido utilizada em um momento anterior e expressar esse reconhecimento indica também

que existia uma autovigilância exercida pelos integrantes dessa sociedade definindo o

comportamento de seus integrantes, bem como daqueles que gostariam de participar do grupo.

Do mesmo modo, carregar fisicamente algumas características também definia o

pertencimento ao grupo. No caso, ser da sociedade, para Eloyna, está muito vinculado a ser da

cor branca. Embora, a questão da ofensa racial não seja profundamente tematizada ao longo

do processo e só apareça como mais um elemento a comprovar que as acusadas haviam

ofendido a honra de Perpedigna é possível concluir que naquele contexto ser negro e

pertencer a elite são duas coisas que não se casam muito bem, o que não quer dizer que era

impossível a um indivíduo de cor participar da sociedade, mas também não era tranqüilo,

tanto para ele como para os seus outros relacionais34.

Uma das características das relações vividas entre o grupo “mais rico” e o “mais

pobre” é que ela se definia como uma relação de dominação, a qual descansava, entre outros

fatores, sob a impossibilidade de um representante do grupo “mais pobre” ocupar um lugar de

poder dentro da estrutura do Município ou do Estado e usufruir, em seu nome e em nome

32 Idem. 33 Esta problemática será aprofundada no próximo capítulo. 34 Para aprofundar as discussões sobre esta questão, consultar: NOGUEIRA, Oracy. Preconceito de marca: as relações raciais em Itapetininga. São Paulo: EDUSP, 1998.

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daqueles que representava, desse poder e suas benesses35. Vários fatores concorriam para isso:

o voto a descoberto, a proibição do voto e também da elegibilidade aos analfabetos, bem

como o forte controle exercido sobre a máquina administrativa36. Ou seja, a proximidade do

grupo “mais rico” com o Estado e seus aparelhos, somada a sua situação econômica e a sua

atuação política, são elementos centrais a definir e a manter a relação entre os dois grupos nos

termos da desigualdade e da dominação. Do mesmo modo, o fato de os “mais pobres”

participarem de forma muito modesta na distribuição da riqueza, de muito dificilmente

ocuparem cargos políticos e de entrarem em contato com o Estado, na maioria das vezes, em

função de algum conflito, também condicionava a desigualdade e a própria dominação.

Todavia, isso não quer dizer que havia uma dominação fechada, pelo contrário,

embora as relações entre os grupos fossem desiguais e existisse toda uma estrutura de

favorecimento aos econômica e politicamente mais fortes, havia trocas e, nas suas relações,

ambas as partes se influenciavam. Assim, é importante destacar que internamente não

existiam espaços seguros para consensos e, no contexto da Primeira República, como mostra

Sônia Mendonça em sua análise sobre o papel da Sociedade Nacional de Agricultura: mesmo

dentro dos grupos economicamente dominantes, existiam disputas dificultando o

estabelecimento de unidades fechadas e coesas de classe37. Nesse sentido, o interesse aqui é

visualizar as várias facetas da sociabilidade local objetivando pensar a região serrana e seus

habitantes a partir da idéia do espaço social como um

35 Exceção deve ser feita a alguns imigrantes que conseguiram realizar carreira política. Um exemplo da participação dos imigrantes na política estadual é a eleição de dois representantes da zona colonial para deputados já na primeira legislatura em 1891, Luís Englert e João Steenhagen, ambos comerciantes de origem alemã. Contudo, a atuação dos representantes coloniais nos quadros da política oficial rio-grandense se deu mais em “defesa do imigrante comerciante ou industrial do que a do camponês”. Da mesma forma, sua representatividade numérica no lesgislativo, ao longo de toda a Primeira República, era muito pequena. Cf.: PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imigrante na política Rio-Grandense, p. 170. In.: DACANAL, José Hildebrando (Org.). RS: imigração e colonização. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980, p. 156-182. 36 Para conhecer mais detalhadamente como funcionava a máquina eleitoral no Rio Grande do Sul da Primeira República, ver: TRINDADE, Hélgio; NOLL, Maria Izabel. Rio Grande da América do Sul: partidos e eleições (1823-1990). Porto Alegre: Editora UFRGS: Sulina, 1991. Ver também, NICOLAU, Jairo. História do voto no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. 37 Em O ruralismo brasileiro, Mendonça preocupa-se, a partir do uso de um referencial teórico centrado no materialismo histórico, em entender a “classe dominante” e suas ações e relações durante a Primeira República. Nesse aspecto, o estudo permite conhecer profundamente as relações sociais dentro do grupo, suas fissuras e ligações com o Estado. A autora desenvolve uma rigorosa análise a respeito das divergências existentes dentro da “classe dominante” brasileira e, com base nessa constatação, pensa o desenvolvimento das políticas agrárias e do próprio Estado durante o período. Para tanto, apropria-se do conceito de hegemonia desenvolvido por Antônio Gramsci e centra sua preocupação no exame do papel que teve a Sociedade Nacional de Agricultura (SNA) como elemento de congregação do que ela denomina “fração dominada da classe dominante”. Cf.: MENDONÇA, Sônia Regina de. O ruralismo brasileiro (1888-1931). São Paulo: Editora HUCITEC, 1997. Conferir também MENDONÇA, Sônia Regina. Estado, agricultura e sociedade no Brasil da primeira metade do século XX. In.: GIRBAL-BLACHA, Noemi; VALENCIA, Marta (Orgs.). Agro, tierra y política. Debate sobre la historia rural de Argentina y Brasil. Argentina: Red de editoriales universitárias, 1998, p. 131-163.

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espaço multidimensional, conjunto aberto de campos relativamente autônomos, quer dizer, subordinados quanto ao seu funcionamento e as suas transformações, de modo mais ou menos firme e mais ou menos direto ao campo de produção econômica, mas no interior de cada um dos subespaços, os ocupantes das posições dominantes e os ocupantes das posições dominadas estão ininterruptamente envolvidos em lutas de diferentes formas sem por isso se constituírem necessariamente em grupos antagonistas38.

Um dos pontos a ser priorizado na análise é o de que a relação entre os dois grupos

define-se como uma relação de poder e, em sociedade, existem “diferentes modos de poder,

cada um deles concernente a um nível distinto de relações sociais”39. Por conseguinte, deve-se

assinalar que existem dessemelhanças entre os contatos que os “mais pobres” mantinham

com os “mais ricos” e aqueles que eles mantinham no interior de suas fronteiras. Ambas

situações envolvem relações de poder e devem ser levadas em conta na análise do modo como

os grupos configuravam sua sociabilidade e pensavam a si próprios. Assim, o estudo dessas

relações será realizado levando em conta que o poder, mesmo o resultante da dominação,

produz coisas, induz ao prazer, forma saberes, produz discursos, bem como é “uma rede

produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que

tem a função de reprimir”40.

Todavia, se diferentes formas de relações sociais repercutem em diferentes modos de

poder, algumas dessas relações têm características de dominação e, como lembra Max Weber,

não envolvem apenas a situação econômica dos grupos, mas a dominação expressa-se quando

a vontade manifesta – mandado – do “dominador” ou dos “dominadores” busca influenciar as

ações de outras pessoas do “dominado” ou dos “dominados”. De fato, as influência “de tal

modo que estas ações, num grau socialmente relevante, se realizam como se os dominados

tivessem feito do próprio conteúdo do mandado a máxima de suas ações (‘obediência’)”41.

Logo, em termos weberianos, para funcionar a dominação tem de ser ou, pelo menos, parecer

ser legítima. Entretanto, o fundamento da legitimidade não acontece de forma unilateral, uma

vez que as vontades dos envolvidos nas relações podem se influenciar e, da mesma forma,

deve-se estar atento para o fato de que o dominante em uma determinada relação social pode

ser dominado em outra.

38 BOURDIEU, Pierre. Espaço social e gênese das “classes”. In.: ___. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrnad Brasil, 2005, p. 153. 39 WOLF, Eric. Encarando o poder: velhos insights, novas questões, p. 325. In.: BIANCO-FELDMAN, Bela; RIBEIRO, Gustavo Lins (Orgs.). Antropologia e poder: contribuições de Eric R. Wolf. Brasília: UNB, São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo e UNICAMP, 2003, p. 325-345. 40 FOCAULT, Michel. Verdade e poder. In.: ___. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 08. 41 WEBER, Max. Economia y sociedad: esbozo de sociologia compreensiva. México: Fondo de Cultura Econômica, 1964, p. 699.

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Estes são pontos importantes que, em alguns casos, ainda não foram profundamente

explorados. Algumas análises sobre a constituição do Estado, das políticas públicas colocadas

em prática e de alguns acontecimentos ocorridos no Rio Grande do Sul da Primeira República

insistem em apresentar os dominados como espectadores passivos do processo. Sofredores

imóveis de uma dominação que é legítima porque se autojustifica a partir do controle do

poder exercido por aqueles que dominam. Da mesma forma, tais pesquisas definem que a

legitimidade é essencial para existência da dominação, mas não se preocupam em pensar

como ela e a própria dominação são vivenciadas42.

Assim, considerar a legitimidade da dominação como fator importante para melhor

compreendê-la não deve anular o fato de que existem momentos em que ela é questionada ou

não é aceita. Encontrei alguns processos crime que trazem exemplos representativos de como

a dominação era questionada. Um deles, datado de 28 de dezembro de 1917, narra um

acontecimento que se deu no distrito de Santa Rosa, município de Santo Ângelo. A situação

ajuda a compreender melhor como a resistência a uma dominação que se pensa ou, no

mínimo, se quer legítima por parte do dominante acontece na prática.

De acordo com a queixa crime, feita por Dinarte Eugênio de Mello (casado, agricultor

e domiciliado em Santa Rosa), ele havia contratado um peão de nome Maurílio Borges (não

qualificado no processo) para trabalhar por dia. Segundo Dinarte, Maurílio era “acostumado a

sofrer os maiores horrores da vida”, situação que se modificou após ter sido contratado por ele

denunciante: o peão “sentia-se bem alegre, pois além de ganhar a alimentação e bons tratos

tinha 9:000 réis mensais, quando era costumeiro viver por um prato de comida”43. O queixoso

continua seu relato e conta que um certo dia Maurílio “saiu de seu patronato e pedindo-me

dinheiro para comprar camisa, com ele embebedou-se”44. Após esse fato, Maurílio retirou-se

da casa de Dinarte, contudo, os dois tornaram a se encontrar em uma picada, momento em que

Maurílio para “compensar os benefícios que lhe prestei”, afirma Dinarte, tentou agredir seu

ex-patrão com uma faca. Dinarte consegue reverter a situação e ao invés de ser agredido

acaba ferindo Maurílio, o qual procurou o inspetor do quarteirão e prestou denúncia contra

Dinarte. Alguns dias depois, Dinarte e o inspetor de quarteirão, um certo “senhor Belém”, se

encontram e o último dá voz de prisão a Dinarte, disso resulta um confronto entre os dois, no 42 Exemplo desse tipo de interpretação pode ser encontrado em TARGA, Luiz Roberto Pecotis. Elites regionais e formas de dominação. In.: ___. (Org.).Breve inventário de temas do sul. Porto Alegre: UFRGS; FEE; UNIVATES, 1998, p. 63-85 e WASSERMAN, Cláudia. O Rio Grande do Sul e as elites gaúchas na Primeira República: guerra civil e crise no bloco do poder. In.: GRIJÓ, Luiz Alberto; KÜHN, Fábio; GUAZZELLI, César; NEUMANN, Eduardo (Orgs.). Capítulos de história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2004, p. 273-291. 43 APERGS. Processo Crime 1.471. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1918. Maço 50. 44 Idem, ibidem.

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qual o inspetor dispara dois tiros, mas não acerta o alvo. Diante de tudo, o patrão ofendido

presta queixa crime e requer que o inspetor seja julgado, considerado culpado e condenado

pelo uso indevido da violência. Testemunhas são arroladas e ouvidas, mas não esclarecem a

questão e, nos seus depoimentos, não trazem novidades sobre os confrontos entre o peão, o

patrão e o inspetor. Em 26 de julho de 1918, o juiz considera que faltavam elementos que

comprovassem a queixa e absolve o inspetor acusado.

As expectativas que Dinarte demonstrava ter em relação a Maurílio evidenciam que,

naquele contexto, “ajustar-se” como peão ou, nas palavras de Dinarte, entrar no “patronato”

de alguém significava reconhecer a autoridade dessa pessoa, bem como reconhecer os

benefícios que poderiam ser auferidos da situação. Ademais, as ações de Maurílio,

demonstram que as coisas não precisavam se desenvolver necessariamente nestes termos e

que, dependendo da situação, o próprio aparato legal poderia ser utilizado em benefício

próprio como fica evidente na atuação do inspetor de quarteirão. Como veremos a seguir, o

inspetor era a autoridade maior nas pequenas comunidades interioranas, uma vez que ele era

nomeado diretamente pelo intendente do município ou pelo subintendente do distrito para ser

responsável pelo controle da ordem local.

Outro elemento presente no processo que explica quão complexas são as situações que

envolvem a relação entre grupos sociais diferenciados aparece no depoimento de uma das

testemunhas. Josias da Motta Ribeiro (24 anos de idade, lavrador, solteiro, residente em Santa

Rosa), afirma que estava próximo ao local em que ocorreu o conflito entre o inspetor de

quarteirão e Dinarte, contudo, diante da possibilidade de confronto entre os dois “saiu

incontinenti e foi para trás de casa para não presenciar algum conflito que se pudesse dar”45.

Existem algumas explicações possíveis que podem ser dadas a essa atitude: a primeira é que

Josias buscou escapar da possibilidade de se ver atingido por uma bala perdida, a segunda é

que não queria se envolver no confronto, a terceira pode ser a de que, em determinadas

situações, o melhor é fingir-se de cego mesmo e, por fim, ele pode ter presenciado tudo, mas

para não tomar partido preferiu dizer não ter visto nada. Em outras palavras, qualquer das

opções que justifiquem a atitude de Josias aponta para sua racionalidade.

A relação estabelecida entre Dinarte e Maurílio, assim como os outros casos parecidos

e que serão trabalhados no decorrer do estudo, podem ser interpretados como constituindo

uma relação de patronagem. Por patronagem entendo aqui um conjunto de relações cuja

marca mais característica é a existência de assimetria entre os envolvidos. De acordo com

45 Idem.

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Julian Pitt-Rivers, por exemplo, a patronagem é uma relação de “amizade desnivelada”46, ou

seja, é uma relação em que o favorecido tem pouco a oferecer em troca do favor recebido,

mas efetivamente o que ele tem a oferecer é importante no sentido de manter a própria

relação.

Segundo Eric Wolf, os patrões, devido a sua posição social, tem o papel de fazer a

conexão entre “indivíduos orientados para a comunidade que querem estabilizar ou melhorar

suas chances na vida, mas que não têm segurança econômica e as conexões políticas”47, assim

precisam de pessoas melhor orientadas para o extralocal: a nação, o Estado. Ponto de vista

que é partilhado por Sydel Silverman para quem um dos principais papéis do patrão é atuar

como um mediador entre aquilo que acontece na realidade local da aldeia ou da vila

camponesa e aquilo que constitui a realidade própria da nação48. Numa interpretação não

muito diversa, Jeremy Boissevain, mostra que as relações de patronagem devem ser

compreendidas como um sistema paralelo ao sistema estatal. Em outras palavras, nas

sociedades marcadas pelo desnível social uma das funções da patronagem é permitir que as

pessoas situadas em posições mais distanciadas do Estado tenham acesso facilitado a seus

aparelhos. A mediação é feita por “alguém” que esteja mais bem situado em relação ao

Estado, por sua vez, esse “alguém” pode exigir certos serviços em troca do favor prestado49.

Para tornar tais considerações mais claras volto ao caso de Dinarte e Maurílio. Embora

não se trate especificamente da mediação entre uma situação local com a extralocal, no caso

verifica-se a existência de elementos característicos da patronagem. Dessa forma, no

momento em que Maurílio desafiou seu patrão não fez mais do que questionar a assimetria

que é própria das relações patrão/cliente. Desnível que Dinarte não esperava ver questionado.

Além disso, quando presta queixa ao inspetor de quarteirão, Maurílio estava buscando auxílio

em outra pessoa que também poderia exigir algo em troca pela intermediação. Da mesma

maneira, quando Josias em seu depoimento diz que diante da possibilidade de conflito entre o

inspetor de quarteirão e Dinarte optou por não presenciá-lo não estava mais que evitando

qualquer possibilidade de se ver prejudicado perante uma necessidade futura. Fato que nos

leva a uma outra interpretação, qual seja, a de que os grupos que têm condições econômicas e

sociais escassas percebem que o mundo e as coisas desejadas da vida “como a terra, a saúde, a

riqueza, a amizade, o amor, a virilidade, a honra, respeito e status, poder e influência,

46 PITT-RIVERS, Julian. The people of the Sierra. London: The University of Chicago Press, 1971. 47 WOLF, Eric. Aspectos das relações de grupos em uma sociedade complexa: México, p. 88. In.: FELDMAN-BIANCO, Bela; RIBEIRO, Gustavo Lins. Idem, op. cit., p. 73-93. 48 SILVERMAN, Sydel. The community-nation mediator in traditional central Italy. In.: POTTER, Jack. M., DIAZ, May N., FOSTER, George M. Peasant Society: a reader. Boston: Little Brown, 1967, p. 279-293. 49 BOISSEVAIN, Jeremy. Patronage in Sicily. MAN, 1(1): 18-33, 1966.

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seguridade e proteção, existem em uma quantidade finita e limitada e são sempre escassos”50,

daí a importância que as relações de patronagem têm nesses contextos, uma vez que elas,

muitas vezes, são uma forma segura e rápida de alcançar alguns desses interesses.

Uma outra situação que demonstra que as relações que envolvem dominantes e

dominados não se constituem em vias de mão única é expressa no relatório da Diretoria de

Terras e Colonização de 1926. Nesse caso trata-se da relação Estado/nacionais. No relatório, o

diretor da DTC, Carlos Torres Gonçalves, sublinhava que uma das principais metas da

diretoria era “provar que os nacionais são suscetíveis de se fixarem rapidamente ao solo e

adquirirem hábitos regulares de trabalho”51. Contudo, muitas modificações tiveram de ser

feitas para que este objetivo fosse minimamente cumprido devido ao modo como os nacionais

relacionavam-se com a idéia de trabalho, bem como a forma que eles recebiam as políticas de

Estado. Para dar conta de mostrar que os nacionais poderiam ser “úteis socialmente”, Torres

Gonçalves registra em seu relatório que, entre outras coisas, foi necessário modificar o regime

de vencimentos dos chefes de colônia, extinguir as porcentagens advindas aos funcionários

públicos pela cobrança da dívida colonial, facilitar o pagamento de terras, tornar os contatos

da administração das colônias com os nacionais mais diretos e prolongados, além de exercer

uma ação protetora.

Por fim trago um último exemplo esclarecedor e demonstrativo de que na região

serrana existiam espaços importantes de resistência e que ela poderia adotar formas diversas.

Em 14 de dezembro de 1908, Joaquim Antônio Antunes Ribas, Pedro Basílio Severo,

Anacleto José Severo, Maria da Conceição Antunes Ribas, Thacila Antunes Ribas e Manuel

Marques de Meneses prestam queixa crime contra Francisco Ávila dos Santos, Felisbina

Pereira da Silva e Hermógenes Pereira da Silva (filho de Felisbina). Consta na queixa que

durante o mês de novembro de 1908, no terceiro distrito de Santo Ângelo, houve uma

“verdadeira derrama de escritos injuriosos, vulgo pasquins, contra famílias respeitáveis e, de

fato, honestas”52. O autor de tais pasquins foi Francisco Ávila, o distribuidor Hermógenes, e

Felisbina, de acordo com a queixa, foi a mandante e coordenadora de tudo. Na denúncia

também consta que em decorrência dos pasquins uma das ofendidas, Maria da Conceição,

50 FOSTER, George M. La sociedad campesina y la imagen del bien limitado, p. 64-65. In.: BARTOLOMÉ, Leopoldo J., GOROSTIAGA, Enrique E. Estúdios sobre el campesinado latinoamericano: la perspectiva de la antropologia social. Argentina: Ediciones Periferia SRL, 1974, p. 61-90. 51 GONÇALVES. Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 442. In.:OLIVEIRA, Sergio Ulrich de. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros presidente do Estado do Rio Grande do Sul pelo Dr. Sergio Ulrich de Oliveira Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas em setembro de 1926. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, Volume 2, 1926, P. 409-470. (AHRS - OP. 83). 52 APERGS. Processo Crime 1.347. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1908. Maço 45.

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havia ficado doente e outra, apenas identifica como “moça”, havia falecido. O processo crime

não permite esclarecer profundamente o caso, pois as testemunhas arroladas apenas

confirmam a versão da queixa e aos acusados não é dada palavra. Contudo, o referido

pasquim é juntado aos autos e a partir dele é possível ter uma idéia melhor do que se tratava:

O Sñr Cidadão53

O Cidadão Jango Riba No comércio é um graúdo

E o infame proceder É de um cachorro lanudo.

1 A Senhora dona tuca

É da mesma liberdade Ela junto com as filha Tudo cão da pá virada

2 Tudo cão da pá virada Tudo cão puta e cadela

Que os que não serve para as filha Sempre que serve para ela

3 Sempre que serve para ela Não gostam de perder nada Em qualquer fachinalzinho

Estão de anca bolhada

4 Em qualquer fachinalizinho

Estão de anca bolhada Porque o Senhor Julhomaia

É pastor da manada 5

O Jango toca ele de casa Pensando de ele saí

Mais para mode a Conceição Ele sai e tende vim

6 A Conceição quer ser uma dona

No fim é uma lijongera Foi achado co Gervásio Debacho da laranjera

7 A Carcidia quer ser uma fror

Que no jarro foi prantada Contai quem casar com ela Que é uma fror desfolhada

8 Que é uma fror desfolhada

Conta quem assistir ela Que as dez horas da noite

E lhe tirou pela janela

9 São falsos são faladores

Porcos de natureza E a gente do Manoel Marques

Estão na mesma carreira 10

Estão na mesma carreira Daqui pra lá e de lá pra cá

Quando for no fim do tempo Avemos de ver em que dá

11 A picucha e o neném

Estão de carijo armado Mais o que já diz o povo

É que o carijo já está canchiado 12

Vou dar fim neste papel Porque chega de fala

Eles mesmo são curpados Pois quem mandam no lugar.

É possível verificar que o conjunto das pessoas arroladas nos versos era composto por

indivíduos vinculados ao comércio, tinham um certo poder social, pois no fim o autor deixa

claro que a condição dos personagens do pasquim é a daqueles que “mandam no lugar”.

Também é visível que a maior parte das acusações busca ferir a honra dos envolvidos e

elementos como a conduta da mulher, sua virgindade principalmente, são constantemente

acionados. Registrei acima que não encontrei no processo o motivo que levou os três acusados

a comporem o folheto, consta apenas que Francisco e Hermógenes haviam reconhecido a

autoria dele, que Felisbina encontrava-se doente e, por isso, não pode ir ao tribunal. Quanto ao

julgamento, ele acontece em 26 de dezembro de 1908 e os três acusados são condenados a

seis meses de prisão e ao pagamento de uma multa de 400 mil réis cada um. Fato um tanto

interessante visto que, como veremos em alguns processos, casos mais violentos e que a

53 Idem, ibidem.

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autoria do crime é efetivamente reconhecida não são julgados com tanto rigor e, em grande

parte deles, os responsáveis são absolvidos. Enfim, apenas optei por incluir os versos de

Francisco para mostrar uma das alternativas políticas que os grupos economicamente menos

favorecidos tem de contestar a ordem responsável por sua condição e que a idéia de

imobilidade e resignação estão longe de poderem explicar a vida dessas pessoas54.

2.3 REPRESENTAÇÕES: OU SOBRE AQUELES QUE “SÃO VADIOS E DE MAUS COSTUMES”

Sem a audácia pioneira dos mamelucos, “irradiando os bandeirantes sertão adentro”, o território do Rio Grande atual não seria Brasil, mas província do antigo Vice-Reinado do Prata. Paraguai, Uruguai, Argentina? Não sei. Brasil é que não seria.

João Neves da Fontoura. Memórias.

Uma das características do primeiro período republicano brasileiro foi a produção de

um conjunto de obras que se preocuparam em descrever e pensar o Brasil. Livros como Os

Sertões de Euclides da Cunha, América Latina: males de origem de Manuel Bonfim, entre

outros, datam do início do século XX e expressam algumas das opiniões que a Sociedade

possuía a respeito de si mesma, especialmente das populações que viviam no interior do país.

Já registrei o quanto as descrições da região serrana escritas no período por intelectuais que ali

viviam – Hemetério Velloso da Silveira – ou por viajantes que por ali passavam –

Maximiliano Beschoren – fazem ecos dessa produção “nacional”, principalmente no que diz

respeito as suas ponderações sobre as populações rurais. Considero que estudar tais opiniões e

os seus motivos é elemento fundamental para compreender como se constituíam as relações

sociais que caracterizaram o povoamento. Nesse sentido, mais do que simples opiniões, elas

são representações e, como tal, lembra Pierre Bourideu, tem o caráter de ser

atos de instituição mais ou menos fundados socialmente, através dos quais um indivíduo agindo em seu próprio nome ou em nome de um grupo mais ou menos importante numérica e socialmente quer transmitir a alguém o significado de que ele possui uma dada qualidade, querendo ao mesmo tempo cobrar de seu interlocutor que se comporte em conformidade com a essência social que lhe é assim atribuída55.

54 Sobre o tema da resistência e o seu papel na vida cotidiana dos grupos camponeses, ver: SCOTT, Jim. Everday forms of peasant resistence. In.: The Journal of Peasant Studies, v. 13, n. 2, 1986, p. 05-35. Cosultar também, SCOTT, James C. Los dominados y el arte de la resistência: discursos ocultos. México: Ediciones Era, 2000. 55 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: EDUSP, 1996, p. 82.

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Dessa forma, considero que além de buscar definir uma identidade às populações

rurais, as representações presentes nos documentos e em algumas publicações da época,

especialmente àquelas que se referem mais diretamente a região sob análise, procuravam

também definir como as pessoas à quem elas se destinavam deveriam se comportar e,

particularmente, lembrá-las o lugar social a que pertenciam. Embora tal objetivo fique visível

na leitura das diferentes fontes, cabe ressaltar que isso não significava que estas

representações conseguiram atingir seu conteúdo pleno, pois foram questionadas por aqueles

a quem se destinavam. Elas não eram objeto de consenso, tanto por parte dos que “as

formulavam” como daqueles a quem referiam-se. Em outros termos, como parte da vida

social tais representações eram objeto de disputa e, portanto, não podem ser tomadas

isoladamente, mas devem ser analisadas como constituintes da e constituídas na figuração

social em que emergiram.

Tais representações encontram existência nos documentos por meio do uso de palavras

como colono, nacional, matuto, caipira. Termos complexos, de conteúdo muitas vezes

ambíguo e, em certos casos, contraditório e que têm a característica de carregarem tensões,

como é o caso do adjetivo colono, o qual faz referência a um indivíduo apresentado como um

trabalhador pacífico e morigerado, mas, dependendo da situação e, às vezes, do

comportamento daqueles a quem esta palavra buscava designar, o colono também é descrito

como uma pessoa portadora de um traço negativo, uma vez que é um estrangeiro que devia

ser assimilado para bem da Nação e da formação de uma almejada identidade nacional. Da

mesma forma, quando empregada, a palavra nacional servia para nominar indivíduos

caracterizados como vadios, mas que, em comparação ao colono, possuíam os valores do

patriotismo e carregavam a positividade de serem desbravadores natos, graças aos quais o

Brasil carrega sua enorme extensão territorial.

Embora seja difícil encontrar exemplos práticos da aplicação dessas diferenciações no

contexto da região serrana pelos grupos a quem elas faziam referência, é possível verificar

que o estabelecimento de fronteiras de relação eram amplamente utilizados. No município de

Cruz Alta, por exemplo, aconteceu um fato descritivo da constatação. Em janeiro de 1884, o

lavrador Manuel Corrêa de Moura – vulgo Maneco Biriba – envolve-se numa briga com o

curtidor João Hermes. Do conflito, resulta a morte do último. O motivo da desavença é um

encontro entre os dois, no qual Hermes dirigindo-se a Corrêa disse: “‘você prometeu acabar

com os alemães, eles aqui vão’, ao que respondeu Manuel Corrêa: ‘eu não prometi isso, mas

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sou homem’” 56. Em seguida, Manuel fez uso de um facão que trazia consigo e agrediu

Hermes que, por sua vez, lançou mão de uma pistola. Corrêa fez o mesmo e ambos

dispararam reciprocamente dois tiros, “sendo que o disparado por Corrêa acertando derrubou

por terra o mencionado Hermes”57.

O acontecimento é ilustrativo do quanto as relações sociais são complexas. Entre

outras coisas, mostra que pertencer a um grupo e se identificar com ele significa ser julgado e

julgar a partir dos padrões e valores que o grupo compartilha, embora não necessariamente

tais valores sejam dominantes em um contexto mais abrangente. Assim, quando Hermes lança

sua frase, ela soa, aos ouvidos de Corrêa, como uma provocação, a qual tem sentido ofensivo

dentro daquela determinada situação e, igualmente, foi possível na medida em que existia um

“outro”, no caso, os alemães. Em suma, quando Hermes dirige-se a Corrêa e cobra uma

promessa não cumprida, independentemente se ela tenha sido feita ou não, ele estava

desafiando seu interlocutor e infringindo um valor caro dentro daquela figuração social: o de

que o desafio pede uma resposta à altura e, invariavelmente, tal resposta é a ofensa física.

Além disso, a cobrança que Hermes faz a Corrêa sobre os alemães indica que existia uma

clivagem definindo e modelando a forma como se configuravam as relações sociais e,

também, um dos critérios de pertencimento e de identificação partilhado entre os habitantes

da região, bem como evidencia o quanto a presença de imigrantes naquele espaço era motivo

de insatisfação entre as populações que ali já residiam.

Exemplos dessas diferenciações podem ser facilmente encontrados em livros, artigos e

descrições produzidas na época. De uma maneira geral, as publicações do período – neste

caso refiro-me mais especificamente às obras que compõem o denominado pensamento social

brasileiro, no qual se inscrevem autores como Sílvio Romero, Oliveira Vianna, Paulo Prado,

Euclides da Cunha, Manuel Bonfim, Alberto Torres, Monteiro Lobato e outros –

preocuparam-se com aspectos vinculados a identidade nacional e tinham como centro de sua

atenção o “povo brasileiro”. Dessa preocupação e da tentativa de aplicar algumas teorias

comuns ao pensamento social da época – o racialismo, principalmente –, mostra Márcia

Naxara, nasceram oposições que são fundamentais para compreender o período e o

significado das representações veiculadas pelos pensadores de então:

a oposição civilização/barbárie, tomada como chave para compreensão da diferenciação entre os povos, levou à identificação de um segundo par daí

56 APERGS. Processos Crime 1.973. Cartório Civil Crime. Município de Cruz Alta, 1884. Maço 50. 57 Idem, ibidem.

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derivado, progresso/atraso que, por sua vez, conduziu a reflexões sobre uma terceira oposição, elite/povo. O povo brasileiro, visto por suas elites, aproximava-se do atraso e da barbárie, enquanto que o que se tinha em vista era alcançar o progresso e a civilização. Tal questionamento acabou levando a uma identificação do brasileiro pela ausência do que se esperava ele pudesse ser, ou seja, por aquilo que lhe faltava58.

Um exemplo do modo como esse tipo de interpretação foi aplicado é o livro

Populações Meridionais do Brasil59, de Oliveira Vianna, escrito em 1918. Nele, o autor

estabelece que no processo de formação do Brasil aturam dois grupos diferenciados: um deles

formado por “grupos familiares superiores”, cuja característica principal era o patriarcalismo

comum ao latifúndio. E um outro: a “família plebéia”, cujo principal traço era a sua

instabilidade proveniente da sua formação: “a mancebia, a ligação transitória, a poliandria

difusa”60. Este segundo grupo, de acordo com Vianna, compõem o “baixo povo dos campos”

ou “plebe rural” ou “baixo povo rural” é formado em sua maioria por mestiços. Eles também

são chamados de tabaréus, caipiras, matutos, mas tais termos são utilizados, de acordo com

Vianna, apenas pelos homens da cidade para troçar dos “homens de pura formação rural”, ou

seja, todos aqueles que vivem no interior, inclusive fazendeiros.

Para Vianna, o mestiço era um nômade, “liberto do trabalho rural, egresso dos

engenhos, mal fixo a terra, a sua instabilidade é evidente”61. Em conseqüência, transformava-

se facilmente no guerreiro, no sertanista, cuja existência interessa ao senhor rural, pois é esse

homem o responsável pela defesa de seus domínios. Da mesma forma, o crescente aumento

da população de mestiços exige a expansão do domínio territorial. Coube a eles no período

colonial, o papel de atuar nas bandeiras e serem os responsáveis pela incorporação de novos

territórios62. Convém ressaltar que essa idéia não era estranha nos escritos que tratam mais

diretamente sobre Rio Grande do Sul, publicados durante a Primeira República. Busquei

evidenciá-la ao usar como epígrafe deste tópico uma frase retirada do livro de memórias de

58 NAXARA, Márcia Regina Capelari. Estrangeiro em sua própria terra: representações do brasileiro, 1870/1920. São Paulo: Annablume, 1998, p. 18. 59 VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil: história, organização e psicologia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, vol. 1, 1938. 60 Idem, p. 45-46. 61 Idem, p. 80-82. 62 Outro pensador da época que também utiliza a idéia de que o brasileiro nato foi o verdadeiro responsável pela expansão territorial do Brasil foi o Conde de Afonso Celso. Em 1900, Afonso Castro publicou o livro Porque me ufano de meu país. Nesse texto, partindo de argumentos baseados em teorias raciais, o conde escrevia que os mestiços, identificados no livro com as palavras cabra, caboclo, mameluco e cafuzo “não prestam a serviços sedentários”. Contudo, eram exímios exploradores da riqueza pastoril, eram os vaqueiros sóbrios, saudáveis e desinteressados; os canoeiros e jangadeiros do norte capazes de peripécias nos rios mais caudalosos; os cearenses adaptáveis aos mais rudes climas; os caipiras independentes e fortes; os gaúchos aventureiros, audaciosos e astutos. Cf.: CELSO, Afonso. Porque me ufano de meu país. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1997.

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João Neves da Fontoura, um dos políticos rio-grandenses mais importantes no período.

Fontoura, além de ser eleito muitas vezes para os cargos de deputado estadual e federal

durante a Primeira República, ocupou em diferentes legislaturas o cargo de vice-presidente do

Estado e de intendente no município de Cachoeira do Sul e, no referido trecho de suas

memórias, deixa clara sua concepção de que se não fossem os mamelucos, ou seja, os

mestiços, o Rio Grande do Sul não seria Brasil63.

No caso da região serrana é possível verificar a existência de interpretações

semelhantes a realizada por Oliveira Vianna e nelas também está presente o esforço de

“identificação do brasileiro pela ausência”, de que trata Naxara. Evaristo de Afonso Castro,

por exemplo, em sua Notícia descritiva64 publicada em Cruz Alta em 1887, escreve que, em

geral, o “povo” da região era composto de indivíduos “indolentes e extraordinariamente

preguiçosos”. Em contrapartida, apresenta a “classe comercial” como exceção, pois era “forte,

ativa e moralizada, gozando de crédito e conceito nas principais praças da província”65. A

ação de qualificar “o baixo povo rural” – para continuar usando o termo cunhado por Vianna

– como preguiçoso, além de ser um dispositivo comum à época, era também argumento muito

usado para justificar a entrada de imigrantes europeus no Brasil66. Constatação que pode ser

comprovada na introdução do livro de Afonso Castro, onde o autor registra a colonização da

região de matas como o “almejado fim” do seu texto.

O significado social das observações realizadas por Castro pode ser lido como a

tentativa de instituir a um outro e a si uma identidade e, ao mesmo tempo, também impor uma

essência social. O que, a seu turno, é o mesmo que “impor um direito de ser que é também um

dever ser (ou um dever de ser). É fazer ver a alguém o que ele é e, ao mesmo tempo, fazer-lhe

ver que tem de se comportar em função de tal identidade”67. Assim, acreditar que a “classe

comercial” da região era composta apenas de pessoas moralizadas, ativas e que da população

em geral “entre 100 homens válidos, 80 são vadios, a ponto de que nem a fome e a nudez os

63 FONTOURA, João Neves da. Memórias: Borges de Medeiros e seu tempo. Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo: Editora Globo, vol. 1, 1958, p. 34. 64 CASTRO, Evaristo de Afonso. Notícia descritiva da região serrana na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul compreendendo os municípios de Cruz Alta, São Martinho, Palmeira, Passo Fundo, Santo Ângelo, São Luiz, Boqueirão, São Borja, São Francisco de Assis, São Vicente e Itaqui. Cruz Alta: Tipografia do Comercial, 1887. 65 Idem, p. 281. 66 Cf.: KOVARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1987. 67 Pierre Bourdieu. Economia das trocas lingüísticas. Idem, op. cit., p. 100.

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obriga ao trabalho, e destes 80 vadios, 40 pelos menos são ladrões”68 é aceitar o argumento de

apenas uma das partes.

A constatação de que os habitantes da região, em sua generalidade, eram destituídos

de valores de trabalho e que estavam na base dos argumentos que defendiam as políticas de

colonização com imigrantes redundava na elaboração de um tipo ideal de homem que deveria

ser guiado pelo trabalho, pela moralidade e por saber respeitar o seu lugar dentro das

estruturas sociais então existentes. Tal homem muitas vezes é personificado na figura do

colono imigrante, o qual deveria preencher as incompletudes comuns ao brasileiro nato69.

Entretanto, muitos imigrantes, devido a circunstâncias diversas, não deram conta de dar vida a

tal personagem, assim, foram objeto de críticas. Desse modo, os imigrantes que não eram

pacíficos, morigerados e trabalhadores acabavam sendo chamados de acaboclados70 ou

identificados como maus colonos ou intrusos. O habitante ideal para região, segundo Afonso

Castro, deveria se enquadrar nos seguintes termos:

a liberdade, bem definida e compreendida, tem como todas as coisas um limite. Ninguém pode consumir sem produzir. Quem trabalha para si e sua família não faz mais do que cumprir um dever que lhe impõem a natureza e a sociedade; e para os refratários ao trabalho deve o governo ter leis e meios que os obriguem. Isto não é tentar contra a liberdade do cidadão: pelo contrário, é concorrer para que ele possa manter a sua liberdade; porque não há maior escravidão que arrastar a miséria, filha da ociosidade, dependendo assim de todos e de tudo71.

A ação de apontar defeitos, que na maioria das vezes se resumem a sublinhar a falta de

aptidão para o trabalho dos “brasileiros natos” ou a dificuldade de assimilação dos

estrangeiros e, logo em seguida, evidenciar uma qualidade é muito comum nos documentos.

Dessa forma, as representações existentes sobre as populações rurais, seja imigrante ou

“brasileira”, cabe assinalar novamente, são marcadas pela ambigüidade de seu conteúdo.

Conseqüentemente, os nacionais são vadios, mas são “brasileiros” por excelência e não

representam perigo em termos do seu patriotismo e defesa da Nação. Os imigrantes 68 NORONHA, Francisco de Assis Pereira. Juízo dado pelo Ilmo. Sr. Dr. Francisco de Assis Pereira Noronha sobre o presente livro, p. IX. In.: Evaristo de Afonso Castro. Idem, op. cit., p.. I-XXVII. 69 Thomas Skidmore chama atenção para esse modo como os “brasileiros natos” eram tratados e evidencia que, no início do século XX, aos olhos da elite nacional, esse grupo era adequado apenas para exercer tarefas pesadas, cabendo ao imigrante europeu a realização de trabalhos “altamente organizados” como plantar e colher café. Cf.: SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 156. 70 “Acaboclar-se” é uma noção que, na literatura sobre o mundo agrário brasileiro, segundo Giralda Seyferth, conceitualmente, indica a passagem de uma prática agrícola considerada racional para uma agricultura extensiva, cujo traço é o esgotamento da terra rapidamente. Fato que leva à procura sistemática e incorporação de novas áreas, as quais, por sua vez, em pouco tempo são abandonadas. Cf.: SEYFERTH, Giralda. Identidade camponesa e identidade étnica (um estudo de caso). Anuário Antropológico/91. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993. 71 Evaristo de Afonso Castro. Idem, op. cit., p. 290.

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comparativamente aos nacionais são trabalhadores e civilizados – ou pelo menos deveriam

ser – no entanto, são estrangeiros e a sua assimilação devia ser objeto de atenção constante

por parte do governo. Quanto aos negros, as referências, principalmente nos documentos

produzidos pelo Estado, são mais escassas e se resumem a retratá-los como sujeitos aptos a

prática de todos os tipos de crimes. Os índios geralmente são tratados com o par

fetichismo/civilização72, sendo definidos como crianças que deviam ser tuteladas.

No ano de 1902, foi publicado um dos principais textos a partir do qual o Brasil rural e

seus habitantes passaram ao longo da história serem identificados e nomeados, trata-se de Os

Sertões, de Euclides da Cunha73. Este livro, seu autor e, principalmente o que, desde sua

publicação até os dias de hoje, foi escrito sobre os mesmos, foram muito importantes no

processo de fundamentação das representações existentes a respeito dos habitantes das áreas

de fronteira agrária. Assim constituíram-se e foram constituídos em fontes a partir das quais

esta população e o local onde ela vivia foram ao longo da história pensados, identificados,

representados e, por que não, elaborados74. Entretanto, como aponta Regina Abreu, há vários

modos de ler Os Sertões, não obstante, a leitura que predominou foi a que aponta o sertão e o

sertanejo como os “cernes da nacionalidade” brasileira em contraposição ao litoral e seus

habitantes75.

A definição que Euclides da Cunha faz do sertanejo não é diferente da que os autores

de época já citados faziam, antes está na origem de algumas delas. Para o autor, o sertanejo “é

desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo reflete no aspecto a fealdade típica

dos fracos.” (...). “É o homem permanentemente fatigado” 76, isto é, um “preguiçoso” que não

trabalha além da quantidade necessária para subsistir, mas que dentro do seu habitat natural –

o sertão – transmuta-se. Por conseguinte, basta o aparecimento de uma situação que exija sua

energia, como foram as investidas do exército nacional ao arraial de Canudos, para ele

transfigurar-se e “da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto

72 Considerações a respeito das opiniões existentes sobre os negros e os índios foram mais profundamente desenvolvidas no capítulo seguinte, no qual, inclusive, volto a tratar das representações existentes e do papel desempenhado pelos imigrantes e os nacionais no processo de povoamento da região serrana. 73 CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2006. 74 Para um maior aprofundamento sobre este tema, ver: ABREU, Regina. O enigma de os sertões. Rio de Janeiro: Funarte: Rocco, 1998. 75 Nessa perspectiva, Abreu analisa o papel que intelectuais como Sílvio Romero e José Veríssimo, que devido à origem interiorana e identificação com os temas abordados por Cunha, exerceram na consagração do livro. Também o quanto, a partir da ditadura Vargas, o Estado e sua política de marcha para o Oeste tomou Os Sertões como referência de suas ações e, dessa forma, ajudou no processo de consagração do livro, do autor e de uma leitura particular dos mesmos. 76 Euclides da Cunha. Idem, op. cit., p. 118-119.

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dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e

agilidade extraordinárias”77.

“Estrangeiro em sua própria terra”, assim Euclides da Cunha define o sertanejo, cujo

diferencial em relação ao homem litorâneo era o fato de ele viver em outro tempo, pois

existiam três séculos separando-os. Outra diferença era que os habitantes do sertão,

diferentemente dos homens litorâneos, não haviam sido contaminados pela Europa e os

costumes europeus. Em conseqüência, eram os únicos que portavam valores verdadeiramente

brasileiros e, por conseguinte, o Brasil só poderia ser compreendido e construído como nação

com identidade própria quando entendesse o sertão e os sertanejos. Entretanto, a visão do

sertanejo “como ‘cerne da nacionalidade’ era paradoxal ao se levar em conta que,

paralelamente, Euclides estava imbuído das teorias racistas que encontravam na mestiçagem

um obstáculo para o acesso da sociedade brasileira à civilização”78. Assim, mesmo que na

obra de Euclides da Cunha haja um esforço de valorização do sertão e de seu habitante típico,

o autor continua pensando essas pessoas como portadoras de “defeitos” e de certos

comportamentos que convinha modificar.

Contudo, modificar tais comportamentos, civilizar o sertanejo, também era perigoso,

uma vez que a realização dessa “necessidade” também poderia significar a perda daquelas

características que o diferenciavam dos litorâneos. Todavia, diante do problema, Euclides da

Cunha não via alternativa senão a civilização, à qual “estamos condenados”, “ou progredimos,

ou desaparecemos”. O problema era como a civilização chegaria ao sertão, pois, argumentava

o autor, depois de enjeitar os sertanejos por três séculos, procurar “levá-los para os

deslumbramentos da nossa idade dentro de um quadrado de baionetas, mostrando-lhes o

brilho da civilização através do clarão de descargas”79, como acontecera no caso de Canudos,

não era a melhor opção. Em outros termos, para Euclides da Cunha, o sertão era um espaço

que deveria ser incorporado, porém a incorporação deveria ser pensada e feita a partir de uma

valorização daquilo que o Brasil possuía de mais original: sua população do interior.

Nísia Trindade em pesquisa que realizou sobre os significados do sertão no contexto

da Primeira República, destaca como característica da época a existência de um “movimento

de valorização do sertão, seja enquanto espaço a ser incorporado ao esforço civilizatório das

elites políticas do país, seja como referência da autenticidade nacional”80. O livro de Euclides

77 Idem, ibidem 78 Regina Abreu. Idem, op. cit., p. 142. 79 Euclides da Cunha. Idem, op. cit., p. 350. 80 LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representação geográfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: REVAN, IUPERJ, UCAM, 1999, p. 65.

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da Cunha ocupou papel destacado na difusão desse ideal, visto que em torno dele se

aglutinaram os principais intelectuais da época, tais como Sílvio Romero, José Verissimo,

Coelho Neto, Araripe Junior e outros81. Intelectuais que tinham como temática principal de

suas produções o Brasil do interior e encontraram em Os Sertões um ponto de referência para

suas ponderações. Assim, assinala Regina Abreu, contribuíram de forma direta no processo de

transformação desse livro em um clássico para pensar o Brasil. Além disso, ajudaram a tornar

sertão e sertanejo, que no início do século XX eram categorias de sentido amplo, em palavras

que passaram a ser usadas para se referir a uma população e a “uma região geográfica

específica, região árida e desértica, como a que Euclides da Cunha pisou enquanto

correspondente de guerra”82. Até a qual, nas palavras do próprio Euclides da Cunha, “a

História não iria”, pois no caso de Canudos, existia “muito apropriadamente, em roda, uma

cercadura de montanhas. Era um parêntese; era um hiato; era um vácuo. Não existia.

Transposto aquele cordão de serras, ninguém mais pecava”83.

Em linhas gerais, essas são algumas das representações existentes na época sobre as

populações rurais brasileiras. Acerca dos “brasileiros natos”, cabe assinalar ainda que nos

relatórios da Diretoria de Terras e Colonização e nas mensagens dos Presidentes de Estado

enviadas à Assembléia dos Representantes eles são identificados com a palavra nacionais. É

comum a utilização desse termo no período e ele refere-se especificamente a uma população

pobre, população

(mal)nascida, em geral mestiça, pertencente ou egressa da escravidão. Os que observaram nessa população um abandono político e social tiveram a percepção de seu confinamento, do seu isolamento e do seu esquecimento dentro de sua própria terra e história. A partir dessa percepção, representaram-no através de um imaginário que exprimia, simultaneamente, uma sensibilidade, uma crítica e um lamento frente a tal situação84.

No entanto, como busquei demonstrar, nem todos tomavam como ponto referencial de

suas observações o problema social e político, ou o isolamento dos nacionais, mas utilizaram

como base para suas ponderações a idéia de raça85. Na maioria dos casos, na perspectiva de

tentar compreender o que era o Brasil e, mais precisamente, o “povo brasileiro”, o que temos

é a constituição de explicações formuladas a partir de uma mistura de todos esses elementos,

81 Para conhecer a importância destes autores na consagração de Euclides da Cunha e seu livro Os Sertões como clássico da literatura nacional, ver: Regina Abreu. Idem, op. cit. 82 Idem, p. 193. 83 Euclides da Cunha. Idem, op. cit., p. 547. 84 Márcia Naxara. Idem, op. cit., p. 15. 85 No próximo capítulo aprofundo as discussões sobre a “idéia de raça”, sua “origem” e significados no contexto da virada do século XIX para o XX.

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sendo que, em alguns casos, a centralidade das explicações está na questão racial e, em outros,

no social ou no político. Dessa forma, as representações aqui discutidas devem ser observadas

a partir das ambigüidades, das adaptações teóricas e das oposições provenientes da aplicação

de um modo particular de interpretação, característico do período, para pensar e, ao mesmo

tempo, definir a sociedade brasileira e sua identidade86.

Mediante tais constatações cabe ainda perguntar como tais representações chegavam e

encontravam existência na região serrana? Uma resposta possível a pergunta pode ser

formulada a partir da idéia de que a compreensão profunda do modo como se constitui a vida

social dos grupos rurais depende de analisá-la como parte da Sociedade da qual eles fazem

parte. Em outros termos, tais grupos vivem em um contato constante com a sociedade que os

envolve e o funcionamento das relações que caracterizam sua sociabilidade específica

depende desse contato. A intermediação entre esses dois mundos, na maioria dos casos, é

responsabilidade de algumas pessoas, as quais são reconhecidas pelos próprios envolvidos

como responsáveis por fazer a mediação: intelectuais, padres, professores, funcionários do

Estado, políticos, etc...

A sociabilidade característica dos grupos rurais, dessa forma, é uma expressão local da

Sociedade da qual eles fazem parte. Robert Redfield define essa “cultura maior”, ou seja,

aquela que diz respeito a uma determinada “civilização” como Great Tradition enquanto que

a “cultura” dos grupos rurais conforma uma Little Tradition87. Desde este ponto de vista,

pensar a sociabilidade dos grupos rurais exige, entre outras coisas, analisar o modo como se

desenvolvem as suas relações com a sociedade envolvente, já que “a cultura das comunidades

camponesas não é autônoma. Ela é um aspecto ou uma dimensão da civilização da qual elas

fazem parte”88. Não é a passividade a característica preponderante nos contatos mantidos

entre esses dois universos, pois existem espaços para heteronímias e acontecem diálogos

sucessivos entre as partes envolvidas na relação, logo, os seus resultados podem ser, ou

melhor, são imprevisíveis. Assim, parece ser bastante frutífero interpretar as representações

sobre a população rural brasileira aqui discutidas como expressão disso que Redfield chama

86 Nesta perspectiva, Márcia Naxara, escreve que no período “o Brasil era visto como um país despossuído de povo, ao qual faltava identidade para constituir e formar uma nação moderna. Tinha uma população mestiça, sem características próprias, que fossem definidas e homogêneas – não possuía face, não possuía identidade. De um lado, um caudatário de povos e raças diferentes que não formavam um corpo social; de outro, uma elite que não se identificava com as tradições de seu povo, distinguindo-se, e não o reconhecendo como tal”. Cf.: Márcia Naxara. Idem, op. cit., p. 39. 87 Cf.: REDFIELD, Robert. The social organization of tradition. In.: POTTER, Jack M.; DIAZ, May N.; FOSTER, George M. (Orges.). Peasant society: a reader. Boston: Little, Brown and Company, 1967, p. 25-34. 88 Idem, p. 25.

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de Great Tradition e, por assim ser, elas têm influência e são conhecidas, por vezes,

reconhecidas por aquelas pessoas que vivem dentro dos quadros da Little Tradition.

No contexto da região serrana essa característica é visível, por exemplo, no caso da

religião e no modo como os sacerdotes interpretavam sua prática entre os habitantes daquele

espaço. Em carta escrita pelo padre capuchinho Alfredo de Saint-Jean d’Arves, datada de

1903 e enviada a seus superiores na França, ao tratar da religiosidade local ele escreve:

topamos também com práticas supersticiosas intangíveis para alguns devotos. Experimente dizer-lhes que não se tem certeza de que as ervas colhidas e os ovos postos na poedeira na Sexta-feira Santa não têm propriedades medicinais de eficácia infalível; que certas fórmulas cabalísticas não têm privilégio de afastar ratos e as formigas; que a estátua ou imagem de um santo roubada não é mais milagrosa que outra; que é inútil batizar a sepultura de uma criança morta sem batismo; que se abstendo desta cerimônia não se expõem a ver a criança voltar sete anos mais tarde, para bater à porta e perturbar a paz do lar. Estas palavras são escutadas com desconfiança, e consideram-nos como um sábio orgulhoso que zomba da fé simples, mas com fundamento, do povo humilde89.

Nesse caso, o padre Alfredo é um representante da “religião católica oficial” – Great

Tradition – e os devotos que viviam na região e expressavam uma religiosidade particular

representam a leitura própria que eles faziam dessa religião – Little Tradition. O exemplo

também demonstra outros aspectos para os quais Redfield chama atenção em suas análises,

principalmente o da existência de uma hierarquia, reconhecida pelos participantes da relação,

entre o saber oficial do sacerdote e aquilo que era uma vivência local desse saber. Neste

sentido, embora os praticantes dos atos contestados pelo padre Alfredo o considerassem um

“sábio orgulhoso que zomba da fé simples” ainda assim o reconheciam enquanto sacerdote,

portanto, aquele que tinha autoridade superior em assuntos de religião.

Como assinalei acima, a idéia dos nacionais como pouco aptos para o trabalho e outras

mais, foi muito utilizada para justificar a vinda de imigrantes europeus e sua instalação em

espaços que há tempos eram por eles ocupados, bem como por negros e índios. Tinha o

sentido de definir lugares sociais e exigir comportamentos condizentes com as representações

89 D’APREMONT, Bernardin; GILLONAY, Bruno de. Comunidades indígenas, brasileiras, polonesas e italianas no Rio Grande do Sul (1896-1915). Porto Alegre: EST, Caxias do Sul: UCS, 1976, p. 55. Outro exemplo de como as práticas religiosas locais eram alvo de crítica por parte dos representantes da “religião oficial” (Great Tadition) é fornecido pelo padre Antoni Cuber, o qual escreve em suas memórias que “o povo brasileiro é de bom coração: conserva facilmente vestígios da fé sagrada e costumes de seus antepassados; a falta, porém, de sacerdotes, reduziu-lhe ao mínimo seus sentimentos religiosos. Existem brasileiros adultos que não conhecem as orações, os mandamentos de Deus e, muito menos, os da igreja. Há muitos adultos, residentes no campo, que jamais foram batizados, pois nunca viram um padre. Em Ijuí, ocorreu um fato fora de comum: dois filhos foram batizados e depois os pais. Onde não há fé, florescem as superstições de mãos dadas com a incredulidade”. Cf.: CUBER, Antoni. Nas margens do Uruguai. Ijuí: UNIJUI, 2002, p. 26.

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atribuídas. Ademais, elas eram objeto de contestação, a qual também pode ser lida como parte

desse processo de intermediação existente entre a Great Tradition e a Little Tradition de que

trata Redfield. Nos processos crime analisados encontrei outros exemplos que demonstram

como isso acontecia no universo da região serrana: em 1890, no município de Palmeira das

Missões, ocorreu uma desavença entre Rodrigo Xavier dos Santos (54 anos de idade, solteiro,

natural da Província de São Paulo, residente no 4º distrito do município de Palmeira das

Missões, lavrador) e Simplório Domingues de Oliveira (27 anos de idade, casado, lavrador,

analfabeto, nascido em Campo Novo – distrito do município de Passo Fundo). Consta na

queixa crime que em 27 de outubro de 1888, Simplório de Oliveira, armado de uma

espingarda de dois canos tentou assassinar ao “pacifico e honrado cidadão Rodrigo Xavier dos

Santos”90, desfechando-lhe um tiro. Em seu depoimento Simplório narra o motivo que o levou

a tentar contra vida de Rodrigo: afirma que era amigo do ofendido, o qual lhe havia proposto

mudar de Campo Novo para Serra do Paiol em Palmeira das Missões onde Rodrigo residia e

ali garantiria “a proteção que ele, réu, precisasse”.

Simplório relata que “confiando nesta promessa fora trabalhar na serra e que Rodrigo

em vez de o proteger, como tinha prometido, procurou desacreditá-lo chamando-o de vadio”91

e que esse foi o único motivo que o levou a cometer o crime. Algumas testemunhas do fato

são arroladas, prestam seus depoimentos e confirmam que o motivo da briga fora porque

Rodrigo havia chamado Simplório de vadio: “se deu o tiro foi de raiva por Rodrigo tê-lo

chamado de vadio, por ter o réu mandado buscar em casa de Rodrigo por sua mulher cinco

mãos de milho que ali tinha e que depois que dera o tiro em Rodrigo tinha se arrependido”92.

Essa é a versão do fato segundo a narrativa de uma das testemunhas de nome Belisário José

Pereira (45 anos de idade, estafeta do correio, casado e morador no 2º distrito do município de

Palmeira, natural do Rio Grande do Sul). O caso vai a julgamento em 25 de novembro de

1891 e Simplório foi absolvido.

Os processos crime em sua generalidade demonstram que carregar a pecha de “vadio”

ou ser chamado de “vadio” era motivo de conflito e, além disso, quando esse qualificativo é

confirmado pelas testemunhas e as provas do envolvimento do réu no crime sob julgamento

são contundentes invariavelmente ele é rigorosamente condenado. Também, é muito comum

nos processos crime as testemunhas serem perguntadas a respeito dos costumes dos réus e, na

generalidade a pergunta é feita nos seguintes termos: “Perguntado se sabe se os réus são

90 APERGS. Processos Crime 31. Cartório Civil Crime. Município de Palmeira das Missões, 1890. Maço 03. 91 Idem, ibidem. 92 Idem.

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trabalhadores e de bons costumes ou se pelo contrário são vadios e de maus costumes?”93 As

respostas variam de acordo com cada caso e, na situação específica de onde a pergunta foi

retirada a testemunha – Pedro Joaquim da Cruz (48 anos de idade, casado, criador, morador

do 1º distrito do município de Palmeira e natural deste estado) – responde que “Antônio

Bernardo [um dos acusados no processo] sabe que é vadio e de maus costumes, e outro [José

Ferreira da Rosa] ignora por não conhecer”94. Trata-se de um processo crime datado de 1889

em que Antônio Bernardo dos Santos (34 anos de idade, solteiro, lavrador, brasileiro, nascido

em Santo Ângelo, analfabeto) e José Ferreira (não qualificado no processo) são acusados de

terem furtado dois bois de propriedade de Elias Cortes e de dar dois tiros em Pedro Joaquim

da Cruz quando este tentou prendê-los pelo furto. Todas as testemunhas arroladas afirmam

que os réus eram “vadios e de maus costumes” e, ao fim do processo, Antônio é condenado a

4 anos de prisão, sendo que José achava-se foragido.

Os dois processos crime referem-se a diferentes momentos em que a idéia da

vadiagem podia ser acionada. No primeiro, trata-se do emprego do adjetivo vadio dentro

daquela sociabilidade específica. Ou melhor, é um exemplo do uso local da palavra, uma vez

que são duas pessoas pertencentes ao mesmo grupo social, que inicialmente se definem como

“amigos”, e entram em conflito a partir do momento que uma das partes se refere a outra

ofensivamente e lhe dá o qualificativo de vadio. Assim, não é o fato de Rodrigo ter chamado

Simplório de vadio que leva o caso a julgamento, mas sim porque, diante da ofensa,

Simplório desfechou um tiro de espingarda no seu ofensor. Ou seja, na região serrana, taxar

alguém de vadio era atitude extremamente ofensiva. Circunstância demonstrativa de que se

esse qualificativo era largamente usado e fazia parte das representações dominantes a respeito

dos nacionais, isso não quer dizer que tal representação era aceita tranqüilamente pelos

próprios. Ademais, é preciso assinalar que aqueles que eram adeptos da idéia de que os

nacionais eram vadios muito provavelmente não a defenderiam tão convictamente diante de

um nacional.

No segundo processo crime, trata-se do emprego “oficial” dessa representação, o que,

em parte, garante a efetividade de seu conteúdo, já que a pergunta é realizada por um

representante do Estado, portanto, é manipulada por um elemento externo a relação que deu

origem ao processo crime e isso acontece em um momento específico: no tribunal –

provavelmente fora desse espaço o emprego da palavra seria objeto de maior controle, visto

que a conseqüência da sua utilização poderia ser semelhante ao que aconteceu entre Rodrigo e

93 APERGS. Processos Crime 28. Cartório Civil Crime. Município de Palmeira das Missões, 1889. Maço 03. 94 Idem, ibidem.

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Simplório. A situação também demonstra que essa representação tem a força de definir um

lugar social ou, no mínimo um não-lugar, pois ser vadio é comportamento que está associado

a ter maus costumes e, no caso em particular, ter o mau costume da vadiagem está conectado

ao fato de os acusados terem roubado dois bois e atirado em outro indivíduo que tentava punir

ou regular esse mau costume. Enfim, um exemplo efetivo de como o conteúdo pejorativo

comum a representação do nacional como um vadio era empregada e tinha um papel

específico, visto que o suposto vadio Antônio Bernardo foi condenado a 4 anos de prisão,

entre outras coisas, por sua vadiagem que o levava preferir o roubo e a violência ao trabalho.

Agora que conhecemos algumas das representações existentes na época a respeito das

populações rurais, bem como alguns de seus conteúdos, cabe conhecer melhor o papel do

Estado no processo de construção, significação e ressignificação das mesmas. Dessa forma, é

importante assinalar novamente a ação desempenhada pelo Estado na gerência do

povoamento da região serrana, principalmente da colonização e seu esforço na perspectiva de

estabelecer uma “regularidade” ao problema fundiário.

2.4 ESTADO, GOVERNO E SOCIEDADE: OU SOBRE AQUELES QUE BUSCAVAM “CONSERVAR

MELHORANDO”

Das leituras possíveis a respeito do Estado, sua constituição e funcionamento, aqui

optei por aquelas que, na análise, permitem priorizar os aspectos relacionais característicos da

instituição, seus vínculos e origens sociais95. Assim, não aprofundarei as discussões sobre as

múltiplas dimensões das teorias de Estado, mas buscarei entendê-lo como uma relação social.

Como ponderei no tópico anterior, uma das prioridades será pensar o Estado enquanto

entidade responsável por elaborar representações. Dessa forma, ancorado em Émile

Durkheim, considero que o Estado é

um grupo de funcionários sui generis, no seio do qual se elaboram representações e volições que envolvem a coletividade, embora não sejam obra da coletividade. Não é correto dizer que o Estado encarna a consciência coletiva, pois esta o transborda por todos os lados. É em grande parte difusa; a cada instante há uma infinidade de sentimentos sociais, de estados sociais de todo tipo de que o Estado só percebe o eco enfraquecido. Ele só é a sede de uma consciência especial, restrita, porém mais elevada, mais clara, que tem de si mesma um sentimento mais vivo. Nada obscuro e vago como as

95 Para conhecer algumas das possíveis interpretações e pontos de vista existentes sobre o Estado, suas origens e funções sociais, ler: BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

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representações coletivas que se espalham em todas as sociedades: mitos, lendas religiosas ou morais, etc. Não sabemos de onde vêm, nem para onde vão; não as deliberamos. As representações que vêm do Estado são sempre mais conscientes de si mesmas, de suas causas e seus objetivos. (...). Podemos então dizer em resumo: o Estado é um órgão especial encarregado de elaborar certas representações que valem para coletividade. Essas representações distinguem-se das outras representações coletivas por seu maior grau de consciência e reflexão96.

Tomar o Estado como “órgão especial encarregado de elaborar certas representações”,

nos limites desta pesquisa, ajuda a compreender a eficácia e o sentido das representações aqui

analisadas, uma vez que elas encontravam espaço de discussão dentro do Estado e, em última

instância, o seu conteúdo era objeto de reflexão por parte do grupo de funcionários sui generis

que na época administrava o Estado. Nestes termos, a representação do nacional como um

indivíduo indolente, nômade e apático que deveria ser transformado em uma pessoa fixa a um

espaço, trabalhadora e morigerada, como veremos no próximo capítulo, foi tema de

constante discussão e inclusive objeto de políticas públicas, a ponto de ser criada, em 1910,

uma instituição, cuja tarefa era atuar no sentido da transformação: trata-se do Serviço de

Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN).

Embora uma leitura apressada da concepção de Durkheim possa levar a conclusão de

que aquelas representações das quais o Estado “só percebe o eco enfraquecido” sejam menos

complexas e/ou “piores” do que aquelas que partem do Estado é importante assinalar que em

nenhum momento o autor trabalha com tais categorias. Em outras palavras, não há hierarquia

de representações. Durkheim acertadamente destaca que as representações que encontram

espaço dentro do Estado ou que são obra dele têm a diferença de possuírem maior consciência

de suas causas e objetivos, visto que são objetos de um “concerto menos subterrâneo” do que

as representações coletivas. Assim, deve-se ter em conta que “o Estado, pelo menos em geral,

não pensa por pensar, para construir sistema de doutrinas, mas para dirigir a conduta

coletiva”97. Logo, quando ao longo das Mensagens dos Presidentes do Estado e dos Relatórios

da DTC seus responsáveis escreviam que um dos seus principais interesses era transformar os

nacionais nos “cidadãos operosos do amanhã” partiam de uma concepção de que essas

pessoas eram “inferiores em capacidade industrial”, mas a partir do desenvolvimento de uma

série de políticas e medidas era possível transformá-los. Isto é, partiam de uma representação

do nacional como produtivamente incapaz e buscavam dar vida a uma outra representação: a

do cidadão produtivo, apto para ajudar no processo de desenvolvimento do estado.

96 Émile Durkheim. Idem, op. cit., p. 70. 97 Idem, p. 71-72.

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Ainda segundo Durkheim, a execução do conteúdo comum as representações

formuladas pelo Estado é obra da máquina administrativa: “o conselho de ministros, o

príncipe, o Parlamento, não agem por si mesmos; eles dão ordens para que se aja. Organizam

idéias, sentimentos, resoluções e transmitem essas resoluções a outros órgãos que as

executam; mas seu papel limita-se a isso”98. É nesse caminho, entre a elaboração/discussão

das representações e sua execução que as mudanças podem acontecer. Também é importante

sublinhar que o conteúdo comum as representações concertadas pelo Estado não é

hermeticamente fechado, pelo contrário, a sua efetivação depende de como se dá a interação

entre governantes e governados, pois “em qualquer sociedade estratificada” – e a sociedade

que analiso é estratificada –, “existe um conjunto de limites sobre aquilo que tanto os

governantes como os súditos, os grupos dominantes e os subordinados, podem fazer. Há

também um conjunto de obrigações mútuas que mantém unidos os dois grupos”99. Para

melhor compreender como isso funciona na prática é necessário antes conhecer, em termos

estruturais, como estava organizado o Estado na época.

Nesse sentido, sublinha Max Weber, uma das principais características do Estado é o

fato de ele conter o monopólio da violência. De acordo com o autor, o Estado é uma

comunidade humana que, no interior de um determinado território, reclama para si o

monopólio da coação física legítima. Em conseqüência, as demais pessoas e associações

existentes dentro desse território só podem fazer uso da violência de forma legítima à medida

que o Estado permitir. O Estado, portanto, é uma relação de domínio de homens sobre

homens baseada na coação legítima100. Contudo, existem limites definindo aquilo que grupos

dominantes e dominados podem fazer: a dominação realizada pelo Estado está

proporcionalmente vinculada a capacidade que ele tem de tornar legítimas suas ações diante

do conjunto dos cidadãos e depende do reconhecimento, por parte dos súditos, da

autoridade101 que provém do Estado. O Estado pode conseguir tal submissão pelo uso da

violência legítima. Entretanto, como estamos tratando de ações e relações sociais, os

resultados do jogo político do qual se constitui um aspecto muito importante do Estado – o

Governo102 – pode influenciar e definir no modo como essa violência é empregada. Em outros

98 Idem, p. 71. 99 MOORE Jr, Barrington. Injustiça: as bases sociais da obediência e da revolta. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 39. 100 Max Weber. Idem, op. cit., p. 1056-1057. 101 Para compreender o sentido que emprego à palavra autoridade, ler artigo escrito por Hannah Arendt, cujo título é Que é autoridade. Este artigo encontra-se no seguinte livro: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001, p. 127-188. 102 Por governo deve-se entender “o complexo dos órgãos que institucionalmente têm o exercício do poder. Nesse sentido, o Governo constitui um aspecto do Estado. Na verdade, entre as instituições estatais que

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termos, as conseqüências das ações governamentais podem ser diferentes dos objetivos

almejados e, dessa forma, os propósitos de tais ações, por mais imprevisíveis que sejam seus

resultados, devem ser apresentados de maneira que, aos súditos, eles pareçam ou realmente

sejam legítimos. Assim, em certa medida, a legitimidade da violência empregada pelo Estado

para fundamentar seu poder e domínio é proporcional às suas funções sociais e àquilo que os

súditos esperam do Governo.

O Estado deve ser pensado, portanto, a partir das táticas de governo desenvolvidas

para legitimá-lo socialmente, bem como quanto a legitimidade do governo está vinculada à

ação e reação dos governados. Em outros termos, para funcionar, o governo deve ser justo e

os conceitos de justiça e injustiça dependem de fatores sociais e culturais que podem variar no

tempo e de sociedade para sociedade. Porém, em qualquer tipo de organização social,

sublinha Barrington Moore, “para ser aceitável, a injustiça tem evidentemente de parecer

justiça”103. Muitas vezes, a tarefa de dar ao injusto um tom de justo constitui um dos

principais papéis do Governo, e a origem dessa tarefa encontra-se na necessidade que o

Estado tem de, via Governo, ser considerado legítimo por seus súditos, senão por todos, pelo

menos por uma parte deles.

Nesses termos, as representações de mundo social, formuladas pelos funcionários do

Estado, longe de estarem totalmente desvinculadas da sociedade e dos indivíduos que a

compõem, buscam obter a adesão do maior número possível de pessoas para garantir sua

eficácia social. Dar esse passo é fundamental para que tais funcionários continuem no

controle do Estado, visto que ele, como lugar de poder, é alvo de disputa. Por conseguinte, os

funcionários sui generis de que trata Durkheim devem ser “profissionais capazes de

manipular ao mesmo tempo ideais e grupos, de produzir ideais capazes de produzir grupos

manipulando ideais de maneira a garantir-lhes a adesão de um grupo”104. Ou seja, como

pertencentes ao campo político, que sofre pressões tanto internas quanto externas, os

funcionários de Estado necessitam que seus ideais sejam reconhecidos interna e externamente

a seu campo. Por sua vez, para triunfarem nas lutas internas características do campo político,

tais profissionais têm de fazer apelos a “forças que não são totalmente internas”, o que, por

exemplo, “não se passa no campo científico ou artístico em que a invocação dos profanos

organizam a política da sociedade e que, em seu conjunto, constituem o que habitualmente é definido como regime político as que têm a missão de exprimir a orientação política do Estado são os órgãos do Governo”. Cf.: Norberto Bobbio, et. al. Dicionário de Política. Idem, op. cit., p. 553. 103 Barrington Moore Jr. Idem, op. cit., p. 89. 104 Pierre Bourdieu. A representação política. Elementos para uma teoria do campo político. In.: ___. O poder simbólico. Idem, op. cit, p. 175.

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desacredita”105. Em outros termos, administrar o Estado é uma tarefa política e, segundo

Bourdieu,

em política, ‘dizer é fazer’, quer dizer, fazer crer que se pode fazer o que se diz e, em particular, dar a conhecer e fazer reconhecer os princípios de di-visão do mundo social, as palavras de ordem que produzem a sua própria verificação ao produzirem grupos e, deste modo, uma ordem social106 (Grifos do autor).

Tais considerações podem ser utilizadas para compreender alguns traços

característicos do Rio Grande do Sul à época, por exemplo, o porquê de uma das principais

peculiaridades do grupo que administrou o estado após a proclamação da República ter sido

sua forte vinculação dentro dos quadros do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR).

Alguns estudiosos têm assinalado que uma das características mais marcantes desse partido

era a influência exercida sobre sua organização e preceitos de princípios positivistas, os quais,

por seu turno, eram resultado da leitura particular feita desta teoria por Júlio de Castilhos107.

Inclusive foi a influência do positivismo de Júlio de Castilhos – tradicionalmente denominado

castilhismo – e sua respectiva realização com a promulgação da Constituição Estadual em

1891, um dos elementos motivador das cisões partidárias e disputas políticas ocorridas no

período.

O grupo de pessoas aglutinado em torno do PRR e altamente influenciado pelo

positivismo que se consolidou na administração do Estado após o fim da Revolução

Federalista em 1891 era responsável pelo desenvolvimento das políticas de colonização e

povoamento. Tinha representantes vivendo na região ora estudada e, cabe frisar, na maioria

das vezes, as disputas para definir com quem ficaria o controle dos aparelhos de Estado nos

municípios foi motivo para conflitos: um exemplo disso foi o fato ocorrido no 5º distrito de

Santo Ângelo anteriormente analisado, no qual o candidato a Intendente do município

procurou aproveitar uma confusão ocorrida durante a eleição para incriminar um seu desafeto

político. Tais conflitos eram tão comuns, que o governo estadual fazia um grande esforço para

controlá-los. Ao longo das mensagens enviadas à Assembléia dos Representantes aparecem

105 Idem, p. 183. 106 Idem, p. 185. 107 Para conhecer as origens do PRR e das pessoas que se aglutinaram em torno deste partido, ler: PINTO, Celi Regina Jardim. Contribuição ao estudo da formação do Partido Republicano Rio-Grandense (1882-1891). Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1979. (Dissertação de Mestrado). Quanto ao positivismo e o modo como esta teoria foi interpretada e utilizada no Brasil, ver: ALONSO, Ângela. De positivismo e de positivistas: interpretações do Positivismo Brasileiro. In.: BIB: Revista Brasileira de informações bibliográficas em Ciências Sociais, n. 42. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996, p. 109-134.

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muitas referências à nomeação direta pelos Presidentes de Estado de Intendentes aos

municípios108.

Ao proceder assim, o Presidente estava desrespeitando um preceito constitucional (o

que dizia que os intendentes deveriam ser eleitos pelo voto da população local), mas

respeitando outro que dava plena autonomia a ele para interferir na política municipal. O

Presidente tinha poderes para definir a quem caberia a tarefa de administrar as intendências e,

mediante qualquer questão, visto que o problema poderia ser criado, nomear os intendentes.

Na Mensagem enviada, por Antônio Augusto Borges de Medeiros, à Assembléia dos

Representantes em 1904 é possível verificar como isso acontecia. Neste caso, Medeiros relata

que ao tomar conhecimento de algumas reclamações e recursos movidos em alguns

municípios por decorrência de supostas irregularidades ocorridas no processo eleitoral

expediu, como previa o artigo 20, nº 18 da Constituição Estadual, “atos e instruções tendentes

a garantir o livre exercício do voto, e em alguns casos anulei eleições, mandando proceder

outras com observância de todos os preceitos legais”109.

O grupo de pessoas que se aglutinava em torno do PRR também estava profundamente

envolvido na tarefa de construir uma “ordem social” e, em conseqüência, estava

comprometido em algumas disputas peculiares ao jogo político. Internamente elas realizavam-

se nas dissidências de alguns dos quadros inicias do PRR como Assis Brasil e Demétrio

Ribeiro, por exemplo, que, embora membros históricos do partido, desvincularam-se dele à

medida que o domínio de Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros sobre o partido e o Estado

aumentava. As externas, por seu turno, traduziram-se nas brigas entre castilhistas e

federalistas, sendo que os últimos ao longo do período se aglutinaram em diferentes partidos e

de modos variados, seja pela participação nos pleitos eleitorais ou pelo recurso às armas,

objetivaram chegar ao controle do Estado.

Diante disso, a adesão dos profanos era o fiel da balança, no sentido de que conseguir

o apoio de uma parte considerável da população rio-grandense era fundamental para garantir a

permanência dos funcionários sui generis na gerência do Estado. Daí os constantes esforços

108 Em suas memórias de João Neves da Fontoura, trata dessa questão nos seguintes termos: “O grave problema é que, nos municípios, as dissidências existiam em potencial ameaçador, principalmente pelas reeleições sucessivas dos prefeitos – os intendentes, como então se chamavam. Se os federalistas (os partidários de Gaspar Martins) não dispunham de eleitorado capaz de conquistar as prefeituras, nada mais fácil, porém, do que a derrota dos chefes oficiais pelos próprios companheiros divergentes. Em breve, a indisciplina preparava-se para vingar o longo período de obediência, perinde ac cadaver, que fora a base da formidável agremiação, precursora da República, sustentáculo da organização política estadual, vencedora militar ou paramilitar do abalo revolucionário de 93 a 95”. Cf.: João Neves da Fontoura. Idem, op. cit., p. 35-36. 109 MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros na 4ª sessão ordinária da 4ª Legislatura em 20 de Setembro de 1904. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1904, p. 13-14.

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feitos pelo governo estadual para conseguir o apoio das regiões coloniais ao seu projeto

político110. Contudo, em termos da Primeira República, a permanência de um grupo no

controle do Estado também era proporcional às possibilidades que o mesmo tinha de burlar

alguns preceitos que garantiam sua posição social sem necessariamente desacreditá-los

perante a opinião pública. Ou seja, as constantes fraudes eleitorais que permitiram a

permanência do PRR à frente do Estado durante mais ou menos 40 anos, embora alvos de

constantes críticas, não impossibilitavam a realização de eleições ou tornavam os governos

dos castilhistas ilegítimos.

Entretanto, tais governos só aconteceram porque, naquela quadra histórica, seus

profissionais, funcionários sui generis, mesmo diante de contestações que são naturais ao jogo

político, encontravam aceitação social. Tanto interna como externamente ao campo político a

que pertenciam, achavam espaços para realizar seus ideais e torná-los palavras de ordem que

produziam grupos, sua verificação e, conseqüentemente, uma ordem social. Ademais,

permanecer ou conquistar postos de poder numa determinada figuração social,

independentemente dos meios usados para isso, é uma forma de assegurar um poder sobre os

seus tributários, uma forma de dar às representações de mundo social características de um

determinado grupo, partido político ou instituição uma maior efetividade111.

Durante a Primeira República, no Rio Grande do Sul, um dos principais objetivos

perseguidos pelo Governo do Estado foi a garantia da ordem pública. Assim, no intento de dar

cumprimento a esse objetivo, a máxima que definiu as ações governamentais era retirada do

positivismo e ela sempre é citada quando alguma política pública é discutida ou são

apresentados seus resultados: trata-se do conservar melhorando. Divisa que está presente em

muitos relatórios, na maioria das vezes, na parte introdutória dos mesmos: “interpretando o

bem público de acordo com as leis e à luz dos princípios do inexcedível programa

republicano, resumirei toda a ação em conservar melhorando, e em praticar sempre a sã

110 Sobre os esforços governamentais para obter apoio da região colonial aos seus projetos políticos, ver: GERTZ, René. O aviador e o carroceiro: política, etnia e religião no Rio Grande do Sul dos anos 1920. Porto Alegre: EDIPUC, 2002. 111 Nesse sentido, Norbert Elias e John Scotson em Os estabelecidos e os outsiders, mostram como, na vida social, ocupar lugares de poder seja em esfera local ou nacional, somado à coesão dos grupos que ocupam tais posições, é fator importantíssimo no modo como os grupos definem suas identidades sociais. Por conseguinte, atribuem valores a seus outros relacionais e, a partir de tal relação, conseguem se manter no poder ou cerrar fileiras para que os seus outros não assumam tais posições e, assim, diminuam sua estabilidade ou questionem as representações por eles elaboradas. Cf.: ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

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política, filha da moral e da razão”112 (grifos do autor). Sobre essa característica, Sandra

Pesavento destaca que uma das principais preocupações dos governos castilhistas rio-

grandenses, ao longo da Primeira República, era encontrar meios de “dignificar a pobreza,

eliminando dela a miséria”. Questão que era resolvida através da busca de uma pretendida

“moralização dos ricos e dos pobres, para que aqueles não consumam o supérfluo em prejuízo

necessário destes, e estes só reclamem o necessário sem lançar olhos cobiçosos para as

superficialidades da opulência”113.

Em termos de organização estrutural e política, a Constituição estadual, promulgada

em 14 de julho de 1891, definiu a forma como o Estado deveria funcionar114. De acordo com

o texto da Constituição, o Governo seria formado pelo poder executivo, o legislativo e o

judiciário. O poder executivo ficava sob responsabilidade do Presidente que tinha “a suprema

direção governamental e administrativa do Estado”, exerceria o mandato durante cinco anos e

poderia ser reeleito se conseguisse somar três quartas partes do eleitorado. Era sua tarefa

também designar quem seria o vice-presidente e os secretários. Quanto à decretação das Leis,

cabia ao Presidente formulá-las e enviar os projetos aos intendentes municipais que se

incumbiriam de dar publicidade aos projetos em seus respectivos municípios. Depois de três

meses, tais projetos voltariam ao poder executivo com possíveis emendas e observações que

poderiam ser formuladas por qualquer cidadão, e o Presidente, ponderando sobre a

importância das mesmas, acata-las-ia ou não.

O poder legislativo era formado pela Assembléia dos Representantes, eleita pelo voto

direto, reunia-se uma vez por ano, funcionava por dois meses, e suas atribuições eram

estritamente orçamentárias. As funções judiciárias eram exercidas por um Superior Tribunal,

situado na capital do estado, por juízes de comarca, pelo júri e por juízes distritais. Ao

Superior Tribunal, cabia decidir conflitos entre as autoridades judiciárias e as administrativas,

julgar o Presidente e os Secretários de Estado, bem como julgar as causas propostas contra o

Governo. Os juízes de comarca eram nomeados pelo Presidente mediante concurso e sem

112 MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros na 2ª sessão ordinária da 8ª Legislatura em 20 de Setembro de 1918. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1918, p. 04. 113 Cf.: PESAVENTO, Sandra Jatahy. República Velha gaúcha: “Estado autoritário e economia”, p. 211. In.: DACANAL, José Hildebrando; GONZAGA, Sérgius (Orgs.). RS: economia e política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993, p. 193-229. 114 Os dados que seguem são retirados de OSÓRIO, Joaquim Luís. Constituição política do Estado do Rio Grande do Sul: comentário. Brasília: Editora UNB, 1981. Sobre a organização administrativa do Rio Grande do Sul, verificar também: RIO GRANDE DO SUL, Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos. Departamento de Arquivo Público. Fontes para história administrativa do Rio Grande do Sul: a trajetória das secretarias de Estado (1890-2005). Porto Alegre: CORAG, 2006 e FORTES, Amyr Borges; WAGNER, João Baptista Santiago. História administrativa, judiciária e eclesiástica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1963.

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dependência de diploma. Cabia-lhes a tarefa de julgar no cível as causas preparadas pelos

juízes distritais e as causas de mais de quinhentos mil réis. Os juízes distritais eram nomeados

pelo Presidente, sua permanência no cargo durava quatro anos e era sua tarefa julgar todas as

causas civis até o valor de quinhentos mil réis, com apelação para o Juiz de Comarca. O poder

judiciário era composto de um Ministério Público, coordenado por um Procurador-geral,

também nomeado pelo Presidente. A este Procurador-geral estavam ligados os promotores

públicos distribuídos um por cada comarca.

Do ponto de vista administrativo, o território do estado estava dividido em

municípios. O poder municipal era exercido por um Intendente, responsável por todos os

serviços, e por um Conselho que votava os meios de esses serviços serem criados e mantidos.

Os intendentes e os conselhos deveriam ser eleitos pelo sufrágio direto e seus mandatos

duravam quatro anos. No entanto, havia o artigo 20, nº 18 da Constituição, que dava liberdade

ao Presidente para anular as eleições quando entendesse que elas infringiam as leis Federais

ou do Estado. Cada município era regido por uma lei orgânica, a qual definia o número dos

membros dos conselhos e prescrevia tudo o que era da competência do município. O

município era dividido em distritos e, para cada distrito, os intendentes nomeavam um

subintendente que exercia as funções de autoridade policial. Intendentes, subintendentes e

membros do conselho, em caso de incorrerem em algum tipo de crime, seriam julgados e

processados pelo Juiz de Comarca, com possibilidade de apelação para o Superior Tribunal.

Cada município também possuía uma guarda municipal com funções preventivas e ficava sob

responsabilidade dos intendentes e subintendentes. Também existia uma polícia judiciária,

esta sob jurisdição de um chefe geral de polícia, como centro da direção do serviço em todo

estado e tinha subchefes, delegados e subdelegados distribuídos em todo o território. A polícia

judiciária tinha o papel de rastrear crimes, coligir provas, capturar delinqüentes e estava

totalmente sob jurisdição do Estado.

Em linhas gerais e de forma resumida, essa é a maneira como estava organizada parte

da máquina administrativa do estado no período e era por meio desses eixos que o Governo

chegava do centro aos municípios e distritos. A partir da descrição fica visível o quanto essa

estrutura estava centralizada nas mãos do Presidente, pois todas as funções administrativas

eram objeto de sua nomeação e, mesmo em algumas situações em que era realizado concurso

público para preencher algum cargo, o Presidente poderia escolher entre os três melhores

classificados quem ocuparia a função. Entretanto, essa forte centralização não impedia que na

prática os objetivos perseguidos pelo Governo fossem alterados. Exemplo disso são os atritos

existentes entre a polícia administrativa e a judiciária, o uso em benefício próprio por parte de

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intendentes, subintendentes e, principalmente, de inspetores de quarteirão do poder que lhes

era atribuído com a nomeação ao cargo de responsáveis pelo policiamento dos seus

respectivos municípios, distritos e quarteirões. Um dado interessante a esse respeito é que o

inspetor de quarteirão não é citado na Constituição a não ser para afirmar que as inspetorias

de quarteirão – resquícios do regime imperial – seriam substituídas pela criação de

subchefaturas regionais115. No entanto, nos processos crime os responsáveis pelas ações

policiais no interior dos distritos continuam sendo identificados como inspetores de

quarteirão e a ação desses homens ilumina algumas peculiaridades comuns ao jogo político

característico da época.

Em processo crime datado de 22 de fevereiro de 1928 em que é julgado um caso

ocorrido no município de Palmeira das Missões, encontra-se um exemplo a partir do qual é

possível observar os pormenores da questão. Os envolvidos eram João Hermógenes Paz

(Inspetor de Quarteirão – não qualificado no processo por estar foragido) e Maria José dos

Santos (casada com João Antônio Rodrigues, com 37 anos de idade, residente em uma roça a

margem do Lajeado Grande a 5 léguas, mais ou menos, da sede do Distrito). Maria José em

depoimento prestado ao delegado de polícia do município conta que seu marido trabalhava

“nas estradas em Santa Catarina pelo que ficou só com seus 5 filhos morando no sítio”116. No

dia 18 de fevereiro, o inspetor de quarteirão apareceu em sua casa e Maria “sabendo ser ele de

maus instintos, com medo, convidou-o a tomar um mate, ao que Hermógenes retrucou que

queria outra coisa” e convidou-a para ir até a roça “a fim de copular com ele”117. Maria diz ter

recusado a proposta, mas mesmo assim o inspetor tentou “por vários modos apoderar-se do

seu corpo, tendo lhe oferecido 15$000 para que ela fosse com ele debaixo dos

pessegueiros”118. Não conseguindo dar conta de seu intuito o inspetor retirou-se, mas

prometeu que retornaria outro dia e que era para ela pensar em suas propostas. No dia 19 de

fevereiro de 1928, um domingo, Hermógenes voltou a casa de Maria e novamente tentou

convencê-la a manter relações sexuais com ele. A vítima não cedeu e diante da recusa

incessante da mulher o inspetor ameaçou dizendo que “ele era autoridade e que era melhor ela

se entregar voluntária porque senão ela se arrependeria e seria dele de qualquer jeito, pois ele

mataria seu marido já que ela estava com tanto luxo”119.

115 Joaquim Luís Osório. Idem, op. cit., p. 237. 116 APERGS. Processos Crime 235. Cartório Civil Crime. Município de Palmeira das Missões, 1928. Maço 12. 117 Idem. 118 Idem. 119 Idem.

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Mesmo diante das ameaças Maria não satisfez os interesses de Hermógenes que

novamente se retirou prometendo voltar. No dia seguinte, ao entardecer, Maria conta que o

inspetor apareceu em sua casa, tentou agarrá-la a força e a empurrou em direção ao quarto.

Maria “pediu que ele a largasse, pois queria dizer uma coisa; que tendo ele lhe dado liberdade

de movimentos ela disse que não a levasse a mal, que ela não cedeu aos seus convites porque

já mais de mês andava com a ‘mãe do corpo’ ‘inferidade’”120 (grifos no original). A vítima

disse que logo chegaria a “mulher de seu Augusto para lhe curar e lhe benzer; em vista disso

Hermógenes disse que também era médico e queria ver com os olhos dele levantando-lhe a

saia e querendo que ela se deitasse; ela se negou dizendo que era feio um homem ver essas

coisas”121 (grifos no original). Em seguida Maria pediu para o inspetor se retirar ao que

Hermógenes concordou, pois “não queria encontros e gostava de coisas reservadas”. No

entanto, dentro de algumas horas ele voltou, mas Maria e seus filhos haviam fugido para mato

e foram para casa de um vizinho – “seu Augusto” –, onde pernoitaram.

No dia 21 de fevereiro, o marido da vítima voltou de Santa Catarina “para ver a

família e trazer recursos”. Maria, por sua vez, não contou nada a ele com medo de que fosse

tomar satisfação e o inspetor o matasse e, como João Rodrigues retornaria para o trabalho no

dia seguinte, resolveu que ficaria hospedada em casa do vizinho – “seu Augusto” – com quem

procuraria auxílio para “dar parte as autoridades do Povo para chamarem a ordem seu

Hermógenes para não a perseguir mais”122. Entretanto na madrugada do dia 22 o casal foi

despertado “pelo acuar do ‘guaipeca’ [cachorro de porte pequeno] e seu marido viu que a casa

estava sendo cercada, ouvindo voz do seu Hermógenes dando ordens e sabendo que ele era

muito bandido e, naquela hora, ele só podia ir fazer coisas, tratou de fugir”123. Nisso Maria diz

ter ouvido três tiros, acreditando terem matado o seu marido saiu de casa e viu que ele corria

em direção do lajeado perseguido por vários homens. Diante da situação ela e um filho de 12

anos correram pedindo “misericórdia a Hermógenes, mas ao vê-los ele disse para ela: eu não

te disse cadela, quando eu quero, eu quero mesmo! Vocês hão de se acostumar a respeitar a

autoridade e, ato contínuo, começou a espancar a ambos com um relho”124 e só parou de bater

nos dois quando seus homens voltaram da perseguição e disseram que João Rodrigues havia

conseguido escapar.

120 Idem. 121 Idem. 122 Idem. 123 Idem. 124 Idem.

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O inspetor de quarteirão ordenou aos homens que voltassem ao lajeado e procurassem

por João. Após a retirada desses homens Hermógenes voltou a espancar Maria dizendo:

“agora china velha, vai conhecer macho!”. Assim, obrigou-a a entrar no quarto, arrancou-lhe a

saia e “no meio de terríveis ameaças contra a vida do seu marido exigiu que ela se deitasse na

cama; que como ela não obedecesse ele empurrou-a e descobrindo-a procurou servir-se de seu

corpo, no que foi impedido por ter ela trancado as pernas”125. Diante disso, Hermógenes

voltou a bater com o relho em Maria até o ponto de ela perder os sentidos “por causa de tanta

dor” e “quando acordou estava meio morta de dor e cansada, toda descoberta em cima da

cama, com sangue em várias partes do corpo e seu Hermógenes sentado a beira da cama, ao

ver abrir os olhos me perguntou se eu tinha gostado”126 (grifos no original). Logo em seguida

chegaram algumas pessoas a casa de Maria para quem o inspetor obrigou-a a “dizer tudo

quanto ele quis que eu dissesse”. Após todos terem se retirado o marido de Maria voltou para

casa e ambos perceberam que, além de tudo o que acontecera, o inspetor havia levado consigo

“a faca e o bocó do seu marido, sendo que no bocó estavam 50$000 que o marido tinha

trazido”127 de Santa Catarina.

De acordo com os termos da Constituição Estadual o papel a ser desempenhado por

Hermógenes era o de exercer funções preventivas, uma vez que ele fazia parte da guarda

municipal. No entanto, fica claro o quanto ele utilizava-se de sua posição para executar

interesses próprios, inclusive, sustentado em sua autoridade, chegou a formar uma escolta

para atacar a casa da sua pretendida. Nesta perspectiva, os processos crime se demonstram

fontes interessantes, uma vez que permitem verificar alguns detalhes importantes, cujo traço

peculiar é proporcionar uma compreensão diferenciada do modo como a estrutura policial e

administrativa funcionava. É importante assinalar, nesta perspectiva, que o inspetor de

quarteirão não apenas era o responsável pelo policiamento local, mas também se incumbia de

resolver questões administrativas. Ele estava ligado aos intendentes, os quais indicavam

aqueles que deveriam atuar como subintendentes nos distritos e, por fim, estes nomeavam os

responsáveis pelo policiamento no interior dos distritos, isto é, os inspetores de quarteirão.

Todos eles poderiam, em caso de necessidade, recrutar seus “soldados” entre os habitantes do

município e, quando faziam isso, geralmente praticavam arbitrariedades.

O caso envolvendo Hermógenes e Maria José dos Santos também é exemplar nesse

sentido, pois os homens que perseguiram João Antônio Rodrigues e formavam a escolta

125 Idem. 126 Idem. 127 Idem.

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organizada por Hermógenes foram recrutados da seguinte forma: em depoimento Celestino

Rodrigues de Oliveira (62 anos de idade, branco, agricultor, residente a 1 légua da casa de

Hermógenes) conta que no dia 21 de fevereiro de 1928 recebeu uma intimação do inspetor de

quarteirão “que o intimava para ir se encontrar com ele a fim de fazer uma escolta para

prender João Rodrigues e ser testemunha dos ditos da mulher dele”. Celestino diz que por ser

“Hermógenes violento e por não querer desagradá-lo, e mesmo porque tinha o dever de

auxiliar a autoridade”128 se reuniu no lugar indicado com o inspetor e junto com ele também

estavam João Paz e Wenceslau de Tal.

Segundo Celestino, Hermógenes havia reunido aquela escolta porque a mulher de João

Rodrigues há muitos dias vinha lhe dirigindo insultos e porque o subintendente havia

ordenado a prisão do marido de Maria “por ele ser ladrão”. Na seqüência do relato Celestino

conta que por volta das nove horas da noite do dia 21 se aproximavam da casa de Gabriel

Alves, cuja localização ficava a cerca de 1.500 metros distante da casa de Maria e João. Nesse

local estava acontecendo um baile e lá a escolta ficou até a madrugada “quando seu

Hermógenes resolveu fazer o serviço e resolveu também intimar o dono da casa, Gabriel

Alves, e seu filho, Manuel Alves, para fazer parte da escolta”. Gabriel “implorou dispensa,

mas Hermógenes disse que não estava pedindo e sim mandando como autoridade, tendo

então se submetido com seu filho”129 (grifos no original). Em seguida a escolta partiu e a

narrativa dos acontecimentos feita por Celestino não difere muito da realizada pela ofendida,

sendo que acrescenta a informação de que as pessoas que chegaram a casa de Maria, depois

do acontecimento, foram chamadas pelo inspetor para ouvirem o que ela tinha a falar. Nesse

momento a vítima estava no quarto

em fraldas de camisa e escorrendo em sangue; estava sentada na cama e Hermógenes em pé, com um pé em cima da cama e com o cotovelo em cima da cocha e com o relho na mão sempre abanando, disse muitas coisas e no fim de cada coisa feia que ele dizia, sempre com o relho em ameaça, assim perguntava para D. Maria: ‘não é verdade que vancê disse isto, isto e isto, etc.?’ ao que ela respondia: ‘é sim senhor!’130.

Anteriormente escrevi que uma das principais características do Estado é o fato de ele

possuir o monopólio da coação física legítima e as ações de Hermógenes demonstram o

quanto essa violência pode ser usada para fins diversos. Evidentemente que em termos de

políticas públicas e de organização social a ação do Estado muito dificilmente encontrará

128 Idem. 129 Idem. 130 Idem.

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legitimidade, principalmente a longo prazo, se estiver sustentada só e somente só sobre a

violência, contudo, seria precipitado, ingênuo até, pensar que a possibilidade do seu emprego

não seja um regulador social eficiente. Os dados levantados não permitem afirmar se o caso

envolvendo Hermógenes e Maria José dos Santos era corriqueiro. Contudo, como assinalei

acima, a presença do inspetor de quarteirão nos processos crime é constante: por vezes em

função de sua arbitrariedade, outras por estarem utilizando o cargo em beneficio próprio ou de

algum correligionário político. Eles também são acionados para resolver problemas

específicos daquela sociabilidade, por exemplo, quando os porcos, galinhas, bois ou cavalos

de um indivíduo estraga a roça de seu vizinho. Nesses momentos, fica claro o quanto a

autoridade deles era reconhecida e, no caso de alguma das partes ficar insatisfeita com o

arbítrio do inspetor, invariavelmente ela procurava o seu superior hierárquico ou tentava

resolver a situação por meio do emprego da violência física direta.

Um outro meio pelo qual o governo fazia-se presente nas diferentes regiões do estado

era através da Diretoria de Terras e Colonização, que era responsável por organizar as

populações que viviam nas terras devolutas, administrar as colônias e exercer a tutela dos

grupos indígenas. A diretoria estava ligada à Secretaria dos Negócios das Obras Públicas

(SENOP) e tinha como um dos seus principais idealizadores e coordenadores o positivista

religioso Carlos Torres Gonçalves. Também a escola exercia papel fundamental no processo

de levar as representações formuladas pelos funcionários de Estado às populações do Rio

Grande do Sul. Ainda nesse sentido, o PRR e seu órgão de imprensa – o Jornal A Federação –

exerciam papel muito forte na difusão dessas representações. A respeito do partido, de seu

principal nome, bem como do Jornal, João Neves da Fontoura ressalta em suas memórias:

Júlio de Castilhos, filho da campanha, acrescentou aos antecedentes de caráter local sua impregnação positivista. O Partido, de que foi, em última análise, o modelador, recebeu em cheio a transfusão daqueles rumos de orientação. Eu creio já ter escrito que parecia menos um partido político do que uma escola filosófica, uma religião. Se quiserem diminuindo-o: uma seita. Mas era assim. A conduta de “A Federação”, que antes mencionei, e falando sem menor desaire, tinha tudo de um Tribunal de Santo Ofício partidário, que condenava também os correligionários quando viviam, se externavam ou atuavam fora da linha ortodoxa! Não admira, por isso, o descontentamento que essa atitude de órgão oficial provocava entre os chefes e subchefes, e até na massa de correligionários. Não o formulavam, mas jazia dentro de cada um131.

131 João Neves da Fontoura. Idem, op. cit., p. 35.

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Embora existisse uma forte coesão política das lideranças locais em torno do PRR e

seu órgão de imprensa, Fontoura também registra que a relação dos políticos com a população

em geral não se dava de forma unilateral. Pelo contrário, era mediada pelos interesses desta

em relação a questões práticas e que diziam respeito a sua vida cotidiana. Assim, enquanto os

políticos de carreira empunhavam a bandeira do progresso, do melhorar conservando e da

qualificação do homem rural, esses, por seu turno, estavam preocupados com a incidência dos

impostos, a atuação dos inspetores e a conservação das estradas, por exemplo.

Acerca disso, Fontoura relata uma situação em que ele e seu pai, então candidato a

intendente do município de Cachoeira do Sul, nas proximidades do pleito, andavam pelo

interior do município a pedir votos quando chegaram a uma casa e foram atendidos por uma

mulher que, ao perceber que procuravam por seu marido, chamou-o dizendo: “fulano, tem

visitas; chegou o tempo dos ricos andarem incomodando os pobres!”132. Em seguida ao

chamado, veio o “dono da casa”, ao qual, depois de “uma conversa sobre a chuva e o tempo”,

o pai de Fontoura pediu apoio no próximo pleito – “nessa altura, inevitavelmente começava

um rosário de queixas: o pontilhão da estrada do fundo que se achava em mau estado, o

imposto sobre veículos que tivera de pagar com multa, o inspetor que não viera a chamado

quando os porcos do vizinho invadiram o cercado. E assim por diante”133. Ou seja, a situação

demonstra que a relação entre governantes e governados não era e não é uma via de mão

única134.

Evidentemente que, nessa cadeia de relações, exerce papel muito importante o uso

institucional da violência e da coerção. No entanto, considero que analisar a relação

Estado/sociedade apenas pelo prisma da violência ou das relações de produção não é

suficiente, visto que é preciso dar a devida atenção aos diversos meios políticos que os

diferentes grupos usam para lidar com o Estado, seja para resistir à sua dominação, seja para

legitimá-la. Caso contrário, a vida em sociedade se tornaria insuportável135. Em outros termos,

considero que o Estado é um aparelho de dominação, que as representações por ele

concertadas, entre outros, tem o sentido de justificar tal dominação e que as suas ações têm a

perspectiva de favorecer os grupos mais bem posicionados socialmente. Contudo, isso não

deve ser tomado como condição de passividade e imobilidade por parte dos grupos menos 132 Idem, p. 168. 133 Idem, ibidem. 134 Para conhecer como era importante para os intendentes realizarem uma boa administração que repercutia na realização de trabalhos de melhoria da infra-estrutura dos municípios para que, assim, se garantissem no poder, ver: LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e regime representativo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997. 135 Para conhecer de forma mais profunda a relação entre política e violência, cf.: ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

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favorecidos. Alguns dos casos aqui relatados a partir dos processos crime dão força ao

argumento, uma vez que em muitos deles a resistência é o seu foco central. Embora, em

muitos casos, ela não tenha sido obra de planos previamente elaborados, a ação de pessoas

como Francisco Santos, Felisbina Silva e Hermógenes Silva (autores do pasquim antes citado)

demonstram a existência de estratégias diferenciadas de inserção e contestação social.

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3 NÃO ME CHAME DE GRINGO, POIS ISTO QUER DIZER LADRÃO: IMIGRANTES, NEGROS, ÍNDIOS E NACIONAIS NA REGIÃO SERRANA

Cesário Antonio Lopes, idade quarenta dois anos, natural da Província de São Paulo, negociante e morador nesta freguesia. Respondeu que sabe por ser público que indo uma escolta composta de bugres1 a fim de capturar a quatro bugres de nomes Marau, Luís, Thomé, Cauteau, os quais mataram a quatro moradores desta Freguesia, que estavam na Serra, a fim de os roubar, digo para roubar, e sendo estes bugres alcançados pela escolta dos outros bugres que por mandado do sub delegado deste distrito foram para os capturar, aqueles resistiram a escolta, e esta os matou, tendo lugar este fato nos matos da serra desta Freguesia, há três para quatro meses, disse mais, ela testemunha que uma das quatro mortes que aqueles bugres fizeram para roubar é um menor de nome Francisco.

APERGS. Processos Crime 1.703. Cartório Civil Crime. Município de Cruz Alta, 1855. Maço 43.

3.1 DE ESTRANGEIROS A COLONOS: OU SOBRE AQUELES QUE SÃO OS “OBREIROS DA NOSSA

RIQUEZA”

Um aspecto importante sobre a imigração, ou melhor, sobre a maneira como os

imigrantes se estabelecem nas sociedades de acolhimento é o de que, enquanto fenômeno

social e político, a imigração está intimamente vinculada à ordem nacional, visto que o

imigrante pertence a uma determinada nacionalidade, a qual, especialmente nos tempos mais

recentes, conforma e identifica-se com o Estado. Outra característica relevante da imigração é

que ela é dupla, pois o imigrante é, ao mesmo tempo, um emigrante. Assim, do ponto de vista

do pertencimento nacional, a imigração pode ser definida como a presença no seio da ordem

nacional de “indivíduos não-nacionais (...), e a emigração, por simetria, como a ausência da

ordem nacional (...); o imigrante é aquele que realiza essa presença estrangeira e,

correlativamente, o emigrante é aquele ausente que se encontra no estrangeiro”2. As pessoas

que vieram da Europa e estabeleceram-se no Rio Grande do Sul no período analisado eram

imigrantes em relação ao Brasil; o Estado brasileiro os considerava estrangeiros e impunha 1 Designação pejorativa dada aos índios no contexto local – geralmente é utilizada para fazer referência ao “índio bravo”. Sobre a utilização deste termo na região sul do Brasil, ver: SANTOS, Sílvio Coelho dos. Índios e brancos no sul do Brasil: a dramática experiência dos Xokleng. Florianópolis: EDEME, 1973. 2 SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Editora USP, 1998, p. 266.

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exigências para sua naturalização. Em relação a sua nação de origem, elas eram emigrantes e,

ao emigrarem, na sociedade de acolhimento tornavam-se estrangeiras, portanto, submetidas

às regras, preceitos e leis que a nação receptora definia àqueles que entravam nessa condição.

Desse modo, “as duas ordens (a ordem da emigração e a ordem da imigração) e a ordem

nacional, estão substancialmente ligadas uma à outra”3 e, como intimamente relacionada à

ordem da nação está a do Estado, a situação do imigrante também depende do modo como se

estabelecem as relações entre as diferentes ordens.

Todavia não é apenas o estatuto jurídico de estrangeiro e os vínculos do imigrante

com a sociedade de origem que define a sua inserção na sociedade de acolhimento. Via

naturalização, a qual é possível a partir do cumprimento de critérios exigidos pela sociedade

de imigração, o imigrante pode romper com a condição de estrangeiro. Entretanto, mesmo

que consiga resolver sua situação civil e passar da qualidade de estrangeiro para a de cidadão,

sua condição social, ou seja, a posição que ocupa na hierarquia da sociedade, geralmente

subordinada, tem o “efeito de lembrar a todos, ao imigrante e à sociedade de imigração, sua

origem nacional ou comunitária”4. Desse modo, o imigrante “seja ele naturalizado ou não,

sempre é remetido a sua condição de origem, ou seja, ao seu país e a sua nacionalidade”5. Em

outras palavras, a mudança do estatuto jurídico não significa mudança na condição social.

Conseqüentemente a situação do imigrante é paradoxal, visto que, por um lado, ele “não é

‘nacional’ da ordem nacional na qual a imigração o colocou e o levou a viver” e, por outro, a

“emigração o levou a viver (e viver de forma duradoura) fora da ordem nacional da qual é

‘nacional’!”6.

Para aplicar tais considerações – elaboradas por Abdelmalek Sayad para pensar

questões relacionadas ao fenômeno imigratório atual, principalmente os relativos a emigração

de “nacionais” de países pobres para países ricos – à realidade ora analisada é necessário

realizar um trabalho de adaptação dos temas e conceitos empregados pelo autor. Contudo,

mesmo que existam diferenças profundas entre a imigração que ocorria no início do século

XX e a que ocorre atualmente, alguns fatores são recorrentes. Por exemplo, a imigração, na

maioria das vezes e independente do tempo histórico em que ocorra, não é um fenômeno

única e estritamente econômico, a partir do qual as pessoas buscam encontrar em outros locais

melhores condições de vida. Ela é também um fenômeno político, cuja existência envolve,

entre outras coisas, as relações e tratados formados e firmados entre diferentes nações e

3 Idem, ibidem. 4 Idem, p. 268-269. 5 Idem, ibidem. 6 Idem.

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Estados nacionais. Um outro aspecto característico da imigração com o qual Sayad trabalha,

talvez o que mais interessa para esta análise, diz respeito à forma como o imigrante se insere

na sociedade de acolhimento, sua relação com a sociedade da qual é originário e o quanto sua

inserção social está vinculada ao complexo: Estado, nação, imigração.

Uma diferença a ser assinalada entre os casos que servem de referência para Sayad e

os aqui analisados é que os imigrantes que vinham ao Rio Grande do Sul no início do século

XX, em relação aos moradores originários do território, recebiam benefícios, tais como os

relativos à aquisição da propriedade da terra7. No caso da imigração argeliana para França

estudada por Sayad, não há nenhum tipo de favorecimento fundado em uma política pública

voltada à atração de imigrantes, facilitando a instalação de tais indivíduos na sociedade

francesa em relação aos “franceses” propriamente ditos. Entretanto, os privilégios recebidos

pelos imigrantes chegados ao Rio Grande do Sul não os livravam da condição de

estrangeiros, prova disso foi o esforço realizado no sentido da sua “assimilação”. Ademais, as

facilidades de instalação oferecidas e a própria imigração foram objeto de atrito dentro do

Estado. Veja-se, por exemplo, as críticas feitas por Torres Gonçalves na perspectiva de que os

favores oferecidos aos imigrantes fossem estendidos aos nacionais:

infelizmente aqui no meu estado, o nosso secretário das Obras Públicas [chefe direto de Torres Gonçalves] está muito longe de tal atitude [proteção aos indígenas e localização dos nacionais]. Por vezes já me tem objetado que os nossos patrícios do interior não passam de uns vadios, merecendo, em vez de proteção do governo, que lhe tenho indicado, a expulsão das terras que ocupam e que não sabem aproveitar! 8.

Pensar o problema da imigração, portanto, significa também pensar as formas como as

sociedades de imigração e as de emigração estabelecem seus acordos, elaboram seus projetos

e definem suas relações. Muitas vezes, os interesses das nações envolvidas são

complementares, fato que pode ser verificado no caso do movimento imigratório ocorrido no

período sob análise. Nesta perspectiva, alguns estudiosos do fenômeno têm pontuado o quanto

a imigração representou, para as sociedades de origem, um equilíbrio populacional, e, para as

de destino, um incremento de sua população adulta, logo, da camada capaz de trabalhar9.

7 Esta questão será mais detidamente abordada no próximo capítulo. 8 Carta de Torres Gonçalves a Miguel Lemos, 8 de Setembro de 1909. Apud. PEZAT, Paulo Ricardo. Carlos Torres Gonçalves, a família, a pátria e a humanidade: a recepção do positivismo por um filho espiritual de Augusto Comte e de Clotilde de Vaux no Brasil (1875-1974). Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2003, p. 184. (Tese de Doutorado). 9 Sobre esse tema, verificar: MARTINS, José de Souza. Imigração e crise no Brasil agrário. São Paulo: Pioneira, 1977.

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Todavia, a imigração também era fator de conflito e, geralmente, os atritos estavam

relacionados ao lugar social que o imigrante efetivamente ocupava aqui no Brasil e as

expectativas que, tanto a sociedade de emigração quanto o próprio imigrante, tinham em

relação a esse lugar. Também entrava nesse jogo os interesses e expectativas partilhados pela

sociedade brasileira como um todo a respeito dos imigrantes. O fato ocorrido, em meados do

século XIX, em uma fazenda de café situada no estado de São Paulo descrito por Thomaz

Davatz, é um exemplo significativo, tanto das ações realizadas pelos imigrantes no sentido de

verem respeitados seus interesses como da interferência das autoridades de seu país de origem

na perspectiva de resolver a situação10. Da mesma maneira, as constantes proibições que

alguns países europeus impunham a mudança de seus cidadãos para o Brasil também

demonstram a pertinência do argumento11.

Para conhecer mais detalhadamente como se constituía a relação entre o Brasil e as

sociedades de emigração, passo a analisar um relatório escrito em 1925 por Umberto Sala –

advogado originário da Itália, que trabalhou no Consulado Italiano de São Paulo entre 1922 e

192512. Sala atuava em atividades burocráticas próprias do Consulado e, algumas vezes, foi

representante do governo italiano em visitas feitas a fazendas que empregavam mão-de-obra

provinda da imigração. O relatório traz informações importantes a respeito da atuação dos

agentes do governo de um país de emigração no sentido de influenciar o modo como se dava

o estabelecimento dos imigrantes na sociedade de acolhimento. Da mesma forma, permite

conhecer os interesses, tanto da sociedade de emigração como da de imigração, relativos aos

imigrantes, assim como alguns detalhes relacionados ao lugar social que os imigrantes

italianos ocupavam no contexto do estado de São Paulo durante a Primeira República. Dados

que podem ajudar na compreensão de aspectos vinculados à forma como aconteceu a inserção

dos imigrantes na região serrana. Não obstante, também servem como ponto de partida na

10 Consultar: DAVATZ, Thomas. Memórias de um colono no Brasil(1850). São Paulo: Livraria Martins, 1972. Em suas memórias, Davatz descreve a experiência que teve como imigrante e trabalhador rural na fazenda de Ibicaba de propriedade do então Senador Nicolau de Campos Vergueiro. Trata-se de uma das primeiras experiências de utilização de mão-de-obra imigrante em forma de parceria ocorridas no século XIX. Contudo, diante das dificultades encontradas pelos colonos e da excessiva exploração a que eram submetidos, eles se revoltam e, sob a liderança de Thomas Davatz, passam a exigir melhores condições de vida e o cumprimento das promessas feitas ainda na Europa. Uma das principais conseqüências da revolta foi a proibição por parte dos governos da Suíça e da Alemanha da imigração para o Brasil. 11 Para conhecer mais detalhadamente a história da imigração no Brasil e as questões que lhe dizem respeito, ver: PETRONE, Maria Theresa Schorer. O imigrante e a pequena propriedade (1824-1930). São Paulo: Brasiliense, 1984; LANDO, Aldair Marli; BARROS, Eliane Cruxên. A colonização alemã no Rio Grande do Sul: interpretação sociológica. Porto Alegre: Movimento, 1981; DACANAL, José; GONZAGA, Sérgius (Orgs.). RS: imigração e colonização. Porto Alegre, 1980; José de Souza Martins. Idem, op. cit.; DIÉGUES JÚNIOR, Manuel. Imigração, urbanização e industrialização. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, 1964 e outros que serão citados ao longo deste texto. 12 SALA, Umberto. A emigração italiana no Brasil (1925). Maringá: EDUEM, 2005.

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perspectiva de comparar as diferenças e semelhanças entre o processo imigratório ocorrido no

estado de São Paulo e o no do Rio Grande do Sul, embora não seja esta a prioridade aqui.

Chamam atenção no relatório de Sala suas conclusões pessimistas a respeito da

situação dos imigrantes italianos que viviam em São Paulo. No entanto, isso não o impedia de

defender que a América do Sul – principalmente o Brasil e, dentro dele, São Paulo – fosse o

lugar ideal para onde os italianos que optassem ou se vissem obrigados a sair da Itália

deveriam rumar. De acordo com Sala, os imigrantes italianos que viviam em São Paulo

encontravam-se em um estado de penúria, cuja origem era a inexistência, no Brasil, de um

Estado estruturado capaz de fazer valer os acordos assinados com os países de origem dos

imigrantes. Assim, para demonstrar as deficiências do Estado brasileiro o advogado italiano

tece críticas a justiça pública e sublinha que muito dificilmente os pobres, situação em que a

maioria dos imigrantes se encontrava, teriam condições de mover um pleito contra seus

“exploradores”13 e, quando conseguiam, geralmente o resultado era a perda da causa.

Da mesma forma, ao tratar de um acordo assinado em meados da década de 20, entre o

Estado de São Paulo e o Governo italiano para entrada de imigrantes, Sala escreve que os

preceitos acordados, por exigirem uma estrutura administrativa sofisticada, a qual não existia

em São Paulo, dificilmente seria cumprido: “esse acordo é um puro exercício teórico, do qual

pouco de positivo pode surgir”14. Conforme o autor, as garantias oferecidas por São Paulo e

pelo próprio Governo Federal a respeito da “tutela e administração da nossa emigração são

desprovidas de qualquer confiabilidade, já que, contra elas, estão a desorganização geral, a

falta de um sistema administrativo e de uma burocracia capaz e imparcial”15.

Diante disso, ponderava que era necessária uma maior atuação do governo italiano no

sentido de proteger seus cidadãos emigrados. Uma das medidas propostas por Sala era que o

Estado italiano, conjuntamente com a iniciativa privada, fizessem aquisição de terras no

Brasil, as quais deveriam ser repassadas, mediante pagamento de preços módicos e via

financiamentos, aos imigrantes em forma de pequenas propriedades, pois era “inútil supor que

o problema da emigração italiana no Brasil possa ser resolvido através de acordos

convencionais entre os poderes públicos dos dois Estados”16.

Sala também trata da possibilidade da imigração italiana ser direcionada aos estados

situados mais ao sul do Brasil. Considera que Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná,

13 Nesse caso específico Sala refere-se aos fazendeiros paulistas que empregavam a maioria da mão-de-obra proveniente da imigração italiana e a alguns industriais que tinham os imigrantes como principal reduto fornecedor de trabalhadores. 14 Umberto Sala. Idem, op. cit., p. 47. 15 Idem, ibidem. 16 Idem, p. 55.

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embora pudessem oferecer “excelentes oportunidades para absorção de nossos emigrantes”17,

não ofereciam condições materiais para o estabelecimento dos mesmos. Tal circunstância era

resultado da má localização das colônias e da “inaptidão” dos imigrantes que estavam

chegando ao Brasil naquele período para viver “os sofrimentos inevitáveis da colonização de

terras virgens”18.

A questão da cidadania também foi alvo das reflexões de Sala. Para ele o assunto era

um dos principais pontos de divergência entre Itália e Brasil, especialmente em relação aos

filhos dos imigrantes, que, segundo o funcionário do governo italiano, encontravam-se “numa

situação de ambigüidade que não lhes permite gozar os direitos de participação cívica nem na

Metrópole nem no lugar onde vivem”19. Os emigrados, segundo Sala, “raramente se

preocupavam com tais questões”, seja por não conhecê-las, seja por não se preocuparem com

elas, a não ser quando por necessidade de exercer alguma profissão eram obrigados a pedir

cidadania brasileira. Assim, escreve o advogado, a maioria dos emigrados continuavam a

usufruir da sua cidadania italiana, a qual pouco os beneficiava em termos cívicos e políticos,

já que estavam ausentes da “Pátria-mãe, e não tinham como influenciar o ambiente onde

viviam e operavam, pois, do ponto de vista dos direitos civis, eram estranhos, uns

desconhecidos”20.

Sala considerava tal situação “absurda”, pois entendia que devido à circunstância de a

entrada de imigrantes no Brasil ser habitual e uma parte considerável da população do estado

de São Paulo ser composta de emigrantes italianos, não havia razões para que eles não se

tornassem cidadãos e tivessem acesso aos direitos e deveres que tal condição proporcionava.

Entretanto, não era apenas a falta de interesse dos imigrantes em pedir sua cidadania e a não

existência de uma política de Estado voltada a regularizar a situação dos mesmos que era

responsável pela situação. Os próprios imigrantes demonstravam resistência em renunciar sua

cidadania italiana, pois ela tinha um “grande valor simbólico e afetivo”:

no exercício das suas funções, o autor não se recorda de um único caso de colono que tenha requerido a cidadania local sem uma necessidade profissional imperativa. E aqueles poucos que o fizeram nessas condições são vistos pelos compatriotas como renegados ou traidores. Magnífica garantia para a manutenção da italianidade entre os nossos expatriados, mas os deixa ainda mais débeis no país que os acolhe21.

17 Idem, p. 117. 18 Idem, ibidem. 19 Idem, p. 122. 20 Idem, ibidem. 21 Idem, p. 124.

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Todavia, não era apenas por questões afetivas e simbólicas que os imigrantes italianos

não renunciavam a sua cidadania pátria. Thales de Azevedo, em estudo sobre a imigração

italiana no Rio Grande do Sul, assinala que “a disposição de se radicar no País nem sempre

acarretará a renúncia à cidadania antiga. São coisas distintas e essa ambígua situação pode até

resultar vantajosa em dadas circunstâncias”22. Para exemplificar, Azevedo narra a intervenção

do governo italiano em prol de alguns imigrantes que, em 1893, sofreram prejuízos por causa

da Revolução Federalista. Outro caso semelhante foi a organização, em 1897, de uma

comissão mista, composta por membros do governo italiano e brasileiro, a qual deveria julgar,

também em função da Federalista, “375 reclamações e avaliar os prejuízos alegados por

súditos italianos fixados na região colonial e na campanha”23.

Para uma idéia do quanto a questão da cidadania é complexa, no segundo exemplo

apresentado por Azevedo, o trabalho da comissão encontrou dificuldades em “verificar a

nacionalidade da grande maioria dos requerentes”, pois muitos dos interessados, “na opinião

do membro brasileiro da comissão deveriam já serem brasileiros”24 por exercer funções

públicas, ou por não ter feito declaração para conservar sua nacionalidade de origem como

exigia o nº 4 do Artigo 69 (Título IV, Seção I), da Constituição Federal de 24 de Fevereiro de

1891. A Constituição determinava que seriam considerados cidadãos brasileiros todos os

indivíduos nascidos no Brasil, ainda que filhos de pai estrangeiro, mas com a condição de que

este não residisse no Brasil a serviço da sua nação. Também estipulava que tornar-se-iam

brasileiros todos os estrangeiros que se achando no Brasil aos 15 de Novembro de 1889 não

declarassem, após seis meses da entrada em vigor da Constituição, a vontade de conservar a

nacionalidade de origem. Por fim, no parágrafo 3º, definia que uma lei federal determinaria as

condições para a requisição dos direitos de cidadão brasileiro25.

A questão da cidadania e da naturalização dos estrangeiros não foi regulada somente

pela Constituição Federal, mas, ao longo da Primeira República, uma série de decretos e

decisões a esse respeito foram tomadas. Considero que não cabe aqui fazer uma abordagem

aprofundada da legislação federal existente na época sobre a imigração e a conseqüente

naturalização dos imigrantes, não obstante, procurarei, sem fazer grandes pormenorizações,

apresentá-la e mostrar algumas das suas especificidades. Para tanto, me apoiarei basicamente

22 AZEVEDO, Thales. Italianos e gaúchos: os anos pioneiros da colonização italiana no Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1982, p. 267-268. 23 Idem, ibidem. 24 Idem. 25 REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Constituição de 1891. O texto integral da Constituição aqui utilizado encontra-se em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm. Dados coletados em 20/08/07, às 11h40min.

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em artigo escrito por Giralda Seyferth, no qual ela desenvolve abordagem iluminadora a

respeito do problema26. Em seu texto, Seyferth estabelece uma comparação entre a leis

imigratórias e os projetos de colonização existentes durante o período Imperial com os que

vigoraram no regime republicano e mostra que não existiu uma distinção absoluta entre os

dois momentos, sendo a grande diferença o fato de que “no Império, eram especificadas as

nacionalidades européias almejadas pelo agenciamento; na República, houve restrições

explicitas, baseadas em critérios raciais”27. Entretanto, ambas as legislações tomavam como

critério de aceitação dos imigrantes o primado da raça branca.

No caso da República, o exemplo mais significativo disto é o Decreto nº 528, de 28 de

junho de 1890, cujo objetivo era regularizar o serviço de introdução e localização de

imigrantes. Tal decreto, além de definir como impróprios para atuarem na colonização os

“indesejáveis de sempre – mendigos, indigentes, criminosos – a eles acrescentava os

‘indígenas da Ásia ou da África’, que só poderiam ser admitidos com autorização expressa do

Congresso Nacional”28. Ainda sobre o Decreto nº 528, a autora chama atenção para o Artigo

42, no qual há uma “abertura” para os “nacionais”, que possibilitava sua admissão em áreas

de colonização desde que somassem 25% do total de imigrantes localizados, mas para tanto

deveriam se demonstrar “morigerados, laboriosos e aptos para o serviço agrícola”29.

No Rio Grande do Sul, a tarefa de definir se os “nacionais” cumpriam ou não às

exigências do decreto cabia aos dirigentes das colônias e aos funcionários da DTC. Tal

situação trazia problemas, pois além de o montante de 25% ser bastante irrisório, era comum

os funcionários do Estado responsáveis pela administração das colônias não levarem tal artigo

em consideração. Nesse sentido, como já grifei no capítulo anterior, Carlos Torres Gonçalves,

em seu relatório de 1926, relata que uma das medidas tomadas para garantir que os

funcionários do estado dariam a devida atenção aos “nacionais” foi extinguir as porcentagens

que eles recebiam pela cobrança da dívida colonial, pois “estas induziam a preferência pelos

estrangeiros (geralmente italianos ou alemães), que pagavam mais pela terra e mais

prontamente”30. Este é um exemplo nítido do quanto as políticas de imigração e a prática da

26 SEYFERTH, Giralda. Imigração, ocupação territorial e cidadania: o vale do Itajaí e a política de colonização na Primeira República. In.: CUNHA, Olívia Maria Gomes da; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2007, p. 79-118. 27 Idem, p. 97. 28 Idem, p. 95. 29 Idem, p. 96. 30 GONÇALVES. Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 442. In.:OLIVEIRA, Sergio Ulrich de. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros presidente do Estado do Rio Grande do Sul pelo Dr. Sergio Ulrich de Oliveira Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas em setembro de 1926. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, Volume 2, 1926, p. 409-470. (AHRS - OP. 83).

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colonização foram responsáveis pela construção da diferença, a qual marcou de modo

decisivo e profundo as relações dos imigrantes com os outros grupos sociais que com eles

atuaram no povoamento da região.

Outra Lei que regulou a imigração no Brasil foi a de nº 97, de 15 de outubro de 1892,

a qual permitiu a livre entrada de chineses e japoneses, mas manteve a restrição imposta aos

“indígenas da África” pelo Decreto 528. Essa alteração, pondera Seyferth, adveio dos

interesses comerciais que o Brasil tinha na época com a China e o Japão. Assim é preciso

estar-se atento para o fato de que a tese da desigualdade das raças humanas, cujo traço mais

peculiar no Brasil foi o desenvolvimento da idéia de branqueamento31, foi responsável por

atribuir “aos europeus o lugar mais alto na hierarquia biológica que, no Brasil, se pautou pelos

fenótipos, forneceu ao nacionalismo e aos legisladores os ‘fundamentos científicos’ para

orientar a imigração”32. Dessa maneira, a concessão feita aos asiáticos estava longe de ter um

sentido igualitário e apenas “mostra a preeminência dos fatores econômicos no contexto

mundial, apesar da força ideológica do racismo”33.

Em 1907, por meio dos decretos nº 6.455 e nº 6.479 que criaram, respectivamente, o

Serviço de Povoamento do Solo Nacional (SPSN) e sua diretoria, nova alteração é realizada

na política imigratória brasileira, a qual devolveu à União um maior controle sobre a

imigração e a colonização, visto que ele havia sido legado aos estados ainda durante o

Governo Provisório. A partir desse momento, o serviço de povoamento deveria ser promovido

pelo Governo Federal diante “do acordo com os estados, empresas de viação férrea ou fluvial,

companhias e associações particulares”34. Tais dispositivos visavam dar maior centralização

às decisões relativas a imigração e tinham o sentido de garantir um maior controle sobre “à

formação do ‘tipo nacional’, isto é, à raça histórica preconizada nas teorias sobre a

miscigenação”, bem como carregavam um sentido pragmático, uma vez que na base de suas

motivações estavam a

falta de recursos dos estados, que poderia comprometer o desejado povoamento; a alta concentração de imigrantes em São Paulo desde a última

31 Sobre o ideal de branqueamento, Seyferth escreve que ele foi “convertido em tese científica por uma parte da inteligência brasileira, que anunciava a possibilidade de formação de uma raça histórica (desde o século XVI), através da miscigenação seletiva. Paradoxalmente inspirada em doutrinas raciais deterministas, que condenavam a miscigenação excessiva considerando-a causa da decadência das civilizações, a tese do branqueamento imaginava uma ‘redução étnica’ a partir do caldeamento entre raças desiguais. Baseado na crença da superioridade ‘branca’, esse caldeamento devia produzir um povo paulatinamente mais claro e o sumiço dos negros, índios e mestiços mais escuros, com o concurso da imigração européia”. Cf.: Giralda Seyferth. Imigração, ocupação territorial e cidadania. Idem, op. cit., p. 97. 32 Idem, p. 96-97. 33 Idem, ibidem. 34 Idem, p. 101.

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década do século XIX, por ser o único estado a garantir a imigração subsidiada; o fato de a maioria das empresas colonizadoras pertencer a estrangeiros, além do debate sobre os indesejáveis, diante da anunciada retração dos fluxos europeus e do início da imigração japonesa35.

Ao longo da Primeira República outros decretos e leis relativos à imigração são

sancionados com destaque especial para o Decreto nº 9.081 de 1911, responsável por dar um

novo regulamento ao Serviço de Povoamento. No entanto, ele manteve as considerações

existentes nas determinações anteriores, principalmente no que diz respeito as suas referências

aos nacionais e ao privilegiamento do imigrante europeu. Ainda sobre esse assunto, é

importante assinalar que existia uma distância entre as definições presentes nas leis e decretos

sobre como deveriam ser os núcleos coloniais e a efetiva prática da colonização. Nesse

sentido, ocorreram vários problemas dificultando a instalação dos imigrantes nas colônias, tais

como sua localização em terrenos acidentados e pouco adequados para o cultivo.

Circunstâncias que, entre outras coisas, resultaram numa maior mobilidade dos imigrantes,

fato que batia de frente com os interesses da política imigratória, visto que seu objetivo era

que eles se tornassem pessoas fixas à terra, morigeradas e dóceis politicamente36.

Por sua vez, como destaca Seyferth, o não cumprimento dessas expectativas por parte

dos imigrantes, especialmente a partir de 1930, definiu novos rumos à política imigratória,

resultou numa maior intervenção do Estado nas zonas coloniais objetivando apurar a

“assimilação”, bem como contribuiu na definição do estatuto de cidadania, no qual os

imigrantes se enquadravam ou, ao fim e ao cabo, foram enquadrados. Dessa forma, os

imigrantes que depois de instalados nas colônias passavam a ser identificados como colonos –

“termo oficial atribuído a um tipo específico de pequeno produtor rural associado à fronteira

agrícola” que “era sinônimo de imigrante ou descendente”37 – também foram alvo de

discriminação, assim como os negros egressos da escravidão, os índios e os nacionais.

O problema da cidadania era de tão difícil resolução que Umberto Sala chega a

escrever que os filhos de imigrantes nascidos no Brasil viviam sob duplo controle nacional:

“divididos entre obrigações e tendências contrastantes e incapazes de valorizarem-se seja em

um sentido seja em outro”38. Somado a isso, também ocorria uma “sobreposição das

35 Idem, p. 102. 36 Este problema será mais detidamente abordado no próximo capítulo. Sobre o tema da mobilidade social, suas causas e objetivos, ver: SEYFERTH, Giralda. Concessão de terras, dívida colonial e mobilidade. In.: Estudos, Sociedade e Agricultura, v.7, 1996, p. 29-58. 37 Giralda Seyferth. Imigração, ocupação territorial e cidadania. Idem, op. cit., p. 115. 38 Umberto Sala. Idem, op. cit., p. 125.

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autoridades brasileiras e italianas”39 dificultando a relação. Sobreposições que encontravam

existência prática, por exemplo, no caso da emissão de passaportes que poderiam ser

fornecidos tanto pelos cônsules italianos como pelas autoridades brasileiras. Assim, ocorriam

casos em que as autoridades brasileiras recusavam-se a darem vistos a documentos emitidos

para filhos de italianos pelos cônsules da Itália; estes, por sua vez, faziam o mesmo quando

era necessário que reconhecessem a validade de documentos emitidos pelas autoridades

brasileiras.

Outro problema era o da prestação do serviço militar, uma vez que os filhos de

imigrantes eram convocados a prestar serviço, tanto no exército brasileiro como no italiano.

Embora, na maioria dos casos, fossem dispensados pelo exército italiano, não estavam isentos

do alistamento e, segundo Sala, o número de desertores era relativamente baixo e sua ida à

Itália só era impedida devido à falta de recursos do governo italiano para fazer o transporte

dos recrutas. As opiniões de Sala sobre o exército brasileiro são bastante duras e chega a tratá-

lo como uma instituição “fraca e insignificante”. Suas críticas são mais ácidas quando escreve

sobre a convocação feita, pelo exército brasileiro, aos filhos de imigrantes que haviam

participado da Primeira Guerra Mundial e lutado em prol da Itália. Sala via nestes homens –

os “veteranos de guerra” – um dos grupos mais indicados para defender a italianidade, pois

eles haviam participado da “vida da Pátria em um momento de forte perigo e de despertar de

paixões”, assim, eram portadores dos traços psicológicos e idealistas “necessários para

cumprir uma fervorosa e concreta obra de propaganda entre os colonos”40.

Entretanto, não era apenas entre os veteranos da primeira guerra que Sala depositava

suas esperanças relativas a manutenção de uma certa identidade italiana entre os emigrados.

Ele também narra sua atuação como organizador de grupos ligados ao fascismo: “o fascio

local tem hoje dois mil associados, enquanto a Associação dos Veteranos de guerra tem mais

de três mil”41. O autor define tais grupos como “núcleos de italianidade”, quanto a seus

integrantes apresenta-os como a “fina flor da juventude italiana” e sobre a sua atuação escreve

que eles conseguiram grandes avanços no campo da propaganda. O exemplo mais claro era o

de que as organizações fascistas, até então, haviam conseguido fundar, apenas no estado de

São Paulo, cerca de 48 seções “espalhadas por toda parte e não raramente nas localidades

mais longínquas”42. Sala afirma que tal fenômeno estava se espalhando por todo Brasil e, se

39 Idem, p. 126. 40 Idem, p. 148. 41 Idem, p. 147. 42 Idem, ibidem.

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assim seguisse, seria possível criar “uma teia capaz de organizar e coordenar a nossa

nacionalidade de uma maneira que pareceria impossível até pouco tempo atrás”43.

Realizar uma análise detalhada sobre o fascismo nas regiões coloniais levaria o estudo

para uma direção inicialmente não pensada, de qualquer forma é necessário que se dê a devida

atenção para a importância do movimento fascista no contexto da colonização italiana e sua

atuação na defesa de uma certa identidade étnica entre os grupos de imigrantes44. Naquilo que

diz respeito à questão da identidade pátria – tão pontuada por Sala ao longo do relatório – ela

deve ser lida, nos termos de Thales de Azevedo, como uma luta pela italianidade. Ou melhor,

a elaboração de uma identidade italiana entre os imigrantes deve ser observada também como

“um movimento de defesa e conservação do complexo sócio-cultural e econômico-político da

sociedade ‘colonial’” e não só enquanto “uma tentativa de manter os laços afetivos, políticos e

econômicos com a metrópole de origem”45.

Todavia, para conhecer mais detalhadamente o processo de incorporação dos

imigrantes na sociedade de acolhimento, outros fatores tão importantes quanto os esforços

realizados no sentido de manutenção de sua identidade pátria, devem ser levados em

consideração. Assim, mesmo nas situações onde a pressão para se manter uma certa

estabilidade identitária é constante, como no caso das regiões coloniais a “mudança é uma

inevitável função social inerente a todos os grupos organizados, inclusive os isolados. E é

tanto mais irresistível quando o grupo está em contato com outro que lhe seja alguma coisa

diverso”46 e, como grifei ainda no primeiro capítulo, a diversidade de origens étnicas e

sociais, bem como o contato entre esses diferentes foi uma das características mais marcantes

da região serrana.

As questões relativas ao complexo Estado, nação e imigração, salientadas por Sala,

também eram interpretadas pelos próprios imigrantes de um modo particular. Tais

interpretações geralmente eram formuladas pelos imigrantes a partir da realização de uma

leitura étnica da sua inserção nos quadros da sociedade de acolhimento. Giralda Seyferth, em

artigo que trata do problema na esfera da imigração alemã, chama atenção para tal fato e

mostra como “a questão da nacionalidade e da cidadania no contexto de uma etnicidade teuto-

brasileira” foi resultado do confronto entre diferentes concepções sobre Nação e Estado.

Assim, no caso estudado por Seyferth, a busca de integração política efetivada pelos teuto-

43 Idem. 44 Para aprofundar analiticamente as questões relativas ao fascismo e a imigração italiana, consultar: BERTONHA, João Fábio. Fascismo e os imigrantes italianos no Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. 45 Thales de Azevedo. Idem, op. cit., p. 244. 46 Idem, p. 245

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brasileiros era realizada a partir de uma associação entre o reconhecimento do Estado

brasileiro, enquanto entidade política territorial, e a etnia ou comunidade étnica dos grupos

imigrantes, expressa na germanidade e na vida característica das colônias, enquanto ponto de

referência de uma identificação nacional:

dois conceitos são fundamentais na definição dessa especificidade: nação e pátria, traduzidas na própria categoria de identificação criada pelas lideranças locais – Deutschbrasilianer [teuto-brasileiro]. A nova pátria é a colônia, a nova cidadania a brasileira, mas a etnia continua sendo alemã; o ato de emigrar significou o rompimento com o país de origem, mas não com o Volk (povo/etnia) alemão. O pertencimento sugerido por tal categoria remete, por um lado, a uma entidade supraterritorial – a nação alemã, concebida como entidade cultural e lingüística que une um povo da mesma origem – e, por outro lado, à cidadania e a um território considerado como Heimat [pátria] ou Vaterland – o Estado brasileiro47.

Dessa forma, há uma dissociação, por parte dos teuto-brasileiros, entre Nação e

Estado, a qual é possível pelo próprio modo como a colonização se desenvolveu, pois ela

exigiu dos colonos uma forte organização comunitária para suprir as necessidades que não

eram providas pelo Estado. Tal organização, ou melhor, a dissociação entre Nação e Estado

também era possibilitada pela reapropriação, por parte dos teuto-brasileiros, “da ideologia

nacionalista anterior à unificação alemã, que podia falar de uma nação sem Estado”. Assim, a

ligação com a Alemanha baseava-se “na comunidade de sangue e língua, naturalizada através

de um modo de vida alemão preservado nas colônias”48. Seyferth define essa concepção de

nação como “basicamente étnica e não política (...) a nação, nesse caso, é uma comunidade

imaginada, mas não politicamente imaginada; muito mais próxima do conceito weberiano de

comunidade étnica”49. Entretanto, o fato de não ser politicamente imaginada não

impossibilitou reações por parte do Estado brasileiro no sentido da nacionalização dos

colonos e de sua exclusão de participar da vida política devido o fato de serem estrangeiros.

Da mesma maneira, tal exclusão serviu como suporte para os colonos na perspectiva de sua

inserção enquanto comunidade nos quadros da política nacional e para reivindicação de seus

interesses. Foi, assim, importante motivo de conflitos.

Em outros termos, durante a Primeira República a maioria dos colonos não se

enquadrava nos conceitos de abrasileiramento então vigentes e este fato definia sua inserção,

tanto em termos sociais quanto políticos. Contudo, eles eram os representantes por excelência

47 SEYFERTH, Giralda. Identidade étnica, assimilação e cidadania: a imigração alemã e o Estado brasileiro, p. 05. In.: http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_26/rbcs26_08.htm. Texto coletado no dia 22 de agosto de 2007, às 11h40min. 48 Idem, ibidem. 49 Idem, p. 07.

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daquilo que se entendia como “civilização”, uma vez que eram brancos e provenientes da

Europa. Tal traço, por um lado, lhes garantia alguns privilégios comparativamente a situação

a que estavam expostos os outros grupos social e economicamente subordinados da sociedade

brasileira. Por outro lado, o fato de serem estrangeiros também definia o seu não

reconhecimento como cidadãos. O que nos leva a uma outra pergunta: quem efetivamente era

considerado Cidadão no período50?

As questões relacionadas à imigração, principalmente ao estabelecimento dos

imigrantes no Brasil, nunca foram consensuais e, ao longo da história, tanto as posições como

as interpretações daqueles que eram contrários ou responsáveis politicamente pelo

desenvolvimento das políticas imigratórias sempre foram divergentes51. A mesma constatação

é válida para o campo da produção intelectual a respeito do tema, visto que existem

estudiosos da questão que a analisaram a partir do ponto de vista da raça e da assimilação,

como Oliveira Vianna52. Outros que a interpretaram a partir das teorias da aculturação e talvez

o principal representante dessa “corrente” tenha sido Emílio Willems53. Nos últimos anos,

alguns estudiosos têm se debruçado sobre o tema da imigração e dos imigrantes tomando

como ponto de partida de suas análises questões ligadas às teorias da etnicidade e os

problemas relativos à identidade nacional, como fazem Giralda Seyferth54 e Jeffrey Lesser55.

A entrada de imigrantes no Rio Grande do Sul da Primeira República, longe de ter

sido um assunto de consenso foi matéria de muita discussão. Da mesma forma que existiam

interesses por parte das nações de emigração a respeito da transferência de seus súditos a

outros territórios, também os interesses das sociedades de imigração relativos às pessoas que

buscavam nela se estabelecer eram objeto da relação. No caso do Rio Grande do Sul, vigorava

a necessidade de povoamento de uma parte de seu território, o interesse nos lucros que

50 Para aprofundar a discussão sobre esse tema, ver: CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. Conferir também a já citada obra de Olívia Maria Gomes da Cunha e Flávio dos Santos Gomes. Quase-cidadão. Idem, op. cit. 51 Para conhecer alguns detalhes dessas divergências, no caso específico da colonização alemã para Rio Grande do Sul, ver: PICCOLO, Helga Iracema Landgraf. Imigração alemã e construção do Estado nacional brasileiro: Rio Grande do Sul, século XIX. In.: Acervo: Revista do Arquivo Nacional, volume 10, número 02, julho/dezembro, 1997, p. 165-179. 52 Ver: VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil: história, organização e psicologia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, vol. 1, 1938 e ___.Raça e assimilação. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1932. 53 WILLEMS, Emílio. A aculturação dos alemães no Brasil. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1980 e ___. Imigrants and their assimilation in Brazil. In.: MARCHANT, T. L. Brazil: portrait of half a continent. New York: Dryden Press, 1951. 54 Cf.: SEYFERTH, Giralda. A colonização alemã no Vale do Itajaí-Mirim: um estudo de desenvolvimento econômico. Porto Alegre: Editora Movimento, 1974; ___. A assimilação dos imigrantes como questão nacional. In.: MANÁ: estudos de Antropologia Social, volume 3, número 1, abril de 1997, p. 95-131 e ___. Identidade étnica, assimilação e cidadania. Idem, op. cit. 55 Ver, LESSER, Jeffrey. A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2001 e ___. O Brasil e a questão judaica. Rio de Janeiro: Imago, 1995.

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poderiam advir da entrada de imigrantes, a crença de uma parte da sociedade local na

superioridade do elemento europeu em relação ao nacional, entre outros mais. No mesmo

sentido, o problema do papel que os imigrantes deveriam desempenhar no âmbito local era

fator importante que marcou não só o modo como a imigração se desenvolveu, mas a forma

como aconteceu a inserção social do imigrante.

Em 1896 o Presidente do Estado, Júlio Prates de Castilhos, afirmava que a política de

colonização e imigração realizada no Rio Grande do Sul, diferentemente do que ocorria em

outros estados da Federação – São Paulo especialmente – não equivalia à importação de

“simples trabalhadores ou assalariados, a tanto por cabeça, que formam ordinariamente uma

massa flutuante ou movediça, inassimilável e refratária aos nossos costumes e as nossas leis,

encerrando um verdadeiro perigo nacional”56. Os imigrantes que se estabeleciam no Rio

Grande do Sul eram identificados com a palavra “colono”. Ser colono, sob a ótica dos

governantes, era equivalente a ser pequeno proprietário agrícola, fixado à terra, adaptado à

nacionalidade, respeitador das leis e autoridades e, sobretudo, ser um produtor de gêneros

voltados a “avolumar as rendas do Estado”. Assim, uma das principais expectativas em

relação aos colonos e à colonização era que definitivamente eles contribuíssem no sentido de

tornar o Rio Grande do Sul o celeiro do país e, para tanto, era necessário que eles se fixassem

à terra e a fizessem produzir: “ao invés do que geralmente se observa fora daqui, o colono

incorpora-se facilmente à massa sedentária da população, não mais pensando em abandonar a

terra, de que se tornou proprietário”57.

Como venho frisando, o termo colono possui um conteúdo específico. Em termos

sociais, a palavra “colono” pode ser pensada como um adjetivo designativo, portanto,

permeado de representações, as quais têm o papel de exigir que as pessoas para quem ela é

dirigida realizem o seu conteúdo58. Para uma idéia do sentido que o termo possuía transcrevo

parte do discurso do Major Euclydes Moura que, em 1908, foi nomeado pelo Presidente do

56 CASTILHOS, Júlio Prates de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Júlio Prates de Castilhos, na 4° e última sessão ordinária da 2° legislatura, 20 de Setembro de 1896. Porto Alegre: Tipografia de Cesar Renhardt, 1896, p. 24. 57 MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 4° sessão ordinária da 3° legislatura, em 20 de setembro de 1900. Porto Alegre: Oficinas Tipográficas de A Federação, 1900, p. 26. No mesmo sentido, consta no relatório da SENOP de 1895: “o Rio Grande do Sul é para o imigrante a terra da promissão, pois a par da excelência do clima e da uberdade do solo, encontra ele aqui a satisfação da sua principal aspiração, que é tornar-se proprietário da terra que cultiva, o que não acha em outros estados, onde é explorado como simples máquina de trabalho, seja assalariado, seja trabalhando de parceria”. Cf.: PAROBÉ, João José Pereira. Relatório dos negócios de Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Presidente do Estado, Dr. Júlio Prates de Castilhos, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, 1895. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1895, p. 16. (AHRS - OP. 02). 58 Consultar, BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: EDUSP, 1996.

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Estado para percorrer algumas capitais do Brasil divulgando os produtos da agricultura rio-

grandense. Sempre que chegava a uma capital e montava a exposição, no dia da abertura, o

Major iniciava o evento com o seguinte discurso:

Efetivamente o colono rio-grandense levanta-se antes da aurora e enceta logo sua rude tarefa, da qual só se afasta com o crepúsculo da tarde sempre acompanhado da numerosa prole. E quem passar em noites de luar pela casa de um desses obreiros da nossa riqueza, vê-lo-á ainda rompendo a terra para a plantação ou fazendo o ruído da colheita. O trabalho do colono só é interrompido pelo descanso dominical. As suas mãos deixam a terra, senão para se erguerem aos céus em agradecida prece pela divina sócia de seus rudes trabalhos59.

Os documentos também trazem informações sobre as ações que deveriam ser tomadas

por parte do Estado para que este ideal de colono acontecesse na prática e, uma delas, era a

imigração espontânea. Ao longo dos relatórios da DTC e das mensagens presidenciais é

bastante comum encontrar discursos defendendo este tipo de imigração, que geralmente é

apresentada como a “mais profícua e destituída de perigos no ponto de vista nacional e no

tocante a normalidade da atividade agrícola”60. Assim, enquanto não vigorou o tratado

assinado entre o Rio Grande do Sul e o SPSN (1908-1914) para introdução de imigrantes no

estado, a corrente imigratória era espontânea e, embora pequena, era classificada como

constituída pelos “melhores elementos”.

Constantemente era comparada à que se dirigia para São Paulo, a qual, por ser

subvencionada era adjetivada como um “desastroso inconveniente”, especialmente em função

de que a grande maioria dos imigrantes que chegavam eram caracterizados como “indivíduos

inteiramente inaptos para todos os trabalhos da vida agrícola”61. Em outros termos, implícita à

defesa da imigração espontânea estava o interesse de exercer um maior controle sobre a

“qualidade” dos imigrantes que desejavam entrar no estado. Sobre tal questão em texto escrito

por Ernesto Pellanda – chefe da repartição de estatística do Rio Grande do Sul, publicado em

1925, o qual foi encomendado pela presidência do Estado e deveria tratar do centenário da

colonização alemã –, o autor escreve que a partir da entrada em vigor do acordo com a União

em 1908 a qualidade dos imigrantes vindos para o Rio Grande do Sul “havia piorado”. De

59 MOURA, Euclydes B. de. Relatório da missão de propaganda e de defesa da produção do Rio Grande do Sul no norte da República. Pelo comissário oficial Major Euclydes B. de Moura, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, Presidente do Estado. Porto Alegre: L. P. Barcelos & Cia; Livraria do Globo, 1908, p. 13. 60 Júlio de Castilhos, 1896. Idem, op. cit., p. 24. 61 MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 2ª sessão ordinária da 4ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1902. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1902, p. 13-14.

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acordo com Pellanda, a maior parte deles eram “estranhos à lavoura e exigentes, em certos

casos com razão, visto as grandes vantagens oferecidas pela referida diretoria [SPSN] em sua

propaganda na Europa”62.

Em pesquisa que realizei em documentos que compõem a série Ministério da

Agricultura do Arquivo Nacional, encontrei alguns ofícios e correspondências enviadas por

agentes do governo do Rio Grande do Sul ao Ministério da Agricultura reclamando da vinda

de imigrantes indesejados e “difíceis de tratar”, visto que alguns eram classificados como

anarquistas, outros como desconhecedores dos trabalhos agrícolas, doentes, socialistas,

marginais, assassinos, etc., etc., etc63. Tais fatos são acionados por Borges de Medeiros

quando, em 1914, por meio de um oficio enviado ao Ministério da Agricultura resolve

rescindir o contrato feito com o SPSN para introdução de imigrantes. As outras justificativas

utilizadas por Medeiros eram as do grande aumento da população colonial, a da diminuição

do espaço para o estabelecimento dessas pessoas e especialmente porque nos últimos anos

havia ocorrido um extraordinário aumento na despesa dos cofres públicos relativas a

colonização “sem, todavia, trazer as vantagens compensadoras nem aumento proporcional da

produção, em conseqüência da inaptidão aos trabalhos agrícolas da maioria dos imigrantes

aliciados”64.

A intervenção do Estado não se resumia ao controle na entrada de imigrantes65,

também buscava estipular, depois deles instalados, de que forma deveriam praticar seus

trabalhos. Assim, em 1898, o chefe da seção de terras públicas, Francisco de Ávila Silveira,

determina que os diretores das colônias proibissem o desmatamento, visto que os colonos

estavam acostumados “para evitarem o trabalho de preparar as terras de capoeira em que,

depois da primeira colheita, a vegetação inventícia é em quantidade extraordinária, preferiam

62 PELLANDA, Ernesto. Repartição de estatística do Estado do Rio Grande do Sul: a colonização germânica no Rio Grande do Sul: trabalho organizado de ordem do governo do Estado em homenagem à colônia alemã em seu centenário. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1925, p. 15. 63 Cf.: ARQUIVO NACIONAL. Fundo Ministério da Agricultura e Série Agricultura, IA6 163 a IA6 174. 64 MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 1ª sessão ordinária da 8ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1914. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1914, p. 23. 65 “Quer na entrada de capitais, como na admissão de imigrantes, é preciso sempre que o Governo fique o juiz das condições em que elas se realizam, já que essas condições podem ser da maior importância para a constituição do Estado, moral, política e economicamente”. GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 70. In.: PAROBÉ, João José Pereira. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 20 de agosto de 1913. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Comércio, 1913, p. 59-105.

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fazer novas derrubadas”66. Em outras palavras, havia um esforço para que os imigrantes não

praticassem o mesmo tipo de agricultura que era considerada característica dos nacionais.

Contudo, Silveira reconhecia que seria muito difícil colocar em prática a medida devido à

impossibilidade de os diretores coloniais exercerem controle sobre os colonos, logo, definia

os praticantes desse tipo de agricultura como “maus colonos”67.

Um outro aspecto vinculado à entrada de imigrantes e que fazia parte das

considerações dos agentes governamentais era o da nacionalidade, o da raça e classe social a

que eles pertenciam. Tais circunstâncias diziam respeito, segundo Torres Gonçalves, a

aspectos morais e era de suma importância levá-las em consideração, uma vez que a

organização de uma sociedade, ponderava o diretor da DTC, não era obra só dos braços dos

indivíduos, mas das cabeças: “porque uma sociedade não é feita somente de atividade

industrial, mas principalmente pelas tradições, pelo grau de desenvolvimento intelectual, pelas

instituições políticas, pela religião”68. Assim, concluía Gonçalves, naquele momento não era

necessário introduzir mais pessoas no Rio Grande do Sul, antes era preciso cuidar das

condições para os que já viviam no estado se amalgamassem e se identificassem com a Pátria.

Uma medida a ser tomada era encontrar alternativas para que a população se desenvolvesse e,

para tanto, era necessário, do ponto de vista do diretor da DTC, introduzir entre elas os meios

que facilitassem “a ação do homem sobre o mundo, pela indústria, a arte e a ciência”69.

Ancorado nesse raciocínio Torres Gonçalves ponderava que os indivíduos “mais

aptos” para atuar na colonização não eram os imigrantes recém chegados que, na maioria das

vezes, traziam mais problemas que benefícios ao governo. Assim, eram os descendentes dos

colonos antigos que, segundo Gonçalves, melhor cumpririam a tarefa da colonização e do

povoamento, uma vez que eles “apresentavam um certo grau de assimilação em relação ao

nosso meio”70, tanto social como físico; e do ponto de vista financeiro, não “pesavam aos

cofres públicos”, pois geralmente dispunham de recursos para o pagamento das terras. Além

disso, constituíam “em relação à imigração passada de onde proveio, a seleção feita – a boa

parte – que fixou-se ao solo, prosperou e evoluiu sob o conjunto de condições propícias que

66 SILVEIRA, Francisco Ávila. Relatório da Secção de Terras Públicas e colonização. In.: PEREIRA, João José Pereira. Relatório dos Negócios de Obras Públicas, apresentado ao Exm. Sr. Presidente do Estado, Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, 1898. Manuscrito. 67 Idem, ibidem. 68 Carlos Torres Gonçalves, 1913. Idem, op. cit., p. 72-74. 69 Idem, ibidem. 70 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 107-108. In.: PAROBÉ, João José Pereira. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros presidente do Estado do Rio Grande do Sul pelo secretário de Estado João José Pereira Parobé em 25 de agosto de 1914. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1914, p. 93-186. (AHRS - OP. 37).

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lhe oferecemos”71. Torres Gonçalves considerava que os deveres do Estado em relação a essas

pessoas eram maiores do que com as políticas de atração de novos imigrantes. Tal constatação

também levava o diretor da DTC a registrar que o governo tinha uma certa dívida para com o

elemento genuinamente nacional, o qual “como capacidade industrial” era inferior aos

descendentes de imigrantes, mas mesmo assim deveria ser valorizado, pois moralmente era o

representante por excelência da Pátria72.

Igualmente havia classificações a respeito dos imigrantes a serem destinados ao

estado, as quais tomavam como pressuposto a origem étnica e a aptidão para o trabalho dos

mesmos e, a partir dela, era definido quais seriam as pessoas mais propícias a entrar no Rio

Grande do Sul. Ao tratar das diversas nacionalidades – russos, holandeses, alemães,

austríacos, polacos e suecos – que viviam na colônia Guarani, por exemplo, o diretor da DTC,

a partir das informações que havia recebido do diretor dessa colônia, escreve que, entre os

imigrantes, eram

preferíveis os russos alemães (barbados), os alemães, polacos e austríacos e não convém os russos pelados (cara raspada), nem holandeses. São toleráveis outros. Os russos pelados além de não servirem para o trabalho de mato, são dados a vadiagem, abandonam o lar para viverem pedindo esmolas; os holandeses são pouco dados ao trabalho e amigos de viverem de expedientes73.

Outro quesito importante na seleção do tipo de imigrante que deveria vir para o Rio

Grande do Sul era o de que eles fossem conhecedores do trabalho agrícola. No entanto, como

não era possível exercer controle sobre a entrada dos imigrantes, especialmente de 1908 a

1914, quando vigorou o tratado com o SPSN, era grande o número de pessoas que nunca

havia trabalhado na agricultura e chegava ao estado. Estes eram, em sua maioria, ex-operários

industriais da Europa, os quais, de acordo com Torres Gonçalves, eram “inábeis para manejar

a foice e o machado, cortam-se freqüentemente; além disso, deixam-se apanhar por árvores.

Descoroçoam por qualquer indisposição”74. Exemplo de que a constatação do diretor da DTC

não era de todo sem fundamento é o de que, em 1910, dos 1.067 imigrantes encaminhados à

Colônia Guarani, 140 haviam se retirado e 8 morreram de desastres, esmagados por árvores75.

71 Idem, ibidem. 72 Idem. 73 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 124. In.: GODOY, Candido José de. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves presidente do Estado do Rio Grande do Sul pelo secretário de Estado Candido José de Godoy em 10 de setembro de 1910. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1910, p. 93-157. (AHRS - OP. 24). 74 Idem, p. 125. 75 Idem, p. 124.

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A impossibilidade de exercer um maior controle sobre a entrada de imigrantes trazia

problemas como a chegada de algumas pessoas doentes. Em 1910, entraram no estado alguns

alemães e “polacos” vindos do Amazonas, onde estavam trabalhando na construção da estrada

de ferro Madeira-Mamoré, com os quais o governo foi “forçado a fazer despesas

extraordinárias, não só em alimentação, como de farmácias e médico”76. Alguns deles

morreram e outros iam para os lotes, mas voltavam “ao cabo de 6 ou 8 dias para a enfermaria

ou barracões que por eles estão transformadas em sanatórios ao longo da estrada”77. Da

mesma forma, havia o problema da adaptação dos imigrantes às condições físicas e climáticas

do estado, já que “qualquer picada de inseto transforma-se em ferida e muitas vezes sobrevém

a febre. Vão logo para cama e exigem tratamento”78. O relatório da DTC de 1910 também traz

informações de imigrantes doentes que foram encaminhados à Colônia Ijuí, os quais devido à

mudança de clima e alimentação apresentavam problemas de estômago e intestinos. Da

mesma maneira, em 1911, dos imigrantes direcionados à Colônia Guarani, 300 estavam

doentes, sendo que metade deles veio a falecer79.

Se a vinda de imigrantes pertencentes a determinadas etnias, de indivíduos doentes e

de difícil adaptação ao clima rio-grandense não eram incentivadas, existia, nesse sentido, a

defesa de posições um tanto ambíguas. Em seu relatório de 1916, por exemplo, o diretor da

DTC crítica a existência de dois projetos de lei sendo discutidos na Assembléia Legislativa

Federal e que tinham por intenção proibir a entrada de mutilados de guerra no Brasil. Segundo

Torres Gonçalves, tais projetos, do ponto de vista moral, eram de uma “dura cegueira” porque

não levavam em conta os “princípios da fraternidade internacional”. Sob o ponto de vista

material, esqueciam de levar em conta que as nações necessitam para se constituir mais de

cérebros do que de braços. Assim, argumentava Torres Gonçalves, o Brasil não só devia

receber, “mas agasalhar fraternalmente os mutilados de guerra que porventura procurem o

nosso país”80.

76 Idem, p. 125. 77 Idem, ibidem. 78 Idem. 79 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 133. In.: GODOY, Candido José de. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves presidente do Estado do Rio Grande do Sul pelo secretário de Estado Candido José de Godoy em 08 de setembro de 1911. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1911, p. 101-174. (AHRS - OP. 25). 80 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e colonização, p. 152. In.: ALVES, Protásio. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. General Salvador Ayres Pinheiro Machado vice-presidente, em exercício, do Estado do Rio Grande do Sul Dr. Protásio Alves Secretário de Estado, interino, dos Negócios das Obras Públicas em 09 de setembro de 1916. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1916, p. 111-212. (AHRS - OP. 41).

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A posição do diretor da DTC pode ser lida como resultado da sua interpretação da

sociedade baseada na sua leitura particular do positivismo81. Um outro exemplo de como os

princípios positivistas influenciavam no modo como a colonização era administrada encontra-

se no relatório de 1915. Neste caso, trata-se da aplicação da idéia de incorporação do

proletariado a sociedade moderna, tão cara aos positivistas. Devido a guerra mundial os

trabalhos nas obras do porto de Rio Grande foram paralisadas, assim como os da viação

férrea, conseqüentemente um grande número de trabalhadores foi dispensado e, “para ampará-

los, o Governo do Estado resolveu instalar nas colônias Erechim e Guarani os que quisessem

para lá ser encaminhados”82. Aqueles que aceitassem a proposta receberiam transporte

gratuito, um lote de terras e, aos casados, seria adiantado o valor de 200$000 réis em dinheiro,

mais 200$000 réis como auxilio para serviços na construção de estradas. Entretanto, segundo

informações do diretor da Colônia Erechim, tal medida não vinha se demonstrando muito

profícua porque “o grande número de proletários enviados para cá nos últimos meses trouxe

alguns casos de tuberculose, muitos de sífilis e alcoolismo”83.

Em 1917, o tema da qualidade dos imigrantes a serem destinados ao Rio Grande do

Sul e a possibilidade de se imporem algumas restrições volta a ser objeto das reflexões de

Torres Gonçalves. Para o diretor da DTC, no Brasil não deveriam existir proibições

“vexatórias” como aquelas que existiam nos Estados Unidos, as quais impediam “a entrada no

território do país dos velhos, dos doentes, dos que não dispõem de certo capital, e chegam até

a indagar do grau de moralidade feminina”84. Além de desonrosas, tais limitações eram

definidas por Torres Gonçalves como “contrárias à fraternidade humana”. Entretanto, são

contínuas, ao longo dos relatórios, queixas, tanto por parte do diretor da DTC como de seus

subordinados, das dificuldades provindas da chegada de imigrantes seja doentes,

desconhecedores da atividade agrícola, etc... Portanto, na prática, a fraternidade humana tinha

um limite.

81 Aspectos vinculados a utilização do positivismo como teoria para pensar a imigração serão mais detidamente abordados no próximo capítulo. 82 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 95. In.: PAROBÉ, João José Pereira. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas apresentado ao Exmo. Sr. General Salvador Ayres Pinheiro Machado presidente do Estado do Rio Grande do Sul pelo secretário de Estado Engenheiro João José Pereira Parobé em 31 de agosto de 1915. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1915, p. 73-139. (AHRS - OP. 40). 83 Idem, p. 132. 84 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 356. In.: ALVES, Protásio. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros presidente do Estado do Rio Grande do Sul pelo Dr. Protásio Alves Secretário de Estado, interino, dos Negócios das Obras Públicas em 14 de setembro de 1917. Porto Alegre: Tipografia da Empresa Gráfica Rio-Grandense, 1917, p. 345-441. (AHRS - OP. 46).

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Outro fato que influenciava muito no modo como acontecia a inserção dos imigrantes

nos quadros da sociedade regional era o da localização das colônias. Como sublinhei acima,

Umberto Sala, funcionário do governo italiano, considerava esse o principal problema a

desaconselhar a vinda de italianos para se estabelecerem nos estados do sul do Brasil. No caso

dos agentes governamentais do Rio Grande do Sul, tal assunto era um dos mais importantes a

ser resolvidos: “por falta de viação conveniente, a maior parte da região agrícola do estado

não tem o desenvolvimento que poderia ter”85. Para o diretor da DTC, a forma mais

apropriada para solucionar as questões ligadas à má localização de algumas colônias estava no

desenvolvimento da viação e dos contatos que seriam possibilitados por ela. Tais contatos,

segundo Gonçalves, teriam o papel importante de facilitar o processo de “assimilação” dos

imigrantes. Da mesma forma, a possibilidade de imigrantes e nacionais poderem pagar seus

lotes com a prestação de serviços na construção e conservação das estradas era definida como

útil. A prática de aproximar colonos e nacionais era apresentada como facilitadora no

processo de introdução dos nacionais no mundo do trabalho sistemático. Para os imigrantes,

os contatos atuariam no sentido de eles criarem laços de identidade com a nova pátria – isto é,

na perspectiva de sua nacionalização.

Para uma idéia de quanto a presença de obras de viação em uma colônia, sobretudo de

uma estrada de ferro, poderia influenciar no seu desenvolvimento, segundo dados da

mensagem presidencial de 1914, o frete de uma saca de cereal de Erechim a Porto Alegre

custava cerca de 920 réis percorrendo uma distância de 812 quilômetros. Enquanto isso, o

transporte de uma saca de Guaporé a Porto Alegre, numa distância de 200 quilômetros,

custava 3 mil e 500 réis86. Baseado nesses dados, Borges de Medeiros escrevia que a situação

da colônia Erechim era “edificante” em relação às colônias mais antigas, visto que essa

colônia que havia sido “fundada há cinco anos, deve a sua admirável prosperidade à

circunstância privilegiada de estar próxima à grande linha férrea Rio Grande/São Paulo, cujo

frete reduzido lhe permite a exportação para todos os mercados nacionais”87.

Aproximar colonos e nacionais é tema recorrente nos relatórios da DTC e nas

mensagens dos presidentes de Estado. Geralmente quando a comparação é acionada, tem o

sentido de pontuar as diferenças entre os dois grupos e, igualmente, definir objetivos

pretendidos. Em seu relatório de 1914, o diretor da DTC pontuava que existiam dois

elementos colonizadores no Rio Grande do Sul: os de origem estrangeira – que eram

85 Carlos Torres Gonçalves, 1911. Idem, op. cit., p. 167. 86. Cf.: Antônio Augusto Borges de Medeiros, 1914. Idem, op. cit.,, p. 24. 87 Idem, ibidem.

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imigrantes ou descendentes de colonos velhos – e os nacionais – em sua maioria luso-

brasileiros. Para Torres Gonçalves, do ponto de vista prático, o primeiro era superior e, do

ponto de vista moral, o segundo. Também existiam classificações determinando diferenças no

interior dos grupos como aquelas que diziam que o filho de imigrantes era superior ao recém

chegado e aquelas que definiam diferenças dentro do grupo dos nacionais, como veremos no

capítulo a seguir.

No caso dos colonos, ainda existiam os inconvenientes relacionados ao pertencimento

étnico, uma vez que para evitar possíveis obstáculos decorrentes da formação de nações

dentro da nação, as colônias públicas fundadas durante o período republicano eram mistas,

portanto, compostas de imigrantes originários de diversos países europeus. Atitude que, por

seu turno, não evitava os contratempos relativos aos conflitos étnicos. Ademais, apesar de os

colonos pertencentes a uma mesma origem étnica tradicionalmente serem apresentados como

portadores de estilizações de vida e comportamentos semelhantes, eles não eram homogêneos.

Pelo contrário, “apresentam clivagens. Seus antepassados procediam de várias regiões da

Europa e entraram no Brasil em períodos diversos”88. No caso específico da colonização

alemã, por exemplo, Jean Roche, escreve que

desde a origem da colonização, existiu grande heterogeneidade dos elementos humanos. Certamente, fundiu-se por vezes, sob a influência dos grupos majoritários, mas provocou, com muito mais freqüência, aglutinação dos imigrantes que tinham a mesma origem, falavam o mesmo dialeto e praticavam a mesma religião; contribuiu, ainda, a limitar o raio de seu horizonte de vida e a conservar tradições familiares ou regionais; fortaleceu a tendência a segregação, que a orientação essencialmente rural da colonização só favoreceu em demasia89.

O padre Silésio, Antoni Cuber, em sua descrição da Colônia Ijuí, apresenta alguns

exemplos de como os conflitos, tanto os provenientes de questões étnicas e religiosas90 como

os relativos à inserção dos imigrantes na colônia, desenvolviam-se. Assim, havia alguns

colonos poloneses que, de acordo com Cuber, “mais esclarecidos e sensatos”, tão logo

recebiam as primeiras ajudas provenientes dos auxílios governamentais ou dos trabalhos

realizados na construção de estradas, dirigiam-se aos seus lotes e os faziam produzir de modo

que “quando o auxílio governamental foi retirado, eles já podiam viver do fruto de seus

88 RENK, Arlene. Sociodicéia às avessas. Chapecó: Grifos, 2000, p. 131-132. 89 ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora do Globo, 1969, p. 158-159. 90 Sobre o assunto da religião e os conflitos que lhe são peculiares, especificamente no caso das colônias alemãs, ver: GERTZ, René. O aviador e o carroceiro: política, etnia e religião no Rio Grande do Sul dos anos 1920. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.

- 126 -

trabalhos”91. Entretanto, alguns outros “não laboriosos”, tiveram que “espiar sua estupidez e

preguiça passando fome e miséria”. Conseqüentemente aumentava o número de “roubos

desavenças, maldições e bebedeiras desesperadas”92 na colônia. Cuber relata casos em que a

“ignorância e a discórdia entre poloneses e outros colonos” davam lugar a que certos

funcionários, “como o escrivão e o interprete, se atribuíssem o direito de atar os homens ao

palanque, expostos ao sol ardente, durante muitas horas, ou de açoitá-los sem compaixão”93.

Em outras palavras, o interesse do governo estadual de fundar colônias mistas objetivando

apurar o processo de nacionalização dos imigrantes acabou dando resultados não muito

satisfatórios, já que, ao fim e ao cabo, serviu como elemento para apurar ainda mais as cisões

étnicas94.

Neste sentido, os casos de conflitos envolvendo diferentes etnias e baseados em

questões étnicas como os ocorridos na colônia Ijuí, cuja descrição foi feita pelo padre Antoni

Cuber, são um exemplo de que, como mostra Fredrik Barth, é nos contatos que os grupos

mantêm que se definem as suas respectivas identidades étnicas95. Por sua vez, a ação dos

funcionários da colônia de atar e açoitar os colonos, mesmo que isolada, vai de encontro aos

discursos de fraternidade humana, corriqueiramente defendidos pelos responsáveis pela

colonização.

A defesa da imigração e da fundação de colônias na região serrana era sustentada,

entre outros, pelo argumento de que aquele espaço, em termos de produção agrícola, era mal

aproveitado e apenas a vinda de imigrantes poderia reverter o quadro. Nessa perspectiva, a

possibilidade do desenvolvimento agrícola, somada ao interesse nos lucros que poderiam

advir pela comercialização das terras96 e a idéia comum à época de que o imigrante era

superior eram motivos constantemente lembrados pelos defensores da colonização. Por sua

vez, a presença de pessoas produzindo gêneros até então de difícil acesso na região também

era importante, pois, de uma maneira geral, barateava o consumo. Hemetério Velloso, nos

relatos sobre a região e seus habitantes, salienta que produtos como “aves e leitões”,

91 CUBER, Antoni. Nas margens do Uruguai. Ijuí: Editora UNIJUI, 2002, p.18-19. 92 Idem, ibidem. 93Idem. 94 Um estudo que trata sobre a questão étnica para o contexto específico da Colônia Ijuí é: WEBER, Regina. Os operários e a colméia: trabalho e etnicidade no sul do Brasil. Ijuí: Editora UNIJUI, 2002. 95 Cf.: BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In.: POUTIGNAT, Philipe, STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade: seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: UNESP, 1998. 96 Sobre a valorização das terras, Hemetério Velloso da Silveira escreve: “é surpreendente o modo por que o solo missioneiro, que há 48 anos, encontramos na maior parte desvalorizado, ou constando ainda de prédios rústicos baratíssimos, hoje, ninguém os adquire, senão por bem alto preço”. Cf.: SILVEIRA, Hemetério Velloso da. As missões orientais e seus antigos domínios. Porto Alegre: Companhia União de Seguros Gerais, 1979, p. 145.

- 127 -

anteriormente muito caros e escassos, a partir da fundação das primeiras colônias e das

transações comerciais que com elas se desenvolveram, passaram a ser facilmente encontrados

na cidade de Cruz Alta e, além de tudo, segundo Velloso, eram “baratíssimos”97.

Os discursos laudatórios da imigração e dos imigrantes, comuns à época, por um lado,

tomavam como ponto de partida uma valorização excessiva do imigrante representado como

indivíduo trabalhador e preocupado com o futuro e, por outro, sustentavam-se na depreciação

dos outros grupos sociais, os quais eram apresentados como vadios e degenerados. Para

Hemetério Velloso, por exemplo, enquanto o “povo missioneiro” em geral procurava “tirar da

terra o que esta pode produzir-lhes”, os colonos “juntam a isso o enriquecimento da

propriedade rústica com obras sólidas e até elegantes”98. Tal circunstância advinha do fato de

os “brasileiros de origem portuguesa e os mestiços” não darem tanta importância a seus

pequenos estabelecimentos agrícolas quanto davam os estrangeiros, sobretudo os de origem

germânica99.

FIGURA 8:

CASA PARTICULAR DE UM COLONO EM ERECHIM

CASA DO CACIQUE EDUARDO DOBLE EM LAGOA VERMELHA

FONTE: Carlos Torres Gonçalves, 1911. Idem, op. cit., anexos.

FONTE: Carlos Torres Gonçalves, 1919. Idem, op. cit., anexos.

Um outro exemplo utilizado por Velloso e que também está presente nos relatórios da

DTC, inclusive com imagens, para pontuar as diferenças entre nacionais, índios, negros e

97 Idem. 98 Idem, p. 175. 99 Idem.

- 128 -

colonos, era o da casa em que viviam. A casa do imigrante caracterizava-se, segundo Silveira,

por ter uma cozinha inteiramente separada dos outros cômodos, um paiol, uma horta com

verduras e flores, laranjeiras, pessegueiros, potreiro bem gramado, roçados para legumes,

chiqueiro de porcos e galinheiro100. Logo, uma habitação bem diferente da casa, morada típica

dos nacionais, dos índios e dos negros, sempre descrita como uma choça ou tapera,

geralmente escorada por algumas madeiras (ver figura 8, acima).

As comparações entre imigrantes e os outros grupos sociais, nos mais diversos

aspectos que elas aconteceram, foram importantes na perspectiva de influenciar no processo

de constituição do conteúdo comum ao termo colono, inclusive elas são um dos pontos chave

para compreender o modo como as pessoas que são identificadas com essa palavra e também

se identificam com ela dão significados, por vezes diferenciados, a essa representação.

Thales de Azevedo, para o caso da colonização italiana, sublinha que colono é o

“homem da zona rural, cujo isolamento relativo, ainda que acentuado, o leva a participar de

elementos da cultura nacional, porém se conserva muito mais tempo italiano”101. Contudo, a

ressocialização do imigrante no contexto das colônias, à medida do tempo, transforma-o e –

principalmente no caso dos filhos de imigrantes – com o passar dos anos, eles já não são mais

“realmente italianos nem inteiramente brasileiros”. Assim, “o qualificativo ‘italiano’ deixa de

ser unicamente o gentílico, para denominar um tipo social”102. Por sua vez, esse “tipo social”,

denominado colono, segundo Azevedo, “adquire a consciência de uma particular identidade

social e cultural que se opõe à do roceiro do Brasil tradicional”103 (grifo do autor).

No mesmo sentido, Giralda Seyferth sublinha que, no caso da colonização alemã, o

“pioneirismo” dos colonos e a eficiência do colonizador teuto, “são contrapostos a uma

imagem estereotipada do brasileiro rural, desqualificado como caboclo por todo um conjunto

de características desabonadas, remetidas a uma condição de inferioridade racial”104. Emilio

Willems também chama atenção para esse fato e sublinha que a palavra “caboclo” na “boca

do teuto-brasileiro” chega a ser um insulto e é usada como símbolo de inferioridade cultural:

“‘caboclo’ é o homem que não trabalha, que é analfabeto, cachaceiro, sifilítico e opilado, que

não educa seus filhos e não pensa no dia de amanhã”105.

Outro elemento importante que ajuda a compreender a importância dessas

diferenciações é que elas servem como ponto de referência para inserção dos imigrantes no

100 Idem. 101 Thales de Azevedo. Italianos e gaúchos. Idem, op. cit., p. 269. 102 Idem, ibidem. 103 Idem. 104 Giralda Seyferth. Identidade étnica, assimilação e cidadania. Idem, op. cit., p. 06. 105 Emílio Willems. A aculturação dos alemães no Brasil. Idem, op. cit., p. 134-135.

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contexto da sociedade de acolhimento. Em seu estudo sobre a questão da italianidade na

região de Santa Maria, município situado na parte central do Rio Grande do Sul, Maria

Zanini, sublinha o quanto, para os descendentes de imigrantes italianos que vivem naquele

espaço, a etnicidade tem um “papel político pelo qual o descendente se percebe, por ser

portador de determinados valores [relativos a italianidade], melhor situado socialmente, o que

permite também que sua auto-estima se eleve”106. Além disso, a elaboração deste

pertencimento étnico possibilita aos descendentes orientarem-se temporalmente, visto que

produzem uma historicidade própria, a qual tem sua origem na travessia – isto é, na viagem

realizada pelos primeiros imigrantes que saíram da Itália e vieram ao Brasil. Dessa forma,

conferem um sentido ao mundo no qual eles, como descendentes de imigrantes italianos,

atualmente vivem.

Em 16 de julho de 1917 ocorreu um fato na Colônia Rio Branco, sétimo distrito do

município de Santo Ângelo que possibilita compreender como, no contexto local, ocorriam

tais diferenciações. Em interrogatório ocorrido neste dia, Nicanor Paz (22 anos de idade,

solteiro, residente no sétimo distrito de Santo Ângelo há cinco meses, jornaleiro) conta que

estava “serrando madeira em companhia de Jacob Dorasso Filho, estando este pelo lado de

cima, em um dado momento despendeu-se a cabrita da serra e foi bater na testa de Jacob que,

indignando-se, o chamou de brasileiro infeliz, dizendo-lhe mais impróprios”107. De acordo

com a narrativa de Nicanor, após dizer-lhe as referidas ofensas, Jacob armado de uma faca

desceu de cima da tora que estava sendo serrada e tentou agredi-lo e, para se defender, ele

também usou de uma faca que trazia e feriu Jacob. Pedro Carnelluti (24 anos de idade, casado,

agricultor, natural do Rio Grande do Sul e morador no município a três anos) que havia

contratado Nicanor e Jacob para serrarem a madeira, levou Nicanor até o delegacia onde foi

preso e o processo foi instaurado.

No mesmo dia, Carnelluti também dá sua versão dos fatos e descreve como a briga se

desenvolveu, mas não chega a mencionar o fato de Jacob ter chamado Nicanor de “brasileiro

infeliz”. No entanto, quando é perguntado sobre o “procedimento” dos brigões, responde que

Nicanor “era bastante ruim” enquanto que Jacob, embora o conhecesse a pouco tempo, sabia

“ser bom”108. Seria precipitado, diante da falta de informações presentes no processo crime,

afirmar que Pedro Carnelluti ao qualificar Nicanor como “bastante ruim” e Jacob como

“bom” estava tomando uma posição étnica, uma vez que ele e Jacob são de origem italiana,

106 ZANINI, Maria Catarina Chitolina. Italianidade no Brasil meridional: a construção da identidade étnica na região de Santa Maria-RS. Santa Maria: UFSM, 2006, p. 24. 107 APERGS. Processos Crime 1.460. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1918. Maço 49. 108 Idem, ibidem.

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como fica visível nos sobrenomes de ambos, contudo, essa suposição não deixa de ter

fundamento. De qualquer forma, a situação é demonstrativa do emprego pejorativo da palavra

“brasileiro” como elemento de diferenciação. Por fim, em 19 de setembro de 1917, o caso foi

levado a julgamento e Nicanor foi absolvido.

As diferenciações existentes entre colonos e nacionais, tanto serviram como

argumento de defesa para justificar a entrada de imigrantes no Brasil – visto que tais

indivíduos, aos olhos de seus defensores portavam valores e comportamentos que os

identificavam com a idéia de civilização que, por sua vez, era vinculada a Europa e a

costumes europeus – como eram empregadas pelos grupos – ítalo-brasileiros, teuto-

brasileiros, etc... – no sentido de se diferenciarem daqueles que, ao lado deles, estavam

envolvidos no processo de povoamento e colonização, como fica visível na briga ocorrida

entre Nicanor e Jacob. Nesta perspectiva, a proximidade com o Estado, as políticas de

colonização, os favores destinados aos imigrantes, a idéia de branqueamento e o discurso

racial não estavam isentos de serem utilizados pelos próprios colonos para justificar sua

posição na hierarquia social e para conformar um determinado status. Nestes termos, é

importante estar atento para o fato de que, em sociedade,

as pessoas podem cooperar uma com as outras numa situação comunitária sem estar conscientes daquilo que há de característico no seu grupo. Quando encontram estranhos, tornam-se conscientes de aspectos a seu respeito que até então tinham tomado como seguros, e a espécie de conscientização que adquirem da sua identidade pode ser influenciada por um desejo de se diferenciarem dos que são os seus vizinhos mais próximos109.

Nessa perspectiva, a circunstância de os imigrantes provindos de diferentes lugares se

auto-reconhecerem a partir de princípios étnicos vinculados às suas nações de origem e de,

como assinalei acima, existir um esforço por parte do governo no sentido de que tais grupos

abandonassem tais identidades em prol de uma identidade nacional, definia a forma como os

colonos elaboravam suas identidades próprias. Todavia, como foi assinalado, tais identidades

tomavam por base a diferenciação e devido a conjuntura, especialmente ao discurso

apologético existente em relação ao imigrante, tal auto-identificação expressava e consolidava

a diferenciação, cujo o tema central era a “superioridade” prática e moral dos imigrantes e dos

descendentes em relação aos outros grupos que com eles conviviam. Ao fazer isso, os

imigrantes “simultaneamente exteriorizavam o seu ser no mundo social e interiorizavam esse

último como realidade objetiva e, nesse processo, produziam a si mesmos e a sociedade”110.

109 BANTON, Michel. A idéia de raça. Lisboa: Edições 70, 1979, p. 153. 110 Maria Catarina Chitolina Zanini. Idem, op. cit., p. 68.69.

- 131 -

Tal ação, em termos sociais, leva a uma idealização do pertencimento e do que

significa participar dos valores colocados como característicos de um determinado grupo.

Idealização que, no caso dos descendentes de imigrantes italianos estudados por Zanini, os

leva a elaborarem uma “representação romântica de seus antepassados e da própria Itália”111,

fazendo que elas valham mais do que a própria realidade. Dessa forma, eles dão uma ordem

ao mundo, pela qual encontram “seus lugares e podem estabelecer classificações, bem como

repassar valores aos seus descendentes por meio de enredos apresentados nas narrativas

míticas, como a coragem frente ao desconhecido e ao novo”112 e sua disposição para o

trabalho. Assim,

a construção da alteridade inicia-se, os brasileiros passam a ser ‘a negrada’, termo que até hoje é utilizado pelos descendentes para se referirem aos nacionais. Negrada não se refere à cor a pele, mas designa também aqueles que são nativos, portadores de hábitos e valores distintos, gente considerada de menor valia113.

Nesse processo, o “emigrado se transformava em imigrante e colono italiano

proprietário no Brasil, estabilizava-se material e psicologicamente”, assim, “a colônia

transformava-se em lugar; e o colono em ser”114. Não só isso, mas a leitura idealizada de sua

atuação e de sua origem leva os imigrantes a produzirem uma imagem genérica de si próprios

como aqueles que triunfaram economicamente, devido sua capacidade de trabalho e

desprendimento. Além disso, aqueles que por algum motivo “não deram certo” e não

obtiveram sucesso, embora também sejam descendentes, “são tidos como anti-exemplo, ou

seja, gente de moral fraca e de vícios, a quem os próprios descendentes diminuem”115. Assim,

o colono é aquele que devido ao seu esforço “vence a natureza, que transforma a terra virgem

(...). Ele é o produtor de riquezas que não se corrompe e, dessa forma, o mito de herói

civilizador se constrói e se legitima por entre gerações e adquire o reconhecimento dos demais

grupos com os quais se relaciona”116.

Ser colono, portanto, significava e ainda significa ser diferente dos nacionais, não ser

“caboclo” e/ou “brasileiro”, ou seja, ser trabalhador, morigerado, pacífico, “obreiro da

riqueza” como definia o Major Euclydes Moura. No entanto, assim como não foi possível

elaborar a pretendida identidade nacional única e estática que supostamente emergiria da

111 Idem, p. 69. 112 Idem, p. 90. 113 Idem, p. 119. 114 Idem, p. 125. 115 Idem, p. 129. 116 Idem, p. 131.

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assimilação dos imigrantes, do branqueamento e do aperfeiçoamento dos nacionais, o ideal do

homem sóbrio e trabalhador expressos na palavra colono, em alguns casos, também não

encontrou existência prática e, como veremos no próximo capítulo, aqueles imigrantes que

fugiam a tais preceitos eram tratados como intrusos ou como acaboclados.

No caso específico da identidade nacional, como mostra Jeffrey Lesser, os imigrantes

e seus descendentes “desenvolveram maneiras sofisticadas e bem-sucedidas de tornarem-se

brasileiros, alterando a idéia de nação, tal como proposta pelos que ocupavam posições de

domínio”117. Desse modo, segundo Lesser, no Brasil, “uma identidade nacional única e

estática jamais existiu”, pois “a fluidez do próprio conceito fez com que ele se abrisse a

pressões vindas tanto de baixo quanto de cima”118. No que diz respeito ao caso do ser colono,

uma conclusão semelhante é possível, ou seja, embora existissem pressões vindas de cima,

sobretudo do Estado, para que os imigrantes se tornassem agricultores pacíficos, fixos a terra

e morigerados eles, a seu modo, encontraram formas para alterar tal proposta. E, muito

embora a existência de divisões étnicas, as quais eram motivos para conflitos internos, o

conjunto dos imigrantes que viviam no interior das colônias reconheciam-se e eram

reconhecidos pela sociedade nacional como colonos, da mesma maneira tinham um modo de

vida mais ou menos semelhante. Tal modo de vida era definido a partir de um outro, qual seja

o dos nacionais. Fato que era um ponto de diferenciação importante para os próprios colonos.

Veja-se, por exemplo, o caso da palavra “caboclo” ser sinônimo de insulto entre os teuto-

brasileiros, como lembra Willems. Assim, foi lidando com esse conjunto de possibilidades

que os imigrantes se inseriram e atuaram no processo de povoamento da região serrana e, por

fim, tornaram-se colonos: em certas situações tornando reais e, em outras, negando ou

alterando alguns dos conteúdos próprios dessa representação.

3.2 DA ESCRAVIDÃO AO SILÊNCIO: OU SOBRE AQUELES QUE VIVEM “NUM ESTADO SEMELHANTE

AO SELVAGEM E AO BÁRBARO”

Um primeiro aspecto para o qual chamo atenção a respeito da presença afro-

descendente no Rio Grande do Sul no pós-abolição é o constante silêncio de parte dos

documentos aqui analisados a seu respeito. Muito dificilmente, no período, os negros

receberam atenção e foram alvos de descrições detalhadas, tanto por parte do Estado como

por parte dos autores que escreveram sobre a região. As fontes não permitem desenvolver

117 Jeffrey Lesser. A negociação da identidade nacional. Idem, op. cit, p. 20. 118 Idem, ibidem.

- 133 -

uma resposta definitiva ao porquê do silêncio, no entanto uma observação atenta da produção

bibliográfica da época e do conjunto de informações disponibilizados nos Relatórios da DTC

e nas mensagens dos presidentes de Estado indicam possibilidades de interpretação. Nesta

perspectiva, uma questão que deve ser destacada é que a idéia de branqueamento encontrava

forte aceitação e era largamente utilizada por intelectuais que pensavam o Brasil e sua

população119. Ou seja, a crença científica de que os “elementos de cor”, principalmente os

afros-descendentes, desapareceriam devido aos constantes cruzamentos pode justificar o

silêncio, mas isso, por ora, é apenas uma hipótese.

Um texto a partir do qual é possível conhecer como se dava a aplicação da idéia de

branqueamento para pensar o Brasil e o “povo brasileiro” é o artigo escrito por Tristão de

Alencar Ararripe, publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)

do ano de 1893, sob o título Movimento colonial da América120. No texto, Araripe apresenta a

humanidade como perpétua, enquanto as raças não o são. Conseqüentemente, as raças

transformam-se e a tendência é o surgimento de um “produto evoluído”. Para o autor, o

resultado dos diversos cruzamentos entre raças seria, ao fim e ao cabo, o desaparecimento das

“inferiores” (negros, orientais e índios) e a predominância da mais “inteligente”: a “ariana”

(brancos). No Brasil, preconizava o autor, as ditas “raças inferiores” seriam primeiramente

substituídas pelos “tipos mesclados”, os quais são: “o mameluco (descendente do caboclo e

do branco) e o mulato (descendente do branco e do preto)”121. Tais “tipos mesclados”,

segundo Araripe, poderiam se aproximar mais do “tipo superior”, mas também podiam

retroceder, “pela renovação do fator preto ou vermelho”122.

Outra publicação da época que pensava o Brasil e a sociedade brasileira com base na

idéia de branqueamento é o livro Retrato do Brasil123 de Paulo Prado, publicado em 1928.

Nesse texto, além da previsão de que com o tempo a população brasileira branquearia, está

presente também a noção de que no Brasil, diferentemente dos outros países que tiveram

119 Thomas Skidmore, lembra que nem “todos os membros da elite brasileira esposavam as teses conhecidas como ‘ideal de branqueamento’. Não obstante, no período entre 1889 e 1914, a grande maioria tinha certamente essas idéias. Uns poucos, como Nina Rodrigues, adotavam a teoria racista ortodoxa de que as diferenças eram inatas e de que o processo de ‘branqueamento’ não triunfaria em todo o país. Outros poucos, inclusive imigrantes alemães radicados nos estados do Sul, mantinham opiniões rigidamente racistas e tratavam de segregar-se da população nascida no país. Finalmente, havia uns poucos livres pensadores que rejeitavam completamente a moldura de referência da teoria científica racista, na sua busca por uma definição mais autêntica da nacionalidade brasileira”. Cf.: SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 94. 120 ARARIPE, Tristão de Alencar. Movimento colonial da América. In.: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 56, parte II. Rio de Janeiro: Companhia Tipográfico do Brasil, 1893, p. 91-115. 121 Idem, p. 95-98. 122 Idem, Ibidem. 123 PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1962.

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escravidão – Estados Unidos, principalmente –, existia uma democracia racial facilitando os

cruzamentos e, em conseqüência, também o branqueamento. Para o autor, a “arianização” dos

habitantes do Brasil era “um fato de observação diária (...). E assim na cruza contínua de

nossa vida, desde a época colonial, o negro desaparece aos poucos, dissolvendo-se até a falsa

aparência do puro ariano”124. Prado preconizava que, no espaço de 5 ou 6 gerações, o

processo da arianização se completaria.

Tal modo de interpretar o social advinha do lugar hegemônico ocupado pela idéia de

progresso e evolução na maneira como as pessoas da época pensavam a sociedade. Assim, o

positivismo, o darwinismo social, o racialismo e alguns dos outros “ismos” em voga no

período, quando aplicados à realidade brasileira, faziam vir a tona alguns “problemas”, como

a questão da mestiçagem. No caso brasileiro, ela era o “tendão de Aquiles” dos defensores das

teorias raciais, visto que aceitar completamente os pressupostos desta teoria significaria

concordar que grande parte da população brasileira, inclusive da elite, devido ao

mestiçamento era humanamente inferior aos brancos, considerados puros. Dessa forma, a

solução de alguns destes problemas, principalmente das questões relacionadas à conformação

do “povo brasileiro” e de uma identidade nacional, já que o presente não apontava soluções

imediatas, era relegada ao futuro125.

Nesse sentido, o mesmo Tristão de Alencar Araripe, em outro artigo também

publicado na revista do IHGB e datado de 1894, escrevia que a massa da população nacional

historicamente era formada de indivíduos descendentes do cruzamento do “indígena brasílico,

do colono português e do escravo africano”126. Contudo, devido ao desenvolvimento de novas

correntes imigratórias européias que estava ocorrendo na época, especialmente em função da

chegada de imigrantes europeus de origem não ibérica – italianos, alemães, franceses, etc... –

e também de asiáticos, o intérprete do Brasil deveria, de acordo com Araripe, perguntar-se

como “do amálgama de tantas espécies se organizará um povo, cujo caráter, índole e aptidões

só no futuro se poderá reconhecer e apurar”127.

124 Idem, p. 159-160. 125 Sobre a questão do “povo brasileiro” e da constituição de uma identidade nacional, Márcia Naxara escreve que, no início do século XX, o Brasil era visto como “um país despossuído de povo, ao qual faltava identidade para constituir e formar uma nação moderna. Tinha uma população mestiça, sem características próprias, que fosse definidas e homogêneas – não possuía face, não possuía identidade. De um lado, um caudatário de povos e raças diferentes que não formavam um corpo social; de outro, uma elite que não se identificava com as tradições de seu povo, distinguindo-se, e não o reconhecendo como tal”. Cf.: NAXARA, Márcia Regina Capelari. Estrangeiro em sua própria terra: representações do brasileiro, 1870/1920. São Paulo: Annablume, 1998, p. 39. 126 ARARIPE, Tristão de Alencar. Indicações sobre a história nacional, p. 272. In.: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 57, parte II. Rio de Janeiro: Companhia Tipográfica do Brasil, 1894, p. 259-290. 127 Idem, ibidem.

- 135 -

No caso dos documentos produzidos pelos aparelhos de Estado no Rio Grande do Sul,

as posições relativas aos afros-descendentes, nacionais e índios eram altamente influenciadas

pelo positivismo, especialmente pela idéia de incorporação destes grupos a sociedade. O

diretor da DTC, por exemplo, era um dos principais representantes do positivismo religioso

no Rio Grande do Sul e, durante o período em que foi responsável pela administração da

Diretoria, tentou colocar em prática vários dos princípios característicos dessa teoria128.

Augusto Comte, o fundador do positivismo, no que tange à questão racial, entendia

que existiam três raças distintas: a branca, a amarela e a negra. Cada uma delas correspondia a

um aspecto fundamental da natureza humana: a inteligência, a atividade e o sentimento e uma

era superior à outra em um desses aspectos. Assim, para Comte, a crescente combinação das

raças, “sob a sistemática direção do sacerdócio universal”, produziria “o mais precioso de

todos os aperfeiçoamentos, o que diz respeito ao conjunto da nossa constituição cerebral,

tornada assim mais apta para pensar, agir e até amar”129. As apreciações de Comte sobre a

questão racial estiveram na base de muitas ponderações feitas por Torres Gonçalves. Em

1914, por exemplo, ele escreve em seu relatório que:

a nossa evolução política como povo, é essencialmente a mesma dos povos ocidentais, dos quais constituímos apenas, na realidade, um prolongamento. Porém, como acontece em cada caso, há alguma coisa de original nessa evolução. A nossa constituição biológica, já por mestiçagem, já em virtude de influências puramente cerebrais, representa a fusão das três raças humanas, branca, preta e amarela, o que equivale dizer dos três aspectos fundamentais da natureza humana, inteligência, sentimento e atividade, pois que cada uma dessas raças é superior as outras por um desses atributos fundamentais130.

A referência ao pensamento de Comte aparece no Relatório no momento em que

Torres Gonçalves tratava do problema da assimilação dos imigrantes europeus recém-

chegados ao Rio Grande do Sul. Baseado em Comte, o diretor da DTC argumentava que os

estrangeiros eram representantes de um dos aspectos naturais à condição humana e, portanto,

deveriam ser aproximados dos outros grupos para estimular a sua assimilação e, igualmente, o

aprimoramento dos outros. No Relatório de 1915, Torres Gonçalves escrevia que “a fusão das

raças é uma previsão tão certa como a dos fenômenos astronômicos”131. Contudo, ela dever-

128 No próximo capítulo apresentarei de maneira mais profunda a história e atuação de Carlos Torres Gonçalves como diretor da DTC. 129 COMTE, Augusto. Catecismo positivista ou exposição sumária da Religião Universal em onze colóquios entre uma mulher e um sacerdote da humanidade. Portugal: Europa América, coleção livros de bolso, n. 213, p. 216-217. 130 Carlos Torres Gonçalves, 1916. Idem, op. cit., p. 115-116. 131 Carlos Torres Gonçalves, 1915. Idem, op. cit., p. 85.

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se-ia realizar sem abalos sociais, visto que era necessário atingir “uma situação social tal que

permita a apreciação justa e real das virtudes e vícios das diferentes populações e o seu

aproveitamento”132. Para Gonçalves, enquanto as condições ideais para que a “fusão das

raças” acontecesse sem abalos não se realizassem, era preciso ter cuidado com as “tentativas

prematuras e imprudentes”, uma vez que elas poderiam “comprometer para todos este

grandioso problema reservado ao futuro”133. Ou seja, o problema da “fusão das raças” era

uma questão que só o devir poderia responder.

A idéia de raça, como lembra Michael Banton, foi desenvolvida pela Europa para

ajudar a compreender as relações sociais. Entretanto, a sua utilização passou a ser maior à

medida que os europeus foram percebendo a existência de um crescente número de pessoas

diferentes deles. Nos fins do século XIX, quando os contatos da Europa com outros povos

tornaram-se maiores, principalmente com o continente africano, a idéia de raça passa a ser

utilizada para defender a noção de que certos povos eram menos aptos a avançar do que

outros. Portanto, passou a ser empregada para justificar a dominação dos europeus sobre

outros povos. Dominação que se efetivou por um processo tradicionalmente denominado

imperialismo134.

A proximidade entre imperialismo e a utilização da idéia de raça como princípio da

estrutura política, além do desenvolvimento da burocracia como princípio de domínio

exterior, sublinha Hannah Arendt, são fenômenos correlatos. Assim, a raça, de acordo com a

autora, foi uma tentativa de explicar a existência de seres humanos que ficavam à margem da

“compreensão dos europeus, e cujas formas e feições de tal forma assustavam e humilhavam

os homens brancos, imigrantes ou conquistadores, que eles não desejavam mais pertencer à

mesma comum espécie humana”135. Dessa idéia, que “sempre atraiu os piores elementos da

civilização ocidental”, continua a autora, “resultaram os mais terríveis massacres da

historia”136. Quanto à burocracia, “foi a base organizacional do grande jogo de expansão, no

qual cada zona era considerada um degrau para envolvimentos futuros, e cada povo era um

instrumento para futuras conquistas”137. Assim, foi a partir da utilização conjunta da idéia de

raça para substituir a nação e da burocracia para substituir o governo que, segundo Arendt, os

europeus justificaram sua dominação e conquista de outros povos e territórios.

132 Idem, ibidem. 133 Idem. 134 Cf.: Michael Banton. Idem, op. cit. 135 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo e totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 215-216. 136 Idem, ibidem. 137 Idem.

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No caso do Brasil, lembra Thomas Skidmore, devido às suas peculiaridades históricas,

expressas principalmente na presença de um contingente considerável de mestiços, a

aplicação da teoria racial, como fora pensada na Europa, encontrou certos obstáculos. Em

conseqüência, a idéia de branqueamento foi a solução brasileira ao problema racial. Dada a

experiência da sua sociedade multiracial, segundo Skidmore, a tese do branqueamento

oferecia aos brasileiros uma explicação para o que acreditavam estar já em curso, isto é, o

desaparecimentos dos “indivíduos de cor”. Assim, no Brasil, a idéia de raça era tomada de

empréstimo da Europa e, ao mesmo tempo, eram descartadas “duas das suas principais

presunções: o caráter inato das diferenças raciais e a degenerescência dos sangues mestiços –

a fim de formular sua própria solução do ‘problema negro’”138.

Conforme Lilia Schwarcz, no Brasil, o termo raça, antes de ser utilizado como um

conceito fechado, era entendido como um objeto de conhecimento, cujo significado foi

constantemente “renegociado e experimentado nesse contexto histórico específico [1870-

1930], que tanto investiu em modelos biológicos de análise”139. Assim, as teorias raciais, em

meio as transformações em que o Brasil estava submerso devido ao final da escravidão, se

apresentavam como um “modelo teórico viável na justificação de um complicado jogo de

interesses”140, bem como para manter uma determinada hierarquia social e também definir

“critérios diferenciados de cidadania”. Entretanto, a aplicação das teorias raciais não poderia

ser efetivada sem a realização de alguns ajustes. Dessa maneira,

do darwinismo social adotou-se o suposto da diferença entre as raças e sua natural hierarquia, sem que se problematizassem as implicações negativas da miscegenação. Das máximas do evolucionismo social sublinhou-se a noção de que as raças humanas não permaneciam estacionadas, mas em constante evolução e ‘aperfeiçoamento’, obliterando-se a idéia de que a humanidade era una. Buscavam-se, portanto, em teorias formalmente excludentes, usos e decorrências inusitados e paralelos, transformando modelos de difícil aceitação local em teorias de sucesso141.

O silêncio, ou melhor, os silêncios existentes sobre os negros nos documentos não

devem ser tomados unicamente como resultados das influências exercidas pela “tese do

branqueamento” e pelas teorias raciais. Uma outra possibilidade de interpretação desses

silêncios é formulado por Hebe Mattos, segundo a qual, no Brasil, desde o período colonial a

noção de cor “não designava, preferencialmente, matizes de pigmentação ou níveis diferentes

138 Thomas Skidmore. Idem, op. cit., p. 93-94. 139 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 17. 140 Idem, p. 18. 141 Idem, ibidem.

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de mestiçagem, mas buscava definir lugares sociais, nos quais etnia e condição estavam

indissociavelmente ligadas”142. Para a autora, a cor inexistente antes de significar apenas

branqueamento era um signo de cidadania.

Elione Guimarães, em estudo sobre os “viveres de afrodescendentes” na escravidão e

no pós-abolição no município de Juiz de Fora/MG, discute a questão da cor ausente nos

documentos e assinala que “a presença ou a ausência da cor na documentação tem uma forte

relação com o tipo de fonte que se está utilizando e com a carga de preconceitos embutidos na

elaboração dessas”143. A documentação consultada para elaboração desta pesquisa permite-me

concordar com a afirmação de Guimarães, pois, como no caso da autora, a presença da cor é

evidente nos processos crime, contudo, nos Relatórios da DTC e nas mensagens dos

presidentes de Estado o que prepondera é o silêncio.

Assim sendo, uma outra pergunta vem à tona: porquê a cor está presente nos processos

criminais, enquanto que nos documentos produzidos diretamente pelos governantes na,

maioria das vezes, ela está ausente? Conforme Ivana Stolze Lima, tais ausências compõem

estratégias complexas, segundo as quais não falar sobre a cor em instâncias mais centrais “era

complementar a uma série de outras práticas mais imediatas em que a cor, como um dos

elementos constitutivos da condição social, era algo indelével”144. De acordo com Lima,

existe uma imbricação entre cor e condição social, que pode explicar os silêncios. Em outros

termos, não havia porque evidenciar a cor se os afros-descendentes viviam em condições

semelhantes aos demais grupos que compunham a massa da população nacional e o objetivo

único em relação aos mesmos era torná-los disciplinarizados e aptos para o trabalho,

independentemente se eram índios, negros, mestiços ou brancos. Além disso, outro elemento

entra na equação, uma vez que na base dos silêncios também está o desejo de constituição de

uma “nação homogênea”, onde as diferenças de cor e os conflitos a elas relacionados deviam

desaparecer145.

Todavia, esta discussão é bem mais complexa, pois a noção de cor e os qualificativos

empregados para representar os afros-descendentes envolve um longo processo, no qual

142 MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p. 109. 143 GUIMARÃES, Elione Silva. Múltiplos viveres de Afrodescendentes na Escravidão e no Pós-Emancipação: família, trabalho, terra e conflito (Juiz de Fora – MG, 1828-1928). São Paulo: Annablume; Juiz de Fora: Funalfa, 2006, p. 309. 144 LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: sentidos da mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 127. 145 Para aprofundar as análise sobre o problema, conferir artigo de Sidney Chalhoub publicado no livro Quase-cidadão. CHALHOUB, Sidney. Solidariedade e liberdade: sociedades beneficentes de negros e negras no Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX. In.: Olívia Maria Gomes da Cunha; Flávio dos Santos Gomes (Orgs.). Idem, op, cit., p. 219-239.

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aspectos relacionados a escravidão, a abolição, ao branqueamento, a constituição de uma

identidade nacional e de uma idéia de civilização entram no jogo e definem não só lugares

sociais, mas também identidades sociais. Lilia Schwarcz, neste sentido, ao tratar do processo

de emancipação e dos significados que ela adotou, tanto para os afros-descendentes quanto

para a elite branca envolvida nas lutas da abolição demonstra o quanto a aplicação de termos

como “preto” e “negro” adotavam significados diversos no período. Dessa forma, segundo a

análise da autora, há uma diferença entre essas duas categorias mesmo que ambas tenham

como ponto de referência a cor, visto que, na documentação estudada por Schwarcz, “equanto

o ‘preto’ é o escravo comumente representado, violento por vezes, mas dependente e

vinculado à sua condição; o ‘negro’ é antes de tudo um fugitivo, perigoso e pouco

confiável”146. Esta divergência de conteúdos nos termos utilizados para nomear a população

afro-descendente aponta para outro problema característico do período pós-emancipação: o

dos ajustes que as representações sobre os ex-escravos estavam passando a fim de definir o

papel que eles deveriam ocupar na sociedade.

Outro elemento comum no uso destas representações é associação entre cor e

criminalidade de modo que “as atitudes e os costumes de uma pessoa podia torná-la mais ou

menos negra”, pois, na época e, em muitos casos ainda hoje, “ter sua identidade marcada pela

cor negra era associar sua condição à de ‘ladrão’, ‘vagabundo’, ‘preguiçoso’, ‘mal-educado’,

etc.”147. Daí o porque de a presença da cor ser mais nítida nos processos criminais, já que o

crime é o seu motivo principal. Tal associação entre criminalidade e cor não é objeto apenas

dos documentos oficiais e da literatura jornalística, mas encontrava lugar no cotidiano das

populações.

No caso da região serrana, tal situação fica visível em um processo crime movido na

Comarca de Santo Ângelo, datado de 1916. O processo trata de um crime ocorrido no quinto

distrito do município e envolve o subdelegado e uma escolta por ele organizada. Conforme

está relatado no processo, José Soares da Rosa e Manoel Alexandre de Lima, dirigiam-se, no

dia 08 de julho de 1916, as 11 horas, mais ou menos, até um casamento onde José foi

convidado para “tocar gaita”. Contudo, no caminho foram “tocaiados” pela escolta, sendo que

antes disso, José Rosa, “ouvindo pequeno barulho no mato, disse ao seu companheiro:

‘cuidado com os negros’”148 e, logo em seguida, ele foi atingido por um tiro de espingarda.

146 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Dos males da dádiva: sobre as ambigüidades no processo da Abolição brasileira, p. 31. In.: Olívia Maria Gomes da Cunha; Flávio dos Santos Gomes (Orgs.). Idem, op, cit., p. 23-54. 147 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Um reduto negro: cor e cidadania na Armada (1870-1910), p. 298. In.: Olívia Maria Gomes da Cunha; Flávio dos Santos Gomes (Orgs.). Idem, op, cit., p. 283-314. 148 APERGS. Processos Crime 1.404. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1916. Maço 47.

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Segundo consta no processo, José Rosa era jurado de morte por um dos membros da escolta

em função de desavença ocorrida anteriormente entre os dois em uma carreira de cavalos. O

que chama atenção no processo é que ao perceber movimento estranho dentro da mata e sentir

um certo perigo em tal circunstância José Rosa imediatamente faz a associação entre a

possibilidade de sofrer alguma ofensa e ela ser executada por um indivíduo de cor. Em outras

palavras, um exemplo nítido da associação entre cor e criminalidade149.

Tais questões apontam para um problema que ainda não foi profundamente

problematizado pela historiografia brasileira, qual seja, o da história dos ex-escravos e ex-

escravas nos anos posteriores ao 1888. Nesse sentido, Frederick Cooper, Thomas Holt e

Rebecca Scott no livro Além da escravidão150, preocupam-se em pensar o lugar dos afros-

descendentes em sociedades pós-emancipação. Os textos reunidos no livro apontam questões

importantes tais como as relacionadas à transformação dos ex-escravos em mão-de-obra

disciplinada e o quanto a utilização de interpretações raciais está ligada a tal interesse. Outro

ponto interessante tematizado pelos autores é o da ligação entre as possibilidades de ingresso

na terra e o modo como os ex-escravos inseriam-se no mercado de trabalho e construíam

noções próprias de cidadania, bem como de trabalho. Daí o interesse das elites das sociedades

escravagistas em controlar o acesso a terra nos anos posteriores às emancipações e assim

garantir o controle sobre a mão-de-obra recém liberta.

Ao interpretar a questão da ausência da cor em alguns documentos da época a partir

das constatações realizadas por esses autores e suas leituras sobre o pós-emancipação em

Cuba, na Jamaica, no estado da Louisiana dos Estados Unidos e na África colonial francesa, é

possível tomá-lo também como conseqüência da dispersão dos ex-escravos pelo território rio-

grandense no pós-emancipação . Bem como pelas possibilidades de refúgio oferecidas a esses

indivíduos, pelas zonas economicamente ainda não incorporadas, como era a região serrana.

Tais possibilidades afastaram os ex-escravos do espaço público e, conseqüentemente,

redundaram e deram sustentação aos silêncios, uma vez que as referências a sua presença se

tornaram maiores apenas nos momentos em que os espaços de fronteira agrária estavam em

149 Sobre essa associação, Álvaro Pereira do Nascimento, ao tratar sobre a presença da cor em notícias de jornais da Primeira República, escreve: “mencionar a cor de uma pessoa negra, enfim, era mais explicativo e importante do que identificá-la pelo nome. Ao identificar o indivíduo por causa da cor, o jornalista acessava todo um conhecimento arraigado entre os leitores. (...). Havia um conhecimento prévio em relação ao negro entre os que tinham acesso à escrita e à leitura das folhas e revistas do Rio e de boa parte do país. O não-branco – preto, crioulo, negro, mulato, moreno, etc. – carregava estereótipos construídos há décadas e, por isso mesmo, se chegava a preconceitos dos mais complicados...”. Cf.: Álvaro Pereira do Nascimento. Idem, op. cit., p. 300. 150 COOPER, Frederick; HOLT, Thomas C.; SCOTT, Rebecca J. Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

- 141 -

fase de esgotamento ou nas situações em que eles se envolviam em algum conflito, seja pela

terra, seja por questões dos mais diferentes matizes.

Em outros termos, no caso das situações estudadas por Cooper, Holt e Scott, a

criminalização dos afros-descendentes, a leitura racista de sua atuação e as políticas

governamentais discriminatórias se tornaram maiores à medida que eles organizavam suas

demandas em movimentos de reivindicação, agrupavam-se em sindicatos, inseriam-se em

movimentos de independência e lideravam greves. Evidentemente que as situações variaram

de acordo com o contexto. Por conseguinte, o que aconteceu em Cuba foi diverso do que

aconteceu na Louisiana e na África e, um dos pontos que definiu a diferença, segundo os

autores, foi o acesso que os ex-escravos tiveram a terra.

Em linhas gerais, pode parecer um tanto anacrônico falar em uma possível

organização reivindicatória por parte dos ex-escravos do Rio Grande do Sul no início do

século XX. Contudo, o importante não está na suposição propriamente dita, mas na pergunta

que dela emerge: por que os ex-escravos da Louisiana, na virada do século XIX para o XX,

conseguiram desenvolver um certo grau, ainda que frágil, de organização e na situação aqui

analisada isso não aconteceu? Evidentemente que se trata de contextos sociais diferentes, os

quais repercutem em comportamentos sociais variados. Porém, o acesso a terra, que no estado

norte americano era bem mais limitado do que no Rio Grande do Sul, aparece como uma

resposta intrigante que merece ser aprofundada. Outra diferença existente entre a realidade da

região serrana e a da Louisiana, no que diz respeito à questão dos ex-escravos, refere-se ao

modo diferenciado como o preconceito racial desenvolveu-se nos dois contextos. Nesse

sentido, a questão da terra também é um elemento explicativo, pois, segundo Scott, a

construção de uma linha de cor binária e altamente politizada na Louisiana

não foi simplesmente um ato discursivo ou uma trama retórica. A recusa de arrendar terras de canaviais a ex-escravos, a reconstrução dos grupos de trabalho e o recrutamento de trabalhadores sazonais afro-americanos da Virginia e das Carolinas combinaram-se para criar uma realidade na qual o trabalho canavieiro assalariado se associasse fortemente à negritude. O processo de construir a linha de cor pode ser visto como recíproco, no qual a ideologia racial deu forma às relações de classe e as relações de classe, por sua vez, deram forma à construção da raça e da política151.

Scott registra que no caso de Cuba o acesso constante à terra de subsistência garantia,

aos ex-escravos, ainda que de maneira restrita, algum poder de barganha como indivíduos,

enquanto na Louisiana, as limitações impostas para que o ingresso de ex-escravos a terra não

151 SCOTT, Rebecca J. Fronteiras móveis, “linhas de cor” e divisões partidárias: raça, trabalho e ação coletiva em Louisiana e Cuba, 1862-1912, p. 163. In.: Frederick Cooper, et alli. Idem, p. 131-201.

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ocorresse “preparou o palco para a segregação”. Talvez o caso aqui estudado esteja mais

próximo do que ocorreu em Cuba, no entanto, qualquer afirmação nesse sentido pode ser

precipitada. Assim, apenas o desenvolvimento de pesquisas que se preocupem em pensar os

ex-escravos no pós-emancipação aqui no Brasil pode iluminar melhor o problema.

A associação entre cor e status social, como já frisei, é um dos motivos que sustenta os

silêncios sobre a cor, porém, ela não é apenas uma questão de discurso, uma vez que uma

análise atenta da sociedade brasileira mostra que a maior parte da população afro-descendente

faz parte da camada mais pobre da população. Da mesma forma, o preconceito, segundo

Oracy Nogueira, por um lado, aumenta na medida que subimos na escala social das camadas

mais pobres até as mais ricas e, por outro, a possibilidade de um indivíduo de cor ascender

socialmente tropeça nos preconceitos existentes, fato que torna tal ascensão bem mais difícil

para um negro pobre do que para um branco pobre152. Constatação esta que é bastante

elucidativa para o caso sob estudo, uma vez que no processo de povoamento da região

serrana, estão envolvidos imigrantes, negros, índios e nacionais. O exemplo citado no capítulo

anterior do baile ocorrido no club gaúcho de Santo Ângelo comprova a situação, uma vez que

o conflito ocorreu exatamente porque uma das envolvidas dizia que sua antagonista não

deveria participar daquele baile porque ela era “um resto de negros”. Ou seja, a cor expressa

um lugar social e, como veremos dentro em pouco, na região, esse lugar é o mato. Ademais, a

constatação de que o preconceito aumenta na medida em que subimos na hierarquia social,

não quer dizer que entre as camadas menos favorecidas ele não encontre espaço, pelo

contrário, aí o preconceito também pode existir como elemento de diferenciação social,

especialmente, quando existe algum tipo de disputa entre as partes.

Assim, a insistência em esconder a presença afro-descendente e em diminuir a sua

atuação e importância seja pelo silêncio ou pela utilização de eufemismos, bem como em

camuflar os preconceitos e os conflitos que lhe dizem respeito em nome de uma certa

homogeneidade nacional e de um igualitarismo social redundaram na estruturação de um tipo

particular de preconceito que tem suas principais expressões na idéia do branqueamento e da

existência de uma democracia racial no Brasil. A conseqüência disso, conforme Nogueira, é

que esse tipo de preconceito é diverso daquele existente nos Estados Unidos, pois não tem o

152 “Pode-se dizer que o preço da ascensão social ou da consideração social é tão mais alto quanto mais escuro o indivíduo ou quanto mais carregados os seus caracteres negróides. Acresce, ainda, que a intransigência do branco é tão mais acentuada quanto mais elevada sua posição social, sendo mais completa a confraternização entre indivíduos brancos e de cor nas camadas menos favorecidas, em que é menor, inclusive, a resistência ao intercasamento ou à união permanente entre pessoas de traços raciais contrastantes, especialmente na zona rural”. Cf.: NOGUEIRA, Oracy. Preconceito de marca: as relações raciais em Itapetininga. São Paulo: USP, 1998, p. 200.

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mesmo poder de dividir a “sociedade em dois grupos com consciência própria, como duas

castas ou dois sistemas sociais paralelos, em simbiose, porém impenetráveis um ao outro,

apesar de participarem, fundamentalmente, da mesma cultura”153. No Brasil, o preconceito

“tende a situar os indivíduos, uns em relação aos outros, ao longo de um continuum que vai do

extremamente ‘negróide’, de um lado, ao completamente ‘caucasóide’, de outro”154.

Tal tipo de preconceito, que Nogueira denomina preconceito de marca, pois na sua

base está a cor e o fato de o indivíduo portar traços físicos que lhe identifiquem como mais ou

menos negro, não deve ser hierarquizado em relação aos preconceitos existentes em outros

territórios que conheceram a escravidão, principalmente para defini-lo como mais

humanitário. Ele carrega traços negativos e positivos, visto que opõe obstáculos a mobilidade

social dos homens e mulheres de cor, bem como, subjetivamente, atua no sentido de

desencorajar suas ações devido a ameaça de humilhação. Positivamente, por seu turno, a

“ideologia brasileira de relações raciais” oferece as pessoas de cor argumentos em que basear

“suas reivindicações e seus protestos, nas situações em que se sente preterido, também torna a

opinião pública propensa a se exaltar e a condenar manifestações ostensivas de

preconceito”155. No entanto, não lhe tira o status de ser um preconceito e, assim, um

importante elemento de diferenciação social que, ao fim e ao cabo, deve ser questionado e

combatido.

No Rio Grande do Sul, por mais que, ao longo da história, a intenção fosse silenciar a

presença dos afros-descendentes, eles sempre encontraram formas de se fazerem ver156. No

153 Idem, p. 199. 154 Idem, ibidem. 155 Idem, p. 202. 156 No Rio Grande do Sul, existe uma idéia, ainda não totalmente superada, de que durante os anos de vigência do regime escravocrata eram poucos os escravos existentes no estado e que aqueles que existiam viviam em melhores condições do que os escravos das outras regiões do país. João Neves da Fontoura em suas memórias nos dá um exemplo de como esta idéia funcionava: “pela nossa insularidade, a democracia abrangia também a sociedade, que era despretensiosa, mesmo entre os ricos. A índole da nossa formação, os hábitos da “campanha”, a necessidade de mútuo auxílio entre o fazendeiro e o peão, a fraternidade das urnas e das armas, tudo contribuía para fazer do Rio Grande o reino da igualdade. Preconceitos raciais nunca houve”. Cf.: FONTOURA, João Neves da. Memórias: Borges de Medeiros e seu tempo. Porto Alegre: Editora Globo, vol. 1, 1958., p. 50. O Rio Grande do Sul como reino da igualdade onde preconceitos nunca houve foi tema longamente tematizado por alguns historiadores rio-grandenses que escreveram entre as décadas de 50 e 60, tais como Jorge Salis Goulart e seu A formação do Rio Grande do Sul .Cf.: GOULART, Jorge Salis. A formação do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro; Caxias do Sul: EDUCS, 1985. A partir da década de 80 do século XX, essas idéias passam a ser criticadas por uma nova geração de historiadores. Contudo, estes autores que passam a criticar a idéia da democracia racial relegam aos grupos subalternos um papel pouco representativo, principalmente na esfera política estadual, e passam a tratar-lhes como massa de manobra na mão de uma elite muitas vezes apressadamente identificada. Quanto à questão dos negros e da escravidão propriamente ditas, um dos primeiros pesquisadores a criticar a noção de que no Rio Grande do Sul o número de escravos era pequeno a ponto de ser, por vezes, considerado inexistente, bem como da democracia racial, foi Fernando Henrique Cardoso. Cf.: CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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caso dos documentos que tratam de descrever a região serrana, sua aparição geralmente

ocorre por questões ligadas à terra ou, no caso dos processos crime, devido a participação de

um “elemento de cor” em algum conflito. No relatório da SENOP de 1899, ou seja, 11 anos

após a assinatura da Lei Áurea, Nelson Coelho Leal (engenheiro responsável pela Comissão

Verificadora de Posses e de discriminação de terras públicas no município de Santa Cruz)

relata uma situação que envolve alguns ex-escravos e um certo Carlos Trein Filho. Este

último buscava legitimar uma área de 29.602.200 metros quadrados (2.960 hectares) que

alegava ter comprado de João Fidêncio e onde pretendia estabelecer uma colônia, no

Relatório identificada como Colônia Preta.

João Fidêncio havia requerido a legitimação da área em 1882 a partir da medição de

áreas que dizia serem ocupadas por seus agregados: Virissimo Bibiano da Fontoura e Miguel

Severo. O Juiz Comissionário de Santa Cruz julgou verdadeiras as alegações de João Fidêncio

e considerou que as posses haviam sido estabelecidas antes do Regulamento de Terras de

1854. Quando é realizada a verificação de posse efetiva e morada habitual, é arrolado mais

um agregado de nome Honorato Silveira. Junto aos autos do requerimento encaminhado por

Carlos Trein, também constam escrituras de compra de terras em nome dos já referidos

Virissimo Bibiano, Miguel Severo e de Cristiano Hirsch, inicialmente não citado. Cristiano

declarava ter comprado suas terras de Joaquim Miguel dos Santos pagando por elas o valor de

400$000 réis. Todavia, a efetividade da alegação de Joaquim Miguel não era comprovada nos

autos. Diante de tudo, escreve o responsável pela Comissão Verificadora: “todas essas

irregularidades e contradições são completamente suficientes para invalidarem todo o

processo de legitimação”157.

Na continuidade do relato Coelho Leal apresenta dois dos indivíduos arrolados no

processo e descreve o modo como se dava a sua inserção nas estruturas sociais e econômicas

da época. Virissimo Bibiano tinha cerca de 70 anos de idade, até o ano de 1864 era escravo de

D. Dortéia Pacheco e “ia seguidamente ao erval com vários cargueiros e aí demorava-se

algum tempo fabricando erva-mate. Em 1870, mudou-se para o erval, onde estabeleceu-se

com a família”158. Miguel Severo, já falecido em 1899, era escravo do Capitão Cirino Severo,

“libertou-se em 1871, mais ou menos, seguindo pouco depois para o Erval, onde estabeleceu-

157 PAROBÉ, João José Pereira. Relatório dos negócios de Obras Públicas apresentado ao Exm. Sr. Desembargador Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo secretário de Estado João José Pereira Parobé, em 31 de julho de 1899. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1899, p. 226-233. (AHRS - OP. 07). 158 Idem, ibidem.

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se”159. Em outras palavras, a área de matas do Estado, sobretudo a que continha grande

quantidade de ervais, era um espaço ocupado e, embora os silêncios, existem registros da

presença de negros vivendo naquele espaço e trabalhando na produção de erva-mate.

Paulo Zarth afirma que em Cruz Alta, “uma população livre expressiva dedicava-se ao

extrativismo de erva-mate, setor que não contava com escravos e que demandava uma grande

quantidade de mão-de-obra”160. Contudo, as informações presentes no Relatório da SENOP

demonstram que, diferentemente da afirmação de Zarth, havia presença de escravos

trabalhando nos ervais. A atração que a erva-mate exercia sobre as pessoas era tamanha que,

segundo o relato descritivo da região elaborado em 1909 por Hemetério Velloso da Silveira,

uma grande multidão de homens pobres, procedente da fronteira sul e de outros pontos, atraídos pela notícia da extraordinária abundância e superioridade da erva-mate; para aí concorreu, procurando arranchar-se como agregados da grandes propriedades rurais, ou dentro dos matos baldios, ou mesmo comprando frações de campos, para criações em pequena escala161.

Ao escrever sobre a população que vivia do trabalho nos ervais, Maximiliano

Beschoren, evidencia a presença de “indivíduos de todas as cores” atuando nesta atividade.

Pessoas que aos olhos do agrimensor alemão eram “selvagens e ousadas e cuja pigmentação

da pele varia numa escala de cores, desde o preto, mulato, até o branco, apesar da aparência

perigosa, são sujeitos amáveis e não são tão maus quanto aparentam”162. Como é possível

perceber, a base sobre a qual Beschoren sustenta seu argumento é a diferença, mas não é

qualquer uma, visto que trata-se da diferença física que tem seu principal traço na cor.

Outro ponto presente na passagem se refere as representações existentes a respeito

desta população, pois até Beschoren entrar em contato direto com as pessoas que ele descreve,

tinha-as como perigosas e muitas vezes em seu texto define-as como pouco trabalhadoras.

159 Idem. 160 ZARTH, Paulo. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: UNIJUI, 2002, p. 123. 161 Hemetério Velloso da Silveira. Idem, op. cit., p. 326. 162 BESCHOREN, Maximiliano. Impressões de viagem na Província do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1989, p. 101-102. Uma circunstância que deve ser levada em conta na análise das observações feitas por Beschoren sobre a população da região, principalmente da negra, é o fato de que ele possuía um escravo, cujo apelido era Sexta-feira. Beschoren diz tê-lo alforriado “como recompensa pela sua lealdade e afeição”. De acordo com Júlia Schütz Teixeira, organizadora e tradutora da descrição, o verdadeiro nome do negro era Carlos Beschoren, que sempre acompanhou o alemão por suas andanças e fora comprado numa feira porque Beschoren “deixou-se penalizar pelo negrote”. Entretanto, isso não isenta o agrimensor de ter sido proprietário de outro ser humano. Demonstra que ele partilhava de valores que eram comuns à época em que viveu e, por seu turno, evidência sua crença na superioridade do elemento branco sobre o de cor, situação muito visível nas opiniões emitidas e nas várias apologias que faz aos colonos, principalmente os de origem germânica como, por exemplo, quando tratando sobre o potencial agrícola e econômico da região, escreve: “lançada a primeira pedra pelos colonos, o resto virá por si”.

- 146 -

Mesmo depois do contato, a impressão continuou dominando sua escrita a ponto de apresentá-

las como “selvagens” e “ousadas”. Embora os tais “indivíduos de todas as cores”

aparentassem ser mais perigosos do que realmente eram, após os primeiros contatos, concluía

que não eram tão maus assim, talvez bem menos do que se falava e se acreditava. Ao entrar

em contato com alguns indígenas, Beschoren expressava opinião semelhante e escrevia que

“os índios não são tão maus: a gente pode muito bem tratar com eles. Deve-se, contudo, ter

cuidado com a traição e a perfídia visível em seu olhar”163. Assim, baseado em tais

apreciações a respeito dos “habitantes típicos da região”, Beschoren concluía que apenas a

colonização com europeus, principalmente alemães, poderia tirá-la do atraso em que se

encontrava164.

As informações arroladas por Nelson Coelho Leal, Velloso da Silveira e Beschoren

evidenciam que a região era um local de refúgio. Também mostram o quanto a grande

presença de ervais era um incentivo para o deslocamento de pessoas naquela direção. Essa

mobilidade e o avanço constante para a zona de matas não devem ser lidos como uma simples

fuga ou tomados como provas de que tais populações não se adequavam ao trabalho

sedentário como geralmente se argumentava na época. Essa “fuga” deve ser compreendida

como “uma das mais freqüentes e eficazes respostas humana à opressão”165. Por conseguinte,

os afros-descendentes que antes de 1888 se estabeleciam dentro das regiões de matas estavam

buscando formas para escapar da opressão da vida de escravo. Depois dessa data, por seu

turno, o sentido da ação não muda, embora os registros da opressão passassem a ser mais

velados a ponto de muito dificilmente a sua presença ser mencionada.

Todavia, à medida que o povoamento avançou, os grupos que tinham encontrado nela

uma possibilidade de vida mais digna passam a ser alvo de outra pressão tão excludente

quanto era a da escravatura: as terras por eles ocupadas tornam-se interessantes e ganharam

maior valor no mercado, conseqüentemente ações como as ocorridas com Veríssimo Bibiano

e Miguel Severo passaram a ser freqüentes. A mobilidade continuou sendo a principal atitude

tomada pelas pessoas que, de alguma forma, não conseguiram se enquadrar às exigências do

processo e, assim, participar completamente dele. Dessa maneira, à medida que os espaços

esgotavam-se ou eram ressignificados a resistência destes grupos aumentava e,

163 Idem, p. 45. 164 Em outra passagem, à página 52, o Beschoren escreve que o Vale do Goio-Em, que fica a quinze quilômetros de Nonoai, era a parte mais privilegiada do estado, “o que falta são apenas trabalhadores capacitados. Quem aqui se estabelecer e tiver vontade de trabalhar, logo verá seu esforço recompensado, ainda mais se dispuser de capital para instalar uma fábrica de aguardente, serraria, moinho ou indústria de café”. (Grifo meu). 165 MOORE Jr, Barrington. Injustiça: as bases sociais da obediência e da revolta. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 180.

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conseqüentemente, a sua presença nas pautas de discussão também aumentou e, como aponta

Rebecca Scott para o caso da Louisiana e de Cuba, a racialização das opiniões a respeito dos

envolvidos tendia a aumentar.

Um exemplo esclarecedor a respeito da mobilidade é encontrado em um processo

crime datado de 1890, movido na Comarca de Palmeira das Missões, o qual passo a

descrever. No processo, José Marceliano (preto, solteiro, com 23 anos de idade, jornaleiro,

natural do Rio Grande do Sul) é acusado de, em conjunto com sua mãe e irmãos, furtarem

animais da propriedade de um fazendeiro local de nome Fernando Westphalen. Segundo

consta na denúncia, os acusados cometeram o furto quando estavam realizando mudança do

município de Palmeira para o de Vacaria e o número de animais roubados era de oito, entre

cavalos e muares. No interrogatório, Maria Eufrágia (40 anos de idade, mais ou menos, viúva,

jornaleira, de Santa Catarina e que não sabe ler nem escrever) conta que José Marceliano era

seu filho e havia “pegado três cavalos de Fernando Westphalen ou de gente de sua casa, assim

como pegou mais uma mula ou macho que encontraram na estrada e ajuntou com os animais

que traziam na recolhida”166.

José Marceliano é interrogado e, diverso do que traz a denúncia, afirma que é natural

de Lages/Santa Catarina e que “não iam fugidos, mas de mudança para Vacaria, onde se havia

criado e por necessidade foi que furtou os animais, tendo em mente restituí-los a seus

donos”167. Marceliano também afirma que quando entrou nos campos de Westphalen

“escolheu animais que não fossem da marca dele, isto por gratidão a benefícios recebidos do

mesmo”168. Um irmão de Marceliano de nome Virgílio (16 anos de idade, mais ou menos,

solteiro, jornaleiro, brasileiro, nascido em Cruz Alta, não sabe ler nem escrever) afirma em

interrogatório que não sabia que os animais eram furtados, pois só tinha visto eles na noite em

que haviam partido em direção a Vacaria. Na continuidade do processo são interrogados mais

um irmão e uma irmã de Marecliano, ambos nascidos em Cruz Alta: ele de nome João, com

11 anos de idade e ela de nome Maria, com 20 anos de idade. Os dois dizem ser verdade o

fato de os animais terem sido furtados, mas afirmam não saber a quem pertenciam.

Embora, no restante do processo crime, não exista mais informações sobre a cor dos

envolvidos, além daquela presente na denúncia escrita pelo Promotor Público da Comarca, a

partir dessa única referência é possível supor que tratava-se de uma família de afros-

descendentes. Os depoimentos também possibilitam conhecer melhor a inserção dessa

166 APERGS. Processos Crime 98. Cartório Civil Crime. Município de Palmeira das Missões, 1890. Maço 08. 167 Idem. 168 Idem.

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família, uma vez que Marceliano diz ter furtado os animais por necessidade e que escolheu

aqueles que não pertencessem a Fernando Westphalen, porque havia recebido benefícios do

mesmo. Entretanto, na denúncia, consta que todos os animais furtados pertenciam ao referido

Westphalen. Quanto a mobilidade, ela fica visível se tomarmos o local de nascimento dos

diferentes interrogados, pois Marceliano e sua mãe dizem ser naturais de Santa Catarina, os

outros filhos(as) de Maria Eufrágia haviam nascido em Cruz Alta e todos estavam de

mudança para Vacaria, onde José Marceliano diz ter se criado, sendo que, no momento do

crime, todos residiam no segundo distrito de Palmeira das Missões.

No primeiro capítulo, chamei atenção para um documento produzido por sacerdotes

capuchinhos franceses que percorreram a região no início do século XX. Em suas andanças

pelo interior, os capuchinhos também dão notícias da presença de negros residindo “nas zonas

de ‘mato’, ocupadas pelos antigos escravos libertados em 1888 e que vivem num estado

semelhante ao selvagem e ao bárbaro”169. Em outro momento, um dos padres relata a

necessidade de atravessar a “mata virgem” para encurtar caminhos quando se vê em meio aos

“encantos da solidão e a sombra das matas. Árvores frondosas podiam nos abrigar. Algumas

cabanas de negros apareciam aqui e acolá nas clareiras das matas; papagaios, pombos,

pássaros de toda espécie esvoaçavam a nossa volta”170. Ou seja, aos olhos do sacerdote

capuchinho, não há muita diferença entre os referidos negros e a vida animal.

Enfatizei, linhas acima, que a cor expressava um lugar social e que, na região serrana,

esse lugar é o mato. As observações feitas pelos padres capuchinhos dão base a essa

constatação, visto que os negros são colocados lado a lado com papagaios, pombos, etc...

Ademais, o registro também dá a entender que as “zonas de mato” eram habitadas

exclusivamente por egressos da escravidão e que ali era o lugar deles por excelência. Em

1914 acontece um fato interessante na Freguesia de São Miguel, terceiro distrito do município

de Santo Ângelo, que também demonstra a associação entre mato, criminalidade, perigo e

negritude. Consta no processo crime que os filhos de Ricardo Ribas (51 anos de idade,

casado, empregado público, natural do Rio Grande do Sul e residente em São Miguel) haviam

visto por diversas vezes, próximo a uma fonte de água, um “indivíduo desconhecido de cor

preta”, o qual trajava “camisa vermelha, calças pretas e chapéu de palha”, sendo que toda vez

em que era visto, ele “corria para o interior do mato”171, fato que vinha ocorrendo a, mais ou

menos, quatro dias. Ricardo Ribas, ao ficar sabendo do que estava acontecendo, “foi tomando

169 D’APREMONT, Bernardin; GILLONAY, Bruno de. Comunidades indígenas, brasileiras, polonesas e italianas no Rio Grande do Sul (1896-1915). Porto Alegre: EST, Caxias do Sul: UCS, 1976, p. 236. 170 Idem, p. 174. 171 APERGS. Processos Crime 1370. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1914. Maço 45.

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sérias desconfianças, pois há tempos já o haviam saqueado o cartório” e, assim, resolveu

“convidar algumas pessoas para fazer busca e ver se descobriam o tal indivíduo”172. Para

tanto, Ricardo Ribas convidou um seu sobrinho de nome Amado de Souza e seu vizinho

Antônio Ferreira, os quais combinaram “convidar mais algumas pessoas e fazerem uma busca

geral para a descoberta do misterioso negro”173 (Grifos no original).

Na noite do dia 28 de novembro de 1914, Antônio de Souza, sua mulher e filhos

resolveram ir posar na casa de Ricardo para, na manhã seguinte, realizarem a busca. Nessa

mesma noite, na sala do cartório que ficava junto a casa de Ricardo, estavam reunidos Ricardo

Ribas, seus filhos e um seu peão, Amado de Souza, Antônio Ferreira – que tocava gaita – e

sua mulher. Em um dado momento Ricardo sentiu “fortes trombadas na porta da varanda,

então chamou que viessem ajudá-lo”174. Nisso chegou Antônio, segurando uma espada e uma

pistola, Ricardo exigiu que ele cuidasse daquela porta e que reagisse caso alguém quisesse

entrar, voltando à sala do cartório para prevenir Amado e o peão, no entanto, quando chegou

lá, ambos tinham saído. Ricardo voltou para porta onde tinha ficado Antônio e este também

tinha saído fora de casa, sendo que em seguida aconteceu forte tiroteio e Ricardo passou a

gritar para que parassem de atirar.

Quando os tiros pararam Ricardo perguntou o que havia acontecido ao que Amado

Rodrigues respondeu: “segurei o bandido” (Grifos no original). Contudo, quando foram

verificar tiveram a surpresa de que “em vez de ser o suposto bandido era o cadáver de

Antonio Ferreira que se achava com suas armas nas mãos, (...), tendo recebido de Antônio

dois balaços sendo um no peito e outro no crânio que morreu instantaneamente”175 (Grifos no

original). Os envolvidos no fato são interrogados e todos confirmam a versão descrita acima.

Alguns dizem terem visto o referido negro e sempre que ele era encontrado sua atitude era

“correr para o mato”. Amado Rodrigues é levado a julgamento, mas o Juiz não o pronuncia.

Outro fato que chama atenção no processo é que a cor é constantemente utilizada para

identificar o desconhecido: mais um indício de que a cor ausente ou presente está

proporcionalmente ligada ao tipo de fonte e de situação com que está se lidando.

O processo não só demonstra o lugar social que os negros ocupavam na região, como

também permite perceber que esse lugar era reconhecido como seu pelos próprios afros-

descendentes, uma vez que, segundo o processo, sempre que era visto o “misterioso negro”,

“fugia para o mato”. A associação entre negritude e perigo também é visível, pois a presença

172 Idem. 173 Idem. 174 Idem. 175 Idem.

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de uma pessoa de “cor preta” rondando a casa de Ricardo Ribas levou-o a toda uma série de

prevenções e, independentemente se o desconhecido fosse um criminoso ou representasse um

perigo concreto a Ribas, sua família e seus vizinhos ele tratou de organizar uma escolta para

procurá-lo. Da mesma forma, deve-se levar em conta que a desventura vivida por Antônio

Ferreira e Amado Rodrigues teve por base apenas a suposição de que o misterioso negro fosse

um bandido e de que era ele o responsável pelo barulho na porta da casa onde o grupo estava

reunido. Poderia ter sido o vento ou algum animal? Contudo, esta é uma pergunta que ficará

sem resposta, pois, no processo, ao misterioso negro não é dada a palavra. Ou seja, o caso é

mais uma demonstração do quanto é difícil “discernir o vivido pelos ex-escravos daquilo que

aqueles que deixaram registros sobre eles quiseram ver e nos fazer acreditar”176.

Pelo conjunto de informações até agora arroladas sobre a presença negra na região, é

possível verificar que ela era considerável. Conforme os dados do censo de 1872, o número de

escravos vivendo em Cruz Alta177, Palmeiras das Missões, Passo Fundo e Santo Ângelo,

naquele momento, era de 4.289 pessoas178. Como já relatei em capítulo anterior, Evaristo de

Afonso Castro afirma que, em 1888, o contingente de escravos vivendo na região missioneira

– um espaço maior do que o aqui analisado, mas que abrange o território dos municípios sob

estudo – era de 15 a 20 mil pessoas179. Ou seja, um número importante de indivíduos que, no

pós-abolição, participou direta e indiretamente no povoamento daquelas terras. Lembrando

que, além de eles enfrentarem os obstáculos relativos ao seu pertencimento a camada menos

favorecida da população local, também deveriam lutar contra os preconceitos raciais

peculiares à época e ao contexto.

Quanto às representações formuladas sobre o grupo, elas tendiam a destacar

qualidades negativas e a depreciar a sua presença. Atitude justificada, como apontei acima,

pelas interpretações raciais dominantes na época e pelo sentido social que elas tinham, visto

que eram argumentos fortes para justificar a subordinação. Cabe salientar que aos negros não

foi formulada nenhuma política de incorporação como foram as desenvolvidas

176 MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. De rebeldes a fura-greves: as duas faces da experiência de liberdade dos quilombolas do Jabaquara na Santos pós-emancipação, p. 255. In.: Olívia Maria Gomes da Cunha; Flávio dos Santos Gomes (Orgs.). Idem, op, cit., p. 241-282. 177 Sobre a escravidão e a resistência escrava no município de Cruz Alta, ver: DARONCO, Leandro Jorge. À sombra da cruz: trabalho e resistência servil no noroeste do Rio Grande do Sul – segundo os processos criminais (1840-1888). Passo Fundo: UPF, 2006. 178 Cf.: http://ich.ufpel.edu.br/economia/conteudo.php?pagina=15. Informações coletadas em 29.08.2008, as 17:25 horas. Esta página é ligada ao Departamento de Economia da Universidade Federal de Pelotas, no qual costam dados censitários a respeito da história do Rio Grande do Sul. 179 CASTRO, Evaristo de Afonso. Noticia descritiva da região serrana na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul compreendendo os municípios de Cruz Alta, São Martinho, Palmeira, Passo Fundo, Santo Ângelo, São Luiz, Boqueirão, São Borja, São Francisco de Assis, São Vicente e Itaqui. Cruz Alta: Tipografia do Comercial, 1887, p. 273-274.

- 151 -

especificamente para indígenas e nacionais a partir da criação do SPILTN. Entretanto, não é

de todo errado supor que as medidas estabelecidas e que buscavam ajustar os nacionais e

indígenas aos interesses do Estado também valiam para os afros-descendentes. Em outras

palavras, eles também eram alvo das políticas de incorporação, as quais, no Rio Grande do

Sul, tinham o objetivo de tornar produtivas e disciplinadas as populações que viviam nas

regiões de fronteira agrária e que tinham um modo de vida particular.

Dessa forma, se o modo de vida dos afros-descendentes, a sua relação com a natureza

e com a sociedade, eram os característicos daqueles grupos que vivem em áreas de fronteira

agrária; se existia uma crença muito forte no desaparecimento dos negros pelo seu constante

branqueamento; se existia uma imbricação entre a noção de cor e a de status social; se a idéia

da inferioridade de negros, índios e mestiços encontrava forte aceitação social; se, de acordo

com os preceitos do positivismo, os afros-descendentes representavam um dos aspectos da

natureza humana que deveria ser combinado com os das outras raças para surgir um ser

humano aperfeiçoado; se a opção, comum na época, era silenciar os conflitos em nome de

uma “nação homogênea” e se a possibilidade de refugiar-se na zona de matas os colocava fora

da esfera pública, pode-se compreender porque os afros-descendentes aparecem muito pouco,

tanto nos relatórios da DTC como nas mensagens enviadas pelos presidentes de Estado a

Assembléia dos Representantes.

Em outras palavras, talvez os homens que escreviam tais documentos não viam motivo

para mencionar a existência de um grupo fadado a desaparecer. O silêncio, por sua vez, era

interessante na medida em que não tornava pública uma questão e, assim, dava amplas

margens de manobra para soluções locais relacionadas ao problema de conformação de uma

mão-de-obra disciplinada. Talvez por serem homens de Estado escrevendo sobre o território

que governavam que tinham como uma de suas principais metas a incorporação do

proletariado à sociedade moderna180, encontravam no silêncio uma forma de ocultar a falta

de políticas públicas dirigidas ao melhoramento das condições de vida desse grupo social. Ou,

talvez, a necessidade de esquecer as marcas deixadas pelo recém extinto regime escravocrata

180 Sobre a incorporação do proletariado à sociedade moderna, o Presidente do Estado em 1917, Antônio Augusto Borges de Medeiros, devido ás repercussões da Primeira Guerra no estado e de greves ocorridas em Porto Alegre, escrevia: “Encarando assim esse grave problema e adotando resolutamente as soluções indicadas, segui os exemplos de muitos países bem organizados e obedeci ao influxo da sã política republicana, baseada na moral positiva. À luz dos ensinamentos de A. Comte, cumpre afinal promover definitivamente a incorporação do proletariado na sociedade moderna e considerar o salário como a equivalência da subsistência e não como recompensa do trabalho humano, que não comporta nem exige nenhum pagamento propriamente dito, mas o reconhecimento devido”. (Grifos no original). Cf.: MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros na 1ª sessão ordinária da 8ª Legislatura em 20 de Setembro de 1917. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1917, p. 04.

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levava-os a camuflarem a presença daqueles que o simples fato de existirem tornava esse

passado considerado obscuro um eterno presente.

3.3 DO FETICHISMO À IDADE POSITIVA: OU SOBRE OS “NOSSOS IRMÃOS CUJOS CÉREBROS SE

ACHAM AINDA EM ESTADO DE INFATILIDADE”

Os bugres desta província faziam parte dos Goytacases, que tendo sido expulsos por seus inimigos naturais, os Guaranis, aliados aos portugueses, se refugiaram para as matas, do interior do continente no principio do século XVII, onde eram conhecidos pela denominação de Bororernos, Coroados e Bugres do Sul. Em meados, mais ou menos do século passado, estes últimos penetraram nesta província, ocupando toda a serra do Alto Uruguai, até o Ijuí Grande. (...). Faziam (os coroados) contínuas emboscadas aos Guaranis, e quando estes aprisionavam algum daqueles, vendiam-no como escravo, e desse fato é que se origina o vocábulo – Bugre – que quer dizer escravo.

Evaristo de Afonso Castro. Notícia descritiva da Região Serrana

Ao longo da história do Brasil, desde a chegada dos colonizadores portugueses e o

processo de conquista do território e dos povos que aqui viviam que lhe é peculiar181, até os

dias atuais, as sociedades indígenas vêm participando das mais variadas formas na

constituição daquilo que denominamos de “sociedade nacional”. Esta, por seu turno, é

resultado de um longo processo que envolve questões variadas, tais como a formação de um

Estado nacional. Porém um dos seus principais traços é o esforço realizado na perspectiva de

181 Antônio Carlos de Souza Lima, em sua tese de doutoramento, desenvolve mais detalhadamente a análise da ocupação do Brasil, a constituição do Estado nacional e, principalmente, a relação do Estado e seus aparelhos de governo com as populações indígenas a partir da idéia de guerra de conquista. Para este autor, “a idéia de conquista supõe uma certa disposição de linhas de força entre um eu/nós e um outro radicalmente distinto, ao ponto de se duvidar de sua humanidade, oscilando das relações de violência (características de toda guerra) a relações de poder, e implica numa certa forma de busca de sentidos alheios nos atos alheios, tarefa essencialmente semiótica. As empresas conquistadoras envolvem uma grande e necessária agilidade frente ao desconhecido humano e o seu nicho geográfico, de modo a dar as respostas adequadas à obtenção dos fins pretendidos. Por processos essencialmente criativos, ainda que fora do estoque imaginário original do conquistador, age-se, se necessário, encenando aquilo em que não se acredita: o ponto de partida fundamental e o operador da conquista é a própria consciência da alteridade e a capacidade de utilizá-la instrumentalmente para prever os passos e manipular o inimigo. Distingue-se, destarte, da descoberta, ato que se dirige à natureza, a espaços conhecidos, onde o encontro entre seres humanos não é o centro mesmo da empresa”. Em linhas gerais, como veremos, a constatação de Souza Lima descreve perfeitamente o processo de constituição de políticas indígenas e as ações práticas realizadas pela DTC no Rio Grande do Sul da Primeira República. Cf.: LIMA, Antônio Carlos de Souza. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 47.

- 153 -

conformar uma dada “identidade nacional” que, do meu ponto de vista, deve ser lida como

uma tradição inventada182. Nestes termos, no processo de invenção do Brasil, ou melhor, de

uma almejada identidade brasileira homogênea e livre de conflitos sociais, bem como do povo

portador de tal identidade, as sociedades indígenas vêm, desde o período colonial até os dias

de hoje, ocupando lugares diferenciados nas representações elaboradas a respeito desse povo e

dessa identidade.

Em termos históricos, tais diferenças são verificáveis no modo como a questão

indígena foi legislada e abordada desde o período colonial até o republicano. Assim, se na

colônia, como mostra Beatriz Perone, a questão da liberdade e da utilização da mão-de-obra

dos índios foi o foco que ocupou a preocupação das principais forças políticas da época183; no

período imperial, conforme Manuela Carneiro da Cunha, a questão indígena deixou de ser

“essencialmente uma questão de mão-de-obra para se tornar uma questão de terras”184. Já,

com o fim do regime monárquico e a proclamação da Republica, alguns aspectos presentes

nas legislações dos períodos anteriores incrementaram-se e outros são deixados de lado. O

grande diferencial da República, portanto, foi a instituição, em 1910, de um aparelho de

Estado responsável por pensar e lidar com a questão indígena: o Serviço de Proteção ao Índio

e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN) que, a partir de 1918, passa a ser

apenas Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Contudo, questões de longa data discutidas

continuaram coordenando e definindo o papel da nova instituição. Nesse sentido, a terra e a

ocupação do território, o índio e o seu grau de civilidade, a produção e a possibilidade de

transformar o índio em um trabalhador pacífico foram, de uma maneira geral, os pontos que

definiram a ação do SPILTN ao longo de sua existência.

De acordo com Antônio Carlos de Souza Lima, o objetivo do SPILTN era duplo:

“conhecimento-apossamento dos espaços grafados como desconhecidos nos mapas da época e

a transformação do índio em trabalhador nacional”185 (Grifos do autor). Tais objetivos eram

estratégicos e inseriam-se num processo geopolítico, cujo ponto de convergência é a

constituição do antes referido Estado nacional. Nesses termos, pode-se compreender porque o

positivismo exerceu tamanha influência e foi a teoria base sobre a qual o SPILTN foi

estruturado. Tal teoria tinha forte aceitação no Exército de onde saíram os principais quadros

182 HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. 183 PERONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indígena do período colonial (séculos XVI a XVIII). In.: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP, 1992, p. 115-133. 184 CUNHA, Manuela Carneiro da. Política indígena no século XIX. In.: ___ (Org.). Idem, p. 133-154. 185 LIMA, Antônio Carlos de Souza. O governo dos índios sob a gestão do SPI, p. 161. In.: Manuela Carneira da Cunha (Org.). Idem, p. 155-172.

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que formaram a nova instituição – Cândido Rondon, por exemplo. Outro ponto que deve ser

frisado é que o Exército era a principal instituição preocupada em demarcar o território

nacional, daí o porque de a responsabilidade por lidar com a questão indígena foi a ele

delegada, uma vez que uma parte considerável dos grupos nativos viviam em territórios de

fronteira.

Devido ao fato de na Primeira República ter sido instituída uma agência de Estado

responsável por lidar com o problema indígena, a produção literária que trata sobre o tema

insiste em definir este período como a idade de ouro das políticas indígenas no país186.

Entretanto, esta maneira de contar a história não leva em conta a existência de períodos

históricos anteriores à criação do SPILTN, nos quais também existia uma legislação relativa

aos povos indígenas. Da mesma forma, não percebe o quanto de continuidade existe entre os

diferentes momentos históricos e, conseqüentemente, dificulta pensar as mudanças.

Conforme Souza Lima, a transformação do SPILTN em um espaço sagrado é uma

representação derivada das disputas que caracterizaram o momento histórico em que esta

agência foi elaborada, suas repercussões históricas e, ao mesmo tempo, busca suprimir tais

conflitos na perspectiva de definir um consenso. A estruturação do SPILTN não aconteceu de

forma tranqüila, ela é resultado de confrontos e, como agência de Estado, ele passa a ter poder

para arbitrar “sobre um dos grandes temas do período: os limites de intervenção do Estado

sobre a sociedade civil ou, caso se queira, as concepções da nação em jogo na cena

política”187. Limites que, ao longo da Primeira República, tenderam a ser diminuídos

resultando conseqüentemente em um maior nível de intervenção do Estado na sociedade.

Assim, o SPILTN é fruto da expansão do Estado nacional e enquanto instituição é regido e

organizado dentro dos quadros do Ministério da Agricultura Indústria e Comércio (MAIC).

Ainda, remonta a discussões relacionadas à intervenção do Estado em zonas de fronteira que,

a seu turno, são anteriores à constituição do MAIC e, concordando com Mendonça188, como

parte do MAIC, o SPILTN estava nacionalmente sob a égide de uma posição então dominada

no campo político, contudo, dominante no que dizia respeito à política indigenista189.

Na produção bibliográfica que trata da questão indígena no Rio Grande do Sul da

Primeira República, a idéia de uma idade de ouro também é visível. Outro traço peculiar

186 Cf.: LIMA, Antônio Carlos de Souza. Sobre indigenismo, autoritarismo e nacionalidade: considerações sobre a constituição do discurso e da prática da proteção fraternal no Brasil. In.: FILHO, João Pacheco de Oliveira (Org.). Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ: Editora Marco Zero, 1987. 187 Idem, p. 195. 188 Cf.: MENDONÇA, Sônia Regina de. O ruralismo brasileiro (1888-1931). São Paulo: Editora HUCITEC, 1997. 189 Antônio Carlos de Souza Lima. Um grande cerco de paz. Idem, op. cit., p. 101-159.

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dessa bibliografia é a insistência em apontar o Rio Grande do Sul como estado “pioneiro” e

“autônomo” frente a Federação no que se refere ao trato com os índios. Assim, tanto

pesquisas acadêmicas190, quanto artigos publicados em jornais de divulgação regional191

tomam a constituição do SPILTN como o grande momento da legislação indígena e

sublinham que antes da instituição desta agência nacional o Rio Grande do Sul já vinha

atuando entre os indígenas e que, mesmo após sua fundação, o SPILTN exerceu pouca

influência no território rio-grandense. Ponto de vista que considero precipitado, visto que

toma as informações das fontes sem realizar a sua devida crítica. Ademais, em termos das

políticas indigenistas, essa suposta vanguarda não torna o Rio Grande do Sul e seus

governantes melhores e movidos por ímpetos mais humanitários do que qualquer outro estado

da Federação como geralmente se pretende fazer entender.

Em linhas gerais, se comparado com as práticas anteriores, o grande mérito do

SPILTN foi sua eficácia e os sucessos que obteve em algumas de suas tentativas de

incorporação e modificação dos modos de vida tradicionais de alguns povos nativos. Então,

em grande medida, cumpriu com o papel que lhe foi definido no processo de construção da

pretendida “sociedade nacional”. Outro ponto que as interpretações centradas na idéia de

espaço sagrado obscurecem é o das disputas relativas ao modo como a discutida instituição

responsável pela proteção aos indígenas deveria funcionar, quais seriam seus objetivos e a

maneira mais apropriada de ação.

No geral, tais textos tomam o SPILTN como resultado de discussão travada entre o

diretor do Museu Paulista, Hermann von Ihering, e os positivistas aglutinados em torno da

Igreja Positivista do Brasil, Teixeira Mendes e Miguel Lemos. O primeiro supostamente

defendendo o extermínio dos indígenas em detrimento dos imigrantes; os dois últimos

190 Um exemplo dessa produção são as pesquisas de Paulo Pezat e Breno Sponchiado. Cf.: Paulo Pezat. Idem, op. cit. e SPONCHIADO, Breno Antônio. O positivismo e a colonização do Norte do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2000. (Dissertação de Mestrado). De certa forma, a pesquisa de Ligia Simonian também partilha desse ponto de vista, contudo diferentemente de Pezat e Sponchiado não é tão apologética dos governos da Primeira República e é mais crítica em relação às políticas adotadas por tais governos. Cf.: SIMONIAN, Ligia T. L. Terra de posseiros: um estudo sobre as políticas de terras indígenas. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional, 1981. (Dissertação de Mestrado). Outro exemplo mais recente desse tipo dessa interpretação apologética encontra-se em CARINI, Joel João. Estado, índios e colonos: o conflito na reserva indígena de Serrinha norte do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Editora UPF, 2005. Cabe destacar também, a tese de doutoramento de Cíntia Régia Rodrigues, na qual a idéia do “pioneirismo” e/ou “vanguarda” do Rio Grande do Sul e de sua autonomia frente a Federação no que diz respeito a questão indígena é por deveras apologizada. Cf.: RODRIGUES, Cíntia Régia. As populações nativas sob a luz da modernidade: a proteção fraterna no Rio Grande do Sul (1908-1928). São Leopoldo: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2007. (Tese de doutorado). 191 Refiro-me aqui especificamente ao conjunto de artigos publicados no jornal Correio do Povo entre as décadas de 60 e 80 produzidos por Moisés Westphalen e agrupados por Ligia Simonian no livro: SIMONIAM, Lígia T. L. A defesa das terras indígenas: uma luta de Moysés Westphalen. Ijuí: Editora UNIJUI, 1979.

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defendendo a incorporação dos grupos fetichistas à sociedade. De acordo com essa versão, a

disputa encontra ecos quando Alberto Vojtech Fric, um americanista, em comunicação feita

no XVI Congresso Internacional de Americanistas, realizada em Viena no ano de 1910,

tornou a questão indígena brasileira um problema internacional mostrando que a conquista do

território no Brasil estava acontecendo a partir do extermínio dos grupos nativos.

Conseqüentemente, o governo se viu pressionado e resolveu instituir o SPILTN optando,

entre as vertentes em disputa, pela proposta dos positivistas apresentada como mais

humanitária192. Ou seja, uma simplificação de todo processo que, entre outras coisas, esquece

de frisar que, tanto von Ihering quanto os positivistas, tinham como principal preocupação

incorporar os índios para assim conformar uma identidade nacional. Por outro lado, as

diferenças de interpretações dos positivistas e do Diretor do Museu Paulista representam

apenas uma face do processo193.

Todavia, os motivos que levaram o SPILTN ser estruturado a partir das propostas

veiculadas pelos positivistas longe de ser uma “decisão humanitária” dos grupos que

administravam o Estado estava vinculada a uma opção estratégica realizada pelo governo. Em

outros termos, como os problemas discutidos à época giravam em torno da necessidade de

incorporação dos povos indígenas e dos nacionais. Já que se objetivava à expansão do

território nacional, à proteção da fronteira, dos espaços conquistados pelo avanço das

populações em direção a esses territórios e à elaboração de uma identidade nacional a partir

do anulamento das diferenças. Como um dos principais problemas da época era encontrar

modos para definir um povo e, também, governamentalizar as relações levando o Estado e

seus aparelhos para os mais distantes confins e, assim, definir a nação. Coube ao SPILTN

realizar parte da tarefa. Restava, portanto, decidir entre as propostas de ação existentes aquela

que mais propriamente daria conta do objetivo194.

192 Um exemplo desse tipo de interpretação encontra-se em Silvio Coelho dos Santos. Idem, op. cit. 193 Antônio Carlos de Souza Lima aponta que essa interpretação é resultado da influência exercida pelo texto A política indigenista brasileira, de Darcy Ribeiro, sobre a produção bibliográfica brasileira relativa à questão indígena. Nesse livro, de acordo com Souza Lima, Ribeiro faz uma “defesa apologética do Serviço de Proteção aos Índios, elaborada num momento em que, como diversas vezes ao longo de sua trajetória, a instituição achava-se ameaçada de extinção”. Cf.: Antônio Carlos de Souza Lima. Sobre indigenismo, autoritarismo e nacionalidade. Idem, op. cit., p. 154. 194 Conforme Antônio Carlos de Souza Lima, no início do século XX, existia um campo de disputas sobre a questão indigenista, o qual estava estruturado a partir da constituição de categorias de agentes e, em torno dessas categorias, aglutinavam-se etnógrafos, políticos, juristas, jornalistas, propagandistas e engenheiros militares. Os atores sociais que compunham estas categorias também se propunham a formular projetos indigenistas que “visavam solucionar alguns objetivos, através de certos métodos, que deveriam ser implementados por determinados agentes diretos” (Grifos do autor). Tais projetos tinham pontos em comum, bem como divergências, disputavam qual era a representação mais fiel à condição indígena, que tipo de proteção deveria ser proporcionada e apresentavam diferenciadas metodologias de ação para realizar o trabalho. Para conhecer mais detalhadamente as especificidades de cada projeto, as disputas, os pontos em comum, bem como os agentes

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O exército, onde se aglutinavam os principais representantes do positivismo do país,

como vimos, era a principal instituição preocupada em demarcar as fronteiras territoriais e

simbólicas da nação, bem como definir uma identidade nacional. Candido Rondon, na época,

atuava em regiões de fronteira na instalação de linhas telegráficas e em seus trabalhos vinha

mantendo contato com as populações indígenas. Fato que lhe garantia um conhecimento

específico a respeito dos indígenas, assim como das regiões de fronteira. Além disso, ele era

um engenheiro-militar, portanto, o exemplo maior do “soldado-cidadão”: representação que,

no período, simbolizava um indivíduo especial a quem caberia o papel maior na “missão

civilizadora” então em curso195. Tudo somado, nada mais prático do que, entre as

possibilidades existentes, optar pela que parecia mais viável e autorizada socialmente e

convidar Rondon para ser o principal organizador do SPILTN196. Em outras palavras, o que

define a estruturação desta agência nos moldes como ela foi elaborada são antes motivos

estratégicos e políticos do que humanitários: afinal, gerir um Serviço que seria quase sempre

“deficitário, em termos de receita e suporte, num ministério (MAIC) igualmente secundário

parece ter sido em grande medida uma tarefa cênica, para a qual os positivistas estavam

especialmente preparados”197 (Grifos do autor).

A presença militar no SPILTN rio-grandense, segundo dados disponibilizados pela

bibliografia competente, é menor do que é registrada na secretaria nacional, cabendo à DTC a

tarefa de administrar a questão indígena no estado. Entretanto, a influência positivista é

dominante e a preocupação central é a da incorporação desses povos, sua transformação em

agricultores e a sua paulatina passagem do fetichismo à idade positiva198. Ação que, de acordo

envolvidos nas discussões, verificar: Antônio Carlos de Souza Lima. Sobre indigenismo, autoritarismo e nacionalidade. Idem, op. cit. 195 Sobre a questão, Antônio Carlos de Souza Lima escreve: “o soldado-cidadão – em especial o engenheiro militar – era representado como o agente indicado para o trabalho de ‘salvação’ da nacionalidade, ‘missão civilizadora’ que consistia em descobrir e demarcar o território geográfico, submeter e ‘civilizar’ os que estivessem à margem da Nação, tal significando inseri-los num sistema nacional de controle gestado a partir do centro do poder, tornando-os produtivos e engajados nesse mesmo esforço. Impunha-se uma representação da Nação como indíviduo coletivo a quem toda diferença deveria se achar reduzida”. Cf.: LIMA, Antônio Carlos de Souza. O governo dos índios sob a gestão do SPI, p. 161. Idem, op. cit. 196 Não aprofundarei aqui, mas existem outros motivos mais que levaram à decisão de deixar a organização do SPILTN sob a responsabilidade de Rondon e dos positivistas. Tais razões são detalhadamente trabalhadas por Souza Lima no conjunto de textos de sua autoria citados ao longo deste texto. Também é interessante conferir a tese de doutorado de Laura Maciel: MACIEL, Laura Antunes. Nação por um fio: caminhos, práticas e imagens da comissão Rondon. São Paulo: EDUC, 1999. 197 Antônio Carlos de Souza Lima. Um grande cerco de paz. Idem, op. cit., p. 116. 198 De acordo com a teoria positivista formulada no século XIX por Auguste Comte, a humanidade em sua evolução passa por diferentes estágios de desenvolvimento: o teológico, o metafísico e o positivo. O estágio teológico, por sua vez, é dividido em outros três: o fetichista, o politeísta e o monoteísta. Os índios, de acordo com essa teoria, encontravam-se no primeiro estágio do desenvolvimento humano, no qual “o homem é a medida de tudo atribuindo aos acontecimentos os mesmos impulsos que o guiam na luta pela sobrevivência”. Cf.: Paulo Ricardo Pezat. Idem, op. cit., p. 59.

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com a interpretação positivista, seria facilitada pelo fato de os nativos não terem passado pelo

período metafísico. No Rio Grande do Sul a atuação da União é reconhecidamente menor do

que em outros estados da Federação. Circunstância que leva alguns estudiosos, como Paulo

Pezat, Breno Sponchiado e Cíntia Rodrigues, a afirmar que o Rio Grande do Sul foi

“pioneiro” e “autônomo” na formulação das políticas indígenistas. Contudo, tal “autonomia”

provinha da maneira como os índios eram classificados pelo SPILTN e o critério que regulava

a classificação era o grau de sua incorporação na sociedade nacional. O pioneirismo, desse

modo, deve ser relativizado, uma vez que a ação da DTC – que foi criada em 1908, portanto,

2 anos antes do que o SPILTN – entre os indígenas se tornou maior a partir de 1910, sendo

que a tarefa de proteger os índios, até então, surge apenas como um preceito da DTC e não

como uma prática efetivamente realizada.

Há que se considerar ainda que as discussões para a criação de um órgão federal para

se dedicar a proteção dos povos nativos é anterior a 1910. Da mesma forma, a Constituição

do Rio Grande do Sul de 1891, a lei de terras estadual de 1899 e seu regulamento de 1900 não

definem propostas concretas a respeito dos indígenas. Em outros termos, se o Rio Grande do

Sul era a vanguarda nacional no quesito política indigenista, porque a questão não é tratada no

texto destas duas leis, sendo que os responsáveis por sua elaboração permaneceram a frente

do Estado nos anos que compreendem a Primeira República. E, especialmente no caso da lei

de terras, se a demarcação das áreas indígenas é, ao longo dos relatórios da DTC, apresentada

como o principal fundamento da proteção, porque os povos nativos não recebem a atenção

devida nesta lei?

Anteriormente afirmei que a ação do SPILTN entre os indígenas era definida pelo grau

de incorporação deles a “sociedade nacional”, sendo sua prioridade agir entre os grupos mais

resistentes. As populações nativas que viviam no estado eram concebidas como participando

de um processo de incorporação bem mais avançado do que, por exemplo, acontecia com os

Xokleng de Santa Catarina199. Tal leitura pode ajudar a compreender porque, em 1911, foram

reunidas em uma só as inspetorias do SPILTN dos dois estados e a sede foi instalada em Santa

Catarina. Esta medida, portanto, tem muito pouca relação com uma certa idéia de autonomia

do Rio Grande do Sul em relação ao governo central e, entre outras coisas, é resultado da falta

de recursos disponíveis ao SPILTN, situação que levava seus quadros a optar por agir mais

diretamente em espaços onde os conflitos entre indígenas e ocidentais eram mais fortes.

199 Sobre o processo de incorporação dos Xokleng, verificar o livro de Silvio Coelho dos Santos citado anteriormente.

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Quanto ao grau de “incorporação” a que estavam submetidos os indígenas que viviam no Rio

Grande do Sul, o relatório da DTC de 1910 traz uma descrição esclarecedora:

Pelos contatos em que se acham [os índios] há muitos anos com os ocidentais, poucos hábitos e costumes da vida primitiva conservam. Perderam a sua indústria, talvez por encontrarem nos ocidentais o equivalente dela, e mais, se bem que a custa de sofrimentos sem conta, que se prolongam até os nossos dias. Desconhecem a medicina dos antepassados. Não guardam sequer lembrança das suas tradições. E o único traço de nacionalidade que conservam vivaz, aliás o mais característico, é a linguagem. Os homens conhecem quase todos o português; as mulheres, porém, raramente e pouco200.

Em seus relatórios, o Diretor da DTC, constantemente afirma que a propriedade da

terra era o principal aspecto que deveria ser regulado pela política indígenista. Por

conseguinte, a partir de 1910, com a criação de uma secretaria do SPILTN no estado, iniciam-

se os trabalhos de demarcação das terras indígenas, considerados “o fundamento de toda a

proteção”. A partir desse momento, as descrições sobre os índios tornam-se mais constantes

nos relatórios da DTC e nas mensagens dos presidentes. Tais informações primam por

caracterizar os índios como humildes, submissos, vingativos, vivendo em “miseráveis

ranchos, sem camas, as crianças nuas”. Apresentam a agricultura praticada pelos indígenas

como insuficiente, restringindo-se à produção de milho e feijão. Definem as populações

indígenas como conformando uma “raça abatida, deprimida e decadente”201 que nada haviam

lucrado nos seus contatos com a sociedade ocidental e, assim, cabia ao Estado proteger tais

populações.

Carlos Torres Gonçalves, propõe um conjunto de medidas a fim de “levantar o moral”

dos índios e torná-los mais “úteis socialmente”. Dentre elas, destacam-se o fornecimento de

vestuário e ferramentas agrícolas; alguns animais, cavalares e bovinos; gaitas de foles para

aproveitar suas aptidões musicais; carpinteiros que os auxiliem na construção de suas

habitações; uniformes militares, aos caciques e seus ajudantes, para aumentar a convergência

entre eles e desenvolver o espírito de subordinação dos inferiores para com os superiores.

Outra medida era torná-los guardas florestais para aproximá-los do Estado e, ao mesmo

tempo, utilizá-los na proteção e fiscalização “que o Estado tem de exercer sobre as

mesmas”202.

200 Carlos Torres Gonçalves, 1910. Idem, op. cit., p. 152. 201 O conjunto de citações aqui utilizadas são retiradas do Relatório Sobre os Indígenas escrito por Torres Gonçalves em 1910 e que se encontra no relatório da DTC deste ano, Idem, p. 147-157. 202 Idem, ibidem.

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Acerca do ensino da leitura e da escrita, ponderava Torres Gonçalves, mesmo os

índios demonstrando interesses no aprendizado, era necessário primeiramente mudar as

condições em que eles viviam, pois não obstante reconhecer a utilidade de ambas, para

Gonçalves, existiam coisas mais importantes, tais como a necessidade de orientá-los na

prática de uma agricultura que os tornassem auto-suficientes. Um outro traço característico da

política indigenista no Rio Grande do Sul era o caráter leigo dado à proteção. No conjunto

dos relatórios, é possível verificar a existência de um esforço por parte dos agentes da DTC

para que a igreja não interviesse no processo e, aos encarregados, era proibida a prática do

ensino religioso aos nativos203.

No conjunto de propostas feitas pelo diretor da DTC, congregam-se de forma clara as

ações características do SPILTN. Movidos pelo objetivo de incorporação, os agentes do

Serviço buscavam incentivar os índios a adotarem costumes comuns aos “civilizados”. Assim,

pretendiam torná-los dependentes das “benesses da civilização” e tal dependência, por seu

turno, responsabilizaria-se por fazer com que os índios “por si mesmos” passassem a fazer

esforços no sentido de suprimi-la. Nesta perspectiva, um dos principais pontos que o SPILTN

e a DTC buscavam combater era o nomadismo característico dos grupos indígenas, pois

pôr-lhe um fim era destituir de vez o nativo de uma vivência cultural e politicamente diferenciada do espaço geográfico (uma territorialidade específica), obrigando-o ao reconhecimento de um território alheio e imposto de fora. Este processo tem sua explicação nas preocupações simultâneas: a) circunscrever porções de terra para localizar e fixar populações nativas, inserido-as no estoque fundiário disponível sob controle estatizado, e b) liberar o espaço em torno para a empresa privada.204.

Nos relatórios, o diretor da DTC também deixa clara sua convicção na existência de

uma moral indígena, cujos valores foram alterados devido aos constantes contatos com os

ocidentais e que, mesmo assim, os índios deveriam ser respeitados a partir de suas

especificidades: isto é, levando em conta que as populações nativas eram povos que ainda se

encontravam no período fetichista da existência histórica. Para dar força ao seu argumento,

descreve o caso da prisão de seis índios do Toldo de Rio Carreteiro em Passo Fundo, porque

haviam matado “dois brasileiros ocidentais”. O que levou ao crime foi o fato desses

brasileiros terem anteriormente assassinado dois índios. Para Torres Gonçalves, perante a

moral e os costumes dos seus pares, os índios não eram criminosos, já que, “por serem índios”

203 Sobre as relações entre igreja e Estado no que se refere a questão indígena no Rio Grande do Sul, especialmente, sobre a atuação da Igreja Católica e da Luterana em meio os povos nativos, verificar a tese de doutorado de Cíntia Régia Rodrigues, anteriormente citada. 204 Antônio Carlos de Souza Lima. Um grande cerco de paz. Idem, op. cit., p. 197.

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haviam cumprido seu dever de vingar a morte de seus irmãos. Em conseqüência, ponderava

Gonçalves, “não é sábio nem justo pretendermos nós resolvermos casos passados com

fetichistas, servindo-nos para isso de um código criminal feito para ocidentais”205.

Por estarem no período fetichista, deveriam ser respeitados como nações autônomas e

tratados como “irmãos cujos cérebros se acham ainda em estado de infantilidade”206. Em

outras palavras, a tutela deveria ser exercida para o próprio bem dessas populações, e o

objetivo era, através da proteção, reanimar os “nossos silvícolas” e “reerguer o seu moral

abatido” para que “comecem conforme as suas disposições manifestadas, a cuidar de melhorar

a sua situação”207. Esta posição do diretor da DTC, cabe ressaltar, insere-se num contexto de

discussões comuns do período de instituição do serviço de proteção e diz respeito à definição

jurídica dos índios, cujo princípio, entre outras coisas, era definir o poder de ação do SPILTN

– leia-se também, do Estado – sobre os povos nativos208.

Os relatórios da DTC também trazem detalhes sobre o modo como se desenvolviam as

relações entre os índios e os ocidentais referentes à questão da terra. Em 1911, Carlos Torres

Gonçalves acusa, que no Toldo de Nonoai – situado no município de Palmeira – os

“civilizados” convivem muito próximos e arrendam as terras indígenas “por uma ninharia,

além do que o arrendamento é pago em mercadorias, vendidas por preços excessivos”209.

Nesse toldo, as relações dos indígenas com as autoridades locais são descritas como

conflituosas, pois os índios tinham-nas “em conta de seus perseguidores e espoliadores, e isso

porque em qualquer dúvida ou qualquer questão surgida entre eles e os brasileiros, sobre

pretextos fúteis, são sempre sacrificados”210. As terras do Toldo de Serrinha, em Passo Fundo,

também eram arrendadas para um certo Manuel Bento Souza pela quantia anual de R$

100$000 réis. Na continuidade do seu relato, Torres Gonçalves afirma que a invernada que os

índios arrendavam poderia conter cerca de 400 cabeças de gado e que

os índios não têm toldo organizado, vivem espalhados pelos campos e matos. Atualmente a população é reduzida a cerca de 150 habitantes, devido as perseguições sofridas, especialmente daquele arrendatário, até pouco tempo ainda subdelegado de polícia, o qual após haver apunhalado o índio João

205 Carlos Torres Gonçalves, 1910. Idem, op. cit., p. 152. 206 Carlos Torres Gonçalves, 1914. Idem, op. cit., p. 184. 207 Carlos Torres Gonçalves, 1910. Idem, op. cit., p. 157. 208 Para aprofundar o conhecimento sobre a definição jurídica dos índios e as disputas que lhe dizem respeito, verificar o capítulo 9 da já citada tese de doutorado de Antônio Carlos de Souza Lima: Um grande cerco de paz, p. 198-216. 209 Carlos Torres Gonçalves, 1910. Idem, op. cit., p. 155-156. 210 Idem, ibidem.

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Oliveira, na ocasião em que este lhe oferecia um mate, matou pouco depois o índio Ângelo de Oliveira, e está hoje impune destes crimes211.

A descrição relata a distância existente entre os discursos de proteção, as supostas

razões humanitárias que lhe fundamentavam e o que realmente se dava no contexto local. Em

outros termos, o arrendatário Manuel Bento era parte do conjunto de pessoas que na região

representavam o Estado, visto que era subdelegado de polícia. Como sublinhei no capítulo

anterior, para um indivíduo exercer este cargo precisaria fazer parte de um conjunto complexo

de relações, uma vez que, de acordo com as disposições da Constituição estadual, o

subdelegado deveria ser nomeado pelo Intendente, o qual, na maioria das vezes, era

representante do Presidente do Estado e líder local do PRR. Nessa perspectiva, um ponto que

convém sublinhar é que, entre as propostas e projetos formulados nas instituições centrais e as

práticas locais havia um espaço a ser percorrido. Espaço que era definido pelo próprio modo

como o processo de ocupação do território vinha se desenvolvendo. Assunto sobre o qual me

deterei de forma mais profunda no próximo capítulo.

Em 1926, no município de Palmeira das Missões ocorre um fato descritivo, tanto do

lugar social que os índios ocupavam, como do lugar que lhes era destinado e das ações e

desavenças existentes entre as autoridades locais. O fato ocorreu no distrito de Nonoai e

resultou na morte de um índio e ferimentos em outros tantos. Consta na denúncia que José

Joaquim de Moura (casado, brasileiro, com 53 anos de idade), subintendente de Nonoai,

acompanhado de escolta formada de praças da polícia administrativa e de civis, no dia 24 de

Abril de 1926, armados de “revolveres, facas e relhos” foram “a casa comercial de Miguel do

Carmo Flores, onde achavam-se pacatamente, na mais perfeita ordem, uns 20 índios fazendo

compras”212. O objetivo de José Moura era fazer com que os índios saíssem da cidade e ao

chegar na venda “a referida escolta entrou a espancar brutalmente o grupo de índios tirando-

os para rua e levando-os por esta a fora, sempre debaixo dos maiores atos de crueldade”213.

Enquanto estava praticando tal ato a escolta formada pelo subintendente de Nonoai foi

abordada pelo capitão da Brigada Militar Antônio Pinto Ribeiro Deiró (com 53 anos de idade,

viúvo, residente em Passo Fundo), que apoiado em uma força de seu comando, “intimou o

referido subintendente a fazer cessar tão lamentável cena, quando os pobres índios foram

deixados em paz, sendo acompanhados pelo mesmo capitão Deiró até fora do povoado”214.

Diante dos fatos, o promotor público, encerra a denúncia com a seguinte reflexão:

211 Idem. 212 APERGS. Processos Crime 254. Cartório Civil Crime. Município de Palmeira das Missões, 1926. Maço 12. 213 Idem. 214 Idem.

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Destes atos de vandalismo, partidos de pessoas a quem a lei delegou o grande dever de zelar pela ordem e sossego do povo de Nonoai e tutelar índios indefesos resultou saírem feridos os índios João Lucidio, Sebastião Coió, Francisco Anastácio, Antônio Anastácio, Francisco Manuel, Joaquim Florentino e a índia Joaquina Frederico215. (Grifos meus).

Conforme a testemunha de Dinarte Ayres de Toledo (30 anos, casado, deste estado,

barbeiro, residente no município), o subintendente esteve em sua barbearia no dia do

acontecido e enquanto cortava o cabelo “referiu-se aos índios dizendo que a distração deles

encerrava-se em beber e cantar”216. Logo após cortar o cabelo o subintendente saiu, voltando

um tempo depois acompanhado de escolta seguiu em direção a venda de Miguel Flores que

ficava em frente a barbearia. Segundo Toledo, na venda se achavam uns 15 índios “em

completa ordem, e sem motivo algum, pois não houve discussão (...) foram espancados a

pranchaços de espada, de facão e a relhaços”217, fato que só cessou quando José Moura foi

interceptado pelo capitão da Brigada Militar.

Em sua versão dos fatos José Joaquim de Moura, afirma que a razão pela qual agiu

daquela forma com os índios era porque um seu irmão de nome Marcírio e dois índios haviam

brigado, também devido a grande quantidade de índios presentes na Vila e ao fato de que eles

já estavam exaltados por causa da bebedeira “achou mais conveniente retirá-los do povoado”.

No entanto, como os índios não obedeceram a seu pedido, pelo contrário “portaram-se

incovenientes”, tendo um deles, inclusive, dado-lhe “uma bofetada” viu-se obrigado a resistir

fazendo-os, pela força, saírem dali. Neste momento, “saiu pela frente o capitão Deiró, com

uns 30 homens, armados a fuzil, o qual lhe intimou a que não mais fizesse aquilo com os

índios, porquanto eles eram do governo”218. Durante o processo são ouvidas 14 pessoas e,

com exceção do subintendente, todas as versões são iguais a do barbeiro e, enfim, para dar

mais eficácia a sua defesa José Moura alega que a ação dos índios fora planejada por seus

“inimigos políticos”, cujo interesse era destituir-lhe do posto de subintendente. Argumenta

também que a maior parte das testemunhas faziam parte do grupo que lhe devotava inimizade

e que a única versão verdadeira dos fatos era a sua.

Por algum motivo, difícil de ser conhecido, o processo não chegou ao fim e assim não

é possível saber qual seu resultado, contudo, ele é demonstrativo da situação vivida pelos

índios na região. Entre os pontos que devem ser ressaltados é a confusão reinante sobre a

215 Idem. 216 Idem. 217 Idem. 218 Idem.

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quem caberia a tarefa de regular as ações dos indígenas, uma vez que no conflito entre as duas

forças policiais o capitão da Polícia Militar deixa claro que os “índios pertencem ao governo”,

o que, por seu turno, não impedia que o subintendente exercesse sua “autoridade” entre os

indígenas. Portanto, para Deiró, caberia a Brigada Militar resolver as questões relativas aos

índios e não a José Moura que fazia parte da polícia administrativa, logo, deveria se preocupar

apenas com assuntos de ordem municipal219. Por outro lado, também fica nítida a forma como

os índios eram percebidos pela população local, isto é, na voz do subintendente, eles eram

pessoas que encontravam distração em “beber e cantar”; na do barbeiro eram “pessoas

humildes e obedientes”; na do Promotor Público eles surgem como indivíduos que deviam ser

tutelados, pois eram índios indefesos. Ou seja, uma partilha plena das noções típicas,

dominantes na época, sobre os indígenas.

No fato acontecido em Palmeira das Missões, também é possível visualizar a antes

referida distância existente entre as políticas e projetos de proteção e tutela com o que

acontecia nos contatos estabelecidos entre as populações nativas e a sociedade ocidental. Se,

para os integrantes da DTC e para os membros do SPILTN, a incorporação era a meta

principal de suas atividades, ela não encontrava eco entre as populações que viviam próximas

aos Toldos, visto que a ação do subintendente foi expulsar os índios do povoado, ou seja, fica

patente que existia um espaço definido para os indígenas, o qual não ficava dentro da Vila de

Nonoai. Ademais, o processo também indica que o conflito é um elemento central para

compreender tais contatos, já que o motivo primeiro apontado por José Moura para expulsar

os índios foi porque seu irmão havia brigado com dois índios, os quais faziam parte do grupo

que estava fazendo compras na venda de Miguel Flores. Embora o motivo pelo qual o irmão

do subintendente tenha brigado com os índios não apareça, o conflito é indicativo de que as

relações mantidas entre os indígenas e a sociedade envolvente, no contexto da região serrana,

se caracterizavam como relações de fricção interétnica, nos termos de Roberto Cardoso de

Oliveira.

Em outras palavras, é o encontro entre duas situações e culturas distintas, cuja marca é

a competitividade, lembrando que o modo como a “sociedade nacional” se encontra com a

“sociedade tribal” é variável e está proporcionalmente delimitado pelas diferenciações 219 Acerca do confronto entre a polícia administrativa e a brigada militar é interessante ressaltar que o caso relatado não é único, mas, em Cruz Alta, aconteceu algo semelhante: devido a rixas existentes entre guardas da Polícia Militar e soldados do Exército, em 18 de Outubro de 1910, alguns soldados atacaram o quartel da Brigada Militar resultando na morte de dois deles. Em outros termos, parece que os limites das jurisdições, embora estipulados pela Constituição estadual, não estavam bem claros para aqueles que exerciam algum cargo de policiamento. Da mesma forma, é importante ressaltar que, invariavelmente, tais cargos eram usados em beneficio próprio devido aos mais diferentes motivos. Cf.: APERGS. Processos Crime 2.221. Cartório Civil Crime. Município de Cruz Alta, 1910. Maço 62.

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próprias, tanto dos grupos tribais como dos segmentos nacionais que entram em contato com

os indígenas, pois “nem o contingente indígena, nem o contingente nacional apresentam

aspectos unívocos”220. Isto é, existem diferenças profundas nos contatos estabelecidos entre

indígenas e posseiros daqueles que são mantidos entre grandes proprietários e indígenas ou

entre imigrantes e índios e assim por diante. No entanto, deve-se ter bem claro que, não se

“trata de relações entre entidades contrárias, simplesmente diferentes ou exóticas, umas em

relação a outras; mas contraditórias, isto é, que a existência de uma tende a negar a outra”221

(Grifos do autor). Portanto, conforme Oliveira, uma relação de fricção interétnica, cuja

característica mais marcante é a expansão da sociedade brasileira sobre os territórios tribais,

da qual o resultado histórico principal foi a “destruição dos indígenas (depopulação,

desorganização tribal, desagregação e dispersão das populações tribais, etc.)”222. Tal

“destruição” pode ser questionada, uma vez que a incorporação nunca se dá de forma

completa e total: as diferentes sociedades fazem leituras próprias dos processos sociais e dos

contatos que estabelecem com outros grupos. O que significa que dificilmente rompem

completamente com certos aspectos que caracterizam sua “cultura original”, os quais

continuam sendo importantes elementos de interpretação da sociedade, das mudanças de que

estão participando e da situação que tais grupos vivem. Contudo, é importante frisar que a

“sobrevivência de algumas sociedades tribais, se bem que descaracterizadas, não é suficiente

para esconder o sentido destruidor do contato”223. Isto é, por mais humanitários que os

contemporâneos da Primeira República pretendiam ser em seus projetos para as populações

nativas, o resultado de sua ação foi altamente destruidor.

Um outro exemplo de conflito envolvendo índios e ocidentais pode ser encontrado no

relatório da DTC de 1921, quando no Toldo do Ligeiro em Passo Fundo, um italiano

assassinou um índio, segundo Torres Gonçalves, “por simples perversidade”. O assassino é

capturado e condenado. No Relatório não consta qual é especificamente a condenação, mas o

motivo que, segundo o diretor da DTC, levava a se cometerem crimes contra os indígenas

consistia em “os ocidentais, especialmente os de origem estrangeira, considerarem ainda os

silvícolas animais inferiores do que como seres humanos”224. Nesta perspectiva, em alguns

relatórios, o diretor da DTC tecia criticas ao fato de não existirem verbas destinadas ao 220 OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O índio e o mundo dos brancos. São Paulo: UNICAMP, 1996, p. 177. 221 Idem, p. 46. 222 Idem, p. 47. 223 Idem, ibidem. 224 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 463. In.: PINTO, Ildefonso Soares. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 16 de agosto de 1921. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1921, p. 369-503. (AHRS - OP. 60).

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melhoramento dos serviços de proteção aos indígenas, enquanto a União gastava “milhares de

contos com a introdução de imigrantes no país”225. As críticas tornam-se mais fortes quando,

em 1914, devido à crise econômica resultante do confronto mundial, o Governo Federal fez

grandes reduções na verba destinada ao SPILTN. No mesmo ano, em contrapartida, o diretor

da DTC comemorava o início da execução e da organização, por parte do Governo Federal, de

um centro agrícola voltado à atração e instrução de indígenas que passou a funcionar na área

do Toldo do Rio Ligeiro em Passo Fundo.

Uma medida executada pela DTC e voltada a apurar o processo de incorporação e

proteção dos índios era a instalação no interior dos Toldos de “um homem com família, tendo

capacidade para dar aos indígenas educação compatível com a receptividade deles”226. Tais

indivíduos, chamados de encarregados, seriam responsáveis por auxiliar os índios na

construção de casas de madeira, cujo modelo seria fornecido pelas Comissões de Terras e

Colonização (Ver figura 9, abaixo). Era sua tarefa também ajudar na construção de

mobiliário, principalmente leitos, e auxiliar os índios na execução de suas lavouras. Às

esposas dos encarregados, caberia a tarefa de ensinar trabalhos caseiros às índias,

especialmente os de costura e, enfim, era obrigação do encarregado proteger os indígenas de

possíveis perseguições e explorações feitas pelos ocidentais. Com essa série de práticas,

objetivava-se encaminhar no mais curto prazo possível os índios a poderem viver de seus

próprios recursos e, sobretudo, respeitar e “fazer respeitar a sua organização própria e as suas

crenças”227.

Um ponto interessante e muito presente ao longo dos relatórios da DTC e também das

mensagens dos presidentes de Estado era a defesa da idéia de que o “conforto” seria um

estimulante para que os grupos que deveriam ser incorporados – índios e nacionais,

principalmente – alterassem seus costumes e modos de relação com o trabalho. Nesse caso,

uma das principais medidas tomadas a fim de torná-los conhecedores do conforto, “um dos

maiores estimulantes para a atividade”228, era construir-lhes habitações. Conforme as

informações constantes nos relatórios, tal medida levava em “consideração o justo grau do

egoísmo necessário e útil à vida humana” e, assim, buscava-se estimular tais grupos ao “gosto

pelo conforto próprio e da família, isto é, pelas vantagens da vida industrial moderna e o

conseqüente esforço para obtê-las”229. Para os responsáveis pela proteção, essa era uma

225 Carlos Torres Gonçalves, 1914. Idem, op. cit., p. 183. 226 Protásio Alves. Relatório da Secretaria dos Negócios das Obras Públicas, 1917. Idem, op. cit., p. XVI. 227 Idem, p. 385-386. 228 Idem, p. 383-384. 229 Idem, ibidem.

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“satisfação egoísta” que, sem alterar profundamente a ordem, permitiria incorporar essas

populações e inseri-las em uma outra ordem, qual seja, a da “vida industrial moderna”, isto é,

o projeto de incorporação tão caro aos positivistas.

FIGURA 9:

MODELO DE HABITAÇÃO PARA INDÍGENAS

FONTE: Carlos Torres Gonçalves. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, 1918.

Em linhas gerais, as políticas indigenistas formuladas e postas em prática pela DTC

foram instrumentos utilizados na perspectiva de tornar a incorporação dos grupos nativos a

referida “vida industrial moderna” mais eficaz e, portanto, carregam muito pouco dos valores

humanitários que geralmente lhes são atribuídos. Ao fim e ao cabo, os Toldos seriam centros

de formação, onde o encarregado e sua família teriam papel de preparar os índios para a sua

incorporação definitiva. Coisa que não é peculiar à política indígena da Primeira República,

pois, como demonstra Manuela Carneiro da Cunha, durante o século XIX, a prática de

ampliar as necessidades dos índios e, ao mesmo tempo, restringir as possibilidades que eles

tinham de satisfazê-las era política muito utilizada para sujeitá-los ao trabalho230.

Outra questão importante e pouco discutida no quadro da produção bibliográfica sobre

os índios no Rio Grande do Sul diz respeito ao modo como eles receberam as políticas

governamentais voltadas a sua proteção. Os relatórios trazem informações sobre o problema,

as quais, além de serem escassas, são manejadas pela pena do diretor da DTC. No relatório de

1918, por exemplo, Carlos Torres Gonçalves traz notícias de uma visita que fizera ao Toldo

de Inhacorá, situado no município de Palmeira das Missões, e informa: a questão que os 230 Manuela Carneiro da Cunha. Idem, op. cit.

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índios mais reclamavam era a da demarcação de suas terras. Em visita que fez ao Toldo de

Guarita, também em Palmeira, o pedido repetia-se. Torres Gonçalves escreve que ao insistir

com o cacique do Toldo sobre seu interesse em outras coisas “conforme nos haviam pedido

alguns de seus índios, ele acrescentou firme: depois que o Governo demarcar nossas terras,

então eu vou fazer uma reclamação de tudo que nós precisamos”231. (Grifos do autor).

A fala do cacique, manejada por Torres Gonçalves, evidencia alguns pontos

interessantes: 1) aos olhos do diretor da DTC, que estava falando para a sociedade e pensando

ações governamentais, fica patente sua convicção sobre a necessidade da tutela e que ela é

bem-vinda pelos próprios indígenas, pois além de aceitarem, exigiam a demarcação de suas

terras que, como escrevi acima, era apresentada como o “fundamento de toda a proteção”; 2)

para o cacique, que estava falando em nome dos índios, a partir de sua situação local e para

um representante da sociedade envolvente, a ação do governo em demarcar suas terras

também era apresentada como bem-vinda. No entanto, não necessariamente sua leitura era

feita em termos de tutela, visto que ter suas terras demarcadas, numa visão estratégica,

embora significasse reconhecer o poder do Estado, daria novos contornos à relação dos índios

com os ocidentais, principalmente no que diz respeito à disputa pela terra. A demarcação

significava a abertura de um conjunto de preceitos que os indígenas poderiam manipular e, a

partir deles, poderiam acionar o Estado no sentido de exigir o respeito pelas terras

demarcadas. Pensar diferente equivale a concordar com os positivistas que os índios não

passavam de crianças que deviam ser tuteladas. Em outras palavras:

A política indigenista não é mera aplicação de um projeto a uma massa indiferenciada de habitantes da terra. É, como toda política, um processo vivo formado por uma interação entre vários atores, inclusive indígenas, várias situações criadas por esta interação e um constante diálogo de valores culturais. A legislação que define, do mesmo modo, é muito mais do que o mero projeto de dominação mascarado em discussão jurídica, e merece ser olhada com outros olhos, para que dela se possa tirar toda a informação que ela pode nos fornecer232.

Assim, as políticas indigenistas formuladas no Rio Grande do Sul durante a Primeira

República, que tradicionalmente são apresentadas como exemplos da alta preocupação e da

vanguarda dos agentes governamentais, influenciados pelo positivismo, em relação aos povos

fetichistas, deve ser problematizada. Como frisei acima, alguns pesquisadores que se 231 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 311. In.: PINTO, Ildefonso Soares. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 13 de agosto de 1918. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1918, p. 256-320. (AHRS - OP. 50). 232 Beatriz Perrone-Moisés. Índios livres e índios escravos, p. 129. In.: Manuela Carneiro da Cunha (Org.). Idem, op. cit.

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propuseram a pensar a questão indígena no Rio Grande do Sul da Primeira República, do meu

ponto de vista, deram muito valor e, por vezes, exaltaram as políticas indígenas do período e

seus respectivos valores positivistas sem fazer a devida relação do ideal com o possível. Em

outras palavras, a teoria positivista que, em alguns casos, é muito bem explicitada, desde o

ponto de vista histórico até o filosófico, acaba virando uma “camisa de força”, a partir da qual

os autores buscam perceber a sua ação na prática e não fazem um retorno da prática à teoria.

Conseqüentemente ao fim dos textos, o leitor fica com a impressão: e se não fosse o

positivismo e os positivistas o que seria dos índios?

Um exemplo de quanto esse tipo de interpretação pode ser problemática está na forma

como alguns autores tecem críticas aos governos sucessores à Primeira República,

especialmente a administração Getúlio Vargas, tanto quando ele foi governador do estado

como quando Presidente da República. De acordo com a leitura de Pezat, por exemplo, os

governos passaram a não demonstrar interesse pela questão indígena. Em conseqüência, na

década de 1960, um herdeiro do legado getulista, Leonel de Moura Brizola, quando

governador do Rio Grande do Sul, instituiu um projeto de “reforma agrária” que foi realizado

em terras que, no início do século, haviam sido demarcadas como indígenas. Não vejo

problema em criticar tal ação, contudo, penso que algumas perguntas muito importantes que

podem ajudar a compreender o porquê das mudanças ainda não foram feitas. Assim, deve-se

questionar o quanto, quando analisados no longo prazo, todos esses processos se

complementam. Se verdadeiramente há e quais são as rupturas existentes entre aquilo que o

SPI fazia durante os sucessivos governos nacionais que vieram depois da Primeira República

em relação às práticas existentes nos primeiros anos do século XX233, visto que o interesse da

incorporação sempre esteve presente nas diferentes políticas indigenistas formuladas ao longo

da história brasileira?

Torres Gonçalves, em 1921, escrevia que um dos motivos principais das violências

cometidas contra os índios ligava-se ao fato de não lhes ser reputada, pelos ocidentais, a

condição de seres humanos e sim de “simples animais domésticos”. Em conseqüência, era

tarefa do Estado proteger o índio, demarcar-lhe as terras, construir-lhe casas, levá-lo sem

alterações bruscas e a partir de sua própria vontade, pensavam os positivistas, do fetichismo

ao estado positivo. De maneira geral, o objetivo teórico dos positivistas foi perseguido e

233 Para conhecer as mudanças relativas às políticas indígenas e a constituição de um projeto indigenista no Brasil a partir da década de 30 do século XX, consultar: LIMA, Antônio Carlos de Souza. O indigenismo no Brasil: migração e reapropriações de um saber administrativo. In.: L’ESTOLE, Benoit de; NEIBURG, Federico; SIGAUD, Lygia (Orgs.). Antropologia, Impérios e Estados Nacionais. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002, p. 159-186.

- 170 -

fundamentado na idéia de uma ação humanitária para com “nossos irmãos fetichistas”. O

grande papel do Estado, via DTC, foi tentar incorporar os grupos indígenas à dita “sociedade

moderna” e, assim, torná-los “socialmente produtivos” para, a partir de então, poderem ser

respeitados enquanto seres humanos completos e não mais como crianças incapazes de

sustentarem-se a si próprias. Entretanto, essa humanidade dependia do modo como os

indígenas agiam e reagiam às políticas formuladas pelo Estado, isto é, quando as aceitavam

demonstravam estar caminhando rumo à civilização e à civilidade, mas quando resistiam a

elas, os termos usados para nomeá-los eram outros. Geralmente passavam a ser chamados de

bugres. Palavra que no Rio Grande do Sul tem diferentes significados e é utilizada para

qualificar o índio como bravo, bêbado, vadio, escravo, etc.

3.4 DE NACIONAIS A COLONOS REGULARES: OU SOBRE COMO FORMAR OS “CIDADÃOS OPEROSOS

DO AMANHÔ

Diz uma grande verdade de que eu andava suspeitando as escondidas – que somos todos uns Jecas Tatus. Pura verdade. Com mais ou menos letras, mais ou menos roupas, na Presidência da República sob o nome de Wenceslau ou na literatura com a Academia de Letras, no comércio como na indústria, paulistas, mineiros ou cearenses, somos todos uns irredutíveis Jecas. O Brasil é uma Jecatatusaia de oito milhões de quilômetros quadrados.

Monteiro Lobato. Carta a Godofredo Rangel, 1915.

Antes de iniciar a análise propriamente dita, considero conveniente grifar, como fiz na

introdução desta pesquisa, que o emprego que faço da palavra “nacional” e seus derivados, ao

longo deste texto, é decorrência de ela ser utilizada nos documentos que analiso. Dessa forma,

sempre que a utilizo no sentido que as pessoas da época lhe davam e, para ressaltar essa

opção, venho as grafando em itálico. Entretanto, quando relativizar o ponto de vista dos

contemporâneos da Primeira República, especialmente em seus argumentos pejorativos a

respeito da população que eles identificavam com tais termos, os emprego de forma normal,

sem nenhum destaque gráfico.

Ao longo destas linhas, venho utilizando dados colhidos em documentos produzidos

pelo Estado, tais como os constantes nas mensagens dos presidentes enviadas à Assembléia

dos Representantes e nos relatórios da DTC. Também venho servindo-me de processos crime

- 171 -

e de informações coletadas em publicações de época, cuja maioria é composta de livros que,

ao longo da história, desde sua publicação no início do século XX até os dias de hoje,

transformaram-se e foram transformadas em clássicos da literatura brasileira, como os livros

de Euclides da Cunha e Oliveira Vianna, para citar dois.

Meu objetivo ao utilizar tais obras, tanto as já citadas como as que ainda serão

mencionadas, é tentar compreender como as pessoas que viveram o período que estou

estudando o pensavam e, principalmente, construíam interpretações e representações sobre o

Brasil e sobre sua população rural. Em alguns casos, trata-se de autores que foram objeto de

pesquisas particulares – dissertações de mestrado ou teses de doutorado, biografias, etc...

Considero importante registrar que, em termos quantitativos, não discuto totalmente com a

vasta produção, uma vez que meu interesse é utilizar autores que compuseram seus livros no

início do século XX como fontes para pensar o período e não como objetos de estudo

propriamente ditos. Além disso, a leitura do conjunto de publicações a respeito desses autores

e seus textos seria tarefa que, para cada caso, exigiria um estudo à parte e, sem dúvidas,

significaria um desvio muito grande do problema aqui pesquisado. Contudo, à medida do

possível, procuro fazer referências a tais pesquisas.

Até aqui, aspectos importantes foram tematizados e, em linhas gerais, procurei

aprofundar a análise sobre como a região serrana estava socialmente estruturada na época.

Também, apresentei e descrevi como o Estado estava organizado, sua estrutura de Governo e

algumas representações comuns à época a respeito das populações rurais. Naquilo que diz

respeito aos grupos que viviam na região e que de alguma forma atuaram no processo de

povoamento, sublinhei a existência de um grupo que mantinha o domínio político e

econômico. Tal grupo constituía a parcela “mais rica” da população local e era composta

basicamente por grandes proprietários, profissionais liberais, políticos, funcionários públicos

e intelectuais, sendo que, alguns deles, se dedicaram a pensar e administrar o povoamento.

Entretanto, quem atuou de forma direta no processo realizando o trabalho de tornar as terras

de matos cultiváveis e dando a elas um sentido econômico maior do que até então tinham

foram pessoas pobres: um grupo econômica e politicamente subordinado da população,

formado por nacionais, negros, índios e colonos.

Da mesma forma, chamei atenção para a inexistência de uma coesão total garantindo a

unidade dos diferentes grupos, pelo contrário, tanto a parcela “mais rica” como a "mais

pobre” eram marcados por peculiaridades internas que definiam certas fissuras. Entretanto, no

caso dos primeiros, tais diferenças eram mais fáceis de serem superadas devido ao seu

pequeno número de integrantes e, sobretudo, sua unidade era mais visível no quesito relativo

- 172 -

às opiniões que expressavam a respeito do grupo “mais pobre” e no seu interesse de exercer

controle, principalmente político, sobre ele. Assim, se tomarmos o exemplo das divisões

políticas características da época, tanto governistas como os oposicionistas ao governo do

PRR, tinham opinião semelhante a respeito do grupo “mais pobre”. Em outras palavras,

mesmo não concordando sobre o modo como o Estado era administrado, concordavam, por

exemplo, que os nacionais não gostavam de trabalhar, que os índios deviam ser tutelados, que

os negros eram violentos por natureza e que os colonos eram trabalhadores ideais e, em

alguns aspectos, melhores do que todos os outros indivíduos.

Outro ponto interessante que se torna visível ao comparar as fontes é que os

documentos de Estado e as publicações citadas, na maioria das vezes, não fazem eco um do

outro nas palavras utilizadas para identificar os nacionais. Ou melhor, livros como o de

Oliveira Vianna, Euclides da Cunha, Paulo Prado, para ficar nos já abordados, utilizam, para

nomear a população rural brasileira que não era imigrante, termos como tabaréu, caboclo,

caipira, sertanejo, jagunço, etc... Já nos documentos produzidos pelo Estado no Rio Grande

do Sul, os termos aplicados são nacional, nacionais e elemento genuinamente nacional.

Embora a diferença existe um ponto comum marcando o emprego das diversas palavras: o seu

conteúdo busca expressar peculiaridades de um certo modo de vida que é apresentado como

dono de determinadas especificidades, por exemplo, a “mobilidade” e a “falta de aptidão para

o trabalho produtivo”. Outra semelhança é que os termos empregados, quando definidos,

sempre buscam evidenciar qualidades e defeitos, sendo que aquelas podem ser aperfeiçoadas

e estes corrigidos. Cabe registrar que, na maioria dos casos, os pontos negativos desse modo

de vida em particular são os que têm presença mais constante nas fontes.

Em sua generalidade, as críticas direcionadas aos nacionais tomam como alvo

principal a sua mobilidade, visto que viviam sem “moradia certa”. Em processo crime datado

de 1906, José Fidelis Machado (21 anos de idade, solteiro, lavrador, natural deste estado, não

sabe ler nem escrever), Graciano Bello (com 19 para 20 anos de idade, casado, lavrador,

natural deste estado, residente na Colônia Bocaina, estado de São Paulo onde está sua mulher,

não sabe ler nem escrever) e um certo “Lau de tal” são acusados de furtar reses no município

de Santo Ângelo. Já na denúncia o Promotor Público os apresenta da seguinte forma: os dois

primeiros denunciados, “verdadeiros vagabundos, sem paradeiro certo, encontraram na pessoa

do terceiro denunciado Lau de tal um exímio auxiliar que mais adiante tomou a chefia do

grupo”234. Os três acusados, segundo a denúncia, vinham de Campo Novo – distrito de

234 APERGS. Processos Crime 1.340. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1906. Maço 44.

- 173 -

Palmeira – foram até o segundo distrito de Santo Ângelo – “lugar denominado Nhum-Corá” –

onde roubaram algumas reses e as levaram “até seu quilombo e fizeram charqueada”235.

Enquanto faziam o trajeto de volta até seu quilombo, José e Graciano foram capturados e

presos. O delgado de polícia, ao descrever Graciano registra que ele apresentava

o tipo próprio para bandido; pois este é um rapaz de 18 para 20 anos de idade, não tem moradia certa, já percorreu parte da República Argentina e Paraguai, parte do Rio Grande do Sul, Estados do Mato Grosso, Paraná e São Paulo; por onde, creio, só viveu ambulante roubando, pois consta, ou ao menos ele declara que na República Argentina foi preso, aonde lhe tomaram os cavalos e aperos que possuía; e que tinha vindo a este município para dar louvado a sua mãe. Vê-se que ele é habituado a roubar, porque não faz mistério em dizer que o prejuízo que tiveram foi terem vindo fazer os roubos neste município, porque se fosse noutro, não seriam descobertos e estariam passando muito bem (palavras textuais)236. (Grifos no original).

Nota-se que a mobilidade é associada a criminalidade. Contudo, ela é perceptível, pois

Graciano Bello verdadeiramente era um homem cujo paradeiro era um tanto incerto, embora

no interrogatório registre que estava residindo na dita Colônia Bocaina, situada no estado de

São Paulo, onde havia ficado sua mulher ele tinha percorrido parte da Argentina, Paraguai,

Mato Grosso, Paraná, São Paulo e foi preso em Santo Ângelo, onde tinha ido, segundo consta,

para “dar louvado a sua mãe”. O processo crime também demonstra que os habitantes da

região serrana estavam envolvidos numa rede de relações que ultrapassa as fronteiras da

região e envolvia contatos com outros estados da Federação bem como com outros países e,

no caso das nações vizinhas, esses contatos parecem ser constantes, sendo que ultrapassar a

fronteira significava escapar das malhas da lei e, igualmente, ter acesso a alternativas de

sobrevivência peculiares. Neste sentido, em agosto de 1908, em Santo Ângelo, Miguel Pinto

Sobrinho encontrou uma vaca de sua propriedade carneada e foi prestar queixa ao inspetor de

quarteirão Policarpo Kruel. O inspetor, a partir de vestígios deixados no local onde a vaca

havia sido carneada realizou uma busca, cuja base foi a informação de que um pedaço de pala

encontrado no local pertencia “ao mulato de nome Mateus Antunes dos Santos”237 (com 28

anos de idade, solteiro, natural do terceiro distrito deste termo, jornaleiro).

Munido desta informação, Kruel foi até a casa do suspeito onde encontrou “um pedaço

de carne e um caracu”, diante do que Mateus foi preso e levado “a presença do subintendente

e lá chegando confessou o crime com todos os pormenores dizendo mais que para um gaúcho

235 Idem. 236 Idem. 237 APERGS. Processos Crime 1.334. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1904. Maço 44.

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da Fronteira, como ele é, não lhe faltava carne em parte alguma”238 (Grifo meu). No

interrogatório, Mateus afirma que furtou a rês porque “estava com fome, não tinha dinheiro e

nem achava trabalho para ganhar e que por isso a fome o obrigou a carnear uma vaca de seu

vizinho sem lhe dar parte”239. Mateus é levado a julgamento e condenado a dois anos e 15

dias de prisão mais uma multa de 12,5% do valor da rês furtada e as custas do processo.

Entretanto, devido a sua pobreza, a multa e o valor das custas são convertidas em um dia e 22

horas de prisão, os quais deveriam ser somadas ao tempo de condenação.

No processo descrito anteriormente, quando José Fidelis e Graciano Bello, em

interrogatório, são perguntados sobre os motivos que os levaram a furtar a resposta é a mesma

que a dada pelo “mulato” Mateus: a “prova que tem é que furtaram porque estavam com

fome”, responde Graciano, enquanto que José diz que “roubou porque tinha necessidade”240.

Neste caso, José foi condenado a dois anos e 15 dias de prisão, mais multa de 12,5% do valor

do objeto furtado e Graciano a sete meses de prisão com multa no valor de 5% , sendo ambos

condenados a pagarem a metade das custas do processo. O terceiro envolvido, Lau de tal não

foi a julgamento por encontrar-se foragido. Consta também que a multa imposta a José Fidelis

foi convertida em mais quinze dias de prisão com trabalhos. Os dois processos permitem

verificar que na base da mobilidade estava a pobreza vivida por seus praticantes e que ela,

desse modo, era uma alternativa efetivamente posta em prática pelas pessoas que como

Mateus “não tinha dinheiro e nem achava trabalho para ganhar”, na perspectiva de manterem

sua subsistência.

Como venho escrevendo, nos documentos produzidos pelos funcionários do Estado,

principalmente os elaborados pela mão do diretor da DTC, o termo utilizado para identificar

pessoas como José Fidelis, Graciano Bello, Lau de tal e Mateus dos Santos era a palavra

nacional. A opção pelo termo dá-se, muito provavelmente, pela influência do positivismo e a

idéia de nação e nacionalismo que caracterizam a leitura dessa teoria no Brasil. Michael Hall,

em artigo sobre a Sociedade central de imigração, sublinha que os positivistas brasileiros em

geral “eram não somente altamente nacionalistas e apoiavam vigorosamente a

industrialização, como também se opunham explicita e ardentemente à imigração, à pequena

propriedade e ao racismo”241. No caso da imigração, no Rio Grande do Sul o que se dava era

diverso, pois grande foi a entrada de imigrantes no estado durante o período de governo dos

238 Idem. 239 Idem. 240 Processo Crime n.1.340, Santo Ângelo. Idem, op. cit . 241 HALL, Michael M. Reformadores de classe média no Império brasileiro: a sociedade central de imigração, p. 170. Revista de História, v. 105, 1976, p. 147-171.

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positivistas e o objetivo inicial era exatamente torná-los pequenos proprietários242. Todavia,

tanto nos relatórios da DTC como nas mensagens dos presidentes, é possível perceber que a

imigração era objeto de divergências e que foi realizada muito em função dos benefícios

econômicos que advinham dela, da necessidade de povoar e tornar “produtivos” espaços

considerados com potencial pouco aproveitado e da pressão exercida pelo Governo Federal,

especialmente a partir da criação do SPSN.

Assim, o emprego de palavras como nacionais e elemento genuinamente nacional

motiva, entre outras coisas, definir a condição pátria das pessoas para quem elas eram

destinadas e objetivava contrapor tais indivíduos a um estrangeiro – o imigrante – e,

principalmente, justificar as políticas governamentais desenvolvidas e voltadas à perspectiva

de incorporar, tanto imigrantes como os próprios nacionais. Em outras palavras, para aqueles

que diziam que não deveriam existir políticas públicas voltadas aos nacionais devido ao fato

de eles serem vadios por natureza, o governo – ou pelo menos alguns de seus funcionários –

argumentava que, por portarem valores relativos à pátria, eles mais do que ninguém deveriam

receber atenção e, assim, evitar o surgimento de possíveis movimentos de autonomia nacional

por parte dos grupos imigrantes. Daí o fato de uma das principais preocupações do governo

estadual referente aos imigrantes era apurar a sua assimilação e a maneira utilizada para isso

era formar colônias mistas e buscar, à medida do possível, incentivar os contatos entre os

diferentes grupos.

No capítulo anterior, abordei questões relativas à constituição de representações sobre

a população rural brasileira e o sentido nominativo que elas tinham, tanto na época como hoje

em dia. Ainda sublinhei, baseado nas observações de Pierre Bordieu, que a ação social de

nominar tem o sentido específico de exigir dos nominados comportamentos de acordo com o

conteúdo que o discurso nominativo carrega. De acordo com Márcia Naxara, as

representações sobre os nacionais foram apropriadas socialmente e, ao longo do tempo,

assumiram um caráter de abrangência tal que tornaram-se símbolos de identidade para os

brasileiros. Símbolos, cuja força social tornou-se tão robusta que nem mesmo os autores dos

mesmos, como é o caso de Monteiro Lobato, quando tentaram, conseguiram revertê-los243.

Naxara também destaca o quanto no processo de constituição desses símbolos e as

representações que lhes são comuns, entraram elementos vinculados ao modo como as

pessoas daquela época interpretavam o desenvolvimento da sociedade brasileira. Por

242 Ver a discussão sobre os planos de futuro de Carlos Torres Gonçalves em relação à pequena propriedade no próximo capítulo. 243 Nesse caso, a autora refere-se à criação do Zé Brasil por Monteiro Lobato para contrapor ao Jeca Tatu, contudo, socialmente a imagem do Jeca prevaleceu. Cf.: Márcia Regina Capelari Naxara. Idem, op. cit., p. 146.

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conseguinte, a idéia de civilização, de progresso, de raça e do trabalho como único meio a

partir do qual conseguir-se-ia chegar à civilização foram fundamentais no processo de

constituição desses símbolos.

Na época, escreve Naxara, era comum o Brasil ser interpretado, pelas suas elites ou

por estrangeiros que aqui estiveram, “como um lugar onde o potencial de trabalho e o

conseqüente aproveitamento dos recursos naturais mantinham-se à margem do processo

produtivo”244, fato que, para tais pessoas entravava o desenvolvimento material da sociedade

e dificultava a marcha para o progresso e a civilização. Conseqüentemente, a responsabilidade

pelo mau aproveitamento dos recursos oferecidos pelo país era atribuída aos nacionais que,

como é comum encontrar nos documentos da época, “não estavam aptos para o trabalho”,

sobretudo, para o trabalho do qual deveria advir as luzes da civilização. A solução encontrada

para dar cabo deste “problema” foi incentivar a entrada de imigrantes europeus no Brasil, os

quais, além de estarem disponíveis na Europa, “ensinariam” os nacionais a trabalhar e, para

alguns defensores da imigração, ajudariam no processo de branqueamento do país.

Tal conjunto de situações, por um lado, resultou no fortalecimento e condensação das

representações preconceituosas a respeito dos nacionais e, por outro, no elogio do imigrante.

O imigrante passou a ser tratado como o trabalhador ideal, sóbrio e morigerado, “elemento

capaz de, por si só, promover a recuperação da decadente raça brasileira nos mais diversos

aspectos: sangue novo, raça superior (branca), civilizado, disciplinado, trabalhador, poupador,

ambicioso...”245. Os nacionais, por sua vez, eram apresentados como vadios, racialmente

inferiores, mestiços, indisciplinados e toda uma série inumerável de adjetivos. Em outros

termos, “foi da depreciação do brasileiro que emergiu a valorização do imigrante”246.

Entretanto, no caso da região serrana, nem todos os imigrantes enquadraram-se perfeitamente

nos ideais de seus defensores e, quando isso acontecia, o discurso sobre eles e a imigração

deixava de ser tão apologético. Ademais, no processo de povoamento o contato entre

imigrantes e nacionais também foi marcado pelo conflito e os processos crimes trazem

exemplos paradigmáticos da constatação.

Em 28 de Janeiro de 1901, por exemplo, na Comarca de Cruz Alta, é movido processo

contra João Signori (39 anos de idade, casado, natural da Itália, residente no município,

agricultor). João foi acusado de matar Claudino José de Mello em uma “casa de negócio” de

Cruz Alta. No momento do crime, estavam reunidos na venda cerca de 10 pessoas, dentre elas

244 Idem, p. 48. 245 Idem, p. 63. 246 Idem, ibidem.

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o réu, a vítima e Mário Virissimo da Silva, o qual conta que em um dado momento ouviu João

dizer a Claudino: “‘já é a segunda vez que te peço que não me chame de gringo, pois isto quer

dizer ladrão’. Ao que Claudino respondeu que no seu entender ‘gringo queria dizer,

estrangeiro’ e por esta razão começaram a altercar”247. Mário, o proprietário da venda, conta

que os dois brigões estavam embriagados, mas João aparentava estar mais bêbedo. Para evitar

o conflito no interior da casa, Mário pede que os dois se retirem, sendo que a briga continua e

o resultado foi João matar Claudino. O caso é levado a julgamento em 08 de agosto de 1901 e

Signore foi condenado a 6 anos de prisão. O ocorrido demonstra, por um lado, que as relações

entre imigrantes e nacionais eram marcadas pelo conflito e que, como ficou claro em processo

discutido anteriormente, se o termo brasileiro na boca do imigrante poderia ter conteúdo

ofensivo, igualmente existiam nominações ofensivas, usadas pelos nacionais e direcionadas

aos imigrantes. Além disso, o desencontro do conteúdo expresso pela palavra gringo também

indica a fluidez destas nominações, uma vez que para Signore ela era sinônimo de ladrão e,

para Claudino, de estrangeiro.

A leitura que Signore faz do uso da palavra gringo encontra ecos em outras situações.

Em 1919 aconteceu um caso em Santo Ângelo que demonstra o quanto o termo poderia ser

ofensivo. Segundo a denúncia, no dia 15 de agosto, Antônio Ribas de Lima (37 anos, casado,

natural deste estado, agricultor) foi ao “bolicho” de propriedade de José Darli a fim de

comprar uma garrafa de vinho. Ao pedir pelo preço, Darli responde que a garrafa custava R$

800 réis, ao que Antônio disse que “era muito caro e que em qualquer parte se comprava por

R$ 400 réis”248. Darli respondeu que não era possível vender por esse preço e que daria a

garrafa de vinho para Antônio, o qual “insultando-se com o presente que lhe era oferecido,

disse que não precisava de esmolas e passou a chamar Darli de gringo pomadista e a dizer que

não tinha medo e passaria relho em todos ali”249. Essa ameaça resultou na intervenção de

outras pessoas que estavam presentes no bolicho, pelo que muitos saíram feridos, fato que dá

ensejo ao processo crime. O que exatamente quer dizer a expressão “pomadista” naquela

determinada situação é difícil decifrar, entretanto, o contexto indica que a utilização do termo

gringo tem sentido ofensivo. Outro ponto que deve ser destacado é que esta palavra é

geralmente utilizada para fazer referência a indivíduos de origem italiana, sendo que, muitas

vezes o adjetivo “alemão” também poderia ter sentido pejorativo.

247 APERGS. Processos Crime 3.896. Cartório Civil Crime. Município de Cruz Alta, 1910. Maço 125. 248 APERGS. Processos Crime 1.479. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1919. Maço 50. 249 Idem.

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Nesta perspectiva, em março de 1919, na casa de negócio de Antônio Martinelli

situada em Santo Ângelo ocorre conflito entre Francisco Manuel da Costa e Ziguemundo

Christo (21 anos de idade, solteiro, natural deste estado, residente em Santa Rosa, carroceiro).

De acordo com o testemunho de Virgílio José dos Santos, Francisco estava na casa de negócio

quando chega Ziguemundo montado em um cavalo, motivo pelo qual Francisco dirige-se a

Christo nos seguintes termos: “alemão não anda em cavalo gordo, você comprou este cavalo?

Sendo respondido pelo alemão que sim, que tinha comprado, Francisco retrucou dizendo que

alemão não podia andar em cavalo gordo”250. Ziguemundo sentindo-se ofendido dá uma

chicotada em Francisco e fere-o com uma faca, pelo que ele “retirou-se e disse: tu me paga

alemão, em seguida tomou um copo de cachaça montou a cavalo e saiu do local”251.

Ainda conforme Virgilio, existia uma rixa antiga entre Ziguemundo e Francisco, cuja

origem era o cavalo montado pelo primeiro, pois o alemão o havia recebido como pagamento

de uma dívida que um sobrinho de Francisco tinha com ele. Virgilio também conta que

conhecia os dois brigões já fazia um ano e que “Francisco era dado ao vício da embriaguez e

pouco trabalhador e que o denunciado [Zigmundo] é muito quieto, não bebe e é

trabalhador”252. Este é mais um exemplo de que as relações entre nacionais e imigrantes não

era pacífica e que, ambos tinham maneiras e palavras próprias para se ofenderem, adjetivos

que por serem bastante fluídos dependiam muito da situação na qual eram usados. Neste caso,

também é perceptível a associação entre imigrante e trabalho, bem como entre nacional e

vadiagem, a qual pode ter um fundo de veracidade. Entretanto, não deve ser generalizada de

modo a se afirmar que todos os imigrantes e seus descendentes eram trabalhadores e, em

contrapartida, de que todos os nacionais eram pouco aptos para o trabalho. Na verdade o que

está no fundo da questão é que se trata de concepções diferenciadas dos significados do

trabalho e de quais são seus objetivos.

Diante de tudo, uma pergunta vem à tona: quem exatamente eram os nacionais? Um

primeiro ponto que deve ser frisado é que essa categoria, enquanto símbolo nominativo e

identitário é, como venho sublinhando, extremamente fluída e variava de acordo com a

situação na qual ela é empregada. No que se refere à presença dessa categoria nos documentos

produzidos pelos aparelhos de Estado, o relatório da DTC do ano de 1909 traz o relato de uma

situação que demonstra um dos principais aspectos envolvidos no processo de povoamento e

250 APERGS. Processos Crime 1.498. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1919. Maço 52. 251 Idem. 252 Idem.

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que, além disso, ajuda a compreender os significados e conteúdos comuns ao emprego de

determinadas nominações.

A situação descrita pelo diretor da DTC acontece na colônia Ijuí e refere-se a

dificuldade no estabelecimento de imigrantes. Naquela data, havia cerca de 30 lotes vagos na

colônia e os mesmos eram “recusados pelos imigrantes, uns por não terem água, outros por

não terem madeiras, sendo terras que durante muitos anos já foram cultivadas por

nacionais”253. A situação evidencia que, ao contrário do que era voz corrente na época, a

região era habitada há bastante tempo, embora não densamente. Da mesma forma, mostra o

quanto a idéia dos nacionais, comparados aos imigrantes, terem “reduzidos hábitos de

trabalho” mais fundamentava uma opinião do que uma prática, já que as terras em questão

eram cultivadas antes da chegada dos colonos. A contradição fica mais evidente à medida que

as representações formuladas vão sendo contrapostas à atuação dos nacionais. No entanto,

isso não impedia que elas tivessem força social e fossem ponto de referência a partir do qual o

próprio grupo pensava e formulava sua identidade, bem como seu lugar dentro das mudanças

que estavam acontecendo.

O fato de os nacionais “não possuírem hábitos sistemáticos de trabalho”, segundo

Carlos Torres Gonçalves, devia-se à circunstância de terem nascido em um meio social onde

“as necessidades de existência individual são muito limitadas”254. Conseqüentemente

desconheciam o conforto, facilmente poderiam garantir sua existência devido às condições

oferecidas pelo meio onde habitavam, o qual por não conhecer o “industrialismo compressor

das classes menos protegidas”, livrava-os do “aguilhão da cobiça”255. Todas essas

características eram tomadas como inconvenientes que cumpria modificar, pois eram

responsáveis por tornar o trabalhador nacional inferior em relação ao estrangeiro. Contudo,

aos olhos de Torres Gonçalves, esta era uma inferioridade prática, cuja importância,

comparada à superioridade moral dos nacionais, que se expressava principalmente no seu

amor a pátria, era menor. Dessa forma, ponderava o diretor da DTC, em 1910: “não é justo

que os favores concedidos aos colonos estrangeiros não sejam estendidos, e por mais forte

razão, aos nacionais”256.

253 GONÇALVES. Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 102. In.: GODOY, Candido José de. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo secretário de Estado, Candido José de Godoy, em 27 de agosto de 1909. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1909, p. 77-114. (AHRS - OP. 20) 254 Carlos Torres Gonçalves, 1910. Idem, op. cit., p. 106. 255 Idem, ibidem. 256 Idem.

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A noção que a “falta de hábito para o trabalho”, característica dos nacionais advinha

de seu isolamento não é peculiaridade de Torres Gonçalves, mas expressão de um ponto de

vista que tinha adeptos na época. Um exemplo desse tipo de interpretação pode ser localizado

no já discutido Os Sertões, de Euclides da Cunha, que é, sem dúvidas, um dos principais

pontos de referência a partir do qual a temática do isolamento e o seu par relacional – o atraso

– foram, ao longo da história, discutidos no Brasil257. Outra publicação da época que

apresenta a suposta preguiça comum dos nacionais como resultado de seu isolamento é o

livro América Latina: males de origem258, datado de 1905 e de autoria de Manuel Bonfim.

Este pensador, um crítico da utilização de teorias raciais para interpretar o Brasil,

argumentava que a preguiça característica dos nacionais era resultado da sua falta de convívio

com a civilização e da escassez de instrução a que estavam submetidos259; não tinha ligação,

portanto, com a “in-pureza” de raça dos mesmos, como tradicionalmente era argumentado.

Nessa perspectiva, escrevia Bonfim, “um cabra do sertão Norte” do Brasil que vivia fora da

“civilização”, que não precisava grandes recursos para sobreviver e, dessa forma, não sentia

necessidade de trabalhar além do necessário para subsistência, não tinha por que: “esbofar-se,

da manhã à noite tangendo uma enxada de dois quilos, num massapé rebelde, se ele pode

viver sem isto, se não saberia, sequer, o que fazer do preço desse trabalho?”260. De acordo

com a interpretação do autor, a suposta inferioridade racial de negros, índios e mestiços, tão

defendida em toda América Latina, tinha um único sentido: justificar a dominação

historicamente exercida sobre tais grupos261.

257 Sobre esta constatação, Maria Isaura Pereira de Queiroz escreve: “Apesar de Euclides da Cunha reconhecer (...), ainda assim predominou sua sensibilidade diante da paisagem, sobre o raciocínio diante dos fatos; criou então a lenda do isolamento das populações caboclas, que perdura até hoje como explicação aceita sem maiores críticas por parte dos estudiosos, ou melhor, passando a constituir o primeiro dado que se constata, quando se empreende a análise de um grupo rural tradicional. E ninguém procurou definir o que significa ‘distância’ ou ‘isolamento’ em termos de vida cabocla real ou da maneira de pensar dos indivíduos que a essa vida estão ligados”. Cf.: QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O campesinato brasileiro: ensaios sobre civilização e grupos rústicos no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1973, p. 09. 258 BONFIM, Manuel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993. 259 Outro exemplo desse tipo de interpretação é fornecido por Alberto Torres para quem os problemas característicos da população rural brasileira eram resultado do seu isolamento, da sua falta de instrução, da ausência de políticas públicas voltadas a esta população. Cf.: TORRES, Alberto. O problema nacional brasileiro: introdução a um programa de organização nacional. São Paulo: Editora Nacional; Brasília: Editora UNB, 1982. 260 Manuel Bonfim. Idem, op. cit., p. 265. 261 Sobre o modo como Manuel Bonfim descrevia os nacionais, Márcia Naxara escreve: “A representação de Manuel Bonfim confirma a do caboclo indolente, incapaz de ambição. Uma diferença, no entanto: ao refutar e desvendar os mecanismos de dominação presentes nas teorias raciais e analisar as causas de atraso pela herança cultural; ainda que ele utilize metáforas explicativas semelhantes, tomadas ao cientificismo predominante, inclusive na sua formação, retira a questão do âmbito da natureza e a traz para o âmbito da sociedade e da política, num processo de biologização do social, que conserva, no entanto, uma tensão permanente entre natureza e cultura. A formação da nação civilizada, já que este é o caminho inevitável da evolução dos povos, poderia ser alcançada pela educação social”. Cf.: Márcia Regina Capelari Naxara. Idem, op. cit., p. 101.

- 181 -

O interesse de estender os favores concedidos para os estrangeiros aos nacionais,

pontuado por Torres Gonçalves tinha por objetivo aproximar os dois grupos e, a partir de tal

movimento, dar maior velocidade ao processo de assimilação dos imigrantes. Da mesma

forma, pelo contato, pelas relações inerentes à propriedade do solo e pelo sentimento de

proteção recebida, argumentava o diretor da DTC, os nacionais passariam a modificar suas

“disposições cerebrais” e conseqüentemente adquiririam hábitos de trabalho e se tornariam

“socialmente úteis”. Em outras palavras, tornar-se-iam “civilizados”. Por conseguinte, a

presença no Rio Grande do Sul de nacionais vivendo em seu modo habitual de vida, bem

como de imigrantes não assimilados, eram desinteressantes para o governo. No caso

específico dos nacionais, o objetivo principal era mudar seu modo de vida. Para tanto, cabia

ao Estado “ir ao encontro dele, estimulá-lo pela proteção, orientá-lo e guiá-lo na

sistematização de sua atividade concorrendo para transformá-lo no cidadão operoso do

amanhã” 262. O modo de vida particular do nacional, a seu turno, era caracterizado pela

mobilidade em conseqüência da qual ele vagava “hoje aqui, amanhã ali, seja em terras do

Estado, seja em terras particulares agravando cada vez mais os seus defeitos”263.

Portanto, os nacionais eram definidos como pessoas portadoras de defeitos e deveriam

ser alvo de atenção especial por parte do Estado a fim de que se tornassem “aptas para o

trabalho produtivo”. A justificativa para a proteção, na maioria das vezes, é apresentada como

um “dever de fraternidade”, uma “atitude altamente patriótica”, “republicana” e, é nesses

termos que Torres Gonçalves registra a fundação SPILTN no relatório da DTC de 1910. No

mesmo ano, na mensagem enviada por Carlos Barbosa Gonçalves à Assembléia dos

Representantes, o Presidente do Estado sugere modificar o regulamento de terras e

colonização para conferir aos nacionais os mesmos auxílios destinados aos colonos264.

Ponderação comemorada por Torres Gonçalves no relatório da DTC de 1911. O ano de 1910,

cabe registrar, representa um marco na estruturação das políticas estaduais referentes aos

indígenas e aos nacionais e também é o momento em que os esforços para transformar o

elemento genuinamente nacional em morigerado e útil ficam mais visíveis.

Assim, em 26 de outubro de 1911, era instalada em Porto Alegre a sede da Inspetoria

do SPILTN e, uma das primeiras medidas tomadas foi regularizar a situação das terras

indígenas. Como havia nacionais estabelecidos dentro de terras demarcadas para os índios, o

262 Carlos Torres Gonçalves, 1910. Idem op. cit., p. 107. 263 Idem, ibidem. 264 GONÇALVES, Carlos Barbosa. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul pelo Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, na 2° sessão ordinária da 6° legislatura, em 20 de setembro de 1910. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1910, p. 30.

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governo, por meio da ação da DTC, passa a agir para afastá-los das áreas e conceder-lhes

lotes em outros territórios, em condições apresentadas como “melhores” e objetivando fazê-

los sentirem “a necessidade do Estado de respeitar a situação dos índios. Na maioria dos

casos, eles têm recebido a solução conciliadora dos deveres do Estado tanto para com os

índios como para com eles próprios”265. Muito provavelmente esse tenha sido o primeiro

contato dos nacionais que viviam em terras indígenas estabeleceram com o Estado e seus

aparelhos e, é importante registrar, a primeira aproximação acontece por meio da intervenção

do Estado em favor dos indígenas e é motivada pela propriedade da terra.

Como já referi no primeiro tópico deste capítulo, no relatório da DTC de 1914, consta

que o Rio Grande do Sul possuía dois grandes elementos colonizadores: o genuinamente

nacional e o de origem estrangeira. O de origem estrangeira era em maior número

contabilizava em torno de 1/3 da população total do Estado, ou seja, mais ou menos umas 580

mil pessoas – na maioria italianos e alemães – ocupando uma área de 2.800.000 hectares

(cerca de 1/9 da superfície total do território Rio-Grandense). Quanto ao elemento

genuinamente nacional, “como capacidade industrial é, sem dúvida, inferior ao anterior, o que

nos dias materialistas que correm tem levado freqüentemente a menosprezá-lo”266. A

inferioridade dos nacionais, segundo Torres Gonçalves, circunscrevia-se à esfera da atividade,

“justamente o menos importante da nossa natureza”. Não era responsabilidade dos mesmos,

mas do atraso industrial característico das regiões onde eles viviam, sendo um “fenômeno

antes social que individual”. Conseqüentemente a solução era elevar o nível industrial da

região para que tais pessoas “levantem rapidamente o nível das suas aptidões práticas” e, para

cumprir a meta cabia ao governo, via DTC, promover seu “progresso e fixação ao solo” por

todos os meios possíveis267. No geral, estas linhas resumem o ponto de vista dos funcionários

da DTC a respeito dos nacionais e é a partir dele que foram elaborados projetos relativos a sua

almejada fixação ao solo e transformação em “cidadãos operosos do amanhã”.

A ação do Estado devia, segundo Torres Gonçalves, “limitar-se a procurar auxiliar a

tendência humana espontânea ao aperfeiçoamento”268. Assim, uma medida sugerida era

oferecer aos nacionais lotes que continham ervateiras, pois eles “conhecem as condições de

vida da erva-mate, cujos pés cuidam com verdadeiro carinho quando lhes pertencem, já pelo

próprio uso muito apreciado que dela fazem, já pelo seu valor comercial, que não ignoram”269.

265 Carlos Torres Gonçalves, 1911. Idem, op. cit., p. 156. 266 Carlos Torres Gonçalves, 1914. Idem, op. cit., p. 107-110. 267 Idem, ibidem. 268 Idem. 269 Idem.

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Ao sugerir a medida, como no caso do interesse em aproximar nacionais e estrangeiros, o

objetivo era, escrevia o diretor da DTC, resolver duas questões: a da fixação dos nacionais e

também a do desenvolvimento da indústria de erva-mate que, como sublinhei no primeiro

capítulo, era um dos principais produtos geradores de divisas para a região estudada.

Outra ação proposta por Torres Gonçalves para facilitar a transformação dos nacionais

sem atrapalhar a natural tendência humana para o aperfeiçoamento era aproveitá-los no

serviço de conservação e exploração florestal devido a “notória aptidão para percorrer as

matas e derrubar árvores”270. Nesse caso, como no da erva-mate, havia interesses de ordem

econômica definindo as ponderações de Torres Gonçalves, uma vez que a exploração de

madeira era uma das atividades bastante lucrativas na época, e transformar os nacionais em

guardas florestais ajudaria ao Estado, sem realizar grandes despesas, a exercer controle sobre

a exploração florestal. Além disso, seria possível garantir que os tributos que deveriam ser

destinados ao Estado teriam rumo mais certo. Inclusive indígenas foram utilizados nesse

serviço e os argumentos para justificar esta ação eram os mesmos: a aptidão natural destas

pessoas para percorrer as matas e, principalmente, o fato de que assim “eles se

desenvolveriam”271.

Em 1915, foi fundada a Colônia Santa Rosa, na qual alguns dos projetos até o

momento descritos passam a serem colocados em prática. A região onde a colônia foi

estabelecida inicialmente era habitada por cerca de 3.000 nacionais que passam a ter seus

lotes demarcados e, para evitar que eles os vendessem, os títulos de propriedade que recebiam

eram inalienáveis por 5 anos. Neste sentido, para os nacionais que quisessem adquirir lotes

em Santa Rosa, o pagamento dos terrenos seria facilitado pela prestação de serviços na

construção de estradas e, por fim, seriam fornecidos “modestos projetos de habitação, com o

intuito de induzi-los a procurarem um modesto conforto, o que constitui um dos maiores

estimulantes para atividade”272 (ver figura 10, abaixo). Tais medidas, por sua vez, teriam

maior eficácia, segundo Torres Gonçalves, se o Estado realizasse maior esforço no

desenvolvimento da viação interna pela qual os contatos entre as diferentes populações seria

mais intenso o que, a seus olhos, facilitaria o processo de assimilação dos estrangeiros e de

aperfeiçoamento dos nacionais.

270 Idem. 271 Uma abordagem mais detalhada sobre a exploração da madeira e os grupos que se envolveram nela na região encontra-se em TEDESCO, João Carlos; SANDER, Roberto. Madeireiros, comerciantes e granjeiros: lógicas e contradições no processo de desenvolvimento sócio-econômico de Passo Fundo (1900-1960). Passo Fundo: UPF, 2005; RÜCKERT, Aldomar. A trajetória da terra: ocupação e colonização do centro-norte do Rio Grande do Sul, 1827-1931. Passo Fundo: Editora UPF, 1997 e Joel João Carini. Idem, op. cit. 272 Carlos Torres Gonçalves, 1915. Idem, op. cit., p. 104.

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Em 1917, ou seja, sete anos depois da criação da SPILTN, e de terem sido tomadas

medidas mais concretas relativas ao “melhoramento” dos nacionais, Carlos Torres Gonçalves

comemora os primeiros resultados das ações executadas. O diretor da DTC registra que “a

transformação de antigos ocupantes de terras em colonos regulares tem sido com habilidade

feita pelas Comissões”273. De acordo com Torres Gonçalves, devido às políticas adotadas pelo

Estado, um “grande número de indivíduos que eram quase nômades” encontravam-se

“fixados em suas propriedades dando impulso ao movimento agrícola do Estado”274. No caso,

fica evidente que tipo de pessoa deveria resultar do processo de “aperfeiçoamento” dos

nacionais: eles deveriam se tornar “colonos regulares” e com isso impulsionar o movimento

agrícola e, sobretudo, adotar novas formas, consideradas ideais, de se relacionar com o espaço

e de praticar agricultura.

FIGURA 10:

MODELO DE HABITAÇÃO PARA NACIONAIS

FONTE: GONÇALVES. Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização 1919.

Em linhas gerais, como é possível perceber, existia uma concordância na época de que

os nacionais eram preguiçosos. Outro ponto em comum partilhado refere-se à utilização de

pares relacionais para descrever tais indivíduos, ou seja, sempre que são mencionados são

apresentados como portadores de características positivas e negativas. Em outros termos, são

vadios, mas em comparação com os trabalhadores – os imigrantes – são portadores dos

273 Carlos Torres Gonçalves, 1917. Idem, op. cit., p. XVI. 274 Idem, ibidem.

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valores comuns à Pátria. São isolados, no entanto ninguém melhor que eles sabe sobreviver

no sertão e, devido a mobilidade e à capacidade de se adaptarem a diferentes situações e

climas, são os verdadeiros responsáveis pela expansão do território nacional.

Acerca das idéias depreciativas sobre os nacionais e seu modo de vida, o livro Urupês,

de Monteiro Lobato, publicado na segunda década do século XX, marca a edição de um texto

que, segundo Márcia Naxara, condensou “todo um conjunto de representações que fazia parte

de um imaginário que vinha sendo formulado desde épocas anteriores sobre o brasileiro”275. O

texto de Lobato juntou e materializou idéias dispersas permitindo, dessa forma, a elaboração

de “uma imagem estereotipada, que catalisou, naquele momento, opiniões que antes não

encontravam endereço certo”276. Nesta obra, e a partir da condensação das representações

depreciativas existentes sobre os nacionais, consolida-se a figura do caboclo277 que Lobato

chama de Jeca Tatu, cuja aceitação social foi tão ampla que acabou, de acordo com Naxara,

sendo identificado como síntese de brasilidade. Nas palavras de Lobato, o caboclo é uma

espécie de homem baldio, semi-nômade que não se adapta à civilização,

mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças. À medida que o progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a valorização da propriedade, vai ele refugindo em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, a picapau e o isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo e sorna. Encoscorado numa rotina de pedra, recua para não adaptar-se278.

É nesses termos que, ao longo da história, os nacionais vêm sendo apresentados e foi a

partir da crença e na generalização social destas representações, tanto por parte de quem as

formulava como daqueles para quem elas eram destinadas, que a idéia dos nacionais e do

povo brasileiro como vadio e sem ambição “à custa de tanto ser repetida, tornou-se quase que

uma verdade absoluta e parte integrante da cultura brasileira, disseminada em todas as

275 Márcia Regina Capelari Naxara. Idem, op. cit., p. 24. 276 Idem, ibidem. 277 Quanto a esta palavra, Câmara Cascudo destaca, em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, que até fins do século XVIII ela era sinônimo oficial de indígena e, devido ao seu conteúdo pejorativo, pelo Alvará de 4 de Abril de 1755, El Rei D. José de Portugal, “mandava expulsar das vilas os que chamassem aos filhos indígenas de caboclos”. Nos dias atuais, a palavra serve para indicar “o mestiço e mesmo o popular, um caboclo da terra. Discute-se ainda a origem do vocábulo, indígena ou africano”. Cascudo também sublinha dois aspectos importantes relativos ao termo: 1) que, no folclore brasileiro, o termo designa “o tipo imbecil, crédulo, perdendo todas as apostas e sendo incapaz de uma resposta feliz ou de um ato louvável” e, 2) que “essa literatura humilhante é toda de origem branca, destinada a justificar a subalternidade do caboclo e o tratamento humilhante que lhe davam”. Cf.: CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1962, p. 156-157. Para conhecer o Alvará na íntegra, verificar: SILVA, Antônio Delgado da. Coleção da Legislação Portuguesa desde a última compilação das ordenações, redigida pelo Desembargador Antônio Delgado da Silva. Legislação de 1750 a 1762. Lisboa: Na Tipografia Maigrense, 1830, p. 367-368. 278 LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Editora Brasiliense, 1957, p. 271-272.

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camadas sociais, e raramente contradita”279. Por fim, como destaquei anteriormente, o

emprego que um grupo faz de uma representação para identificar a um “outro” relacional tem

por objetivo exigir que as pessoas que compõem tal grupo ajam a partir dessa representação.

No caso dos nacionais, o interesse era mostrar sua inaptidão para o trabalho, justificar a série

de benefícios destinados aos imigrantes e a partir da imposição exigir alterações no seu

comportamento. Dessa forma, a série de medidas governamentais e a ação da parcela “mais

rica” da população local voltadas a gerenciar o povoamento da região serrana, durante a

Primeira República, tinham por objetivo transformar os nacionais em pessoas fixadas a terra e

economicamente produtivas, sendo um dos seus principais interesses definir as questões

relativas a propriedade da terra, visto que com a colonização as terras da região ganham um

expressivo valor de mercado. Quando tais objetivos eram alcançados, os nacionais deixavam

de ser nacionais e provavam a tese defendida por Torres Gonçalves que eles eram tão aptos

ao trabalho agrícola produtivo quanto os colonos. Entretanto, quando não cumpriam com as

expectativas continuavam nacionais, ou seja, semi-nômades, bandidos, vadios, incivilizados,

etc... Ponto de vista este que, como já sublinhei, por ser dominante e generalizado, tornou-se

símbolo de identificação.

Dessa maneira, compreender tal representação e seus conteúdos significa, entre outras

coisas, conhecer o modo como aconteceu a inserção dos nacionais no processo de

povoamento da região. Um exemplo disto é o modo como a questão fundiária foi legislada no

período, uma vez que as políticas de Estado referentes ao assunto foram pensadas e aplicadas

a partir do pressuposto de que os nacionais não sabiam dar o devido valor à terra e fazê-la

produzir em toda sua potencialidade. Em contrapartida, também justificou o favorecimento

recebido pelos imigrantes, considerados trabalhadores morigerados e capazes de proporcionar

o desenvolvimento agrícola almejado para o Rio Grande do Sul, mas este é um tema que

desenvolverei no capítulo seguinte.

279 Márcia Regina Capelari Naxara. Idem, op. cit., p. 147.

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4 GOVERNAR É PROMOVER A FELICIDADE DA PÁTRIA: INTRUSÃO, COLONIZAÇÃO E AS POLÍTICAS DE POVOAMENTO

Os que se apossarem de terras do domínio público e nelas derrubarem matos ou lhes puserem fogo, serão obrigados a despejo, com a perda de benfeitorias, e demais sofrerão as penas estabelecidas nas leis penais em vigor além da satisfação do dano causado.

Regulamento da Lei de Terras do Estado, 04 de Julho de 1900.

4.1 A GESTÃO DAS “TERRAS DEVOLUTAS”

Em alguns momentos dos capítulos anteriores, grifei o quanto o povoamento da região

serrana foi marcado pela disputa entre Estado e particulares. Cabe agora analisar, de maneira

mais detalhada, o modo como se desenvolveu tal disputa, bem como alguns de seus

resultados. Em linhas gerais, os funcionários de Estado responsáveis por gerenciar os assuntos

relativos à apropriação do espaço esforçaram-se para discriminar o domínio público do

privado e, a partir disso, definir o modo como a propriedade fundiária organizaria-se.

Especialmente, no caso dos grupos em que a noção de propriedade não estava alinhada com

critérios considerados ideais, fazê-los mudar suas maneiras tradicionais de relacionamento

com o território, buscando instituir entre eles a noção de propriedade característica do “mundo

ocidental moderno”. Isto é, uma propriedade com suas fronteiras efetivamente demarcadas,

cuja produção deveria estar voltada para abastecer e consolidar o mercado.

A execução dos projetos governamentais de colonização e povoamento foi

acompanhada por uma série de alterações no modo como os habitantes da região

relacionavam-se com o espaço, com a produção e também foi responsável por definir

alterações profundas na sociabilidade local. Nesta perspectiva, embora se trate de contextos e

situações bastante diferenciadas, é interessante realizar uma aproximação entre aquilo que

ocorreu no Rio Grande do Sul com o caso analisado por Beatriz Heredia1, que, em seu estudo,

aborda a “modernização conservadora” da agricultura, ocorrida na década de 19702, na região

de Tabuleiros do Sul, estado de Alagoas.

1 HEREDIA, Beatriz Alasia de. Formas de dominação e espaço social: a modernização da agroindústria canavieira em Alagoas. São Paulo: Marco Zero; Brasília: MCT/CNPq, 1988. 2 Esta data refere-se ao período em que a autora realizou sua etnografia, no entanto, as mudanças relacionadas à modernização e expansão da agricultura canavieira na região analisada por Heredia são datadas da década de 1950.

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Assim, na passagem do complexo do engenho para o da usina, acontece um sem

número de alterações nas práticas comuns de vida e relações sociais das pessoas que vivem a

mudança. A partir dela, os espaços são ressignificados3 e tais ressignificações fazem parte de

um complexo quadro de jogos sociais. Desse modo, a mencionada “modernização” não foi

capaz de romper profundamente com os laços de dependência e de dominação característicos

daquela figuração social. De modo geral, ela acrescentou a tais laços novos conteúdos e

significados, cuja variação foi proporcional e dependeu da forma como as mudanças

ocorreram naquele contexto em particular. Em outras palavras, as transformações analisadas

por Heredia carregavam também permanências.

No processo de ocupação das terras da região serrana, também é possível verificar a

ocorrência de mudanças e permanências. Nesse sentido, as análises de Beatriz Heredia podem

iluminar o estudo ora desenvolvido. Como no caso da modernização agrícola de Alagoas, o

Estado teve papel importante na maneira como a ocupação do território e as novidades que lhe

são características aconteceram na situação ora analisada. No Rio Grande do Sul, o objetivo

primordial do Estado era separar o domínio público do privado e, a partir disso – conforme

escreviam os responsáveis por colocar em prática tais intenções – incentivar a constituição de

um tipo específico de trabalhador rural, cuja peculiaridade deveria ser sua vinculação e

fixidez a um espaço territorial e a prática de uma agricultura definida como “racional” e

“produtiva”.

Um traço característico do Rio Grande do Sul no primeiro período republicano foi a

busca por tornar o estado polivalente na produção de gêneros destinados a sua sustentação

econômica. Diferentemente do que ocorria em outros territórios do Brasil e daquilo que havia

caracterizado o próprio Rio Grande durante o período imperial em relação a produção bovina,

especialmente a do charque. Na Mensagem do Presidente do Estado, enviada à Assembléia

dos Representantes em 1895, Júlio de Castilhos relatava que durante sua administração um

dos principais esforços feitos foi o de aproveitar os “prodigiosos recursos naturais que

distinguem o Rio Grande do Sul”, visto que sua força criadora não deveria residir na

exploração de um único produto “a semelhança do café em alguns estados, ou do açúcar em

3 Sobre essa questão, Heredia escreve: “a ruptura do sistema social engenho e o domínio de um novo sistema de dominação que impera atualmente tem expressão também na organização do espaço. No passado, o cultivo de cana ocupava apenas uma parte reduzida de terras do engenho que também eram destinadas à criação do gado, às matas, ao cultivo dos moradores e, por fim, às construções. Mesmo nos vales, a plantação de cana também dividia espaço com o gado e as construções. Hoje essa distribuição foi mudada, as terras da propriedade, especificamente as dos tabuleiros [até então consideradas impróprias para o cultivo da cana e destinadas aos moradores], foram ocupadas totalmente pela cana que expulsou o cultivo dos roçados, os pastos, as matas e as construções. A cana domina, pois, a paisagem atual”. Idem, p. 205.

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outros, ou da borracha no extremo-norte do país”4. Ao Rio Grande do Sul, segundo Júlio de

Castilhos, cabia o papel de ser fornecedor de produtos agrícolas e pastoris para os mercados

nacionais e para os estrangeiros do que lhe proviria o título de “celeiro do Brasil”5. Por sua

vez, a região de matas ocupava papel destacado, pois devido a sua “extraordinária produção

agrícola” a ela era dada a condição de ser “o primeiro celeiro do estado”6.

Todavia, a produção agrícola que, nas palavras do Presidente Borges de Medeiros em

1898, garantiria ao Rio Grande do Sul a condição de “provido celeiro da grande República”

era portadora de problemas, principalmente no que diz respeito à sua industrialização.

Conseqüentemente a condição de celeiro do país era constantemente colocada em perigo, uma

vez que a quantidade e a qualidade da produção rio-grandense não era suficiente para disputar

a primazia nacional contra a produção similar estrangeira: “os mercados consumidores do

norte do Brasil e até de nossa própria terra ainda recebem avultado suprimento de produtos

das indústrias da América do Norte e repúblicas do Prata”7. Tal inferioridade, de acordo com

o Presidente do Estado, era conseqüência, entre outros fatores, de uma “imperfeita instrução

agrícola”. Dessa maneira, cabia ao governo auxiliar na difusão do ensino racional e uma das

primeiras medidas tomadas foi a criação de uma estação agronômica industrial instalada em

Porto Alegre, que deveria servir de modelo para outras a serem implantadas nas regiões

agrícolas do estado.

Durante à Primeira República, grandes foram os esforços realizados pelo Estado no

sentido da difusão do ensino agrícola. É impossível realizar aqui uma descrição detalhada dos

mesmos, pois a política educacional rio-grandense, especialmente a voltada à instrução

agrícola, merece um estudo mais aprofundado. Entretanto, é necessário grifar a importância

da escola, dos cursos técnicos e dos esforços governamentais voltados a difundir o ensino

entre as populações rurais no período. Embora os resultados não tenham sido satisfatórios,

principalmente devido ao reduzido número de alunos(as) formados, os projetos e práticas de

instrução rural alcançaram certo êxito na difusão de conhecimentos e no treinamento das

populações rurais do Rio Grande do Sul8.

4 CASTILHOS, Júlio Prates de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Júlio Prates de Castilhos, na 3ª e penúltima sessão ordinária da 2ª legislatura, 20 de Setembro de 1896. Porto Alegre: Tipografia de César Reinhardt, 1895, p. 25. 5 Idem, ibidem. 6 MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 2ª sessão ordinária da 3ª legislatura, em 20 de Setembro de 1898. Porto Alegre: Oficinas tipográficas de A Federação, 1898, p. 30. 7 Idem, p. 12. 8 Sobre os cursos técnicos de agricultura, de capatazes rurais, postos zootécnicos e os institutos de formação técnica existentes no Rio Grande do Sul, a Mensagem enviada por Borges de Medeiros à Assembléia dos Representantes em 1920 traz uma descrição detalhada dos mesmos, suas atribuições, número de alunos e

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A análise das fontes evidencia que o foco das ações estatais era exercer um controle

sobre a privatização das terras devolutas, sendo que o motivo de tal interesse era garantir os

lucros que poderiam advir da comercialização das terras. Nesta perspectiva, a própria política

de colonização era um dos meios utilizados para aumentar os rendimentos, uma vez que

juntamente com a fundação de núcleos coloniais, fossem eles públicos ou privados, ocorria

uma valorização considerável das terras.

José do Nascimento, em sua tese de doutorado9, argumenta que a ação do Estado na

região de matas foi “tardia” e a razão do “atraso” governamental em gerenciar o processo de

ocupação daquele espaço esteve vinculada aos interesses de auferir lucros sobre a venda de

terras. Contudo, ao se analisar os documentos de época, especialmente os relatórios da DTC e

as mensagens dos presidentes é possível verificar que desde o início do período republicano

os esforços governamentais no sentido de controlar a apropriação de terras na região são

consideráveis e definem os rumos do povoamento, bem como o povoamento influi na

elaboração e alteração de alguns projetos políticos. Desse modo, penso que ao contrário de ser

tardia, a intervenção do Estado acompanhou o próprio ritmo do processo, se acentuou na

medida em que os espaços foram sendo consolidados, bem como foi proporcional a

capacidade administrativa de um governo recém formado em um regime ainda não

suficientemente consolidado. Em outros termos, dissociar o processo de formulação de

políticas públicas e a ação estatal do próprio processo de povoamento e suas vicissitudes pode

levar a conclusão de que o Estado agiu com uma certa morosidade. Entretanto, o próprio

Nascimento ao longo de seu estudo aponta circunstâncias que evidenciam não a morosidade

do Estado, mas um diálogo constante entre o que acontecia no “fazer-se” do povoamento e no

desenvolvimento das ações estatais. Por exemplo:

a preocupação com a apropriação e conseqüente ampliação do povoamento da região ao lado esquerdo do rio Uruguai foi antiga, basicamente desde a incorporação deste território ao Brasil. No entanto, (...), este aspecto somente será concretizado no final do século XIX, quando, entre outros, a pressão demográfica das primeiras colônias de imigrantes impulsionou os colonos para as áreas de matas do Planalto e do Alto Uruguai, concomitante a uma preocupação das autoridades de Cruz Alta em ampliar a sua presença, para diversificar a produção de alimentos. A floresta foi transformada em lavoura, a ferrovia impulsionou a agricultura, pois representou frete mais barato,

funcionamento. Cf.: MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Rio Grande do Sul, pelo Presidente do Estado Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 4ª sessão ordinária da 8ª legislatura, em 20 de setembro de 1920. (Documento datilografado do original, do serviço de pesquisa e documentação histórica do Museu da Assembléia – Rio Grande do Sul), p. 14-31. 9 NASCIMENTO, José Antônio Moraes. Derrubando a floresta, plantando povoados: a intervenção do poder público no processo de apropriação da terra no norte do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2007. (Tese de doutorado).

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permitindo acesso ao comércio. Assim, ao longo do final do século XIX e início do XX várias colônias de imigrantes, oficiais e particulares, foram fundadas na região, além de migrações espontâneas10.

Outro fator que leva Nascimento a definir a ação estatal na região como tardia foi a

atuação das companhias privadas de colonização, contudo, como o próprio autor reconhece, a

maior parte das colônias particulares fundadas no período, foram estabelecidas em áreas

adquiridas não do Estado, mas de proprietários locais11. Embora seja verificável que num

primeiro momento o Estado pouco interferiu em relação as práticas de colonização adotadas

por tais companhias, na medida em que o século XX avança, como veremos no próximo item,

o Estado passa a exercer maior controle sobre tais empreendimentos.

Considero que, no início do século XX, a pouca interferência do Estado nas áreas e

nos projetos de colonização particular foi resultado – especialmente, mas não só – da falta de

um aparato de governo consolidado capaz de gerenciar tal questão. Circunstância que fica

visível nas constantes críticas realizadas por parte dos agentes governamentais em relação a

falta de funcionários para controlar e definir a discriminação das terras, assim como para

gerenciar as colônias públicas e as questões relativas à demarcação das terras indígenas e ao

estabelecimento dos intrusos12. Portanto, antes de ser indício de uma “intervenção tardia”, as

práticas adotadas são reflexo do próprio contexto e encaixam-se dentro das possibilidades de

intervenção então vigentes. Assim, deve-se levar em conta, em primeiro lugar, que a principal

preocupação do Estado não estava na fundação e organização de colônias particulares, e sim

em garantir que os lucros provenientes da venda das terras teriam que ficar sob seu controle.

Em segundo, estava a necessidade de formar agricultores produtivos, os quais deveriam

produzir gêneros que garantissem ao Rio Grande do Sul a qualidade de “celeiro da nação” e,

dessa forma, aumentassem as rendas do Estado.

Quanto à questão fundiária propriamente dita, quando da passagem do Império para a

República, mais precisamente a partir de 1891, a administração das terras públicas passou a

ser responsabilidade dos Estados. No caso do Rio Grande do Sul, coube a lei de terras

estadual – decretada em 05 de outubro de 1899 e aprovada em 04 de julho de 1900 – o papel

de regular as questões relacionadas a constituição da propriedade da terra no estado. Segundo

a lei, eram consideradas terras devolutas aquelas áreas que não estavam aplicadas a algum

tipo de uso público da União, do Estado ou do Município; as que não haviam sido revalidadas

10 Idem, p. 188. 11 Neste sentido o autor escreve: “A apropriação das matas do vale do Uruguai também ocorreu pela ação de particulares, os quais compravam terras do Estado, mas principalmente de particulares, e procediam à criação de colônias particulares”. Idem, p. 312. 12 Este termo será definido mais detalhadamente adiante.

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e, caso fossem posses, legitimadas na forma da lei nº 601, de 18 de setembro de 1850; as

posses que, embora processadas de acordo com a lei de 1850, ainda não estivessem julgadas;

as posses sujeitas à legitimação pela nova lei estadual e as que não se achavam em domínio

particular por qualquer título legítimo.

A lei de terras estadual também estipulava normas para exploração e conservação das

regiões florestais, tanto públicas como particulares. Determinava que as posses anteriores a 15

de Novembro de 1899 só poderiam ser legitimadas “quando, constituídas de boa fé, tivessem

cultura efetiva e morada habitual do posseiro, uma vez que a legitimação seja requerida no

prazo irrevogável de dois anos, a contar da regulamentação da lei”13. Nesses casos, a área

legitimável resumiria-se a extensão cultivada e, sempre que possível, não deveria ser inferior

a 25 hectares nas terras de mata e a 50, nas de campo.

No texto da lei de terras do estado, está presente uma categoria que convém conhecer

melhor: a de posseiro. Paulo Zarth chama atenção para a existência, nas fontes, de uma série

de denominações que eram aplicadas aos homens livres pobres, as quais estavam, de acordo

com o autor, vinculadas às atividades econômicas de tais pessoas14. Quanto à categoria

posseiro propriamente dita, Zarth escreve que ela era destinada àqueles que “viviam em terras

públicas ou em processo de privatização, podendo ser ocupante de pequenas ou médias áreas

de terra”, mas, de um modo geral, “o posseiro era um camponês que ocupava pequenas áreas

e era vítima constante de expulsão à medida que avançava a fronteira agrícola”15. Em função

de não possuir documentos que legalizassem sua situação, os posseiros sofriam dificuldades

de toda ordem e, quando não eram alvo de contestações, “tinham problemas de falta de

recursos financeiros para legitimar as áreas que ocupavam”16. Assim, em algumas situações,

eram expulsos da terra, por exemplo, quando um proprietário poderoso legitimava a área sem considerar os direitos do posseiro. Em outros casos, o posseiro aparece como “vendedor” de sua posse: o trabalhador nacional era utilizado para permitir ao grande proprietário a legitimação da terra, à medida que argumentava que “comprara-a” do posseiro (...). Por outro lado, diante de um processo de mercantilização da terra, o lavrador nacional, na condição reconhecida de posseiro, vendia seus direitos sobre a terra a algum proprietário abastado ou aos imigrantes europeus17.

13 MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Lei nº 28 de 5 de Outubro de 1899: decreta e promulga a lei sobre terras públicas, p. 748. In.: IOTTI, Luiza Horn (Org.). Imigração e colonização: legislação de 1747 a 1915. Porto Alegre: Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul; Caxias: EDUCS, 2001, p. 747-749. 14 ZARTH, Paulo. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: UNIJUI, 2002, p, 168. 15 Idem, p. 169. 16 Idem, Ibidem. 17 Idem, p. 169-170.

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Em artigo sobre a origem da palavra posseiro, Márcia Motta sustenta que o termo, de

fato, “só existe na língua portuguesa, ou melhor, no português falado no Brasil”18. Ainda

segundo Motta, a palavra posseiro é obra de uma construção histórica e “seu sucesso depende

de todo um conjunto de procedimentos que fazem com que, ao pronunciá-la, possamos

expressar a dramaticidade do seu conteúdo”19. Tal construção está profundamente vinculada

ao processo de apropriação das terras no Brasil, ao conjunto de leis que ao longo da história

tentaram regular a questão e, igualmente, à forma como tais leis foram aplicadas, geralmente

beneficiando aos grandes proprietários.

No caso analisado pela autora, o Rio de Janeiro no período entre 1822 e 1850 – ou

seja, o espaço de tempo em que não existiu uma lei específica sobre terras no Brasil e em que

a posse foi a única forma de apropriação fundiária – Motta registra uma divisão no interior

dessa categoria social, pela qual de um lado estavam aqueles que “detinham poder de

imprimir pela força os limites de sua posse”; de outro, “os que privados deste mesmo poder,

eram obrigados a abandonar suas terras em cultivo para outrem”20. Conseqüentemente, nesse

período, as ações judiciárias – ações de embargo e de despejo – eram utilizadas para expulsar

pequenos posseiros, instalados em terras devolutas, visto que “ao abrir uma roçada, produzir

cultivos de subsistência e construir uma pequena choupana, os pequenos lavradores limitavam

a expansão dos fazendeiros”21.

As ações judiciais eram elaboradas a partir da “consagração da noção de invasor de

terras”, o que dificultava aos pequenos posseiros de se defenderem perante a justiça. Não

bastasse isso, a luta desses pequenos lavradores por preservar uma parcela de terra “era

obstaculizada pela ação violenta de expulsão, e pela consagração – na justiça – de que eram

eles, e não os fazendeiros os reais invasores”22. Há ainda outro elemento que gostaria de

enfatizar aqui. A relação entre pequenos e grandes posseiros é também marcada pela

intermediação, uma vez que, em muitos casos, um grande fazendeiro “usava” o pequeno

posseiro como um “testa de ferro” a fim de se apropriar de extensas áreas de terras. Em outros

termos, a terra era registrada em nome de um pequeno posseiro – muitas vezes com sua

anuência – para logo em seguida ser “vendida” a um grande.

18 MOTTA, Márcia Menendes. A coerção na ausência da lei: posseiros e invasores nos oitocentos (1822-1850), p. 147. In.: ASSIS, Ângelo Adriano Faria de; SANTANA, Nara Maria Carlos de; ALVES, Ronaldo Sávio Paes. Desvelando o poder: histórias de dominação: Estado, religião e sociedade. Niterói: Vício de Leitura, 2007, p. 147-162. 19 Idem, p. 148. 20 Idem, p. 155. 21 Idem, p. 159. 22 Idem, ibidem.

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Mesmo após a lei de terras de 1850, a situação dos pequenos posseiros não muda,

embora tal lei expressasse um esforço no sentido de reconhecer a legitimidade da posse como

um direito pretérito à terra. Aos lavradores pobres existiam um sem número de problemas

comprometendo seu acesso à propriedade da terra: desinformação sobre o funcionamento das

leis, a falta de recursos, a própria estrutura social em que estavam inseridos, etc... Assim,

mesmo após a lei de 1850, na prática, “as tentativas de regularizar as posses dos pequenos

posseiros foram fracassadas, seja pela cumplicidade dos órgãos de justiça, seja pela ação

direta de violência contra os cultivadores humildes”23.

Motta demonstra que há uma diferença entre ser um posseiro rico e ser um pobre, uma

vez que enquanto os fazendeiros eram identificados como desbravadores e tomados como

cúmplices do enriquecimento das províncias, o que, entre outras coisas é resultado da sua

proximidade com o Estado e da sustentação que davam ao governo, os lavradores pobres eram

identificados como invasores. No caso do Rio Grande do Sul do período republicano, como

veremos adiante, também é possível encontrar registros da separação entre posseiros ricos e

pobres, sendo que em específico uma outra categoria também é constante nos documentos: a

de intruso, que em muitas situações também é acionada como sinônimo de invasor.

Entretanto, tal categoria não se restringe apenas aos nacionais como tradicionalmente é

afirmado, mas a partir de um dado momento, quando as populações das colônias velhas

passam a se direcionar para as zonas de fronteira agrária sem a intervenção dos aparelhos de

Estado responsáveis por gerenciar o povoamento, elas também passam a receber o

qualificativo de intrusas.

Todavia, antes de fazer a análise desse processo, convém conhecer mais

detalhadamente a lei e o regulamento de terras estadual de 1899 e 1900. De acordo com o

regulamento da lei, aprovado em 04 de julho de 190024, o serviço de terras públicas ficaria

sob direção e fiscalização da SENOP. Era tarefa desta secretaria zelar pelo patrimônio

territorial do Estado, extremar o domínio público do particular, providenciar sobre a

conservação, medição, divisão, demarcação, verificação, concessão, venda e reserva das terras

públicas, bem como sobre a legitimação de posses. Expedir títulos de domínio de terras que

fossem assinados pelo Presidente do Estado e, para cumprir estas e outras obrigações poderia

pedir auxílio aos agentes do Ministério Público, às autoridades policiais e aos agentes fiscais

do Estado. Segundo os termos da lei, também seriam nomeadas algumas comissões especiais

23 Idem, p. 160. 24 PAROBÉ, João José Pereira. Decreto nº 313 de 4 de Julho de 1900: aprova o regulamento para execução da Lei nº 28, de 5 de Outubro de 1899. In.: Luiza Horn Iotti (Org.). Idem, op, cit., p. 752-774.

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– as Comissões Verificadoras – que se responsabilizariam pela discriminação de terras e de

verificação, medição e legitimação de posses.

Da mesma maneira, o regulamento determinava que as posses estabelecidas

posteriormente a data de 15 de novembro de 1889 não seriam legitimáveis, mas poderiam ser

adquiridas mediante a indenização dos seus devidos valores e que “o posseiro, sesmeiro ou

concessionário” que não solicitasse o título de propriedade dentro do prazo fixado de dois

anos incorreria em “multa equivalente ao dobro dos emolumentos que tivesse de pagar”25. Em

termos legais, embora o apossamento juridicamente fosse proibido desde a lei de terras de

1850, que determinava a compra como única forma de acesso à terra, a partir da República e

com a passagem do controle das terras devolutas aos estados, no caso do Rio Grande do Sul,

apenas as posses estabelecidas a partir da Proclamação não seriam legitimáveis e deveriam ser

compradas. Isto é, a lei de terras estadual de 1899 anulava uma determinação da lei de terras

de 1850. Conseqüentemente, as posses estabelecidas entre 1850 e a proclamação da

República, no Rio Grande do Sul, de acordo com os dispositivos da lei de terras estadual,

poderiam ser legitimadas sem necessariamente terem sido compradas. Diante da situação a

que estavam submetidos os pequenos posseiros, isto é, impossibilidade de, em sua maioria,

conseguirem o registro oficial das terras que ocupavam devido ao conjunto de entraves

relatados acima, este dispositivo da lei de terras estadual teve como fim preciso, não há

dúvidas, beneficiar os grandes proprietários locais.

Tradicionalmente a historiografia que trata da questão agrária no Rio Grande do Sul da

Primeira República estabelece a lei de terras estadual como um marco, um divisor de águas

entre um antes e um depois, cuja característica principal é legitimar a propriedade privada e o

avanço de relações capitalistas em direção ao campo, além de ser um exemplo de como

ocorreu o processo de implantação do projeto de hegemonia peculiar ao PRR e aos

castilhistas26. Em conseqüência, tais análises observam essa lei apenas a partir de alguns de

seus pontos e não levam em consideração que, durante a Primeira República, como é possível

verificar ao longo dos relatórios da Diretoria de Terras e Colonização e das mensagens dos

presidentes de Estado, o processo de aplicação da lei foi mais complexo do que a primeira

vista pode parecer. Assim, se é possível estabelecer os motivos e os fins da legislação agrária,

sua prática e a aplicação dos preceitos da lei acabaram resultando em processos diferenciados,

muitos dos quais fugiam ao controle dos legisladores e levaram a alteração em alguns dos

25 Idem, ibidem. 26 Um exemplo desse tipo de interpretação encontra-se em: KLIEMANN, Luiza H. Schmitz. RS: terra e poder. História da questão agrária. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986.

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dispositivos da lei, seja para torná-los mais de acordo com a realidade que estava sendo

legislada, seja para garantir um controle sobre os conflitos que poderiam advir da sua

aplicação ipsis litteris.

Muitas das prescrições da lei de terras estadual não eram possíveis de serem colocadas

em prática, justamente em função do modo como se desenvolvia o processo de povoamento.

A impossibilidade de aplicar a lei de terras em sua totalidade estava vinculada também às

pressões que o Governo do Estado sofria por parte dos grandes proprietários que viam na

aplicação da referida lei um entrave na efetivação de seus interesses de apossamento. Da

mesma forma, os grupos “mais pobres” não ficaram imóveis a aplicação dos preceitos

estabelecidos pela lei de terras e, a seu modo, exerceram pressão no sentido de que algumas

alterações fossem realizadas. Tais circunstâncias levaram à expedição de um grande número

de decretos e instruções que buscavam solucionar situações que a referida lei de terras não

conseguia resolver ou que, ao fim e ao cabo, eram resultado das tentativas de sua implantação.

Nessa perspectiva, José Braz de Faria, chefe da seção do expediente, em relatório apresentado

ao secretário de Obras Públicas em 1916, escrevia:

o artigo 13 do regulamento de 4 de julho de 1900 determina que seja consignado em sentença dos autos, prazo para que o legitimante extraia o título de sua posse, sob pena de pagamento de emolumento em dobro. Apesar de marcado tal prazo, não deu resultado a medida. Uma providência, pois, que ativasse a extração ou compelisse o interessado a isso, seria não só conveniente como necessária27.

No mesmo sentido, no relatório da DTC de 1919, Carlos Torres Gonçalves registrava

que “modificações sucessivas introduzidas no último Regulamento de 4 de Julho de 1900

foram fazendo sentir a necessidade da reforma do mesmo, afim de harmonizá-lo com as

condições atuais dos serviços”28. Dentre as mudanças sugeridas por Torres Gonçalves,

destacam-se a simplificação dos processos de legitimação sujeitos ao regulamento de 1900 –

“transformando-os em simples concessões das áreas que seriam legitimáveis, mediante o

pagamento somente das despesas de demarcação”29 –, a facilitação no andamento dos

processos pendentes pela lei de 1850, a instituição de medidas voltadas a proteção dos

27 FARIA, José Braz de. Relatório da secção do expediente, p. 08. In.: ALVES, Protásio. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. General Salvador Ayres Pinheiro Machado, vice-presidente em exercício, do Estado do Rio Grande do Sul pelo Dr. Protásio Alves Secretário de Estado, interino, dos Negócios das Obras Públicas, em 09 de setembro de 1916. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1916, p. 03-15. (AHRS - OP. 41). 28 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 360. In.: PINTO, Ildefonso Soares. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 27 de agosto de 1919. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1919, p. 347-452. (AHRS - OP. 54). 29 Idem, ibidem.

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nacionais, cuja prática já era realizada desde a implantação da Colônia Santa Rosa em 1915,

mas que ainda não era regulada por lei.

Além dessas, Gonçalves também sugere a instituição de novas medidas voltadas à

proteção dos indígenas, melhoramento nos trabalhos de colonização para facilitar a

“assimilação dos estrangeiros pelos nacionais, de modo a conservar, aperfeiçoando-os, nas

características de nossa nacionalidade”30, entre outras mais, cuja presença verificava-se no

regulamento de 1900, mas que, sublinhava o diretor da DTC, a prática de sua aplicação exigia

que elas fossem reformadas. Como é possível verificar, o conjunto de mudanças propostas

não oferecia grandes facilidades aos lavradores pobres, apesar de referir-se à regularização e

melhoramento dos serviços referentes aos nacionais, aos indígenas e à colonização. Conforme

já tratei no capítulo anterior, tais medidas tinham o sentido de transformar esses grupos em

economicamente produtivos e alterar as suas formas tradicionais de se relacionarem com o

espaço e com a agricultura.

Assim, em 1923, pelo decreto nº 3.004 de 10 de agosto, foi aprovado novo

regulamento de terras públicas, o qual consolidou as modificações entendidas como

necessárias para “atualizar” e “aperfeiçoar” o regulamento de 1900 e “dispôs sobre as

condições fundamentais mais gerais e estáveis dos serviços, deixando os detalhes de execução

destas para instruções que já se achavam quase concluídas” 31. As mudanças, de acordo com o

secretário de Obras Públicas, Idelfonso Soares Pinto, foram feitas a partir da experiência

adquirida ao longo dos anos e, como fica visível na citação, a experiência também

determinava que o novo regulamento deveria se preocupar apenas com problemas mais

fundamentais enquanto que os “detalhes” seriam regulados por “instruções”.

Em outras palavras, o que o secretário de obras públicas chama de “detalhes” pode ser

traduzido por problemas, os quais foram peculiares ao processo de ocupação do espaço e

constituição dos limites entre propriedade pública e privada da terra no Rio Grande do Sul.

Conseqüentemente, compreendê-los é de importância inquestionável para conhecer o modo

como a questão de terras foi legislada e a propriedade fundiária estabelecida. Logo, entender a

lei de terras estadual, seus respectivos regulamentos e os diversos decretos e instruções

referentes à apropriação de terras elaborados no Rio Grande do Sul da Primeira República

apenas como uma representação do domínio dos castilhistas ou tratá-los como simples

30 Idem, ibidem. 31 PINTO, Ildefonso Soares. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Ildefonso Soares Pinto Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 15 de agosto de 1923. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1923, p. LIII. (AHRS - OP. 65).

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expressões do avanço de relações capitalistas em direção ao campo sem aprofundar o sem

número de problemas relacionados a esse processo é não dar a devida atenção a aspectos

importantes que, não à toa, o secretário de obras públicas, o próprio Torres Gonçalves e os

presidentes de Estado insistiam em apresentar como detalhes. Assim, passo a descrever

alguns desses detalhes.

Em 1900, Nelson Coelho Leal, engenheiro responsável pela Comissão Verificadora de

Posses e Discriminação de Terras em Santa Cruz escreve que a discriminação de terras

públicas era medida urgente mais até do que a verificação das medições de posses já

legitimadas. O engenheiro registra que estava ocorrendo “uma constante invasão de terras

públicas por parte de imorais especuladores, que, usando dos mais criminosos processos,

conseguem a cada dia apossar-se de preciosas parcelas do domínio territorial do Estado”32

(grifos meus). Nota-se aqui o emprego do termo invasão para identificar especuladores que se

apossavam de terras públicas e depois as revendiam divididas em lotes, geralmente de 25

hectares, seja a posseiros que já viviam nessas áreas, a imigrantes ou a indivíduos vindos das

colônias velhas. Em tal caso, como exemplificarei adiante, os posseiros que viviam nessas

áreas, quando não tinham meios de comprar suas posses, eram expulsos de modo violento.

A situação descrita por Nelson Coelho Leal e seu ato de identificar os especuladores

como invasores está relacionada ao interesse do Estado em exercer um controle sobre o

povoamento e os possíveis lucros que poderiam advir da comercialização das terras33. Desse

modo, um outro aspecto vem à tona: para os funcionários de Estado, principalmente para

aqueles que atuavam em instâncias mais centrais, exercer um controle sobre o a ocupação das

terras, enquanto discurso e política de Estado, era fundamental. Contudo, a prática da

ocupação fugia ao controle e, nas fontes analisadas, não encontrei nenhum exemplo de

anulação dos “atos criminosos”, a não ser alguns casos em que o pedido de reconhecimento

de áreas extensas pelo registro Torrens são negadas, porém tratavam-se de pedidos que eram

notoriamente mau elaborados. Não obstante, exemplos de pequenos posseiros expulsos são

recorrentes.

32 LEAL, Nelson Coelho. Comissão verificadora de posses e de discriminação de terras públicas em Santa Cruz, p. 179. In.: PAROBÉ, João José Pereira. Relatório dos Negócios de Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Desembargador Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 31 de julho de 1900. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1900, p. 179-188. (AHRS - OP. 08). 33 Sobre esta questão José Nascimento escreve: “(...) o problema não se encontrava no fato de ‘invadir-se’ terras devolutas, mas sim desses ‘especuladores’ fazerem-no à margem do Estado, ou seja, sem que este fizesse a concessão e, portanto, vendesse e lucrasse com tal ato. De fato, não havia preocupação efetiva em proteger as matas, mas sim em evitar prejuízos em não comercializá-la, nem tampouco a preocupação com a cobertura vegetal das florestas do estado”. Cf.: José Antônio Moraes do Nascimento. Idem, op. cit., p. 178.

- 199 -

Ainda de acordo Nelson Coelho, passado o regime imperial e “devido à severidade do

governo republicano”, os especuladores haviam abandonado o sistema de aquisição fornecido

pela lei de terras de 1850 e “encastelaram-se sofregamente no registro Torrens”34. Os

relatórios da DTC trazem uma série de exemplos sobre as tentativas de utilizar o Torrens para

legitimar áreas reconhecidamente do Estado. Na generalidade, tratam-se de áreas extensas

como a “negada inscrição requerida por Adão Hoffmann, no município de Passo Fundo, de

um imóvel com área de 49.158.484 metros quadrados [4.915 hectares]” ou as petições de

“Mathias Steffens e Diogo da Silva Rocha, também de Passo Fundo, relativas a imóveis com

área total de 67.237.845 metros quadrados [6.723 hectares]”35.

Segundo informações do relatório de Francisco Ávila Silveira, chefe da 2ª seção da

Secretaria de Obras Públicas, a qual, antes da criação da DTC, era responsável pelos assuntos

relacionados a terras e colonização, o engenheiro Augusto Pestana, chefe da comissão de

terras de Cruz Alta, Passo Fundo, Santo Ângelo e Palmeira das Missões, havia embargado as

petições de registro Torrens feitas por Mathias Steffens e Diogo Rocha por considerar as

terras requeridas devolutas, “em vista da falta de documentos que provem o direito dos

requerentes”36. Ainda acrescentava que o exame de muitos Registros realizados nesses

municípios daria lugar a muitas ações de nulidade, pois “principalmente em Passo Fundo, o

patrimônio do Estado se acha extraordinariamente lesado, tendo sido abusivamente inscritas

grandes extensões de terras do domínio público”37. No entanto, não há informações se

realmente tais Registros foram anulados.

Em 1904, o relatório de Augusto Pestana traz novas informações a respeito da

utilização do registro Torrens e afirma que “felizmente cessou a prática abusiva das tentativas

de inscrição no registro Torrens de terras pertencentes ao Estado e em geral de grandes

áreas”38. No período a que se referia o relatório, segundo Pestana, não havia sido requerido

nenhum novo registro na área sob responsabilidade da comissão por ele administrada. Os

relatórios dos responsáveis pelas comissões de verificação e da Secretaria de Obras Públicas

34 Nelson Coelho Leal. Idem, op, cit., p. 179. 35 SILVEIRA, Francisco de Ávila. Diretoria de Obras Públicas, 2ª secção de terras e colonização em Porto Alegre, p. 37. In.: PAROBÉ, João José Pereira. Relatório dos negócios de Obras Públicas apresentado ao Exmo. Sr. Desembargador Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 31 de julho de 1902. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1902, p. 33-48. (AHRS - OP. 10A). 36 Idem, ibidem. 37 Idem. 38 PESTANA, Augusto. Comissão verificadora de posses e discriminação de terras públicas em Ijuí, p. 115. In.: PAROBÉ, João José Pereira. Relatório dos negócios de Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 24 de Agosto de 1904. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1904, p. 113-116. (AHRS - OP. 11).

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mostram também os meios utilizados para burlar os preceitos estipulados, tanto pelo registro

Torrens como pela lei de terras estadual.

Assim, no relatório da Secretaria de Obras Públicas de 1904, C. Silva da Silveira,

responsável pela comissão verificadora de posses de Passo Fundo e Soledade, escreve que

após ser substituído o juiz da comarca de Passo Fundo, “cessaram por completo as inscrições

no registro Torrens nessa cidade e no da Soledade”39. Inclusive o chefe dessa comissão

menciona a existência de autos de Registro onde as escrituras apresentadas por um certo

Ângelo Cornélio de Almeida Gralha, “para terem cunho de antiguidade, sofreram a pressão de

um ferro quente, conforme se nota a primeira vista”40. Ainda segundo Silva da Silveira, os

abusos na região de Passo Fundo e Soledade das legitimações pela lei de 1850 e regulamento

de 1854 “foram tão grandes que existem obtidas por este meio uma fazenda com área de 21

léguas quadradas [75.600 hectares], outra com a área de 16 léguas quadradas [57.600

hectares] e várias de 5 [18.000 hectares] a 8 [28.800 hectares] léguas quadradas de áreas”41.

Carlos Torres Gonçalves, no relatório da DTC de 1909, anota que boa parte dos

registros Torrens realizados não davam a devida atenção às exigências da lei. Muitos dos

títulos expedidos reportavam-se a situações imaginárias, portanto, nada garantiam quanto à

legitimidade das terras e freqüentemente as plantas realizadas não passavam “de grosseiros

levantamentos a bússola, ou mesmo de simples croquis”42. Fato que trazia sérios problemas

ao Estado, já que a tarefa de definir os limites entre a propriedade pública e privada das terras

estava na base dos serviços de colonização e, como passarei a tratar dentro em pouco, a

inexistência de certezas sobre tais limites levou à fundação de colônias em áreas

posteriormente consideradas privadas. Em conseqüência, o Estado teve que fazer todo um

trabalho de indenizações, que acarretaram no aparecimento de novos inconvenientes.

Contudo, deve-se questionar se tais áreas realmente eram privadas ou, no caso de serem

devolutas, foram requeridas com anuidade de alguns funcionários do Estado, a partir do uso

de formas escusas de legitimação, pois segundo as ponderações de Torres Gonçalves:

39 SILVA SILVEIRA, C da. Comissão verificadora de posses e de discriminação de terras públicas em Passo Fundo e Soledade, p. 133-134. In.: João José Pereira Parobé, 1904. Idem, p. 129-134. 40 Idem, ibidem. A prática utilizada por Ângelo Gralha pode ser definida como uma típica ação de grilagem, isto é, ato de falsificação dos documentos de propriedade a fim de dar-lhes cunho de antiguidade e veracidade, cuja presença é constante na história da apropriação da terra no Brasil. 41 Idem, ibidem. 42 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 81. In.: GODOY, Candido José de. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, Candido José de Godoy, em 27 de agosto de 1909. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1909, p. 77-114. (AHRS - OP. 20).

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o que esta Diretoria acaba de expor [sobre os limites das propriedades] equivale, portanto, a dizer que, nos casos figurados, o Governo deve desistir de qualquer discussão sobre a origem da propriedade, para promover uma verdadeira acomodação, as circunstâncias que revestiram a constituição da propriedade. E compreende que assim como, nos pedidos de indenização de terras de que o Estado dispôs e cujos títulos possam ser considerados bons ou já o tenham sido, segundo o critério que vimos de expor, as áreas consignadas nesses títulos nem sempre poderão ser tomadas para base das indenizações. De fato, casos há em que a área do terreno é maior do que a dos títulos outros em que ela é menor, e ainda outros em que existe a complicação de títulos se superpondo. Não falando nos casos em que os títulos descrevem uma situação imaginária. Portanto, cada caso precisa ser considerado em separado, e resolvido segundo as suas condições particulares43. (Grifos do autor).

Ao propor uma “verdadeira acomodação” e a desistência do Governo em entrar nas

discussões a respeito da origem da propriedade, Torres Gonçalves não estava mais que

reconhecendo a ineficácia do Estado para gerenciar a questão fundiária. Assim, dava amplas

margens de manobras para que os grandes proprietários continuassem praticando o

apossamento de extensas áreas. Situação que deixava os pequenos posseiros, em certo sentido,

alheios ao processo de apropriação fundiária, contudo, como veremos adiante, não lhes

retirava completamente as margens de ação e resistência ao processo.

Antes de seguir adiante na análise das fontes, cabe fazer uma breve reflexão sobre o

Registro Torrens, uma vez que sua presença é constante nos documentos, especialmente nos

primeiros anos da recém implantada República. O Registro tem por fonte de inspiração uma

proposta de lei elaborada por Robert Torrens e seu objetivo original era “por fim à confusão

em matéria de títulos de domínio, transferências e aquisições da propriedade imóvel”44 na

região onde vivia seu autor, filho de um dos fundadores da colônia da Austrália do Sul. No

Brasil, foi implantado em 1890 e, enquanto política de Estado, segundo Márcia Motta e Sônia

Mendonça, “se coadunava com a percepção de certo segmento de políticos liberais

[aglutinados em torno de Rui Barbosa] acerca dos ‘reais problemas’ do país e das possíveis

soluções a serem postas em prática” 45. Assim, além de em seus 85 artigos buscar consolidar

um mercado de terras no país, o Registro também visava acabar com os problemas

“envolvendo os títulos de domínio e aquisição da propriedade imóvel”46. Em linhas gerais,

43 Idem, ibidem. 44 As citações utilizadas são retiradas de texto fornecido pelas autoras em formato WinWord, portanto, não tenho como fazer referência às páginas das mesmas. O artigo foi publicado na Revista Brasileira de Pós Graduação em Ciências Sociais da Universidade de Brasília. Cf.: MOTTA, Márcia Menendes; MENDONÇA, Sônia Regina. Continuidade nas rupturas: legislação agrária e trabalhadores rurais no Brasil de inícios da República. In.: Revista Brasileira de Pós Graduação em Ciências Sociais, Brasília, v. VI, p. 127-147, 2002. 45 Idem. 46 Idem.

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pretendia ser um “acerto de contas” com o passado e almejava definir os limites entre os

domínios para, “ao menos em tese, minimizar a prática de invasão de terras devolutas e sua

transformação em propriedade privada, tal como instituído ao arrepio da lei de 1850”47. Para

fazer o Registro funcionar, o Governo Provisório da República reorganizou a Inspetoria Geral

de Terras e Colonização – instituição que havia sido criada em 1854 com o regulamento da lei

de terras e que havia fracassado no objetivo de regularizar as terras devolutas do Império,

além de não ter conseguido discriminá-las.

No contexto da Primeira República, o registro Torrens demonstra a existência de um

esforço, pelo menos por parte da coalizão de forças envolvida na sua formulação e

implementação, no sentido de “redefinir as funções do Estado no que dizia respeito à

discriminação e demarcação de suas terras” e visava “reorganizar o espaço, definindo as terras

privadas”48. Contudo, a primeira Constituição Republicana promulgada em 1891, ao passar

para os governos estaduais a responsabilidade pela discriminação das terras devolutas, acabou

retirando força do Registro e favorecendo os chefes políticos locais.

Assim, “a opção por descentralizar o problema das terras devolutas acabou por agravar

o problema da distribuição de terras no país”49, pois deu maior margem de manobras às elites

locais e para seus conchavos com os governos estaduais. Embora a Constituição de 1891

tenha retirado o papel central que havia sido pensado ao Registro Torrens quando de sua

implantação, no caso do Rio Grande do Sul ele continuou sendo utilizado em alguns

processos de legitimação de terras, visto que há pedidos datados dos primeiros anos do século

XX. Entretanto, à medida que o século avança, as referências ao Torrens, tanto nos relatórios

da DTC como nas mensagens dos presidentes, diminuem a ponto de na segunda década

desaparecerem.

Efetivamente, como venho pontuando, o problema, além de estar na legislação e na

sua parcialidade, está na forma como aconteceu a aplicação das leis. Por conseguinte, a

pergunta que me preocupa diz respeito ao porquê de, mesmo diante da existência de uma

legislação, seja ela parcial ou não, voltada a definir uma solução ao problema fundiário, ao

longo dos relatórios dos responsáveis por administrar a tarefa, são constantes os registros da

“insignificante quantidade do número de posseiros que têm requerido a legitimação de

posses”50. Da mesma forma, a presença de denúncias a respeito de fraudes na legitimação de

47 Idem. 48 Idem. 49 Idem. 50 PESTANA, Augusto. Comissão verificadora de posses e de discriminação de terras públicas em Ijuí, p. 104. In.: João José Pereira Parobé, 1902. Idem, op. cit., p. 102-104.

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áreas também ocupa espaço importante nos relatórios. A fraude e a relativa ausência de

pedidos para legitimação de posses – especialmente as pequenas –, portanto, foram aspectos

importantes para regular o modo como aconteceu a constituição da propriedade fundiária no

Rio Grande do Sul. Foi burlando as leis ou as “desconsiderando” que o processo de

apropriação da maior parte das terras no estado se desenvolveu. Daí a ser importante, para

análise, realizar um esforço de interpretação das diferentes legislações que existiram, já que

elas por si só não explicam muita coisa.

O relatório da comissão verificadora de posses de Jaguari, datado de 1902, traz um

exemplo esclarecedor dessa circunstância. No caso descrito por Vespasiano de Souza

Almeida, então responsável pela comissão, consta a legitimação de uma posse no nome de

Jacob Luiz Laydner, o qual “não havia residido um só dia e nem cultivado a área requerida”51,

mas que mesmo assim, a partir do uso de uma série de estratagemas, havia conseguido

legitimar a posse em seu nome. Segundo o chefe da comissão, a área tinha em torno de

8.000.000 metros quadrados (800 hectares), era habitada a mais de 30 anos por “pobres

agricultores”, que acreditavam estar estabelecidos em terrenos do governo e “em virtude da

mais odiosa das espertezas, vêem-se obrigados judicialmente a abandonarem suas lavouras e

verem incendiados seus ranchos e seus estabelecimentos”52. Vespasiano de Almeida conclui

que sobravam motivos para o governo mandar reverter tal posse ao domínio do Estado,

contudo, no relatório, não consta se isso realmente foi feito. Este é um exemplo concreto de

quanto a legislação formulada para resolver o problema fundiário foi parcialmente aplicada,

pois quem realmente tinha direitos, nos termos das leis, para requerer a posse – os pobres

agricultores – não o fizeram. No entanto, a propriedade da posse foi legitimada a partir de uso

de recursos ilícitos.

Uma outra questão possível de ser formulada a partir das situações que venho

descrevendo refere-se às razões da existência da lacuna entre as exigências contidas nos textos

das leis responsáveis por legislar a questão fundiária e a sua aplicação efetiva. As pesquisas

referentes a esse assunto ultimamente têm demonstrado que a propriedade no Brasil,

principalmente a grande, foi estabelecida ao arrepio da legislação ou a partir do uso escuso da

mesma. Márcia Motta, no artigo Sesmarias e o mito da primeira ocupação, demonstra como,

mesmo diante da circunstância de a maioria das concessões de sesmarias não terem sido

acompanhadas dos procedimentos exigidos para sua regulamentação e, portanto, estarem

51 ALMEIDA, Vespasiano de Souza. Comissão verificadora de posses e de discriminação de terras públicas em Jaguari, p. 114. In.: João José Pereira Parobé, 1902. Idem, op. cit., p. 113-119. 52 Idem, ibidem.

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majoritariamente em situação de comisso, os documentos de sesmarias eram, durante o

oitocentos e são ainda hoje, recorrentemente “apresentados como se eles expressassem – sem

discussão – a verdade absoluta da área ocupada”53. Assim, argumenta a autora, não é o

cumprimento dos procedimentos que exigia a lei que determina a efetividade da ocupação,

mas a posse do documento de sesmaria, visto que o simples fato de possuí-lo traz “vantagens

incomensuráveis ao litigante, autor de um processo envolvendo pequenos posseiros. A carta,

ao revelar a dimensão simbólica de seu poder, tornava-se a expressão da verdade que se

queria imprimir”54.

Ao aplicar as constatações de Márcia Motta para situação aqui analisada, poder-se-á

perceber que o procedimento de burlar os preceitos da legislação agrária com fins de

apropriação de extensas áreas, geralmente habitadas por pequenos posseiros, é tão antiga

quanto a história da ocupação da terra no Brasil. O que aconteceu no Rio Grande do Sul da

Primeira República pode ser compreendido como uma atualização de tais procedimentos em

relação a outras leis. O estudo de Leonarda Musumeci sobre o processo de ocupação de terras

no estado do Maranhão, em áreas consideradas de fronteira agrária, igualmente evidencia

como, naquele contexto, em meados das décadas de 60 e 70 do século XX, tais fatos

repetiam-se e as mais diferentes estratégias foram usadas para legitimar a propriedade de

grandes áreas em nome de alguns poucos indivíduos em detrimento de muitos lavradores

pobres55.

De maneira geral, especificar que historicamente existe uma distância entre as leis e

sua aplicabilidade não explica o porquê dessa peculiaridade. Muito provavelmente tal

característica não seja singular ao contexto estudado, porém é comum aos diferentes sistemas

jurídicos existentes. Assim, a explicação do fenômeno pode estar relacionada à forma como se

estrutura, em termos bourdiesanos, o campo jurídico, cuja compreensão deve ser apreendida

no universo social específico em que tal campo se produz e se exerce. Segundo Bordieu, a

autoridade jurídica, responsável, entre outras coisas, por formular as leis e, sobretudo, por sua

universalidade e aplicabilidade constitui-se de maneira relativamente independente em relação

às pressões externas a que constantemente é submetido. Conseqüentemente,

53 MOTTA, Márcia Menendes. Sesmarias e o mito da primeira ocupação, p. 03. In.: http://www.tj.rs.gov.br/institu/memorial/RevistaJH/vol4n7/03_%20M%E1rcia%20M_%20Menendes%20Motta%20formatado.pdf. Artigo coletado no dia 15/08/2007, as 14 horas. A versão impressa desse artigo encontra-se na Revista Justiça & História, Rio Grande do Sul, v. 4, nº. 7, p. 61-83, 2004. 54 Idem, p. 08. 55 Cf.: MUSUMECI, Leonarda. O mito da terra liberta: colonização ‘espontânea’, campesinato e patronagem na Amazônia Oriental. São Paulo: Edições Vértice, 1988.

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as práticas e os discursos jurídicos são produto do funcionamento de um campo cuja lógica específica está duplamente determinado: por um lado, pelas relações de força específicas que lhe conferem sua estrutura e que orientam as lutas de concorrência ou, mais precisamente, os conflitos de competência que nele têm lugar e, por outro lado, pela lógica interna das obras jurídicas que delimitam em cada momento o espaço dos possíveis e, deste modo, o universo das soluções propriamente jurídicas56.

A Lei, nessa forma de pensar, na sua significação prática, determina-se pela e na

confrontação entre diferentes corpos animados de interesses específicos divergentes, os quais

ocupam, mas não necessariamente, posições diversas na hierarquia interna do corpo que

forma o campo jurídico. A aplicação de uma regra estipulada por uma determinada Lei a um

caso particular é uma confrontação “de direitos antagonistas entre os quais o Tribunal deve

escolher”57. A escolha feita pelo Juiz é influenciada por outras regras retiradas de casos

precedentes. No entanto, como nunca há dois casos perfeitamente idênticos, cabe ao Juiz

“determinar se a regra aplicada ao primeiro pode ou não ser estendida de maneira a incluir um

novo caso”58. O Juiz tem uma certa autonomia de escolha que, por sua vez, define a sua

posição “na estrutura da distribuição do capital específico de autoridade jurídica”59. Em

exemplo supra citado, trato da substituição, em 1904, do Juiz da Comarca de Passo Fundo e

Soledade em função de ele estar reconhecendo registros Torrens fraudulentos. A partir das

constatações de Bourdieu, é possível melhor compreender tal substituição, visto que, segundo

informações do chefe da comissão verificadora de posses, C. Silva Silveira, depois da

mudança os pedidos de registro Torrens cessaram naqueles municípios. Então, era a

autoridade do referido Juiz que provinha da posição que ocupava dentro do campo jurídico

que conferia a ele poder para definir como legítimas posses notoriamente fraudulentas.

Em outros termos, o veredicto do Juiz devido ao seu papel social e ao seu poder de

resolver conflitos pertence, segundo Bourdieu, “à classe dos atos de nomeação ou de

instituição” e representa por excelência a “palavra autorizada, palavra pública, oficial,

enunciada em nome de todos e perante todos” 60. A capacidade dos agentes que atuam como

mandatários autorizados da coletividade de formular categorizações reconhecidas

universalmente são “atos mágicos”, já que conseguem que “ninguém possa recusar ou ignorar

o ponto de vista, a visão, que eles impõem”61. Por conseguinte, “o direito consagra a ordem

56 BOURDIEU, Pierre. A força do direito. Elementos para uma sociologia do campo jurídico. In.: ___. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p. 211. 57 Idem, p. 222. 58 Idem, ibidem. 59 Idem. 60 Idem, p. 236-237. 61 Idem, ibidem.

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estabelecida ao consagrar uma visão desta ordem que é uma visão do Estado, garantida pelo

Estado”, ele é “a forma por excelência do poder simbólico de nomeação”, que tem o poder de

criar as coisas nomeadas e “em particular, os grupos; ele confere a estas realidades surgidas

das suas operações de classificação toda a permanência (a das coisas) que uma instituição

histórica é capaz de conferir a instituições históricas”62.

Entretanto, o direito só faz o mundo social em função de ele ser feito por este. Só na

medida em que os atos simbólicos de nomeação formulados pelo direito e pelas leis estão

ajustados àquilo que caracteriza o mundo social de que fazem parte que “tais atos têm toda a

sua eficácia de enunciação criadora”63. Voltando ao caso do Juiz da Comarca de Passo Fundo

e Soledade, seus atos estavam tão de acordo com o contexto e as práticas sociais em que eles

aconteciam que os Registros por ele reconhecidos – mesmo fraudulentos – tornavam-se

legítimos, e a alternativa encontrada pelo Estado para combater tais atos foi transferi-lo para

outra Comarca, sendo que em momento algum a autoridade de nomeação do Juiz foi

questionada. Em outros termos, favorecer um grande proprietário em seus interesses de

apossamento de grandes áreas de terras não era considerado uma falha grave, pelo contrário, a

simples transferência do Juiz para uma outra Comarca dá a entender que ele apenas cometeu

um erro habitual desmerecedor de punições mais severas, por exemplo, seu afastamento do

cargo que exercia.

O campo jurídico, segundo Bourdieu, obedece a uma lógica relativamente autônoma

em relação aos outros campos. Em contrapartida, isso não impede que ele mantenha relações

fora de suas fronteiras, cuja importância é fundamental no modo como se desenvolvem e

definem “os meios, os fins e os efeitos específicos que são atribuídos à ação jurídica”64. Como

agentes responsáveis por produzir o direito ou aplicá-lo, os detentores do poder jurídico

mantêm afinidades com os “detentores do poder temporal, político ou econômico, e isto não

obstante os conflitos de competência que os podem opor”65. Tal proximidade e a afinidade

dos habitus, conectadas a “formações familiares e escolares semelhantes, favorecem o

parentesco das visões de mundo”, em conseqüência das escolhas que os integrantes do campo

jurídico têm de fazer “entre interesses, valores e visões de mundo diferentes ou antagonistas

têm poucas probabilidades de desfavorecer os dominantes”66. Assim, essa proximidade pode

definir o modo como o direito é aplicado e, por seu turno, explica por que, em muitos casos de

62 Idem. 63 Idem. 64 Idem, p. 242. 65 Idem, ibidem. 66 Idem.

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litígio envolvendo grandes proprietários contra posseiros pobres, os primeiros foram

favorecidos e obtiveram ganho de causa. Um exemplo é o caso acima relatado que aconteceu

na região de Jaguari em 1902, no qual Jacob Luiz Laydner, que não havia residido um só dia e

nem cultivado a área de 800 hectares requerida, cuja extensão era habitada há mais de 30 anos

por “pobres agricultores”, mas a partir do momento em que, mesmo de forma fraudulenta,

judicialmente as terras foram reconhecidas como de propriedade de Laydner, as pessoas que

nela residiam foram obrigadas a abandoná-las e tinham seus ranchos incendiados.

No relatório da SENOP de 1898, o secretário João Pereira Parobé comenta que o

grande problema da administração de terras não provinha do “pequeno posseiro ou do colono

que compra por preço exorbitante o lote que cultiva e de que tira os meios precisos e, às

vezes, escassos para sustentar a família”, mas dos especuladores “que chegam a formar

sindicatos para a compra de posses manifestadamente fraudulentas”67. Parobé comenta a

formação de comanditas68, voltadas a se apoderar de terras públicas “fantasiando posses cuja

legitimação conseguiam por meio das influências políticas”69 que possuíam. A prática de tais

associações, após conseguirem legitimar as posses, era vender as terras conseguidas aos

especuladores, os quais “apesar de não praticarem a fraude, não tinham, contudo, escrúpulo

de usufruir as vantagens que ela proporcionava, reputando por alto preço aquilo que haviam

adquirido por valor insignificante”70. No mesmo ano, no relatório da comissão verificadora de

posses de Santa Cruz, o chefe da mesma escreve que existiam as mais extravagantes notícias

a respeito das posses existentes naquela área, inclusive algumas diziam do “emprego da

acústica para determinar-se o comprimento das linhas”71 divisórias entre as propriedades.

Segundo informações do chefe dessa comissão, Francisco Smich, a fraude foi o meio

dominante pelo qual a propriedade definiu-se em Santa Cruz. Um dos estratagemas usados

pelos ditos especuladores era convencer “os posseiros verdadeiros, em maior parte leigos e

analfabetos” a vender suas posses “visto que a colonização se estendia cada vez mais à região

serrana”72. O avanço da colonização era argumento forte em função de que, de acordo com

67 PAROBÉ, João José Pereira. Relatório dos negócios de Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Presidente do Estado, Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, 1898. Manuscrito sem páginas. (AHRS - OP. 05) 68 “Espécie de sociedade comercial em que há um ou mais associados de responsabilidade ilimitada e solidária e um ou mais sócios capitalistas (comanditários) cuja responsabilidade não excede o capital subscrito”. Definição retirada do Dicionário da Língua Portuguesa On-line: http://www.priberam.pt/dlpo/dlpo.aspx em 12/09/2007 às 17h45min. 69 João José Pereira Parobé, 1898. Idem, op. cit. 70 Idem, ibidem. 71 SMICHI, Francisco José. Comissão verificadora de posses e de discriminação de terras públicas em Santa Cruz, 28 de Junho de 1898. In.: João José Pereira Parobé, 1898. Idem, op., cit. 72 Idem, ibidem.

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Smich, ela incomodaria os posseiros em seus labores tradicionais, já que “quase todos se

dedicavam ao fabrico de erva-mate e alguma criação”73. Mediante isso, argumentava Smich, e

devido, sobretudo, ao respeito que os posseiros tributavam àqueles que estavam interessados

na compra de suas posses, os quais “se intitulavam representantes do Governo e chefes

políticos das localidades e da época”74, muitas áreas foram vendidas e compradas. Assim,

legitimava-se “em nome do vendedor, áreas muito superiores a que à lei permite, e ficando em

alguns casos ao posseiro garantido a área de 50 ou 100 hectares, como prêmio do negócio

efetuado”75. Em outros casos, segundo informações do relatório, os posseiros ficaram

tolerados nas terras como arrendatários mediante o pagamento de uma anuidade76. Ainda

sobre os especuladores, o chefe da comissão de terras de Santa Cruz, escreve:

Os tais especuladores não esmoreciam diante de qualquer obstáculo, expunham-se a longas e penosas viagens, inventavam posseiros, faziam justificações de idades perante o juízo competente, mediam áreas enormes em nome de alguém e quando não conseguiam legitimação, subdividiam-se estas mesmas áreas em 3 ou 4 partes, simulando novas medições, conseguindo assim a obtenção dos respectivos títulos em nome de posseiros in nomine. Tudo isto passou-se por cima de todas as Leis, Regulamentos, Avisos e Instruções, desprestigiando o Governo, estabelecendo uma verdadeira anarquia, negociando o que não era seu, ilaqueando a boa fé de muitos, só podia ter bom êxito porque os interessados o faziam com muita astúcia e ardileza e contando com os poderosos auxílios dos agentes que tinham em toda parte, e sem medo de errar digo: até na Capital do Estado; se assim não fosse, como explicar o fato que certos zelosos funcionários passaram por alto nas informações que ministravam sobre tais legitimações desprezando completamente o que a legislação preceitua, despachando autos com rapidez, ao passo que outros ficavam retidos até por anos embora legais!77

No relatório do chefe da comissão de terras de Santa Cruz, são evidentes as críticas à

figura do especulador. Como escrevi acima, tais críticas, por um lado, estavam vinculadas ao

interesse de o Estado exercer controle sobre o processo de apropriação das terras devolutas. 73 Idem. 74 Idem. 75 Idem. 76 Este fato é importante e ilumina muito as questões relativas à forma como se deu a apropriação da terra no Brasil. Leonarda Musumeci, em seu já citado estudo, descreve situação idêntica a esta, mas para um período posterior e para o Estado do Maranhão. Nesse caso, a autora descreve como o prefeito do município de Poção das Pedras, Carlos Bastos, segundo os moradores da região, usocapiou 50 mil hectares de terras pertencentes ao município e instituiu um foro municipal que deveria ser pago pelos posseiros para garantir a propriedade das terras que ocupavam, sendo que “a verdadeira intenção de Carlos, segundo os camponeses teriam percebido a posteriori, era deixar o terreno livre para que ele próprio, associado a outros comerciantes fortes da área e aos ‘bacharéis de direito’, seus amigos, pudesse dar largada na grilagem”. A autora também descreve situações em que grandes áreas eram legitimadas por grileiros depois revendidas aos posseiros ou dadas em arrendamento. Cf.: Leonarda Musumeci. Idem, op. cit., p. 113-120. 77 SMICHI, Francisco José. Comissão verificadora de posses e de discriminação de terras públicas em Santa Cruz, 28 de Junho de 1898. In.: João José Pereira Parobé, 1898. Idem, op. cit.

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Por outro, também está o fato de que os especuladores auferiam grandes lucros na venda de

terras e o Estado não arrecadava nada dessas transações. Um aspecto que merece

consideração, neste sentido, é o de que à medida que o século XX avança, esse tipo de

acusação diminui. Nas fontes analisadas, a diminuição das fraudes é apresentada como

resultado do maior controle exercido pelo governo republicano sobre o processo de

apropriação.

Todavia, reconhecer a continuidade das fraudes, seria admitir a ineficácia do governo

para controlar uma questão, na maioria das vezes apresentada como de alta prioridade.

Sobretudo, seria reconhecer a existência de conflitos agrários, o que poderia ser

desinteressante do ponto de vista daqueles que estavam obtendo grandes vantagens com o

processo de privatização das terras devolutas. Assim, de um dado momento em diante, a

eficácia do governo republicano em discriminar o domínio público do privado passa a ser um

tema dominante nas fontes.

Tais informações não devem ser tomadas isoladamente, pois podem levar a conclusão

de que o Estado foi eficiente em sua ação de controle sobre o processo de apropriação de

terras. Contudo, os próprios relatórios também trazem indícios de que ele não se desenvolveu

de forma tão tranqüila e que a ausência de fraudes antes foi um ideal perseguido do que uma

prática efetiva. Em termos proporcionais, as fraudes passam a ocupar espaço muito pequeno

nos documentos comparativamente aos primeiros anos do governo republicano. Característica

que, por seu turno, não significa que na prática as burlas tenham diminuído ou deixado de

existir, apenas é mais difícil encontrar registros delas nos documentos oficiais, uma vez que

tal reconhecimento exigiria uma ação do Estado no sentido de regularizar a situação.

Por conseguinte, o discurso de que “graças às severas e continuas providências do

Governo, cessaram completamente as simuladas legitimações de posses artificiosas e os

múltiplos abusos que a caracterizam”78 passa a ser dominante a medida que o tempo avança.

O que faz pensar, visto a impossibilidade das fraudes terem desaparecido completamente de

uma hora para outra, que o Estado passa a lidar com elas de outra forma. Mediante a

impossibilidade de exercer um controle total sobre o processo de apropriação das terras

devolutas, o silêncio sobre as fraudes pode ser lido como uma forma de dar-lhes legitimidade

e, assim, favorecer os grandes proprietários e os especuladores que tinham frente ao Estado

um poder de barganha bem maior do que os lavradores pobres.

78 CASTILHOS, Júlio Prates de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Júlio Prates de Castilhos, na 4ª e última sessão ordinária da 2ª legislatura, 20 de Setembro de 1896. Porto Alegre: Tipografia de Cesar Renhardt, 1896, p. 23.

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As fontes igualmente trazem registros dos motivos que levavam a tamanho interesse

por discriminar o público do privado, pois “os lucros pecuniários que aufere o Estado da

venda de e suas terras aumentam na razão direta da sua crescente prosperidade agrícola”79

escrevia o Presidente Borges de Medeiros em 1898. Para uma idéia da importância desses

lucros, segundo dados constantes na mensagem de Medeiros, apenas a comissão verificadora

de posses de Santa Cruz havia reivindicado para o Estado uma área de 193.153.274 metros

quadrados de terras (19.315 hectares). As quais “calculadas aquém do seu justo valor, ainda

assim representam uma soma muito superior a 200:000$000 réis; ao passo que é de

28:048$694 réis a despesa feita pela referida comissão”80.

O serviço de discriminação trazia sérios problemas ao Estado, já que, à medida que a

propriedade ia sendo discriminada, descobriu-se que muitos indivíduos haviam comprado

áreas, geralmente pequenos lotes, de especuladores que tinham usado meios escusos para

legitimação. Da mesma forma, revelou-se que algumas colônias públicas haviam sido

fundadas em áreas que posteriormente foram requeridas como de “domínio privado”. Muito

provavelmente tal “domínio privado” era resultado de apropriações feitas ao arrepio das leis.

Para resolver o primeiro caso – o dos posseiros que haviam comprado terras de especuladores

–, o governo decidiu ceder os terrenos a seus ocupantes mediante a cobrança de uma

“razoável indenização arbitrada de acordo com o valor relativo das posses ou prazos

coloniais”81. O objetivo era, assim agindo, não agravar a situação dos “pequenos agricultores

que detêm hoje as ditas terras, por compras feitas em boa fé a particulares ou a associações

que exploravam no extinto regime esses bens do domínio do Estado”82. Em outras palavras, o

problema estava no Império, e ao invés de taxar os especuladores, o Estado taxava os

posseiros, logo, o argumento de “não agravar a situação dos pequenos agricultores”, assim

como o de que as fraudes eram coisas do passado imperial eram mera retórica. Quanto à

segunda problemática, a da fundação de colônias públicas em terras de “domínio particular”,

resolveu-se por indenizar os “legítimos proprietários” dessas áreas, que de legítimos muito

provavelmente não tinham nada, com outras terras situadas na região de matas do estado.

No ano de 1900, o montante total de terras que as diferentes comissões verificadoras

tinham restituído ao Estado somava em torno de 1.169.786.097 metros quadrados (116.978

hectares) havendo a possibilidade desse número ser aumentado em 990.636.142 metros

quadrados (99.063 hectares) que deveriam ser julgados. No entanto, não consta se esses 99

79 Antônio Augusto Borges de Medeiros, 1898. Idem, op. cit., p. 23. 80 Idem, ibidem. 81 Idem. 82 Idem.

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mil hectares foram realmente revertidos ao domínio público. A estimativa era de que o total

dessas terras que seriam vendidas sobre a base de um real por metro quadrado renderia aos

cofres públicos “a avultada cifra de 1.169:786$97 réis”83.

Em 1903, voltando à questão das indenizações que deveriam ser pagas por aqueles que

haviam comprado terras de “terceiros e fraudulentamente legitimadas”, o Presidente Borges

de Medeiros expede o decreto nº 596 de 10 de fevereiro, o qual isentava “os colonos nacionais

ou estrangeiros do pagamento de qualquer indenização ao Estado”84. Nos diferentes

documentos analisados, não consta exatamente o motivo que levou o Presidente a tomar a

decisão. No entanto, possivelmente ela advenha da resistência imposta por esses indivíduos

em pagar novamente por terras já pagas. Em 1906, novo decreto é expedido e dessa vez a

decisão é que aqueles que haviam feito pagamento de indenizações ao Estado, antes do

decreto de 1903, receberiam restituição dos montantes gastos85. Assim, os favorecidos pelo

decreto receberiam como compensação novas terras que estavam sendo demarcadas no

município de Passo Fundo e “quando a restituição fosse tão pequena que não possa constituir

a área de um lote colonial de 25 hectares, far-se-á em dinheiro, conforme o desejo dos

interessados e a própria conveniência do Estado”86.

Os problemas relativos à instalação de colônias públicas em “terras de particulares”

também passam a ser alvo de preocupação e, na sua mensagem de 1911, o Presidente do

Estado, Carlos Barbosa Gonçalves, descreve o modo como o problema era tratado. O governo

procurava resolver os casos de forma administrativa, dessa maneira nas questões propostas ao

Estado “acusado de ter invadido, com a colonização oficial, terras de propriedade particular,

temos chegado a acordo com muitos dos litigantes, mediante indenizações equivalentes de

terras devolutas, em pontos diversos, à escolha dos interessados”87. De acordo com Carlos

Barbosa, o local preferido pelos lesados era a região de Passo Fundo, devido à presença da

linha férrea que valorizava as terras. Na mensagem do ano posterior, o mesmo Presidente

83 MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 4ª sessão ordinária da 3ª legislatura, em 20 de setembro de 1900. Porto Alegre: Oficinas Tipográficas de A Federação, 1900, p. 24. 84 MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, em 20 de Setembro de 1903. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1903, p. 14 . 85 Cf.: MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 2ª sessão ordinária da 5ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1906. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1906, p. 17. 86 MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 3ª sessão ordinária da 5ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1907. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1907, p. 21. 87 GONÇALVES, Carlos Barbosa. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, na 3ª sessão ordinária da 6ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1911. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1911, p. 29.

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relata que as indenizações realizadas entre 1911 e 1912 somavam o total de 1.153.849.148

metros quadrados de terras (115.384 hectares), todas situadas na região de matas. Também

sublinhava que os trabalhos de indenizações e de discriminação era serviço ainda “para

algumas dezenas de anos”. Em 1912, cabe registrar, a área de terras devolutas do estado

contabilizava em torno de 30.000 quilômetros quadrados (3.000.000 hectares),

“aproximadamente a oitava parte do Rio Grande”, área constituída, em sua maior parte, por

terras de matas88.

O Presidente do Estado, Salvador Ayres Pinheiro Machado, em 1916, registra que o

número de reclamações feitas ao Estado pela ocupação de terras pertencentes a particulares

havia diminuído e que o valor aproximado das terras devolutas chegava a cerca de

90.000:000$000 réis89. No ano seguinte, Borges de Medeiros volta a tratar do assunto e

escreve que a região serrana era a principal área para onde estavam se dirigindo as populações

oriundas da imigração e também das correntes internas de migração provindas das colônias

velhas, ou daqueles que estavam recebendo indenização:

nestes últimos tempos, vai se fixando uma numerosa população de colonos nacionais e estrangeiros que, disseminados por vários núcleos florescentes, multiplicam-se e progridem com uma rapidez assombrosa. Tudo nessa região, fadada para ser nosso grande celeiro do futuro, facilita, estimula e recompensa prodigamente o trabalho do homem90.

Como é possível perceber, Borges de Medeiros deixa clara a intenção de que a região

deveria se constituir no celeiro do Rio Grande do Sul. Contudo, para que isso acontecesse, era

preciso, primeiro, por ordem na questão de terras e, para tanto, como venho demonstrando, o

discurso presente nas fontes é o de que era sumamente importante discriminar com a maior

precisão possível o público do privado e regularizar a situação fundiária. A intenção de

discriminar o público do privado foi efetivamente perseguida e, de modo geral, o Estado

atuou como carro chefe do processo, de modo a poder se afirmar que a região foi construída

pela ação do Estado. Entretanto, acreditar que o interesse em discriminar o público do privado

foi efetivado a partir do exercício de um controle sobre as fraudes, como algumas fontes dão a

88 GONÇALVES, Carlos Barbosa. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, na 4ª sessão ordinária da 6ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1912. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1912, p. 39-41. 89 MACHADO, Salvador Ayres Pinheiro. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Vice-presidente em exercício, General Salvador Ayres Pinheiro Machado, na 4ª sessão ordinária da 7ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1916. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1916, p. 44. 90 MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 1ª sessão ordinária da 8ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1917. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1917, p. 28.

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entender, é aceitar sem levantar maiores questões que no Rio Grande do Sul não havia nem

nunca houve conflitos no campo e que a propriedade fundiária no estado foi estabelecida

seguindo a risca os preceitos legais. Em outras palavras, é aceitar uma visão ideal de mundo e

realizar uma ordem social, cuja uma das principais características é escamotear que o

processo de ocupação de terras no Rio Grande do Sul foi benéfico apenas para uma pequena

parcela de sua população.

Um outro ponto que convém conhecer sobre o processo de povoamento da região

serrana diz respeito ao serviço de indenizações de particulares que alegavam que “suas terras

legítimas” haviam sido usadas pelo Estado para a fundação de colônias. Na documentação,

tais proprietários são definidos como pessoas que foram lesadas pelo Estado e, em sua maior

parte, eles receberam novas terras em troca daquelas que tinham sido utilizadas para fundação

de alguma colônia. Assim, como “a área de terras devolutas do Estado encontrava-se toda na

região norte”91, foi na região de matas, especialmente em Passo Fundo, onde eles receberam a

restituição. Em 1911, só neste município, haviam sido demarcadas e entregues 106.403

hectares de terras destinadas a resolver indenizações. Por sua vez, esta prática era responsável

por trazer uma outra série de problemas à administração, visto que os beneficiários

geralmente buscavam depreciar o valor das terras que recebiam em comparação à que haviam

“perdido” para, assim, garantir a aquisição de espaços maiores.

Outro fator a dificultar o acerto entre o Estado e os lesados dizia respeito à localização

das terras, visto que as escolhas sempre tendiam a ser por áreas melhor situadas. Entretanto,

em 1914, Torres Gonçalves registrava que muito dificilmente encontrar-se-iam terras de

domínio público que não fossem habitadas por intrusos e “a acomodação deles é sempre uma

operação laboriosa, que retarda os trabalhos de discriminação e a entrega das terras destinadas

às permutas”92. Diante da situação, o diretor da DTC sugere que era preferível realizar as

indenizações em dinheiro ou em apólices, o que tornaria as permutas mais econômicas para o

Estado, livraria os seus funcionários de fazer “uma tarefa fastidiosa”, apressaria o trabalho de

“regularização de milhares de intrusos tumultuariamente estabelecidos, o que constitui um dos

91 GODOY, Candido José de. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo secretário de Estado, Candido José de Godoy, em 08 de setembro de 1911. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1911, p. 09. (AHRS - OP. 25). 92 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 99. In.: PAROBÉ, João José Pereira. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 25 de agosto de 1914. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1914, p. 93-186. (AHRS - OP. 37).

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problemas mais urgentes a atender”93. Para uma idéia mais detalhada a respeito de como as

duas questões – intrusão e discriminação de terras – estavam imbricadas e o tipo de problema

que representavam, transcrevo um trecho do relatório da DTC de 1916, bastante esclarecedor:

neste Estado, não existem terras desembaraçadas da presença de posseiros e intrusos, senão em pequenas áreas, particularmente nas zonas mais valorizadas onde os permutantes fazem suas escolhas. A acomodação dos posseiros e intrusos é uma operação sempre onerosa e laboriosa, que retarda os trabalhos de discriminação e a entrega das terras das permutas. Freqüentemente, respeitadas as áreas dos posseiros e ocupantes, o líquido apurado para as indenizações fica muito reduzido. E pior ainda do que isto, muitas vezes, ultimada a demarcação e a permuta, entregues por fim as terras com todas as formalidades, ao cabo de 2 ou 3 meses, reaparecem os interessados, queixando-se de que novas levas de intrusos acabam de instalar-se nelas94.

Em conseqüência desses problemas, no relatório da DTC de 1924, consta que o

costume do “Estado indenizar indivíduos devido a ter estabelecido colônias em propriedades

privadas” continuava comum e, ao invés de oferecer “novas áreas aos lesados”, a

compensação estava sendo feita em dinheiro, porém “a prática de trocas por outras áreas não

havia desaparecido totalmente”95. Torres Gonçalves era a favor de que as indenizações fossem

feitas em dinheiro, uma vez que considerava perigosa a prática de expulsar intrusos de áreas

para serem destinadas a saldar dívidas do Estado. Alguns dos motivos que levavam o diretor

da DTC a tomar tal posição serão mais detalhadamente analisados no próximo tópico quando

dedicar-me-ei a pensar a intrusão de forma mais pormenorizada. Não obstante, entre expulsar

os intrusos das terras que ocupavam para usá-las para fins de indenização e pagar as

reparações em dinheiro, o diretor da DTC considerava a segunda opção mais condizente, visto

que a primeira poderia significar a emergência de conflitos.

Uma outra circunstância importante relacionada ao povoamento da região é o de que

interpretar a apropriação dos espaços de fronteira agrária a partir do estabelecimento de um

encontro entre duas lógicas opostas, sendo uma mais próxima ao capitalismo – grandes

proprietários, empresas e o próprio Estado – e outra divergente – pequenos posseiros,

intrusos, colonos, etc... – dificulta pensar às peculiaridades e diferenças que caracterizam não

só a ocupação, mas a noção de espaço peculiar a cada grupo, a forma como ocorreu o 93 Idem, ibidem. 94 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 122-123. In.: Protásio Alves, 1916. Idem, op. cit., p. 111-212. 95 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 483. In.: PINTO, Ildefonso Soares. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Engenheiro Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 15 de agosto de 1924. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, Volume 2, 1924, p. 477-511. (AHRS - OP. 77).

- 215 -

povoamento e as relações mantidas entre os indivíduos que atuaram no processo e disputaram

o território96. Em outras palavras, embora os grupos que se envolveram no povoamento

fossem economicamente desiguais, tivessem diferentes tipos de relação com o Estado e a

sociedade envolvente, nenhum deles vivia em completo isolamento, conseqüentemente, todos

não estavam isentos de reproduzir em contexto local comportamentos peculiares à sociedade

da qual faziam parte.

Assim, parte das pessoas que viviam na região e que viram, de uma hora para outra, o

Estado ou particulares chegarem e se dizerem donos das áreas onde há tempos elas residiam,

nas palavras de Torres Gonçalves, eram “quase sempre ignorantes das leis e regulamentos de

terras”, mas em alguns casos desejavam “ser proprietários e trabalhavam para conseguirem

isso”97. Em outros eram “verdadeiros negociantes, servindo-se da propriedade do Estado para

suas transações de benfeitorias, revendidas muitas vezes”98. Ou seja, muitos deles poderiam

não conhecer as leis, porém isso não significava que vivam num mundo a parte.

Nessa perspectiva, encontrei um processo crime99 datado de 1923, ocorrido na

Comarca de Santo Ângelo que, em linhas gerais, descreve como acontecia a inserção dos

grupos “mais pobres” na ocupação das terras e na discriminação dos domínios público e

privado. Segundo consta no processo crime Antônio Pacheco, agregado de Silvino José

Vargas foi obrigado a retirar-se de sua casa que foi em seguida incendiada. Silvino José de

Vargas (brasileiro, casado, residente no quarto distrito de Santo Ângelo, lugar denominado

Limeira, patrão de Antônio Pacheco), abre queixa contra Procópio Francisco Fraga, Edgar

Francisco Fraga, João Luiz Gonçalves e Gaudêncio Hipólito, residentes no mesmo distrito,

acusando-os de expulsarem e atearem fogo na casa de seu agregado.

Procópio Fraga, (51 anos de idade, casado, criador), declara em interrogatório ser

inocente em relação ao ato, visto estar na Vila de Santo Ângelo no momento em que ocorreu

o crime. Francisco Fraga, filho de Procópio, (com 21 anos de idade, solteiro e criador),

também declara inocência, pois afirma que estava acompanhando seu pai no momento do

crime. Segundo o testemunho dado em julho de 1923 por Hilário Martins Pinto, (60 anos,

96 Para Leonarda Musumeci, as interpretações sobre a ocupação de regiões de fronteira realizadas a partir da contraposição entre duas lógicas opostas compõem “uma visão (ou versão) parcial, que realça algumas dimensões da realidade e omite ou deixa em segundo plano outras, não menos importantes. E que, aos se erigir em modelo genérico de análise, passa também a construir a realidade dos confrontos radicais, a legitimá-los como objeto exclusivo e a só selecionar do real os elementos que reafirmem o estatuto teórico e político das ‘grandes questões’, elidindo ou subestimando outros processos e fatores muitas vezes mais decisivos para entendimento das situações concretas do que tais ‘grandes questões’”. (grifos da autora) Cf.: Leonarda Musumeci. Idem, op. cit., p. 40-41. 97 Carlos Torres Gonçalves, 1914. Idem, op. cit., p. 158-159. 98 Idem, ibidem. 99 APERGS. Processos Crime 1.563. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1923. Maço 56.

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viúvo, criador), João Luiz Gonçalves (com idade ignorada, casado, agricultor) e que no

processo é identificado como agregado de Procópio Fraga, contou-lhe, em dia posterior ao

crime, que Procópio Fraga havia determinado que ele (João) o acompanhasse até o rancho de

Antônio Pacheco, o qual pretendia incendiar, porém “a isto se negou dizendo que não

auxiliaria no crime, mas, apenas podia assisti-lo visto que era seu peão”100. Em seu

depoimento, datado de novembro de 1923, João Luiz nega a versão de Hilário e diz nunca ter

conversado com ele sobre o caso, e que Procópio nunca lhe havia ordenado ir até o rancho de

Pacheco. Devido à contradição entre os dois depoimentos, é requerida uma confrontação entre

as duas testemunhas, entretanto eles mantêm suas versões.

A versão de Antônio Pacheco, (33 anos de idade, jornaleiro) é a seguinte: disse que

“morava em um rancho de capim e paredes de barro, sito em campos de propriedade de

Silvino”, que numa manhã de fevereiro de 1923, chegou ao seu rancho Procópio Fraga, que

“lhe perguntou com que ordem o depoente ali morava, tirava madeira dos matos e fizera

lavoura”, ao que respondeu que “por ordem de seu patrão, Silvino Vargas”. Diante da

resposta, Fraga respondeu que os referidos campos não eram de Silvino, mas sim dele. No

mesmo dia, pelas quatro horas da tarde, Procópio, “acompanhado de seu filho Edgar

conhecido como Nenê, Gaudêncio de tal e um tal João Doce, cujo nome verdadeiro o

depoente não sabe” chegaram a seu rancho. Nesse momento, Procópio, de revólver em punho,

após perguntar a Antônio se já havia desocupado o rancho, recebendo resposta negativa,

apeou de seu cavalo e, seguido por seus companheiros, todos armados de revolver e espada,

agrediram Antônio e exigiram que ele desocupasse o rancho imediatamente. Assim, diante a

atitude ameaçadora de seus agressores, Antônio “não lhes opôs resistência alguma, tendo

apenas tirado um colchão e uma lata contendo banha, quando o rancho ia caindo, pois João

Doce havia cortado com um machado os respectivos esteios”101. Em seguida, o rancho foi

incendiado e o “depoente ficou no campo com sua amásia Diamantina Ramoni, sendo mais

tarde, às oito horas da noite, recolhidos à casa de seu patrão”102.

No depoimento de João Luiz Gonçalves, aparecem alguns outros elementos

importantes, tanto para entender a situação quanto o contexto em que ela aconteceu: ao ser

perguntado pelo advogado de defesa de Procópio Fraga se o rancho de Antônio estava ou não

nos campos fechados de Procópio, João responde que sim. Ou seja, o que está em jogo é

propriedade destes campos, visto que Silvino, o autor da queixa e patrão de Antônio, alegava

100 Idem, ibidem. 101 Idem. 102 Idem.

- 217 -

que aqueles campos eram seus. O mesmo advogado faz uma pergunta mais esclarecedora

ainda, visto ter acontecido em 29 de novembro de 1923 e o processo ter sido aberto em abril

do mesmo ano: “perguntado se o depoente conhece o preto Antônio Pacheco (...) e se pode

informar quem seja ele e onde mora atualmente?”103 Isto é, sete meses após ser aberto o

processo e terem sido questionadas uma série de testemunhas, aparece a cor de um dos

envolvidos e ela é lembrada exatamente pelo advogado de defesa. João responde que conhecia

Antônio porque o tinha visto duas vezes e “não sabia quem ele seja nem onde mora hoje”104.

Na mesma data, novembro de 1923, Hilário Pinto é chamado a depor novamente e

dessa vez o advogado de defesa pergunta-lhe se os campos onde estava o rancho eram ou não

cercados por Procópio, o que respondeu afirmativamente. Também lhe é perguntado “se

conhecia o preto Antônio Pacheco” e se podia dizer quem era ele. Sua resposta é que o

conhecia “agora e que esse negro é novato lá, portanto, não pode dizer quem ele é”105.

Conforme Hilário, naquele momento Pacheco estava morando em Espimilho, um outro

distrito de Santo Ângelo. Cabe perguntar por que no primeiro depoimento de Hilário, em que

não há a presença do advogado de defesa, não há menção à cor de Pacheco, mas no segundo

sim?

Um outro depoimento ajuda a compreender o fato. Artur Motta (com 33 anos, casado,

funcionário público, testemunha de defesa), também afirma que os campos onde estava o

rancho eram cercados por Procópio. Descreve que o rancho tinha mais ou menos uns três

metros de comprimento, um metro e meio de largura, “era coberto de capim, beira no chão e

de paredes de ramas murchas”106. Motta confirma que Procópio, no dia do crime, estava na

Vila de Santo Ângelo e que pernoitou em sua casa. Quando é perguntado se “conhecia o preto

Antônio Pacheco e se podia informar quem seja ele?” Artur responde que conhecia e que

antes de ele ir “para o quarto distrito onde morava de agregado de Silvino Vargas, residiu no

oitavo distrito, de onde foi expulso pelas autoridades dali por ser gatuno contumaz e de mui

péssimos costumes”107. No seu depoimento, Motta também relata que Silvino havia lhe

contado que “tinha feito aquele rancho para garantir uma posse que estava sendo disputada

por Procópio” e que fora o próprio Silvino quem havia incendiado o rancho e atribuía a culpa

a Procópio para “fazer mal àquele”108. Outras testemunhas são arroladas, mas as versões não

103 Idem. 104 Idem. 105 Idem. 106 Idem. 107 Idem. 108 Idem.

- 218 -

mudam e, em dezembro de 1923, após análise do processo, o Juiz considera improcedente a

denúncia por falta de provas que legitimassem a acusação.

O processo crime traz informações interessantes sobre o movimento de apropriação de

terras na região, visto que além de mostrar as disputas locais pela propriedade evidencia como

os grupos “mais pobres” poderiam entrar nela e, nesse caso, a atuação de Antônio Pacheco é

esclarecedora. Um primeiro ponto que chama atenção é que Pacheco é procedente de um

outro distrito e, a convite de Silvino José Vargas, se estabelece como agregado em uma posse

que estava em disputa. Outro é o de que, segundo a acusação, Procópio também interessado

na propriedade desta posse, expulsa Pacheco e incendeia o rancho onde ele morava. Um outro

é que Antônio segue adiante e, no decorrer do tempo, segundo consta no processo crime, tinha

se mudado para um outro distrito onde, provavelmente, também havia se instalado como

agregado. Um quarto ponto interessante do processo crime é o da cor ausente e presente, uma

vez que ela prepondera justamente quando o advogado ou as testemunhas de defesa querem

criminalizar Pacheco. Enfim, um último aspecto que deve ser destacado diz respeito aos

motivos que levavam Antônio Pacheco a agir da forma como agiu na situação, pois seria

muito precipitado, ingênuo até, considerar que em meio a tudo isso o “preto Antônio

Pacheco” era um ignorante e tenha atuado apenas como massa de manobra.

Assim, sejam quais forem os motivos de Antônio, no que diz respeito aos resultados

do povoamento, as vantagens auferidas por fazendeiros como Procópio e Silvino, que usavam

dos mais diferentes estratagemas para se apossarem de terras públicas, foram e são, diante do

que aconteceu com Pacheco, questionáveis. Por fim, um último problema para o qual chamo

atenção é o de que mais apropriado do que descrever as ações de pessoas como Antônio

Pacheco como práticas de homens ingênuos que atuaram em benefício de interesses alheios, é

importante pensar tais ações como resultado de escolhas racionais. Em outros termos,

escolhas de pessoas que pertenciam ao seu tempo, o viveram a partir de sua inserção social e

das possibilidades que o contexto do qual elas participavam oferecia.

Aqui é importante destacar que os conflitos por terra não se resumiam ao embate entre

a camada “mais rica” e a “mais pobre” da população local, mas eles aconteciam dentro desses

grupos. Em 1916, por exemplo, no segundo distrito do município de Santo Ângelo, ocorreu

conflito entre Leopoldino de Oliveira Bueno e Lúcio Soares Siqueira, cujo motivo era as

divisas de seus “roçados”. Segundo depoimento de Policarpo Antônio Rodrigues (com 47

anos de idade, solteiro, jornaleiro, natural do Rio Grande do Sul) que presenciou a briga, os

contendores e ele estavam se dirigindo a uma carreira de cavalos, quando Leopoldino e Lúcio

começaram a conversar sobre uma roça que Leopoldino havia mandado fazer em um mato

- 219 -

próximo aonde eles se encontravam, no qual Lúcio também possuía um roçado. De acordo

com Policarpo, em um dado momento da conversa

Lúcio perguntou a Leopoldino se a roça que mandou fazer era nos matos que contornava as suas plantas ou não; que Leopoldino respondeu já com maus modos; é ali naquele mato, você não enxerga, está se fazendo de tolo; que ele testemunha ouviu o denunciado [Lúcio] perguntar à vitima [Leopoldino], mas a roça que fez é para dentro dos meus fechos ou para fora; que a vitima respondeu que era para dentro; que tanto direito tinha um como outro naquele terreno; que o denunciado então respondeu a vitima, então voceis são uns atrevidos não respeitam a propriedade de ninguém, deviam respeitar meus feichos; que a vitima perguntou ao denunciado, então você é o tutu aqui, foi você que mandou arrancar uns esteios que eu finquei ali; que o denunciado respondeu que não foi ele quem mandou arrancar e sim as autoridades; que a vitima insistindo, disse ao denunciado, foi você mesmo ruivo. Fala ruivo: você quer ser o tutu daqui e atravessou o cavalo na frente do denunciado; que o denunciado vendo-se atracado puxou na rédea do cavalo e apeou-se e arrancou de um facão que trazia consigo; que a vitima quase ao mesmo tempo também apeou-se e de revolver em punho investiu contra o denunciado109.

Se na primeira situação descrita, Silvino Vargas e Procópio Fraga, cuja riqueza é

evidenciada durante o processo, especialmente no caso de Procópio que em depoimento diz

ter ido de sua propriedade a Vila de Santo Ângelo em automóvel próprio – coisa muito rara na

região, portanto, um indício de que era possuidor de um certo capital econômico – no segundo

exemplo temos dois pequenos lavradores disputando espaço para realizar suas plantações.

Comparativamente os processos indicam que a disputa pela terra perpassava todas as camadas

sociais e que o uso da violência física era um dos meios utilizados para regular tais contendas.

Afirmar que a violência estava presente nas relações sociais e era uma maneira de

regular as tensões sociais não significa postular que ela é um dos elementos centrais e

constituintes de uma suposta “cultura rural brasileira” como definem alguns autores110.

Diferentemente, deve-se pensar esta violência como reflexo do próprio contexto, uma vez que

se trata de uma região onde os aparelhos de Estado responsáveis por regular a violência ainda

não estavam consolidados ou eram utilizados em beneficio próprio pelos grupos dominantes

locais, a partir de práticas que a historiografia define como coronelísticas111. Principalmente,

deve-se levar em conta um fato para o qual já chamei atenção em capítulo anterior, qual seja:

109 APERGS. Processo Crime nº 1.422. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1916. Maço 48. 110 Um exemplo deste tipo de interpretação pode ser encontrado em: FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: UNESP, 1997.. 111 Sobre esta questão, verificar: LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o municipio e o regime representativo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997. No caso especifico do coronelismo na região, ver: Loiva Otero Félix. Idem, op. cit. e ARDENGHI, Lurdes Grolli. Caboclos, ervateiros e coronéis: luta e resistência no norte do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: UPF, 2003.

- 220 -

o de que os grupos rurais guardam uma certa desconfiança a respeito dos aparelhos de estado,

especialmente dos órgãos de justiça.

Por sua vez, isto também não significa que o grupo “mais pobre” não acionasse os

meios legais quando de seu interesse, pelo contrário, encontrei muitos processos crimes, cuja

base era o fato de que um dos envolvidos havia movido processo judiciário contra outro. Um

exemplo elucidativo ocorreu no 1º distrito do município de Palmeira das Missões, lugar

denominado Potreiro Bonito, em novembro de 1889. Neste caso, Estevão Ribeiro do

Nascimento (com 40 anos de idade, casado, natural do Paraná, negociante) relata em seu

depoimento que estava “em monjolo em serviço de erva e aí foi agredido por Valentim

Rodrigues Duarte [43 anos de idade, casado, lavrador, brasileiro do município de Alegrete,

analfabeto]”112. O motivo da agressão foi o de que Estevão estava “demandando

judicialmente” uma porção de terras de matos com Valentim. Marcelina Marques do

Nascimento (30 anos de idade, casada, moradora do 1º distrito, esposa de Estevão) afirma em

seu depoimento que

seu marido já a tempo, isto é, a um ano e meses comprou de Valentim uma posse de matos, como Valentim ainda a pouco tempo não lhe tivesse documentado, seu marido procurou a realização do referido negócio, porém Valentim nessa ocasião negou-se pondo dúvida no negócio que fizeram e daí para cá ficaram inimigos por ter Estevão procurado a justiça para por meio realizar seu negócio, e que daí para cá ela testemunha sempre ouvia dizer que Valentim prometia matar a seu marido113.

Embora Estevão se identifique no processo como negociante, os depoimentos

evidenciam que não se tratava de um representante da elite comercial palmeirense, pois

negociava erva-mate que ele próprio fabricava em “seu monjolo”. O fato de beneficiar erva

em monjolo indica também que produzia em pequena escala, situação que mostra a existência

um certo equilíbrio econômico entre ele e Valentim. O processo demonstra, igualmente, o

quanto a utilização dos meios legais para dirimir conflitos poderia ser motivo para tornar as

contendas ainda mais graves, ou seja, mais um motivo a justificar a pouca procura por parte

da população local dos órgãos de Estado para intermediar suas questões.

De um modo geral, as situações até o momento analisadas são algumas das questões

presentes no cotidiano do processo de privatização das “terras devolutas” existentes na região

serrana. Assim, se por um lado, temos o Estado atuando como carro-chefe do processo e

fazendo um enorme esforço para manter um controle sobre ele, especialmente sobre as rendas

112 APERGS. Processos Crime 28A. Cartório Civil Crime. Município de Palmeira das Missões, 1889. Maço 03. 113 Idem.

- 221 -

que poderiam advir da venda das terras públicas, bem como desenvolvendo toda uma

legislação que, ao fim e ao cabo, favoreceu apenas uma pequena parcela da população

regional. Por outro, também temos as pessoas que vivenciaram todo esse processo, bem como

o conjunto de relações sociais originárias e peculiares ao desenvolvimento do povoamento.

Em outros termos, tudo somado resulta na constituição de uma sociabilidade específica, na

qual a terra toma o lugar central, pois, se para o grupo “mais rico”, ela era meio de

especulação e de manutenção de um certo status social, para o grupo “mais pobre”, ela era

meio de sobrevivência e de manutenção de um modo de vida particular, daí os vários conflitos

relacionados a sua aquisição.

4.2 COLONIZAÇÃO E INTRUSÃO: AS MÚLTIPLAS FACES DO MESMO PROCESSO Raríssima... a invasão selvagem dos particulares às florestas do estado, quer em cortes de madeira, quer em colheita de erva mate. No entanto, a fiscalização... tem de ser contínua e assídua. Deste modo, não se teve a registrar novas apreensões de madeira clandestinamente derrubadas nos matos do Estado... Outro tanto não se pode dizer com relação aos decantados intrusos... Estes vêm principalmente das colônias antigas, onde a população se torna densa e a terra demais dividida, cara. Entram em todas as terras, quer sejam colonizáveis, quer sejam em florestas reservadas fazendo logo ranchos e derrubando matos para roças. Às vezes compra de sertanejos que já aí habitavam, as capoeiras, os pretendidos direitos que lhes convencem ter. Por sua vez, este sertanejo que vendeu as capoeiras e os direitos é um novo intruso... De modo que a repressão deste abuso tem de ser feito um tanto rápida e às vezes um tanto violenta, com a derrubada dos ranchos e obrigar-se mesmo a retirada imediata dos ocupantes.

Lindolfo Silva, 1915. Fiscal florestal de Passo Fundo, Lagoa Vermelha e Palmeira das Missões.

O trabalho de discriminar o domínio público do privado, que estava na base dos

serviços de colonização, fazia vir à tona, ou melhor, elaborava o problema da intrusão114. Isto

é, o problema daquelas pessoas, geralmente lavradores pobres, que haviam se estabelecido em

114 Sobre a categoria, Paulo Zarth escreve: “algumas fontes denominam intruso ao camponês que ocupava terras públicas ou privadas sem consentimento prévio das autoridades ou de proprietários”. Cf.: Paulo Zarth. Do arcaico ao moderno. Idem, op. cit., p. 170.

- 222 -

terras do Estado, “particulares”, ou que no decorrer do povoamento tornaram-se particulares,

sem a intervenção do Estado ou dos proprietários e, principalmente, sem pagar pelas terras

que ocupavam. De acordo com as fontes, intruso era o indivíduo que, independente de sua

origem social ou étnica, não se enquadrava nos termos da lei de terras estadual de 1899. Era

uma pessoa que havia se estabelecido em um espaço territorial em data posterior à

Proclamação da República, mais precisamente após o momento em que os chefes das

Comissões Verificadoras115 fixassem editais proibitivos à intrusão.

Segundo Torres Gonçalves, eram três os motivos que estavam na base da intrusão: 1º)

o abandono em que havia ficado a zona de matas em função de durante longo período as

atividades no Rio Grande do Sul estarem concentradas na campanha; 2º) o movimento

revolucionário – Revolução Federalista – que aconteceu entre 1893-1895 do qual muitas

pessoas buscaram escapar penetrando na região florestal; 3º) a grande corrente imigratória que

havia entrado no estado entre 1908-1914 quando da vigência do acordo com o Povoamento do

Solo116. Por conseguinte, ponderava o diretor da DTC, a intrusão tinha se tornado um hábito e

havia se avolumado “à medida do rápido crescimento da população colonial que tendo se

constituído sempre viveiro de agricultores ascende hoje a mais de terça parte da população do

estado”117.

Inicialmente, uma das principais medidas tomadas para discriminação de terras era a

criação das Comissões Verificadoras as quais, quando instaladas, uma das primeiras ações era

afixar os referidos editais e, assim, criar a intrusão e os intrusos. Ato prático que carrega um

conteúdo simbólico e, como ato de nomeação, formula categorizações: elabora o mundo ao

impor ou tentar impor sua visão de mundo118. Assim, em 1919, quando “a zona das matas

devolutas do norte do estado achava-se repartida entre comissões de terras e colonização que

atendem aos interessados, foram largamente afixados editais, mediante a prévia autorização

presidencial”119. Os editais tratavam de quatro pontos em específico: 1) que estavam sujeitos a

despejo e perda completa de benfeitorias todos os indivíduos que haviam se estabelecido nas

áreas sob responsabilidade das comissões verificados após a fixação dos editais proibitivos à

intrusão; 2) que o Estado, quando resolvesse fazer a divisão em lotes das terras ocupadas por

pessoas estabelecidas após os editais, não levaria em conta as benfeitorias construídas e as 115 Instituição criada pelo Decreto nº 95, de 05 de Março de 1897. As comissões funcionaram até março de 1905, quando foram extintas por decreto do Presidente do Estado. Elas tinham tarefa de controlar e administrar o processo de apropriação das terras devolutas no Rio Grande do Sul e estavam subordinadas a Diretoria de Terras e Colonização. 116 Carlos Torres Gonçalves., 1919. Idem, op. cit. p. 351. 117 Idem, ibidem. 118 Cf.: Pierre Bourdieu. O poder simbólico. Idem, op. cit. 119 Carlos Torres Gonçalves, 1919. Idem, op. cit., p. 352.

- 223 -

terras só lhes seriam concedidas a preço corrente e mediante pagamento de 50% de seus

valores; 3) que os ocupantes anteriores aos editais deviam permanecer nas terras e aguardarem

a demarcação dos lotes; 4) que o Estado não recusaria terras a nenhum agricultor que as

desejasse, mas para tê-las deveria procurar as comissões verificadoras para que lhes fossem

designados lotes e, quando não tivessem dinheiro para pagá-las, poderiam saldar suas dívidas

mediante prestação de serviços na construção de estradas e caminhos. Trabalho do qual só

poderiam se afastar mediante licença escrita e para realizar serviços relativos a suas lavouras

ou “outras obrigações imperiosas”120.

À primeira vista, pode parecer que o Estado estava sendo justo, já que, de acordo com

o texto dos editais, não exercia um despejo puro e simples, mas oferecia terras aos

agricultores – leia-se intrusos – que as desejassem e ainda facilitava o pagamento das mesmas

com a prestação de serviços nas estradas. No entanto, ao se levar em conta que os intrusos

eram por direito os verdadeiros donos das terras que ocupavam visto residirem nelas, como

reconhece o próprio Torres Gonçalves em seus relatórios, desde tempos bastante anteriores ao

estabelecimento das comissões verificadoras ou seguiam o processo descrito na epígrafe

acima, não há como negar a arbitrariedade da ação. Também, deve se levar em conta que

eram os funcionários responsáveis pelas comissões verificadoras que teriam a última palavra

– quem definia se uma pessoa era intrusa ou não geralmente eram os chefes das comissões ou

das colônias e estes, como veremos dentro em pouco, não eram tão confiáveis assim.

* * *

Antes de seguir adiante na análise da intrusão e da colonização, entendo ser necessário

conhecer a atuação de Carlos Torres Gonçalves como diretor da DTC, uma vez que ela foi

definidora do processo de colonização. O povoamento da região estudada aconteceu sob a

coordenação dele, que, de 1909 a 1928, esteve à frente da DTC e tentou colocar em prática os

preceitos da lei de terras estadual de 1899 e seus regulamentos, antes discutidos.

Carlos Torres Gonçalves nasceu em 1875 no município de Rio Grande, onde morou

até os 12 anos quando, após a morte do pai, mudou, juntamente com sua mãe e irmãos, para o

município de São Leopoldo. Ali iniciou seus estudos em colégio religioso dos padres jesuítas.

Em 1894, transfere-se para a cidade de Ouro Preto, onde pretendia se matricular na Faculdade

de Engenharia, mas como a instituição direcionava os estudos para área de engenharia de

120 Idem, ibidem.

- 224 -

minas, Torres Gonçalves desiste da idéia inicial e passa a se preparar para ingressar na Escola

Politécnica do Rio de Janeiro. Em 1895, ingressa nessa escola e, três anos depois, termina sua

formação em engenharia civil. No ano de 1899, Torres Gonçalves ingressa, por meio de

concurso público, nos quadros da SENOP com o cargo de 2º condutor. Três anos depois, é

promovido ao cargo de ajudante e, em 1906, a chefe de seção. Permanece nesse cargo por três

anos quando, novamente por concurso público, em 1909, chega ao cargo de diretor da DTC,

no qual permaneceu até 1929, quando a diretoria é extinta por Getúlio Vargas, que a um ano

havia sucedido Borges de Medeiros na presidência do Estado121.

Outra data importante na vida de Torres Gonçalves é o ano de 1903, quando foi

admitido para Igreja Positivista do Brasil. De acordo com Paulo Pezat, foi exatamente a forte

ligação com o positivismo religioso que garantiu a permanência de Torres Gonçalves à frente

da DTC durante tanto tempo122. Mesmo que, durante o período, a SENOP tenha ficado sob

responsabilidade de diferentes secretários, alguns dos quais, inclusive, tinham divergências

com Torres Gonçalves. Nas palavras de Pezat, a presença de Torres Gonçalves e outros

positivistas religiosos nos quadros da SENOP garantia uma “certa reserva moral” para os

positivistas políticos ligados ao PRR e que administravam o Estado. Igualmente, serviam

como elo de ligação do Estado com a Igreja Positivista Brasileira e seus membros,

principalmente Teixeira Mendes e Miguel Lemos. Relação considerada importante, visto a

grande influência do positivismo no contexto da Primeira República, especialmente nos

primeiros anos do regime.

Enquanto diretor da DTC, a principal tarefa de Torres Gonçalves foi administrar o

processo de povoamento e colonização da região de matas do estado, a busca de uma

definição ao problema da propriedade fundiária e a gerência dos assuntos vinculados à

proteção dos indígenas e localização dos nacionais, visto que, como sublinhei no capítulo

anterior, a atuação do SPILTN no Rio Grande do Sul estendeu-se de 1910 a meados de 1911,

quando a secretaria foi transferida para Santa Catarina. Com a transferência da secretaria para

o estado vizinho, ficou sob a gerência do SPILTN apenas a reserva do Ligeiro, situada no

município de Passo Fundo, cabia a Torres Gonçalves, portanto, os assuntos relacionados aos

outros 11 toldos existentes.

121 As informações aqui utilizadas são retiradas de: PEZAT, Paulo Ricardo. Carlos Torres Gonçalves, a família, a pátria e a humanidade: a recepção do positivismo por um filho espiritual de Augusto Comte e de Clotilde de Vaux no Brasil (1875-1974). Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2003. (Tese de Doutorado) e CASSOL, Ernesto. Carlos Torres Gonçalves: vida, obra e significado. Erechim: Editora São Cristóvão, 2003. 122 Paulo Pezat. Idem.

- 225 -

Acerca da influência do positivismo sobre a atuação de Torres Gonçalves, ela é visível

ao longo dos relatórios nos quais as menções a tal teoria são constantes. Um exemplo

encontra-se no relatório de 1916 quando, ao tratar da organização DTC, escrevia que os

trabalhos conexos a 1ª seção da diretoria, relativos ao problema da discriminação das terras,

tinham por tarefa dar ordem à propriedade territorial. Para a 2ª e 3ª seções, responsáveis pelas

atividades vinculadas à colonização, às florestas e à agropecuária cabiam os trabalhos

condizentes com o progresso. Assim, ponderava que a ordem e o progresso são sempre

intimamente conexos: “onde quer que se desenvolva a ordem, estimula-se o progresso; e onde

se promove o progresso, consolida-se a ordem. Em suma, o verdadeiro progresso não é senão

o desdobramento da ordem correspondente”123.

Como grifei, as referências ao positivismo são comuns ao longo dos relatórios da DTC

e também das mensagens dos presidentes. Elas são usadas nas mais diferentes situações e,

geralmente, são empregadas como justificativas a algum projeto político ou para fundamentar

os possíveis resultados da aplicação de algumas políticas públicas. No relatório de 1914, por

exemplo, ao tratar sobre regime de propriedade adotado no Rio Grande do Sul, o Diretor da

DTC define-o como “não normal”, pois era o do pequeno agricultor. O “normal” era,

portanto, “o da grande indústria, em agricultura, como em qualquer outro ramo da atividade

humana”124. Segundo Gonçalves, apenas a grande propriedade poderia utilizar, de modo

satisfatório, as máquinas, bem como “as capacidades diretoras, sempre raras em nossa

espécie”125. Ele estipulava que o regime colonial deveria ser provisório. Entretanto, mesmo

que considerasse a pequena propriedade como provisória e anormal, Torres Gonçalves

entendia que ela era de suma importância, uma vez que tinha a tarefa de “na quadra social que

atravessamos, deixar o proletariado agrícola que sob ele vive, liberto dos abusos maiores do

industrialismo contemporâneo”126.

Em outros termos, o princípio positivista de incorporação do proletariado à sociedade

onde se encontrava acampado é utilizado por Torres Gonçalves para explicar o porquê de a

colonização ser realizada daquele modo. Da mesma forma, baseado no princípio positivista do

prover para prever, Gonçalves fazia uma previsão de futuro segundo a qual, com o passar do

tempo e a partir do desenvolvimento da sociedade, o grande número de pequenas

123 Carlos Torres Gonçalves. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, 1916. In.: Protásio Alves. Idem, op. cit., p. 133. 124 Carlos Torres Gonçalves, 1914. Idem, op. cit., p. 106. 125 Idem, ibidem. 126 Idem.

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propriedades existentes nas regiões coloniais fundiriam-se e, definitivamente, o regime de

propriedade seria normal:

à medida que se for tornando possível a grande indústria agrícola na região colonial do estado, não será tão difícil quanto geralmente se imagina conseguir-se a fusão das duas ou três centenas de milhar de pequenas propriedades agrícolas, que então existirão, em número limitado de grandes propriedades rurais, por livre assentimento de todos os interessados e reconhecimento dos benefícios maiores que passarão a gozar. O exemplo dos trusts da quadra anárquica que atravessamos, os quais representam uma concentração até exagerada das indústrias, e por motivos egoístas, não pode deixar dúvida quanto à possibilidade futura de uma concentração limitada e baseada em motivos de ordem social, como aquela a que nos referimos127.

Como fica visível nas citações, um dos objetivos de Torres Gonçalves era, com a

colonização, incorporar os “proletários agrícolas”, bem como protegê-los do industrialismo

que caracterizava a época. O Industrialismo, nas palavras do Diretor da DTC, era os

“processos pelos quais, servindo-se da indústria como instrumento, os capitalistas realizam a

exploração da sociedade, em vez do seu serviço, onde reside o destino social da indústria”128.

Aqui entra em jogo outra máxima do positivismo segundo a qual o capital é social, logo, sua

destinação deveria também ser social, quesito que os referidos industrialistas não cumpriam,

daí as críticas de Torres Gonçalves.

Em capítulo anterior, a partir de artigo de Michael Hall129, destaquei que os

positivistas brasileiros, em geral, eram desfavoráveis à imigração, à pequena propriedade e

que os do Rio Grande do Sul não se enquadravam nesses critérios, visto que grande foi o

movimento de entrada de estrangeiros no estado durante o período que os seguidores de

Comte estiveram à frente do governo. Torres Gonçalves também era contrário à imigração,

mas a subvencionada e a que era realizada apenas tendo em vista os possíveis ganhos

materiais que poderiam dela advir. Para ele, os motivos de ordem econômica não eram

suficientes para incentivar a entrada de imigrantes, visto existirem motivos de ordem moral

relacionados, por exemplo, “à fusão de povos de civilização, crenças e costumes

diferentes”130. Contudo, tal constatação era válida apenas para os “imigrantes engajados”, pois

127 Idem. 128 Carlos Torres Gonçalves. Relatório da Diretoria de Terás e Colonização , p 159. In.: Candido José de Godoy, 1911. Idem, op. cit. 129 Ver, HALL, Michael M. Reformadores de classe média no Império brasileiro: a sociedade central de imigração. Revista de História, v. 105, 1976, p. 147-171. 130 Carlos Torres Gonçalves, 1909. Idem, op. cit., p. 90.

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os espontâneos não acarretariam tantos problemas no sentido de sua assimilação e também era

“um dever de fraternidade agasalhar os estrangeiros que espontaneamente nos procurem”131.

A posição adotada por Torres Gonçalves também é fruto de sua leitura particular do

positivismo, visto que, naquele contexto, incentivar a entrada de imigrantes significava

aumentar a competição entre os grupos proletários e, assim, dificultar sua “incorporação”132.

Sustentado por tais noções, Torres Gonçalves defendia que, ao contrário dos interessados

apenas nos lucros econômicos que poderiam advir da imigração – segundo ele, adeptos da

máxima: povoar é governar – no Brasil, governar era promover a felicidade da pátria. Dessa

forma, além do econômico deveria se pensar no problema da identidade nacional,

principalmente, na “fusão das raças” que, de acordo com o positivismo de Comte, envolvia

questões como os costumes, as crenças e as raças mais propícias a povoar determinado

território.

Assim, Torres Gonçalves defendia que não bastava trazer imigrantes ao Brasil para

povoar suas terras, era preciso estudar a situação e a qualidade dessas terras, estabelecer

meios de transporte que facilitassem a vida dos imigrantes e seus contatos. Do ponto de vista

moral, era necessário pensar na questão da raça melhor adaptável ao país de destino, à

nacionalidade e à classe social a que pertenciam os imigrantes. Havia também o problema dos

nacionais e dos índios que, segundo o diretor da DTC, deveriam receber a mesma atenção que

era destinada aos imigrantes.

Na década de 20, a Sociedade Nacional de Agricultura encaminha um questionário ao

governo do Rio Grande do Sul tratando do problema da imigração. Tal questionário é

respondido por Torres Gonçalves e, em uma pergunta que tratava da aptidão do trabalhador

nacional para o serviço agrícola, o diretor da DTC volta a fazer críticas aos partidários da

idéia de que governar é povoar. Para Gonçalves, os adeptos de tal noção não eram capazes de

apanhar o verdadeiro valor dos nacionais e por isso seriam mais aptos a apoiar a imigração.

Nesta perspectiva, aqueles que como ele eram críticos a ela e defendiam que governar é

promover a felicidade da Pátria, por civismo “não se conduzirão pelas vantagens ilusórias da

imigração” e, por honra e fraternidade, saberiam dar o devido valor aos nacionais, pois,

131 Idem, ibidem. 132 Neste sentido, Ângela Alonso, escreve que a posição dos positivistas brasileiros em relação ao problema da imigração além de ser formulada a partir da lógica da incorporação do proletariado, especialmente dos escravos recém libertos, também levava em conta a questão da identidade nacional, uma vez que ela dependeria da “fusão das raças” e, de acordo com Comte, tal fusão envolveria uma série de elementos tais como a moral, o clima, a diferença de costumes entre a sociedade de acolhimento e os imigrantes, etc... Cf.: ALONSO, Ângela. Idéias em movimentos: a geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002, pg. 249.

- 228 -

embora houvesse “sua falta de aptidões para vida industrial”, tinham maior apego e amor à

Pátria133.

Em decorrência dessa posição a respeito do problema da imigração, Torres Gonçalves

foi um crítico do acordo assinado entre o Rio Grande do Sul e a União em 1908 para entrada

de imigrantes. O acordo com a Comissão de Povoamento do Solo foi alvo de críticas por parte

do diretor da DTC já em seu relatório de 1909 e, até sua extinção em 1914, Gonçalves insiste

na impraticabilidade do mesmo, bem como, por vezes, trata-o como um erro134. O governo do

Estado, na perspectiva de Gonçalves, deveria utilizar o dinheiro gasto na introdução de novos

imigrantes na organização e melhoramento das colônias existentes, assim como na localização

dos nacionais, na regularização dos intrusos, na proteção dos indígenas e no estabelecimento

da descendência da população colonial residente no estado.

Como é possível verificar, Torres Gonçalves tinha um projeto e planos de futuro

respectivos à colonização, à agricultura, à indústria e à inserção dos indivíduos que

participaram do processo de povoamento do estado. Todos eram permeados por noções

provindas do positivismo e muitos foram alvos de disputas e confrontos, tanto entre os grupos

a quem eles se destinavam como entre os próprios membros do governo e que exerciam

alguma atividade relacionada aos problemas administrados por Gonçalves. Um exemplo

dessas divergências pode ser encontrado em carta escrita pelo Diretor da DTC a Teixeira

Mendes em 1908. Nela, Gonçalves afirma que o então Secretário da Fazenda – Octávio Rocha

– era uma “alma pequenina e divergente” que fora afastado por Júlio de Castilhos, mas que

devido a “fraqueza” de Borges de Medeiros havia retornado ao cargo. Ao tratar do Secretário

das Obras Públicas – Candido Godoy, seu chefe direto – define-o como um “tipo estreito,

‘especialista’, sem vistas de conjunto e, sobretudo, sem preocupações sociais”135,

principalmente em relação aos nacionais.

Cabe aqui fazer uma discussão a respeito da aplicação dos princípios positivistas, tanto

por parte de Torres Gonçalves como dos presidentes de Estado, já que a menção a tal teoria é

133 GONÇALVES, Carlos Torres. A questão da imigração: parecer apresentado pelo Dr. Carlos Torres Gonçalves, diretor de terras e colonização do Estado do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Comércio, 1925, p. 10. 134 No relatório de 1913, Torres Gonçalves escreve: “esta diretoria propõe-vos que seja desfeito o acordo celebrado com a União para introdução de imigrantes, voltando o Estado a realizar a instalação somente de imigrantes espontâneos, de acordo com o regulamento de terras vigente”. Cf.: GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 74. In.: PAROBÉ, João José Pereira. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 20 de agosto de 1913. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Comércio, 1913, p.59-105. (AHRS - OP. 36). 135 Carta de Carlos Torres Gonçalves a Teixeira Mendes, 1º de Junho de 1908. Apud: Paulo Pezat. Idem, op. cit., p. 253.

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constante nas fontes. Ângela Alonso, em seu estudo sobre os intelectuais da geração de 1870 e

as respectivas teorias por eles empregadas demonstra o quanto elas eram armas fortes no

sentido de empreender críticas a ordem saquarema. Assim, eram instrumentos de contestação

utilizados por uma parte da elite intelectual brasileira, a qual devido ao modo como o 2º

Reinado estava estruturado tinha uma inserção social subordinada. Nos termos da autora:

os grupos da geração de 1870 que se mobilizaram não estavam preocupados com a constância doutrinária porque não visavam formar escolas nativas de pensamento. Assim, seu interesse por novas teorias [e o positivismo de Comte é uma delas] pode ser melhor entendido como busca por argumentos e justificativas para expressar seu dissenso e imaginar projetos de reforma em termos novos, distantes da maneira de pensar e das formas de expressão da tradição imperial. (...). Estamos diante de um movimento político intelectual de contestação, formado por grupos sociais dispares em origem social, mas vivendo uma comunidade de experiência: marginalizados pela dominação saquarema136. (Grigo da autora).

A constatação de Alonso pode ser empregada para compreender o papel do

positivismo no Rio Grande do Sul, visto que seus principais adeptos – Julio de Castilhos,

Assis Brasil, Borges de Medeiros, Ramiro Barcelos, Faria Lemos, Torres Gonçalves, entre

outros mais – de uma forma ou de outra, estavam ligados ou eram integrantes ativos da

geração de 1870. Assim, se num primeiro momento o positivismo serviu como ferramenta de

contestação a ordem imperial, especialmente no sentido de buscar uma maior autonomia do

Rio Grande do Sul em relação ao poder central, daí a sua forte defesa do federalismo. Num

segundo, já no período republicano, o positivismo continuou sendo empregado, mas não mais

na perspectiva de contestação, e sim da justificação das ações governamentais e ainda na

defesa da autonomia do estado em relação ao governo federal. Portanto, no que se refere as

políticas de Estado, continuou sendo objeto de uso político e recebeu pouca atenção no seu

sentido doutrinário. O diferencial, por sua vez, está na atuação de Torres Gonçalves como

responsável pela Igreja Positivista do Rio Grande do Sul, onde a ação doutrinária – a

religiosa, em especial – é mais evidente137.

Dessa forma, Torres Gonçalves foi um dos principais positivistas rio-grandenses

preocupados com o aspecto doutrinário religioso da teoria de Comte, bem como empenhou

grande esforço em utilizar o positivismo como plano de fundo para definir as políticas de

colonização e discriminação das terras públicas. Tal empenho, como demonstra João Ehlert

136 Ângela Alonso. Idem, op, cit., p. 162. 137 Para conhecer mais detalhadamente a atuação de Carlos Torres Gonçalves enquanto membro da Igreja Positivista do Rio Grande do Sul, conferir estudo de Paulo Pezat. Carlos Torres Gonçalves, a família, a pátria e a humanidade. Idem, op. cit.

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Maia, deve ser tomado como resultado da sua formação em engenharia, já que ela traduzia

“uma experiência social e intelectual” marcada pela “formação de subjetividades orientadas

para um forte código moral de sabor positivista, que dotava seus adeptos de uma constante

sensação de estranhamento diante da vida social”138. Assim, se empregarmos os termos de

Maia para pensar a atuação de Torres Gonçalves enquanto engenheiro, ele era um

protagonista do mundo da técnica e da organização da vida material, que reconhecia “no

positivismo característico da engenharia politécnica menos uma doutrina que uma forma de

atuar no mundo”139. O positivismo dos engenheiros, nestes termos, operava como “uma

espécie de código moral, capaz de animar personagens disciplinados, austeros e obstinados

para o tema da reforma e do engajamento ético-existencial”140. Tais engenheiros, em linhas

gerais, eram pessoas portadoras de um “forte senso de missão, pertinácia e celebração da

atividade produtiva”, não eram “profissionais da engenharia no sentido restrito, mas tinham

em comum um código moral [o positivismo] que lhes dava disciplina”141. Características que

são facilmente percebidas ao se levar em conta a atuação e a história de vida de Torres

Gonçalves.

Todavia, em muitas situações a teoria não dava conta da prática do povoamento, uma

vez que sua realização exigia reformulações, as quais são visíveis, por exemplo, na atuação

dos subordinados do Diretor da DTC, senão vejamos.

* * *

Já que conhecemos mais detalhadamente um pouco da história, da atuação e dos

planos de futuro de Carlos Torres Gonçalves sobre o povoamento, convém tratar mais

detidamente das ligações existentes entre a gestão das terras públicas, a colonização e a

intrusão. Para tanto, inicialmente utilizarei informações constantes em um processo crime

datado de 1916, no qual o diretor da Colônia Guarani, situada no município de Santo Ângelo,

Clarimundo Almeida dos Santos, foi acusado de desvio de dinheiro público, porque não

estava repassando corretamente as somas arrecadadas da cobrança da dívida colonial para o

138 MAIA, João Marcelo Ehlert. A terra como invenção: o espaço no pensamento social brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 19. 139 Idem, p. 119. 140 Idem, ibidem. 141 Idem, p. 122.

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Tesouro do Estado. No processo crime, particularmente na defesa escrita por Clarimundo e

nos documentos que ele junta aos autos, constam dados esclarecedores sobre a questão142.

Um primeiro tema a ser destacado é a pequena história que Clarimundo escreve sobre

sua atuação enquanto funcionário público e de suas atividades relacionadas ao tema imigração

e colonização. Outro assunto interessante diz respeito ao modo como se dava a fundação de

uma colônia, uma vez que o acusado trabalhara na Colônia Guarani desde o seu início e

escreve um relato sobre as ações que eram realizadas nos momentos anteriores e posteriores à

chegada dos primeiros imigrantes. Por fim, uma terceira temática que a fonte permite

conhecer refere-se a acusação e o desenvolvimento do processo crime propriamente dito, já

que neles estão contidos alguns dos mecanismos usados pelo Estado para controlar ou, no

mínimo, tentar fiscalizar a ação de seus funcionários.

No dia 16 de julho de 1916, Clarimundo Almeida dos Santos junta aos autos do

processo uma defesa escrita de punho próprio, que havia sido encaminhada a Marinho

Loureiro Chaves, então secretário de Estado dos Negócios da Fazenda. Nela consta um

histórico de sua atuação no serviço de terras e colonização. Em 1886, Clarimundo foi

nomeado pelo Ministério da Agricultura para servir como agrimensor na comissão de terras

da Colônia Caxias. Em 1890, mediante a emancipação de Caxias, ele entra em contato com

Pheodoro Pnferson, então chefe de seção da diretoria de obras públicas, e informa sobre a

existência de grande área de terras devolutas “excelentes para colonizar”, situadas na região

norte do estado. O referido Pheodoro “foi ao Rio de Janeiro e conseguiu organizar a Colônia

Lucena da qual fiz parte como agrimensor e depois ajudante até 1892”143. Extinto o cargo de

ajudante, Clarimundo consegue emprego como sub-empreiteiro do Banco Iniciador de

Melhoramentos – instituição criada no início da República e que tinha a tarefa de dividir lotes

coloniais que depois seriam vendidos aos imigrantes. Em 1893, ele muda-se de Santo Ângelo

para São Leopoldo, onde desempenha o cargo de Juiz Distrital e, em 1897, é nomeado diretor

da Colônia Guarani – função que exerceu até 1916, quando é acusado de lesar os cofres

públicos.

Clarimundo escreve que seu primeiro ato como diretor de colônia foi estabelecer os

seus limites territoriais, “especialmente extremando o público do particular” e, nos primeiros

anos, seu principal intuito foi “salvaguardar os interesses do Estado”144. Contudo, todos esses

trabalhos e uma série de outros foram feitos, segundo o diretor, sem auxílio de funcionários

142 APERGS. Processo Crime nº 1404. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1916. Maço 47. 143 Idem, ibidem. Colônia Lucena era o nome inicialmente dado à Colônia Guarani. 144 Idem.

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competentes, sendo que a maioria dos serviços, inclusive o de médico, tinham que ser

executados por ele mesmo. Diante disso, em 1908, com a celebração do tratado entre o

governo do Estado e a União para entrada de imigrantes pelo Povoamento do Solo, quando

chega a primeira leva de imigrantes holandeses, a Colônia Guarani não oferecia condições

para instalá-los.

A falta de funcionários para trabalhar na instalação do grande número de imigrantes

que passa a ser direcionado à colônia a partir de 1908, bem como a não existência de

condições para o abrigo dos mesmos enquanto esperavam para serem encaminhados aos seus

respectivos lotes, leva à eclosão de conflitos. De acordo com o diretor da colônia, as

dificuldades enfrentadas pela comissão eram agravadas com as constantes revoltas e

reclamações “absurdas dos imigrantes que por diversas vezes assaltaram o escritório travando

luta com o pessoal da administração que nem sequer era garantido por força que o pusesse a

coberto de tais afrontas”145. Devido à falta de funcionários que poderiam auxiliá-lo no serviço

de colonização e administração da colônia, viu-se “obrigado” a delegar tarefas a pessoas “não

confiáveis”. Tais indivíduos passaram a falsificar os vales que eram utilizados para realizar

pagamentos aos colonos e, em decorrência disso, ele precisou desviar o saldo do pagamento

da dívida colonial para pagar os aludidos vales falsos.

Para compreender melhor o argumento de defesa apresentado pelo diretor da colônia,

cuja veracidade não está em causa aqui, é necessário conhecer a origem dos mencionados

vales. No momento da assinatura do tratado entre o Estado e a União para o estabelecimento

de imigrantes, o acordo estipulava que a União forneceria a hospedagem dos imigrantes

enquanto eles precisassem ficar em Porto Alegre até serem direcionados a alguma colônia,

pagando por isso a quantia de 1$500 réis por dia e por imigrante de qualquer idade. Era sua

responsabilidade também o transporte dos imigrantes até Cruz Alta além de entrar com a

quantia de 400$000 réis por família de imigrante estabelecida, dos quais 150$000 seriam

destinados à distribuição gratuita de sementes e ferramentas e os 250$000 réis restantes

seriam destinados à construção de casas. Montante que o imigrante, posteriormente, deveria

restituir ao Estado, juntamente com o valor do lote. O Estado teria que devolver à União

150$000 réis por família estabelecida, à medida que elas fossem saldando seus débitos146.

Quando o imigrante chegava na colônia, esses valores eram distribuídos da seguinte forma:

trinta mil réis para ferramentas, vinte mil réis para sementes e duzentos e cinqüenta mil réis para construção de casa, sendo esses últimos auxílios só

145 Idem. 146 Informações constantes no Relatório da Diretoria de Terras e Colonização de 1909. Idem, op. cit., p. 88.

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aplicáveis aos imigrantes encaminhados pelo Povoamento do Solo; além dessas despesas, haviam as de transporte, agasalho, dietas e assistência médica e construção de caminhos vicinais, para cujo serviço dava-se ao imigrante cento e vinte e cinco mil réis; esses pagamentos eram feitos a proporção da necessidade do imigrante requisitando-se os respectivos pagamentos147.

Para fazer tais pagamentos, o diretor da colônia utilizava vales ao portador148, os quais

eram fornecidos pela Repartição de Terras. Os vales eram aceitos no comércio local, serviam

como moeda de troca e eram transacionados por dinheiro ao final dos meses, quando o

Tesouro do Estado fazia o depósito das verbas destinadas aos diferentes serviços. No entanto,

a partir de meados de 1914, segundo Clarimundo dos Santos, tais vales passam a ser

falsificados e daí emerge a dívida dele para com o tesouro estadual, a qual somava, quando da

acusação, o montante de 212:446$490 réis.

Juntamente com a carta de defesa o diretor da Colônia Guarani, junta uma série de

ofícios por ele encaminhados aos responsáveis pelos serviços de terras e colonização nos

quais narra o desenvolvimento de suas atividades. Num primeiro, datado de 13 de novembro

de 1897, relata que na zona sudoeste da colônia viviam alguns “posseiros e intrusos que ali se

estabeleceram a pretexto de desfrutar terras nacionais, que como suas consideram”149. Tais

indivíduos, de acordo com o diretor da colônia, eram “essencialmente nômades, prejudicavam

o Estado devastando os matos sem aproveitá-los firmando-se em um ponto, o que também

redundava em prejuízo seu e de sua família”150. Para resolver o “nomadismo” dessas pessoas,

Clarimundo os proíbe de derrubarem matas e circunscreve-lhes “para cultura e usufruto as

capoeiras adjacentes as suas moradias”, assim como começou a “incutir-lhes a noção de

trabalho produtivo pela intenção permanente e construção de casa para sua família”151. Aqui

fica visível a ação do Estado e seus funcionários no sentido de transformar a forma como as

populações que viviam na região relacionavam-se com o espaço e a prática agrícola.

147 APERGS. Processo Crime nº 1404, Santo Ângelo. Idem, op. cit. 148 Esta prática não era singularidade do Rio Grande do Sul ou do período, Giralda Seyferth em artigo que trata sobre a colonização do vale do Itajaí-Mirim em Santa Catarina no século XIX e sobre os conflitos e resistências relacionados ao processo, chama atenção para o uso de vales como forma de pagamento, bem como o quanto tal prática era motivo de insatisfação entre os colonos, uma vez que, além de em muitas vezes os débitos do Estado para com os colonos não serem saldados, os vales deixavam os colonos numa situação de dependência para com os comerciantes locais que tinham autorização para transacionar os vales por dinheiro ou por produtos. Cf.: SEYFERTH, Giralda. Colonização e conflito: estudo sobre “motins” e “desordens” numa região colonial de Santa Catarina no século XIX. In.: SANTOS, José Vicente Tavares dos (Org.). Violências no tempo da globalização. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 285-330. 149 APERGS. Processo Crime nº 1404, Santo Ângelo. Idem, op. cit. 150 Idem. 151 Idem.

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Em outro ofício datado de 15 de março de 1899, descreve os habitantes da região mais

detalhadamente: “em quase sua totalidade eram paupérrimos e desleixados nas suas

habitações, simples ranchos de capim da forma mais primitiva”152. Na seqüência de sua

narrativa escreve que raras eram as casas “verdadeiramente habitáveis, em sua maioria

engenhos. A produção principal é o fumo, alguma aguardente, rapadura e feijão”153. Ele

também constrói três categorias para classificar os moradores da área sob sua

responsabilidade, a saber: 1) plantadores intensos, os quais se dedicavam à fabricação de

aguardente, rapadura, fumo e plantas de feijão. Donos de casas regulares e “ambição de

domínio sobre as terras que cultivam” desejando a legitimação das mesmas; 2) plantadores

extensos, que só plantavam milho e feijão, faziam uma derrubada de 2, 3 e mais alqueires de

mata (de 5 a 8 hectares) que “plantam e logo abandonam pra fazer nova derribada”.

Clarimundo escreve que encontrou vários indivíduos que se enquadravam nessa categoria,

dentre eles um tal Joaquim Gonçalves que “há 40 anos devasta terras na margem esquerda do

Rio Ijuí Mirim, aonde fez um campo de mais de 20 alqueires [54 hectares], entretanto mora

numa choça de palha cercada de varejões e já escorada em diversas partes”154. De acordo com

o diretor, esse grupo era o mais atrasado e pernicioso, “entendem ter mais direito que outro

qualquer pelo alargamento da área, entretanto, em sua maioria, nem têm meios para pagar as

terras que por longos anos desfrutam”155; 3) os nomadas ou intrusos, os quais “hoje fazem

uma roça aqui e outra além e que vivem a vender – ‘os meus cultivados’”156. Grupo este que,

dividia-se em outras duas categorias: a) vagabundos sem paradeiro – que eram “eternos

fazedores de posses” e b) estancieiros e moradores de povoados – “que mandam também

fazer posses e colocar agregados em terras alheias”157. Diante de tal situação, o diretor conclui

que era urgente fazer a discriminação e legitimação das terras ocupadas por tais indivíduos

para, assim, estabelecer uma ordem ao serviço de terras devolutas na região.

Em um ofício datado de 03 de abril de 1914, ele volta a tratar dos moradores

tradicionais da região, dessa vez deixa clara sua posição a respeito deles. Em linhas gerais,

concorda com as representações discutidas no capítulo anterior existentes sobre essas pessoas.

No mesmo ofício, refere-se aos especuladores e registra que a intrusão só acabaria quando se

acabasse com eles, pois era comum usarem alguns “posseiros como testa de ferro e os

mandarem adiante explorando terras e florestas, mediante qualquer remuneração

152 Idem. 153 Idem. 154 Idem. 155 Idem. 156 Idem. 157 Idem.

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insignificante”158. As classificações elaboradas além de mostrarem como era variada a forma

como as pessoas que viviam na região relacionavam-se com o espaço, apontam para um

elemento que é comum nas fontes: o de classificar os posseiros ricos como especuladores e os

pobres como intrusos. O diretor igualmente reproduz a intenção principal das ações

governamentais direcionadas aos grupos que viviam nas áreas – nesse caso os nacionais – que

estavam sendo incorporadas pelo Estado ou por particulares, isto é, transformá-los em

agricultores produtivos:

quando iniciei os trabalhos de medição e povoamento de Santa Rosa, eu tinha desejo de trazer o meu patrício, o caboclo para a comunhão do trabalho fazendo-o agricultor e arrebatando-o da falsa miragem de pseudo dono de centenares de hectares aproveitados por especuladores. Nunca pretendi expulsar da terra que ocupam, qualquer individuo, mas sempre procurei ligá-lo a terra para assegurar-lhe o futuro da prole pela posse legitima de um farto pedaço de terra produtiva159.

Além das questões relativas à presença de intrusos, posseiros e especuladores,

também existiam as relacionadas à imigração preocupando o diretor da colônia, especialmente

após a entrada em vigência do acordo entre Estado e União. Em 14 de dezembro de 1908,

Clarimundo dos Santos escreve ofício a Vespasiano Rodrigues Corrêa, então diretor da DTC,

e relata as dificuldades no estabelecimento dos imigrantes. Faltavam casas para o alojamento

dos recém chegados, estradas para o transporte dos imigrantes da sede da colônia até os lotes.

A permanência dos imigrantes na sede atrasava os trabalhos relacionados ao cultivo e preparo

dos lotes e ainda existia o risco de epidemias, visto que muitos recém chegados vinham

doentes e não havia nenhum médico na colônia. Outros problemas enfrentados diziam

respeito à falta de lotes medidos para o estabelecimento dos recém chegados, a recusa de

alguns lotes devido sua má localização. Tudo somado repercutia no êxodo de imigrantes para

Argentina. Assim, buscando evitar o deslocamento para o país vizinho, o diretor da colônia

passa a tomar medidas de controle, especialmente no sentido de impedir que aqueles que

haviam recebido verbas públicas assim procedessem. Entretanto, os imigrantes desenvolvem

estratégias para fugir ao controle do diretor, tais como “simular trabalhar para obter os

auxílios” ou enviar alguém em seus lugares para escolha dos lotes.

A transferência de colonos de Guarani para Argentina repercute em problemas para o

diretor da colônia, o qual é cobrado por Carlos Torres Gonçalves que havia recebido um

requerimento de alguns colonos acusando Clarimundo de não saldar as promessas feitas a eles

158 Idem. 159 Idem.

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ainda na Europa. Em ofício datado de 7 de março de 1909, encaminhado a Torres Gonçalves,

Clarimundo dos Santos justifica-se argumentando que os signatários do requerimento eram

“vagabundos que estão contemporanisando e procurando obter favores do Estado para

seguirem para Argentina”160. Eles estavam revoltados, conforme justificava, porque ele se

recusava a lhes dar os auxílios antes de se instalarem e cultivarem os lotes, bem como proibia

que o comércio local trocasse os vales recebidos por tais imigrantes por dinheiro, a não ser

por ferramentas e alimentos: “agora mesmo estão mais de cem a porta do escritório

reclamando auxílios e ameaçando-me. Até agora tenho empregado a máxima prudência,

porém estou aparelhado para empregar a força caso excedam os limites da tolerância”161.

Diante disso, ele pedia a Torres Gonçalves que não encaminhasse mais “esse tipo de

imigrantes”.

Também existia o problema da instalação dos imigrantes em seus respectivos lotes.

Devido à grande quantidade de recém chegados, muitos escolhiam seus lotes sem a

intermediação dos responsáveis por organizar esse aspecto da colonização. A conseqüência

era o aparecimento de conflitos: “se um toma o lote que outro achou bom, é certo ambos se

questionarem e lançarem mãos de todos os meios para obter o lote, iludindo os

empregados”162. Outros abandonavam os lotes e quando resolviam voltar já os encontravam

ocupados. Igualmente, existiam questões relativas à construção das casas, pois alguns colonos

queriam fazê-las eles próprios, outros desejavam que elas fossem construídas pela diretoria da

colônia, alguns pretendiam usar o dinheiro destinado à construção da casa para fins diversos e

outros iniciavam a construção das casas, paravam a obra em uma certa altura, abandonavam o

lote e exigiam restituição pelo trabalho feito163.

Os fatos relatados por Clarimundo possibilitam visualizar a distância existente entre os

projetos e propostas de colonização daquilo que acontecia nas colônias. Também é verificável

a presença de falhas na política de colonização, sendo que a culpa pelos problemas é imputada

aos colonos, os quais quando agiam de forma contestatória eram definidos como

“vagabundos” ou “interesseiros”. Da mesma forma, os exemplos apresentados evidenciam

que o processo de colonização com imigrantes foi marcado pelo conflito e que o ideal do

160 Idem. 161 Idem. 162 Idem. 163 No relatório da DTC de 1911, consta mais um exemplo, ocorrido na Colônia Ijuí, relacionado à construção das casas dos colonos: “devido à grande distância em que foram colocados os imigrantes chegados ultimamente e ao pouco pessoal de que dispõe esta comissão, torna-se impossível uma fiscalização completa do emprego deste auxílio [para construção de casas], o que deu lugar a abusos, tendo alguns imigrantes dado outro destino às importâncias recebidas, fazendo moradias provisórias e mesmo retirando-se sem ter feito coisa alguma”. Carlos Torres Gonçalves, 1911. Idem, op. cit, p. 139.

- 237 -

colono como um indivíduo resignado e obediente estava longe de acontecer. Giralda Seyferth

ao tratar sobre as ações sociais levadas a cabo por colonos residentes na região de Brusque em

Santa Catarina, ainda durante o século XIX, relata fatos semelhantes aos ocorridos na colônia

Guarani e motivados pelas mesmas circunstâncias. Registra que a existência de ações

reivindicatórias por parte dos colonos levava as autoridades governamentais e a opinião

pública a considerarem a colônia Brusque como um empreendimento fracassado164, bem

como a tratar os envolvidos nas ações com termos pejorativos objetivando, assim,

deslegitimar suas ações. Em outras palavras, do ponto de vista do governo e dos idealizadores

das políticas de colonização, tanto no período imperial como no republicano, o sucesso de

uma colônia estava intimamente vinculado a docilidade dos colonos. Contudo, a análise dos

documentos demonstra o quanto ela não era regra.

Um outro aspecto possível de conhecer a partir do processo crime envolvendo

Clarimundo dos Santos diz respeito à ação fiscalizadora do Estado em relação a seus

funcionários. Na origem do processo esteve uma visita feita por Carlos Torres Gonçalves à

Colônia Guarani em maio de 1915, quando “conversando com Clarimundo a propósito dos

serviços a seu cargo, nesta ocasião o acusado aludiu ao atraso em que se encontrava quanto ao

recolhimento de dinheiro aos cofres públicos do Estado”165. Quando retorna a Porto Alegre,

Torres Gonçalves faz um levantamento geral da dívida e descobre que ela era maior do que o

montante inicialmente informado por Clarimundo. Logo em seguida, é montada uma

comissão de sindicância composta por Torres Gonçalves e por João Carlos de Barros que era

funcionário do Tesouro do Estado. A sindicância é realizada in loco e, a partir da análise de

documentos depositados no arquivo do escritório da diretoria da colônia e em documentos que

estavam guardados na casa de Clarimundo, Torres Gonçalves e Carlos Barros consideram que

o principal argumento da defesa – o da falsificação dos vales – não era suficiente para

justificar o valor do débito.

Também era papel da comissão avaliar os bens do acusado, mas “o agrimensor não

possui bens acumulados em parte alguma e sob nenhuma forma e a situação de seus filhos e

genros é também de inteira pobreza”166. Em conseqüência, os responsáveis pela investigação

concluem que “a explicação do alcance está no excesso de suas despesas particulares sobre os

vencimentos que recebia”167. Os imóveis pertencentes a Clarimundo e que deveriam ser

seqüestrados para pagamento da dívida montavam a aproximadamente 39:000$000 réis,

164 Cf.: Giralda Seyferth. Colonização e conflito. Idem, op. cit., p. 297. 165 APERGS. Processo Crime nº 1403. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1916. Maço 47. 166 Idem, ibidem. 167 Idem.

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contudo, como a dívida do acusado com o Estado era de 212:446$490 réis, ficaria devendo

ainda 173:446$490 réis. Munidos dessas informações, forma-se uma outra comissão,

composta de secretários de Estado e de diretores de diferentes diretorias que analisam o

processo, consideram Clarimundo culpado e pedem a sua demissão.

Concomitante ao processo administrativo, também é aberto um processo judiciário

contra Clarimundo, que aguardava o desenvolvimento do mesmo preso na Intendência do

município de Santo Ângelo. Na noite do dia 29 para 30 de outubro de 1916, o acusado

consegue fugir do cárcere. Em conseqüência da fuga, em dezembro de 1916, o Promotor

Público de Santo Ângelo interpõe processo contra Benjamim Prates Osório, que na época da

evasão era delegado no município e, portanto, encarregado junto com seus guardas por vigiar

a Intendência. Um dos responsáveis pela guarda, em seu depoimento, diz não ter percebido a

fuga e acreditava que Clarimundo havia escapado “vestido de mulher”168. O processo contra

Benjamim é levado adiante, porém, no fim, o Juiz considera ele e seus guardas inocentes. De

acordo com informações presentes nos autos, Clarimundo havia se refugiado na Argentina e,

em 1932, ele entra com um requerimento pedindo a extinção da ação penal, visto já terem

passado 16 anos, logo, a ação estava prescrita. Em 22 de setembro de 1932, o pedido é aceito,

e o Juiz da Comarca de Santo Ângelo decreta o fim do processo.

* * *

De maneira geral, a fundação de colônias no Rio Grande do Sul seguia as normas

estipuladas pela lei de terras estadual de 1899 e seus regulamentos: o de 1900 e o de 1922. A

partir deste último foram feitas algumas alterações visando dar melhor organização aos

serviços. Tais mudanças tinham, entre outras, a meta de dar aos lotes uma distribuição de

acordo com a geografia do local, onde seriam fundadas as colônias e cuidar para que todos

tivessem fácil acesso a fontes de água e viação169. Como os municípios originários de colônias

públicas foram organizados a partir da observância dos preceitos reguladores da lei de terras

168 APERGS. Processo Crime nº 1401. Cartório Civil Crime. Município de Santo Ângelo, 1916. Maço 47. 169 Os cuidados que deveriam ser tomados na instalação das novas colônias resumiam-se basicamente à observação das seguintes condições: “1ª) que a região disponha já, ou venha a dispor em poucos anos, de saída fácil para a exportação; 2ª) o estudo prévio dos principais cursos d’água da região; 3ª) simultaneamente, o estudo prévio das principais estradas de rodagem; 4ª) subordinação da demarcação dos lotes aos cursos d’água e estradas estudadas; 5ª) delimitação de faixas de mata ao longo das estradas, destinadas à prévia exploração florestal, antes da concessão de lotes, bem como delimitação das florestas reservadas para proteção do solo e do clima, ou simplesmente reservados como fontes de matéria-prima; 6ª) escolha do local, estudo topográfico do mesmo e organização dos projetos, para sede e outros povoados de cada novo núcleo colonial”. Cf.: Carlos Torres Gonçalves, 1914. Idem, op. cit., p. 119-120.

- 239 -

estadual e seus regulamentos, principalmente no que diz respeito à distribuição dos lotes e

organização espacial dos povoados, ainda hoje os municípios originários destas colônias

carregam características semelhantes quanto a sua organização, tais como as relativas à

distribuição de suas avenidas, praças, prédios públicos e a nomeação das ruas170 (Ver mapas

abaixo). No caso das ruas, elas eram nomeadas seguindo uma seqüência pela qual uma

carregaria o nome de uma pessoa considerada importante, por exemplo, Benjamim Constant,

e a sua paralela seria nomeada com uma data importante: 7 de setembro, assim

sucessivamente em ambas direções Norte/Sul, Leste/Oeste.

FIGURA 11:

COLÔNIA GUARANI – PROJETO PORTO LUCENA

SEDE DA COLÔNIA SANTA ROSA

FONTE: GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, anexos. In.: PINTO, Ildefonso Soares. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 13 de agosto de 1918. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1918, p. 265-320. (AHRS - OP. 50).

De acordo com o texto da lei de terras estadual, no capítulo que trata sobre

colonização e formação de núcleos coloniais, as áreas onde seriam instaladas as sedes das

colônias deveriam ser repartidas em duas zonas concêntricas, separadas por uma avenida de

20 metros de largura. Na área central, demarcar-se-iam quadras, das quais duas ou três eram

170 Sobre isso, Carlos Torres Gonçalves escreve em 1918: “Erechim é também a primeira colônia organizada segundo um programa prévio, obedecendo a regras técnicas, especialmente no traçado das estradas de rodagem, na subdivisão em lotes rurais e na organização dos povoados. E conquanto incompletamente observado este programa, por diversos motivos, entre os quais o atropelo na instalação de imigrantes introduzidos pela União, na primeira fase da colônia, entretanto, resultados apreciáveis foram obtidos”. Cf.: Carlos Torres Gonçalves, 1918. Idem, op. cit., p. 276.

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reservadas para praças públicas. Nas imediações da praça central, seriam construídos os

prédios públicos. Próximo à povoação também deveria ser demarcado um terreno de cerca de

40 hectares, cujo destino era acomodar uma estação experimental de agronomia.

O regulamento estadual de terras de 1900 também estabelecia normas para a recepção

e estabelecimento dos imigrantes, as quais valiam para todos os estrangeiros que objetivassem

se estabelecer no Rio Grande do Sul, exceto aqueles que, a partir de 1908, são encaminhados

pelo Povoamento do Solo, que só seguiriam o regulamento nas questões que não eram

reguladas pelo contrato estabelecido com a União. O regulamento determinava que todos os

imigrantes espontâneos que entravam no estado, independente de nacionalidade, que

quisessem se dedicar à agricultura e ser pequenos proprietários teriam direito a transporte

gratuito do porto de Rio Grande até o núcleo colonial de seu destino. Receberiam abrigo em

Porto Alegre por prazo que não excedesse dez dias e, nas sedes dos núcleos coloniais para

onde fossem transportados, obteriam hospedagem e alimentação por espaço de oito dias. No

entanto, tais prazos, na maioria das vezes, não foram cumpridos fato que repercutiu em

diversas divergências entre os imigrantes e os funcionários das colônias, como ficou evidente

nos relatos feitos por Clarimundo dos Santos, antes mencionados.

Quando chegassem a colônia, receberiam um lote com área de 25 hectares, pelo qual

pagariam um valor não inferior a 1 real por metro quadrado dependendo da qualidade e da

situação das terras. Para o pagamento dos lotes e das importâncias recebidas, a chamada

dívida colonial, os imigrantes teriam prazo de 5 anos e aqueles que conseguissem saldar suas

dívidas antes desse prazo receberiam alguns descontos. Após o fim do prazo, os colonos que

não dessem conta de pagar suas dívidas incorreriam em multas de 20% (no sexto ano) e 30%

(no sétimo ano) sobre o valor das terras.

Já os nacionais e estrangeiros residentes no estado, pagariam a metade do valor dos

lotes no ato da concessão ou dentro de um ano. Depois de findo o primeiro ano, ocorreria um

aumento no valor da dívida em 10%. A outra metade seria paga após o prazo de dois anos,

tempo que poderia ser prorrogado, mas com a incisão de multas de 20 a 30% sobre o valor das

terras. Ainda sobre a divida colonial é importante frisar que os prazos estipulados para seu

pagamento dificilmente foram cumpridos e, diante disso, o Estado se viu obrigado a expedir

uma série de decretos aumentando os prazos ou perdoando dívidas. Segundo José

Nascimento, tal prática estava vinculada a necessidade do governo em obter apoio político

junto a população colonial e para que os colonos “continuassem produzindo alimentos,

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valorizando as terras da região onde residiam e atraindo novos compradores de terras”171, um

outro fator muito importante nesse sentido era o de evitar a emergência de mais conflitos entre

Estado e colonos.

O regulamento estabelecia uma série de outras normas relativas às obrigações dos

colonos depois de estarem estabelecidos sobre os lotes e os passos que deveriam ser seguidos

para a aquisição dos títulos de propriedade. Também definia os preceitos vinculados à

transferência e abandono de terrenos, à forma como o serviço de terras e colonização deveria

funcionar e a quem ficaria a incumbência de colocar o regulamento em prática, assim como

fiscalizar a sua execução. Tal tarefa ficou sob responsabilidade da Secretaria de Obras

Públicas, dentro da qual inicialmente funcionou uma seção denominada Terras e Colonização

que, em 1907, pelo decreto nº 1.018, de 5 de Janeiro, é extinta e, em seu lugar, passa a

funcionar a Diretoria de Terras e Colonização172. A DTC, por sua vez, ao longo de sua

história e devido à complexificação dos trabalhos dos quais estava encarregada também

conheceu uma série de subdivisões173.

Outra característica interessante da DTC, como fica visível na tabela que segue, foi

que, na maior parte do período analisado, ela atuou sob déficit. Nos relatórios, são constantes

as queixas dos diretores devido à falta de dinheiro para melhorar os serviços ao seu encargo.

Raros foram os anos em que a arrecadação feita pela diretoria foi maior do que as despesas. É

interessante ressaltar que durante a administração dos positivistas no Rio Grande do Sul, que

se estende por toda a Primeira República, mais precisamente até o primeiro governo Getúlio

Vargas que inicia em 1928, em nenhum ano o Estado encerrou seu orçamento em déficit174.

Então, a característica de a DTC fechar seu caixa negativamente, entre outras coisas, pode ser

tomada como decorrência da natureza dos serviços que realizava e também do orçamento

171 José Nascimento. Derrubando florestas, plantando povoados. Idem, op, cit., p. 191. 172 As informações citadas referentes à lei de terras estadual e seus regulamentos foram coletados em Luiza Horn Iotti (Org.). Idem, op. cit. 173 Nesse sentido, em 1913, o secretário de Obras Públicas escrevia: “atualmente a Diretoria de Terras e Colonização tem 3 seções, tratando a 1ª do serviço de terras, a 2ª do serviço de colonização e a 3ª do serviço florestal, agro-pecuário, etc”. Cf.: João José Pereira Parobé, 1913. Idem, op. cit., p. 09. 174 Sobre esse fato, Pedro Dutra Fonseca escreve “a defesa do orçamento equilibrado (...) obrigava freqüentemente a haver apelos à iniciativa privada a fim de realizar certas obras essenciais. O orçamento equilibrado era também um dogma comtiano, e sua defesa baseava-se em um argumento moral: o Estado é o ‘cérebro da sociedade’, e seu dinheiro é o da coletividade; o déficit orçamentário era também um déficit dos cidadãos: nesse caso, o governo estaria devendo o que não era dele. Por outro lado, as ‘finanças sadias’ do governo constituíam-se em um exemplo para sociedade. Não raro ao equilíbrio orçamentário associou-se uma boa situação econômica, sendo aspecto importante na legitimação do governo republicano: freqüentemente apresentava-se o castilhismo como saneador dos males do Império, onde o déficit seguidamente ocorria”. Cf.: FONSECA, Pedro Dutra. RS: economia e conflitos políticos na República Velha. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983, p. 97-98.

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reduzido que recebia, o qual era estritamente controlado a fim de evitar que o Estado fechasse

suas contas em déficit.

TABELA 1:

RECEITA E DESPESA DA DTC ENTRE 1907 E 1925

Anos Receita total Despesa Déficits Saldo

1907 265:606$676 322:002$322 56:395$646 ++++ 1908 416:330$114 467:084$512 50:754$398 ++++ 1909 656:179$956 973:768$884 317:588$928 ++++ 1910 317:720$316 870:403$281 552:682$965 ++++ 1911 876:973$070 1.142:290$790 265:317$720 ++++ 1912 1.376:672$960 1.835:416$487 458:743$527 ++++ 1913 1.437:843$946 1.901:535$109 463:691$163 ++++ 1914 828:707$996 1.503:009$845 674:301$849 ++++ 1915 653:565$000 870:216$611 216:651$691 ++++ 1916 1.178:282$618 717:804$668 ++++ 460:477$050 1917 1.517:416$301 1.234:157$923 ++++ 283:258$378 1918 2.409:379$724 1.940:199$349 ++++ 469:180$375 1919 2.391:420$291 2.163:189$954 ++++ 228:230$437 1920 2.500:438$355 3.402:603$800 902:165$445 ++++ 1921 2.006:071$245 2.201:602$691 195:531$446 ++++ 1922 2.391:868$972 3.526:508$346 1.134:639$374 ++++ 1923 1.271:953$914 1.594:032$800 322:078$886 ++++ 1924 2.842:077$361 1.762:626$281 ++++ 1.079:451$080 1925 3.737:713$702 1.950:010$479 ++++ 1.787:703$223

FONTE: Números coletados ao longo dos relatórios da DTC. Nestes dados são excluídas as despesas com o pessoal do quadro, isto é, os funcionários diretos da DTC.

A partir dos dados expostos, é possível realizar algumas análises importantes. Em

primeiro lugar, cabe sublinhar os esforços promovidos por parte dos funcionários públicos

ligados à DTC e orientados por Carlos Torres Gonçalves para fazer valer as determinações da

lei de terras estadual: “estou com a lei escrita e promulgada, tenho procurado fazê-la respeitar

e com ela cairei”175. Nesses termos, Clarimundo dos Santos descreve os trabalhos que vinha

realizando na discriminação do domínio público do privado na Colônia Guarani.

Evidentemente que o próprio desenvolvimento do processo de ocupação das terras

impossibilitava a execução de alguns preceitos presentes na lei e muitas propriedades,

especialmente as grandes, foram legitimadas burlando tais normas, seja inventando

175 APERGS. Processo Crime nº 1404, Santo Ângelo. Idem, op. cit.

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documentos, seja contando com auxílio dos responsáveis por avaliar os pedidos de

legitimação.

Um outro fato que deve ser destacado é que, de acordo com os termos da lei de terras

estadual e seus regulamentos, os nacionais, os negros e os índios foram preteridos em relação

aos imigrantes. Assim, mesmo que ocupassem a terra onde residiam desde tempos bem

anteriores às leis que regulavam o assunto e se considerassem donos legítimos dos espaços

que, a seu modo, exploravam, a partir do avanço da colonização, do interesse intensivamente

perseguido de discriminar o público do privado visando os lucros que poderiam advir da

venda das terras, da intenção de construir um tipo de agricultor produtivo e afeito à

propriedade, tais indivíduos foram pressionados a se inserir no processo, mas em condições

não tão acessíveis como as que eram dadas aos imigrantes. Muitos deles, inclusive alguns

colonos, não se enquadraram as exigências, resistiram as políticas de colonização, foram

expulsos, tratados como intrusos, taxados de vadios, nômades, acaboclados, etc...

Assim, para melhor compreender o processo de povoamento é importante sublinhar

que os grupos que viviam na região serrana, mesmo residindo num espaço de fronteira

agrária, não participavam de um mundo à parte, isolado, autônomo, nem sua atividade

produtiva se “guiava única ou primordialmente pela lógica do consumo e da subsistência

familiar, (...). Eles estavam dentro da sociedade e, de um modo específico, participavam da

produção social”176. No caso analisado, é visível que distintas eram as concepções e

diferenciadas as avaliações das vantagens e desvantagens que poderiam advir das estratégias

adotadas pelos participantes do processo de povoamento. Da mesma forma, as percepções de

tempo e previsões de futuro não eram partilhadas em bloco. Entretanto, a existência entre os

“mais pobres” de

estratégias diferenciadas, e até competindo entre si, não implica necessariamente em ‘lógicas’ econômicas e sociais antagônicas na sua essência; podem significar a escolha de distintos meios para se atingir os mesmos fins, ou distintas ‘apostas’ dentro de um mesmo ‘jogo’. Não se excluindo, neste sentido, a possibilidade de estratégias mistas177.

Em outras palavras, qualquer tentativa de explicar o povoamento como resultado das

brigas entre blocos coesos e antagônicos ou afirmar que alguns grupos apenas sofreram o

processo e o leram a partir de uma lógica peculiar e imutável que os colocava em oposição

direta com outro grupo “mais poderoso” e com aquilo que estava acontecendo pode

obscurecer a análise de alguns detalhes importantes e que iluminam muito sobre o

176 Leonarda Musumeci. O mito da terra liberta. Idem, op. cit., p. 165. 177 Idem, p. 109.

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desenvolvimento do povoamento. Em termos mais específicos, nem todos os colonos eram

colonos nos moldes que os burocratas do Estado desejavam. Alguns nacionais e negros que

viviam na região fixaram-se a terra e, assim, passaram a ser vistos e descritos como úteis

socialmente. Outros “por fazerem bom negócio, transferiram as suas terras, ou simplesmente

os seus pretendidos ‘direitos de posse’ ao primeiro colono de origem estrangeira que aparecia

propondo-se a isto”178. O projeto de incorporação dos grupos indígenas, cuja origem situa-se

em períodos bastante anteriores à Primeira República, também encontrou algum “sucesso”

entre os próprios índios. Entretanto, todos responderam a seu modo, baseados em suas

experiências sociais próprias e a partir de escolha de estratégias específicas e diferenciadas

para se inserirem no contexto de mudanças característico da situação que estavam vivendo.

Assim, uma das principais transformações que aconteceu, especialmente para os

grupos indígenas, foi relativa à forma como as pessoas que viviam na região relacionavam-se

com o espaço, o definiam e o interpretavam. Nessa perspectiva, o estudo de Beatriz Heredia,

antes citado, permite compreender mais detalhadamente o que tais mudanças representam na

vida das pessoas. As fontes que venho utilizando trazem informações importantes no sentido

de perceber que existia um esforço por parte do Estado para que tais populações mudassem o

modo como se relacionavam com o território e com a agricultura, principalmente para que

adquirissem uma noção de propriedade conformada aos moldes de uma suposta e desejada

sociedade ocidental moderna. Contudo, tais informações devem ser contrapostas a

constatação de que a forma como as populações de uma determinada região se inserem num

contexto sócio-cultural mais amplo e a maneira como essas pessoas compreendem o que

acontece no “mundo externo” têm influência direta e indireta na forma como os processos

sociais se desenvolvem na esfera local e, igualmente, na extra-local179. Em outras palavras, o

povoamento da região serrana esteve longe de ser uma via de mão única e envolveu

discussões profundas e conflitos corriqueiros entre os diferenciados grupos envolvidos no

processo.

Dessa forma, mesmo que o grupo “mais rico” tenha sido beneficiado devido a sua

proximidade com o Estado e a sua situação econômica, as benesses das quais ele poderia

desfrutar também eram alvo de limitações, pois as suas relações com Estado também são 178 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 383. In.: ALVES, Protásio. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Protásio Alves, Secretário de Estado, interino, dos Negócios das Obras Públicas, em 14 de setembro de 1917. Porto Alegre: Tipografia da Empresa Gráfica Rio-Grandense, 1917, p. 345-441. (AHRS - OP. 46). 179 Cf.: WOLF, Eric. Tipos de campesinato latino-americano: uma discussão preliminar, p. 121-122. In.: FELDMAN-BIANCO, Bela; RIBEIRO, Gustavo Lins (Orgs.). Antropologia e poder: contribuições de Eric R. Wolf. Brasília: Editora UNB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; São Paulo: Editora UNICAMP, 2003, p. 117-145.

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regidas pelo conflito, principalmente no caso dos oposicionistas ao governo. Em outros

termos, embora as leis não necessariamente fossem aplicadas em toda sua potencialidade e

fossem constantemente burladas pelos grandes fazendeiros, sua existência exigia um mínimo

de controle por parte do Estado no sentido de sua aplicação. Assim, devido a sua

“universalidade” as leis que regulavam a questão fundiária no estado também poderiam,

dependendo da situação, ser acionadas pelos lavradores pobres em defesa de seus interesses.

Dessa forma, também limitavam a ação do grupo “mais rico” que, tradicionalmente, é

apresentado como beneficiário das leis e das ações governamentais.

A tese de doutorado de Márcia Motta é um exemplo de pesquisa que consegue romper

com tal visão e está longe de se inserir na categoria dos estudos que tratam os lavradores

pobres como atores passivos de um teatro no qual atuam apenas como coadjuvantes. Em sua

pesquisa, ao analisar a Lei de Terras de 1850, “geralmente reduzida pela historiografia ao seu

primeiro artigo”, a autora mostra como essa lei também limitou a ação dos fazendeiros no

sentido da expansão de seu domínio sobre terras e homens, além de ter sido usada, em alguns

casos, pela população pobre para defesa de seus interesses. As ações dos homens livres

pobres, segundo Motta, não eram resultado simplesmente de sua fome ou por se sentirem

oprimidos, mas “fundamentalmente, porque suas ações tinham a ver com suas experiências de

luta e suas tradições culturais acerca do acesso à terra. Esses homens, aos trancos e barrancos,

no vai e vem da justiça, tinham lá os seus poderes”180. Em outro termos, é necessário pensar o

universo rural como um universo que não está reduzido única e somente ao poder dos grandes

fazendeiros, já que, como registra Motta, mesmo eles estando

seguros em seu poder se depararam, algumas vezes, com a necessidade de seguir os parâmetros legais e medir e demarcar suas terras, oriundas de uma concessão de sesmarias. Os processos de embargo não conseguiam impedir a reiterada disputa de terras dos confrontantes, tornando as áreas limítrofes fontes de tensões e conflitos entre vários agentes sociais, transformando as fronteiras em espaços de lutas, em fronteiras em movimento181.

Iniciei este tópico tratando da intrusão e registrei algumas de suas características.

Cabe agora aprofundar um pouco mais a análise da mesma e conhecer melhor como

aconteceu a construção dessa categoria e sua aplicação. Um aspecto importante a ser

registrado sobre a intrusão é o de que à medida que o tempo avança e o processo de

colonização se desenvolve, o número de intrusos aumenta, e os descendentes dos primeiros

180 MOTTA, Márcia Menendes. Nas fronteiras do poder: conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998, p. 45. 181 Idem, p. 105.

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imigrantes chegados ao Rio Grande do Sul, devido ao incremento populacional e o aumento

das pressões por terra em suas localidades de origem – as colônias velhas –, passam a

constituir a maior parte dessa categoria. Torres Gonçalves, em 1913, escreve que “nas divisas

do município de Passo Fundo com o da Lagoa Vermelha, tem havido invasão das matas do

Estado por intrusos, vindos das antigas colônias”182. No seu relatório de 1914, Gonçalves

volta a tratar do problema da intrusão e escreve: “os intrusos estabelecidos em terras do

Estado são indivíduos nacionais e, na maioria, agricultores de origem estrangeira,

procedentes das antigas colônias”183 (Grifo meu). Tais indivíduos eram descritos como os

menos “apropriados para a cooperação no bem comum”, uma vez que eram “imprevidentes e

sem amor pelo pedaço de terra que se apossam, na generalidade dos casos, cortam a mata

muito além da necessidade da cultura que fazem”184. Torres Gonçalves estimava que o

contingente de intrusos vivendo no Rio Grande do Sul contava em torno de 50.000 pessoas e

era de suma importância regularizar a situação “dessa enorme população o quanto antes”185.

Naquele momento, para Torres Gonçalves, as principais causas da intrusão eram a

falta de lotes demarcados capazes de atender as demandas provindas do aumento da

população colonial, a ausência de funcionários para atender os serviços relativos à

colonização e a “falsa noção de poder cada qual dispor para seu estabelecimento das terras do

domínio público, alimentada até por autoridades municipais”186. Aqui o Diretor da DTC

demonstra a existência de uma distância entre aquilo que era determinado pelo Estado como

medida a ser tomada em relação à intrusão e àquilo que as autoridades locais faziam. No

relatório de 1916, ele volta a tratar do problema e pondera que uma das principais

dificuldades para acabar com a intrusão era a existência de autoridades municipais que

opunham obstáculos às determinações dos funcionários do Estado, “alimentando francamente

a intrusão, indicando aos nacionais que se queixam da falta de terras o estabelecimento nas

que encontrarem baldias, em vez de induzi-los a entenderem-se com os chefes de serviço”187.

Em um dos trechos citados acima, Gonçalves dá a entender que existia uma “noção”,

por ele definida como “falsa”, de que o estabelecimento em terras de domínio público ficava a

critério de “cada qual”. Para eliminar tal prática e, conseqüentemente, acabar com a intrusão,

Gonçalves sugeria que era necessário transformar “o intruso em proprietário”. Em outros

termos, apenas a partir da transformação que tinha por principal objetivo inserir os intrusos

182 Carlos Torres Gonçalves, 1913. Idem, op. cit., p. 95. 183 Carlos Torres Gonçalves, 1914. Idem, op. cit., p. 110-111. 184 Idem, ibidem. 185 Idem. 186 Idem. 187 Carlos Torres Gonçalves, 1916. Idem, op. cit., p. 123.

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nas “vantagens da vida industrial moderna” e torná-los proprietários, eles deixariam de ser

intrusos e teriam seus direitos reconhecidos. Na passagem da condição de intruso para a de

proprietário, Torres Gonçalves almejava que aqueles que se enquadravam, ou melhor, eram

enquadrados nessa categoria, experimentassem “as reações inerentes à posse da residência,

desenvolvendo-se neles o instinto conservador e reduzindo-se o da destruição”188.

Além disso, tal mudança, de acordo com o diretor da DTC, acarretaria no

desenvolvimento de um maior senso de respeito por parte dessas pessoas em relação às

autoridades. No mesmo sentido, permitiria que uma parte considerável da população que

habitava na região serrana fosse enquadrada nos termos das leis e regulamentos que

gerenciavam a questão das terras – ou seja, reconhecessem o Estado e o legitimassem. Ainda

sobre tal questão, em sua mensagem encaminhada à Assembléia dos Representantes em 1911,

o Presidente do Estado defendia que o papel da administração estadual em relação aos

intrusos e aos nacionais que, dependendo da situação, poderiam também ser taxados de

intrusos assim como os colonos, era não afugentá-los, mas “sobretudo elevar-lhes o moral,

tornando-os proprietários das terras que inconscientemente devastam e as quais saberão

apreciar e devidamente amar com a posse legal e legítima”189.

Evidentemente que a intrusão não ocorria apenas em terras do domínio público, mas

em áreas privadas e, quando assim acontecia, os problemas eram ainda maiores. Em tais

casos, de acordo com Torres Gonçalves, os “legítimos proprietários” procuravam solucionar a

questão por meio das vias administrativas – realizando de acertos, muitas vezes intermediados

pelos funcionários da DTC – ou em juízo. A segunda opção era a “menos comum”, porém a

mais conflituosa, visto que “os proprietários particulares, munidos previamente de ordens de

despejo judicial, procuram executá-las, surgindo daí incidentes desagradáveis”190. Diante

disso, Torres Gonçalves argumentava que o Estado deveria se colocar “no ponto de vista geral

da coletividade” e reconhecer “o caráter complexo desses fatos e a sua delicadeza”. De acordo

com o diretor da DTC, era preciso considerar que a intrusão não era resultado de instintos

criminosos, uma vez que havia surgido de causas remotas, tais como: “a constituição irregular

188 GONÇALVES, Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 138. In.: GODOY, Candido José de. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, Candido José de Godoy, em 10 de setembro de 1910. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1910, p. 93-157. (AHRS - OP. 24). Sobre a questão de se pretender reduzir o “instinto de destruição” dos intrusos, é conveniente sublinhar que nos relatórios tais indivíduos são constantemente apontados como os “principais inimigos da floresta”, a qual de acordo com a visão de Torres Gonçalves, destruíam bem mais do que suas necessidades de cultivo. 189 Carlos Barbosa Gonçalves, 1911. Idem, op. cit., p. 30. 190 Carlos Torres Gonçalves, 1916. Idem, op. cit., p. 119.

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da propriedade privada, determinando incertezas sobre a mesma”191, a grande extensão de

terras devolutas existentes no estado, e do aumento vertiginoso da população colonial,

principalmente após o acordo com o Povoamento do Solo192. Em contrapartida, o argumento

de que o Estado deveria se pautar a partir do ponto de vista da coletividade não é fruto, pura e

simplesmente, de uma noção de Estado ideal baseado em fins humanitários como geralmente

as fontes dão a entender, mas de uma opção político-administrativa, cujo objetivo era definir a

governabilidade e a tranqüilidade no estado.

O próprio Torres Gonçalves demonstra a pertinência de tal constatação quando, na

seqüência de seu texto sobre o problema da intrusão, presente no relatório da DTC de 1916,

escreve que “se o Governo realizasse ou consentisse no despejo das 5 ou 6 dezenas de

milhares de intrusos espalhados pelo território do estado, arriscar-se-ia a provocar uma

explosão social comparável à que acabam de sofrer os Estados irmãos de Santa Catarina e

Paraná”193. Em outras palavras, temia-se o risco de acontecer, em território rio-grandense,

uma revolta semelhante à que foi a do Contestado. Por sua vez, tal receio não é expresso

apenas por Torres Gonçalves, mas, em 1915, o Presidente do Estado, Salvador Ayres Pinheiro

Machado, relatou à Assembléia dos Representantes o envio de uma tropa da brigada militar

até a fronteira do estado com Santa Catarina objetivando conter o possível avanço dos

“rebeldes do Contestado” em direção ao Rio Grande do Sul194. Assim, para evitar qualquer

tipo de problema que pudesse vir a perturbar a ordem, Torres Gonçalves aconselhava que o

Estado deveria continuar tomando medidas no sentido de satisfazer alguns dos interesses dos

intrusos, já que, ao fim e ao cabo, eram “agricultores essencialmente comparáveis aos demais

colonos”195. Era necessário, no entanto, incutir-lhes mais profundamente a noção de

propriedade e suas benesses.

191 Idem, ibidem. 192 Sobre a questão do acordo com a União para a instalação de imigrantes e a intrusão, o diretor da DTC escreve, no relatório de 1914: “se em vez da instalação que realizamos nestes últimos 6 anos, dos 41.938 imigrantes introduzidos pelo Povoamento do Solo, tivéssemos consagrado os nossos esforços em normalizar a situação dos intrusos existentes em terras do Estado, conforme não temos cessado de lembrar, enormes benefícios teríamos já colhido, que podem ser assim resumidos: 1º) grande redução nas despesas públicas; 2º) aumento considerável na receita proveniente da venda de terras; 3º) redução da devastação das florestas; 4º) a vantagem inapreciável do desenvolvimento da ordem da propriedade territorial, com todos os benefícios decorrentes”. Cf.: Carlos Torres Gonçalves, 1914. Idem, op. cit., p, 111. 193 Carlos Torres Gonçalves, 1916. Idem, op. cit., p. 119. 194 MACHADO, Salvador Ayres Pinheiro. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Vice-presidente em exercício, General Salvador Ayres Pinheiro Machado, na 1ª sessão ordinária da 9ª legislatura, em 20 de outubro de 1915. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, p. 10. 195 Carlos Torres Gonçalves, 1916. Idem, ibidem.

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Outra fonte de problemas para o Estado, vinculada à colonização e à discriminação

dos domínios públicos e privados, era a da colonização particular196. João Parobé, no relatório

da SENOP de 1902, acusa os promotores da colonização particular de estarem desviando

imigrantes das colônias do Estado causando prejuízos ao poder público que “faz despesas de

alimentação e transporte dos imigrantes que são aproveitados pelos particulares”197. Em 1914,

Torres Gonçalves escreve que é freqüente o número de pedidos para concessão de grandes

áreas para serem destinadas à colonização. Contudo, o diretor da DTC pondera que tal

transferência de terras, do ponto de vista financeiro, poderia ser lucrativa para o Estado,

porém, “do ponto de vista social”, era preferível vender as terras diretamente ao pequeno

produtor. Assim, além de adquirir o valor da terra, o Estado também obteria um ressarcimento

dos valores indiretos vinculados à instalação dos colonos. Enquanto que, pondera Gonçalves,

o “colonizador particular, por menos cobiça que tenha, precisa assegurar o juro capital que

empregou”198. Dessa forma, a colonização particular pouco se importaria com problemas de

ordem moral, visto que visava “simplesmente operações mercantis, só atendendo a condições

materiais e industriais”199.

No relatório da DTC de 1917, Torres Gonçalves anota que o Governo do Estado não

cedia terras para a colonização particular, mas fazia a venda direta aos pequenos produtores.

Entretanto, não era possível ter um controle completo sobre tal questão, já que muitas terras

situadas na região – e que foram recebidas em indenização porque o Estado havia fundado

colônias em áreas posteriormente definidas como “privadas” – eram revendidas a

colonizadores particulares. Tais colonizadores, de acordo com Gonçalves, fundavam colônias

com a única preocupação de lucrar e, assim, não atentavam para a organização dos povoados,

denominavam as ruas e praças com nomes de sua escolha e não se preocupavam com a

preservação das florestas. Outro problema muito comum era o de que os colonizadores

particulares não observavam “a proteção devida aos nacionais que encontram nas terras, antes

os vão gradualmente afastando”200. Também não misturavam indivíduos de diversas

196 Cabe ressaltar, como fiz na introdução deste trabalho, que pouco abordarei as questões relacionadas a colonização particular, uma vez que tratar tal tema exigiria a realização de pesquisas em um conjunto bastante grande de documentos. Para conhecer mais detalhadamente os aspectos relacionados a colonização privada na região verificar o trabalho de José Nascimento mencionado ao longo deste capítulo. 197 João José Pereira Parobé, 1902. Idem, op. cit., p. 07. 198 Carlos Torres Gonçalves, 1914. Idem, op. cit., p.120-121. 199 Idem, ibidem. 200 Carlos Torres Gonçalves, 1917. Idem, op. cit., p. 362-363. Os estudos sobre a colonização particular evidenciam que a prática de expulsar os nacionais que habitavam território que posteriormente foram usados para fundação de colônias particulares era comum. Um exemplo é a ação da companhia colonizadora de propriedade de Arno Mayer. Para conhecer mais detalhadamente estas ações, conferir: José Nascimento. Derrubando florestas, plantando povoados. Idem, op. cit., p. 154-155.

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“nacionalidades, entre si com os nacionais, organizam núcleos de uma só nacionalidade, onde

a língua e os costumes do país são às vezes totalmente estranhos, com grave perturbação para

a marcha da nossa evolução política”201. Diante disso, o regulamento de terras de 1922, em

seus artigos 34º e 35º, estipula um maior nível de interferência dos poderes públicos sobre a

administração das colônias privadas. Dentre os assuntos regulados por tais artigos, estavam o

de que a instalação de colônias particulares só poderia acontecer a partir da prévia aprovação

dos seus respectivos projetos pela SENOP. Da mesma forma, aqui novamente aparece a

influência do positivismo, os nomes dos núcleos coloniais, das ruas, praças e etc..., deveriam

ser aprovados pela SENOP202.

Em 1917, segundo dados da Mensagem enviada pelo Presidente de Estado à

Assembléia dos Representantes, o Rio Grande do Sul possuía uma população colonial de

cerca de 750.000 habitantes com um crescimento anual de 18.000 pessoas. Desse montante:

120.000 eram nacionais; 300.000 alemães e seus descendentes; 230.000 italianos e

descendentes; 70.000 polacos, russos e descendentes e os outros 30.000 eram enquadrados na

categoria diversos. Da população total, 560.000 viviam em núcleos fundados ou pela União

ou pelo Estado e 190.000 em colônias particulares. A superfície colonizada era, nos núcleos

públicos, de 2.350.000 hectares e nos particulares de 850.000 hectares – o que fechava o total

de 3.200.000 hectares destinados às colônias. Na região colonial, a densidade demográfica era

de 23,4 habitantes por quilômetro quadrado e no estado como um todo era de 6,8 habitantes.

Quanto aos núcleos coloniais existentes, o número era de 125, dos quais 52 haviam sido

fundados pelos poderes públicos e 73 por particulares. No ano de 1917, achavam-se em

funcionamento e sob direção do Estado apenas os núcleos coloniais de Erechim, Guarani,

Santa Rosa e Guarita – os outros já haviam se constituído em municípios, sendo o primeiro

São Leopoldo emancipado em 1846 e último Ijuí em 1912203.

Em 1924, o número de colônias fundadas pela iniciativa privada sobe para 112, e as

públicas para 60. O estado possuía 73 municípios sendo que, em 48 deles, existia algum tipo

de colonização. Das colônias públicas, a última fundada fora Guarita, em 05 de janeiro de

1917, e a emancipada Erechim, em 30 de abril de 1918204. Em 1925, o total da população das

colônias sobe para 924.000 habitantes, sendo que 600.000 viviam em núcleos fundados pelos

poderes públicos e 324.000 em áreas de colonização privada. A média de habitantes por

201Idem, ibidem. 202 Cf.: Carlos Torres Gonçalves, 1923. Idem, op. cit., p. 495. 203 Números retirados de: Antônio Augusto Borges de Medeiros, 1917. Idem, op. cit., p. 29-30. 204 Carlos Torres Gonçalves, 1924. Idem, op. cit., p. 491-493.

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núcleo colonial era de 10.800 nas colônias públicas e 3.200 nas particulares205. Tais números

traduzem de uma maneira clara o expressivo aumento populacional que a região conheceu

durante o período analisado e para o qual chamei atenção ainda no primeiro capítulo.

Ainda de acordo com os dados presentes no relatório da DTC, em 1924 restavam cerca

de 2.200.000 hectares de terras devolutas sob o domínio do Estado, dos quais 1.858.123

hectares eram parte do território das cinco colônias em funcionamento. No ano de 1925, o

número de hectares disponíveis para colonização nas colônias baixa para 1.632.341, ou seja,

uma redução anual de 225.782 hectares. Este número, ao ser dividido por 25 – que era o

tamanho médio em hectares dos lotes coloniais – indica que foram estabelecidas cerca de

9.031 famílias no espaço de um ano. Mediante tais números, Carlos Torres Gonçalves

conclui: “não conseguindo o Estado atender a instalação de boa parte da descendência da sua

população colonial (...), é claro que não pode admitir, para estabelecer em suas colônias,

novas levas de imigrantes”206. Em outros termos, por volta de 1925, a fronteira norte já estava

fechada senão total, pelo menos parcialmente.

Cabe registrar, para findar este capítulo, que ainda existe uma série de outras questões

relacionadas ao tema terras e colonização respectivos à Primeira República que poderiam ser

desenvolvidos. Por exemplo, o problema do imposto territorial, o modo como se desenvolveu

o processo de fundação das colônias e as realidade particulares a cada uma delas. As fontes

aqui utilizadas permitem analisar todas essas questões e outras mais de forma pormenorizada.

Contudo, não desenvolverei tais temas por considerar que os assuntos até o momento

desenvolvidos são suficientes para entender a maneira como se processou o povoamento da

região serrana. Também por entender que eles possibilitam visualizar o quanto o projeto de

colonização pensado pelo grupo de funcionários do Estado, teve que ser alterado a partir da

sua prática e do modo como as populações a quem ele se destinava o recebia.

205 Carlos Torres Gonçalves. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 357. In.: CHAVES, Antônio Marinho Loureiro. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Antônio Marinho Loureiro Chaves, Secretário de Estado, interino, dos Negócios das Obras Públicas, em 28 de julho de 1925. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, Volume 1, 1925, p. 347-423. (AHRS - OP. 82). 206 Idem, p. 361.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Meu canto é rio, Meu canto é sol,

Meu canto é vento, Eu tenho berço, Eu tenho pátria,

Eu tenho glória, Eu só não tenho terra própria

Porque a história Que eu escrevi,

Me deserdou no testamento.

Cenair Maicá Jaime Caetano Braum

Índios, nacionais, imigrantes e negros são os personagens principais deste estudo. Atores

de uma história que em muitos de seus aspectos ainda não recebeu atenção proporcional a sua

importância. Ao longo desta análise busquei abordar alguns destes assuntos e uma das conclusões

a que chego é a de que ainda resta um longo caminho a ser trilhado na tentativa de dar voz a tais

pessoas e/ou grupos sociais. Como muito grifei ao longo das linhas que compõem este trabalho,

as histórias que se contam a respeito do povoamento do Rio Grande do Sul, com algumas

excessões, tendem a priorizar a análise da imigração européia definindo a atuação dos outros

grupos sociais como secundária. Da mesma forma, um dos principais assuntos relacionados ao

povoamento e a colonização - o problema da apropriação fundiária - é “romantizada” de maneira

a camuflar os conflitos que lhe são peculiares. Confrontos que ganharam os mais diferentes

matizes e envolvem discursos diversos e, muitas vezes, divergentes. Tais como aquele que diz

que o imigrante europeu era mais capacitado e melhor trabalhador que os outros grupos sociais

por representar uma raça superior e, dessa forma, um ideal de civilização.

Nesta perspectiva, busquei demonstrar o quanto a região sob análise foi construída

historicamente pela ação daqueles que, de alguma forma, participaram de seu povoamento. Longe

de ter sido um processo harmônico, o povoamento da região de matas do Rio Grande do Sul na

Primeira República, mais precisamente do território formado pelos municípios de Cruz Alta,

Palmeira das Missões, Passo Fundo e Santo Ângelo, envolveu um sem número de disputas, cujo

principal elemento de conflito foi a terra e o estabelecimento da propriedade fundiária.

- 253 -

Todavia, ao analisar aquilo que em algum momento desta tese denominei de o “fazer-se”

do povoamento, é possível verificar que grande parte dos ideais e das idéias defendidas por

aqueles que estavam a frente da colonização, seja dos agentes governamentais ou do grupo

economicamente mais bem situado da sociedade local, não encontraram efetividade na prática.

No caso específico dos adjetivos utilizados para denominar os diferentes grupos e o conteúdo que

lhes é caracterítico, tratei-os como representações. Isto é, eram “atos de instituição mais ou

menos fundados socialmente”, cujo objetivo era transmitir a tais grupos a idéia de que eles

possuiam determinadas qualidades e deveriam se comportar em conformidade com a essência

social a eles atribuída1. Contudo, isso não significou que na prática tais discursos alcançassem

efetividade plena; pelo contrário, muitos destes atos de instituição passaram por mudanças

exatamente porque os grupos a quem eles se destinavam resistiram em aceitá-los pacatamente.

Na época, o padre Antoni Cuber – primeiro vigário da colônia Ijuí – definia-a como Babel

do Novo Mundo. A analogia bíblica de Cuber, como busquei evidenciar, era fiel aquilo que ele

estava vivenciando, pois ela marca de forma exata a presença na região de pessoas provindas das

mais diversas origens sociais e étnicas. Ela também consegue expressar a existência de diferentes

tipos de sociabilidade, cuja convivência naquele espaço definiu uma de suas principais

características, isto é, a presença de diferentes gupos socias disputando e conformando um

território. Nestes termos, a região era palco de um teatro, cujos atores, muitas vezes não se

entendiam, mas, mesmo assim, precisaram conviver uns com os outros, visto que todos estavam

envolvidos na mesma trama: eram agentes históricos de um processo e mergulharam de forma

profunda nele, dando seus contornos e fazendo ele acontecer.

De certa forma, esta Babel foi vigiada pelo Estado e por seus funcionários – Carlos Torres

Gonçalves, por exemplo –, os quais buscavam tornar a realidade local menos dissonante. Assim,

a busca de construir indivíduos uteis socialmente definiu a ação do Estado que fez grande esforço

na perspectiva de anular diferenças. Não obstante tal interesse também tenha encontrado

dificuldades em se realizar, os discursos e as posições apologéticas em relação aos imigrantes

ajudaram na construção do mito civilizador e na diminuição dos outros grupos sociais que, como

grifei, foram tão importantes no processo de conquista e povoamento da região quanto os

próprios imigrantes. Não se deve esquecer, neste sentido, que um dos principais interesses do

1 Cf.: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: EDUSP, 1996, p. 82.

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Estado era garantir que os lucros advindos da privatização das terras públicas ficassem sob seu

controle. Fato que justifica também o porque da defesa da imigração, pois, como Torres

Gonçalves deixou claro em um dos seus relatórios, os colonos se demonstravam mais aptos e

dispostos a pagar pelas terras que lhes eram destinadas do que os outros grupos2. Entretanto, nem

todos os imigrantes se enquadravam neste ideal e, quando demonstravam seu descontentamento

em relação a sua situação social e as políticas de colonização, eram definidos como “maus

colonos” ou, em certos casos, “intrusos”.

Ao longo deste estudo foram abordados os mais diversos temas a respeito do processo de

povoamento da região serrana. Assim, o silêncio sobre a presença afro-descendente, as políticas

indigenistas do período, a política de colonização, as leis relativas a questão agrária, o problema

da intrusão e outros mais foram objeto da análise. O objetivo principal foi demonstrar o quanto

tais questões estão conectadas, definem e são resultado do processo de povoamento. Busquei

sublinhar que a região conformava uma figuração social específica dona uma sociabilidade

própria, cuja marca maior foi a polissemia de inserções sociais, as quais são perceptíveis ao se

comparar as diferentes formas de relacionamento com o espaço territorial e social característico

de cada grupo. Em outras palavras, a interpretação do povoamento era diverssa entre os

diferentes grupos, ou seja, os imigrantes faziam uma determinada leitura do que estavam

vivendo, assim como o faziam também os indígenas, os negros e os nacionais. Ademais, se para o

Estado e para o grupo social “mais rico” o principal interesse estava em garantir os possíveis

lucros que poderiam advir da comercialização das terras, para o grupo “mais pobre” o que estava

em jogo era sua “subsistência”. Fato que, por seu turno, não quer dizer que a existência dessas

diferentes leituras levou automaticamente ao extermínio uma da outra. Embora tenham existido

esforços no sentido de eliminar determinados comportamentos e práticas, eles permaneceram ou

foram ressignificados e, assim, demontram o quanto faziam parte do mesmo jogo social e deram

vida a ele.

Neste sentido, busquei evidenciar que o fato de um grupo ter sua inserção social

subordinada, bem como o de ser alvo de diferentes formas de dominação, não equivale a sua

passividade. Longe de serem meros espectadores da história ou simples alienados, pessoas como

2 GONÇALVES. Carlos Torres. Relatório da Diretoria de Terras e Colonização, p. 442. In.:OLIVEIRA, Sergio Ulrich de. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros presidente do Estado do Rio Grande do Sul pelo Dr. Sergio Ulrich de Oliveira Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas em setembro de 1926. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, Volume 2, 1926, P. 409-470. (AHRS - OP. 83).

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o “preto Antônio Pacheco”, cujo processo crime em que está envolvido foi analisado no capítulo

4, são seus produtores diretos. Ademais, é conveniente salientar que os esforços realizados no

sentido de ocultar a ação destas pessoas, ou simplesmente defini-las como pouco aptas para o

trabalho ou dispostas ao crime e a violência, tem como intenção principal justificar a

desigualdade e a própria dominação.

Enfim, na região serrana, no Rio Grande do Sul e no Brasil, a história da conquista do

território é uma história de luta. É preciso chamar atenção para este fato, especialmente para

demonstrar o quanto o processo de ocupação da terra foi e é marcado pela diversidade de

condições, expressa na situação experimentada por aqueles que vivenciaram e vivenciam esta

história, a qual, em sua desigualdade e em seu favorecimento a algumas poucas pessoas, se

atualiza a cada momento, seja por meio da ação legítima organizada pelos diferentes movimentos

sociais de luta pela terra hoje existentes, seja pela ação violenta de fazendeiros, do Estado ou

empresas multinacionais sustentadas pelo discurso do progresso. Em outros termos, as pedras

continuam rolando.

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6 FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FONTES: 6.1 MENSAGENS ENVIADAS PELOS PRESIDENTES DE ESTADO À ASSEMBLÉIA DOS

REPRESENTANTES1 (Em ordem cronológica)

LEITÃO, João de Freitas. Relatório apresentado a S. Ex. o Sr. Conselheiro Gaspar Silveira Martins, Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, pelo 2° vice-presidente Exm. Sr. Coronel João de Freitas Leitão ao passar-lhe a administração da Província em 24 de Julho de 1889. ABBOTT, Fernando. Mensagem à Assembléia dos Representantes enviada, pelo Presidente do Estado Fernando Abbott, em 25 de Junho de 1891. (Manuscrito). CASTILHOS, Júlio Prates de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes, pelo presidente do Estado do Rio Grande do Sul Júlio Prates de Castilhos, em 28 de Julho de 1891. (Manuscrito). MONTEIRO, Victorino. Mensagem à Assembléia dos Representantes, enviada pelo Presidente do Estado, Victorino Monteiro, em 19 de Julho de 1892. (Manuscrito). ABBOTT, Fernando. Mensagem apresentada em 3 de janeiro de 1893 à Assembléia dos Representantes, pelo Dr Fernando Abbott. (Manuscrito). CASTILHOS, Júlio Prates de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes, pelo Presidente do Estado, Júlio Prates de Castilhos, em 20 de Setembro de 1894. (Manuscrito). ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Júlio Prates de Castilhos, na 3° e penúltima sessão ordinária da 2° legislatura, 20 de Setembro de 1896. Porto Alegre: Tipografia de César Reinhardt, 1895. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Júlio Prates de Castilhos, na 4° e última sessão ordinária da 2° legislatura, 20 de Setembro de 1896. Porto Alegre: Tipografia de Cesar Renhardt, 1896. ___. Mensagem que acompanhou a proposta do orçamento para o exercício de 1897, apresentada à Assembléia dos Representantes do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Júlio Prates de Castilhos, em 24 de Outubro de 1896. Porto Alegre: Tipografia de Cesar Reinhardt, 1896. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Júlio Prates de Castilhos, na 1° sessão ordinária da 3° legislatura, em 20 de Setembro de 1897. Porto Alegre: Tipografia de Cesar Reinhardt, 1897. MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 2° sessão ordinária da 3° legislatura, em 20 de Setembro de 1898. Porto Alegre: Oficinas tipográficas de A Federação, 1898.

1 As mensagens dos presidentes do Estado, aqui analisadas, encontram-se disponíveis digitalmente na página do Center For Research Libraries da Universidade de Chicaco, cujo endereço eletrônico é: http://www.crl.edu/. Eles também podem ser encontrados no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS).

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___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes, pelo Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, Antônio Augustos Borges de Medeiros, na 3° sessão ordinária da 3° legislatura, em 20 de Setembro de 1899. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1899. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 4° sessão ordinária da 3° legislatura, em 20 de setembro de 1900. Porto Alegre: Oficinas Tipográficas de A Federação, 1900. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 1ª sessão ordinária da 4ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1901. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1901. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 2ª sessão ordinária da 4ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1902. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1902. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, em 15 de Outubro de 1902. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1902. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, em 20 de Setembro de 1903. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1903. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 4ª sessão ordinária da 4ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1904. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1904. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 1° sessão ordinária da 5° legislatura, em 20 de setembro de 1905. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1905. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 2ª sessão ordinária da 5ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1906. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1906. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 3ª sessão ordinária da 5ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1907. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1907. GONÇALVES, Carlos Barbosa. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, na 4ª sessão ordinária da 5ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1908. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1909. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, na 1ª sessão ordinária da 6ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1909. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1909.

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___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, na 2° sessão ordinária da 6° legislatura, em 20 de setembro de 1910. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1910. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, na 3ª sessão ordinária da 6ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1911. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1911. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, na 4ª sessão ordinária da 6ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1912. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1912. MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 1ª sessão ordinária da 7ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1913. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1913. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 1ª sessão ordinária da 8ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1914. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1914. MACHADO, Salvador Ayres Pinheiro. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo vice-presidente em exercício General Salvador Ayres Pinheiro Machado, na 1° sessão ordinária da 9° legislatura, em 20 de outubro de 1915. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1915. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Vice-presidente, em exercício, General Salvador Ayres Pinheiro Machado, na 4ª sessão ordinária da 7ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1916. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1916. MEDEIROS, Antônio Augusto Borges de. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 1ª sessão ordinária da 8ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1917. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1917. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 2ª sessão ordinária da 8ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1918. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1918. ___. Mensagem e proposta de orçamento enviadas à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 3ª sessão ordinária da 8ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1919. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1919. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Rio Grande do Sul, pelo Presidente do Estado Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 4ª sessão ordinária da 8ª legislatura, em 20 de setembro de 1920. (Documento datilografado do original, do serviço de pesquisa e documentação histórica do Museu da Assembléia – Rio Grande do Sul). ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 1ª sessão ordinária da 9ª Legislatura, em 20 de Setembro de 1921. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1921. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 2ª sessão ordinária, da 9ª

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Legislatura, em 20 de Setembro de 1922. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1922. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 3ª sessão ordinária da 9ª Legislatura, em 29 de Novembro de 1923. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1923. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 4ª sessão ordinária da 9ª Legislatura, em 25 de Outubro de 1924. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1924. ___. Mensagem enviada à Assembléia dos Representantes do Rio Grande do Sul, pelo Presidente do Estado Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 1ª sessão ordinária da 10ª legislatura, em 22 de setembro de 1925. ___. Mensagem especial enviada à Assembléia dos Representantes do Rio Grande do Sul, pelo Presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros, na 1ª sessão ordinária da 10ª legislatura, em 25 de setembro de 1925. 6.2 RELATÓRIOS DA SECRETARIA DE ESTADO DOS NEGÓCIOS DAS OBRAS PÚBLICAS

2 (Em

ordem cronológica) PAROBÉ, João José Pereira. Relatório apresentado ao Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado das Obras Públicas, João José Pereira Parobé, em 17 de Setembro de 1891. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1891. ___. Relatório dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exm. Sr. Presidente do Estado, Dr. Júlio Prates de Castilhos, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, 1894. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1894. ___. Relatório dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exm. Sr. Presidente do Estado, Dr. Júlio Prates de Castilhos, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, 1895. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1895. ___. Relatório dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exm. Sr. Presidente do Estado, Dr. Júlio Prates de Castilhos, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, 1896. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1896. ___. Relatório dos Negócios de Obras Públicas, apresentado ao Exm. Sr. Presidente do Estado, Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, 1898. Manuscrito. ___. Relatório dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exm. Sr. Desembargador Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 31 de julho de 1899. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1899.

2 Os Relatórios da Diretoria de Terras e Colonização, citados ao longo do texto, fazem parte dos Relatórios da Secretaria dos Negócios das Obras Públicas, os quais são disponibilizados pelo Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS).

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___. Relatório dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exm. Sr. Desembargador Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 31 de julho de 1900. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1900. ___. Relatório dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exm. Sr. Desembargador Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 31 de julho de 1902. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1902. ___. Relatório dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exm. Sr. Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 31 de julho de 1903. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1903. ___. Relatório dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exm. Sr. Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 24 de Agosto de 1904. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1904. ___. Relatório dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exm. Sr. Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 12 de Agosto de 1905. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1905. GONÇALVES, José Barboza. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, pelo Secretário de Estado, Engenheiro José Barbosa Gonçalves, em 15 de setembro de 1906. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1906. ___. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, Engenheiro José Barbosa Gonçalves, em 24 de agosto de 1907. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1907. GODOY, Candido José de. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, Candido José de Godoy, em 28 de agosto de 1908. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1908. ___. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, Candido José de Godoy, em 27 de agosto de 1909. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1909. ___. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, Candido José de Godoy, em 10 de setembro de 1910. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1910. ___. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, Candido José de Godoy, em 08 de setembro de 1911. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1911. ___. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Carlos Barbosa Gonçalves, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul,

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pelo Secretário de Estado, Candido José de Godoy, em 13 de setembro de 1912. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1912. PAROBÉ, João José Pereira. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 20 de agosto de 1913. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Comércio, 1913. ___. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, João José Pereira Parobé, em 25 de agosto de 1914. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1914. ___. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, apresentado ao Exmo. Sr. General Salvador Ayres Pinheiro Machado, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Secretário de Estado, Engenheiro João José Pereira Parobé, em 31 de agosto de 1915. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1915. ALVES, Protásio. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. General Salvador Ayres Pinheiro Machado Vice-presidente, em exercício, do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Protásio Alves Secretário de Estado, interino, dos Negócios das Obras Públicas, em 09 de setembro de 1916. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1916. ___. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Protásio Alves, Secretário de Estado, interino, dos Negócios das Obras Públicas, em 14 de setembro de 1917. Porto Alegre: Tipografia da Empresa Gráfica Rio-Grandense, 1917. PINTO, Ildefonso Soares. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 13 de agosto de 1918. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1918. ___. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 27 de agosto de 1919. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1919. ___. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 16 de agosto de 1921. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1921. ___. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 15 de agosto de 1923. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, 1923. ___. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Engenheiro Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 15 de agosto de 1924. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, Volume 1, 1924. ___. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Engenheiro Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 15 de agosto de 1924. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, Volume 2, 1924.

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CHAVES, Antônio Marinho Loureiro. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Antônio Marinho Loureiro Chaves, Secretário de Estado, interino, dos Negócios das Obras Públicas, em 28 de julho de 1925. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, Volume 1, 1925. OLIVEIRA, Sergio Ulrich de. Relatório apresentado ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Dr. Sergio Ulrich de Oliveira, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em setembro de 1926. Porto Alegre: Oficinas Gráficas de A Federação, Volume 2, 1926. 6.3 FONTES BIBLIOGRÁFICAS E DIGITAIS ARARIPE, Tristão de Alencar. Indicações sobre a história nacional. In.: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 57, parte II. Rio de Janeiro: Companhia Tipográfica do Brasil, 1894, p. 259-290. ___. Movimento colonial da América. In.: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 56, parte II. Rio de Janeiro: Companhia Tipográfico do Brasil, 1893, p. 91-115. ARQUIVO NACIONAL. Fundo Ministério da Agricultura e Série Agricultura, IA6 163 a IA6 174. ATLAS SOCIOECONÔMICO DO RIO GRANDE DO SUL. In.: http://www.scp.rs.gov.br/atlas. BESCHOREN, Maximiliano. Impressões de viagem na Província do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1989. BONFIM, Manuel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1962. CASTRO, Evaristo de Afonso. Noticia descritiva da região serrana na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul compreendendo os municípios de Cruz Alta, São Martinho, Palmeira, Passo Fundo, Santo Ângelo, São Luiz, Boqueirão, São Borja, São Francisco de Assis, São Vicente e Itaqui. Cruz Alta: Tipografia do Comercial, 1887. CELSO, Afonso. Porque me ufano de meu país. Rio de Janeiro: Expressão e cultura, 1997. CUBER, Antoni. Nas margens do Uruguai. Ijuí: UNIJUI, 2002. CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2006. D’APREMONT, Bernardin; GILLONAY, Bruno de. Comunidades indígenas, brasileiras, polonesas e italianas no Rio Grande do Sul (1896-1915). Porto Alegre: EST, Caxias do Sul: UCS, 1976. DAVATZ, Thomas. Memórias de um colono no Brasil(1850). São Paulo: Livraria Martins, 1972. FONTOURA, João Neves da. Memórias: Borges de Medeiros e seu tempo. Porto Alegre: Editora Globo, vol. 1, 1958. FORTES, Amyr Borges; WAGNER, João Baptista Santiago. História administrativa, judiciária e eclesiástica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1963. FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA. De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul: censos do Rio Grande do Sul 1803-1950. Porto Alegre, 1981, p. 94.

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6.4 PROCESSOS CRIME

CRUZ ALTA Número dos Maços Número dos Processos Anos

Inicial Final Inicial Final 56 2074 2099 1897 1899 62 2207 2228 1909 1911 66 2285 2301 1916 1917 124 3881 3891 1888 1910 125 3892 3913 1910 1917 126 3914 3924 1917 1925

PALMEIRA DAS MISSÕES Número dos Maços Número dos Processos Anos

Inicial Final Inicial Final 1 1 15 1890 1900 2 16 26 1901 1915 3 26 36 1888 1890 4 38 48 1890 1900 5 51 60 1901 1904 6 62 71 1904 1906 7 72 83 1906 1907 8 275 300 1890 1891 7 243 274 1887 1890 8 84 97 1891 1909 9 167 181 1882 1931 10 182 199 1903 1945 11 200 225 1901 1945 12 226 254 1906 1930

PASSO FUNDO Número dos Maços Número dos Processos Anos

Inicial Final Inicial Final 4 68 79 1902 1915 58 2391 2420 1891 1899 61 2473 2484 1905 1908 62 2485 2505 1901 1909 73 2421 2881 1899 1924

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SANTO ÂNGELO Número dos Maços Número dos Processos Anos

Inicial Final Inicial Final 43 1304 1323 1900 1901 44 1324 1344 1901 1908 45 1345 1371 1908 1914 46 1372 1399 1914 1916 47 1400 1420 1916 1916 48 1421 1443 1916 1917 49 1444 1462 1917 1918 50 1463 1480 1918 1919 51 1481 1493 1919 1919 52 1494 1508 1919 1920 53 1509 1524 1920 1921 54 1525 1540 1921 1922 55 1541 1556 1922 1923 56 1557 1573 1923 1924 57 1574 1593 1924 1925 77 2058 2099 1875 1928 78 2094 2143 1877 1955

REFERÊNCIAS

6.5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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