Post on 10-Dec-2018
Autonomia Energética: Uma etnografia com possibilidades para o
Desenvolvimento Sustentável em Assentamentos Rurais na Paraíba
Flávio de Melo Luna1
Misael Gomes da Silva2
O objetivo deste trabalho é apresentar uma etnografia das experiências com Energias
Renováveis a partir de construções autônomas de biodigestores, painéis solares e
energia eólica em assentamentos rurais da Reforma Agrária, a partir de técnicos e
agricultores, em parceria com o IFPB (Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia) e a ONG AGEMTE (Assessoria de Grupos Especializada Multidisciplinar
em Tecnologia) que desenvolve atividades de Assessoria Técnica, Social e Ambiental à
Reforma Agrária (ATES), através de contrato com INCRA, na Paraíba, atuando em 67
assentamentos rurais e prestando assessoria a 3.500 famílias de dois territórios rurais: da
Zona da Mara Norte e do Brejo.
Nessa perspectiva visamos apresentar possibilidades para o Desenvolvimento Territorial
Local Sustentável, por meio de ações de extensão, apoiando a formação de equipes de
técnicos e assentados (agricultores familiares), fomentando construções e trocas de
saberes, na promoção da autonomia com domínio do conhecimento e técnica necessária
a utilização das energias renováveis, biomassa, solar e eólica como meio de produção e
sustentabilidade com manufatura e construção local com matérias alternativos, de fácil
aquisição e de baixo custo de tecnologias sociais para este fim produzindo energia
renovável de uso produtivo e doméstico com retorno sustentável para os assentados.
As dinâmicas dos trabalhos acontecem em parceria com a política pública do Programa
do Território da Cidadania, considerando que esse Programa visa promover o
desenvolvimento econômico, social e ambiental, através do Estado, das entidades não
governamentais e instituições de ensino e pesquisa, os Institutos de Educação com
atenção aos direitos dos povos do campo através da aplicabilidade da política pública de
assistência técnica e extensão rural (PNATER) no que concerne ao atendimento a todos
1 Zootecnista (UFPB) e Especialista em Planejamento e Gestão Estratégica. Técnico e Gestor
da AGEMTE. 2 Cientista Social (UFPB) e Mestrando em Desenvolvimento e Meio Ambiente
(PRODEMA/UFPB)
esses povos, nos aspectos quanti-qualitativos, considerando-se a diversidade desses
sujeitos e trabalhando na extensão a inclusão destes através de praticas inovadoras e
sustentáveis, respeitando a cultura e historicidade locais.
Para o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o principal objetivo dos serviços de
assistência técnica e extensão rural (ATER) é melhorar a renda e a qualidade de vida
das famílias rurais, por meio do aperfeiçoamento dos sistemas de produção, de
mecanismo de acesso a recursos, serviços e renda, de forma sustentável (BRASIL,
2007).
Palavras-Chave: Energias Renováveis. Desenvolvimento Sustentável. Tecnologias
sociais. Assentamentos Rurais. Etnografia
INTRODUÇÃO
Neste artigo é descrita uma ação extensionista desenvolvida Organização Não
Governamental (ONG) Assessoria de Grupos Especializada Multidisciplinar em
Tecnologia e Extensão (AGEMTE), que desenvolve atividades de Assessoria Técnica,
Social e Ambiental à Reforma Agrária (ATES), através do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA), na Paraíba assessorando mais de 3500
famílias assentadas da reforma agrária em dois territórios rurais, Zona da Mata Norte e
Brejo, este último tendo parte de seus assentamentos encontram-se na região de
transição para o semiárido o Curimataú.
Neste processo pautado pelos referenciais da Politica Nacional da Assessoria
Técnica Extensão Rural – PNATER, tem importante parceria com o IFPB por meio de
ações da extensão institucional, apoiando a formação da equipe de técnicos e dos
assentados, agricultores familiares, na construção e troca de saberes focados na troca de
conhecimentos e promoção da autonomia deste público, utilizando como ferramenta,
neste caso, a construção autônoma de painéis solares, biodigestores e outros
equipamentos que poderão ser utilizados e construídos pelos próprios agricultores, em
seus ambientes rurais.
Considerando esta uma estratégia da AGEMTE de provocar o acesso as
populações do campo, jovens, mulheres e demais sujeitos á tecnologias de ponta
historicamente ã dominadas e utilizadas como ferramentas de trabalho e produção pelos
Agricultores Familiares Assentados da Reforma Agrária.
Estas ações são realizadas nos citados territórios, estratégia da abordagem que
busca fortalecer a estratégia de Desenvolvimento Territorial Local Sustentável,
considerada pela entidade como importante iniciativa de governo para fortalecer o
controle social a participação e dinamização econômica penar e planejar e execução de
políticas públicas de forma participativa considerando como foco a universalizar
programas básicos de cidadania, por meio de uma estratégia de desenvolvimento
territorial sustentável, onde a participação social e a integração de ações entre Governo
Federal, estados e municípios são fundamentais para a construção dessa estratégia.
(www.territoriosdacidadania.gov.br)
Onde a forma de atuação da AGEMTE e sua metodologia leva em consideração a
Educação Popular nas ações de extensão desenvolvidas que envolve o IFPB em
pareceria, este artigo descreve o processo participativo da busca pela autonomia
energética no meio rural contrapondo-se ao sistema ou matriz energética atual da
dependência do mercado e da falta de conhecimentos e domino de tecnologias
alternativas para o campo, a exemplo da construção de painéis solares, biodigestores,
aquecedores solar, desidratadores solar e outros equipamentos que produzem certa
autonomia, que são utilizados na implantação de Unidades Demonstrativas Pedagógicas
da Agricultura Familiar (UDPAF), visando o fortalecimento social, produtivo e
ambiental dos sujeitos envolvidos, técnicos intencionistas de Assessoria Técnica, Social
e Ambiental à Reforma Agrária (ATES/AGEMTE) e agricultores familiares. Essa ação
traz como proposta o desenvolvimento de atividades pautadas na Educação Popular do
Campo, a partir da autonomia destes sujeitos na construção e aperfeiçoamento do que é
denominado de tecnologias sociais, desenvolvendo as potencialidades e capacidades,
coletivas e individuais.
METODOLOGIA
A metodologia adotada partiu da articulação institucional e provocação da
entidade AGEMTE, demandando o IFPB quanto a soluções educativas pedagógicas
para a autonomia energética, voltadas para a produção agroecológica e capacitação dos
sujeitos, visando o domínio da construção e uso de tecnologia replicável e eficiente, do
ponto de vista energético ambiental, criando o ambiente para as reflexões teóricas
produzidas acerca da realidade em que atuamos profissionalmente.
Na concepção da AGEMTE, as tecnologias sociais e os espaços das Unidades
Demonstrativas pedagógicas da Agricultura Familiar - UDPAF entendidas como
espaços para realização de práticas e troca de saber ou salas de aula no campo,
considerando as questões socioambientais, culturais e produtivas econômicas,
solidificando e disseminando práticas e concepções de Educação Popular do Campo,
tendo esta concepção ou principio balizado a demanda pela qualificação e utilização das
tecnologias citadas que buscam a autonomia energética.
Desse modo, a metodologia de implantação segue eixos aglutinadores
compostos por processos produtivos, organizativos, culturais e informativos acerca da
qualidade de vida, considerando os parâmetros de sustentabilidade relacionados à
Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) das famílias agricultoras envolvidas, as quais
são consideradas em seu conjunto como ‘grupos de interesse’ que se formam com o
objetivo de produzir as condições de produção da existência, produção e reprodução
familiares, bem como a produção de excedentes destinados a geração de renda e
melhoria da qualidade de vida no campo.
A metodologia adotada pela AGEMTE nessa ação tem por base filosófica o
método denominado Met-MOCI (FALCÃO & ANDRADE, 2002, p. 48)que se
fundamenta na Educação Popular, de abordagem freiriana, ladeada pela teoria da
complexidade (MORIN,2000, p. 9), o que consiste em desenvolver planejamentos
participativos e estratégicos, a partir do diálogo e das trocas de experiências e de saberes
advindos das famílias de agricultores assistidas pela ATES.
A Met– MOCI trabalha cinco eixos, a saber: saúde, educação, produção,
organização e cultura, sendo este último o elo entre os demais. Tais eixos são analisados
a partir da vivência na própria comunidade, onde processos de transformação da
realidade ocorrem através da ação dos sujeitos envolvidos, na contramão dos processos,
costumeiramente estabelecidos nas comunidades, com uma visão assistencialista e
verticalizada.
Tanto os educadores do IFPB quanto os assessores técnicos da AGEMTE
consideraram, nesta ação, a importância da troca do saber acadêmico com o saber
popular e suas complementaridades. Nesse sentido, destacamos as atividades lúdicas,
pedagógicas, técnicas, de socialização dos saberes e a capacitação realizada pela equipe
do IFPB, com a participação de professores da instituição e a equipe técnica de
extencionistas da AGEMTE na busca do aperfeiçoamento e do conhecimento necessário
para esta experimentação e inovação.
Freire (1983) discorre sobre o tecnicismo ao discutir a natureza da relação
estabelecida entre o técnico agrícola e o camponês, afirmando que essa relação é de
comunicação ao invés de extensão, esta última que implica na validação e supremacia
do saber do técnico agronômico, desconhecendo a diversidade cultural do camponês,
este que se torna ‘coisificado’ nessa prática como
(...) objeto de planos de desenvolvimento que o negam como ser de
trans-formação do mundo. O mesmo conceito substitui sua educação
pela propaganda que vem de um mundo cultural alheio não lhe
permitindo ser mais que isso e pretendendo fazer dele um depósito
que receba mecanicamente aquilo que o homem “superior” (o técnico)
acha que o camponês deve aceitar para ser “moderno” da mesma
forma que o homem “superior” é moderno (FREIRE, 1983, p. 7).
A inovação, neste processo que trabalha educação e tecnologias sociais para
autonomia energética, onde se busca uma nova forma de fazer extensão, na adoção da
manufatura de painel solar para uso nesse ambiente, com a capacitação dos seus sujeitos
para a produção e replicação autônoma desta tecnologia, o que é proporcionado pelo
trabalho de extensão do IFPB com a AGEMTE quebrando o paradigma que impõe ao
campo o lugar de atraso não chegando a esse ambiente as informações ou conhecimento
para o domínio dos povos que nele vivem da elétrica e eletrônica e o uso desse
conhecimento para impulsionar a produção e melhorar a qualidade de vida, criando
também o interesse e identidade de pertencer e querer esta no meio rural, que pode e
deve deixar de ser sinônimo de atraso.
Assim, a educação que se processa no campo pauta-se na historicidade e deve
incluir “práticas educacionais que elaboram, sistematizam e difundem conhecimentos,
habilidades, atitudes e valores a partir das condições sociais de vida e em função dos
interesses dos trabalhadores” (GRZYBOWSKI, 1982, p. 319).
Levando aos jovens agricultores familiares e aos técnicos numa primeira etapa no
formato de oficina participativa inicialmente a teoria quanto aos conceitos necessários
para a construção de painéis solares, biodigestores e outras tecnologias de autonomia
energética, partindo para uma segunda etapa de práticas o aprender fazendo ou fazer
aprendendo. Na etapa teórica, foram trabalhados os seguintes conceitos e princípios:
conceitos fundamentais de Eletricidade (tensão, corrente e resistência
elétrica);
princípios fundamentais da eletrônica;
ligações em série e em paralelo;
o que é e como utilizar um multímetro;
os diversos tipos de ferro de solda, qual utilizar e como utilizar;
como identificar as polaridades das baterias;
como interconectar geradores e cargas;
como conectar interruptores;
outros conceitos fundamentais de eletricidade e de eletrônica, necessários
para a correta confecção do painel solar e para sua instalação e operação.
Na prática, a partir dos insumos foram confeccionados com os seguintes itens para
compor o painel:
moldura em cantoneiras de alumínio;
base em folha de PVC;
cobertura em vidro de 2 mm, não temperado;
36 células solares de 0,5W cada;
fitas metálicas específicas para soldagem das células, tipo “tab wire” e
“bus wire”;
rebites para a fixação da moldura;
borracha de silicone, para vedação das células, protegendo-as da chuva e
umidade;
Com um passo importante aprender que matérias são usados, onde e como esses
materiais são adquiridos, comparando preço do produto industrial com o preço do
produto trabalhado, seja um painel solar, um biodigestor ou um gerador eólico, ou seja
não existe patente ou segredos industriais, existe sem a socialização do saber.
A metodologia utilizada pela AGEMTE, quando de sua ação na extensão rural
tem como base o uso de princípios participativos, cujos agentes de execução
desempenham um papel de educador transcendendo o de técnico, assumindo um perfil
de agente de desenvolvimento local, interagindo com os conhecimentos dos agricultores
familiares, elevando estes conhecimentos a novos patamares.
No primeiro passo, a troca de experiências entre os sujeitos do lugar e externos
indicam o planejamento participativo para a construção dos saberes a serem
experimentados em oficinas pedagógicas e seminários, com o intuito de apresentarem
suas demandas, ao mesmo tempo em que se processará o nivelamento entre as pessoas
envolvidas na proposta.
O segundo passo é desenvolvido por eixo, através de capacitações, diferenciadas
e contínuas, em atividades que apresentem resultados em períodos de médios e longos
prazos, como também capacitações de curta duração. Exemplificando essas
modalidades, uma unidade pedagógica demonstrativa de produção orgânica integrada
com horta, criação de pequenos animais e apicultura como também, oficinas
pedagógicas para aprender a elaborar projetos. Convém salientar que as atividades de
trocas de aprendizagem ocorrerão de forma permanente e, concomitantemente com as
atividades planejadas pelas pessoas no tempo em que essas determinarem nos locais da
instalação das experiências práticas.
O terceiro passo ocorre através da avaliação coletiva constante, desenvolvida
durante todo o processo de implantação da UDPAF, para corrigir rumos incertos, esta
avaliação será desenvolvida nos espaços em que ocorrem os experimentos com a
presença de todas as pessoas envolvidas na ação e, os representantes institucionais, e
quando possível, na presença dos movimentos sociais; entidades financiadoras e as
pessoas interessadas.
O quarto passo, diz respeito ao redirecionamento, dimensionamento e correção
das atividades identificadas como inadequadas para aquele momento. Entretanto, se
observado que num futuro a mesma atividade possa vir ser executada com outras
parcerias, ela volta a ser realocada no planejamento. Exemplificando uma situação
numa questão ambiental de solo degradado, onde se precisa de uma intervenção maior
dos órgãos ambientais, dada a importância do tema, essas possibilidades podem ser
reestudadas.
Por último, o quinto passo diz respeito à apresentação de todos os produtos que
foram resultados das atividades planejadas e serão apresentados em fóruns, seminários,
encontros e trocas de experiências que ocorrerão ao longo do desenvolvimento das
atividades, nos espaços cabíveis.
Assim, pode-se dizer que cada eixo no seu planejamento terá suas atividades
específicas. Mas também, terão suas atividades articuladas com os outros eixos. Neste
sentido, os fóruns, seminários, oficinas pedagógicas que são considerados momentos
pedagógicos nos locais e espaços de diálogo, caracterizam-se como eventos de
aproximação pedagógica com os segmentos de jovens, mulheres, trabalhadores (as),
instituições e movimentos sociais numa perspectiva dialética e dialógica.
DISCUSÃO E RESULTADOS
A ação de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) traduz-se numa
política pública orientada pela Política Nacional de ATER (PNATER) (2007), cujo
objetivo é o atendimento da agricultura familiar em suas distintas modalidades, sendo
coordenada pela Secretaria da Agricultura Familiar (SAF), do Ministério do
Desenvolvimento Agrário (MDA), como estabelece o Decreto nº 4.739, de 13 de junho
de 2003.
Como face da mesma moeda da reprodução ampliada do capital, a ATER
apoia as atividades estruturantes do projeto de industrialização e mecanização do
campo, nos moldes de altos índices de produtividade, embasada em dois pilares
fundamentais: a mecanização e a química, expressas através do uso de insumos e
fertilizantes que representam riscos ao meio. Muitos daqueles foram banidos pela
Associação Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), além de ser progressivo o
aumento do consumo constatando-se inclusive, o apoio do Estado na disseminação de
tais práticas.
A extensão rural compreende instâncias diferenciadas, as quais se
compreendem como processos de ensino-aprendizagem, praticados no âmbito de uma
instituição. Entretanto, nem sempre foi dessa forma. Embora haja esforços no sentido
de promoção da antinomia dos distintos saberes, a extensão como ação e política,
utiliza-se ainda na atualidade, de práticas difusionistas, as quais são criticadas por
autores como Freire (1983) em sua obra ‘Comunicação ou Extensão?’.
Nessa obra o autor discorre sobre a assistência técnica como um processo
educativo de comunicação dos conhecimentos ligados a realidade dos sujeitos do
campo, de ordem técnica, ou diversa. Enfatiza Freire (1983) que a idéia de ‘extensão’ de
um conhecimento é oposta a concepção de ‘comunicação’, a qual compreende a
participação de distintos sujeitos, através de relações de sociabilidade, nas quais o
ensino e a aprendizagem ocorrem simultaneamente, ou seja, os sujeitos envolvidos são
reconhecidos como educadores-educandos e educandos-educadores.
As Figuras 2 a 16, que seguem, apresentam momentos da oficina de construção dos painéis. Ao
término do dia, os participantes já tiveram como produtos dois painéis solares confeccionados por eles
próprios.
Figura 2 (esq) e Figura 3 (dir.) - Etapa teórica: conceitos de eletricidade e eletrônica.
Figura 4 (esq.) e Figura 5 (dir.) - Etapa teórica: uso do multímetro.
Figura 6 (esq.) e Figura 7 (dir.) - Etapa prática:
identificação dos componentes e soldagem dos tab wires nas células solares
Figura 8 (esq.) e Figura 9 (dir.) - Etapa prática: interconexão das células solares, em série.
Figura 10 (esq.) e Figura 11 (dir.) - Etapa prática: interconexão das células solares, em série.
Figura 12 (esq.) e Figura 13 (dir.) - Etapa prática: confecção da moldura,
fechamento e vedação do painel, com silicone
Figura 14 (esq.) e Figura 15 (dir.) - Etapa prática:
Fechamento da moldura e equipe com painel pronto.
Figura 16 – Painel pronto.
Nesse sentido, a assistência técnica embora não possua, necessariamente,
caráter educativo, pois se restringe a orientação técnica, contudo, ao aliar-se a extensão
rural, a assistência técnica passa a promover ações de desenvolvimento do campo e de
seus sujeitos, a partir do diálogo e da troca de saberes científicos e populares.
Freire (1983) discorre sobre o tecnicismo ao discutir a natureza da relação
estabelecida entre o técnico agrícola e o camponês, afirmando que essa relação é de
comunicação ao invés de extensão, esta última que implica na validação e supremacia
do saber do técnico agronômico, desconhecendo a diversidade cultural do camponês,
este que se torna ‘coisificado’ nessa prática como.
(...) objeto de planos de desenvolvimento que o negam como ser de
trans-formação do mundo. O mesmo conceito substitui sua educação
pela propaganda que vem de um mundo cultural alheio não lhe
permitindo ser mais que isso e pretendendo fazer dele um depósito
que receba mecanicamente aquilo que o homem “superior” (o técnico)
acha que o camponês deve aceitar para ser “moderno” da mesma
forma que o homem “superior” é moderno (FREIRE, 1983, p. 7).
De acordo com Arroyo & Fernandes (1999), entende-se que a produção
inclui sentidos diversos, pois incluem, além de culturas agropecuárias, os costumes, as
tradições, as pessoas. Ao cultivar alimentos e sementes o homem também se auto-
transforma, auto-cultiva, tornando-se sujeito cultural. O que o constitui como camponês,
está também relacionado aos tratos culturais da terra e o trabalho que realiza com as
atividades agropecuárias. Daí, a afirmação de Oliveira (2008, p. 47) de não poder
separar-se o ato de produzir da educação, pois esta se relaciona com a vida dos sujeitos,
e nesse caso, os sujeitos do campo em sua relação com a terra.
[...] em espaços e momentos diversos: em casa, no roçado, nas práticas
produtivas e, também, nas possibilidades de articulação dos
camponeses com os movimentos sociais. Nesse sentido, lugares
comuns percorridos diariamente são lidos como espaços plenos de
significados sociais e culturais e saberes de experiências. Tais leituras
precisam ser reconstruídas em suas interfaces com os saberes de
educação formal, na perspectiva de um currículo em ação que
considere a relação de convivência dos assentados com o trabalho e a
educação do campo.
Assim, a educação que se processa no campo pauta-se na historicidade e
deve incluir “práticas educacionais que elaboram, sistematizam e difundem
conhecimentos, habilidades, atitudes e valores a partir das condições sociais de vida e
em função dos interesses dos trabalhadores” (GRZYBOWSKI, 1982, p. 319).
O papel do Estado na atenção aos direitos dos povos do campo apresenta lacunas
em relação à aplicabilidade da política pública de assistência técnica e extensão rural
(ATER), no que concerne ao atendimento a todos esses povos, nos aspectos
quantitativos e qualitativos, especialmente, se considerarem-se a diversidade desses
sujeitos.
A insuficiência da ação estatal nesse espaço, por parte da ATER pública
promoveu a abertura de espaços para a atuação de ONG’s que se destinam a assessoria
técnica, a exemplo da Assessoria de Grupos Especializada Multidisciplinar em
Tecnologia e Extensão (AGEMTE). Contudo, a AGEMTE não intenciona substituir a
assistência técnica pública advinda do Estado, mas pretende colaborar e contribuir ao
campo, promovendo e demonstrando formas inovadoras de Assistência Técnica
Educacional e Extensão Rural (ATEER).
De acordo com a pesquisa do PNERA (BRASIL, 2004, p.103) 81,9% das
famílias do campo, em geral, não recebem assistência técnica, e apenas 18,1% recebem.
Destaca-se a presença desse tipo de ação orientada pelos MSC e Sindicatos com índice
de 11,8%. Nas áreas de assentamentos rurais, esses índices são de 52,6% de famílias
que não dispõem de nenhum tipo de assistência técnica, contra 47,4% que recebem
(BRASIL, 2004, p.145), sendo 16,6% prestada pelos MSC e Sindicatos.
Durante a assessoria prestada são consideradas em sua totalidade, a família e a
unidade física de produção e de vida, a terra. Desse modo, são consideradas a situação
socioeconômica e cultural da família assistida. Esta proposta deve atuar a luz da
Proposta Educacional de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável (PEADS), partindo do
conhecimento, do estudo e da análise do agroecossistema e dos ecossistemas aquáticos,
adotando um enfoque agroecológico aproximando os sistemas produtivos das dinâmicas
ecológicas, tendo como base a permacultura. Um novo compromisso com os
agricultores e agricultoras familiares e com o ambiente deve ser assumido por todos os
profissionais que atuam diretamente nas propriedades.
As ações desenvolvidas pautam-se nos princípios da Educação Popular do
Campo pautados na compreensão do lugar dos sujeitos do campo, de suas
especificidades, do reconhecimento identitário, destacando os princípios pedagógicos da
valorização dos diferentes saberes no processo educativo; dos espaços e tempos de
formação dos sujeitos da aprendizagem; da educação como estratégia para o
desenvolvimento sustentável; da autonomia e colaboração entre os sujeitos do campo
durante a ação de ATER.
Nesse contexto, situa-se a atuação da ATES, ou o que hoje denominamos de
Assistência Técnica Educacional e Extensão Rural (ATEER), através da AGEMTE, em
ambiente construído para funcionar como lócus de produção de distintos saberes com
caracteristicas e processos diferenciados entre si. Destacamos a seguir, a implantação de
UDPAF’s em áreas de assentamentos rurais no Território da Zona da Mata Norte e
Brejo, na Paraíba.
Sendo as UDPAF’s são entendidas como espaços para realização de práticas
pedagógicas, solidificando e disseminando práticas e concepções de Educação Popular
do Campo, se dando mediante o uso de tecnologias sociais de baixo custo, menos
dependentes do sistema externo, construindo grupos de interesses, formados por sujeitos
do campo, previamente sensibilizados a participar de processo de formação continuada,
antes, durante e depois da implantação das UDPAF’s, constituindo ambientes ativos de
trocas e construção de saberes.
Na experiência desenvolvida pela AGEMTE, o processo de implantação das
UDPFA’s se deu em fases sucessivas durante o ano de 2012, nas áreas de assentamentos
rurais supramencionadas, assistidas pela AGEMTE e teve por base tecnologias sócias
como promotora de vivenciais e práticas de construção do saber, destacando-se ao
tecnologias que buscam a autonomia energética na unidade produtiva familiar, em
especial a manufatura e utilização de paneis solares para produção agrícola e pecuária, a
construção de biodigestores e a utilização do gás na cozinha substituindo o gás
comprado e produzindo como resíduo biofertilizando para produção oleícola.
As atividades de implantação foram desenvolvidas em fases distintas, de
acordo com o planejamento participativo realizado pela AGEMTE, juntamente com os
Agricultores Familiares, partindo-se da observação acerca das perspectivas e demandas
locais, considerando os aspectos de gestão, pedagógicos e técnicos relacionados à
agroecologia, com ênfase na permacultura identificando as tecnologias de interesse do
grupo criando um desenho da UDPAF e os acordos para a sua implantação.
Esta ação extensionista empreendida se fundamenta na problematização e
sistematização das demandas surgidas desse diálogo, para em seguida proporcionar os
espaços de aprendizado entre as pessoas, grupos e entidades envolvidas, sempre
partindo de um processo educacional que resguarda o fazer e o saber fazer como
processos teóricos, culminando com a implantação de atividades práticas verificadas, a
partir da implantação das Unidades Demonstrativas Pedagógicas Familiares
consideradas como ‘salas de aulas itinerantes’ consideradas como o lócus de realização
dos serviços e ações de ATES.
A experimentação e descoberta das possibilidades de uso dos equipamentos de
autonomia energética e o despertar da capacidade, conhecimento e domínio do processo
de produção ou construção própria no ambiente rural tem gerado o efeito multiplicador
deste processo que tem os seguintes passos.
A partir desse planejamento serão priorizadas as ações apresentadas pelos eixos
organizacionais, de qualidade de vida, produtivo sustentável, social-cultural e ambiental
com as participações de todos os envolvidos que estão direta ou indiretamente
relacionados ao desenvolvimento do território onde ocorre a ação.
No aspecto da sustentabilidade a AGEMTE prioriza as experiências que
interagem com os princípios da permacultura e da agroecologia, viabilizando
instalações de UDPAF’s destinadas à melhoria da qualidade de vida, priorizando-se
experiências de medicina tradicional e de segurança alimentar e nutricional
apropriando-se do conhecimento popular a partir de práticas alternativas.
No campo sociocultural e ambiental é estimulada a construção de espaços
organizativos através de grupos e movimentos respeitando o estado da arte, e o cuidado
com a memória e origens de seus traços culturais locais. Por outro lado, serão
priorizadas as práticas de cuidado com o meio ambiente, o uso racional da água, o
cuidado com as reservas, o cuidado com o solo e o habitat respeitando os nichos
ecológicos, ao mesmo tempo em que serão construídas tecnologias sociais com os
resíduos e outros elementos disponíveis na natureza.
Diversos olhares e interligações de cunho social, produtivo, ambiental e cultural,
desenvolvem-se conforme os passos propostos, nos quais os custos são descritos no
orçamento e representam os momentos dessa construção que se complementam, quando
da implantação das salas de aulas, ou seja, as Unidades Demonstrativas Pedagógicas
(UDP) e a sua manutenção, instalação no primeiro ano, e, manutenção no segundo ano.
Está representada um conjunto de atividades que contribui para a sustentação
pedagógica e conceitual do processo, com período previsto de sessenta (60) meses,
compreendidos desde a instalação até a consolidação do processo.
Outro tipo de Unidade Demonstrativa (UD) é a UD coletiva, formada pela
identificação de um grupo de interesse definido com a comunidade, a finalidade desta
Unidade, do ponto de vista pedagógico e produtivo, e sua utilização como sala de aula
para construção e fortalecimento do saber popular e técnico.
Em outros casos, as UD foram implantadas na unidade familiar de um Agricultor
Familiar experimentador, ou seja, aquele agricultor/a que se propõe a aprender e aplicar
novas tecnologias sociais sustentáveis em sua unidade de produção, seguindo os
mesmos princípios e acordos, quanto a sua finalidade e uso social, produtivo e
pedagógico. Todas essas UD’s são apoiadas em um sistema de produção integrado e
sustentável, trabalhando a permacultura e uma série de tecnologias sociais de
sustentação e complementação, conforme listamos a seguir.
As tecnologias para autonomia energéticas trabalhadas com os AF permitem
gerar dinâmicas educacionais no campo, ao mesmo tempo em que fortalece o processo
de organização social, produtiva, ambiental e cultural, trabalhando nas oficinas,
múltiplas temáticas, transdiciplinarmente, de maneira lúdica, pedagógica e construtiva
do saber, onde cada tecnologia e espaço são interligados no interior do ambiente,
permitindo e a abordagem desses temas, além de outros como gênero, geração e etnia.
Esse processo educacional, quando instalado no campo, adquire outras
dimensões a partir do olhar da metodologia de Ciclos, ou seja, aquela que considera o
olhar de totalidade do ambiente onde vive e trabalha a família do campo, buscando
inicialmente, garantir a sustentabilidade energética e alimentar, a geração de trabalho e
renda num ambiente integrado.
Neste contexto o resultado mais expressivo quando estamos construindo um
processo dialogado que provoca outros olhares e perspectivas no que se refere as
tecnologias sócias tradicionais e as tecnologias sócias qualificadas para produção e uso
de das energias renováveis de forma inovadora com protagonismo, na lógica da
sustentabilidade e da utilização de novas tecnologias que podem gerar qualidade de vida
e reconhecimento das habilidade, capacidade e importância do home e da mulher do
campo.
Biodigestor no assentamento Canudos em Cruz do Espirito Santo
Purificador de água Solar
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Destacamos inicialmente, que durante o ano de 2012 e 2013, as dinâmicas
desenvolvidas no processo de implantação das UDPAF em relação as atividades
pautadas nas tecnologias sociais e em especial as de autonomia energética tiveram
resultados positivos, embora existirem alguns entraves nesse processo. Contudo, a
diversidade de campos presentes nas realidades de cada assentamento rural, a
capacidade de replicação e a apropriação das tecnologias por parte dos Agricultores
Familiares, bem como a ambiência educacional gerada nesses espaços pedagógicos, se
constituíram como espaços de produção de saberes e conhecimentos pautados nos
princípios da Educação do Campo.
Conforme os relatórios de ATES desenvolvidos pela AGEMTE, foram
realizados nos ambientes dos assentamento em especial das UDPAF’s dois eventos
mensais, com Agricultores Familiares dos assentamentos considerados e, em média, por
UD instalada, ao longo dos 11 meses da implantação e nos 12 messe seguinte,
ocorreram três eventos no Território com o envolvimento desses sujeitos. Participaram,
em média, vinte Agricultores Familiares que acompanhavam e entendiam o processo,
pois participavam dos ciclos de capacitação prática e teórica, no ambiente pedagógico
educacional dos UDPAF, onde se desenvolveram conteúdos sociais e técnicos relativos
às tecnologias desenvolvidas, suas aplicações e racionalidades, problematizando e
construindo o saber e o conhecimento.
Do ponto de vista qualitativo, as dinâmicas sociais fortaleceram os grupos de
jovens proativos no processo, a exemplo dos jovens do assentamento Padre Gino
(2012), os quais relatam que “não se viam no trabalho produtivo e que agora
reconhecem o valor e tem vontade de estar produzindo de forma sustentável e tem
aprendido mais a cada dia, novos conhecimentos”.
A participação efetiva dos sujeitos nas construções conceituais e a busca do
acesso às políticas públicas e novos meiso de produção mais adequados a realidade
produtiva, social e ambiental são vislumbradas e contextualizadas nas problematizações
e atividades de capacitação promovidas no ambiente demonstrativo, pedagógico das
UDPAF’s. Essas Unidades Demonstrativas como espaço de desenvolvimento e estudo
das tecnologia de autonomia energéticas são exemplo de resultados positivos,
constituídas a partir da ação de ATES promovida pela AGEMTE como situação dotada
de historicidade, dinamismo, portanto, a implantação física dessas tecnologias e
processos produtivos e sociais se inicia a partir de um processo de organicidade,
autonomia, construção e cooperação solidária.
Foram trabalhadas seis tecnologias sociais para produção de ou uso de energia
renovável, das mais simples às mais complexas, de um purificador solar de água, a um
sistema de irrigação movido a energia solar, um biodigestor para uso domestico e
produtivo, possibilitando o acesso dos Agricultores Familiares assistidos pela ATES, na
formação em processo com base social, trabalhado segundo os conhecimentos teóricos
necessários a produção e uso das tecnologias.
Esses resultados são amplos, vão desde a utilização sustentável da água, a
produção sem agrotóxicos, o uso das capacidades locais para a solução de problemas
sociais e produtivos, o fortalecimento de parcerias como a criada com o Instituto
Federal da Paraíba (IFPB) para aperfeiçoar a utilização de água na irrigação e a
utilização de tecnologias eletrônicas de baixo custo para mensurar a umidade do solo,
com vistas à economia de água na irrigação e a inclusão dos jovens assentados no
mundo do eletro eletrônico.
REFERÊNCIAS
1. BRASIL. Territórios da Cidadania. Brasília: 2008. Disponível em site
http://www.territoriosdacidadania.gov.br. Acesso em 07 de março de 2013.
2. BRASIL. Pesquisa Nacional da Educação na Reforma Agrária (PNERA).
Versão preliminar. Brasília – DF: PNERA, abril de 2004. Disponível em:
http://www.lepel.ufba.br/PNERA.pdf. Acesso em 24 de março de 2013.
3. ______. Política Nacional de ATER (PNATER). Brasília, 2007. Disponível em:
http://www.mda.gov.br/portal/saf/programas/assistenciatecnica. Acesso em março
de 2013.
4. FALCÃO, Emmanuel & ANDRADE, José Maria. Metodologia para a Mobilização
coletiva e individual. João Pessoa: UFPE/Editora Universitária/Agente, 2002.
5. FREIRE, Paulo. Comunicação ou extensão? Tradução Rosisca Darcy de Oliveira.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
6. GRZYBOWSKI, Cândido. Caminhos e descaminhos dos movimentos sociais no
campo. 3. Ed. Petrópolis; Rio de Janeiro: Vozes, 1982.