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Filosofia Geral II – Marilena Chaui
A QUESTÃO DA TÉCNICA
2º SEMESTRE 2012
Sumário
Aula 01 (06-08-2012) .............................................................................................................................................................. 2
Aula 02 (13-08-202) .............................................................................................................................................................. 13
ELABORAÇÃO MÍTICA ................................................................................................................................................ 13
ELABORAÇÃO RACIONAL DA TÉCNICA ................................................................................................................. 15
Problema geral da Cosmologia .......................................................................................................................................... 15
Os sofistas ......................................................................................................................................................................... 16
Medicina Grega ................................................................................................................................................................. 17
O Diagnóstico médico ....................................................................................................................................................... 18
Aula 03 (20-08-2012) ............................................................................................................................................................ 20
Aula 04 (27-08-2012) ............................................................................................................................................................ 24
Aula 05 (10-09-2012) ............................................................................................................................................................ 30
Aula 06 (17-09-2012) ............................................................................................................................................................ 34
O outro lado do desenvolvimento da técnica ..................................................................................................................... 38
Aula 07 (24-09-2012) ............................................................................................................................................................ 40
Exame da Astronomia como (lento) processo à Modernidade .......................................................................................... 41
Tycho Brahe, Kepler e Galileo: Pré-Modernidade ............................................................................................................ 42
Pesquisas de Kepler ........................................................................................................................................................... 43
Francis Bacon: idéias gerais .............................................................................................................................................. 45
Aula 08 (08-10-2012) ............................................................................................................................................................ 46
Aula 09 (15-10-2012) ............................................................................................................................................................ 57
Aula 10 (22-10-2012) ............................................................................................................................................................ 67
Aula 11 (05-11-2012) ............................................................................................................................................................ 83
Aula 12 (12-11-2012) ............................................................................................................................................................ 93
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Filosofia Geral II – Marilena Chaui
A QUESTÃO DA TÉCNICA
Aula 01 (06-08-2012)
(...) A idéia da causa como operação é a característica da
causa eficiente, ela é uma operação; em princípio as outras causas...
privilégio que foi dado à causa eficiente fez com que nós entendês-
semos por causalidade a idéia de operação. O que nós vamos tentar
mostrar é que a noção de causa, das quatro causas é muito mais
vasta é muito mais ampla do que isso, porque é preciso saber pri-
meiro o que eles entendiam por causa. Então não é por acaso, que
quando ele menciona as quatro causas, ele menciona em latim; ele
menciona em latim por dois motivos: primeiro porque ele conside-
ra que quando os latinos traduziram a Filosofia grega eles destruí-
ram a Filosofia grega, a língua latina é incompatível com a Filoso-
fia e é incapaz de traduzir o grego. Então ele já, de propósito,
começou com a versão latina da causalidade, pra mostrar que é a
versão latina da causalidade que no fim das contas é responsável
pelo privilégio que é dado à noção de causa e (?) eficiência e,
portanto, para a idéia da causa como operação, por isso está na hora
de nós perguntarmos se é isso mesmo (...) é isso que a causa é: e é
preciso perguntar isso para entender porque que as quatro causas
são solidárias, ou seja, uma não opera sem a outra.
A causa eficiente, uma das quatro causas, marca a causali-
dade de uma maneira determinante. Isso vai tão longe que não se
conta mais a causa final, isto é a finalidade como entrando na
causalidade. Basta vocês lerem a Filosofia da Ilustração alemã,
basta vocês lerem do Kant para frente, para ver que a finalidade é
oposta à causalidade. Antigamente, até chegar Kant, nos tínhamos
a causalidade eficiente, dita a causalidade necessária, e a causali-
dade livre, voluntária, chamada a causa pela finalidade; a finalida-
de era considerada uma causa, ela era uma causa em Aristóteles e
Platão. Então o que o Hidegger está dizendo é a noção de causa
eficiente se tornou tão preponderante e ela passou a determinar de
tal maneira nossa concepção de causalidade que, para nós, (...) a
finalidade não é concebida por nós como uma causa, como uma
causalidade, até a oposição entre causalidade e finalidade. Então
isto vai tão longe que não se conta mais, de maneira nenhuma a
causa final, a finalidade, como entrando na causalidade. Causa,
casus, então causa em latim vem de casus, então causa, casos se
ligam ao verbo (?) cair e significam aquilo que faz de tal maneira
que alguma coisa no resultado caia desta ou daquela maneira.
A doutrina das Quatro causas, remonta a Aristóteles. Entre-
tanto, tudo o que as épocas posteriores procuram nos gregos sob a
representação e a apelação de causalidade, não tem no domínio do
pensamento grego e para o pensamento grego, nada em comum
com o operar e o efetuar. O que nós chamamos causa, aquilo que
os romanos chamavam causa, se dizia entre gregos aítia, plural vai
ser aitiai (?) e a causação (?) (...) Se diz em grego aítia; e o qual é o
significado de aítia? Aquilo que responde por uma outra coisa;
aítia significa ser responsável por. De acordo com Heidegger aítia,
causa, não significa uma operação, ela significa uma responsabili-
dade, é responder por alguma coisa. As quatro causas são os modos
solidários entre si do ato pelo qual se responde. E agora então
Heidegger vai dar um exemplo do que significa essa concepção da
causa como aquilo que responde por alguma coisa. A prata é aquilo
de que a taça de prata é feita. Enquanto essa matéria tiver (?) en-
quanto, perdão, enquanto esta matéria (?), a prata é corresponsável
pela taça; a taça deve à prata aquilo do que é feita; ela o é graças a
ela; seja, a taça é o que é, graças à prata. Mas ela não permanece
somente devedora da prata. Enquanto taça aquilo que ela é aquilo
que ela é devedora diante da prata, perdão, aquilo que é devedor
diante da prata, aparece sob o aspecto exterior de uma taça. Esse
aspecto é a forma da taça: matéria (?), forma, eidos idéia. A prata,
enquanto ela entra no aspecto, na forma, né, no aspecto de uma
taça, aspecto sob o qual aparece a coisa de prata, são ambas, taça e
prata, a sua maneira, são corresponsáveis pela taça sacrificial;
portanto, a matéria, causa material e forma, aspecto do objeto,
causa formal, não são operações que produzem a taça, elas são
aquilo que é, são que é responsável pela existência da taça, desta
taça em particular, elas respondem pela... Então, o primeiro ponto
importante, porque mais tarde, quando nós chegarmos lá na ques-
tão tecnológica eu vou retomar esta colocação do Heidegger, a
partir da crítica que o Gianotti faz disso (...) a maneira como Hei-
degger está interpretando Aristóteles... Mas o importante aqui, o
que o Heidegger está dizendo é que há uma inseparabilidade que a
taça de prata apresenta é a inseparabilidade entre matéria e forma, e
é importante que a forma, que é o tema por excelência da Filosofia
Clássica grega, tema de Sócrates, de Platão, de Aristóteles, a for-
ma, o eidos, é o aspecto, isto é, é a maneira pela qual algo se apre-
senta a visibilidade, isso que o eidos é. A idéia é aquilo que se
apresenta ao olho do espírito, é aquilo que o olho do espírito vê.
Bom, a forma é o aspecto que algo tem na visibilidade, que pode
ser a visibilidade sensorial, dos olhos, ou a visibilidade intelectual,
operação do espírito(?). Então, o primeiro instante é, a taça é essa
união de matéria e forma que respondem pela existência dela. Um
terceiro fator, entretanto, permanece antes de tudo, responsável
pela taça; é aquilo que ela inclui, que inclui previamente no domí-
nio da consagração e da oferenda, ela é assim definida como coisa
sacrificial (...). Então o que define, termina a coisa; a coisa que não
cessa com este fim – sacrifício, né – mas começa a partir do fim
porque é o fim que diz o que ela será depois da fabricação. O que
neste sentido termina, define, acaba, se diz em grego télos, palavra
que se traduz freqüentemente por objetivo e fim e que fazendo tal
tradução, se interpreta muito mal. O télos é o responsável daquilo
que como matéria e como aspecto é corresponsável da taça sacrifi-
cial. Em suma, o fim é aquilo que determina porque a taça sacrifi-
cial existe, porque ela é fabricada. Então a matéria e a forma dizem
como a taça á, mas o fim é o que faz a taça vir à existência, enfim,
telos é o que responde pela existência mesma da taça e, portanto
responde pela fabricação dela.
Um quarto fator responde também pela presença e pela
disponibilidade da taça sacrificial acabada (...), mas de maneira
nenhuma no sentido que por sua operação ele produz a taça sacrifi-
cial acabada como efeito de uma fabricação; o ouvires não é causa
eficiente, o ourives é aquele meio pelo qual a forma penetra na
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matéria para realizar (...). A análise de Heidegger vai na direção de
mostrar que a causa menos importante (...) é a causa eficiente, é
aquele que faz, no caso o ourives, das causas a menos importan-
te(...). A doutrina de Aristóteles sequer conhece uma causa desig-
nada com este nome, causa eficiente, e não emprega um termo
grego correspondente a esta (...). O ourives considera e reúne os
três modos mencionados do ato pelo qual se responde. Considerar,
em grego, se diz legein, daí vem logos. Considerar se diz em grego
legein, logos, e repousa sobre o (...), isto é, no fazer aparecer (o ? é
o que faz aparecer). O operário, o ourives é responsável como
aquilo a partir do que a produção e o repousar em si mesmo, em si
mesma da taça sacrificial encontram e conservam a sua primeira
emergência; é a partir do ourives que a taça começa a aparecer a
emergir da não ocultação. Os três modos pré-citados do ato pelo
qual se responde (as três [?] da aítia, material, formal e final),
então, os três modos pré-citados do ato pelo qual se responde por
alguma coisa devem à reflexão do ourives o aparecer e entrar em
jogo na produção da taça, eles lhe devem também a maneira como
eles fazem isto. A taça sacrificial presente e à nossa disposição e
assim regida pelos quatro atos pelo qual se responde; eles diferem
entre si e entretanto são solidários uns com os outros. O que os une
previamente? Em qual meio se exerce o jogo consertado dos quatro
modos do ato pelo qual se responde? De onde provem a unidade
das quatro causas? O que quer dizer “pensado à grega” o ato pelo
qual se responde? Nós, Homens de hoje, nos inclinamos muito
facilmente a compreender o ato pelo qual se responde , de maneira
moral, com (ou como) uma falta, e também, a interpretá-lo como
uma espécie de operação. Nos dois casos, nós fechamos o caminho
que conduz ao sentido primeiro daquilo que mais tarde recebeu o
nome de causalidade. Para nós, Homens de hoje em dia, evitar
essas falsas interpretações, o ato pelo qual se responde nos leva a
esclarecer o que são estes quatro modos partindo daquilo que eles
têm a responder.
(...) Feita esta apresentação da taça a pergunta é: {20´}por
que estes quatro modos de ser responsável por alguma coisa for-
mam uma unidade? O que une previamente estes quatro modos do
responder pela coisa, ou seja, a responsabilidade pela coisa se faz
nestes quatro modos, mas deve haver algo com que faça que estes
quatro modos sejam solidários e estejam unidos desde o começo.
Ou seja, não é no ato de fazer aparecer a taça que eles se unem, é
porque eles estão unidos é que eles são capazes de fazer a taça
aparecer.
Retomemos o nosso exemplo: os quatro modos respondem
pela taça de prata que está diante de nós e à nossa disposição como
uma coisa que serve ao sacrifício. Estar diante, estar à disposição
(?)... hypo em grego significa suporte, sustentação que vai servir
para falar em substância, sujeito. Então, o estar diante e o estar à
disposição (?) caracterizam a presença de uma coisa presente. Os
quatro modos do ato pelo qual se responde conduzem alguma coisa
rumo ao seu aparecer; eles deixam essa coisa advir no ser-perto-de;
eles liberam o ser nesta direção e o deixam se avançar, isto é, vir na
sua vinda perfeita. Então o que os quatro modos – isso é o essencial
do Heidegger – o que os quatro modos de responder pela coisa
fazem é tornar visível, é tornar presente, fazer com que apareça
diante de nós e se disponha diante do nós alguma coisa É isso que
as quatro causas fazem; elas não são uma operação, elas são um
fazer aparecer, fazer surgir. O ato pelo qual se responde tem o traço
fundamental de se deixar avançar na vinda da presença. O ato pelo
qual se responde é um fazer vir. Considerando o sentimento que os
gregos tinham do ato pelo qual se responde – a aítia – nos damos
agora à palavra um sentido mais largo de tal maneira que esta
palavra possa exprimir a essência da causalidade tal como os gre-
gos a pensavam. Ao contrário da significação corrente, mais estrei-
ta, da causa como “ocasionar”, a aítia vai muito além disso, pois
ocasionar evoca apenas um choque inicial e designa uma espécie
de causa secundária no conjunto da causalidade.
Em que domínio, entretanto, se joga o jogo concertado dos
quatro modos de fazer vir? Então, eram os atos pelo qual se res-
ponde e agora este ato pelo qual se responde se chama fazer vir.
Aquilo que não está ainda presente, os quatro modos o dei-
xam chegar na presença, assim eles são regidos de uma maneira
una por um conduzir que conduz uma coisa presente ao aparecer.
Na frase de Platão(?), no “Banquete”; “ Todo fazer vir por aquilo
que ele é, que passa, que se adianta do não presente para a presença
é poíesis; é produção. O ponto essencial é que tomemos a pro-
dução em todo seu alcance, e ao mesmo tempo, no sentido dos
gregos: uma produção – poíesis - não é somente a fabricação
artesanal; ela não é somente o ato petiço e artístico que faz aparecer
e informa a imagem. A physis, a natureza (?)... A physis, pela qual
a coisa se abre ela própria é assim uma produção, é poíesis no
sentido mais elevado, pois o que é presente (?), por natureza, né,
tem em si esta possibilidade de se abrir que está implicada na
produção, por exemplo a possibilidade que tem a flor de se abrir na
floração. Ao contrário, o que é produzido pelo artesão ou pelo
artista, por exemplo a taça de prata, não tem em si a possibilidade
de se abrir implicada na produção, mas ele a tem em um outro (...)
Mas tem um outro em (?), no artesão ou no artista esta possibilida-
de. O que o Heidegger está dizendo é: Por que é que os quatro
modos de se responder pela coisa? Ou porque os quatro modos do
fazer aparecer ou fazer vir são solidários estão sempre unidos; essa
unidade e essa solidariedade é prévia a qualquer ato de fabricação
de um objeto. É que essa unidade, unidade das quatro causas, a
unidade das quatro aítiai, a unidade dos quatro modos de responder
pela presença,ou os quatro modos da produção, são... existem na
natureza, é a natureza que se realiza desta maneira. A natureza, a
physis, é essa potencialidade essa possibilidade infinita de fazer
aparecer (?) por si mesma todas as coisas; e é isso que existe por
natureza que existe na natureza é que (e agora nós vamos usar uma
palavra aristotélica que o Heidegger não usou) que o artesão vai
imitar; ou seja, a operação técnica – vou usar a palavra operação de
propósito – a operação técnica como unidade das quatro causas é
possível porque ela está fundada na natureza; ela é primeiro um
acontecimento natural e por isso ela pode ser um acontecimento
humano; ou seja, o primeiro artesão é a natureza. A natureza é, a
physis, no sentido heideggeriano, é aquilo que não cessa de produ-
zir. Agora nós vamos examinar o que é esse bendito produzir. A
natureza é esse produzir, essa solidariedade das quatro aítiai, e é
isso que o fabricador humano repete; ou como dirá Aristóteles, é
isso que ele imita. O que nos leva depois a entender o equívoco na
maneira que a tradição afirmou que Aristóteles disse que a arte é
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imitação da natureza. A arte, a técnica não é imitação da natureza,
ela imita, ela não espelha a natureza, ela é a reiteração pelo homem
daquilo que a natureza faz, é isso que é a mímesis. A mímesis não é
espelhamento, a mímesis é uma ação, a ação de tornar-se semelhan-
te á, e é isso que a técnica faz, em termos aristotélicos, nós vamos
ver isso mais pra diante quando chegarmos em Aristóteles.
Então, os modos do fazer vir, as quatro causas se exercem,
portanto, no interior da produção; é esta que cada vez vem à luz,
assim como se crê na natureza como no ofício das artes. Agora
Heidegger vai esclarecer o que é a pro-dução.
Mas como tem lugar a pro-dução, seja na natureza, seja no
ofício, seja na arte? O que é o pro-duzir no qual se exerce o quá-
druplo modo do fazer vir? O fazer vir concerne à presença de tudo
que aparece no seio do pro-duzir. O pro-duzir faz passar do estado
escondido ao estado não escondido, ele presenta. Isso aqui é impor-
tante, todos vocês que já leram Gianotti sabem que, graças ao
Gianotti, se consolidou a diferença entre representar, apresentar e
presentar, aquela distinção que vem do Heidegger e que o Gianotti
encontra no Marx e no Wittgenstein. Bom, não vou comentar
nenhuma delas proque não é hora de comentar isso ainda. Mas o
importante é que Heidegger não diz “apresenta”, ele diz, “presen-
ta”. Não é apresentar porque apresentar significa que um agente
torna algo presente, não é isso; ele ta dizendo que há uma ação que
ela própria a ação do da presentificação que aparece primeiro na
natureza e depois aparece na técnica. Então, eu repito, o produzir
faz passar do estado escondido ao estado não escondido, ele pre-
senta. Produzir tem lugar somente enquanto alguma coisa escondi-
da chega ao não escondido; esta chegada repousa encontra o seu
elã naquilo que nós chamamos de o desvelamento. Essa é a palavra
chave da filosofia heideggeriana, né.(...) Aquilo que estava velado,
coberto, escondido é des-velado, presente, manifesto, visível. E é
isto que é produzir.
Então, produzir tem lugar somente enquanto alguma coisa
escondida chega ao não escondido; esta chegada repousa e encon-
tra o seu elã naquilo que chamamos o desvelamento. Os gregos têm
para isto um nome: alétheia, que os romanos traduziram por veri-
tas; e o Heidegger não se cansa de lamentar que alétheia tenha sido
traduzida por veritas e que alétheia tenha se transformado em
“verdade” porque a alétheia é movimento de desocultação do
oculto, não a correspondência e a adequação de uma idéia à alguma
coisa, que é a veritas; veritas é essa adequação, essa correspondên-
cia entre uma idéia e uma coisa, entre o ato intelectual e o objeto
(...) isso é coisa dos romanos, depois é coisa de Descartes, não tem
nada a ver com os gregos; para os gregos a verdade é o desoculta-
mento do oculto, o desvelamento do velado, a aparição do que
estava escondido.
Nós outros, alemães, dizemos wahrheit e entendemos isso
como a exatidão da representação, mas wahrheit é a boa tradução
de alétheia... E aí vem a conclusão do trecho que eu estou citando:
“ em que a essência da técnica tem a ver com o desvelamento? E aí
vem a resposta: em tudo, pois todo produzir se funda no desvela-
mento; no desvelamento reside a possibilidade de toda fabricação
produtiva. Assim, a técnica não é um meio, não é um instrumento,
a técnica é um modo do desvelamento. Então, é isso a técnica para
os gregos.
Agora nós vamos descer do céu nublado para uma terra
plana cheia de arvores, de flores e de frutos. Eu vou agora acompa-
nhar o Vernant.
No quadro da técnica e da economia antigas, o trabalho não
aparecia ainda senão no seu aspecto concreto. Deixe-me dizer, o
Vernant está fazendo um comentário a partir da elaboração feita
pelo Marx, logo na abertura do “Capital”, no ptimeiro capítulo do
Capital, da passagem do trabalho concreto, trabalho efetivo que
cada um realiza, ao trabalho social, a forma de ação no interior da
sociedade capitalista e, portanto, esse trabalho social como trabalho
ação. Então o que o Vernant está dizendo é, se eu vou do Marx
para os gergos o que eu vejo? Não existe uma sociedade de merca-
dorias {40’}, uma sociedade mercantil grega que esteja fundada no
caráter social do trabalho, esteja portanto, fundada num trabalho
abstrato, ela está fundada num trabalho concreto, isto é, o trabalho
individual, o que é trabalho abstrato? O trabalho abstrato é o que
produz valor de troca, o trabalho concreto é o que produz valor de
uso; Então é disso que está falando Vernant. No quadro da técnica
e da economia antigas o trabalho não aparecia ainda senão pelo seu
aspecto concreto. Toda tarefa se encontra definida em função do
que ela deve fabricar; a sapataria, com relação aos sapatos, a cerâ-
mica com relação ao pote. Não se olha para o trabalho na perspec-
tiva do produtor como expressão de um mesmo esforço humano
criador de valor social (que é o que o trabalho é no capitalismo);
Não se encontra na Grécia antiga uma grande função humana, o
trabalho cobrindo todos os ofícios, mas uma pluralidade de ofícios
diferentes cada um dois quais constituindo um tipo particular de
ação, produzindo a sua obra própria. E o Vernant (...) ele comenta
o fato de que não existe em grego a palavra trabalho e não existe
em latim; em grego, as palavras que se referem àquilo que nós
chamamos de trabalho são ou: ponos(?) e significa dor, pena,
sofrimento, fadiga, tudo que exige um esforço excessivo; e ergon
(?) que quer dizer “obra”, mas que é já a coisa pronta. A nossa
palavra (...) “trabalho” vem do termo latino tripalium(?) que era
um instrumento de tortura dos escravos, eles eram torturados, esse
é o trabalho. Então a idéia... claro, em sociedades aristocráticas,
oligárquicas, escravistas e que, portanto (...) nem sequer tem uma
palavra para a palavra trabalho; o trabalho não é uma realidade
importante nessas sociedades.
O trabalho se encontra, portanto, estreitamente ligado ao
domínio dos ofícios artesanais. Este tipo de atividade se define de
início pelo seu caráter de estrita especialização, pela sua divisão.
Cada categoria de artesãos é feita para uma única obra; mas, como
Marx notou, a divisão do trabalho na antiguidade é vista exclusi-
vamente em função do valor de uso do produto fabricado. Ele visa
tornar cada produto, tão perfeito quanto possível, o artesão fazendo
uma coisa tanto melhor quanto mais ele é especialista nela e só faz
ela. Cada ofício constitui um sistema fechado no interior do qual
tudo está solidariamente submetido à perfeição do produto a fabri-
car; os instrumentos, as técnicas e até a natureza íntima do artesão,
que deve ter qualidades específicas que não pertencem senão a ele.
Eu depois vou examinar esta idéia, examinando uma das técnicas
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gregas, vou tomar como exemplo uma das técnicas gregas que é a
Medicina e o que isto exige como característica corporal, caracte-
rística psíquica (...) como unidade de personalidade, requisitos da
personalidade para ser médico. Não é entrou ali na faculdade (...) o
diploma e mata nós todos à vontade; ser médico, além das regras
do ofício está ligado à determinadas qualidades da personalidade
daquele que vai exercer o ofício; e isso valia para todas as técnica,
todas. Então cada ofício constitui um sistema fechado no interior
do qual tudo está solidariamente submetido à perfeição do produto
a fabricar; os instrumentos as operações técnicas e até mesmo a
natureza íntima do artesão certas qualidades específicas que não
pertencem senão a ele. O ofício se apresenta, portanto, como um
fator de diferenciação e de fechamento, separação entre os cida-
dãos. Se eles se sentem unidos numa única cidade, não é em função
do seu trabalho profissional, mas, malgrado o trabalho e fora o
trabalho; o liame social se estabelece para o além do ofício sobre o
único plano em que os cidadãos podem amar-se reciprocamente
porque aí eles se comportam de modo idêntico e não se sentem
diferentes uns dos outros. (Das atividades não profissionais, não
especializadas que compõe a vida política e religiosa da cidade[?]).
Esse elemento vai ser muito trabalhado pelo Francis Wolf quando
ele analisa a democracia grega; e ele diz em um dos pontos o que
distingue a democracia grega da democracia liberal é que a demo-
cracia liberal considera o governo é uma administração e que essa
administração cabe a um conjunto de indivíduos dotados de certas
competências técnica e científicas pelas quais eles são legitimados
a mandar. Ao contrário, o que caracteriza a democracia antiga,
particularmente a democracia grega é a idéia de que do ponto de
vista político todos são igualmente competentes, não existe nin-
guém mais competente do que outro no campo da política; então é
por isso que o Vernat está dizendo que enquanto os ofícios (...) o
escravo, né, os ofícios separam os próprios artesãos uns dos outros,
categorias diferentes e os separam dos outros cidadãos, a política
os une, porque aquilo que é exigido no ofício é a extrema compe-
tência (...) como algo específica, a competência específica exigida
pelo ofício, ou seja, a técnica impondo a especificação da compe-
tência e, ao contrário, a política não é a técnica, e a política se
realiza porque todos são igualmente competentes (como todos os
cidadãos[?]). Então eu repito aqui, o liame social se estabelece para
além do ofício; no único plano em que os cidadãos podem amar-se
reciprocamente porque aí eles se comportam de maneira idêntica e
não se sentem diferentes uns dos outros; (as) atividades não profis-
sionais não especializadas que compõe a vida política e religiosa da
cidade. Não estando, portanto, apreendido na sua unidade abstrata
– trabalho social, produtor de valor de troca – não estando apreen-
dido na sua unidade abstrata, o trabalho na sua forma de ofício não
se manifesta ainda como uma troca na atividade social, ou seja, ele
não é uma função social de base. Ele parece, antes de estabelecer
entre o fabricante e o usuário um produto e um vínculo pessoal de
dependência; a relação que se estabelece é uma relação de serviço
não de trabalho. Na esfera do seu ofício, as capacidades do artesão
estão rigorosamente submetidas à sua obra, sua obra, rigorosamen-
te submetida às necessidades e carências do usuário. O artesão e a
arte existem em vista do produto e o produto existe em vista da
necessidade ou da carência; e não poderia ser de outra maneira,
uma vez que o produto do trabalho é considerado exclusivamente
sob o aspecto do seu valor de uso e não do seu valor de troca.
Enquanto valor de uso, o produto se define, com efeito, pelos
serviços que ele presta àquele que se serve dele. Na perspectiva do
valor de uso o produto não é visto em função do trabalho humano
que o criou; o produto não é trabalho cristalizado, ou na linguagem
do Marx, o produto não é o trabalhador objetivado, assim como o
produto não é... a subjetividade do trabalhador não está cristalizada
no objeto que ele produziu, não há essa relação. Ou seja, na pers-
pectiva do valor de uso, o produto não é visto em função do traba-
lho humano que o criou como trabalho cristalizado; ao contrário ele
é o trabalho visto em função do produto, como próprio a satisfazer
tal ou qual carência do usuário; por intermédio do produto, o traba-
lho institui, portanto, entre o artesão e o usuário uma relação eco-
nômica de servidão, uma relação irreversível de meio ao fim; ou
seja, o artesão não produz o que der na telha, o artesão produz o
que o usuário precisa (?). Mesmo que o artesão não seja um ho-
mem livre, seja um escravo, a relação econômica, por ser uma
relação de serviço é uma relação de servidão. Transposto do plano
econômico pra o da reflexão filosófica esse sistema de relações
entre o artesão, sua atividade, o produto e o usuário encontram sua
expressão na teoria geral da atividade demiúrgica. Toda produção
demiúrgica, em toda produção demiúrgica, o artesão é a causa
motriz, causa eficiente; ele opera sobre o material, a causa material,
para lhe dar uma forma, causa formal que é cada obra acabada. Não
sei se vocês percebem a mudança de nível que há na análise do que
são as quatro causas; o que o Vernant tá mostrando é socialmente e
economicamente, o que são essas quatro causas, quem são elas.
Então, esta forma, as quatro causas, né, que é o núcleo da demiur-
gia, da fabricação... esta forma constitui ao mesmo tempo a finali-
dade da operação (...), é a causa final que comanda o conjunto da
atividade fabricadora ou da atividade demiúrgica. (?) A verdadeira
causalidade do processo (?) não reside no artesão, mas fora dele, no
produto fabricado, isto é, no que foi pedido pelo usuário. A essên-
cia do produto fabricado é ela mesma, independente do artesão, dos
seus procedimentos de fabricação, da sua habilidade ou das suas
inovações técnicas; o modelo imutável e inegendrável, ela se define
em termos de finalidade com relação à carência ou necessidade que
ela deve satisfazer do usuário. A essência de uma cadeira é a per-
feita adaptação de todas as suas partes para o uso que dela será
feito. A produção artificial não requer na sua dinâmica outros
princípios que não os da produção natural, ou seja, a natureza
também opera assim, como o Heidegger havia dito, só que é uma
operação, um desvelamento da produção, é uma operação concreta
(...).A natureza faz isso e o Homem também. A produção artificial
não requer na sua dinâmica outros princípios senão o da produção
natural; é sempre a finalidade do processo, a forma em ato realiza-
da na obra que é o princípio e a fonte de toda operação. A causa
motriz não é realmente produtiva, ela exerce o papel de um meio
pelo qual uma forma pré-existente, ou seja, existência na cabeça do
usuário, existência na cabeça do técnico, uma forma pré-existente,
uma idéia existente se atualiza numa matéria, é isso o que o artesão
faz, né, ele atualiza numa matéria uma idéia, um aspecto, uma
forma pré-existente.
Assim como o Homem vem do Homem por intermédio da
semente, a casa vem da casa por intermédio do pedreiro (...). O
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Homem vem do Homem por intermédio da semente, pela ação da
natureza é a de atualização da semente no ser humano e, a casa
vem da casa, ou seja, esta casa é produzida a partir da idéia da casa
graças à mediação do pedreiro. O pedreiro é aquele que põe a idéia
da casa ou a forma da casa nessa matéria. Então, esta frase guar-
dem porque esta frase de alguma maneira, esta frase aristotélica é
uma súmula do pensamento da técnica entre os gregos, assim como
o Homem vem do Homem por intermédio da semente, a casa vem
da casa por intermédio do pedreiro. A operação do artesão constitui
aquilo que o grego chama de poíesis, produção e que ele opõe à
práxis, isto é, ação propriamente dita. Para que haja, em sentido
próprio, ação, é preciso que a atividade tenha nela mesma seu
próprio fim e que o agente, no exercício do seu ato se beneficie
diretamente daquilo que ele (?), por exemplo, na atividade moral, o
agente informando-se a si mesmo produz um valor que tem ao
mesmo tempo um uso; mas este não é o caso da poíesis; a poíesis
cria uma obra exterior ao artesão e estranha à atividade que a pro-
duziu. Entre o trabalho do artesão e a essência da obra definida
pelo seu uso não há medida única, eles se situam sobre dois planos
diferentes, um deles submetido ao outro como o meio ao fim sem
ter parte na sua natureza. O que o Vernant está fazendo aqui é
retomar a posição de Aristóteles que eu vou examinar quando nós
chegarmos em Aristóteles, vamos examinar com mais detalhe, mas
a diferença que existe no pensamento grego e que é depois temati-
zada por Aristóteles na distinção entre a práxis e a poíesis. A prá-
xis é aquela ação que encontra em si mesma a sua finalidade, ela é
aquela ação na qual o agente, a ação que ele realiza e a finalidade
pela qual ele realiza a ação, são idênticas.{60’} Há uma imanência
do agente, a ação,e ao fim; eles não se distinguem. É por isso que o
campo da práxis é a moral e a política.
A poíesis é aquela ação que é uma operação, ou seja, nela,
o agente, a ação que ele realiza e a finalidade que é realizada são
três termos diferentes. A ação é a ação de fabricar, o agente é o
artesão e o fim é a obra; três termos separados. E a poíesis pertence
ao campo da economia. E é por isso que vai haver depois um esfor-
ço gigantesco do Marx para dizer “o trabalho é práxis”. Toda
análise que o Marx faz, especialmente a questão da alienação e
desalienação do trabalho está ligada ao desmanche desta divisão
que permaneceu na história do pensamento ocidental (...) dos gre-
gos aos nossos dias que é distinção entre a práxis e a poíesis.
A fabricação de um objeto é uma coisa, o uso desse objeto,
uma outra coisa radicalmente diferente; assim nenhum artesão tem
enquanto trabalha o uso daquilo que ele faz, alienando-se da forma
concreta do produto, seu valor de uso, o trabalho do artesão se
manifesta como serviço para o outro: servidão, escravidão. Entre as
mãos do usuário, o artesão tem o papel de um instrumento destina-
do a satisfazer diferentes carências. E Aristóteles, definindo os
(poietica organa?), os instrumentos que produzem objeto pode citar
lado a lado os instrumentos e os artesãos, ou seja, o artesão é um
instrumento entre outros. E a definição aristotélica do escravo (...) é
um instrumento dotada de palavra (...); é por isso que você pode
fazer tudo na frente do escravo, falar o que você quiser (...) o es-
cravo está no interior da intimidade absoluta da casa, ele está pre-
sente nas coisas mais terríveis que ocorrem no interior da casa, mas
ele não está lá, ele não é gente, ele é um instrumento que fala. Esta
decalagem entre a operação produtiva e o produto, dessa decala-
gem entre a operação produtiva e o produto resulta que não é o
artesão como tal que terá o melhor conhecimento da forma que ele
deve encarnar na matéria, suas manipulações concernem aos pro-
cedimentos de fabricação; as regras certas, os meios de ação sobre
a matéria para dar forma o ultrapassam; a ciência da forma, isto é, a
ciência do produto na sua essência é como um fim quilo que per-
tence exclusivamente àquele que sabe para que serve a coisa e
como se servir dela, isto é, pertence ao usuário. É por isso que a
causa final comanda o processo. A causa final comanda o processo,
não como diz o Heidegger, porque ela é o lugar do desvelamento...
ela comanda o processo porque é o usuário, é ele que diz eu quero
que seja assim, por isso, por isso, por isso, porque uma cadeira, a
idéia de uma cadeira é isso, isso, isso; a idéia de uma taça sacrifici-
al é isso, isso, isso... Então, no limite, o trabalho artesanal aparece
como pura rotina, aplicação de receitas empíricas para tornar um
material conforme um modelo cuja natureza se faz conhecer de
fora pelas indicações e pelas ordens do usuário. Submetida a outro,
à outra, tendendo para um fim que a ultrapassa, como a poíesis do
artesão poderia ser sentida como uma verdadeira conduta de ação,
ou seja, como poderia passar pela cabeça do artesão definir-se a si
mesmo como trabalhador? Essa figura é inexistente; aquilo que
caracteriza os trabalhador moderno, o trabalhador contemporâneo
está ausente aqui, não pode definir-se a si próprio, portanto, como
sujeito da ação, é isso que ele não é. Nós vamos ver que existem
três tipos de figuras ligadas à técnica: o arquiteto, o engenheiro e o
artesão propriamente dito; e o artesão é essa figura que faz... que
cumpre regras rotineiras, que respeita uma ordem recebida do
usuário.
Então, submetido a outrem, tendendo para um fim que a ul-
trapassa, como a poíesis do artesão pode ser compreendida como
uma verdadeira conduta de ação? Para distingui-la da atividade
autêntica, a práxis, Aristóteles chama a poíesis de kínesis. Eu vou
voltar a isso depois. Movimento, cinemático, cinema, kínesis,
movimento que implica uma imperfeição, correndo em busca de
um fim que está para além dele, este movimento não possui em si a
enérgeia, o ato. Enérgeia é o ato, dýnamis é a potência.
Então, a natureza é a força para fazer passar ao ato aquilo
que existe em potência; práxis é isso também; força para fazer
passar ao ato o que está em potência, a poíesis é incapaz disso, ela
não tem força sozinha para poder fazer isso. Onde é que está o ato
que puxa o artesão, que faz o artesão operar? Está fora dele, está na
forma que ele tem que por na matéria e a finalidade que ele tem
que cumprir, está fora dele. Então, o ato está presente na forma
realizada, no produto e não no esforço do trabalho, na energia
humana dispensada, na produção. Quando a atividade humana,
escreve Aristóteles, não engendra nada fora dela ela é práxis e o
ato reside no interior do próprio agente; e ele acrescenta: em todos
os casos nos quais, independentemente do exercício, existe a pro-
dução de alguma coisa o ato está não no agente, mas no objeto
produzido. A ação de construir, por exemplo, está como ação,
naquilo que está construído, a ação de tecer, naquilo que está teci-
do; compreender-se-á, portanto, que nesse sistema social e mental,
o homem age quando utiliza as coisas e não quando as fabrica; o
ideal do homem livre, do homem ativo, é de ser universalmente um
7
usuário, jamais produtor; o verdadeiro problema da ação, pelo
menos na relação do homem com a natureza, é o do bom uso das
coisas e não da sua transformação pelo trabalho.
Por que eu fiz essa longa menção {70’} aos textos do Hei-
degger e do Vernant? Eu fiz isso por dois motivos: primeiro, como
eu já observei, para marcar a diferença entre uma interpretação
abstrata e uma interpretação concreta da técnica na Grécia antiga e
na Grécia clássica. Em segundo lugar, para indicar que esta questão
é muito mais complexa do que eu poderia apresentar neste curso
porque este curso, portanto, é apenas uma introdução ao pensamen-
to sobre as técnicas e sobre as tecnologias; ou seja, não é um curso
que está à altura da abstração do Heidegger nem da compreensão
do Vernant. É uma introdução.
Feito isso, eu vou apresentar o quadro geral de como a téc-
nica se apresenta na sociedade grega clássica, e a concepção de
natureza e na qual ela opera; eu vou concluir este quadro apresen-
tando o grande paradigma da técnica e do pensamento da técnica
na Grécia clássica que é examinado por Cornelius Castoriadis na
“Instituição do Imaginário da Sociedade”; a conclusão do percurso
é a apresentação do paradigma grego da técnica, segundo o Casto-
riadis. (...) A sociedade grega, uma sociedade escravista, e mesmo
nas cidades democráticas... (nem todas eram cidades democráticas,
havia cidades monárquicas), mas, mesmo nas cidades democráti-
cas, o que prevalece do ponto de vista da construção de um ideário
a respeito do humano e do valor do humano é feito sob uma pers-
pectiva aristocrática. Ou seja, a perspectiva aristocrática é aquela
que tem um desprezo pelo trabalho manual e que vê o trabalho
como corruptor do corpo e da alma, o trabalho deforma o corpo e a
alma, o trabalho é ruim, e por isso que ele é ponos, pena, dor,
sofrimento, fadiga, ele é horrível.
A excelência de um ser humano, a verdadeira excelência de
um homem, por que não tem mulher lá... então, a excelência de um
homem que os gregos chamam de arete que é um termo mais
amplo do que virtude... A excelência de um homem é definida a
partir da figura do jovem belo e bom. O jovem belo é aquele que
tem o corpo feito graças ao exercício, à ginástica e a guerra; e ele é
bom porque ele respeita os deuses da... ele conhece Homero, ele
respeita os deuses da cidade e está disposto a morrer por ela. O
jovem belo e bom é, portanto, daquele corpo perfeito e está desti-
nado à guerra, à política e à teoria, contemplação filosófica. Isso
explica porque nesta perspectiva não exista nenhuma palavra para
dizer trabalho. E mais, a palavra que diz “artesão”, banausos, é
empregada sempre com um sentido pejorativo, uma coisa menor;
banausos pode ser um artesão livre, um homem livre, não precisa
ser necessariamente um escravo.
O segundo ponto a observar é, como nós vimos, pelo en-
saio de Vernant, no plano econômico, na sociedade grega, o mer-
cado interno não era importante; a riqueza provinha das grandes
trocas que vinham do comércio exterior, do imperialismo marítimo
e dos espólios obtidos na guerra, e por esse motivo não havia ne-
nhuma exigência econômica e social interna que pedisse um de-
senvolvimento, um aprimoramento, uma transformação das técni-
cas.
O terceiro ponto, a tékhne é um saber, mas ela é um saber
prático que é obtido por experiência e realizado por habilidade. Ela
exige grande capacidade de observação, memória, agudeza senso-
rial e senso de oportunidade. Eu depois vou mostrar que essas são
características que chama a inteligência prática dos gregos e que
estava sob a proteção de uma deusa chamada Métis. Mais adiante
quando eu terminar esse quadro, nós vamos ver a concepção, a
formulação da técnica que vem dos mitos, como é que há uma
formulação mítica, a respeito da origem da cultura e da técnica e é
lá que nós vamos encontrar Métis. Mas, apesar desta elaboração ter
sido feita miticamente ela permanece nos quadros da sociedade
grega depois, quando se passa do mito à razão, como qualidades
específicas que técnico tem que ter porque são qualidades da Métis:
grande capacidade de observação, agudeza sensorial, memória,
senso de oportunidade; ela se refere a toda atividade humana que se
realiza de acordo com regras que ordenam a experiência e que por
isso tem a capacidade de afastar o acaso; eu depois vou trabalhar
essa idéia. Acaso se diz týkhe.
Um quarto elemento é que a técnica, e nós vimos isso tanto
no texto do Heidegger como no texto do Vernant, a técnica opera
com a relação entre matéria (hýle) e forma (eidos); ela não é con-
cebida como uma produção no sentido moderno que nós damos a
este termo, isto é, ela não cria alguma coisa porque ela é pensada
como transformação de uma matéria el alguma coisa que essa
matéria está apta a receber; a madeira está apta a receber a forma
da mesa, a forma da cadeira, a água não; o cobre está apto a receber
a forma da estátua, a água não, o ar não. {80’} Ou seja, há uma
relação entre matéria e forma na qual o que o artesão aprende e tem
de saber é: a que está apta a matéria com a qual ele trabalha. Então,
o fio está apto a receber a forma do tecido, não a da estátua; ele
está apto a receber a forma dada pelo tecelão, mas não pelo escul-
tor. Então, esse saber é um saber fundamental para o técnico. En-
tão, a técnica opera com a relação entre a matéria (hýle) e a forma
(eidos), sem ser concebida como uma produção, criação, mas como
uma transformação, mais do que isso, ela é uma fabricação, aquilo
que os gregos chamam de demiurgia. O demiurgo é aquele que
fabrica a partir de uma matéria prévia que lhe é dada, então ele
recebe uma matéria prévia e a partir do conhecimento que ele tem
das aptidões dessa matéria e das capacidades dessa matéria para
receber determinadas formas ele imprime formas nela. É assim que
no “Timeu” Platão explica a criação do mundo; o demiurgo vai
imprimir na hýle, vai imprimir na matéria as formas das idéias que
ele contemplou; esse é o modelo da técnica. O modelo da técnica,
portanto, é de imprimir numa matéria uma forma para a qual a
matéria está apta.
Então, o técnico age sobre a dýnamis, isto é, a potenciali-
dade, a virtualidade de uma certa matéria, portanto, sobre a dispo-
nibilidade virtual ou aptidão potencial que essa matéria tem para
receber uma forma que é compatível com a sua natureza.
Um outro aspecto importante é que a técnica não é, como
será a partir da modernidade, ela não é uma intervenção para domi-
nar a natureza, ela é uma operação para usar a natureza em favor
dos homens e do que é útil para eles. E é por isso que o técnico é
definido como aquele que obedece a natureza para poder utilizá-la.
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Ele é aquele que diz: “repensem, repensem”, que é toda essa pro-
paganda ecológica que está por aí... “Repense”, não há como re-
pensar; não tem como repensar numa técnica como a nossa, que
não é de uso da natureza ela é de intervenção sobre ela para domi-
ná-la, não tem como repensar. Tem que começar tudo de novo.
Uma sexta característica da técnica, então os instrumentos
empregados na fabricação de outros objetos não são instrumentos
de precisão; eles são pensados e tomados como extensões do corpo
humano. São órgãos fabricados para ampliar as forças e as habili-
dades dos órgãos humanos. O objeto é, portanto, o homem estendi-
do no espaço, o instrumento técnico. Ou seja, a técnica toma a
força animal e a força humana como paradigma para a construção
dos instrumentos de fabricação... e, portanto, esses instrumentos
são fabricados a partir do modelo do corpo humano e do tempo
humano. Essa idéia vai permanecer até a revolução informática;
sempre a idéia de estender o poder do corpo. Mesmo quando você
tem a mudança da técnica em tecnologia, essa idéia permanece, que
você estende no espaço e no tempo é o corpo humano; e com a
revolução da informática você não estende mais nada, é o cérebro...
Não é o corpo humano que vai, é o pensamento.
A palavra grega {86’10”}(?) (?) rigorosamente significa
estratagema eficaz, invenção engenhosa, ou seja, o instrumento (?),
que é o expediente astuto por meio do qual o mais fraco pode
vencer as resistências que são impostas pelo mais forte, a natureza.
Com isso podemos dizer que a maquina grega é literalmen-
te uma maquinação, uma maquinação do homem, um estratagema
astuto para contornar os obstáculos que a natureza lhe impõe (pala-
vras gregas) (...).
Os técnicos, no seu conjunto, são chamados (?), da palavra
ergon (?), que significa obra, são os obreiros, que realizam serviço
por encomenda, como nós já vimos. Eles podem ser escravos, mas
é raro; em geral o escravo trabalha em casa fazendo trabalho do-
méstico; de um modo geral, portanto, os (?) são homens livres que
vendem os seus serviços, e sua função, portanto, é uma função
prática e econômica. Eles são de três tipos: o arquiteton {90’}, o
mecanopoios, e o banausos.
O arquiteton, o arquiteto é aquele que possui o conheci-
mento da arkhé, dos princípios que governam sua prática, ele
conhece, portanto, os princípios racionais da sua técnica, possui
uma visão sistemática dela, e é capaz de demonstrar racionalmente
este conhecimento. Sua atividade é prioritariamente intelectual e
seu conteúdo é um conteúdo intelectual, transmissível por meio da
aprendizagem. Assim, por exemplo, um construtor que conhece a
natureza, as causas e as formas de construir, é um arquiteto. Um
médico que conhece a natureza, as causas e as formas da saúde e da
doença é um arquiteto, ele conhece a arkhé por isso ele pode de-
monstrar racionalmente este conhecimento.
A figura do arquiteton indica que a técnica é concebida
como um saber, mas é um saber prático que se opõe a um outro
saber prático que é a magia. Isso é muito importante porque quando
nós chegarmos na renascença a técnica vai ser exercida como
magia, magia natural; aqui não, aqui a técnica vai se opor – depois
eu vou explicar mais adiante no curso porque o arquiteto rompe
com a magia. Ele rompe com a magia, isto é (?) moira, que é um
dom divino; e ele se opõe também ao acaso, týkhe.
Então, o saber do arquiteto, oposto à magia como dom di-
vino e ao acaso, a impossibilidade de saber, um conjunto de regras
racionais que constitui um méthodos, isto é, um caminho certo, é
isto que méthodos quer dizer; caminho certo para a operação que
vai ser realizada.
O arquiteto ocupa uma posição intermediária entre o filóso-
fo, o sábio (...) e o mecanopoios; o mecanopoios é o engenheiro, o
construtor, não só de máquinas, mas no sentido amplo do termo.
Ou seja, o arquiteto está acima, abaixo do filósofo e acima do
engenheiro, ele está numa posição intermediária. Isso não mudou
muito, né.
O mecanopoios, (?) maquina, poios (?), o mecanopoios é o
homem hábil, que a máquina é isso, uma habilidade astuciosa, o
homem hábil que tem um conhecimento prático dos princípios
racionais e das regras de fabricação das coisas; ele tem o conheci-
mento do funcionamento e do emprego dos instrumentos e das
máquinas, ele é um construtor de máquinas, ele é um inventor e é
capaz de um saber demonstrativo a respeito da sua prática constru-
tiva. Abaixo dele se encontra o artesão propriamente dito, o obrei-
ro, no sentido forte do termo, isto é, o banausos, trabalhador; este é
desprovido de todo saber teórico, ele permanece no campo da
empiria, ele cumpre as ordens do mecanopoios, ele recebe, portan-
to, regras e rotinas para a fabricação de instrumentos e para o uso
desses instrumentos, e é ele, mais do que o mecanopoios e o arqui-
teto que está submetido à figura do usuário. Cada um no seu plano
de conhecimento, o arquiteto e o engenheiro, o arquiteto e o meca-
nopoios inventam métodos cujas regras podem ser resumidas da
seguinte maneira, embora sejam métodos diferentes do que um
arquiteto propõe e do que o engenheiro propõe, o núcleo da racio-
nalidade na qual eles operam, pode ser resumida em quatro regras
que eles respeitam ao formular seu conhecimento, seu (?): primei-
ro, uma proposição não pode contradizer uma antecedente nem a
seguinte; essa é a exigência de não contradição do pensamento.
Segundo: deve-se conhecer e estabelecer regras matemáticas de
uma prática – lembrando o sentido da palavra matemática ou de ta
mathema para os gregos; matemática não é geometria, aritmética,
álgebra; a aritmética, a geometria, a álgebra, como a música, a
astronomia, a filosofia, etc, são matemáticas. Matemático significa
aquilo do qual se pode obter o domínio intelectual. Algo é matemá-
tico quando ele pode ser objeto que é integralmente dominado
intelectualmente, ou seja, eu posso conhecê-lo plenamente; por isso
que Spinoza escreve uma ética à maneira dos geômetras, uma ética
à maneira matemática, com o sentido não de o que ele vai apresen-
tar é criando princípios e sim o conhecimento completo, pleno e
total do objeto, isto é matemático. Então, é isso que é exigido desse
saber prático. É preciso que ele possa estabelecer e conhecer regras
matemáticas, ou seja, que dominam intelectualmente, que tenha o
domínio intelectual dos procedimentos que devem ser empregados
para determinar a relação correta entre uma matéria e uma forma
{100’}. O ser deve-se sempre partir de causas naturais e de princí-
pios naturais porque a técnica não se opõe à natureza, se realiza da
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mesma maneira que a natureza; portanto, quarta regra geral, o
técnico deve submeter-se à natureza e obedecê-la.
Uma oitava característica da técnica é que ela é insepará-
vel, como já vimos com a palavra “máquina”, ela é inseparável das
idéias de estratagema e de saber fazer, mas no sentido de savoir
faire, ou seja, ela é inseparável da idéia de um saber prático, enge-
nhoso, hábil e eficaz, que é capaz de demonstrar racionalmente,
que é capaz de ser demonstrado racionalmente, que pode ser de-
monstrado racionalmente.
Por que a técnica é essa engenhosidade eficaz, essa habili-
dade, esse saber fazer, esse savoir faire? Porque ela opera na região
do movimento, da kínesis, isto é, de tudo aquilo que está em mu-
dança. Vocês sabem, kínesis, movimento, não significa como pra
nós essa coisa muito pobre de mudança de lugar; movimento signi-
fica, não só para os gregos, mas para todos os filósofos que tratam
da noção de movimento, o caso talvez mais fulgurante seja o de
Hegel, movimento significa “devir”, transformação, mudança na
qualidade, mudança na quantidade, geração, corrupção, desenvol-
vimento, morte, não é mudança de lugar; a coisa menos importante
no movimento é a mudança de lugar; o movimento é o acontecer da
natureza. Ora, é nessa região que o técnico opera. O filósofo, seja
ele platônico, seja aristotélico, seja estóico ele faz um (?), o epicu-
rista não, é mais interessante: ele faz um esforço para se descolar
da natureza e ir em direção ao imóvel. As formas platônicas, as
essências aristotélicas, as idéias estóicas são imóveis, estão fora do
campo do devir do campo da mudança. O que que nós vamos
fazer? Graças a esse conhecimento com o que está em movimento
é outro (?), mas há um esforço inicial pra descolar a teoria do
movimento; da teoria ser um saber do conhecimento, ela própria
imóvel. Ora, o técnico é aquele que não pode fazer isso. O campo
de operação da técnica, o lugar da técnica é o do mundo em movi-
mento, da natureza movente movida, da natureza, portanto, em
transformação contínua; ou seja, o técnico opera na natureza como
acontecimento incessante; e portanto, o técnico tem de lidar ininter-
ruptamente com o acaso, o inesperado, o surpreendente, o que
parece fora de regra; ou seja, o técnico tem de dominar, regular um
campo instável, inconstante e é por isso que é requerido dele esse
saber engenhoso, essa capacidade, essa habilidade do saber fazer
que dá um golpe no inesperado, no acaso, na mudança, na mobili-
dade.
Eu vou trabalhar isso com mais detalhes quando eu mostrar
que estas são características da métis, porque embora a formulação
se faça inicialmente de forma mítica ela se torna um adjetivo;
quando você passa do mito para o não-mito, para a racionalidade,
principalmente, a métis é uma qualidade, é um determinado tipo de
qualidade da inteligência, uma inteligência prática que tem essas
características: saber lidar com aquilo que está em movimento, com
aquilo que na verdade é movimento.
Uma nona característica da técnica é que, embora o enge-
nheiro, o arquiteto e o engenheiro possuam um saber teórico a
respeito da sua prática eles não possuem ciência, no sentido platô-
nico e aristotélico do termo, isto é, eles não possuem o saber teóri-
co do universal, do necessário, do imutável, que é isso o objeto da
ciência; é por isso que a filosofia é (?), a técnica não é. Ou seja, a
ciência é o conhecimento dos princípios universais, das causas
universais e das essências universais necessárias e imutáveis que
são alcançadas exclusivamente pelo pensamento.
A técnica é um saber, mas é um saber prático que se desti-
na a enfrentar, a regular e dominar tudo aquilo que é móvel e instá-
vel, isto é, tudo aquilo que se apresenta como uma dificuldade.
Dificuldade se diz aporia. Nós vamos ver, quando estudarmos a
métis, que aporia... A Métis, a deusa Métis tem vários filhos, dois
são muito importantes: um se chama Escotos, que é o expediente
astuto, e o outro se chama Poros, o astucioso que é capaz de criar
um caminho onde não existe caminho.Por exemplo, o capitão de
um navio é um homem dotado de métis porque ele é dotado de
poros, isto é, ele é capaz de inventar um caminho onde não tem
caminho, não tem caminho no mar, inventa um; por isso o grande
técnico é um inventor de caminhos; e por isso o que é aporós? É a
ausência de caminhos. Aporia, impossibilidade de caminhar, difi-
culdade, e é isso que o objeto da técnica: a técnica deve resolver e
enfrentar aporias. Por isso que ela não é uma epistéme, ela não é
uma ciência, ela não é contemplação daquilo que é universal, ne-
cessário, imutável; ela é intervenção para resolver aporias.
Uma outra característica da técnica grega, a décima carac-
terística, como a técnica opera com a mudança e com a aporia, ela
opera com oposições, contrariedades, contradições. {110’} E é por
isso que ela se manifesta na fabricação de um objeto como uma
reunião bem ajustada de materiais naturais e isolados, são opostos
uns aos outros; a técnica é essa capacidade de ajustar e reunir
opostos.
Uma outra característica da técnica é a de que o objeto téc-
nico, o instrumento técnico, a máquina, que é o estratagema do
mais fraco, que é o corpo humano para vencer o mais forte, que é a
natureza realiza esta operação de fortalecimento do mais fraco sem
alterar as forças naturais, ele vai se utilizar delas, mas ele não vai
mudá-las.
Uma máquina é uma composição dos cinco instrumentos
simples que os técnicos conheciam que são a alavanca, martelo, pá,
enxada, foice, a alavanca, a polia, o parafuso, o êmbolo e o cabres-
tante, que a máquina de levantar grandes pesos (?). Então estes são
os cinco instrumentos simples com os quais o técnico vai trabalhar
para, por composição, criar e inventar máquinas. Máquinas, portan-
to, são uma composição desses instrumentos simples.
Ora, há uma coisa curiosa: existem relatos de que os técni-
cos gregos eram capazes de construir máquinas extraordinárias;
algumas eles construíam mesmo; há relatos, e eu vou trabalhar isso
quando for mexer na questão da relação entre a técnica e o mito (?)
se chama o objeto daidalon que é de onde vem a palavra dedalo;
dedalo não é alguém, dédalo é um tipo de objeto, que é o labirinto,
as asas do Ícaro, ou seja, o objeto daidalon é um objeto técnico
extraordinário; muitos deles são autômatos; há narrativas, por
exemplo de um templo, não lembro em que cidade, em que as
portas abriam e fechavam sozinhas, todo um sistema, uma maqui-
nária para essas portas abrirem e fecharem sozinhas. Então havia a
construção dos objetos daidalon (?); há relatos de que os técnicos
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gregos eram capazes de construir máquinas formidáveis e, sobretu-
do, eles eram capazes de construir autômatos.
Por que eles não faziam? Por que as máquinas efetivamente
usadas pelos gregos eram máquinas, em certo sentido, muito sim-
ples? É porque eles desprezavam estas máquinas extremamente
complexas e, em particular, eles desprezavam o (?).
A máquina é o estratagema por meio do qual o corpo hu-
mano, que é fraco, pode usar a seu favor a força da natureza para
realizar ações que permita a esse ser humano melhor realizar sua
natureza. As cinco máquinas, os cinco elementos simples que vão
entrar na composição das máquinas eles formam um todo coerente
com essa percepção da fraqueza do corpo humano e da ampliação
da sua força por meio dos instrumentos e da composição desses
instrumentos nas máquinas. Ora, quando uma máquina ultrapassa a
operação a que uma máquina está destinada que é estabelecer um
equilíbrio de forças, um equilíbrio entre forças desiguais, ou seja, o
equilíbrio entre o homem e a natureza. Quando a máquina ultrapas-
sa essa finalidade, que é a de propor um equilíbrio entre os desi-
guais, quando ela faz isso ela sai do campo da técnica e ela entra
num campo para o qual o homem não possui uma explicação raci-
onal; ele é capaz de fazer, mas ele não é capaz de conhecer o que
ele faz. Ele entra, portanto, ele passa do ponto da técnica ao campo
do irracional: O autômato é isso, uma violação da natureza pelo
homem, porque o homem produz um artefato que é capaz de operar
como a própria natureza opera, sem que o homem possa dominar
os conhecimentos que fazem o autômato operar; ele produz o
autômato, mas é uma produção cega, racionalmente cega; ele não é
capaz de explicar, de entender. Ele põe para funcionar, mas é um
objeto irracional, e como um objeto irracional, ou seja, um objeto
que funciona sem que o homem possa dizer porque ele funciona,
esse objeto é um objeto que causa estranheza, temor, pavor e colo-
ca a técnica num limite perigosíssimo com a magia. Então o técni-
co grego abomina esse tipo de máquina.
Ou seja, diante do autômato, o técnico grego vai dizer que
o autômato é inferior à máquina. Ou seja, primeiro, ele é descober-
to e feito por acaso, a máquina é descoberta e feita pelo conheci-
mento. Segundo: ele penetra um segredo da natureza que o homem
não tem o poder de controlar, é um aprendiz de feiticeiro, não tem
o poder de controlar (?) não sabe o que vai acontecer. Em terceiro
lugar, como consequência, o autômato pertence ao campo do
monstruoso, daquilo que é contrário à natureza. É isso que é o
monstro; o monstro é aquilo que é contrário à natureza. E por isso o
autômato é inútil; ele é perigoso e inútil.
Portanto, embora os arquitetos e os engenheiros tivessem
inventado instrumentos e máquinas extraordinários que permitiam
a construção dos autômatos eles não davam a estes objetos uma
finalidade técnica, uma finalidade científica porque eles não admi-
tiam o valor de uma máquina por meio da qual o homem pudesse
sem saber como nem porque dirigir, controlar, transformar e domi-
nar as forças da natureza. A técnica é o equilíbrio entre a fraqueza
humana e a força da natureza. Transformar a fraqueza humana
numa força capaz de dominar as forças naturais é sair do campo da
técnica e entrar no campo da violação, do desregramento, portanto,
do irracional.
Isso é muito importante, porque sempre se explicou a falta
de um grande desenvolvimento dos objetos técnicos {120’} na
Grécia, em decorrência da estrutura escravista da sociedade, em
decorrência das limitações da (?) da natureza... Mil e uma explica-
ções vocês podem ler na bibliografia que eu passei para vocês, há
vários textos que explicam porque os gregos não tiveram um gran-
de desenvolvimento técnico. Eles não tiveram porque eles não
quiseram; porque era contrário ao que eles entendiam por conhe-
cimento, por saber, por fabricação, por relação do homem com a
natureza. Eles tinham todas as condições de fabricar isso: eles
recusaram isso, porque isso era entrar no campo da irracionalidade,
daquilo que vai seguir por conta própria e desnaturar a natureza e
abominar o homem (...).
Isso vai explicar, por exemplo, como mostra o Vernant,
porque Arquimedes construiu máquinas ligadas à estática, mas ele
não fez todas as máquinas das quais ele tinha projetos desenhados
daquilo que é o grande conhecimento dele que é a dinâmica; não
fez as máquinas ligadas ao saber que ele tinha a respeito da dinâ-
mica porque estas máquinas seriam autômatos, não fez; e ele tinha
todos os meios para fazer.
Então, essa é uma decisão cultural, uma decisão política,
uma decisão filosófica, uma decisão ética, política de barrar a
técnica toda vez que ela vá numa direção que escape do controle
da natureza e do controle humano. Aí, onde ninguém controla,
você não vai, porque você vai desencadear forças (?) pela natureza;
há uma sabedoria.
Ora, essa relação pelo fato de que o conhecimento técnico é
um conhecimento no qual o técnico tem que conhecer a matéria e a
forma para saber que procedimentos tornam compatível determina-
da forma com determinada matéria e, se essa relação que se faz no
interior das forças naturais, então é preciso levar em conta o modo
como a técnica se relaciona com a natureza. Então, o que se enten-
dia por natureza.
Então eu passo a esse tópico, como é que do ponto de vista
da técnica, a natureza é percebida.
Primeiro lugar, a natureza é vida; phýsis é isso; ela é, mas
não é uma vida qualquer, ela é uma vida ordenada e regulada; a
natureza é, portanto, kómos, isto é, uma totalidade organizada e
auto-regulada, é isso que kósmos quer dizer.
Ela é um princípio permanente de origem de todas as coisas
e da transformação de todas as coisas; as transformações das coisas
são obra da natureza. Ela é um princípio ordenado em si mesma,
ela se auto-ordena, ela é racional em si mesma, e é por isso que a
origem e as transformações de todas as coisas são racionais. Ela é o
fundo imutável de todas as mudanças. Ela é movimento, kínesis.
Ora, o movimento só se realiza entre termos contrários, porque
movimento é mudança na qualidade, mudança na quantidade,
geração, desenvolvimento e morte, mudança de lugar. Só pode
haver movimento, portanto, entre os contrários e há apenas três
propriedades das coisas que admitem contrariedade: a quantidade,
maior ou menor; as qualidades; e a vida e a morte.
O que é então mover-se? Mover-se é passar da privação à
aquisição de uma propriedade que é essencial a alguma coisa; ou,
11
ao contrário, é perder uma propriedade essencial para alguma
coisa. O movimento, portanto, é ou uma aquisição ou uma perda
que vai na direção do contrário
A natureza é, não só força que dá origem à todas as coisas,
mas ela é o que dá uma finalidade para todas as coisas, cada coisa
possui uma finalidade natural, e é por isso que a natureza de uma
coisa é a sua finalidade. Na natureza uma coisa se define pela
finalidade que ela realiza e é por isso que a causa final tem um
papel tão proeminente lá onde a gente imaginaria que a causa
eficiente seria causa principal. Ou seja, a finalidade ocupa na técni-
ca esse lugar esse lugar que socialmente cabe ao usuário, porque
tanto o técnico quanto o usuário têm a mesma concepção da natu-
reza, isto é, a natureza de alguma coisa é a finalidade que ela cum-
pre.
Então, a natureza é um vivente; ela é devir; uma ordem
imanente em que a phýsis se ordena a si mesma, e sobre ela o
homem não tem nenhum poder. E o reconhecimento disso é exata-
mente o que distingue a técnica e a magia.
E é por isso que também... assim como os arquitetos e en-
genheiros dispunham de conhecimentos e recursos para construir
máquinas extraordinárias como os autômatos, eles também se
reportavam àquilo que dificultava a construção de máquinas; não
estas excepcionais, mas da maioria das máquinas.
O que eles diziam? A técnica opera{130’}, como nós vi-
mos, com aporias. Portanto, ela opera com contradições, oposições,
contrariedades. Uma das oposições fundamentais para o trabalho
do técnico, especialmente para o arquiteto e o engenheiro, é a
oposição entre o visível e o invisível; então, muitos engenheiros,
mais que os arquitetos diziam que a dificuldade para construir
determinadas máquinas estava no fato de que elas exigiam conhe-
cimento sobre coisas invisíveis que eram inacessíveis à experiência
do técnico, porque a experiência do técnico se realiza no campo da
visibilidade, ele não parte para o campo do invisível porque o
invisível pertence ao filósofo. O técnico permanece no campo da
experiência e, portanto, da visibilidade. Havia dispositivos técni-
cos, máquinas cuja construção pressuponha um saber coisas que
pressupunham um saber que não estava dado pela experiência do
técnico, que do ponto de vista da experiência do técnico eram
invisíveis para ele, e essas (?). Ou seja, a de uma barreira de natu-
reza mesma da técnica que impunha um limite na construção de
máquinas. Então, dois tipos de máquinas têm barreiras: o autômato,
porque ele é irracional; e as máquinas que requerem do técnico um
conhecimento das coisas invisíveis porque não estão no conheci-
mento dele porque ele não é filósofo.
(...)
Pergunta: inaudível
Resposta: Não, você é uma coisa ou outra; seria uma des-
medida inaceitável por parte do técnico tentar penetrar no invisível,
e seria um rebaixamento inaceitável para o filósofo permanecer na
empiria; categorias sociais, categorias culturais distintas, um não
interfere no campo do outro. O filósofo pode conhecer tudo isso
que o técnico faz, ele jamais será um técnico. O técnico pode en-
tender tudo que o filósofo faz, mas ele próprio jamais será um
filósofo; quando ele for filósofo ele deixa de ser técnico. Alguém
pode se tornar filósofo, nenhum empecilho, mas quando isso acon-
tecer ele deixa de ser técnico. Há uma única figura na história da
cultura e da sociedade grega que vai lutar contra essa noção (...)
que é a grande figura da democracia que são os sofistas; os sofistas
são criticados e condenados por Platão, por Aristóteles (...) porque
Platão e Aristóteles têm uma visão aristocrática. O sofista é o único
democrata dali; então o sofista é aquele que vai dizer a filosofia é
uma técnica, a técnica é uma filosofia e vai misturar tudo (...) os
outros têm uma visão hierárquica. E é por isso que é só na política
e não no plano social e econômico que a igualdade vai se dar; vai
todo mundo para a assembléia, todo mundo discute, todo mundo
vota, mas é lá; no nível social, no nível econômico e no nível do
saber, não, porque é uma visão aristocrática.
(...) Uma vez que eu apresentei este quadro todo, eu quero
fechá-lo (...).
O quadro que eu vou apresentar agora com o qual eu espe-
ro fechar esta apresentação que eu fiz, é o que pode ser considerado
o grande paradigma do pensamento da técnica e da operação da
técnica na Grécia clássica e que a estrutura dos dissoi e logoi a
partir de uma análise do legein e logos e do teukhein, o que eu vou
apresentar é um resumo de um texto extraordinário do Castoriadis
na “Instituição imaginária da sociedade”; eu recomendo vivamente
que vocês leiam Castoriadis.
O que eu vou apresentar então é uma síntese do que é apre-
sentado pelo Castoriadis para poder fechar o quadro que eu trouxe
até aqui. Aí na próxima aula nós vamos ver a técnica quando ela é
pensada na forma do mito, as versões míticas da técnica e mais o
mito da Métis; depois a entrada, a ruptura com a explicação mítica
da técnica e da entrada da explicação racional com a figura dos
sofistas; aí nós vamos ver a técnica dos sofistas, a técnica no Platão
e a técnica em Aristóteles e com isso termina os gregos, e eu espero
terminar os gregos nas duas próximas aulas.
Então, diz Castoriadis que o grande operador do pensamen-
to e da prática gregos é o que ele chama dos dissoi logoi que são os
logoi opostos e contraditórios, nós vamos chegar lá. O modelo,
paradigma, diz Castoriadis, por meio dos quais os gregos entendem
a phisis, a técnica e a pólis, a cidade é dado pelo verbo legein. Esse
verbo significa escolher-distinguir-diferenciar-por-colocar-reunir-
contar-calcular-dizer, é por isso que a palavra logos e a palavra
logia são tão complicadas, porque têm todos esses sentidos. Esse
verbo é empregado para... em três circunstâncias principais: 1º.
Para se referir à relação com o outro, isto é, a relação com a nature-
za, a relação com as coisas, a relação com os outros homens. Em
2º. lugar ele é usado com a função de designação, ou seja, ele é
usado para designar alguma coisa, quando se diz: “isso é x”, ou,
“isso vale por x”. Ou seja, ele é aquilo que se refere a um ser e
enquanto um ser determinado, definido; “isto”. Em 3º. lugar, esse
verbo é usado para dar a razão de algo, explicar, explicitar, dar o
porquê, para que de alguma coisa; {140’}e é esse verbo que dá
origem ao substantivo logos que possui três sentidos principais: a
linguagem, a palavra, o discurso; o pensamento; e o cálculo. E é
compreensível que logos tenha esses três sentidos se nós tomarmos
todos os significados do verbo legein: escolher, distinguir, diferen-
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ciar, por, reunir, contar, calcular, dizer, designar, escolher. Então, o
logos que serve de paradigma para pensar a natureza e a técnica é o
dos dissoi logoi, ou seja, discursos opostos, seres opostos, seres ou
discursos contrários, seres ou discursos em conflito; portanto,
oposição, contrariedade, conflito; é o paradigma que serve para
pensar a natureza e para pensar a técnica. A natureza opera com os
contrários, os opostos, o conflito e a técnica opera com os opostos,
contrários e conflitos.
Estão submetidos ao dissoi logoi, portanto à oposição, con-
trariedade e conflito, estão submetidos a isso, a natureza, os seres
humanos, as coisas definidas pela prática humana, portanto, os
objetos técnicos e a polis ou a política; mas estão sob o comando
dos dissoi logoi, comandam, organizam a oposição, a contrarieda-
de, o conflito e desmancham a oposição, a contrariedade, o confli-
to; estão, portanto, não submetidos a ele,mas no comando do dissoi
logoi, a retórica, então os sofistas; a dialética, com Platão; e a ação
voluntária racional, com Aristóteles.
A função primordial do legein é estabelecer a identidade de
alguma coisa e a equivalência entre coisas. Mas a investigação da
identidade e da equivalência se realiza por meio da contradição, da
contrariedade e do conflito; basta abrir qualquer diálogo de Platão e
é o que se tem; não é por acaso que ali que nasce a dialética. Ora,
isso significa que a identidade e a equivalência são conhecidas pelo
homem por meio da diferença e da oposição; por exemplo: a medi-
cina só pode definir e identificar a saúde pela definição e identifi-
cação do seu oposto, isto é, a doença; a religião só pode definir e
identificar o sagrado pela definição e identificação de seu oposto, o
profano. A filosofia só pode identificar e definir o visível pela
identificação e definição do seu contrário, o invisível; o homem só
pode ser conhecido pela oposição corpo e alma; a política se define
pelos conflitos de opiniões e pela oposição entre os cidadãos da
pólis; e a matemática é o lugar da posição da mais perfeita de todas
as contrariedades, de todas as oposições, de todos os conflitos; ela
foi considerada a ciência que não tem contradição. Por quê? Porque
a matemática considera que a figura perfeita é o círculo, e o círculo
é aquela figura que vai ao mesmo tempo em dois sentidos opostos e
por isso não tem começo nem fim, o seu começo é o seu fim o seu
fim é o seu começo, e é aquela figura que é ao mesmo tempo côn-
cava e convexa; o círculo é a contradição viva no estado puro, e é
por isso que ele é perfeito.
É uma beleza, não é? Eu fico fascinada.
Agora, como a técnica vai se relacionar com os dissoi lo-
goi. A palavra tékhne deriva do verbo teukein que significa juntar-
ajustar-fabricar-construir-fazer alguma coisa a partir de outra-fazer
alguma coisa de maneira apropriada ou correta-fazer alguma coisa
em vista de outra. Ora, o esquema conceitual de teukein é o mesmo
que o de legein, ou seja, para juntar, ajustar, fabricar, construir é
preciso que – o que teuhein faz – é preciso saber escolher, distin-
guir, diferenciar, separar, reunir, é o que legein faz. Então você não
realiza o teukein (técnica, tékhne) sem o legein, sem o logos; ora, o
logos é dissoi logoi, oposição.
Então, para fazer alguma coisa – teukein – é preciso conhe-
cer a identidade, a diferença, a oposição e a equivalência dela com
outras; portanto, para fazer alguma coisa – teukein – é preciso
definir e determinar a coisa e o seu uso, o legein; a técnica é inse-
parável do logos. Por isso que ela não é cega, não é magia, ela é o
saber.
Essa relação intrínseca desses dois verbos permite compre-
ender, então, porque existem dois grandes mitos gregos para expli-
car a origem das técnicas. Em um deles, a origem da técnica se
encontra na descoberta da linguagem, o logos, só depois de se
comunicar que os homens puderam fabricar coisas e viverem jun-
tos. No outro mito, a origem da técnica se encontra no uso do fogo,
portanto, o teukein; uso do qual vieram a dietética, o alimento
cozido; a metalurgia e os primeiros instrumentos que permitiram
aos homens se relacionarem, e quando eles se relacionaram, inven-
taram a linguagem. Então, no primeiro mito é graças à linguagem
que eles vão em direção à... graças ao logos que eles vão na direção
da técnica; no outro, é graças ao uso do fogo ou, graças à uma
técnica que eles acabam inventando o lógos, a linguagem. {150’}
Por que você tem estes dois mitos indo em direções opos-
tas? Por que há uma inseparabilidade entre legein e teukein, entre o
lógos e a técnica. Então, diz o Castoriadis que o legein foi para a
sociedade grega, para o pensamento grego e para o discurso grego
duas grandes oposições: ser e não ser, ou seja, a identidade, a dife-
rença e oposição, e valer não-valer, isto é, a equivalência e a com-
paração. Teukein vai superpor a essas duas oposições, mais duas:
possível-impossível, factível-não factível. Isto significa que teukein
é que define o real, o possível e o factível, e determina a maneira
como legein vai estabelecer a distinção entre ser e não-ser, entre
valer e não-valer, mas também o contrário; legein define a maneira
de conhecer o real e determina, portanto, a maneira como o teukein
vai realizar a ação. Ou seja ser/não-ser, valer/não-valer determina o
que é possível e o que é impossível, o que é factível e o que não é
factível. Em suma: simultaneamente o discurso e o pensamento,
legein, determinam a técnica; mas a técnica, teukein, determina o
discurso e o pensamento.
Tomando os dissoi logoi e o teukein como paradigma, a
técnica lida com opostos ou contrários do ponto de vista da quali-
dade, da quantidade, da vida e da morte e do lugar, e ela faz isso
operando com a oposição entre o possível e o impossível, o factível
e o não-factível, o útil e o nocivo, a obra e o caos, a ação racional e
o acaso; sempre em pares de opostos, sempre; donde a definição da
técnica que aparece no sofista, aparece em Platão, aparece em
Aristóteles.
A definição grega da técnica é o uso da potência dos con-
trários e a inversão do curso dos contrários; inversão do curso dos
contrários (?) da doença para a saúde. É assim, por exemplo, que
Aristóteles considera que os cinco instrumentos simples, ou as
cinco máquinas simples, alavanca, polia, parafuso, êmbolo e ca-
brestante, fundam-se na natureza contraditória do círculo. O círculo
é perfeito porque nele o princípio e o fim são idênticos e ele é a
figura contraditória por excelência porque o seu princípio é o seu
fim; o círculo é aquele cujas extremidades se movem em direções
opostas e se tornam idênticas e é esse o princípio que deve reger a
fabricação e a composição das máquinas simples nas máquinas
complexas; e é essa figura da perfeição do círculo, perfeição ma-
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temática e técnica do círculo que está no centro da astronomia
grega, o fato de que é uma astronomia, antes de Aristóteles, com
Aristóteles, depois de Aristóteles, que pensa o celeste, a perfeição
do celeste, como circular; o círculo é perfeito; os céus só podem ser
circulares; e é um desastre total... e há um instante em Alexandria,
que uma astrônoma ao se dar todas as dificuldades do sistema
geocêntrico e do círculo, percebe que as dificuldades se resolveri-
am se os céus fossem, se os movimentos celestes fossem elípticos;
e ela diz, “mas não pode ser, porque o céu é perfeito e a única
forma perfeita é o círculo e é impossível que seja elíptico”; até
Kepler chegar e dizer: “sinto muito”.
Aula 02 (13-08-202)
Pudemos observar que a relação entre os verbos legein e
teukhen e os substantivos derivados logos e technae se realiza sob
o paradigma dissoi-logoi, ou seja, da relação entre contrários,
opostos, na forma de uma aporia que precisa ser resolvida. Vimos
também que este paradigma opera no pensamento, no discurso, na
prática social e política e na técnica, e portanto é um paradigma
que opera no interior de toda a cultura grega, de todas as institui-
ções gregas. Por isso não podemos estabelecer uma relçação de
causalidade mecanica entre a sociedade grega e a tecanica grega,
ou seja, a tecnica grega nao eh um efeito, um reflexo da sociedade
grega, mas uma relacao de determinacao reciproca entre ambas de
maneira que a sociedade explica a forma da técnica e a forma da
técnica explica as instituições da sociedade. Ambas agem uma
sobre a outra e essa ação de ambas, cada um em si e a relação entre
elas tem sempre a forma dos dissoi-logoi, do conflito, da contradi-
ção. Por isso se diz que um dos traços característicos da política,
filosofia, técnica gregas é o carater agonístico (ágon: luta, batalha)
na base da cultura grega.
Na aula passada caracterizamos a técnica, agora vamos
examinar o pensamento grego sobre a técnica, ou seja, as elabora-
ções teóricas que pretendem explicar a origem e o sentido da técni-
ca: uma elaboração mítica, sobre a origem e forma da técnica; e a
elaboração racional-laica sobre a origem e forma da técnica (anali-
se do discurso dos médicos hipocráticos, três filósofos em especial:
Demócrito, Empédocles, Anaxágoras; sofistas; Platão e Aristóte-
les).
ELABORAÇÃO MÍTICA
Em Homero a palavra technae possui dois principais senti-
dos: 1) atividades caracterizadas por 3 propriedades do agente
técnico, a saber, experiência, treino, habilidade). Essas atividades
técnicas são realizadas pelos demiurgos (daemos [grupo social] +
ergon [a obra]): metalurgia, carpintaria, construção de casas e
edifícios públicos, fabricação de armas, fiar e tecer (às mulheres
apenas); 2) (Heidegger) sentido de fazer-ser, trazer algo à existên-
cia, não necessariamente uma existência material, por exemplo, a
poesia é uma técnica, pois traz à existência, por meio da palavra,
personagens, ações, sentimentos. Essa atividade está relacionada
sempre a uma idéia de que é necessário um ato apropriado e eficaz,
e a noção de eficácia estabelece uma relação entre técnica e magia,
pois o que caracteriza a magia (vd Os Senhores da Verdade na
Grecia Arcaica, de Marcel Detienne) e a noção de eficácia como
núcleo da magia é que a magia é capaz, por meio da palavra, de
fazer as coisas existirem, seja um bem, um mal ou um objeto. Na
Bíblia Deus produz uma existência ou um efeito nas coisas existen-
tes apenas por meio da palavra: “faça-se a luz”. Por isso são técni-
cos neste sentido os feiticeiros, adivinhos, os videntes, poetas –os 2
últimos possuem um dom peculiar: o dom de ver o tempo na sua
totalidade, ver o invisível, que é o tempo (vd Vernant acerca de
Homero e o elogio à cegueira nos grandes poetas gregos: ver com o
olho do espirito).
Então a técnica é um dom que os demiurgos, as mulheres,
os magos, os poetas recebem de 3 patronos divinos: Efestus (dá aos
homens o domda metalurgia), Proteu (ensina os homens o poder
dos sortilegios. Deus poliforme), Atena (dá a inteligência pratica).
Em Hesíodo um mito determinado vai se tornar a propria
definicao da tecnica como magia, como dom divinio e como inteli-
gencia pratica humana, o mito de Metis (vd Vernant, Metis - a
inteligencia pratica na Grécia Arcaica). Uranus (Céu) se encontra
permanentemente deitado sobre Gaia/Gea (Terra). Uranus teme
que, dentre os filhos de Gaia, um deles possa lhe tomar o poder e
separa-lo de Gaia, então cada filho que nasce é devorado por
Uranus. Gaia pede auxilio à Deusa Réa, que substitui o recém-
nascido Zeus por um monte de pedras. Réa pede a Efestus que
fabrique uma adaga/espada e dá a Zeus, que é usada para cortar os
genitais de Uranus. Assim Zeus se torna o Rei dos Deuses.
Zeus recebeu uma poção por Métis (astúcia), que deixou
Uranus semi-adormecido.
Zeus engravida Métis, Zeus devora Métis por temer o
mesmo que Uranus. Por isso Métis é uma potência invisível.
Métis está grávida de Atena, por isso Atena nasce da cabe-
ça de Zeus. Ela [Atena] é protetora das tecnicas, tecelagem, razão
ou inteligencia prática. Metis parira 3 filhos: Escotos (noite, som-
bra, treva, ausencia de caminho, objetivo, finalidade, abismo),
Poros (estratagema, habilidade, expediente engenhoso, criador de
caminhos, resolverdor de dificuldades), Techimar (criador de indi-
ces, sinais, signos, capaz de indicar um caminho, objetivo). Metis é
a mãe da inteligância prática e da oposição primordial entre a treva
de Escotos e a resolução de Poros.
Características da Metis: se opõe ao uso da força (em toda
situação agonística a Métis garante que, se usada a força, a resolu-
ção será precária; de maneira absoluta se for utilizada a astúcia do
mais fraco), se exerce em situações ambiguas, incertas, mutaveis
(se exerce no tempo instável. Aquele que é dotado de metis é capaz
de uma premeditação vigilante, ou seja, é capaz de se concentrar
sobre o presente, maquinar o futuro e usar a experiencia passada).
Paciencia, Vigilancia e Rapidez de Decisão, pois tem capacidade
de prever. A metis é multipla, polimorfa, diversa, para sair de uma
aporia. Seu campo de ação é o movimento, fluido, móvel, mutável
e ela [metis] age sobre as coisas que não cessam de virar o seu
contrário: juventude vira velhice, o dia vira noite, etc. Por isso ela
precisa ser múltipla, polimorfa, metamorfa. Métis como potência
de engano: agir contra o adversário por meio de disfarces, másca-
ras, pela mimesis (imitação do adversário).
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Qualidades próprias da Metis
Velocidade para tomar uma decisão, é hábil, sutil, ágil, leve
e móvel. Dissimulação, de ver sem ser visto, furtividade. Ex.:
polvo.
Capacidade de perceber instataneamente a unidade do di-
verso, habilidade de distinguir o que é essencial e o que é secundá-
rio, é o senso da oportunidade, paciente e prudente, espera o
kayros, por isso ela consegue inventar um caminho onde não há um
caminho. Propõe e resolve enigmas.
Enigma da esfinge.
Métis como poder de ligar, vincular, urdir, tecer, tramar
(tecelagem, artesanato, etc).
É a facilidade para estabelecer analogias, comparações en-
tre coisas visíveis por meio das quais ela pode conhecer as coisas
invisíveis. A métis é a capacidade de ir do conhecido ao desconhe-
cido. Métis como máquina.
Daedalo (1:00:00)
Arquiteto/engenheiro supostamente nomeado Daedalo por
conta de sua obra (daedalum. Substantivo acompanhado dos verbos
fazer, fabricar, forjar, colocar, dar a ver, tecer, junto com os advér-
bios belo, brilhante, luminoso, sarapintado, formam o “fazer lumi-
noso”). Metalurgia (serralheria, joalheria. Ouro, bronze, cobre,
prata. Joias, elmos, escudos, estátuas), Tecelagem (veus, mantos,
vestidos, velas de navios), Carpintaria (mobiliário, navios, armas).
Contexto do objeto daedalo: luminosidade, semelhança e
analogia (objeto mimético), rápido, veloz, instável, sedução, astú-
cia, ardio, mentira, ilusão, medo, pânico. Objeto preciso dotado de
valor mágico: protetor mágico ou aterrorizador maléfico, ou seja,
talismã dotado de eficácia mágica. Por isso é um objeto que expri-
me todas as propriedades e qualidades da Métis.
Em Atenas atribui-se a esse técnico chamado daedalo uma
estatuária muito peculiar, que são estátuas de madeira recobertas de
ouro, abrem e fecham a boca e andam. Daedalo fabrica, pois, au-
tômatos. Em Creta Daedalo fez o labirinto em qual foi colocado o
Minotauro, fez a enorme vaca de madeira na qual Parcifae se pro-
tege contra o Rei Minos, fez os véus e vestidos de Ariadne e deu o
fio a Teseu que, assim, matou o Minotauro. Daedalo é pai de Ícaro
que, entusiasmado com as asas de cera, ignorou a sabedoria do pai
e foi em direção ao Sol (e morreu). Por isso um objeto daedalo é
mortífero.
Métis ou Astúcia
As características e qualidades que os mitos atribuem a
Metis determinam a maneira como a technae é concebida [na ela-
boração mística]. As caracteristicas da tecnica vao se manter na
elaboração racional, pois esta marca é definitiva na história da
técnica. A técnica é exigência de prudência, vigilância, acuidade
visual, golpe de vista certeiro, rapidez e senso de oportunidae,
capacidade de aprisionar uma força natural e utilizar essa força
contra a natureza mesma. Por isso nos relatos míticos as figuras
dotadas de métis são homens que recebem esse dom divino e por
isso sao capazes de lidar com a mobilidade incessante das coisas e
dos homens. São capazes de um saber prático conjectural. Os
técnicos sao homens prudentes e astutos.
A métis é a technae contra o acaso, e por isso os homens
dotados de métis são os técnicos: quem são eles? (Essa lista vai
permanecer na Grécia clássica quando a concepção da técnica está
racionalizada.) O piloto que é hábil para criar caminhos onde não
há caminho, ou seja, o mar é aporos, e o piloto, poros; o caçador e
o pescador, que são hábeis para criar laços, vínculos, permanecer
invisiveis na tocaia, mimetizar o animala ser aprisionado e são
dotados de golpe de vista; o médico que vê o invisível por analogia
com o visível, tem golpe de vista e tem senso da oportunidade, ou a
percepção do kayros; o estrategista, que é hábil em inventar estra-
tagemas, armadilhas que desoriantam o adversário; o poeta; o
adivinho e o vidente, pois são capazes de ver o invisível e agarrar a
totalidade do tempo; politico, que é o homem prudente, capaz de
ver analogias em coisas diferetens, capaz de olhar para trás e para
frente para compreender o presente, tem o golpe de vista certo para
ver a unidade e o sentido de uma situação complexa e é capaz de
tomar uma decisão com rapidez no momento oportuno. São essas
as grandes figuras da técnica como métis, e esta enumeração vai se
encontrar na fala de Prometeu em Ésquilo. Na tragédia de Prome-
teu acorrentado, Ésquilo mostra Prometeu castigado por Zeus por
ter dado aos homens o fogo e com o fogo todas as técnicas; ele está
preso à beira do mar e seu fígado é mordido incessantemente por
um corvo. Os corifeus perguntam a Prometeu o porque de seu
suplicio: “no oco de um canisso coloquei a furtiva semente do
fogo, semente que é para os mortais a mestra para todas as
te´cnicas e uma auxiliar semp reço; os mortais devem a mim o ter
deixado encarar a morte com terror, neles infundi a cega esperança.
Fiz mais ainda: concedi-lhes o fogo. Com ele aprenderam todas as
tecnicas”. E mais tarde, questionado por Oceanus e pelas Oceani-
des, ele responde: “escutai a tribulação dos mortais, escutai como
de parvos que eram os tornei racionais e dotados de inteligencia.
Eles antes olhavam sem ver, olhavam a toa. Escutavam sem ouvir,
semelhantes às formas dos sonhos, vogavam ao acaso em suas
vidas. Desconheciam cassas de tijolos inundadas de sol, não sabi-
am lavrar a madeira, viviam soterrados como ágeis formigas num
fundo de caverna sem sol. Desconheciam os sinais seguros do
inverno sombrio e da primavera florida e do verão abundante. Tudo
faziam sem saber até que um dia os ensinei a técnica difícil de
discernir o nascer e o ocaso dos astros; inventei para eles a mais
belas da ciências, o número e a composição das letras, a escrita,
que tudo conserva na memória. Fui eu quem primeiro adestrou os
animais submetendos-os à canga ou cela para substituir os homens
nas tarefas penosas (...) Eu, que com métis, dei tudo aos mortais
não encontro metis para livrar-me do meu suplício. Ouvindo o
resto ainda mais vos espantareis com as artes (tecnicas) e engenhos
(métis) que imaginei, principalmente quando alguem adoecia, não
tendo remédios, nem bálsamos nem poção, definhando por falta de
medicina, até que os ensinei o remédio certo para cada ocasião;
15
ensinei a técnica da adivinhação e a distinguir nos sonhos o que se
deve ter por verdadeiro que se fará realidade, ensinei-lhes a inter-
pretar os agouros fugidios, os presságios e os sinais que surgem
nos caminhos, os guiei nas obscuridades dos precipícios, abrindo
seus olhos para o sentido das chamas até então desconhecidas. Os
tesouros escondidos nas entranhas da terra (o ouro, bronze, prata,
ferro), quem pode reclamar a descoberta deles antes de mim? Nin-
guém --tenho certeza.” Todas as tecnae os mortais devem a Prome-
teu.
ELABORAÇÃO RACIONAL DA TÉCNICA
A passagem da métis mitica para a tecnae clássica é a pas-
sagem da ideia de uma inteligencia pratica e astuta que é um dom
dos deuses para a idéia de uma inteligencia pratica e astuta que é
um saber fazer, um metodo, um caminho correto par aum fazer
eficaz posto pelos proprios homens. A tecnica é um saber laico,
uma pratica laica, e não se relaciona nem com forças divinas, sa-
gradas, nem com forças mágicas, ou seja, ela se descola do univer-
so religioso e ela é pensada agora como uma relação com a Nature-
za (physis). Essa diferença já aparece nos proprios trágicos, se nós
compararmos Prometeu de Ésquilo e a Antígona de Sófocles,
veremos que na última os homens são inteiramente responsáveis
pela invenção da agricultura, da tecelagem, da navegação, da caça,
pesca, carpintaria, metalurgia, medicina. E são inteiramente res-
ponsáveis pela criação das leis (nomos) e, portanto, da Pólis. A
questão que se coloca a partir da Antígona é que o homem pode
fazer bom ou mau uso da técnica, mas [a técnica] é algo humano do
começo ao fim.
A diferença entre a concepção mítica e laica aparece quan-
do nos voltamos à Medicina. Até os quatro grandes nomes da
Medicina, Demócrito, Anaxágoras, Empédocles, Hipócrates, a
Medicina era tida como um dom do deus Asclépio aos homens e
era ensinada em templos dedicados à Asclépio (vd Apologia, quan-
do Sócrates diz a Glauco para sacrificar um galo em favor de As-
clépio). Nessa Medicina distinguiam-se entre doenças humanas e
doenças sagradas, por exemplo: o estupor e a epilepsia eram cha-
madas sagradas, consideradas possessões de origem divina para as
quais os remédios eram encantos, canções, orações, discursos e
purificações (banhos, alimentos). Atribui-se a Hipócrates o livro A
Doença Sagrada no qual se põe contra a idéia de doenças sagradas,
afirmando que todas as doenças são naturais e possuem uma natu-
reza própria e causas naturais específicas, e podem todas elas ser
curadas. Haverá um esforço para tornar a Medicina autônoma em
relação à religião. Esse esforço está sistematizado na obra Peri-
technae (Sobre a técnica), atribuída a Hipócrates, que se destina a
demonstrar que a técnica é algo que provém de carencias ou neces-
sidades dos humanos e da experiência e do treino que os humanos
têm para responder a essas carencias e necessidades e a Medicina é
uma técnica que possui um objeto proprio, uma forma propria,
procedimentos proprios inventados pelos homens. (Vd fim da
aula.) Na mesma direção de Hipócrates, vão Demócrito, Empédo-
cles e Anaxágoras, três médicos que pretendem liberar a técnica
das explicações miticas e sacralizadas. Empédocles apresenta as
bases cosmológicas que fundamentam as tecnicas, ou seja, a idéia
de que a tecnica esta fundada na physis e ela exprime a relação
correta e adequada dos homens com a natureza. Anaxágoras afirma
que os dotes tecnicos são dotes naturais e que a tecnica é possível
pq o homem é dotado de mãos (na verdade polegar) que é capaz de
técnica; e a técnica é uma síntese de três capacidades humanas: a
expêriencia, a memória e o saber para atender as carências, neces-
sidades e exigências postas pela vida. Para estes filósofos a tecnica
é um saber instrumental, uma atividade pragmática, acima da qual
se encontram a ciência (episteme) e a filosofia como conhecimento
contemplativo.
No contexto da laiscização da técnica, a posição mais inte-
ressante é a posição dos sofistas, que se apresentavam como pro-
fessores de tecnicas e consideravam a filosofia uma tecnica e não a
pura contemplação espiritual do invisível. Enquanto Demócrito,
Empedocles e Anaxagoras procuram o fundamento da tecnica na
Natureza (physis) os sofistas abandonam as especulações cosmoló-
gicas e vão procurar o fundamento na técnica no proprio homem.
Problema geral da Cosmologia
O motivo pelo qual os sofistas abandonam a cosmologia,
Sócrates abandona a cosmologia, Platão também e Aristóteles irá
retomá-la na forma uma Física, é uma aporia que se instala no
pensamento pré-socrático entre duas posições acerca da Natureza
ou do Ser: Heráclito e Parmênides [escola eleata]. O primeiro diz
que o ser é movimento [kynesis, nascimento, geração, desenvolvi-
mento, corrupção, morte, mudança de lugar, quantidade, qualida-
de], que se realiza na direção do seu contrário, i.e., cada coisa
muda incessantemente no seu contrário, a contrariedade ou contra-
dição é o modo de ser das coisas, tudo que é não-é e tudo que é
não-é. Parmênides afirma que, se cada ser se transforma naquilo
que ele não é, o pensamento é impossível, pois não é possível
pensar o contraditório. Será preciso o sofista Górgias para que se
compreenda os dois grandes sentidos do verbo ser: existencial
(Deus é, o homem é, nós somos, etc); verbo de ligação (o homem é
adulto, o homem é velho). Até Górgias o verbo ser possui apenas
sentido existencial. Quando Heráclito diz “agora está de dia” não é
no sentido de que depois será noite, mas que o ser é dia e noite,
uma contradição. Parmênides diz “se cada ser é seu contrário ne-
nhum ser pode ser pensado, pois a condição de se pensar um ser é a
identidade”, por isso é preciso dizer que a mudança, o movimento,
são uma ilusão sensorial e nossos sentidos fazem nos ver as coisas
sem cessar. É nosso pensamento tem que recusar a mudança se
quiser ser pensamento, pois o pensamento só é possível na identi-
dade. Portanto o ser é; o não ser não é. O ser é eterno, pois se fosse
temporal teria de mudar naquilo que não é, que é não-ser, que não
pode tornar a ser o que já não é, portanto o ser é imóvel, idêntico,
etc. E não há mais a se pensar ou dizer, pois todo o restante é a
mudança, o mundo da ilusão e dos sentidos.
O pensamento filosófico grego empacou: ou tudo é mudan-
ça e a identidade, permanência, estabilidade são ilusões dos nossos
sentidos ou tudo é idêntico sempre e a mudança é uma ilusão de
nossos sentidos. Demócrito, Empédocles e Anaxágoras vão tentar
resolver o problema no nível da cosmologia, tentarão conciliar o
Heráclito e Parmênides. Os sofistas pensam ser esta conciliação
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impossível e despropositada, pois o que lhes interessa não é a
physis (se é identico ou o movimento), mas interessa o nomos, a
lei, a regra, a norma, aquilo que o homem faz.
Os sofistas
O abandono da cosmologia tem como consequência a bus-
ca pelo fundamento da técnica não na Natureza como Demócrito,
Empédocles e Anaxágoras, mas no próprio homem, donde o céle-
bre dito “ad nauseam”. O homem é medida de todas as coisas, das
que são porque são e das que não são porque não são, ou seja, para
os homens tudo é nomos, traduzido frequentemente por convenção,
acordo regulado pelo costume e pela lei, regra instituída. Todo
saber verdadeiro é uma intervenção pratica na vida humano, por-
tanto todo saber verdadeiro é uma técnica. O sofista é o primeiro a
abandonar a distinção entre tecnica, ciencia e filosofia, que vai ser
vigorosamente reposta por Platão e vigorosamente tematizada para
o resto do mundo ocidental para sempre por Aristóteles. Todo
saber verdadeiro é uma intervenção pratica para benefício dos
homens.
Ora, a tecnica é responsável pela instituição de uma vida
realmente humana, como foi descrita por Prometeu, mas –diz o
sofista- o que é uma vida realmente humana? É a vida na pólis, é a
vida social e política. Isso significa que a primeira e mais funda-
mental de todas as técnicas para o sofista é a linguagem, portanto o
legein [logos], porque é pela linguagem que os homens instituiem
regras, normas, leis e o acordo, portanto a vida social e política. O
que é o nomos, o que é a lei? É o acordo entre os homens permitin-
do que o mais fraco possa sobreviver apesar do mais forte. Esta
definição da lei pelo sofista é uma definição tradicional e clássica
da técnica, portanto a lei e a técnica exprimem exatamente o mes-
mo.
A lei política é a lei mais alta de todas, a técnica de todas as
tecnicas, porque é ela que determina quais são as tecnicas necessa-
rias para uma polis e qual é a hierarquia que deve haver entre as
tecnicas conforme a utilidade social de cada uma delas. E é a lei
que diz quem tem a capacidade para exercer uma técnica e qual
técnica, ou seja, a técnica política [nomos] tem uma função diretiva
sobre todas as outras técnicas, ela é o critério, medida, método,
para avaliar todas as técnicas. Visto que para Protágoras a mais alta
das técnicas é a linguagem [legein, logos], a linguagem é o para-
digma de todas as técnicas, inclusive e sobretudo da técnica políti-
ca. Todo logos, todo pensamento, discurso, linguagem, palavra,
comporta sempre duas posições contrárias ou opostas e cada uma
delas é incapaz sozinha e por si mesma de suplantar a outra, preci-
sando por isso de um terceiro termo que avalie, julgue ambas para
decidir qual dos opostos deve ser aceito e qual deve ser eliminado.
Uma vez que a técnica é definida como o uso da potencia dos
contrários e inversão do curso dos contrarios, é preciso fixar a regra
para a decisão por um dos contrários, uma vez que a função princi-
pal do nomos é estabelecer e conservar o acordo na polis. Então
essa regra pela qual se estabelece a medida para as tecnicas, se
estabelece a avaliação entre as tecnicas contrarias –o que deve ser
mantido e rejeitado-- e o que o faz em nome da conservação do
acordo essa regra deve obedecer a três condições: 1) deve definir
quem tem uma competência tecnica e quem não a tem, ou seja, é
preciso regulamentar a prática dos oficios e essa regulementação
significa que uma técnica é um saber ensinável, transmissível e
pode ser aprendida e, portanto, o que define a competência de um
técnico é o seu aprendizado; 2) todas as técnicas devem ser ensina-
das juntas, nunca ensinar uma unica técnica de cada vez, mas todas
juntas para que uma ensine a como corrigir a outra, para que uma
possa suprir as dificiências de outra, de tal modo que embora o
técnico possa se especializar ele é educado como um generalista
primeiramente e, depois, adquire uma competência específica. Por
isso os sofistas apareciam nas cidades como professores de (todas)
as técnicas e as praticavam todas: carpintaria, marcenaria, etc; 3)
conforme as circunstâncias e os lugares o nomos se diversifica para
se adaptar à multiplicidade e à mudança das circunstâncias e dos
tempos para poder determinar com eficácia o que em determinadas
circunstancias e determinado tempo uma polis necessita como
técnica, ou seja, para determinar quais são as técnicas necessárias
para uma cidade em circunstâncias e tempos determinados, pois
uma técnica só é eficaz quando responde a uma necessidade social.
Protágoras portanto não se interessa pela técnica enquanto uma
ação sobre a matéria (tema da primeira aula e de Platão e Aristóte-
les), mas interessa a técnica como uma ação dos homens sobre
homens, portanto toda técnica é politica e a política enquanto uma
arte, tecnica humana racional, contrária à magia, recusa a idéia de
técnica seja uma ação invisível e secreta sobre a matéria. Mas a
tecnica não é apenas contrária à magia, mas também ao acaso, pois
o acaso é a desordem. Por isso para Protágoras entre as luzes so-
brenaturais da magia e a cegueira, a abismo, treva do acaso, se
interpõe a técnica como ação ético-política.
Outro grande sofista, Górgias, vai se distanciar de Protágo-
ras, pois o pressuposto do último é de que o homem é racional.
Toda essa elaboração acerca do nomos, da técnica tem como pres-
suposto a racionalidade humana e essa elaboração da técnica como
ação ético-política que explica a famosa frase de que “o homem é a
medida de todas as coisas, das que são porque o são e das que não
são porque não as são”. O homem é a medida das leis, pois é racio-
nal, dotado de logos. Górgia dirá que o logos é mínimo no homem,
que não é um ser racional, o homem é inteiramente habitado pelo
pathos, o homem é um ser passional, e portanto há apenas uma
técnica eficaz, que não é a política, uma tecnica eficaz sobre as
paixões ao qual a propria politica precisa estar subordinada: a
retórica.
A retórica é um pharmacon para as paixões, como demons-
trou Derrida no ensaio A farmácia de Platão, não é apenas um
remédio, mas poção, elixir, filtro, maquiagem e sedução, portanto a
retórica é um remédio que opera como uma poção sobre as paixões
por meio da sedução. A persuasão da retórica se faz por meio da
sedução. A retórica é a técnica de persuadir, dissuadir, machucar e
curar os homens. E a política só vai ser eficaz se empregar a sedu-
ção retórica sobre a alma do cidadão, por isso Górgias se apresenta
em Atenas como professor de retórica. Qual é o lugar essencial do
homem numa democracia? É a Assembléia. Qual é a técnica que
ele deve possui para estar na Assembléia? Retórica, técnica daquele
que é o orador e deve saber seduzir, persuadir e dissuadir os outros
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cidadãos. Para uma Assembléia ser democrática todos os cidadãos
devem aprender retórica, pois a função de cada cidadão é seduzir,
persuadir e dissuadir seus concidadãos, e é isso que o Górgias se
propõe a ensinar: uma técnica de linguagem. Enquanto para Protá-
goras é a técnica de todas as técnicas é a politica derivada do logos,
a enfase de protagoras não está nol ogos como discurso, mas como
razão, pensamento, racionalidade. Gorgias, também operando com
o logos, vai dizer que a técnica de todas as técnicas é a linguagem,
mas de uma determina maneira: o logos como palavra da sedução e
da persuasão e portanto como retórica. Independentemente como
essa diferença entre Górgias e protagoras, a reflexão destes dois
sofistas foi o que produziu de maneira sistemática um paradigma
que operava na técnica mais inconscientemente sem que ele fosse
formulado explicitamente e sistematicamente elaborado, ou seja, o
paradigma dado pelo legein e pelos dissoi-logoi. São os sofistas
que explicitam e sistematizam aquilo que sempre tinha sido a
essência da técnica, mas que eles foram capazes de expor.
Então para Protagoras a linguagem da lei para o acordo ra-
cional entre homens em conflito, linguagem da retorica para persu-
asao e seducao dos homens passionais em conflito segundo Gorgi-
as, mas nos dois casos o modelo da técnica é social e político regi-
do pelos dissoi-logoi. Assim, há nos sofistas uma teoria da ação
humana como técnica na qual agir não é fabricar objetos –isso é
secundário—, o núcleo da tecnica não é operar sobre uma matéria,
sobre a physis. Agir é ter ascendência sobre os homens na Polis:
vencê-los, dominá-los pela palavra para que eles se ponham de
acordo. Agir, portanto, é uma técnica de intervenção nas relações
humanas e é a partir desta definição da técnica principal que se
estabelece uma hierarquia das técnicas, quais são necessárias para
esta cidade, quais não são, como se ensina isso, como não se ensina
e assim por diante, mas os paradigmas dos dissoi-logoi é posto pelo
sofista. Contra eles vão se erguer Platão e Aristóteles que examina-
rei na próxima aula.
Medicina Grega
A Medicina grega encontra-se compilada pela primeira vez
numa obra gigantesca denominada Corpos Hipocráticos num total
de 53 obras. Embora tragam o nome de Hipócrates não significa
que todas as obras contidas nas obras são de Hipócrates, mas que
algumas o são: A Medicina Antiga, A Doença sagrada, o prognos-
tico, ventos aguas e lugares, epidemias (quer dizer visitar, o que o
médico fazia), aforismos e juramento. As demais obras foram
escritas por seus seguidores. De acordo com o corpus hipocrático
existe uma physis universal ou a Natureza entendida como natureza
comum a todos os seres, e há a physis individual, ou seja, a nature-
za de cada coisa, a sua constituição própria. Assim como há a
physis dos astros, dos ventos e das águas, há também a do homem,
como há a physis de Calicles, Sócrates ou Platão; Aristóteles vai
dizer “o médico não cura o homem, o médico cura Cálicles, Sócra-
tes ou Platão, é por isso que –diz Aristóteles – médico não faz
ciência”. Ele faria ciência se a ação dele fosse o homem como um
universal.
Existe a physis (natureza, constituição própria) da saúde e
as physis das doenças, que significa tanto uma como outra podem
ser conhecidas, determinadas e definidas, eis porque o médico
hipocrático afirma “não é possível conhecer a doeça sem conhecer
a natureza das doenças, e não se pode conhecer a natureza das
doenças se não se conhecer a Natureza em seu todo no seu princí-
pio (arqué, portanto o médico se vê como arquiteto). Esse papel
fundamental atribuído à physis tem um consequência precisa: a
filosofia ensina (desde os pre-socraticos) que a physis é um princí-
pio de ordenação das coisas que é em si mesmo ordenado, ou seja,
a physis é ordenada em si mesma, por si mesma e ordenadora de
tudo a partir de si mesma. O ensinamento filosófico incide sobre as
idéias médicas e sobre as idéias da saúde e da doença; o médico
deve saber que a saúde é a boa ordenação interna ao próprio corpo
feita pela physis do corpo, enquanto a doença é a desordenação da
physis do corpo. Dizer que a saúde é ordem e ordenação, isto é,
harmonia e proporção, é dizer que o corpo humano saudável mani-
festa regularidades e constâncias que podem ser conhecidas e pelas
quais podem ser conhecidas as desordens ou doenças. Ter um
conhecimento do que é regulado e constante é ter um conhecimento
daquilo que permanece idêntico e portanto umconhecimento ver-
dadeiro, por outor lado, se a doença é desordem a tarefa do médico
é de dois tipo: ou sabe que se trata de uma desordem cujas causas
são conhecidas e cessadas as ações dessas causas, a natureza do
corpo sozinha se reordena (é a idéia de que a Natureza é médica de
si mesma) ou ele sabe que a desordem é profunda, que a natureza
do corpo não possui forças sozinha para reordenar-se. No primeiro
caso ele deve deixar a Natureza seguir seu curso, ou no máximo,
ajudar a apressar o cessamento da doença com uma dieta, por
exemplo, mas no segundo caso –a desordem profunda- ele deve
intervir para ajudar a Natureza, como na cirurgia, na punção ou na
sangria.
A distinção entre o ordenamento adequado e harmonioso
ou desordem ou perda, falta de proporçao leva à distinção entre a
saúde como o que é conforme à natureza de alguém e a doença
como o que é contrário. Examinando um doente o médico deve
levar em conta seus três aspectos: o ocasional (ou a aparência
relativamente permanente do doente, ou o quanto dura a aparência
de um doente), o típico (aspecto habitual que uma doença costuma
apresentar, seja como aspecto de todo corpo, seja como aspecto de
uma de suas partes) e finanalmente, observar o específico, o eidos,
a forma de uma doença, isto é, a forma e propriedade da doença na
sua generalidade. O médico portanto olha como o paciente está
naquele momento, tudo que se repete na aparência dele, depois
deve observar o aspecto habitual do paciente como não-doente,
depois observar a doença nela mesma, a forma que a doença assu-
miu. Visto que a técnica opera com os dissoi-logoi, portanto com
oposições, contrastes e contrariedades, o médico observa o doente
levando em consideração também esses três aspectos, não apenas
no doente como também na pessoa sã, pois a doença é uma pertur-
bação da saúde. O médico deve observar o eidos, a forma da doen-
ça, mas também o homem são para conhecer o eidos, a forma da
saúde; a oposição saúde e doença é o objeto da técnica médica. Sob
esta perspectiva o eidos da saúde é a figura ou estrutura de um
corpo no qual todas as partes ou órgãos funcionam em sintonia e
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harmoniosamente cada um deles cumprindo sua função, em outras
palavras, pela realização adequada de uma função ou da finalidade
de cada finalidade do corpo é que podemos definir o eidos ou
forma da saúde, donde se conclui que a forma da doença ou eidos
da doença será determinado pela não realização da finalidade ou
pelo não cumprimento da função seja em decorrência de causas
externas ou internas. O fato do eidos tanto da saúde como da doen-
ça ser definido como a estrutura ou forma do corpo de acordo com
a physis universal e com a physis individual e ser definido pela
função ou finalidade significa que o eidos é inseparável da ativida-
de corporal interna e sua relação com as atividades da natureza
circundante ou do meio ambiente.
Esta atividade realizada pelo corpo na relação com o ambi-
ente (hoje chamada fisiologia) é denominada pelo médico grego
por dynamis: presença de uma força ou potência para mostrar-se tal
como é, em outras palavras, a dynamis se refere às ações atuais ou
potenciais que uma coisa pode realizar apenas por si mesma, por
sua natureza, e não por uma intervenção externa, técnica. O peixe
nada, sua dynamis é nadar; o passara voa; o cavalo trota; a planta
verdeja; o doente tosse e desmaia. Dessa maneira o eidos é a mani-
festação visível da dynamis em que uma natureza (physis) se reali-
za. A dynamis pode ser tomada como expressão da ação atual ou
possível de uma coisa no seu todo ou de partes dela, por exemplo,
há uma dynamis do sangue, uma outra dynamis do fígado, uma
outra do coração, etc. Embora em seu sentido fundamental a dyna-
mis se refira à força interna das coisas naturais pode também ser
empregado para a técnica, por exemplo, quando se diz que a está-
tua pode ser feita pelo escultor porque a pedra ou o bronze tinham
a dynamis capaz de receber a ação do artesão. No caso da medicina
o conhecimento da dynamis natural de um eidosé fundamental para
que o médico como técnico possa intervir, uma vez que sua inter-
venção consistirá em provocar artificualmente a atividade que a
dynamis em virtude da doença está naturalmente impedida de
realizar. As dynames são forças ou qualidades elementares (quente
frio seco úmido doce amargo leve pesado) e difere em cada parte
do corpo uma vez que cada parte possui dynamis próprias, por
exemplo, a dynamis do coração é quente, do fígado é frio; as
dynames são graus ou intensidades de forças podendo ser adequa-
das, fracas ou excessivas para seu eidos respectivo. De maneira que
a saúde é a medida da intensidade das forças e as doneças são
variaçoes para mais ou para menos dessas medidas. A dynamis é o
que explica os movimento, as kynesis (qualitativas, quantitativas,
locais), ou seja, as variações do corpo e em si mesmo ela pode ser
considerada a expressão do princípio vital de cada coisa.
O primeiro e mais conhecido dos aforismos de Hipócrates é
aquele com que se abre a obra Aforismos: “A vida (bios) é breve, a
arte (technae) é longa, o momento oportuno (kayros) fugidio, a
experiência (aempaeria. Peras [limite], póros [caminho], apaeron
[limitado], aporia [dificuldade], empiria [busca de um caminho e
de um limite, por isso ela é vacilante) vacilante e o julgamento
(krysis, o juízo emitido no momento oportuno) difícil”. Esse afo-
risma pode ser lido como a súmula da teoria do conhecimento do
medico grego, pois nele estão contidos os elementos principais com
que o médico deve lidar: a brevidade da vida, a lentidão da técnica,
a rapidez que se passa o momento oportuno para agir, a inconstân-
cia ou vacilação das provas empíricas e a dificuldade para julgar
corretamente no momento de fazer o diagnóstico e o prognóstico,
de iniciar e terminar a cura. Cabe a um médico, um técnico, reali-
zar três operações: 1) observação sensorial atenta da realidade
orientado pela regra que se deve buscar o semelhante e o desseme-
lhante; 2) converter os dados observados em sinais indicativos do
estado do corpo que o apresenta e verificar se é possível passar do
signo indicativo a um signo probatório sobre a verdadeira realidade
interna correspondente ao estado visível, trata-se de aprender com a
experiência, o médico deve usar a experiência para depois –pelo
pensamento – generalizar os sinais e construir o quadro de sinto-
mas que caracterizam uma determinada doença, isto é, fornecem o
seu eidos e sua dynamis; 3) usar a imaginação de maneira cautelosa
e sóbria para supor qual é a causa que faz com que um signo signi-
fique aquilo que realmente se está observando, para tanto um mé-
dico deve aprender a fazer (aquele que é um dos elementos centrais
da métis) analogias entre o que ele observa e realidade ou situação
mais simples e mais compreensíveis da vida cotidiana, como por
exemplo, [analogia] com os procedimentos da culinária, da tecela-
gem, da comunicação de líquidos etc. Depois vou dizer porque
esses elementos são tão importantes e particularmente a culinária,
pois a medicina grega, a menos que se vá fazer cirurgia ou punção,
é uma dietética e ginástica. (2:37:49)
O Diagnóstico médico
Todos os seres –de acordo com a cosmologia e a física do
médico – são compostos de quatro elementos: água (frio), ar (seco),
terra (úmido), fogo (quente). Tudo é uma composição disso. Nosso
corpo, além desses quatro elementos, possui quatro líquidos ou
humores: a bílis negra (melancolia), bílis amarela (cólera), fleug-
ma, sangue. Nosso corpo é a composição dos quatro elementos e
dos quatro humores e a variação individual decorre da proporção
entre estes quatro elementos e do modo com que se combinam: o
melancólico, por exemplo, tem predominância do ar e do seco; o
colérico da terra e do ar; o sanguíneo, do sangue e do quente; assim
por diante. Há uma tipologia que o médico conhece.
Na Grécia, o paciente não vai ao médico, mas é ele [médi-
co] que vai ao paciente. A palavra clínica vem do verbo clinio que
significa “debruçar-se sobre o leito de alguém”. O médico fará uma
anamnese para saber em que momento preciso e por que o doente
ficou doente. Ele perguntará sobre o local de nascimento (perto do
mar, na montanha, na planícia, onde havia muitas árvores, se era
desértico, etc), depois sobre o horário (se dia ou noite, qual a posi-
ção dos astros no céu), onde se deu o parto (casa de madeira, de
pedra, se a mãe deitava no linho, no algodão, na palha), sobre
alimentação (o que come, em que momentos, quantidade), sobre o
sono (quanto dorme, que horário dorme, se sonha, o que sonha, se
dorme bem, em que posição dorme).
Sobre esta consideração do paciente como um todo, o cor-
po dele no mundo: a posição dos astros determina a natureza do
indivíduo, se ele é colérico, fleumático, melancólico; por isso o
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médico é um astrólogo. Astrologia é uma ciência. Ele conhece os
climas, por isso uma das obras se chama Tratado dos ventos, das
águas, dos ares e dos lugares; se o médico não souber como são os
ventos, as águas e os lugares, não poderá fazer o diagnóstico e não
poderá, assim, curar ninguém. Ele deve conhecer o mundo. A
relação é “pra valer” da técnica com a physis, a physis universal e a
physis do paciente.
A observação e a analogia imaginativa formam o que os
hipocráticos designam pelo verbo diagnoskiken (diagnosticar
significa conhecer por meio daquilo que se observa). A regra se-
guida pelos médicos hipocráticos consiste em construir mentalmen-
te um objeto que é inacessível à observação de meta mediante o
exame de um outro objeto que é acessível diretamente à observa-
ção, em outras palavras, operando com os dissoi-logoi (portanto
com os contrários), o médico tem que se mover no campo do visí-
vel e do invisível. Porém como a técnica exige que se permaneça
sempre no visível ele observa efeitos e ele não tem como observar
as causas (não tem como observar o interior do paciente) que são
invisíveis e por isso, para determinar estas últimas, ele estabelece
pelo pensamento uma analogia com alguma coisa ou alguma situa-
ção semelhante em que tanto os efeitos quanto as causas podem ser
observados. Por exemplo, o exame do que se passa com líquidos
em vasos como (... ...)permite elaborar mentalmente
como se daria a distribuição do sangue nas veias; o exame do que
acontece com o alimento durante o processo de (... ...)
permite elaborar mentalmente como se daria o processo da diges-
tão. Quando possível deve fazer algum experimento analógico que
permita observar que a analogia foi estabelecida apenas pelo pen-
samento, construindo analogicamente o processo da doença e da
cura. Apoiado na observação, na analogia imaginatia, no raciocínio
e quando possível em experimentos o médico pode conhecer a
physis do paciente, seu eidos e sua dynamis sadios e o eidos e a
dynamis de sua enfermidade. Feito isso ele pode iniciar a terapia
(provém do termo terapeuein (?), que significa cuidar, respeitar,
olhar com cuidado e com paciência).
A cura pode ser de três tipos: 1) esperar a natureza seguir
seu curso; 2) auxiliar a natureza com dieta e ginástic; 3) intervir no
corpo do paciente para restaurar o equilíbrio perdido. Ora, uma das
idéias importantes –e que aparece no primeiro aforisma – é que as
doenças cuja causa é a própria natureza do doente são doenças
necessárias ou doenças sobre as quais o médico nada pode; ele
[médico] pode apenas aliviar as penas do paciente. Em contraparti-
da a técnica médica é solicitada pelas doenças cuja causa não é
necessária e sim acidental, ou seja, a doença é causada por um
encontro fortuito entre o corpo do paciente e condições externas
contrárias à sua natureza. Porque é um técnico o médico lida com o
acidental, com o que pertence ao acaso e à contingência, com o que
é mutável, fluido, efêmero e por isso sua tarefa é muito difícil. É
preciso ter uma qualidade que não depende apenas do saber que ele
acumulou por aprendizado e experiência: ele precisa ser dotado de
métis. De fato, graças ao aprendizado e à experiência, o médico
pode diminuir a extensão do campo do acaso, do acidental, e não
precisa estar totalmente submetido ao poder da contingência, mas
isso não basta. Além do diagnóstico certeiro o médico precisa ter
golpe de vista e o senso de oportunidade, precisa ser dotado da
capacidade de agarrar o kayrós, o momento oportuno, que –como
diz o primeiro aforismo – é veloz e fugidio. O médico suplanta o
acaso com o seu saber e vence o acaso com sua métis.
O Tratado sobre o ventos, as águas, os ares e os lugares nos
dá acesso à maneira como a Medicina concebia o homem, a saúde
e a doença. De fato, o médico hipocrático contempla o homem no
interior do cosmos para compreender qual é a forma, a estrutura, o
eidos do corpo de alguém, como opera suas dyname, a que doenças
a sua natureza o predispõe e quais lhe podem ocorrer por acaso (o
médico leva em conta as estações do ano, a posição dos astros, a
posição geográfica dos lugares, litoral interior, planície, norte, sul,
a forma e variações dos ventos de cada região, a qualidade das
águas e dos terrenos, os costumes referentes à alimentação, à habi-
tação, ao vestuário, aos exercícios físicos e psíquicos; conhecer um
paciente individual é conhecer o mundo no qual ele vive e com o
qual se relaciona desde seu nascimento. Eis porque o médico hipo-
crático praticava a epidemia, isto é, a visita a todos os lugares para
conhecê-los diretamente, residindo em cada lugar por algum tempo
e viajando sempre, pois não era o paciente que ia ao médico, mas o
médico ia ao paciente. Um paciente nascido na primavera e sob a
constelação de peixes, nascido e morando no litoral, sob influência
dos ventos alísios, alimentando-se de frutos do mar, de vegetais e
frutas próprias da terra úmida, habitando casa de madeira, terá seu
eidos e doenças completamente diferentes de um paciente que
nasceu no inverno, nas montanhas, sob influência dos ventos norte
e sul, alimentando-se de carne de carneiro e dos produtos da olivei-
ra, habitando casa de pedra e vestindo-se com pele de animais.
OTratado sobre a natureza do homemnos esclarece quanto
ao que a medicina hipocrática entende por physis humana e por que
a physiologia é inseparável da psicologia, ou seja, trata das relações
do corpo e da alma. Os hipocráticos atribuiam ao quente ou calor a
origem da vida e colocavam o elemento fogo no sangue, do qual
julgavam vir o esperma. Embora o quente e o sangue sejam a ori-
gem da vida, o corpo humano é constituído pela mistura (krasis) de
quatro humores (kimos) ou sucos: sangue, fleuma, bílis amarela,
bílis negra. Cada um dos humores é constituído por uma combina-
ção dois-a-dois dos quatro elementos ou das quatro qualidade
fundamentais (quente, frio, seco, úmido). A diferença entre os
humores decorre da diferença de proporção entre os elementos: no
sangue predominam o quente e o úmido; na fleuma predominam o
frio e o úmido; na bílis amarela predominam o seco e o quente; na
bílis negra (ou atrabílis) o seco e o frio.
(Parênteses: logo no início das Meditações Descartes diz
que antes de fazer o discurso ele havia sido tomado pela bílis ne-
gra, diz estar preocupado, inquieto, e, com isso, faz um diagnóstico
da situação psíquica e corporal em que ele se encontrava para fazer
as Meditações. Na abertura da Segunda Meditação ele diz que
temos de fazer isso uma vez na vida, e descreve um abismo: duvi-
da-se de tudo, duvida, duvida, duvida, não há mundo, não há corpo.
Esse abismo é próprio da capacidade intelectual de um dos tipos
humanos: o melancólico. Há um texto de Aristóteles sobre os
homens excepcionais, no qual ele diz que “todos os homens de
excessão são melancólicos”, a melancolia é o caráter, o tempera-
20
mento dos grandes homens. Melancolia não é uma doença; vai
haver doenças da melancolia, que são as mais terríveis.)
Embora todos os corpos humanos sejam compostos pelos
quatro elementos e suas qualidades e embora cada indivíduo seja
diferente dos demais é possível classificar genericamente quatro
tipos de mescla dos humores dos elementos, a diferença entre eles
causada pelo humor predominante. Os quatro tipos ou tempera-
mentos são colérico, fleumático, melancólico, sanguíneo. (A atrabí-
lis, em grego, é chamada maelainakole.) E são causados no mo-
mento do nascimento pelos temperamentos do pai e da mãe, pelo
estado do pai e da mãe no momento da concepção, pela hora do dia
ou da noite em que se deram a concepção e o nascimento, pela
estação do ano, pela conjunção astral, pelas condições geográficas
de onde acontece o nascimento, pelas condições sociais, religiosas
e políticas que determinam a maneira como cada temperamento
receberá a influência do ambiente por intermédio da educação.
Tudo isso para formar o temperamento (mistura, tempero dos
quatro elementos e dos quatro humores) de alguém.
Cada um dos temperamentos possui características próprias
que constituem a physis de cada um e a esses temperamentos cor-
repondem também características psicológicas, disposições físicas
e psíquicas, doenças físicas e psíquicas próprias e que variam
conforme as estações do ano, idade e sexo. Porque a doença de-
pende de fatores variados (no corpo e na alma do paciente) e das
condições ambientais, uma das marcas mais interessantes do diag-
nóstico hipocrático é a sua construção. Além dos cinco pontos
acimas como constitutivos do método ou caminho do conhecimen-
to o diagnóstico comportava também um movimento inicial de
diálogo entre o médico e o paciente que tinha como finalidade
realizar a anamnese, isto é, graças às perguntas do médico o paci-
ente se tornava capaz de narrar os acontecimentos que antecederam
o momento da doença e descrever as ações que realizara ou recebe-
ra de outros. Assim o médico perguntava quando e onde o paciente
nascera, seus hábitos alimentares, seus interesses, onde estava, com
quem estava, o que fazia, como sentira a doença, se tinha dificul-
dade para comer, se tinha dores, se era localizada.
Ao terminar a anamnese o paciente e médico dispunham
das informações e um dos sinais mais importantes da ocasião em
forma da doença, em outras palavras, o paciente não ficava passivo
diante do saber do médico, mas participava da elaboração do co-
nhecimento de sua doença, ainda que a seguir não pudesse ter
mesma participação que o médico quando este iniciasse o trata-
mento. Um segundo aspecto interessante do tratamento estava no
modo de ação do médico: em alguns casos o médico não intervia;
os casos de intervenção podem ser direta (cirurgia, punção, remé-
dio) ou indireta (a dieta: alimentação, exercícios físicos e psíqui-
cos, banhos, perfumes, aromas, repousos, óleos, isto é, um regime
de vida que buscava modificar os hábitos do paciente para adequá-
lo a sua physis, ao eidos do seu corpo e de sua alma). Ao realizar a
anamnese e conhecer a constituição própria do paciente, bem como
as condições em que ficara doente, o médico era capaz de reconhe-
cer se a doença era crônica ou passageira, como e por que o equilí-
brio ficara perdido nas doenças crônicas ou abalado nas passagei-
ras, e a dieta não só contrabalançava os excessos e faltas dos conti-
tuintes mas também trazia hábitos capazes de restaurar e conservar
a harmonia. Sob este aspecto a dietética hipocrática não se direcio-
nava apenas aos doentes, mas também aos sadios que desejassem
conservar a saúde.
E como um médico alcançava a um paciente? Porque a
maioria das doenças eram consideradas psicossomáticas e ele
precisaria convencer o paciente a realizar a anamnese. Para isso ele
usava três procedimentos: a doce persuasão (agindo com calma e
serenidade, imputando o mais grave e exortando o paciente a dese-
jar a cura consolando-o de suas aflições); emprego da música e a
poesia (para excitar alegrias na alma do paciente afastando triste-
zas, temores e angústias); escolha da alimentação noturna (de modo
a afastar pesadelos e provocar bons sonhos levantando o ânimo do
paciente). O mais importante, porém, era o modo com que fazia o
diagnóstico no momento de sua intervenção. Feito o diagnóstico, o
médico sabia que, para o tratamento funcionar, ele deveria iniciar o
tratamento no momento oportuno, pois se errasse este exato mo-
mento a cura não poderia ser feita. Esse momento é a krysis: mo-
mento preciso no qual o médico é capaz de julgar o todo da doença
que ele vê e qual intenveção deve executar e para isso ele precisa
de golpe de vista certeiro, vigilância e paciência com o que é fluido
e móvel, capacidade para agarrar o kayrós e a combinação de
experiência, observação, memória, treino e julgamento, ou seja,
para curar é preciso esperar a crise, que supõe um golpe de vista
capaz de ver num único olhar essa complexidade e quando ele deve
intervir e agarrar o kayrós.
Aula 03 (20-08-2012)
O pensamento grego sobre a técnica – Platão e Aristóteles
Platão – primeira sistematização. O Ocidente é herdeiro da
sistematização de Aristóteles.
Nos diálogos, o jovem Platão coloca na boca de Sócrates
um discurso muito otimista com relação à técnica e uma boa von-
tade com relação aos técnicos. Sócrates, em vários diálogos, irá
afirmar que os técnicos são aqueles que sabem o que fazem e por
que o fazem (contrapõe aos políticos, que não sabem o que fazem e
por que o fazem). Tal oposição aparece em Apologia, qd Sócrates
coloca os técnicos como superiores aos políticos e aos poetas.
Apesar desse otimismo com relação à técnica, Platão desde a ju-
ventude estabelece um limite à técnica – ela não tem a possibilida-
de de alcançar o universal. Por isso, entre os vários erros cometidos
por Protágoras, 2 são os principais: supor que a competência técni-
ca é a mesma em todos os campos técnicos. Cada um tem a sua
competência particular. O outro, julgar que a
técnica pode ser estendida à política, considerando a política uma
técnica particular. Platão vai mostrar que a política não é uma
técnica, é um saber teórico que alicerça um saber prático. Para
saber o que é um técnico, é preciso definir a essência da técnica; e
para isso é preciso determinar o campo em que a prática técnica se
exerce. Platão vai dizer que cada técnica, embora particular, é
tomada nela mesma uma totalidade, ou seja, opera sempre com os
mesmos procedimentos, os mesmos princípios, as mesmas regras
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para todos os objetos do seu campo de ação. É por isso que a medi-
cina é uma técnica, e o médico um técnico, mas a poesia não é uma
técnica, nem o poeta um técnico. Embora uma técnica trabalhe com
a totalidade, ela não é uma totalidade e sim uma competência
específica.
Na maturidade, as ideias de Platão irão mudar, sem que o
vocabulário mude. Por meio desse vocabulário, ele vai sistematizar
um pensamento sobre a técnica. Esse vocabulário não está vincula-
do exclusivamente à técnica, mas aos conceitos da filosofia platô-
nica. É empregado por Platão para entender ou elaborar um enten-
dimento sobre as essências (e o que se procura é a essência da
técnica) e esse vocabulário é aplicado para a técnica tb. O campo
conceitual será o mesmo. Desse vocabulário, vou mencionar ape-
nas os termos que fazem referência à técnica: o primeiro é a dyna-
mis como potencialidade ou possibilidade de estar inscrito na natu-
reza de alguma coisa e que é invisível ou está escondido. O outro, a
arethé, a excelência de alguma coisa, a sua perfeição, o ponto
máximo, a sua função excelente. Perfeição de alguma coisa qd a
dynamis está atualizada. O terceiro, o termo que vai receber o
sentido platônico: eîdos, ou a forma inteligível, a ideia como essên-
cia que não é captada só pela inteligência, mas porque a inteligibi-
lidade é o ser dela mesma e não uma propriedade. O eîdos é tb o
modelo, o paradigma ideal de perfeição que orienta o movimento
correto de atualização de uma dynamis. É a essência imóvel (senti-
do grego) e, portanto, a forma perfeita. É uma realidade imaterial,
necessariamente. Existe, portanto, separada em um outro mundo,
que não é o mundo material das coisas sensíveis, o mundo como
nós o percebemos, é um mundo à parte, exclusivamente imaterial e
inteligível. O mundo inteligível é o mundo da matéria, corporal,
sensível, o mundo mutável, portanto, porque mutável, é uma
dynamis que precisa ser atualizada. A epistéme é a ciência como o
conhecimento teórico do eîdos, conhecimento que se dá pelo inte-
lecto puro, que vê o eîdos. O que ele vê, portanto, é a forma perfei-
ta. Em termos da técnica, esse conhecimento é o conhecimento de
paradigmas eternos. A mímesis é a atividade técnica dirigida pela
epistéme para fazer com que a dynamis da coisa sensível, natural,
corporal, material, seja atualizada não de qq maneira, mas de acor-
do com o eîdos, isto é, de acordo com um modelo ideal ou o seu
paradigma. Somente qd a coisa material atualiza suas potencialida-
des em conformidade com a sua ideia ou forma inteligível ou seu
paradigma é que ela alcança a sua arethé. A técnica, então, é uma
imitação (mímesis) para as coisas sensíveis do modelo ou do para-
digma das essências inteligíveis e tem que ser guiada pela epis-
téme. Só o conhecimento da forma permite uma técnica adequada.
Mesmo o arquiteto e o engenheiro, que conhecem os princípios
e as causas da sua prática, não tem o conhecimento do para-
digma. Alguém tem que fornecer a eles o conhecimento do
paradigma para que eles possam propor princípios e causas de
uma técnica especializada que o artesão tem que realizar. O
paradigma só pode ser proposto pelo filósofo. Só aquele que
conhece a forma (eidos) pode dizer aos outros o que eles tem
que fazer. O filósofo oferece ao técnico o conhecimento do
paradigma do seu campo de ação. Finalmente, a técnica, essa
imitação do paradigma ideal, se realizada como demiurgia, ou seja,
o técnico não fabrica a matéria sobre a qual ele vai operar, não cria
a matéria da sua operação. Opera sobre uma matéria dada e atuali-
za-a. A isso chamamos demiurgia. O demiurgo platônico não cria
matéria.
Com Platão, physis, epistéme e técnica tornam-se insepará-
veis. Por natureza, as coisas do mundo sensível - os homens, os
animais, as plantas - são compostas de matéria e, por isso, manifes-
tam a essência daquilo que é material ou corporal. Qual é a marca
da matéria? A falta, a privação. Ou seja, a matéria é o inacabado, o
incompleto e, por isso mesmo, não cessa de mover-se, pois, através
das mudanças espera acabar com a sua carência, a sua provação.
Qd Platão diz que o eîdos é imóvel e a coisa natural é móvel, ele
quer dizer que o eîdos é perfeito, nada lhe falta. A matéria precisa
mover-se porque lhe falta tudo. Uma das tarefas do técnico é ajudar
a matéria a atualizar potencialidades. As coisas do mundo sensível,
do mundo material, são contingentes porque estão necessariamente
em devir (tornam-se incessantemente diferentes daquilo que são).
A mudança se faz sempre por oposição, por contradição. A coisa se
torna oposta do que ele é. O quente esfria, o úmido seca, o novo
envelhece, o pequeno cresce, o dia vira noite... O mundo sensível é
móvel, temporal e contingente porque a mudança se dá sempre na
direção do seu contrário. É uma mescla de ser e não ser, o lugar da
privação e da carência. A mudança pode se dar de 2 maneiras: ao
acaso, desordenadamente (como a natureza opera) ou ordenada-
mente, controladamente. Como é possível uma mudança ordenada
da mescla do ser e não ser? As mudanças ordenadas são as ações
operadas pela técnica. A natureza não faz isso sozinha. Platão está
dizendo que uma mudança ordenada, capaz de atualizar as suas
potencialidades em conformidade com o seu paradigma, é a opera-
ção realizada pela técnica, que arranca as coisas naturais do acaso e
da contingência e opera para suprir-lhes as faltas e carências. A
coisa natural é passiva e graças a isso ela pode receber a atividade
do técnico. Para agir, são necessárias 3 condições: 1) conhecer a
coisa sobre a qual se vai agir, 2) os meios adequados para realizar a
ação e 3) a finalidade da coisa (núcleo grego clássico). Para que a
técnica possa agir, precisa, portanto, desses 3 conhecimentos: a
natureza, os meios e a finalidade. Quem lhe dá esse saber é a epis-
téme, que traz o conhecimento da essência da coisa na medida em
que ela é o conhecimento da forma ideal da coisa que a ação do
técnico deve imitar, ela é o conhecimento de que a finalidade pró-
pria da ação sobre uma coia determinada é realizar a sua arethé. É
ela que diz que isso é possível porque a coisa é dynamis, e é ela que
apresenta para o técnico os instrumentos adequados para a ação que
ele irá realizar. No Banquete, Platão afirma que a técnica faz passar
uma coisa do seu não ser (da sua potencialidade) ao seu ser (a sua
atualidade excelente). Essa passagem é uma mimesis porque o
artesão consegue a gênese da coisa graças ao seu conhecimento da
ideia da coisa, da sua forma perfeita e acabada (que determina a
finalidade e a finalidade é o que suscita a ação do técnica – a ação
do técnico é determinada pela finalidade da coisa). Platão diz que a
ciência é o saber dos contrários, que permite conhecer a identidade
de um ser (essência) e os contrários a ele (ou seja, a epistéme per-
mite conhecer o eidos e a arethé da coisa a fim de impedir que a
contingência, o acaso, arraste essa coisa em direção àquelo que é
contrário a ela – guiando a técnica para que a coisa não se torne
contrária a sai mesma, não se violente a si mesma). Para entender a
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physis (a natureza) de alguma coisa e a physis em seu todo, Platão
diz que é preciso referi-la ao ser, ou seja, é preciso compreender
que a realidade natural (physis) está cindida entre a forma inteligí-
vel que lhe serve de paradigma (o ser) e a matéria sensível, desgar-
rada, sempre contrária a si mesma, passível, contingente, móvel,
isto é, o não ser. A cisão do ser e do não ser é a cisão entre a forma
ideal (o eidos, a essência) e a coisa natural (a matéria). A matéria
está sempre no não ser, porque está sempre contrária a sai mesma,
transformando-se no que não é, enquanto a forma permanece na
plena identidade consigo mesma, que é a exigência primeira do ser.
A realidade, portanto, está cindida entre a forma inteligível e móvel
e a coisa sensível material, móvel. Por isso, a natureza (physis) é
uma mistura inevitável de ser e não ser. Imita a essência, busca o
ser, mas não cessa de mudar, não deixa de ser o não ser. É no
interior dessa cisão da physis entre o ser e o não ser que o técnico
vai agir. O que torna possível a ação do técnico é algo que lhe é
oferecido pela própria natureza (cisão entre a forma e a matéria). É
por isso que a atividade do técnico tem que ser necessariamente
uma mimesis, senão ele não consegue dominar o acaso do não ser
da matéria. Ele só pode fazer isso se puder imprimir nela (na maté-
ria) o paradigma ideal, se puder fazer com que ela imite, dentro dos
limites que lhes são dados, os limites da matéria, a identidade da
forma. A técnica traz para o que não é idêntico a si mesmo a possi-
bilidade da identidade. Em Timeu, Platão explica a atividade técni-
ca de um técnico determinado (o demiurgo) - para explicar a exis-
tência do mundo sensível, o porquê de o mundo (o cosmos, a reali-
dade ordenada) não ser um caos completo, para que se possa falar
em mundo – há um cosmo natural graças à ação de um técnico
divino, o demiurgo, que conhece as formas e vai imprimir na maté-
ria essas formas, esses paradigmas, vai dar forma ao sensível, à
natureza. Muito importante no século 17: a natureza, enquanto
cosmos, é um artefato divino, um produto técnico. O pensamento
de Platão vai fazer com que a physis seja absorvida pela técnica.
No Íon, a técnica é definida como uma competência teórica
e prática especializada. Cada técnica possui seu campo, seu objeto,
suas regras, os instrumentos definidos pela finalidade e pelo uso do
objeto e se opõe à epistéme (à ciência) porque essa é um saber do
universal. A atividade é técnica, diz Platão, qd estamos diante de
uma ação que emprega sempre os mesmo princípios, as mesmas
regras e os mesmos objetos para o seu campo de ação. Portanto, é a
permanência dos princípios, das regras, dos procedimentos e dos
objetos que distingue uma técnica de outras e de outras atividades
humanas. Em Carmidis, Platão diz que, como uma técnica é uma
atualização de uma potencialidade inscrita na coisa, ela é o
exercício de uma ação sobre alguma coisa que é diferente da
própria ação. (Essa ideia será muito importante, principalmente qd
chegarmos em Aristóteles.) Então, a técnica se instala na auterida-
de entre o agente e a obra, entre a ação e o objeto da ação. Isso
significa, diz Platão, que a técnica não possui em si mesma e por si
mesma a capacidade da sua operação porque a possibilidade da
operação se encontra no objeto, que vai dizer ao técnico o que deve
ser feito. A técnica não age por si mesmo nem sobre si mesma, não
é uma prática reflexiva, não se volta sobre ela mesma, porque ela é
inteiramente determinada pela exterioridade, pelo seu objeto. Em
Hipias Maior, Platão diz que a dynamis (ou a potencialidade) é
anterior ao fazer do técnico e é ela que comanda a prática do técni-
co. É por isso que a técnica tem que ser precedida pela ciência. A
técnica é uma ciência aplicada, um saber aplicado ou a execução de
uma possibilidade cientificamente conhecida. Com isso, Platão está
definindo o arquiteto e o engenheiro.
GÓRGIAS – Em Górgias, Platão vai dizer que técnica é
diferente de mera experiência. A experiência limita-se a estabele-
cer, por meio da memória, relações entre coisas isoladas que se
repetem sempre da mesma maneira. A experiência, então, possui as
seguintes características: ignora a necessidade intrínseca de uma
relação entre coisas (ela comprova essa relação, mas não sabe qual
a necessidade intrínseca dessa relação), 2) a experiência é uma
constatação, é capaz de oferecer a causa do seu objeto, dos proce-
dimentos das operações que ela realiza (a experiência é cega, não
vê o lógos, o eidos), 3) a experiência busca o prazer e não a exce-
lência. Exemplo: a culinária pretende ser o mesmo que a dietética,
mas é uma falsa imitação da dietética, que visa a excelência do
corpo, a saúde, e a culinária visa ao prazer do corpo. O autômato
que visa ao prazer é uma contrafação da máquina, que visa a um
produto ou obra útil. A retórica visa à sedução e ao prazer e se
opõe à dialética, que visa ao saber e à verdade. Em Políticos, Platão
afirma que é preciso manter a diferença entre técnica e experiência
e vai hierarquizar a tácnica:
1 – técnica como poiesis, como fabricação ou artesanato
(demiurgia) – técnicas produtivas humanas e divinas, que fabricam
os objetos a partir da potencialidade das coisas
2 – técnica como noiesis, como conhecimento, empregada
para adquirir conhecimentos téoricos (a matemática, por exemplo)
e práticos (a ética e a política) e aquelas com capacidade crítica (a
dialética). As técnicas noéticas, portanto, são diretivas, dirigem e
subordinam, as técnicas poiéticas ou de fabricação.
No Sofista, existe uma distinção entre técnica como noéti-
cas e técnicas poiéticas. No Sofista, Platão vai acrescentar mais 2
distinções: as técnicas de aquisição (caça e pesca, que não fabricam
nada, mas exigem regras e procedimentos específicos) e as técnicas
que exigem aquisição de conhecimento (a geometria, a astronomia,
a música). Além disso, as técnicas de uso, que são aquelas para se
conhecer ou guiar o bom uso das técnicas de fabricação e de aqui-
sição (a dialética e a política). É nesse diálogo que Platão retoma a
distinção dos 2 tipos de mimesis (a boa mimesis e a contração): a
técnica poiética ou fabricadora realiza uma mimesis, ou seja, ao
artesão é oferecido o conhecimento do paradigma ou do modelo da
coisa que ele tem que fabricar. Sua tarefa é aprender os procedi-
mentos para atualizar a dynamis da coisa para que ela realize um
modelo – a mimesis é aqui uma gênese do objeto técnico pela
imitação do seu paradigma. É por isso que pode haver 2 tipos de
mimesis, a verdadeira, que faz com que a coisa natural seja uma
cópia fiel do modelo, e a falsa mimesis, que faz aparecer não a
23
cópia fiel, mas o falso remédio, a poção (é uma imitação da imita-
ção – aqui a técnica é ilusão, aparência, falsidade, mentira). Os
eidola são o objeto da fúria de Platão: em primeiro lugar, como
eidola, o trabalho dos sofistas, e tb os autômatos e as artes (escultu-
ra, pintura, retórica, poesia, teatro). Tudo isso é simulacro, imitação
da imitação. Por isso, os artistas não têm lugar na República de
Platão, nem os sofistas.
Resumindo o quadro platônico, a técnica é uma ciência, um
saber cuja finalidade é atualizar na coisa natural uma possibilidade
natural inscrita nela para que ela alcance a sua excelência. Para
isso, a técnica é uma ação mimética, que deve aproximar a coisa
natural do seu paradigma inteligível. Para fazer isso, realizar essas
2 finalidades, a técnica opera de 2 maneiras sucessivas: pelo esta-
belecimento da concordância entre a coisa e o modelo e pela
comunidade dos fins. Ou seja, a operação técnica só é perfeita e
adequada qd estabelece a harmonia, o acordo e a concordância
entre os elementos contrários e as partes contrárias que constituem
todo ser sensível (todo ser sensível é constituído de contrários
porque ele é uma mescla de ser e não ser). Par Platão, então, a
primeira tarefa da técnica é pacificar os conflitos que constituem
um ser estabelecendo uma proporção e um equilíbrio entre os
componentes. A técnica visa à harmonia, à simetria e à proporção
de uma coisa. O núcleo da operação técnica, seja ela qual for, é a
matemática. Em segundo lugar, a técnica deve produzir em cada
ser uma comunidade entre as suas partes e entre os vários seres,
uma comunidade de relações entre eles. Ela deve estabelecer uma
relação regrada e hierárquica de funções entre as partes ou se um
ser ou entre vários seres relacionados. Tem que fazer isso para
obter um todo ordenado. A medicina é o
melhor exemplo dessa realização.
Tb aparece no Político, a técnica como atividade social,
submetida aos conflitos sociais, que podem lhe desfigurar. Por isso,
é preciso uma ação diretiva sobre ela. E a política é isso, uma
técnica diretiva de ação, orientada pela técnica dialética e pela
técnica de conhecimento (epistéme) e deve governar as técnicas
produtivas para o bem da pólis.
ARISTÓTELES - Diferentemente de Platão, Aristóteles
não concebe a epistéme como uma técnica de conhecimento direti-
va das demais técnicas. Pelo contrário, ele vai separar drasticamen-
te e rigorosamente a epistéme (o saber filosófico e científico) do
saber técnico. O saber filosófico e científico é teorético, ou seja, é
um saber conforme o objeto ou a natureza de um ser examinado
pelo conhecimento. O conjunto dos saberes teoréticos divide-se em
3 grandes saberes ou ciências teoréticas: a física, a matemática e a
filosofia primeira (metafísica), a mais alta das ciências teoréticas,
aquela que estuda o ser enquanto ser. As ciências teoréticas abran-
gem o conhecimento dos seres naturais (a física ou compreende
biologia, botânica, zoologia, psicologia, cosmologia, isto é, todos
os seres da natureza. Abrange os conhecimentos matemáticos, e o
conhecimento dos primeiros princípios e das primeiras causas de
todas as coisas, isto é, o ser puro e imóvel, Deus). As ciências
teoréticas são aquelas cujos objetos existem independentemente da
vontade ou ação dos homens. É por isso, que a única coisa que os
homens podem fazer com relação a esses objetos é contemplá-los.
É o conhecimento contemplativo, já que esses objetos não depen-
dem da nossa ação para existirem.
Há um outro conjunto de ciências que, sendo ciências, são
teóricas, mas não são teoréticas, isto é, não são o conhecimento
daquilo que depende da ação e da vontade dos homens, - economia,
ética e política. Aristóteles para se referir às ciências cujo objeto
depende da ação humana divide essas ciências em práticas e pro-
dutivas.
Diz Aristóteles, toda e qq ciência só é ciência se investiga
os princípios e as causas e a essência dos seres que são o seu objeto
de estudo. Só há ciência qd conhecemos segundo as causas (nos 4
sentidos). Esse é o lema de Aristóteles, que diz que para cada
gênero de ser existe um tipo determinado de ciência. Para ele é
impensável a ideia de física matemática (cada gênero de ser não
pode ser confundido com o ser de um outro gênero). Para cada
gênero de ser existe uma ciência. Essa diferença na natureza das
coisas investigadas, faz com que os princípios e as causas em cada
ciência sejam diferentes. Por isso, ele classifica as ciências em 3
grandes grupos: as ciências teoréticas, cujo fim é a verdade, as
ciências práticas, cujo fim é o bem humano, as produtivas cujo fim
é uma obra. O saber teorético é o conhecimento do universal e do
necessário (não existe ciência do particular e do contingente), é
o conhecimento da essência das coisas, é conhecimento do princí-
pio e das causas de todos os seres e um conhecimento de 2 tipos de
seres, os imóveis, Deus e os astros, e os móveis (um tipo bem
preciso, aqueles que têm na sua própria natureza o princípio do
movimento, que mudam sempre, os seres naturais estudados pela
física). As ciências práticas, ao contrário, são aquelas cuja causa é
o homem como agente da ação, mas ação cuja finalidade é o pró-
prio homem, e que dependem de uma decisão humana. O objeto
dessa ciência é particular e contingente. São aquelas cujo agente, a
ação e a finalidade da ação são uma coisa só, inseparáveis. O obje-
to dessa ciência é a práxis, uma atividade que não produz algo
diferente do agente e cuja causa é a vontade humana entendida
como escolha livre, racional e deliberada. São ações que visam
alcançar o bem do próprio agente (economia, ética e política) . As
ciências produtivas referem-se à ação fabricadora. Em grego, essa
ação é poiesis. São conhecidas como ciências poiéticas. A poiesis
difere da práxis porque nela o agente, a ação e o produto da ação
que o agente realiza são 3 termos diferentes e separados. A finali-
dade ação está na obra, no produto ou no artefato ou numa ação
dirigida a um outro e não no próprio agente (por exemplo, a medi-
cina). Na práxis há uma interioridade entre ação, agente e o resul-
tado da ação, na poiesis há uma exterioridade.
As ciências produtivas não lidam apenas com o possível,
como as práticas, nem apenas com o particular. Lidam sobretudo
com o contingente, o imprevisível, o acaso. São conhecimentos
para vencer o acaso. A ação produtora ou fabricadora realiza uma
finalidade; o fim, que é o critério da ação, é o paradigma daquilo
que vai ser fabricado ou daquilo que se vai fazer. O paradigma ou
modelo oferece às técnicas um conjunto de procedimentos corretos
(um método) pelos quais o técnico pode operar com regularidades e
tornar racionais, menos inseguras e instáveis, menos contingentes
24
as coisas sobre as quais ele vai agir. Na Ética a Nicômaco, Aristó-
teles caracteriza a técnica da seguinte maneira: sua origem é a
experiência, mas não qq experiência, mas apenas aquela generali-
zada, que conhece as causas para a produção de uma obra, mas não
conhece o porquê a produção, que pertence à ciência teorérica ou à
prática ou ao usuário da obra.
A técnica se distingue da metafísica porque o objeto da
metafísica é aquilo que não está submetido à gênese, não se trans-
forma. Tb se distingue da física porque o objeto da física é o uni-
versal e o necessário. A técnica se distingue da práxis pq a práxis
tem por objeto a interioridade entre agente, ação e finalidade.
As ciências produtivas são aquelas que se referem a um
aspecto particular da capacidade fabricadora do homem. Por isso,
são tão numerosas quanto as possibilidade produtivas dos seres
humanos.
O que distingue Aristóteles de Platão e dos sofistas? Es-
ses 2 últimos colocam na multiplicidade dos objetos as possibilida-
de técnicas. Aristóteles coloca no ser humano, nas potencialidades
de intervenção dos seres humanos. Ele vai buscar no técnico e não
na coisa, a pluralidade das técnicas. Não é a coisa que suscita a
pluralidade das técnicas, é o ser humano. Do que ele é capaz?
Na técnica operam as 4 causas. Isso foi visto no texto do
Heidegger:
- causa formal, a forma ou essência
- a causa material, a matéria de que é feita
- a causa motriz, que faz a forma penetrar na matéria e
- a causa final ou finalidade da coisa.
Na técnica, a causa material é aquilo de que a obra é feita.
A causa formal é aquilo que dá à obra o seu aspecto acabado; a
causa final é o uso a que se destina a obra e a causa motriz é o
técnico. Aristóteles considera que para cada coisa existe uma forma
acabada ou perfeita que serve de modelo ou paradigma para a ação
do técnico ( a forma perfeita de saúde para um médico).
“A técnica é um estratagema para vencer um obstáculo na-
tural” - Aristóteles recupera todo o campo da métis.
Mas ainda há algo mais inovador que ele deixará para a
Renascença: a natureza aspira a identidade consigo mesma, sem
mais ter que mudar, mover-se, seu télos, aquilo que a faz mudar, é
o desejo do imóvel. A natureza não pode realizar o seu desejo. Está
imersa em uma impotência que a impede. Imitar a natureza agora
significa que a técnica vai além da natureza para ajudá-la a realizar
o seu desejo de perfeição e imobilidade: aquilo que a natureza
deixada a si mesma nunca poderia realizar (um dos núcleos do
pensamento renascentista sobre a técnica).
Aula 04 (27-08-2012)
Marilena justifica por qual razão fará um resumo da técnica
na Idade Média (14 séculos de pensamento) antes de
entrar na Renascença. Pretende apresentar o modo como o pensa-
mento sobre a técnica a partir de Aristóteles consolidou-se e siste-
matizou-se nos séculos 11 e 12, principalmente.
Vou destacar 3 aspectos no pensamento a respeito da técni-
ca nesse longo período de tempo. O primeiro é a sua relação com a
teologia; o segundo, a distinção entre técnica divina e técnica
humana; e o terceiro, a relação entre técnica e natureza. A pala-
vra que começaremos a usar agora, já que a filosofia vai começar a
falar latim, é ars, tradução correspondente em latim para o termo
técnica. Daqui por diante, falarei em arte e somente em casos
muito excepcionais, direi belas artes, porque essa noção de belas
artes só surgirá no século XVIII. Antes desse período, o termo artes
era empregado para referir-se a todas as técnicas.
O primeiro aspecto é o da técnica inseparável da teologia,
porque Deus cria o mundo a partir do nada. Nos textos medievais,
Ele é chamado de artífice magno, pintor e arquiteto. E como se
dá a técnica divina? No seu intelecto, Deus tem as ideias que con-
cebe desde toda a eternidade, que estão no seu intelecto desde
sempre e foram concebidas por Ele como essências universais (e
por que universais? Do pensamento grego, sobretudo de Platão e
Aristóteles, vem a ideia de que para conhecer alguma coisa singu-
lar ou particular é preciso que essa coisa seja dotada daquilo que a
individualiza, e isso não pode ser a sua essência, porque ela, a
coisa, compartilha tal essência com outras coisas; então, o que a
individualiza é a matéria: as coisas são individualizadas graças aos
seus corpos. Ora, isso significa que eu só conheço coisas particula-
res por meio da sensação, pois é ela que me permite acesso ao
corpo material externo ou ao meu próprio corpo. Deus é puro
espírito e, portanto, não tem sensação; sendo assim, não conhece as
coisas particulares.
Aqui Marilena diz que abrirá um parêntese: Deus só co-
nhece os universais. Isso não seria nenhum problema para os ju-
deus nem para os apóstolos. Gregos, bizantinos e a elite romana
convertem-se ao cristianismo para pensá-lo com os conceitos da
filosofia. Não é possível tal associação – crença tribal e filosofia –
para explicar universal do cosmos. Uma das catástrofes dessa
associação é essa: Deus só conhece os universais. Aristóteles diria
isso sem dificuldade, pois o Deus da filosofia grega não tem qual-
quer relação com os homens nem com o mundo; o demiurgo de
Platão também não. Esses deuses não tinham que se relacionar com
os homens. O Deus judaico-cristão, no entanto, é pura relação com
os homens. Cria o mundo, vigia e pune o homem, promete o Mes-
sias, faz mil coisas! Há uma relação de Deus com os homens e com
cada homem. Não há relação mais pessoal nem direta que essa!
Como juntar isso e um Deus que só conhece os universais? Pelo
mistério da fé. Cada vez que não se pode explicar algo, recorre-se a
um mistério da fé. Creio porque é absurdo (Sto. Agostinho). Se
não fosse absurdo, eu entenderia, como eu não entendo, eu só
posso crer; a crença está ligada à noção de absurdo.
Deus tem desde toda a eternidade as ideias, que são as es-
sências universais de tudo o que é possível. No momento da cria-
ção, a vontade onipotente de Deus toma as ideias concebidas pelo
intelecto divino como um protótipo de todas as coisas, e por esse
ato da vontade onipotente, Deus cria o mundo a partir do nada. O
mundo, então, é obra do pensamento divino, do seu intelecto, da
25
sua vontade onipotente. O mundo, então, é uma obra especulativa,
ou seja, é produzido do nada pela sabedoria divina. Deus, como o
arquiteto supremo opera segundo a harmonia, a proporção, a ordem
e a simetria, porque ele é um geômetra. Deus cria, portanto, o
mundo, porque ele é um arquiteto e um geômetra. O mundo é uma
obra técnica, mas de natureza especulativa porque é o saber divino
que cria o mundo. Isso nos introduz ao segundo tema, que é a
diferença entre a arte divina e a arte humana. Essa diferença é de
ordem quádrupla: primeiro, a arte divina é criadora, cria a
forma e a matéria das coisas. A arte humana é fabricadora, coloca
uma forma numa matéria preexistente. Em segundo lugar, a arte
divina é especulativa: Deus pensa e o mundo é criado pelo simples
fato de Deus o pensar. Por isso, a criação é um fiat: Deus pensa e o
seu pensamento é traduzido como “faça-se”. Ao contrário, a técni-
ca humana é produtiva, isto é, é uma operação regulada pelas 4
causas. Em terceiro lugar, na arte divina, a forma que é impressa na
matéria é chamada de forma subsistente, isto é, quando a matéria
perece, a forma não se dissolve junto com ela porque a forma é
uma ideia divina imperecível, é uma essência eterna que recebe
uma existência particular no momento da criação, e que retorna à
sua condição de essência pura qd a matéria na qual estava inserida
desaparece. Portanto, a forma subsiste antes da matéria e depois
dela. Ao contrário, na arte humana, a forma impressa na matéria é
chamada de inerente, ou seja, dissolve-se qd a matéria na qual ela
está perece. A obra dissolve-se por inteiro.
Marilena abre um outro parêntese: Guilherme Ockam
opõe-se a toda essa tradição: ‘eu não posso separar intelecto e
vontade divinos, que são inseparáveis. O intelecto
divino, porque idêntico à vontade divina, está sempre em criação.
Então, se não há diferença e Deus está em constante criação, não
existem ideias como essências universais guardadas no seu intelec-
to. Toda ideia pensada por Deus, desejada por sua vontade, é sem-
pre singular. Só existem ideias singulares. Ockam irá dizer, então,
que a noção de mundo como uma ordenação articulada de nexos
causais entre as coisas é uma criação da mente humana. Somos
nós que fazemos as generalizações, as universalizações; o mundo é
, na verdade,uma coleção de singularidades, sem articulação ne-
nhuma. Por isso, diz Ockam, Deus pode criar e aniquilar algo sem
que o mundo mude (na teoria de cosmos articulado, se Deus ani-
quilasse uma das coisas por Ele criada – a lua, por exemplo, tudo ia
se desarticular. No mundo pensando por Ockam, como Deus só
cria singularidades, Ele pode aniquilar as coisas, sem que isso faça
a menor diferença. O poder de criação e aniquilação é idêntico.
Mas a condição para pensar dessa maneira envolve passar da ideia
de separação do intelecto e vontade divinos e a ideia de que há
essências universais. “Fechei o ()”.
O quarto ponto da diferença entre a arte divina e a arte hu-
mana decorre de uma semelhança entre ambas. Ambas são míme-
sis, ou seja, tanto em Deus qt no homem, a forma, a ideia, o mode-
lo, o arquétipo, o protótipo, o paradigma (todos são termos sinôni-
mos), existem primeiro no espírito do artífice. A coisa criada por
Deus e a coisa fabricada pelo homem são a materialização de uma
ideia, e nisso as duas artes são iguais. A coisa imita ou mimetiza o
seu modelo. Entretanto, vai haver uma diferença nesses 2 tipos de
mímesis: Deus cria as próprias ideias, as formas, os modelos.
O homem recebe no seu entendimento a ideia da coisa sob a forma
de um modelo que ele deve seguir para fabricar a obra. Portanto, o
intelecto divino é agente, cria a ideia, e o intelecto humano é paci-
ente, recebe a ideia como um modelo que ele deve realizar. Além
disso, não só as ideias, ou a ideia da obra, mas tb as máquinas, os
instrumentos preexistem na mente do artífice como modelos que
ele precisa compreender antes de agir. Ora, na arte divina nada
preexiste. Será mantida a ideia aristotélica de que o técnico é um
mediador entre o modelo preexistente e a obra produzida por ele.
Ele é o meio pelo qual um modelo se concretiza em uma obra. Uma
forma se imprime em uma matéria. O outro ponto é a relação entre
a técnica e a natureza. Na natureza, a forma, que é a ideia das
essências das coisas, preexiste às coisas, está no intelecto divino,
de tal modo que um ser pode engendrar um outro ser da mesma
espécie ou gênero que ele. O homem engendra o homem, o
cavalo engendra o cavalo, a roseira engendra a roseira e assim por
diante. Engendrar significa transmitir para uma outra matéria a
mesma forma. A mesma forma pode ser transmitida porque a for-
ma preexiste ao engendramento. A natureza, portanto, pressupõe a
forma como algo anterior a ela e que ela transmite. Ora, na técnica,
a forma tb preexiste à obra, mas apenas porque ela existe primeiro
no espírito do técnico, que vai imitá-la no momento da fabricação.
E é essa diferença no modo pelo qual a forma preexiste na natureza
e na técnica que permite conservar a afirmação aristotélica que a
arte imita a natureza. Por que? Em primeiro lugar, porque age
como a natureza, introduz uma forma numa matéria. Porém, na
natureza, que é um artefato divino, a forma subsiste (por isso ela
pode ser transmitida pelo engendramento), enquanto que na técni-
ca, tanto a forma qt a matéria são perecíveis.
A Idade Média conserva a divisão das artes proposta pelos
romanos, isto é, a divisão entre as 7 artes liberais, aquelas pratica-
das pelos homens livres, e as artes mecânicas ou servis. As artes
liberais vão formar o curriculum na educação do jovem romano e
depois serão sistematizadas por Varrão para constituírem-se no
currículo das universidades medievais. O quadrivium, primeira fase
do aprendizado, é constituído por 4 artes: aritmética, geometria,
astronomia e música ou harmonia. O trivium é constituído por 3
artes, a lógica, a dialética ou eloquência e a filosofia. A filosofia,
por sua vez, permaneceu dividida em teorética (física e teologia) e
prática (ética e política). Por razões óbvias da estrutura da socieda-
de latina e medieval, as artes mecânicas não entram no currículo de
formação do jovem romano nem na formação universitária medie-
val; não pertencem ao campo do saber, pertencem ao campo da
experiência, de uma experiência submetida a regras, preceitos e
procedimentos. São artes mecânicas a medicina, a pintura, a escul-
tura, a construção, a serralheria, a carpintaria, a olaria, a agricultu-
ra, a tecelagem, ou seja, tudo o que envolvia o uso do corpo. Os
artesãos são aqueles trabalham com as mãos e os pés, são os servos
da Idade Média (isso só muda quando surgem os burgos e, no seu
interior, os artesão livres). São artes servis, inferiores, que nenhum
homem livre deve fazer. Tudo o que nós dissemos a respeito da
técnica na sua relação com a natureza refere-se às artes liberais, só
muito parcialmente refere-se às artes mecânicas.
Os técnicos são chamados, a partir do termo grego mecha-
né, de mecânicos ou homens hábeis, e estão inicialmente na servi-
26
dão (e, posteriormente, nas corporações de ofícios no interior dos
burgos, que são altamente hierarquizadas, e onde os procedimentos
são segredos a serem transmitidos exclusivamente aos seus mem-
bros. Quero fazer aqui uma observação sobre essa hierarquia das
artes mecânicas: por que até ela hierarquizadas? Porque a socieda-
de medieval tb é totalmente hierarquizada. Na fase inicial de con-
versão ao cristianismo pelo Império Romano, uma obra neoplatô-
nica importantíssima é produzida por Dionísio de Aropagita, “A
Hierarquia Celeste”. É ele quem introduz a ideia de um mundo
divino hierarquizado – pela influência neoplatônica de mundo
hierarquizado. A partir da noção neoplatônica de universo como
uma hierarquia de emanações (então, tem-se o impronunciável, do
qual emana o intelecto, do qual emana a inteligência, da qual ema-
na o ser, do qual emana a forma, da qual emana a matéria, da qual
emana os corpos, dos quais emanam as trevas, isto é, o universo
está hierarquizado em termos neoplatônicos da luz pura às trevas).
Cada um desses momento é um grau de perfeição, de realidade.
Essa noção é aplicada pela Dionísio ao mundo celeste. Depois, os
teólogos e juristas medievais vão aplicar isso à sua sociedade me-
dieval. Os teólogos colocam no topo Deus que, por um eflúvio dá
como graça o poder aos homens (que perderam todo e qualquer
poder depois do pecado de Adão). Se há homens com poder é por
graça divina. Para enviar a sua graça, Deus tem um mediador, que
não precisou receber graça nenhuma, foi diretamente escolhido
para ter essa função: o papa). O papa recebe de Deus o direito de
distribuir o favor divino (para o rei, os barões, com toda a hierar-
quia dentro do baronato, os homens livres, que são os artesãos dos
burgos e os servos. Esta hierarquia não se move, ninguém passa de
um nível para o outro. É inconcebível mover-se do lugar estabele-
cido por Deus. Essa concepção de hierarquia cósmica, que é neo-
platônica, hierarquia celeste e hierarquia terrestre, irá impor uma
hierarquia das artes, com as liberais superiores às mecânicas, que tb
serão hierarquizadas. É importante lembrar essa hierarquia socio-
política, que só será destruída pela Reforma Protestante, pelo se-
guinte: como é o papa quem dá ao rei a condição de rei, alguém só
se torna rei no momento em que há uma sagração feita pelo papa e
a coroação feita por ele. Durante 15 séculos, é o papa quem faz
surgir o imperador, graças à sagração: os barões escolhem entre os
seus pares um para ser sagrado rei e coroado imperador. A sagra-
ção consiste em ungir o óleo com que Davi e Salomão foram sa-
grados reis. Só poderá ser rei aquele ungido pelo papa. Feito isso,
ocorre a coroação pela qual o ungido torna-se imperador. Na ceri-
mônia da coroação, o papa tem o direito de coroar o rei porque
Constantino fez uma doação (famosa) no momento em que se
converteu ao Cristianismo: entregou a coroa, o cetro, o anel e o
manto. Graças a essa doação, o papa é o detentor dos sinais do
Império. O papa põe a coroa, dá o cetro, põe o anel e cobre com o
manto. (Nós vamos ver que, quando Lorenzo Valla escreve seus
estudos filológicos, ele demonstrará que a doação de Constantino
foi forjada, é uma falsificação, porque as palavras latinas emprega-
das não são aquelas empregadas no Império, são um latim medie-
val popular. Exemplo: a palavra para designar coroa é tiara, que é
uma fita que os escravos usavam para segurar o cabelo e trabalhar.
Então, na língua popular, as pessoas diziam tiara. O teólogo que
falsificou os textos usou este termo. A doação é forjada da primeira
à última linha e isso só será demonstrado na Renascença, graças
aos estudos de filologia. A Renascença vai demolir a Idade Média,
pedra por pedra, em cada um dos seus aspectos, graças a mil e uma
atividades técnicas, uma das quais a filologia).
Nos seus escritos, os mecânicos mostram que foram capa-
zes de inventos formidáveis: o moinho de vento, de água, a primei-
ra bússola, a ferradura, o estribo, o relógio, novos procedimentos
para a construção de canais, novos procedimentos de metalurgia
para a fabricação de armas e as catedrais. No entanto, esses escri-
tos, por meio dos quais soube-se como cada um dos inventos foi
pensado, são receitas empíricas, manuais de fabricação destinados
a resolver os problemas que um técnico encontrasse no momento
do seu trabalho, ou seja, não há uma teoria mecânica, não há qual-
quer colaboração entre os mecânicos e os teóricos. No caso da
Idade Média, diferentemente do que ocorreu na Grécia, não há
relação entre os mecânicos e o geômetra, o arquiteto, o astrônomo,
ou o físico, como na Grécia. Essa distância entre as artes liberais e
mecânicas foi tematizada por inúmeros autores medievais e siste-
matizada sobretudo por Tomás de Aquino, que hierarquizou os
conhecimento e as práticas segundo a importância dos seus fins e a
autonomia para se alcançar esses fins: o fim mais nobre é o espiri-
tual (quando se tem o espiritual pelo espiritual, tem-se a arte mais
nobre, a Teologia) e o mais vil é o prático. Portanto, as artes mecâ-
nicas são chamadas artes vis, feitas pelos vilões nas vilas. No topo
da hierarquia encontra-se o saber cuja finalidade é ele mesmo, e
não depende de outros para se realizar, é o mais autônomo, que é a
Teologia. Por esse critério, todos os demais serão hierarquizados:
no ponto mais baixo, encontra-se a experiência dos artífices, que é
corporal, dependente, não apenas da matéria com a qual se vai
trabalhar, mas também do usuário. Não há autonomia alguma,
como o que ocorre com o corpo, que é uma atividade dependente e
não autônoma, a mais baixa e vil de todas. Uma das tarefas da
Renascença será quebrar essa hierarquia, acabar com a divisão
entre as artes liberais e as artes mecânicas, transformar todas as
artes em liberais (o que será tratado pelo tema que eu espero poder
tratar hoje: “dignidade das artes” – dignitas em latim quer dizer
algo objetivo) . Quando falei sobre a técnica na Grécia, eu apresen-
tei 2 textos, um do Heidegger e outro do Vernant. Hoje eu vou
abordar também 2 textos, um do Panofsky (renascimento das artes)
e outro do Colombero (renascimento filosófico). Vou ler e fazer
comentários.
Começarei pelo texto (trechos) de Panofsky, que se chama
Renascimento e Renascimentos na Arte Ocidental, fazendo alguns
comentários (Panofsky utiliza o termo no plural porque examina 2
renascimentos que ocorrem durante a Idade Média, um com Carlos
Magno e o outro no século XII).
“Como todos sabem, e foi reconhecido pelos próprios con-
temporâneos, a ideia de uma revivescência sobre a influência dos
modelos clássicos foi concebida e formulada por Petrarca, impres-
sionado mais do que as palavras podem exprimir, pelas ruínas de
Roma e com uma grande consciência do contraste entre um passa-
do de grandeza que se espelhava no que restava da sua arte e litera-
tura e na memória viva de suas instituições e um presente deplorá-
vel, que enchia Petrarca de dor e indignação e despreza, ele elabo-
rou uma nova versão da história. Aquilo que os pensadores cris-
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tãos, antes dele, tinham concebido como uma evolução contínua,
começando com a criação do mundo e chegando até a própria
época do escritor, viu ele como claramente dividido em 2 períodos,
o clássico e o recente, compreendendo o primeiro as historiae
antiquae e os últimos, as historiae novae. E a concepção que seus
antecessores tinham dessa evolução contínua como um constante
progresso das trevas pagãs para a luz, que era Cristo, quer o nasci-
mento deste fosse referido à última das 4 monarquias de Daniel,
quer à última das 6 idades correspondentes aos 6 dias da criação,
quer à última das 3 eras, tal interpretação foi contrariada pela inter-
pretação de Petrarca, que viu no período em que o nome de Cristo
começou a ser celebrado em Roma e ser adorado pelos Imperado-
res Romanos, o princípio da idade das trevas, de decadência e do
obscurantismo, enquanto que o período anterior, que para ele era
simplesmente o período da Roma real, republicana e imperial,
havia uma idade de luz e de glória.”
Antes de prosseguir, há duas observações que são muito
importantes neste texto. A primeira é a seguinte: a caracterização
desse período como um período de trevas será feita por Petrarca em
‘300’ (conjunto de 300 sonetos), que começa no instante em que
os imperadores romanos convertem-se ao Cristianismo. Portanto, a
idade das trevas começa em um momento muito preciso, o Império
Romano do Oriente, com Bizâncio, em Constantinopla. O contra-
ponto a isso é a perfeição da Roma Republicana Imperial, da qual
só restam agora as memórias, os monumentos destruídos e os
fragmentos que foram recuperados da literatura e da filosofia. É
isso que Petrarca vai glorificar. A segunda observação, que eu irei
retomar quando for analisar a palavra renascimento, é a observação
do Panofsky de que Petrarca introduz uma nova concepção de
história quando a divide em 2 grandes períodos, história antiga e
nova, havendo entre uma e outra algo no meio, a idade do meio, a
Idade Média. O importante é o seguinte: que mudança foi empre-
endida por Petrarca? Panofsky vai referir-se a uma mudança com
relação à elaboração cristã (e eu irei completar essa observação
com o modo como ele recupera a concepção grego-romana do
tempo, mas isso ficará para mais adiante). O que diz Panofsky?
Como a Idade Média e o Cristianismo concebem a história? Nós
sabemos que, tanto para os gregos quanto para os romanos, a histó-
ria é sempre algo que se refere ao particular (isso foi referido inclu-
sive por Aristóteles), a um acontecimento determinado a respeito
do qual se tem a memória, e o bom historiador ou é aquele que foi
testemunha ocular do acontecimento, ou entrevistou testemunhas
oculares. Assim, não pode haver uma distância temporal muito
grande entre o historiador e o seu relato, é preciso que ele tenha
visto ou conheça testemunhas que viram o acontecido. Esse acon-
tecimento é singular e, em geral, uma guerra (a guerra de Troia, a
guerra entre gregos e persas, entre Esparta e Atenas, as guerras de
Roma contra Cartago, ou seja, o objeto da história, esse objeto
singular narrado, é uma guerra, porque o que se narra é um aconte-
cimento que modificou inteiramente as condições anteriores e
produziu condições novas – é por isso que a guerra é o centro da
narrativa. Isso não está relacionado, portanto, à ideia de que há um
tempo que corre, à ideia de que um acontecimento causa um outro,
que causa um outro, ou seja, de que há uma relação causal para
produzir aquele acontecimento que, uma vez terminado, leva con-
sigo a cadeia causal. Para nós é difícil entender isso porque somos
herdeiros da concepção judaico-cristã da história, que será rapida-
mente mencionada por Panofsky e que eu irei apresentar com um
pouco mais de detalhes.
Ao lado desse tempo fragmentado, singularizado de que a
história trata, existe o tempo, o verdadeiro tempo, o tempo circular,
o tempo do retorno (do dia para a noite, as 4 estações do ano, que
se repetem, o movimento da lua, do sol, dos planetas, enfim, tudo
que se realiza sob a forma do retorno contínuo é o tempo, cuja
forma é o círculo, sem começo nem fim). Para nós é difícil pensar
um tempo sem começo nem fim, porque estamos acostumados com
a ideia de que tempo é aquilo que sem um término. O contraponto
a essa concepção circular do tempo é a concepção judaico-cristã
(a formulação cristã está na dependência do que está no Antigo
Testamento). A primeira formulação tem como pressuposto a ideia
de que o tempo é o modo de relação de Deus com o homem ou do
homem com Deus. Por isso, o tempo está escandido em 6 eras, que
constituem a semana cósmica, e que exprimem a relação de Deus
com o homem: a criação, a queda, o dilúvio, os patriarcas, Jesus e o
juízo final. A ideia é de um tempo linear, e não circular, dotado de
finalidade. A finalidade é a redenção, após a queda, e o juízo final,
quando tudo acaba. A outra versão, tb mencionada por Panofsky, é
aquela do livro de Daniel - os 4 impérios ou monarquias - cuja
concepção continuará em todas as versões proféticas milenaristas
messiânicas do Cristianismo medieval. Daniel interpreta um sonho
do rei no qual ele viu um enorme gigante com cabeça e outro,
tronco de bronze, braços de prata, pernas de ferro e pés de barro. O
rei viu uma pedra (a pedra gloriosa) ser lançada. Essa
pedra atinge os pés de barro do colosso, que desmorona. A inter-
pretação de Daniel é a seguinte: trata-se de 4 impérios ou monar-
quias do seu tempo. Daniel diz que a pedra gloriosa é o quinto
império, a quinta monarquia, aquela que virá para ser eterna. Os
judeus dizem que a pedra gloriosa é Israel e os cristãos dizem que é
Jesus Cristo. Há, então, uma periodização da história segundo 4
grandes formas despóticas de poder, até a chegada de um quinto
poder, que será bom e perfeito, e durará mil anos. Segundo alguns
intérpretes, após esses mil anos, Jesus descerá do céu para a grande
batalha do Armagedon contra o anticristo; finda a batalha, vem o
juízo final. Há uma periodização da história segundo a mudança da
forma de poder: passa-se da tirania à liberdade, que produz mil
anos de felicidade ao final dos quais encontra-se a a felicidade.
Há também uma outra periodização mencionada por Pa-
nofsky, que é feita por Paulo, depois por Agostinho e retrabalhada
por Joaquim de Fiori. Que elaboração é essa? Trata-se de uma
elaboração jurídica envolvendo 3 eras: a era antes da lei, de toda a
humanidade até Moisés, a era sob a lei, que vai de Moisés até o
nascimento de Cristo, e a terceira era, sob a graça, a era cristã.
Joaquim de Fiori irá propor uma outra periodização para essas 3
eras: a primeira era, ou era anterior à lei, ou era dos patriarcas e dos
homens casados, a segunda era, a era sob a lei, ou era do mundo
politicamente organizado, sobretudo a partir de Moisés, e a terceira
era, ou era sob a graça, ou era da ciência e do saber. Para isso,
Joaquim de Fiori irá recorrer a 2 textos, um de Daniel e outro de
Isaías, que dizem mais ou menos a mesma coisa: os homens esqua-
28
drinharão toda a Terra e conhecerão todos os segredos que estão
escritos no livro do mundo. Então, Jesus Cristo virá pela segunda
vez e o mundo acabará. O que significa, então, esquadrinhar a
Terra e conhecer os segredos do mundo? Os grandes navegadores
estavam convencidos de que estavam esquadrinhando os segredos
do livro do mundo e que, ao chegarem ao novo mundo, Cristo
voltaria. Os navegantes estavam convencidos de terem chegado ao
paraíso. E é essa concepção de tempo que Petrarca nega, afasta
na Renascença (mas que não chegou a desaparecer completamente,
porque nós veremos mais adiante que ela reaparecerá com Fran-
cis Bacon no final da Renascença e início de era Moderna cuja
ideia é a de que chegamos à terceira era, a era do saber ou da ciên-
cia. Ele está convencido disto).
Petrarca, então, irá fazer uma concepção da história como
um movimento temporal linear, dotado de finalidade e com um
término, não para recuperar a concepção greco-romana da história
(outros irão recuperá-la), mas para partir o tempo e em 2 histórias,
a antiga ou luminosa, e a nova, que vai regressar a essa luminosi-
dade, e entre uma e outra, a treva.
Eu prossigo no texto do Panofsky: “A consciência cristã de
Petrarca não poderia deixar de se dar conta, pelo menos em certos
momentos, de que uma tal concepção da antiguidade clássica,
como uma idade de puro esplendor, e da era que começou com a
convenção de Constantino como uma idade de obscura ignorância,
equivalia a uma total subversão dos valores estabelecidos. Ele
estava, porém, tão profundamente convencido do fato de que a
história nada mais era do que o louvor de Roma, que não podia
abandonar o seu ponto de vista. E, ao transferir para o terreno da
cultura intelectual precisamente os mesmos termos que os teólogos,
os padres da Igreja e a própria Sagrada Escritura tinham aplicado
ao estado da alma lux et sol por oposição a nox et tenebrae, desper-
tar por oposição a torpor, visão por oposição a cegueira, ao afirmar
que os romanos pagãos é que tinham caminhado na luz e os cris-
tãos nas trevas, Petrarca revolucionou a interpretação da história
não menos radicalmente do que Copérnico 200 anos mais tarde
haveria de revolucionar a interpretação do Universo. Petrarca
olhava para a cultura em geral, e a clássica em particular, com os
olhos do patriota, do erudito e do poeta. As próprias ruínas de
Roma não provocavam nele o que nós chamaríamos de uma reação
“estética”. Não obstante a sua admiração pessoal pelos grandes
pintores do seu tempo, pode-se afirmar, sem grande de injustiça,
que a sua concepção da nova era pela qual ele ansiava, era larga-
mente em termos de regeneração política e, sobretudo, uma purifi-
cação da gramática e da dicção latinas, uma ressurgência do grego,
um regresso dos compiladores e comentadores e autores medievais
aos antigos textos clássicos.Uma tal definição restrita do Renasci-
mento não foi, contudo, a que prevaleceu entre os herdeiros e
sucessores de Petrarca. Por volta de 1500, o conceito da grande
revivescência tinha já incluído praticamente todos os ramos da
cultura, e esse alargamento principiara sob os olhos do próprio
Petrarca com a inclusão das artes visuais, a começar pela pintura. A
ideia condensava na expressão de Horácio, na pintura como na
poesia, na poesia como na pintura, de que existe uma analogia e
até uma afinidade natural entre a poesia e a pintura, é muito antiga
e mantivera-se presente na opinião pública graças a um debate
sempre recorrente sobre a admissibilidade ou não admissibilidade
das imagens sagradas. No princípio dos 300, essa foi a ideia con-
cretizada e, por assim, dizer, ela ganhou um significado temático
nos famosos versos de Dante sobre a transitoriedade da glória
humana. Tudo qt dissemos leva à conclusão de que a velha pergun-
ta “quando os homens do Renascimento se vangloriavam da revi-
vescência ou do renascimento da arte e da pintura queriam falar de
uma ressurreição espontânea da pintura como tal, comparável ao
despertar da natureza na primavera, ou de uma revitalização cons-
ciente da pintura clássica?” Impossível responder sem algumas
distinções históricas e sistemáticas. Poderíamos dizer que, para
Petrarca, uma tal alternativa não teria sentido, apenas surgindo
quando, com Boccaccio, a revivescência da literatura começou a
ser acompanhada pela da pintura e a da escultura, vindo a tornar-se
mais acentuada quando, nos princípios do século XV, se tornou
visível na arquitetura uma grande influência clássica e na pintura
um naturalismo não menor. Cedo, porém, haveria essa separação
entre as várias esferas da atividade cultural e, consequentemente,
entre 2 princípios, o regresso à natureza e o regresso aos clássicos.
Essa separação começaria a diminuir com o conceito de proporção,
que iria unir as artes figurativas à arquitetura, a arquitetura à músi-
ca, e os conceitos de invenção, composição e iluminação uniram as
artes figurativas à literatura. Existiam, assim, as condições para
uma reconciliação geral, mesmo que temporária, entre uma inter-
pretação da história, que via a destruição dos bárbaros e a supres-
são eclesiástica dos valores clássicos como uma calamidade a ser
tratada com um único remédio, e uma teoria das artes, que não iria
conhecer oposição até o final da Renascença, que solucionava a
dicotomia regresso à natureza / regresso à antiguidade clássica,
pela tese de que a própria arte clássica, ao manifestar o que a natu-
ra naturans tinha pretendido, mas que a natura naturapa não tinha
conseguido realizar, representava a forma mais elevada e verdadei-
ra do naturalismo. Dürer, escrevendo em 1523, atribuía honesta-
mente aos italianos, pelo menos a partir da maturidade de Giotto e
do nascimento de Brunelleschi, a aplicação do termo arte ao exer-
cício da pintura, à teoria das proporções humanas, e em nenhum
caso deixa a menor dúvida de que o que tinha sido trazido à luz,
depois de estar perdido durante 1000 anos, fora dominado e tido
com honra pelos gregos e romanos e perecera com a queda de
Roma. O que significa para Dürer, no século XVI, e para Petrarca
nos 300, no século XIV, que a distinção entre revivescência da arte
e revivescência da arte clássica não era mais uma alternativa, e o
mesmo se aplica ao novo nível da consciência histórica, como
aparece no grande historiador do Renascimento, que foi Giorgio
Vasari.”
Agora Panofsky vai falar um pouco sobre Vasari que, no
século XVI, vai fazer uma história daquilo que ele vai batizar de
Rénascita. A palavra Renascimento só aparece no século XIX, na
França. Ninguém, nos séculos XIV, XV, XVI, XVII e XVIII, usava
a palavra renascimento.
“Vasari foi o primeiro a afirmar explicitamente que as 3 be-
las artes (a pintura, a escultura e a arquitetura) são filhas do mesmo
pai, o desenho. O primeiro a tratar delas no mesmo, enquanto que
os seus predecessores haviam feito isso em livros separados. O
primeiro a apresentar os ultrajes dos bárbaros e o arrebatado zelo
29
da nova religião cristã como causas conjuntas de uma única e
mesma catástrofe que ele viu, que o renascimento da arte era um
fenômeno total que ele designou com uma palavra coletiva
La Rénascita. Com a vantagem de se situar em 1550, Vasa-
ri encara o progresso dessa Rénascita como uma evolução que se
desenrola em 3 fases ou idades, correspondentes a outros tantos
estágios da vida humana e começando, grosso modo, com o início
de um novo século. A primeira fase, comparável à infância, é
introduzida por Cimabue e Giotto na pintura, por Arnolfo de Cam-
bio, na arquitetura, e por Bizannes, na escultura. A segunda fase,
comparável à adolescência, recebeu a sua marca de Masaccio,
Brunelleschi e Donatello, a terceira fase, comparável à maturidade,
começou com Leonardo da Vinci e culminou no modelo de uomo
imortalle de Michelangelo. Vasari dividiu a sua obra em 3 partes e,
quer no prefácio geral a essa tríade, quer no prefácio de cada uma
das partes, procurou definir os estágios da totalidade da Rénascita.
Para concluir, a distância criada pelo renascimento privou a anti-
guidade do seu caráter real.”
O que Panofsky está dizendo é o seguinte: o tempo todo
durante a Idade Média, os medievais se referiram ao mundo clássi-
co, aos gregos e romanos, cuja referência é feita continuamente. O
que acontece é que para eles, os antigos estão à mão para serem
usados em seu próprio trabalho. O que o Renascimento faz não é
isso: ele olha a Antiguidade Clássica como algo distante e diferente
do nosso presente e, que por isso, precisa renascer, surgir de novo.
Para os renascentistas, a antiguidade não estava lá disponível, mas
havia memórias a serem traduzidas de volta, mas com uma distân-
cia entre o presente e o passado clássico. O mundo clássico deixa
de ser uma posse, como para os escolásticos, e uma ameaça,
que foi o modo como ele passou a ser visto quando nas mãos
dos renascentistas, para ser tornar o objeto de uma apaixonada
nostalgia, que encontrou a sua expressão simbólica na reemergên-
cia, depois de 15 séculos, dessa visão de encanto, a arcádia. O
renascimento veio a compreender que Pan tinha morrido, que o
mundo da antiga Grécia e da antiga Roma estava perdido, e só no
espírito poderia voltar a ser alcançado. Pela primeira vez, o passado
clássico era olhado como uma totalidade separada do presente e,
consequentemente, como um ideal a que se aspira, em vez de uma
realidade simultaneamente utilizada e temida.
Cada autor que escreveu sobre o Renascimento entre os
anos 20 e 70 discutiu o sentido do termo Renascimento e até mes-
mo a sua própria existência. Todos fazem isso apresentando cente-
nas de interpretações existentes. Podemos dizer que havia 4 gran-
des interpretações. A primeira, a histori-ciência evolucionista, ou
seja, uma concepção positivista, progressista, historicista e evoluti-
va sobre o processo, sendo a Renascença um período como tantos
outros que compõem a História. Um outra interpretação, trata a
Renascença como um período sem identidade, confuso, que não
quer mais o que havia na Idade Média, mas ainda não elaborou o
que vai ser a Idade Moderna, está entre um e outro, é um momento
confuso onde o novo é justificado pelo antigo e o antigo pelo novo,
e assim por diante. Há muitos autores que vão nesta direção - o
Renascimento como a idade da ausência de identidade. Portanto,
um entre situado entre dois. A terceira interpretação é
a reação católica, poderosíssima sobretudo no século XIX, que diz
“não houve Renascimento”, ou melhor, houve 2 grandes renasci-
mentos, um com Carlos Magno, ou renascimento carolíngio, e a
criação das universidades, e o renascimento do século 12, com as
universidades de Paris, Bologna e Pádua, e Tomás de Aquino. Uma
quarta posição aparece em Panofsky, Colombero, Garin, Foucault,
na famosa escola de Warburg, e que atribui muito identidade muito
precisa ao renascimento. Eu vou tratar da posição do Foucault
quando eu for examinar a questão da magia natural, porque ele
generalizou para a renascença inteira um único aspecto dela, e
aquele que aparece no neoplatonismo e na magia natural, que é a
ideia da semelhança – trata-se do grande capítulo de Les mots e les
choses (um capítulo sobre a similitude). Foucault ainda estava
muito marcado por Heidegger - a Idade Moderna é a idade da
representação e o renascimento é a idade da semelhança; é uma
analogia (eu vou voltar ao F. mais adiante)
A escola de Warburg, Panofsky (ligado a ela) e os outros
italianos que eu mencionei vão afirmar a identidade do renascimen-
to. No caso de Panofsky, que está tratando das chamadas belas
artes, o núcleo identidade da Rénascita é a ideia de dois regressos:
um regresso à antiguidade clássica (em Petrarca, por exemplo, um
retorno à literatura e à filologia) e um retorno à natureza (isto é, em
vez da vida asséptica, monacal da idade média, o que se propõe é a
comunhão do homem com a natureza. Os 2 pontos altos
dessa concepção serão, sobretudo, Leonardo e Miguelangelo – com
eles, a natureza entrará na arte, não como um naturalismo, mas
como uma maneira pela qual o artista será capaz de imitar a natu-
reza. Voltarei a isso mais adiante.
A periodização do Panofsky está ligada a esta ideia. Ele diz
que, no início, em Petrarca (nos 300), há um regresso à Antigui-
dade. Depois, no século XV, a ideia é de retorno à natureza.
Embora haja duas periodizações, uma de regresso à antiguidade
clássica e uma de retorno à natureza, nos três períodos os 2 regres-
sos acontecem em doses diferentes. Quando passamos a Colombe-
ro, o critério será a relação do homem com a natureza e a ideia
de dignidade do homem. O que vai dar identidade ao renascimen-
to é a noção de dignidade do homem, a qual irá determinar uma
discussão sobre a dignidade das artes (disputa que percorreu todo
o renascimento até culminar com o abandono da separação das
artes liberais e mecânicas, que é o que nos interessa na nossa
discussão). Que caminho será feito para que essa separação desapa-
reça? Para que a hierarquia entre as artes desapareça?
No Colombero, então, a identidade do renascimento será
dada pela relação do homem com a natureza e a ideia de digni-
dade do homem. O que Colombero fez e que Panofsky não fez foi
situar a sociedade que tornou possível esse acontecimento.
Do mesmo modo que tivemos Heidegger e Vernant, agora temos
um historiador descrevendo que sociedade permitiu isso.
No final do trettento e início do quatrottento, sobretudo na
Itália, desenvolve-se um novo ideal de cultura. Na origem disso,
está uma ligação polêmica com uma discussão e um abandono do
pensamento medieval, que não ignorou, mas desnaturou o patrimô-
nio do mundo clássico. Esta nova cultura, chamada de humanísti-
ca, não pode ser caracterizada apenas com base na sua oposição à
30
época precedente. Não se desenvolve em função de uma relação de
antítese ou analogia, mas, ao contrário, de certas exigências da sua
própria época e seu desenvolvimento e legado. A cultura humanís-
tica é própria de uma nova classe de intelectuais, classe esta que é
expressão de um novo tipo de sociedade. Trata-se de uma socie-
dade de caráter urbano e mercantil, a qual exprime uma categoria
de intelectuais e na qual se desenvolvem os ideais humanos e de
vida próprios do primeiro humanismo. Trata-se de uma nova classe
de dirigentes a qual corresponde uma nova classe intelectual, e que
exprime as aspirações culturais próprias dessa nova realidade
social. Encontramos, assim, uma espécie de aristocracia burguesa
ativa, dinâmica, com gosto pela participação na vida econômica e
política do mundo comunal. Surge o mito de Florença como a nova
Atenas. Lá floresce o ideal de vida ativa contraposta à vida con-
templativa. Assim, a primeira característica que o Colombero vê
não envolve apenas a questão da regressão aos clássicos, mas
envolve a política como a principal característica do primeiro
humanismo. Quando as cidades, particularmente Florença, perde-
rem a sua dimensão republicana e tornarem-se senhorias ou duca-
dos, a participação política deixará de ser possível. Ocorrerá uma
mudança de pensamento, da vida ativa (política) para a magia
natural. Essa nova sociedade colocará um intelectual que terá na
política a sua expressão mais importante. Quando a república não
existir mais, a atividade será concebida como atividade técnica (a
magia é vista como uma técnica; passa-se da política para a técni-
ca).
Os temas originários do pensamento humanístico renascen-
tista, particularmente, a valorização do indivíduo e a glorificação
do ser humano, nascem disso: de um ideal de atividade constru-
tiva, de participação e empenho político e social. O humanismo
nasce como um humanismo civil. A aspiração a uma Rénascita que
acompanha isto é a aspiração da Rénascita da cidade-estado do
mundo clássico na qual são realizados esses valores. A Rénascita
literária é uma consequência da Rénascita política. O ideal de
empenho e participação, de dedicação à vida civil, entretanto,
concerne a uma aristocracia burguesa. A nova cultura é patrimônio
de uma elite. Esse fato, por um lado, articula a cultura humanístico-
renascentista à cultura medieval, mas por outro, diferencia ambas:
tanto numa quanto na outra, a cultura que exprime o espírito do
tempo é elaborada por uma categoria restrita de intelectuais: na IM
eram os intelectuais eclesiásticos, agora, os intelectuais laicos. A
cultura destinada a impor-se é laica, mas não irreligiosa. O intelec-
tual do primeiro período humanístico, o trettento, não é eclesiásti-
co, mas provém de uma tradição de estudos jurídicos, que nunca
perdeu sua vitalidade na Itália. Devia ser, portanto, de tipo jurídico
a formação de um intelectual todo voltado para a teorização dos
aspectos civis, políticos da atividade humana. É isso que vai deter-
minar o caráter da nova cultura e que explica os motivos da cha-
mada disputa sobre as artes, a polêmica contra a medicina como
ciência da natureza. Na origem deste debate está a intenção de
abandonar uma certa tradição de estudos e endereçar as forças do
espírito humano para o âmbito civil e político. A primeira disputa
será entre a medicina e o direito, entre uma e outra arte para provar
qual delas é superior a outra (ainda uma mentalidade hierárquica,
que dura até o século XVI, quando todas serão igualmente dignas).
Um outro aspecto antitradicional da cultura humanística
consiste no fato de que ela não se desenvolve nas universidades. O
novo intelectual não é um professor, mas um douto que conversa
em círculos, em academias, mais ou menos organizadas. Esse
discurso reclama aquele da sua relação com a aristocracia econô-
mica dominante e a categoria depositária da nova cultura e é esse
trato que se recolhe em torno das grandes famílias burguesas como,
por exemplo, os Médici e os Bórgia. Nascem, assim, os círculos
humanísticos; o espírito de mecenato que vai caracterizar o campo
artístico tem sua origem nas grandes famílias burguesas, O primei-
ro humanismo parece sair direto dos próprios interesses do mundo
e da natureza. O ideal da vida civil é uma maneira de exprimir a
dignitas hominis, cuja realização é colocada inicialmente no exclu-
sivamente âmbito humano da vida associada, prescindindo de
qualquer teorização sobre uma possível condição de privilégio do
homem no confronto com a natureza. A política e vida social são
vistas como um desembocadouro mais imediato da atividade hu-
mana. Mas, em breve esse desembocadouro será fechado. Agora,
para o pensamento serão projetadas outras direções de desenvolvi-
mento, será proposto um outro âmbito, aquele da natureza ou do
mundo natural na sua totalidade, no qual se pede a atuação de uma
dignidade e glória humanas as quais já não encontram mais espaço
no mundo do homem construído (no mundo civil não haverá
mais espaço para afirmar a dignidade do homem). Vai ser
preciso encontrar um outro âmbito para a dignidade do homem,
esse novo âmbito vai ser a natureza. O aspecto político da dignitas
hominis é substituído por um aspecto mítico, consequência das
mudanças político-sociais. A aristocracia burguesa decai, o espírito
de ativismo que lhe era próprio acaba. Assim, já não tem mais
sentido uma classe de intelectuais de formação político-jurídica,
teóricos do retorno às cidades-estados. Torna-se um absurdo procu-
rar a dignidade do homem na vida política. Desenvolve-se o con-
ceito de ser inteiro da natureza e de microcosmo. O aspec-
to mítico da dignitas hominis será afirmar que o homem é um
microcosmo. Trata-se de conferir ao homem um novo prestígio,
colocando-o no vértice de uma ordem que lhe é favorável, ainda
que, em certo sentido, essa realidade o envelheça. Isso não signifi-
ca refugiar-se em um mito , mas a fuga contribui para individuar o
problema da relação homem-natureza. Essa relação determina-se
de um modo que será típico da cultura do renascimento, a magia
natural”
Para Colombero, então, o núcleo de identidade do renasci-
mento é a ideia da dignitas hominis e do seu deslocamento. No
primeiro humanismo, a dignitas hominis é dada pela política, no
segundo, pela relação desse homem com a natureza.
Aula 05 (10-09-2012)
Eu havia feito uma dupla apresentação da Renascença, uma
feita pelo Panofsky no campo das artes, e outra feita pelo Colombe-
ro no campo da política, das artes e da filosofia. Panofsky conside-
ra que o núcleo da Renascença na sua ruptura com a Idade Média é
a afirmação de um duplo regresso. o gresso à antiguidade clássica e
o regresso à natureza. Colombero, tb na ruptura com a Idade Mé-
dia, vê como núcleo da Renascença a nova relação do homem com
31
a natureza e a afirmação da dignidade do homem. Essas duas ma-
neiras de se estabelecer um núcleo para a Renascença não são
excludentes nem incompatíveis, são complementares. Eu havia
proposto recomeçar tomando como ponto de partida o fato de os
protagonistas da Renascença não terem usado, pelo menos no
início, essa palavra para designar a sua posição na filosofia, na
ciência e nas artes. Ela só foi empregada no final por Vasari que ele
usou o termo Rénascita. O que os protagonistas diziam em latim
era Renovatio e Restitutio. O sentido da Renovatio e o sentido da
Restitutio vai ser sintetizado por aquele que é o último dos renas-
centistas e o primeiro dos modernos, Francis Bacon, quando ele
utilizará o termo (uma síntese) Instauratio. Instauratio reúne os
dois sentidos, o do novo e o da recuperação do antigo, e restitutio,
com a expressão restitutio in integro (restituição integral), será o
termo usado pelos reformadores Lutero e Calvino para indicar a
restituição integral do Cristianismo à sua pureza, tal como no iní-
cio. Essa expressão retoma algo que está em curso no campo da
religião durante a Renascença, e cuja expressão mais alta é Erasmo,
que é a ideia de devotio moderna, um esforço para reformar a
Igreja Romana cuja corrupção e autodestruição chegaram a um
ponto tal que os próprios católicos decidiram que algo precisava ser
feito. Antes da Reforma, há uma tentativa interna de reforma,
tipicamente renascentista. Erasmo irá retraduzir o Novo Testamen-
to, originalmente em grego. Tudo isso forma o quadro da maneira
pela qual os protagonistas da Renascença e da Reforma referem-se
a si próprios. É possível perceber que todos esses vocábulos estão
articulados a uma ideia de tempo, que vai implicar em uma certa
tomada de posição dos renascentistas com relação à dupla concep-
ção do tempo, a clássica ou greco-romana, e a judaico-cristã. A
concepção greco-romana do tempo é circular; o tempo, a partir da
experiência que os seres humanos têm dos fenômenos da natureza
(estações de ano, a vida e a morte dos seres vivos), é um retorno. O
tempo é um eterno retorno, é circular, não tem começo nem fim.
Há uma figura que exprime essa noção de tempo eterno, que é a
figura mitológica das fênix, que vive 10 mil anos e morre e das
suas cinzas nasce uma nova fênix. Essas duas imagens, o círculo e
a fênix exprimem a visão greco-latina do tempo. Isso não exclui o
tempo linear, aquela da sucessão, que é um tempo na superfície do
tempo. Os acontecimentos são sucessões na superfície do tempo
circular. O contraponto a essa concepção é a concepção judaico-
cristã do tempo, que é linear, teleológico, ou seja, dotado de finali-
dade. O tempo judaico-cristão exprime a relação de Deus com o
homem e, por isso, há 3 grandes formulações acerca da temporali-
dade cristã: uma, conhecida como semana cósmica, toma os princi-
pais momento da relação de Deus com o homem como a escanção
que estrutura o tempo: a criação, a queda, o dilúvio, os patriarcas e
a lei, o nascimento e a morte de Jesus Cristo e o juízo final. Há
uma sétima era, fora do tempo, que é o jubileu, quando Deus que
salvará e condenará os homens. O tempo vai da criação até a re-
denção. A outra figura desse tempo sucessivo e dotado de finalida-
de está representado por 3 eras, a era antes da lei, a era depois da
lei ou era da graça, e a era da sabedoria. Agora, o que escande o
tempo é a imagem cristã da trindade. Os protagonistas da Renas-
cença vão operar com essas 2 concepções de tempo, fênix e finali-
zado, o tempo da promessa. Essa operação é feita a partir de uma
elaboração encontrada no grande poema de Ovídio ‘As Metamor-
foses’, no qual ele narra as idades do mundo: a era de ouro perdida
(o paraíso), a era do bronze e a era do ferro (as eras são uma deca-
dência). Qual é a elaboração de Ovídio ao descrever as eras? Defi-
nir duplamente o tempo: existe a imagem do tempo edax (o tempo
devorador) e do tempo da verdade (veritas filia tempus ou a ‘ver-
dade é filha do tempo’, que destroi, mas renova e restaura). O
tempo que consome e destroi, inventa e progride, retorna e restau-
ra. Isso significa que o novo é a realização das promessas do anti-
go. É a destruição do antigo enquanto passado e velho, porque para
restaurar o antigo é preciso que ele seja o presente e o atual. É esse
o sentido do regresso à antiguidade. Respeitando a periodização
feita por Vasari no século XVI, retomada depois por todos os
historiadores da Renascença, principalmente por Panofsky e Co-
lombero, pode-se fazer uma periodização do renascimento pensan-
do nas 3 maneiras pelas quais o tempo é trabalhado. Pode-se falar
em 3 grandes temporalidades: o tempo da ação política, da vida
civil, da vida ativa em oposição à contemplativa, o tempo da inter-
pretação dos segredos do homem e da natureza pela magia natural,
e o tempo instrumental do conhecimento do homem e da natureza
com o nascimento da filosofia experimental. Esses 3 tempos indi-
cam que em cada deles um há uma ação e um conhecimento. Ao
que o conhecimento visa quando se leva em conta essas 3 tempora-
lidades? Visa alcançar os arcanos, os mistérios e segredos escondi-
dos, que são três: no tempo da vida civil, os arcanos do poder, no
tempo da magia natural, os segredos que Deus depositou no mun-
do, e no tempo da filosofia experimental, os segredos da natureza.
Os segredos do poder estão ligados à renovação florentina do
republicanismo; os segredos de Deus são conhecidos pela magia
natural e por uma nova leitura e interpretação dos textos sagrados a
partir da filologia, e os segredos da natureza serão conhecidos pela
filosofia experimental nascente.
Nesta aula eu quero retomar o final da aula passada:
Colombero periodiza o renascimento italiano em três mo-
mentos: o da vida ativa ou vida civil, que ressalta o valor e a capa-
cidade do homem como agente; um segundo momento, qd as con-
dições políticas desfizeram as liberdades republicanas e foram
instaladas as senhorias e as formas monárquicas e cuja ênfase irá
recair sobre a relação do homem com a natureza sob a influência
do platonismo e neoplatonismo, e um terceiro momento, cuja ênfa-
se vai recair sobre o interesse na relação do homem com a nature-
za, mas sob influência do aristotelismo. Segundo Colombero, a
diferença entre o platonismo e o aristotelismo não está na diferença
entre uma concepção teológica platônica e uma concepção natura-
lista aristotélica. Tal diferença não faz sentido. A dife-
rença é social. O platonismo foi retomado pelas elites intelectuais
contra a tradição medieval, mas essa retomada foi feita fora do
mundo universitário, desvinculada da ideia de ensino. Em contra-
partida, o aristotelismo manteve-se como filosofia de escola e
permaneceu vivo assim por toda a renascença. O que se vai ter é
uma distinção entre as sedes: a sede do platonismo e do neoplato-
nismo será Florença e a sede do aristotelismo será Bologna e Pá-
dua. A distinção é: aqueles que se apropriam da tradição da filoso-
32
fia antiga são socialmente diferentes e a destinação que eles dão à
filosofia antiga é diferente. Vou acrescentar alguns aspectos a essa
periodização do Colombero: além do platonismo/neoplatonismo e
do aristotelismo, a filosofia epicurista teve um papel importante
nos círculos humanísticos. Lorenzo Valla vai traduzir as famosas
‘Cartas à Meneceu’, de Epicuro, e Bracciolini redescobre perdido
nas universidades europeias o manuscrito ‘Da Natureza’, de Lucré-
cio.
(Marilena sugere ler o capítulo 2 do seu livro Introdução à
Filosofia para uma visão geral do epicurismo-ceticismo e pirronis-
mo/platonismo e aristotelismo )
O platonismo e o aristotelismo, sob a ação dos renascentis-
tas, vão passar de uma atitude teorética da natureza para uma atitu-
de prática de intervenção sobre a natureza. Do lado do platonismo,
a técnica vai de desenvolver como magia natural. Do lado do aris-
totelismo, serão dados os primeiros passos da filosofia experimen-
tal. Isso terá um peso decisivo sobre a mudança na concepção da
técnica, que estará agora inserida no saber. O conhecimento será
uma ação inseparável do agir sobre a natureza. Essa passagem da
contemplação para a ação implica na mudança do que se entende
por conhecimento, que se torna anagógico, ou seja, vai dirigir-se à
estrutura fabricadora ou poiética da natureza ou do mundo. Surge a
noção de fabrica mundis. A estrutura do mundo é uma fabricação,
o mundo é um artefato fabricado por Deus, que é um artesão. Sua
obra, a natureza, tb é artesão. Por isso, conhecer a estrutura secreta
da natureza, ou a sua fábrica, é o caminho para transformá-la ou
dominá-la a serviço do homem. A magia natural dirá que o homem
pode criar outros mundos. O que é conhecer? Conhecer é penetrar
na estrutura secreta da natureza, conhecer os vínculos e laços secre-
tos que unem as coisas. A natureza é um tecido, uma rede de con-
cordâncias e oposições internas, invisíveis, cujo conjunto é uma
harmonia, e a harmonia é a coincidência dos opostos. Marsilio
Ficino, um dos grandes representantes da magia natural, diz que o
homem, sendo um geômetra como Deus, pode criar outros mundos
desde que encontre matéria para isso (a diferença entre Deus e o
homem é que Deus criou a matéria com a qual irá trabalhar e o
homem precisa encontrá-la). Fora essa diferença de grau, ambos
são criadores. G. Bruno, outro representante da magia natural, diz
que os deuses deram aos homens a inteligência e as mãos para que
eles pudessem fabricar outros mundos possíveis, tornado-se eles
próprios deuses (deificação do homem na fase final da magia natu-
ral). Essa presença de todas as filosofias antigas na Renascença vai
explicar a sua peculiaridade: a Renascença não é apenas um desejo
de restauração do antigo, de restituição do antigo, ela é o desejo da
restituição da origem, ou seja, dos princípios que dão origem ao
homem e à natureza, que não é o que está lá atrás, é aquilo que,
aqui e agora, neste lugar e nesta hora, continua produzindo os seus
efeitos. É um princípio que não está no passado, mas que está a
todo instante sustentando os seus efeitos, o que está presente no
mundo inteiro. Os renascentistas, então, estão em busca do segredo
da natureza, de Deus e do mundo. Ao contrários do que dizem os
historiadores, não há nenhuma contradição no renascimento em
procurar o antigo e buscar o novo, uma vez que os renascentistas
estão procurando a origem, o princípio, que estava lá atrás e agora
está aqui na frente. O que é o antigo? É o passado no sentido roma-
no, um fundatio, que é o princípio originário, aquele que permane-
ce no presente e cujos efeitos constituem o presente. O antigo é a
fundação. Na política, o antigo é a república romana, o modelo a
ser restituído; nas artes, são as artes greco-romanas; no conhe-
cimento, é aquilo que está na origem das próprias filosofias
(o conhecimento originário), um saber formulado no Egito, que
seria uma mensagem dos deuses aos homens, formando, do lado
greco-romano, o corpus hermeticus, e do lado judaico-cristão, a
cabala. Estão convencidos de que há uma fundação do saber que
deve ser recuperada para que todo o saber faça sentido. Os renas-
centistas acreditavam que tudo isso estava em um passado muito
distante, mas depois descobriu-se que tudo datava do século III
d.C. No plano da religião é a restitutio in integro da palavra
original de Cristo e dos apóstolos consignada no Novo Testamento
(tradução dos textos do Novo Testamento do aramaico e do grego
para o latim por Erasmo para uma reforma dentro da própria Igreja;
tradução para o alemão e o francês por Lutero e Calvino e tradução
para o inglês pelos ingleses). Para assegurar esta relação direta do
fiel com Deus era preciso que os fieis soubessem ler a bíblia. O
efeito disso foi a alfabetização das massas e a possibilidade de
todas as revoluções ocorridas na Europa.
Mas o que é o novo? É a realização perfeita do antigo, ou
seja, a realização das promessas originárias que Deus fez aos ho-
mens. Na política, a invenção de novas cidades, o surgimento de
um novo gênero literário, que é a utopia; no conhecimento, na
magia natural e na filosofia experimental, o novo é a conquista do
lugar do homem no Universo tal como Deus determinou no mo-
mento da criação; e na religião, o cumprimento das profecias refe-
rentes à terceira Era, o tempo do Espírito Santo, o tempo da ciência
e da sabedoria. Sobretudo com a descoberta da América, é a reali-
zação das profecias de retorno do homem ao paraíso. Esse mundo
ao qual se chega é chamado Novo Mundo, novo não porque desco-
nhecido, mas porque prometido por Deus desde a criação, a ori-
gem, o paraíso terrestre, que estava escondido, e que os navegantes
descobriram. O antigo como a origem e o novo como a restitutio
explicam porque o conhecimento, a política, as técnicas e a filoso-
fia apresentam-se como o conhecimento dos arcanos (isto é, dos
segredos de Deus, dos homens e da natureza). O segredo que se vai
descobrir é que o novo é a origem.
Feito isso, eu queria propor uma periodização mantendo o
sentido de Parnofsky, Colombero e Vasari, mas fazendo-lhe acrés-
cimos e dando-lhe novos sentidos. O primeiro
tempo é aquele no qual a temporalidade é dada pela história civil,
isto é, o tempo da vida cívica pensado como kairós, ou fortuna, ao
qual é preciso contrapor como forma da ação humana uma virtude
que é a prudência. A prudência é o que ensina a um homem conhe-
cer o passado e dominar o futuro. Por isso, o grande par proposto
neste momento para lidar com o tempo da história civil é aquele
proposto por Maquiavel, fortuna (kairós) e virtude (virtu), ou seja,
o tempo como uma virtude humana (prudência). A métis está de
volta. O segundo tempo é o que vamos chamar de tempo herméti-
33
co, tempo da magia natural, da alquimia e da astrologia como
busca do momento originário da criação divina, das formas natu-
rais, secretas e invisíveis. O terceiro tempo, ou ter-
ceiro período, é o da história natural ou do conhecimento da natu-
reza, que dará ao homem o poder de transformá-la e dominá-la
tecnicamente. É o tempo da experimentação. Pela primeira vez, o
tempo será medido e calculado. Esses 3 tempos têm um pressupos-
to em comum, que é a ideia que se tem do que seja o homem, a
natureza e as técnicas. E para desvendar essa ideia vamos trabalhar
com um termo do qual Colombero já havia se aproximado, e que é
nuclear nos textos renascentistas: a ideia de dignitas (dignidade do
homem, da natureza e das técnicas).
Qual o sentido da palavra latina dignitas? A dignitas per-
tence ao campo do discurso e da prática políticos de Roma. Não é
uma qualidade moral subjetiva, é um dado objetivo. Ela é o posto
público, o cargo público, o prestígio e a proeminência públicos. A
ideia é a de que o ofício, o cargo, o posto determinam quem você
deve ser e fazer. A dignitas é a configuração do espaço público por
meio dos cargos, postos e ofícios. A dignitas também é adquirida
por eleição para a magistratura, o posto do magistrado. A dignitas é
a magistratura, e é conservada como uma honra quando o título de
magistrado termina. A dignitas tb pode ser ampliada pelos feitos
públicos.E a dignitas é perdida quando se cai em desgraça pública.
É um poder e um império, entendendo-se por império como o
poder de comandar, de promulgar as leis, fazer cumprir as leis,
portanto, o poder de coerção. A dignitas é o exercício de uma
autoridade (cujo termo em latim autoritas significa ‘aquele que
está autorizado a arbitrar conflitos’). O homem digno é aquele que
possui esse privilégio e esse poder. O indigno,
submetido à desonra pública, é aquele que perdeu a dignitas. A
dignitas supõe uma hierarquia de cargos e ofícios, de poderes e de
valores. É esse complexo conceito que é retomado quando os re-
nascentistas vão propor a dignidade do home, da natureza e das
técnicas.
Dignidade do homem – seu expoente maior encontra-se na
obra de Piccolo della Mirandola, Oratio de Hominis Dignitate. Nós
sabemos que a ideia de humanismo é sempre tomada como a marca
definidora do Renascimento, mas é preciso lembrar que tal ideia é
construída em 2 processos sucessivos: em um primeiro instante, o
humanismo está ligado ao studia humanitates, isto é, ao cultivo das
letras, da eloquência, das artes liberais como expressão da humani-
dade do homem – esse é o primeiro sentido de humanismo. Em um
segundo instante, do qual Piccolo della Mirandola é a súmula, o
humanismo é definido a partir do lugar que é atribuído ao homem
na hierarquia dos seres e dos poderes do Universo. Portanto, no
segundo instante, o humanismo é a dignidade do homem. Se to-
marmos o Oratio de Piccolo della Mirandola, veremos que a digni-
dade do homem encontra-se no fato de ele ser um microcosmo no
interior de um macrocosmo. O que isso significa? Em primeiro
lugar, significa que o homem é uma parte que contém o todo (pars
totalis). É por isso que os pintores, os escultores e os arquitetos
tomam o corpo humano (masculino) como medida, critério e mode-
lo para as proporções da natureza. O corpo é a medida, a proporção
que serve de modelo para as proporções da natureza. Em segundo
lugar, ele é copula mundi, o lugar da cópula do mundo, a mediação
universal, o espelho do Universo, porque é por seu intermédio que
todas as coisas do mundo se comunicam e é nele que a natureza
inteira se reflete. Ele é o misterium magnum, o mistério supremo,
porque é o centro do Universo. O Universo é a harmonia ou a
coincidência dos opostos e o homem é o modelo de todas as har-
monias e de todas as coincidências entre os opostos. Por que o
homem ocupa o topo da dignidade? Porque Deus lhe deu duas
qualidades que Ele recusou a todos os outros seres: a razão e a
vontade livre. Enquanto a Idade Média é teocêntrica, o Renasci-
mento é antropocêntrico. O mundo deixa de ser geocêntrico para
tornar-se heliocêntrico. No primeiro humanismo (trettento), a
dignidade do homem encontra-se na literatura antiga, no conheci-
mento das leis e no conhecimento da história civil, na vida ativa.
No segundo humanismo (quattrotento), a dignidade do homem
encontra-se na ação do conhecimento e das artes e técnicas para
fazer a natureza revelar os seus poderes. No terceiro humanismo
(quinhentos), a dignidade do homem encontra-se no conhecimento
de si e da natureza enquanto poderes (homem e natureza como
poderes), de tal maneira que o homem tem que encontrar para si
um lugar na natureza de modo a dominá-la e obrigá-la a servi-lo.
Se o homem é isso e o Universo é a harmonia ou a coincidência
dos opostos, o que é o conhecimento? Conhecimento é eros, amor
e desejo. O homem não se coloca diante da natureza, coloca-se
dentro dela, há uma relação de fusão do homem com a natureza. É
lógos, isto é, pensamento, um ato do entendimento para encontrar a
ordem racional das coisas conhecendo os signos delas. É ratio, ou
seja, proporção e simetria, isto é, conhecer é estabelecer relações
de proporção e simetria entre as coisas (modelo mais perfeito, a
perspectiva artificial). Conhecer é encontrar o bom ponto de vista.
Conhecimento é vinculum, ou seja, vínculo. É buscar correspon-
dência entre as coisas, a unidade orgânica de um todo com as suas
partes, as conexões de simpatia e antipatia entre as partes, encon-
trar para cada ser a sua vida própria, a sua ordem, a sua simetria
interna e as suas relações de simpatia e antipatia com os demais
seres do Universos. Conhecer é uma actio, uma forma de ação, pois
o conhecimento visa ou restabelecer a origem que estava escondida
ou criar uma realidade nova e perfeita. Conhecimento é mímesis,
mas em um um sentido diferente do sentido grego. O conhecimento
e a técnica não imitam a natureza, mas são a ação criadora de Deus.
A mímesis não é, portanto, uma reprodução, é uma invenção e uma
inovação porque é a deificação do homem. Essa concepção da
dignidade do homem e do conhecimento introduz uma ideia muito
cara à Renascença que é a de teatro do mundo, no qual o homem é
o protagonista, o expectador e o juiz. Está no palco e acima dele.
Dignidade das artes e das técnicas – a mudança do lugar do
homem na natureza, do lugar do homem no conhecimento, a mu-
dança do próprio conhecimento, que deixa de ser contemplativo
para ser ativo, implica em mudança com relação à técnica. Deus e o
homem procedem da mesma maneira, tanto no conhecimento, pois
conhecem as causas e os efeitos, como na produção. O homem é
igual a Deus na produção, isto é, a criação do homem por Deus foi
o primeiro ato da pintura e da escultura. A sociedade grega e a
medieval mantiveram a divisão entre as artes liberais (dos homens
livres) e as artes mecânicas (ou servis). A Renascença irá iniciar
34
uma batalha pela dignidade das artes mecânicas ou das técnicas –
dignidade como lugar, poder, ofício, autoridade - com dois grandes
objetivos: desfazer a divisão, considerando todas artes igualmente
liberais; e propor uma nova relação entre as ciências e as técni-
cas. No primeiro humanismo, mantém-se a distinção romana e
medieval entre doctus e vulgus, douto e vulgar, porque o que se
afirma é a dignidade das letras e do direito. São elas que estão no
topo e, portanto, têm a dignidade. A medicina está subordinada ao
direito, por exemplo (ponto de vista de Petrarca).
No segundo humanismo, com a magia natural, a medicina,
a arquitetura, a pintura e a escultura estão no topo da dignidade,
porque, ao fazer o homem a sua imagem e semelhança, Deus o
esculpiu e pintou e o fez criador dessas artes. Se o homem quiser
exprimir o seu poder criador, é por meio dessas artes, portanto, elas
estão no topo da hierarquia. No terceiro período, as artes mecânicas
tornam-se inseparáveis do conhecimento científico experimental e
todas são consideradas dignas. Desaparece a distinção entre artes
liberais e mecânicas. Só existem artes. A distinção perde o sentido.
Marilena vai ler um texto do último período escrito por
Varchia, porque ele é a súmula do processo que apagou essa distin-
ção. A dignidade de uma ciência ou uma técnica, segundo Varchia,
consiste em ter o bem do homem como o seu fim. É o lugar do
homem que determina a dignidade das ciências e das artes. Então,
teríamos que considerar o Direito superior à Medicina? Não, res-
ponde Varchia, ambas têm como fim o bem do homem e, sendo
assim, ambas têm a mesma dignidade. Varchia propõe outra dis-
tinção: física, metafísica e matemática como as primeiras; e todas
as demais como subordinadas.
Aula 06 (17-09-2012)
Vamos ver se hj concluímos a Renascença para entrarmos
na Filosofia Moderna.
Eu dividi a aula de hoje em duas partes: na primeira parte,
eu vou mostrar as consequências da luta pela dignidade das chama-
das artes mecânicas (que eu chamei de “desforra dos mecânicos”),
e na segunda parte eu vou abordar o outro lado do tratamento da
técnica, que é a magia natural.
Podemos ter uma ideia dessa “desforra dos mecânicos”
com relação aos doutos, aos eruditos, se tomarmos dois textos do
final da Renascença sobre o uso do termo mecânico. Um deles,
citado pelo Paulo Rossi no livro O Filófoso e as Máquinas, é um
texto de Guidobaldo del Monte mencionada na obra Mecanicorum
liber. Guidobaldo escreve o seguinte: “Mas visto que esta palavra
mecânica não será talvez entendida por qualquer um pelo seu
verdadeiro significado, ou seja, encontrar-se-ão alguns que estima-
rão ser ela termo injurioso, costumando-se, em muitas partes da
Itália, chamar alguém de mecânico por escárnio e grosseria e al-
guns, por serem chamados de engenheiros, sentem-se desdenhados.
Mas não será fora de propósito lembrar que mecânico é um vocá-
bulo honradíssimo, conveniente a homem de alta condição que
saiba com suas mãos e conciso mandar executar obras maravilho-
sas de excepcional utilidade e deleite do viver humano.” (Fim da
leitura) (Marilena retoma) Há, então, uma reviravolta e a mais
honrada das artes será sempre uma arte mecânica e o mais honrado
dos homens será aquele capaz de se servir das suas próprias mãos.
Estamos, portanto, no polo oposto ao ponto de partida. Um outro
texto aparece em Agricola no livro De re metallica, um livro sobre
metalurgia, no qual Agricola defende a arte dos metais,(a metalur-
gia, diante da acusação de que ela é indigna e vil em comparação às
artes liberais. Paulo Rossi comenta a atitude de Agricola de defen-
der a metalurgia comentando o seguinte: “As duas acusações de
que Agricola tenta se defender são: a) a que sustenta que a
arte metalúrgica é coisa do destino ou nasce ao acaso; b) a que
pretende que tal arte é um trabalho servil, vergonho e desonesto
para o homem livre, isto é, para um nobre honesto e respeitado. A
primeira acusação tende a reduzir a atividade do técnico a um nível
de trabalho manual que requer mais fadiga do que engenho e saber
e a qual, portanto, deve ser estranha qualquer pretensão de cientifi-
cidade. A segunda acusação, que reflete a opinião que remonta aos
gregos, chega ao mesmo resultado contrapondo a técnica, entendi-
da como trabalho manual, a uma ciência concebida como contem-
plação desinteressada. Agricola reage a essa dupla acusação mos-
trando que a atividade do técnico implica toda uma série de rela-
ções com as várias ciências e não pode vir desacompanhada de um
efetivo conhecimento dos diversos campos do saber. O metalúrgi-
co, diz Agricola, deverá ser, em primeiro lugar, um perito no reco-
nhecimento dos terrenos, deverá saber distinguir perfeitamente os
veios, as diversas espécies de pedras preciosas e metais, deverá
conhecer, enfim, todos os artifícios de fazer experiências com a
matéria que tenha em mãos. A ele (ao metalúrgico), serão igual-
mente necessárias a filosofia, a fim de que conheça o nascimento,
as causas e a natureza das coisas subterrâneas, a medicina, naquilo
que possa prover para que os escavadores e outros trabalhadores
não caiam naquelas doenças em que, mais do que todos os outros,
em tal mister estão propensos a cair, a arte das medições, o ábaco, a
arquitetura, para fazer ele próprio as máquinas e armações, ou seja,
fazer com os outros entendam melhor a maneira de fazê-las. Além
disso, ele deve conhecer a arte do desenho, as leis e o direito.” (Fim
da leitura do texto) (Marilena retoma) Portanto, quando Agricola
faz a defesa da técnica metalúrgica ou do tratamento dos metais,
sua defesa vai, em primeiro lugar, na mesma linha daquela de
Guidobaldo del Monte de afirmar que não há nada de vil nem de
desonroso ou vergonhoso na arte mecânica. Feito isso, vai adiante
e, como Guidobaldo, ele vai dizer que ela é a mais digna que as
artes liberais. Depois acrescenta a afirmação de que esta técnica,
como toda verdadeira técnica, exige uma série de outros saberes
graças aos quais poderá ser realizada com perfeição, os quais vão
desde o conhecimento da matemática, da arquitetura, da medicina,
das leis, da jurisprudência e de outras correlatas. Portanto, a ideia
de que uma técnica envolve um conjunto de outras técnicas (rela-
ção entre as várias técnicas) é nova, assim como é nova a ideia de
que uma técnica está vincula a conhecimento científico. São duas
ideias novas cujo sentido só será compreendido no mundo mo-
derno, o qual irá explorar essas duas afirmações feitas pelos mecâ-
nicos ao final da Renascença. O que está posto agora é que o traba-
lho do técnico não pode se separar do trabalho do cientista. Portan-
to, os que contrapõem trabalho livre/servil e técnica/conhecimento
científico são considerados ignorantes do ponto de vista da técnica
e do ponto de vista da ciência. Os mecânicos irão afirmar que,
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daqui para frente, será ignorância não apenas classificar as artes
em mecânicas e servis, mas também classificá-las como indig-
nas e separá-las do conhecimento científico. Nota-se, então, a
partir deste momento, um entrosamento entre técnica e ciência.
Esse entrosamento, portanto, é novo no final da Renascença.
Saber como Ação – Ciência como Ação
A partir do final do século XVI surge a ideia de que o saber
é uma ação, a ciência é uma ação. A ideia do saber contemplativo
vai sendo deixada de lado para dar lugar a uma ideia de conheci-
mento como ação, e esse aspecto ativo do conhecimento será reali-
zado pela técnica. Os tratados dos técnicos vão passar por uma
crítica impiedosa dos letrados, dos doutos, daqueles que acreditam
que o saber é uma atividade contemplativa, os quais vão criticar de
modo impiedoso os mecânicos. Um dos exemplos mais conhecidos
dessa crítica está em Vesálio (eu vou fazer uma longa citação de
um texto de Vesálio que está no De Fabrica humani corporis), o
outro exemplo é o de um ceramista e vidreiro francês chamado
Bernard Palissy – e eu vou citar para vocês o título de duas obras
de Palissy – os demais exemplos são o de um marinheiro inglês
chamado Robert Norman e o de um erudito espanhol, que é Vives.
Todos vão insistir na necessidade de os letrados abandonadores os
livros e voltarem os olhos para o trabalho realizados pelos mecâni-
cos e artesãos. Vão defender a ideia de que o sábio, o cientista deve
aprender com os técnicos. Temos, portanto, a ideia de um aprendi-
zado do próprio saber filosófico e científico a partir do conheci-
mento daquilo que faz o artesão. Palissy vai dizer que, ao levar
alguém para o seu laboratório durante algumas horas, tal pessoa vai
tornar-se mais conhecedora de filosofia natural do que se passasse
50 anos em um escritório lendo os livros de filosofia natural. Palis-
sy dirá que se o indivíduo aprender a se voltar para as próprias
coisas em vez de se voltar para as palavras vai aprender o que é a
natureza e entender o que é uma filosofia da natureza. Eu vou ler
para vocês o título de duas das obras mais interessantes do Palissy,
a primeira, e mais conhecida, chama-se “Discursos admiráveis
sobre a natureza das águas e das fontes, tanto naturais quanto artifi-
ciais, dos metais, dos sais e salinas, das pedras, das terras, do fogo
e dos esmaltes, com muitos outros excelentes segredos das coisas
naturais, mas um tratado muito útil e necessário para aqueles que
tratam de agricultura, tudo isso é feito através de diálogos pelos
quais são introduzidos a teoria ao teórico e ao prático.” Por Monsi-
eur Bernard Palissy, inventor de rústicas figurinhas para o jardim
do rei, da rainha sua mãe, e para o muito alto e muito potente An-
toine de Pons, cavaleiro da ordem do rei. A outra obra chama-se
“Receita verdadeira pela qual todos os homens da França poderão
aprender a multiplicar e a aumentar os seus tesouros” A receita é a
agricultura. Palissy vai apresentar um tratado para agricultura,
plantações em grandes extensões, pomares e jardins. A ideia é
assegurar, em ambos os casos, uma vida melhora para os seres
humanos se eles abandonarem o eruditismo vazio, se forem das
palavras às coisas.
Vives, por sua vez, insiste na necessidade de os doutos li-
vrarem-se do desdém que têm pelo conhecimento possuído pelo
vulgo, pelo artesão e pelo mecânico, e não envergonharem de ir às
oficinas para aprender com os técnicos o verdadeiro conhecimento
da natureza. Contra os letrados, Vives vai escrever que os dialéti-
cos, porque são ignorantes do que seja a natureza, inventaram
monstruosidades teóricas e palavras abstrusas as quais deram o
nome de metafísica para indicar o que estava para além da física,
para além da natureza, portanto, para indicar uma mente que tem
horror à natureza. E ele cita as palavras (todo o vocabulário da
escolástica): formalidade, esseidade, pseidade, essencialidade e, se
fosse nosso contemporâneo, citaria abusividade, praticidade, ab-
surdidade, todo esse “besteirol” que parece uma coisa nova e con-
ceitualmente séria.
Na mesma linha de Palissy e Vives, Vesálio vai escrever o
seguinte na introdução do De fabrica (para combater Galeno e toda
a tradição da medicina, não pelo simples desejo de combatê-los,
mas pelos efeitos que a medicina de Galeno teve sobre a prática
médica). Vale a pena ver o que aconteceu com a medicina por meio
dessa análise que Vesálio faz.
“Depois das invasões bárbaras, todas as ciências, que antes
haviam gloriosamente florescido e sido praticadas a rigor, arruina-
ram-se. Naquele tempo, e antes de mais nada na Itália, os doutores
da moda, imitando os antigos romanos, começaram a desprezar a
obra da mão. Confiavam aos escravos os cuidados manuais que
julgavam necessários a seus pacientes e pessoalmente limitavam-se
a supervisionar. O sistema para cozinhar e preparar os alimentos
para os doentes foi deixado aos enfermeiros, a dosagem dos remé-
dios aos farmacêuticos, as operações manuais aos barbeiros. As-
sim, com o passar do tempo certos doutores, proclamando-se médi-
cos arrogaram-se pessoalmente a prescrição dos remédios e dietas
para obscuras doenças, e abandonaram o resto da medicina aos que
chamavam de cirurgiões e consideravam apenas escravos. Infeliz-
mente, dessa forma, afastaram de si o ramo mais importante e mais
antigo da arte médica, aquele que (admitindo-se que realmente
exista um outro) se baseia sobretudo na investigação da natureza.
Quando todo o procedimento da operação manual foi confiado aos
barbeiros, os doutores não só perderam rapidamente o verdadeiro
conhecimento das vísceras, como também rapidamente terminou a
prática anatômica. Isso, sem dúvida, decorreu do fato de que os
doutores não se arriscavam a operar, ao passo que aqueles a quem
era confiado tal encargo eram ignorantes demais para ler os escritos
dos mestres de anatomia. Assim aconteceu que essa deplorável
divisão da arte médica introduziu em nossas escolas o odioso sis-
tema ora em voga, com o qual alguém realiza a dissecação do
corpo humano e outro descreve suas partes. este último está enca-
rapitado num alto púlpito como uma gralha e, com modos muito
desdenhosos, repete até à monotonia notícias sobre fatos que ele
não observou diretamente, mas decorou dos livros de outros ou dos
quais tem uma descrição diante dos olhos. O disse-
cador, ignorando a arte do falar, não está à altura de explicar a
demonstração que deveria se seguir às explicações do médico,
enquanto o médico nunca põe as mãos ao trabalho, mas dirige
desdenhosamente a nau com a ajuda do manual, e fala. Assim, cada
coisa é mal ensinada, perdem-se os dias com questões absurdas e
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ensina-se confusamente aos estudantes menos do que um açouguei-
ro, do seu balcão, poderia ensinar ao doutor.”
Assim, o ambiente de desforra dos mecânicos não é apenas
aquele de afirmação das artes mecânicas, mas é, agora, o ambiente
da afirmação da indignidade do saber teórico e do horror que essa
concepção da valorização da teoria sobre a prática implica para
determinadas artes, como é o caso da medicina (embora haja textos
que mostram isso para o direito). Ou seja, trata-se de afirmar,
considerando-se cada lugar onde a relação entre a teoria e a prática
é essencial, o mal que a separação entre artes liberais e artes mecâ-
nicas causou e o estado precário das próprias artes mecânicas, se
elas não se recuperarem como trabalho das mãos, como trabalho da
observação e, sobretudo, com a sua relação com as ciências.
Paulo Rossi e Robert Mandrou lembram, a partir desse
quadro, a posição de Rabelais quando ele escreve Gargantua. Rabe-
lais vai propor um programa de ensino e estudo para Gargantua, o
qual colocava o conhecimento das obras dos artesãos como ele-
mento primeiro e indispensável para a formação do jovem. Gargan-
tua ia às oficinas e estudava ciências naturais, aritmética, geometria
e fazia exercícios físicos. Nos dias de chuva, dedicava-se à pintura
e à escultura. Depois, acompanhava seu mestre às oficinas dos
fundidores de metais, dos ourives, dos quebradores de pedras, dos
alquimistas, dos relojoeiros, dos tecelões, dos tintureiros e dos
organistas. A formação do jovem Gargantua era tal que o conhe-
cimento técnico e o conhecimento das artes liberais e da filosofia
da natureza eram inseparáveis. Rabelais está exprimindo no pro-
grama de estudos para Gargantua exatamente aquilo que os novos
técnicos (Vesálio, Palissy, Vives) estão propondo para as artes e as
ciências. Eu leio o comentário de Paulo Rossi:
“Palissy, o marinheiro inglês Norman, Vives e Rabelais,
em diversos níveis e com diferentes intenções, haviam dado ex-
pressão à exigência, muito difundida na cultura do século XVI, de
um saber em que a observação dos fenômenos, a atenção às obras,
a pesquisa empírica fosse mais importantes do que as evasões
retóricas, as complacências verbais, as sutilezas lógicas e as cons-
truções apriorísticas. Em nenhuma das obras dos técnicos, eviden-
temente, é possível ver o nascimento de um novo método, consci-
ente de suas implicações, e capaz de trazer modificações às siste-
matizações teóricas e determinadas das ciências.”
Marilena abre um parêntese: esse novo método será obra de
dois grandes modernos, Bacon e Descartes; são eles, assim como
Galileu, evidentemente, que trarão a noção de que isso que estão
fazendo exige um novo método. Nas obras dos técnicos e de alguns
dos filósofos naturais, por exemplo, Zabarella, não há a ideia de
que isso que está sendo feito precisa ser sistematizado por meio de
um novo método de conhecimento. Ainda não há essa ideia.
(continuação do texto de Paulo Rossi)
“Qual é, então, o significado, dessa mutação que aparece na
obra dos técnicos, e que eu estou chamando de “a desforra dos
mecânicos”? Seu significado deve ser buscado em outra parte, qual
seja, na capacidade mediante um recurso à natureza e à elaboração
de técnicas transcritivas transmissíveis de questionar os quadros
tradicionais de um saber no qual a apresentação sistemática era
uma atividade marginal ou secundária.”
O que Paulo Rossi está dizendo é que a novidade que é tra-
zido pelos técnicos é a introdução como prioritário aquilo que ou
era inexistente ou secundário, ou seja, a observação direta da natu-
reza. Não se pode cobrar isso de Aristóteles que, diferentemente de
Platão e da maioria dos filósofos gregos, era um médico, um biólo-
go, um observador da natureza. Tudo o que ele escreveu, ele o fez a
partir da observação. Mas é isso que o correr do tempo esquece,
sobretudo porque há uma determinação socioeconômica na divisão
entre artes mecânicas e artes liberais. Não podemos dizer, no entan-
to, que isso é um retorno à Aristóteles, mas um retorno a uma certa
compreensão de que o saber só se realiza por observação direta da
natureza. Isso terá consequências gigantescas para o saber moder-
no, que veremos mais adiante.
Essa atitude que aparece nos técnicos não é isolada: apare-
ce na Espanha de Vives, na França de Rabelais e na Inglaterra de
Gilbert, autor da primeira grande obra sobre o magnetismo, De
Magnete, que propõe um programa de educação para o jovem
gentleman, que devem aprender não só as ciências, mas a filosofia
natural, por meio da observação, e frequentar os ateliês e as ofici-
nas dos técnicos. Esse novo gentleman está sendo preparado para
frequentar uma nova classe social em ascensão, a burguesia, que
não tem a menor vergonha de usar as mãos.
Robert Mandrou, em Dos Humanistas ao Homens de Ciên-
cia, séculos XVI e XVII, faz uma apreciação do que acontece com
a mudança no campo das técnicas tomando como ponto de partida
a invenção da impressa, portanto, o surgimento do livro. Ele vai
afirmar que a invenção da imprensa criou uma quantidade nova de
ofícios, que não existiam antes e, sobretudo, um tipo novo e muito
peculiar de intelectual, o livreiro-impressor-editor, que realiza em
seu ateliê todas as etapas da produção de um livro. Tal produção
começa com a necessidade de o indivíduo ser um leitor, para saber
o que vale a pena ser editado, e um artesão para fazer a prensa, os
tipos, as tintas e imprimir. Ora, à medida que a impressão vai-se
tornando uma técnica poderosa e rica, o que um indivíduo fazia
sozinho, vai sendo distribuído em vários ofícios. Vai haver um
conjunto de novos ofícios que se articulam como efeito de uma
técnica nova, a imprensa. Aqui o que se tem é o efeito no campo
social do surgimento de ofícios novos e atividades novas a partir de
uma técnica, a da imprensa. O que Madrou vai mostrar é que, aos
poucos, o que surge é a ideia de um conjunto de atividades interli-
gadas. O que caracteriza a atividade de um técnico ou de um arte-
são é o fato de ele, sozinho, fabricar o objeto. Isso é tão importante
que cada artesão tem a sua assinatura, deixa a sua marca no objeto.
A grande diferença entre o objeto artesanal e industrial é a sua
individualização (você sabe quem fez o objeto, para quem ele foi
feito e por que razão foi feito). A história da fabricação do objeto
artesanal está escrita nele. O caso da imprensa, entretanto, é muito
peculiar porque, à medida em que ela se espalha por toda a Europa
37
e se torna uma técnica indispensável para todas as classes sociais,
vai-se impor a necessidade de uma produção de livros em série. E o
ateliê do livreiro deixa de ser o de um artesão que faz o livro inteiro
e cada tarefa vai caber a um artesão. É a primeira experiência, do
ponto de vista da técnica, de trabalho interligado, anunciando o que
vai vir, quase um século depois, com a manufatura. Uma outra
consequência da invenção da imprensa é o fato de ela ser uma
técnica uniformizada e espalhada por toda a Europa. Assim, há
uma homogeneidade na arte da imprensa que não há nas outras.
Mandrou também comenta os primeiros resultados das via-
gens marítimas. O primeiro resultado das viagens
marítimas será a mudança na cartografia. Os mapas eram obra de
fantasia. Agora nasce uma técnica específica de cartografia, que
primeiro introduzi a ideia de mediação, relação entre o navegador e
o traçado no mapa do lugar por onde ele passa e a definição da
posição do céu no mapa. É um conhecimento geográfico, astronô-
mico e de desenho. Além da cartografia, há um conjunto de novos
instrumentos de precisão para a navegação, como o astrolábio, por
exemplo. A navegação trouxe a exigência de instrumentos ade-
quados (o astrolábio, a luneta, a agulha magnética e, depois, a
bússola e o relógico com pêndulo). A navegação
é determinada por uma razão econômica – o fechamento da rota
para o Oriente - e pela exigência de instrumentais fundamentais.
Vejamos um texto do Mandrou quando ele diz que algo
mais acontece. Antes, no entanto, vamos ler um outro texto em que
ele enumera uma série de elementos técnicos que irão entrar.
“Astrônomos, cartógrafos, geógrafos trabalham juntos; os
primeiros, que estudam os pontos fixos propostos para os navega-
dores para seguir o seu caminho e estabelecer a sua posição no
curso da viagem, quando estão longe de toda a baliza terrestre; os
segundos, que procuram construir e desenhar os mapas de que
esses mesmos marinheiros precisam para fixar os itinerários mais
rápidos e mais seguros e reconhecer os lugares de escala e de trân-
sito; e os geógrafos, enfim, para dar a todos aqueles que, na Euro-
pa, se interessam pelos mundos novos, pelas descrições dos países,
dos homens e das suas riquezas. Tudo tem que ser renovado com
relação ao saber antigo, que se revelava inutilizável. Esse lento
trabalho se efetuou com ardor de um mundo cheio de iniciativas,
nos portos e nos meios principescos, isto é, em todo lugar onde a
demanda por esses instrumentos era uma pressão feita. As etapas
dessa elaboração lenta e difícil em escala mundial, e do mundo
agora reconhecido, foram fixadas pelas descobertas e realizações as
mais notáveis até hj. Por exemplo, em 1539, Mercator constroi o
primeiro mapa que contém o essencial das costas reconhecidas
entre 1492 a 1520. E, 30 anos mais tarde, publica o famoso planis-
fério estabelecido segundo a projeção, que porta o seu nome, e
permite a representação da totalidade das terras conhecidas na
superfície do globo. Simultaneamente, Münster se consagra à
mapas às dezenas, e a sua obra fundamental é a cosmografia publi-
cada em 1544. Da mesma maneira, os geógrafos que utilizam os
primeiros relatos dos viajantes e descrevem homens, plantas e
animais por referência às espécies europeias, fornecem dados, a
cada ano, muito mais elaborados e em grande parte renovados.
Dessa maneira, compreende-se que esse trabalho se desenvolveu de
maneira pragmática e durante um longo tempo sem suscitar inquie-
tações e censuras. Mas, os seus postulados essenciais punham em
causa uma parte importante dos ensinamentos consignados nos
livros sagrados, pois toda representação gráfica de uma Terra
redonda girando sobre ela mesma em torno de um sol fixo contra-
diz o sistema ptolomaico ao qual o Antigo Testamento faz referên-
cia: uma Terra plana, no centro do mundo, um céu ordenado a
partir da Palestina, e esse concepção não tem mais nenhum sentido
para quem pratica os novos mapas e a navegação de longo curso.
Enquanto os teólogos continuam a ensinar nas universidades o
velho sistema do mundo, os cartógrafos e astrônomos, na sua práti-
ca cotidiana, racionam a partir de dados da experiência dos mari-
nheiros e verificados pouco a pouco pelos seus cálculos, que esta-
belecem uma imagem nova da Terra.”
O que vai acontecer é que, de modo imperceptível, sem se
colocar sob uma perspectiva religiosa, os geógrafos, os cartógrafos
e os astrônomos, postos a serviço das navegações, vão produzir
uma figura da Terra, do sol, do céu e do mundo que não tem nada a
ver com o sistema ptolomaico posto pela bíblia. E isso sem grande
alvoroço. Vai demorar para a Igreja colocar todos na fogueira e
queimar livros: a reviravolta no plano da técnica, que acompanha o
que é observado pelos marinheiros, arrebenta um sistema científico
completo que vem desde Aristóteles até o século XVI. Tudo que
estava posto cai por Terra, sem que ninguém se dê conta disso, pois
todos estão muito ocupados com os lucros das grandes navegações.
Impérios estão sendo construídos com isso.
Vou ler mais um texto do Mandrou:
“A esfericidade da Terra, o seu movimento sobre si mesma,
entraram na prática corrente da gente do mar, e sem nenhum pro-
blema. Só se tornaram uma questão, evidentemente, quando os
impressores e cientistas que trabalham nessas novas representa-
ções, sem abandonar suas preocupações astrológicas e meteoroló-
gicas, não tiveram escrúpulos de prosseguir nas suas tarefas neces-
sárias: o planisfério, a melhor explicação do novo sistema, tudo
isso exprime essa primazia das necessidades técnicas sobre os
artigos da fé. Ao mesmo tempo, a coexistência, mais ou menos
cômoda, que se estabeleceu, de fato, entre os técnicos e a fé: de um
lado, uma constatação que afirma a esfericidade da Terra, admitida
com todas as suas consequências, e de outro, a afirmação contradi-
tória e considerada uma verdade revelada, não discutível e que, às
vezes, estão sob a mesma cabeça. Não é necessário pensar em
dramas de consciência, por enquanto, porque não parece que os
mais audaciosos cosmógrafos, cartógrafos e geógrafos embaraça-
ram-se com os escrúpulos da fé, e não hesitaram em levar em conta
que os mapas e os dados da experiência eram tão válidos quanto
aquilo que estava na bíblia. O mesmo, entretanto, não aconteceu
com os astrônomos, e sobretudo com o maior da sua geração,
Copérnico. A revolução copernicana é, de uma certa maneira, em
parte, misteriosa. Este sábio passou 40 anos da sua vida exercendo
a medicina e construindo uma nova teoria do mundo em conformi-
dade com os dados fornecidos pelas grandes descobertas marítimas
e apoiados sobre uma massa considerável de cálculos concernentes
à posição da Terra em relação ao Sol e à Lua. Os novos cálculos
que ele realizava determinavam a curva do trajeto realizado pela
38
Terra em torno do Sol e os limites do mundo finito em cujo centro
está o Sol. O heliocentrismo de Copérnico descreve um céu novo,
que se define ao mesmo tempo como limitado, muito mais vasto
que o céu de Ptolomeu de Alexandria, mas que ainda não é um
espaço infinito. Copérnico avança muito rápido na sua construção
de um conjunto que põe nos seus devidos lugares os elementos de
um novo sistema solar e os define matematicamente uns com rela-
ção aos outros, mas não publica nada. Em 1543, alguns anos antes
da sua morte, ele publica, o famoso tratado De Revolutioni-
bus Orbium Coelestium, a primeiro exposição ainda não completa
de uma cosmologia solar.”
Mandrou mostra como o trabalho dos técnicos, cosmógra-
fos, cartógrafos, geógrafos, marinheiros, etc, teve efeito sobre
aquela que era considerada a mais alta e a mais digna de todas as
ciências, a astronomia. Afeta o saber da mais alta das ciências, a
astronomia. E não afeta pouco, muda o mundo. Em última instân-
cia, teremos uma grande transformação teórica exprimindo a gran-
de mutação técnica que ocorre no final da Renascença. Nesse
período, começam a surgir, não apenas os tratados de pintura,
escultura e arquitetura, mas também tratados sobre máquinas e sua
construção (no final do quatrottento e começo do cinquettento). É
óbvio que a partir das grandes navegações há uma exigência clara
de novas máquinas. E é isso que aparece no Palissy, que propõe
uma quantidade grande de máquinas, e em Leonardo, que estava
interessado em imaginar as máquinas, inventá-las. Um outro sujeito
chamado Kircher, por exemplo, propõe uma máquina para se ler
automaticamente um livro e uma máquina de espionagem para o
rei. Na verdade, esses homens estão inventando autômatos. Há uma
ideia de que a técnica pode propor objetos novos, máquinas novas.
A técnica aparece, então, como uma lógica da invenção, um ins-
trumento para a fabricação de máquinas.
A ideia é que a técnica, enquanto tal, é um tipo de saber
instrumental que permite inventar máquinas novas. Se a gente
resumir o que eu estou chamando de “desforra dos mecânicos”
podemos resumir o que aconteceu com a técnica nos seguintes
pontos: 1) os objetos técnicos agora destinam-se a resolver proble-
mas práticos em todos os domínios da atividade humana. Técnica
significa agora solução de dificuldades práticas em todos os domí-
nios
2) os objetos técnicos são inventos para resolver problemas
antigos e novos
3) os objetos técnicos são projetos para a construção de
máquinas
4) os objetos técnicos são pensados como ferramentas para
o trabalho, instrumentos para a ciência, máquinas para dominar a
natureza
5) como aparece em Vesálio e com o desenvolvimento da
cartografia, a técnica começa a ter uma atitude descritiva, o que
permite a aparição dos herbários e bestiários (fundamentais para a
biologia), de jardins, pomares e grandes extensões de plantações,
essenciais para a agricultura nas Américas.
Os ateliês mesclam a atividade de compra e venda de obje-
tos os quais eles estão destinados a fabricar e combinam isso com a
noção de experimentação. Ainda não é o experimento, mas já é
uma experimentação do tipo ensaio e erro.
Eu passo agora à segunda parte da aula
O outro lado do desenvolvimento da técnica
Há um outro desenvolvimento que é feito, sobretudo, pelos
platônicos e neoplatônicos de Florença, a partir da tradução enco-
mendada por Lorenzo de Médici a Marsilio Ficino do Corpus
Hermeticum, que vai se estender pouco a pouco para o restante da
Itália e toda a Europa, a magia natural. A magia natural vai se
desenvolver, por exemplo, na Inglaterra com Dee, astrólogo da
rainha Elizabeth, e com o grupo que está no Colégio Invisível de
Rattle; na Alemanha, com Paracelso e os Rosa Cruz; e na Itália, até
encontrar o seu apogeu com G. Bruno e Agripa. Espalha-se por
toda a Europa.
A magia natural é constituída pela astrologia, alquimia,
medicina hermética e numerologia. Não há um rei, um imperador
em toda a Europa que não tenha o seu astrólogo ou o seu alquimis-
ta.
Para entendermos as principais ideias que estão sendo de-
senvolvidas pela magia natural (que se autodenomina A Arte – a
magia natural é dita A Arte), eu gostaria de lembrar rapidamente
como se organiza o cosmo sob o ponto de vista da Renascença
(platônica). Vou tomar como exemplo o capítulo 2 do livro de
Foucault, Les mots e les choses , intitulado A prosa do mundo. Há
um equívoco neste texto porque F. considera que a descrição que
ele vai fazer é válida para toda a Renascença. Não é, é válida ape-
nas para o platonismo renascentista. Não é válida para o aristote-
lismo, estoicismo e epicurismo.
De acordo com F., o saber da Renascença organiza-se em
torno de um núcleo fundamental, a semelhança. A semelhança é o
grande dispositivo teórico e prático para a construção do saber até
o final do século XVI. A semelhança vai constituir uma trama
semântica obtida por meio de 4 grandes articulações ou maneiras
pelas quais a semelhança se apresenta. A primeira é a conveniência
ou a concordância. São convenientes ou concordantes as coisas
que se aproximam até se juntar e depois se fundir, de tal modo que
a extremidade de uma é o começo da outra. As coisas se comuni-
cam e comunicam os seus movimentos, as suas paixões e as suas
propriedades. E essa comunicação que estabelece a concordância
entre as coisas decorre do lugar, ou seja, a concordância se estabe-
lece entre coisas espacialmente próximas (a alma e o corpo, os
peixes e a água, os pássaros e o ar). Essa proximidade espacial é o
signo de um parentesco entre as coisas, que convêm umas com as
outras porque são parentes. O que acontece é que, de
proximidade em proximidade, todas as coisas se avizinham. A
última é vizinha da primeira graças a toda a cadeia de coisas vizi-
nhas. Assim, o mundo é uma cadeia contínua de concordância ou
parentesco entre as coisas. A segunda articulação é a aemulatio ou
emulação. Agora a concordância não vai mais depender da proxi-
midade espacial, pelo contrário, irá se realizar à distância, sem
contato. Por exemplo, os nossos olhos emulam as duas grandes
39
luminárias do céu, o sol e a lua. O nosso intelecto emula
o intelecto divino, as flores emulam as estrelas do céu, as estrelas
do céu emulam as flores da terra. Não há contato, apenas um espe-
lhamento, as coisas se espelham, se imitam umas as outras, sem se
tocar, de tal forma que o mundo é um espelho de milhares de espe-
lhos, uma reduplicação interminável. E a mais célebre das emula-
ções é a que o olho é a janela da alma e a alma é o espelho do
mundo. É por isso que, na pintura renascentista, os olhos de toda
criatura pintada tem uma pequena mancha branca, que é a luz
indicando a alma que está atrás desse olho. A terceira forma de
semelhança é a analogia. Agora não se trata mais de proximidade
espacial nem de imitação à distância ou de espelhamento à distân-
cia. A analogia opera com a semelhança invisível ou sutil. Por
exemplo, a planta é um animal de cabeça para baixo e o animal é
uma planta de cabeça para cima. A analogia é a semelhança mais
universal, a mais privilegiada de todas as semelhanças, porque é ela
que define o ser do homem como microcosmo. O homem é um
microcosmo porque é a analogia de todo o Universo. E, finalmente,
a quarta articulação da semelhança é a simpatia, que não precisa da
proximidade, como a concordância; do espelhamento, como a
emulação; nem da invisibilidade, como a analogia. A simpatia é o
processo de mobilidade de todas as coisas, os movimentos pelos
quais as coisas aproximam-se, tornam-se convenientes, imitam-se,
emulam-se ou entram em analogia. É, portanto, o princípio das
outras semelhanças, o que torna possível as outras semelhanças,
porque refere-se às qualidades secretas das coisas, as quais deter-
minam o deslocamento das coisas umas em direção às outras, para
se fundir umas nas outras e perder a identidade singular. Por isso, a
simpatia é perigosa, pois, se tudo funde-se com tudo, o cosmo, a
ordem do mundo, desaparece. É preciso um contrapeso para a
simpatia, que é a antipatia, a qual permite o isolamento entre as
coisas, a preservação das espécies. A antipatia é o que vai encerrar
cada espécie nela mesma, odiando todas as outras que queiram
fundir-se com ela. E é esse balanceamento simpatia-antipatia a
condição da realização da concordância, da emulação e da analo-
gia. Ora, para que as coisas possam operar, para que todos os seres
possam se reconhecer para se aproximar ou se afastar, é preciso
que todos os seres sejam signos, sinais. E o conhecimento é, por
isso, um deciframento de sinais: conhecer é decifrar e interpretar os
signos. Assim, a semelhança nas suas 4 articulações é o fundo
invisível no qual todas as coisas e suas operações tornam-se visí-
veis para nós. Mas a própria semelhança permanece invisível, é o
fundo invisível de toda essa visibilidade. E é ela que precisa ser
decifrada e interpretada, ela é a estrutura do mundo. Ora, o deci-
framento e a interpretação da semelhança é a magia natural. A
magia é essa decifração e interpretação do fundo invisível do cos-
mo. Isso significa que a magia natural vai partir de uma concepção
muito determinada do mundo ou da natureza. Em primeiro lugar,
uma vez que a semelhança opera com essas 4 articulações, é óbvio
que a natureza como tal opera sob a ação do desejo. A natureza é
desejante e desejosa. É por isso que as relações entre os seres são
relações de concórdia e discórdia, atração e repulsão, simpatia e
antipatia, harmonia e contradição, enfim, todas as maneiras como
as coisas se relacionam decorrem do fato de a natureza estar estru-
turada como desejo. Isso porque a natureza é um ser vivo. Segunda
característica da natureza: ela é sempre o resultado da conformida-
de entre a matéria e a forma de um ser e a conformidade delas,
matéria e forma, com a causa eficiente que coloca a forma na maté-
ria. É por isso que o mago, além de conhecer a matéria e a forma,
tem que saber qual é a causa eficiente. A natureza é um ser vivo,
um vivente, constituída qualitativamente de um sem número de
substâncias individuais, todas formadas a partir dos 4 elementos:
água, ar, fogo e terra. Tudo são esses 4 elementos. As coisas de-
pendem de como esses 4 elemento vão se combinar em função da
forma que irão receber. Por que a natureza é um ser vivo? Porque é
um ser animado, tem uma alma, a alma do mundo. A alma do
mundo é que determina os laços secretos entre todas as coisas. É
ela que permite que a alma do homem possa agir sobre os corpos e
dispô-los de maneiras variadas, agindo tanto direta quanto indire-
tamente (indiretamente por meio dos sonhos, da linguagem, dos
talismãs). A magia natural considera que o Universo é uma hierar-
quia de seres segundo o seu grau de perfeição (concepção neopla-
tônica), indo da luz pura, Deus, até a treva absoluta, que é a matéria
sem forma. Entre o mundo celeste e o mundo terrestre, existe um
mundo intermediário, o mundo astral, o mundo dos 7 planetas.
Esse mundo é invisível de espíritos, almas e demônios. O homem,
na condição de microcosmo, possui um corpo material (água, ar,
terra e fogo), ou corpo terrestre, e um espírito com o qual ele parti-
cipa do mundo celeste. Ocorre, entretanto, que a delicadeza do
espírito e a brutalidade da matéria (dos 4 elementos) tornaria a
relação impossível (haveria uma antipatia ontológica). O que torna
possível a reunião é o fato de o ser humano possuir também um
corpo astral, um corpo sutil, que não é o espírito nem a matéria. É
uma anima sutil, que permite não apenas que o espírito penetre no
corpo sem se machucar, isto é, que o corpo consiga receber o espí-
rito (porque vem envolvido no corpo astral), mas é esse corpo
astral que permite ao homem conhecer a natureza, porque conhecer
a natureza é conhecer a alma do mundo, o corpo astral do mundo.
É por isso que a astrologia tem o papel que tem.
Como o homem é um microcosmo, opera exatamente como
a natureza e, por isso, pode agir na natureza e sobre ela. Tem um
poder absoluto sobre a matéria e vai agir sobre ela por meio do
mundo astral, ou da magia astral, a astrologia. O que é, então, a
magia? A magia é a ciência das causas ocultas que as demais ciên-
cias não são capazes de demonstrar. É por isso que ela é A Arte, a
ciência que é condição para todas as demais. O que é o mago? O
mago é aquele que reverencia a natureza, mas que opera para acele-
rar ou desacelerar as operações naturais. Para poder agir, acelerar
ou desacelerar processos naturais, o mago precisa conhecer todas
as coisas (os 4 elementos, as 4 causas, as 4 articulações da seme-
lhança, a relação entre os vegetais, os minerais, os animais e os
astros. Por exemplo, para fazer uma poção que funcione, primeira-
mente o mago deve conhecer o temperamento do paciente; essa
poção pressupõe que ele, mago e médico, conheça quais são as
pedras, as flores, as ervas, os vegetais, os animais, os astros, os
perfumes, etc, mais adequados a esse temperamento. Nessa peque-
na poção está contida a súmula do Universo inteiro. O mago deve
conhecer todos os vínculos.) É preciso conhecer
todas as coisas para poder intervir na natureza. É por isso que se
diz que Paracelso e G. Bruno exprimem o espírito fáustico da
Renascença (referência a Fausto, de Goethe): vende-se a alma para
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o demônio se isso significar a possibilidade de infusão do conhe-
cimento completo do Universo. Paga-se qualquer preço para se ter
isso. O mago tem que conhecer o sistema completo das semelhan-
ças do Universo, de cada espécie, dos homens em geral e do indi-
víduo sobre o qual ele vai agir. É a arte operando do universal para
o particular, ao contrário da técnica, que opera do particular para o
universal.
A pergunta é: por que a magia é possível? A resposta é du-
pla: 1) porque a própria natureza é maga, ou seja, cada coisa da
natureza possui uma qualidade secreta, uma propriedade secreta e
uma potência secreta, que são mágicas. O mago apenas desvenda,
acelera ou desacelera esse segredo. A própria natureza já é magia.
A segunda resposta é 2) a magia é possível porque o espírito do
homem é mago; o homem recebeu de Deus o poder criador. Ora, o
que é a criação por parte do homem. É essa capacidade que ele tem
de transformar em coisas o que existia como pensamento e palavra.
Uma passagem da imaterialidade do pensamento e da palavra para
uma coisa é que mostra que o homem é mago, que tem a potência
criadora. Neste momento, Marilena apresenta o quadro que compa-
ra magia e técnica (ver cópia).
Diferença entre a magia natural e as técnicas: magia natu-
ral, no singular, dita a arte; as técnicas, no plural, ditas as artes. O
mago é aquele que conhece as hierarquias dos seres e os vínculos
secretos entre as coisas; o técnico, aquele que resolve problemas e
dificuldades práticas em domínios específicos da atividade huma-
na. O mago decifra a natureza, o técnico, descreve-a; o mago reve-
rencia a natureza, o técnico usa a astúcia perante a natureza. Na
arte, alguma coisa é produzida graças a conformidade entre o mo-
delo que existe no espírito do mago e as coisas, o visível, e as
ideias, o invisível. A técnica é uma lógica da invenção
cuja metáfora é a caça: penetrar em território desconhecido e agar-
rar a presa. A arte depende do conhecimento da natureza e da
cooperação dos elementos constitutivos da natureza. A técnica
depende do engenho do técnico. A arte depende da cooperação
entre o visível, os 4 elementos, e o invisível.
A técnica depende da capacidade do técnico e dos instru-
mentos disponíveis para invenção de um instrumento novo. Os
instrumentos do mago são: talismãs, poções, amuletos, números,
figuras místicas, palavras místicas. Os instrumentos do técnico são:
aparelhos de medição, ferramentas, máquinas, instrumentos de
precisão. Finalidade da magia: penetrar em um segredo da nature-
za. Finalidade da técnica: agir com eficácia para resolver um pro-
blema prático ou teórico.
Aula 07 (24-09-2012)
Contextualização histórica
(Comentários acerca do desenho na lousa, que envolve a
passagem da Renascença para a Modernidade)
No final do séc. XVI as conquistas ultramarinas, a forma-
ção dos impérios ultramar e o desenvolvimento do capitalismo
comercial ou capitalismo mercantil ou mercantilismo criou um
conjunto de exigências do ponto de vista econômico e político que
incidiram diretamente sobre as técnicas. Havia exigências da nave-
gação, da manufatura, do comércio que impulsionaram as artes
mecânicas de uma maneira muito peculiar que será o objeto do
nosso estudo em torno da Modernidade que é a articulação que se
estabelecerá entre as artes mecânicas (ou técnicas) e o conhecimen-
to científico e vice-versa. Então, no caso da navegação, a questão
da velocidade dos navios; na urbanização a construção de canais
navegáveis para receber os navios próximos das cidades para que o
comércio se desenvolvesse, a necessidade de ter uma orientação
mais segura nos oceanos porque agora não é mais uma navegação
pelos mares em que as costas são razoavelmente próximas, mas é
uma navegação por aquilo que era chamado de mar oceânico, a
imensidão, lá onde não tem caminho, então problemas de astrono-
mia, cronometria, teoria das marés, teoria dos ventos, a necessidade
da construção de relógios de precisão, por outro lado a descoberta
das minas nas Américas e depois o início do desenvolvimento de
uma manufatura vinculada à metalurgia criou uma série de proble-
mas ligados à mineração: ventilação das minas (aerostática), a
necessidade de bombas hidráulicas (hidrodinâmica), formas de
extração e transporte dos minérios, abastecimento urbano de água,
desenvolvimento para um mercado da tecelagem, da tintura, que
colocavam problemas químicos e vão provocar uma passagem da
alquimia para a quimica propriamente dita, o nascimento da cha-
mada arte da guerra mecânica, baseada na nova mecanica, nas
novas leis do movimento, que vaõ determinar a balística e constru-
ção de armas.
Há um conjunto de acontecimentos econômicos e políticos
que vão incidir sobre a questão das técnicas e essa incidência vai
exigir um tipo de operação técnica que vai articular doravante e
para sempre a técnica e a ciência. Aquilo que vimos no começo do
curso, a saber, que a idéia antiga está sistematizada em Aristoteles
e que a ciencia é contemplacao de um lado e a a técnica é experiên-
cia e aplicação de outro; isso que já a Renascença foi pondo em
questão agora se completa o processo da articulação entre a ciência
e a técnica. O segundo ponto é que apesar da célebre afirmação de
Descartes, nas Regras para a direção do espírito, e depois no Dis-
curso do Método, que a ciência é obra de um só (cada um deve
fazer sozinho o percurso completo de reflexão para realizar uma
ciência –que tem a ver com a metafísica cartesiana) tornou-se
evidente que a ciência não pode ser obra de um só. Ela vai se tornar
um empreendimento coletivo e público. O trabalho científico vai
começar a ser patrocinado pelos reis, o Estado começa a patrocinar
pesquisar científicas e o saber será pensado como saber público,
em oposição ao saber secreto das igrejas e o saber secreto dos
magos. O saber se torna uma obra coletiva e pública, [obra] de
cientistas (cientista significa filósofo. A distinção entre Filosofia e
Ciência ocorre no final do séc. XIX a partir de Auguste Comte.
Antes disso ciência é o conjunto de todos os saberes, isto é, a filo-
sofia) e técnicos de tal maneira que os laboratórios não são apenas
lugares de pesquisa, mas também lugares de colaboração e coope-
ração coletiva.
As correspondências no séc. XVII são extraordinárias –não
havia revistas, periódicos –, pois há troca ininterrupta de idéias. A
correspondência é tão essencial quanto as obras individuais de cada
pensador e os trabalhos realizados nos laboratórios; ela é o momen-
to no qual o caráter público do conhecimento melhor se manifesta.
41
A troca de correspondências não é apenas um “dar notícias de”, por
exemplo, há uma troca epistolar entre Espinosa e Boyle em que o
último apresenta ao primeiro os experimentos que ele está reali-
zando com o nitro e Espinosa examina esses experimento e os
refuta. As cartas de Descartes para Mersenne, para os geômetras do
tempo; as cartas de Hobbes para os matemáticos de (...
...), ou seja, há um conjunto de expressões
epistolares que são constitutivas das obras, não algo que se passa à
margem. A correspondência determina mudanças no pensamento
de um cientista, de um filósofo, e ele provoca essa mudança nos
outros. A idéia é: o saber circula, é público e coletivo. Isso signifi-
ca que os pontos mais altos se realizam evidentemente fora das
universidades, que são avessas a um pensamento novo (como
exemplo temos a Universidade de Pádua, onde está Galileo, o
College de France em Paris e o Society em Londres) e permanecem
vigorosamente aristotélicas. Até o instante (séc. XVII) em que
Francis Bacon consegue ser estudado nas universidades inglesas, e
no restante do continente, Descartes.
Exame da Astronomia como (lento) processo à
Modernidade
Esse quadro que desenhei representa a mutação que ocorre
da técnica em tecnologia. Tecnologia significa o objeto técnico é
produzido a partir de um conhecimento científico e ele intervém na
produção de conhecimentos científicos, não é portanto um simples
instrumento para fabricação de alguma coisa –é também, mas
principalmente – um instrumento de precisão. Essa passagem da
Renascença para a Modernidade não é um salto: sabemos que o uso
da expressão Revolução Científica e a idéia desenvolvida pelo
Michel Foucault, pelo Thomas Kuhn de que a história da ciência é
descontínua e ela se faz por ruptura não significa que a ruptura é
um salto instantâneo; a ruptura é resultado de um lento processo,
então eu sou a favor da noção de continuidade. O resultado da
continuidade vai numa direção tal que o que ela vai acumulando
nela produz uma mudança irreversível. Quero exemplificar esse
lento processo tomando como referencia a Astronomia (embora
pudéssemos usar qualquer Ciência, a Física, a Química) por razões
quase poéticas. Temos no desenho [da lousa] o modelo geocêntri-
co, cuja idéia fundamental é que a Terra está imóvel no centro e os
sete planetas que circundam a Terra (“planeta”, do grego, significa
errante) e o céu das estrelas fixas –as quais vemos, a partir do
mesmo lugar, a mesma configuração imutável de estrelas, ao con-
trário dos planetas em termos de localização, pois sua trajetória
obedece a muitas variáveis – e, finalmente, a trajetória dos planetas
é circular, pois (segundo os gregos) o círculo é a figura perfeita:
não tem começo nem fim e é a união dos opostos, é côncavo e
convexo ao mesmo tempo. Então o céu só pode ser perfeito, porque
Aristóteles já explicou, existem cinco substâncias: o ar, a água, a
terra, o fogo (materiais e corruptíveis, formam o mundo sublunar) e
o éter (substância diáfana e sutil, eterna e incorruptível). O céu é
composto de esferas nas quais os planetas ficam presos, através das
esferas diáfanas, transparentes.
Qual é o problema posto pelos errantes? Eles nunca estão
no mesmo lugar, então os astrônomos tiveram de desenvolver um
sem-número de procedimentos que culminam posteriormente na
astronomia ptolomaica de alexandria com os chamados epiciclos,
os aferentes e eferentes, isto é, um conjunto de círculos sobrepostos
e articulados uns aos outros para cada planeta para explicar a mu-
dança de lugar (de círculo) no céu.
Copérnico mantém o círculo, mas coloca, por conta dos
navegantes, o Sol no centro do sistema, ademais os errantes e o céu
das estrelas fixas. Este sistema é recusado pelo maior astrônomo
depois de Copérnico Tycho Brahe. Ele [Tycho] se mantém no
geocentrismo, mas se caracteriza por algo novo: desenvolveu uma
série de instrumentos para a medição dos astros, o cálculo do nú-
mero de astros, o cálculo do movimento dos planetas e o cálculo
dos aferentes e eferentes que permitiu a ele simplificar enorme-
mente o sistema ptolomaico. Demonstrou que há movimento dos
planetas, mas este movimento é regular se tomarmos como referên-
cia o Sol em vez da Terra. Tycho não se torna, com isso, um co-
pernicano. Kepler se dedicou muito à análise dos movimentos de
Marte, pois dentre todos os planetas aquele que tem o movimento
mais irregular e desesperador para os astrônomos é Marte. Neste
romance que lerei a vocês há toda uma suposição de que Kepler ia
ao laboratório que o rei da Dinamarca fez para Tycho Brahe vascu-
lhar os escritos de Tycho acerca dos movimentos de Marte e o
romance diz que, quando Tycho morre, Kepler rouba os papéis
com os cálculos e medições de Marte. Assim, Kepler chega a con-
clusão que não apenas é necessário manter o heliocentrismo mas,
sobretudo, que o movimento dos astros é elíptico. Tycho fez des-
cobertas que derrubaram a idéia de que a substância do céu era
incorruptível, eterna e diferente da substância sublunar ou terrestre:
descobriu uma estrela nova, fases da Lua, manchas solares e um
cometa atravessando a atmosfera de Vênus, isto é, desmanchou a
noção de perfeição do céu. Ele possuia explicações para alguns
destes casos: o evento da estrela nova que, enquanto tal pode ser
explicada como um evento excepcional, não interfere na perfeição
celeste, mas as manchas solares não puderam ser explicadas em
absoluto.
Kepler imediatamente propõe um sistema heliocêntrico e
elíptico, mas mantém fixo o limite do universo ao sistema solar –
até Nicolau de Cusa, Giordano Bruno, Galileo Galilei, Descartes,
Espinosa e Leibniz, quando se introduzirá a noção de universo
infinito. Kepler admite que deve haver um limite, pois se não o
houver o mundo é incalculável, irracional, e não poderia ser um
mundo feito por Deus, o geometra perfeito. É por razões teológicas
que Kepler exige que o universo tem um limite. Galileo e Descartes
não ousam dizer infinito, pois eles ainda estão ligados à noção
clássica, aristotélica, de infinito como infinito potencial, isto é,
aquilo que não tem começo nem fim, que não é infinito mas indefi-
nido. Giordano Bruno diz que não há nenhuma razão (causa racio-
nal) para que a natureza (universo) não seja infinita e que não haja
infinitos mundos infinitos, portanto a idéia de que há um limite é
irracional. Bruno é o primeiro a afirmar: não o limitado nem o
indefinido, mas o infinito. Mas será preciso esperar Espinosa para
que este infinito seja um infinito atual: o infinito não é o que não
tem começo nem fim, mas aquilo que existe pela necessidade de
42
sua própria essência; o infinito é, portanto, Deus. E veremos por-
que Deus é imanente ao universo que é um efeito Dele, portanto o
universo é um efeito infinito da potência infinita de Deus e esse
infinito é atual, aqui, agora, já, e essa idéia será retomada matema-
ticamente por Leibniz quando este cria o cálculo infinitesimal. É
preciso quase um século e meio para que tudo isso se desenvolva e
é esse processo, essa lenta mudança que receberá o nome –num
ponto preciso – de Modernidade.
Tycho Brahe, Kepler e Galileo: Pré-
Modernidade
(Supus o que era citação e o que não era, mas pode haver
mistura eventual dos elementos
O romance O homem que mudou o céu, de Francesco On-
garo, narra a obra e vida e Tycho Brahe e a criação do observatório
na Dinamarca. Essa história é contada por um anão que é colocado,
desde muito jovem, como empregado de Tycho carregando instru-
mentos, lavando etc. Pouco a pouco Tycho Brahe se dá conta que
Jep é promissor e deixa que ele comece a trabalhar com alguns de
seus discípulos nas medições e contagem das estrelas que era feito
por Tycho acerca dos planetas e Jep acerca das estrelas fixas.
Tycho morre, a família se dispersa, o laboratório é destruído, os
discípulos se dispersam, Jep vai embora. Depois Jep volta no anti-
go observatório que está em ruínas e recomeça a anotar o número,
a posição e o tamanho das estrelas e, certo dia, um dos discípulos
de Tycho vai ao observatório visitar Jep. O discípulo traz um pão e
um objeto estranho enrolado num pano.
“A lua havia descido, a noite estava negra. No céu, salpica-
do de estrelas, distinguia-se com clareza a via láctea, as constela-
ções deslizavam na calma deriva da abóboda celeste. Olhei para o
alto procurando a estrela para a qual deveria apontar meu triqueto
naquela noite. Até a noite anterior não havia nada no pé do setentá-
rio, mas ali eu percebi um astro de brilho incomum, seu fulgor
superava o de qualquer outro planeta (porque será precisa esperar
Galileo para dizer que planeta não tem luz própria. Aqui, no con-
texto do romance consideramos que planeta é uma estrela errante)
cintilante como um diamante, rutilava como todas as cores do arco-
íris imóvel nas proximidades de saturno e jupiter quase em conjun-
ção e bem mais luminoso que eles. Arrebatado olhei para a estrela
por instantes que pareceram eternos, imóvel como uma pedra
mantive uma única dúvida. Uma estrela nova. Num céu flamejante
pareceu penetrar naminha mente, fogo e luz riscavam a esfera do
meu céu eterno. Eu também, assim como Tycho havia encontrado a
minha estrela. Preparei um instrumento para medir sua posição, eu
tremia, custei a apontar o braço móvel. Talvez aquilo fosse um
sinal divino, um fio esticado que me ligava a meu protetor, como-
vi-me profundamente. O céu me sussurrava que o caminho que eu
havia tomado estava certo”
(Aí vem o amigo italiano.) Eles conversam: “Montano não
respondeu a minha pergunta, cerrou os olhos como que para des-
cansar as pálpebras no último dia do calor.
– Estou cansado, ele diz, da viagem, dos anos. É possível
se cansar também dos anos que recebemos do destino? O último
raio de luz desapareceu atrás do horizonte, a sombra da noite como
se fermentasse nas folhages sacudida pelo vento engoliu a costa –
levantei e me disse – Eu queria rever esses lugares e depois espera-
va encontrá-lo. Perguntei como sabia que eu estava aqui. –Para
onde mais poderia ter ido?
Atravessamos a casa dirigidos à cozinha. Através dos anos
as minhas frágeis forças não souberam impedir a ruína. Parte da
cobertura da biblioteca e do observatório meridional haviam desa-
bado. (... ...), como vê, está muito diferente do que era
antigamente, eu disse. Na lembrança é igual. Onde hoje qualquer
um só consegue ver desolação nós dois vemos a vida que há no (...
...). Cabe a nós manter vivo o passado. Fiz com
que ele se sentasse perto do fogo apagado. Eu havia fabricado para
mim uma mesa e um par de bancos.
–Posso lhe oferecer algo para comer? – servi-lhe uma tijela
de verduras refogadas ainda quente. Comeu devagar, em silêncio,
os olhos fixos na fuligem que cobria os tijolos do fogão. Quando
tinha quase terminado me perguntou:
–O que você fez em todos esses anos?
–O catálogo das estrelas, respondi. Agora são mais de mil,
está tudo escrito aqui, até a estrela nova, que apareceu no céu
poucos meses depois da minha chegada à ilha – Montano pegou
meu trabalho e o estudou. –Ainda está incompleto, eu disse.
-Até que ponto você quer ir?
-Quero catalogar todas as estrelas visíveis – Um suspiro es-
capou de seus lábios. Me devolveu as folhas e me olhando fixa-
mente me disse devagar: -Muitas coisas aconteceram nestes anos,
novas descobertas apontaram caminhos desconhecidos, a Astrono-
mia não é mais aquela de Tycho, se renovou como ele desejava.
Kepler demonstrou matematicamente utilizando observações de
Marte que os planetas se movem em torno do Sol seguindo uma
trajetória elíptica e não circular, e também explicou a razão das
diferentes velocidades dos planetas em seus percursos sem usar os
equantes (aferentes e eferentes), mas simplesmente levando em
consideração a área varrida pela linha da conjunção Sol-planeta.”
Uma trajetória elíptica? – Sim, a elipse, como já havia ex-
plicado Apolônio, é uma curva que se obtém interceptando um
cone com um plano não perpendicular ao seu eixo e que não passe
pela sua base. Kepler a reconstruiu ponto por ponto usando as
observações de Tycho.
Da interpretação ptolomaica e aristotélica não resta muito.
Poucos a defendem. (00:42:57) Despertou muito reboliço a obra de
um italiano chamado Galileo, que aperfeiçoou o instrumento de um
flamengo, instrumento tal que aproxima os objetos muito distantes
e teve uma intuição genial ao apontar este instrumento para o céu e
ver o que nenhum outro homem antes viu: os montes e canais
lunares, quatro novas luas em torno de Júpiter, as fases de Vênus e
uma das provas a favor do sistema copernicano. Empalideci e
quase balbuciando consegui dizer: -Meu Deus, até você se tornou
copernicano!
43
-O que você precisa completar? – pergunta Montano
-Já te disse: um catálogo com todas as estrelas que se vêem
no céu. Todas. E quando ficar pronto o enviarei a você. Você me
ajudará a vê-lo impresso? – juntou as mãos atrás das costas e não
respondeu. Eu desejava acompanhar Montano ao embarque, mas
ele não quis que eu descesse ao porto. Nós nos despedimos na
aldeia. Ele parecia me evitar, permanecia ao meu lado, quieto.
Depois tirou da bolsa um objeto envolvido em alguns pedaços de
pano. – Pegue, me disse, é uma cópia exata do perspicillum de
Galileo. Fiquei na dúvida por um bom tempo. Depois que me
contou do seu trabalho eu pensei em não o dar a você, pois você
vai usá-lo apontando para o céu e daí vai tirar só desapontamentos.
Mas depois fiquei convencido e por mais dolorosa que seja você
tem direito de saber a verdade. Você é um filho de Tycho Brahe
como eu. – Jep passa dias rodeando a luneta.
Os primeiros clarões da manhã me encontravam agarrado
com as duas mãos ao corpo do perspicillum exausto. Acompanhei
as fases de Vênus que se distribuiam ordenadamente durante as
inovações do astro em torno do Sol e os planetas que Galileo havia
nomeado medicianos se alternarem em torno do imenso volume de
Júpiter. Eu me vi desabando dentro de um precipício transparente,
arremessado no vazio da visão que se tinha desdobrado diante de
mim. Se as previsões de Copérnico estavam corretas as dimensões
do universo eram muito maiores que qualquer cálculo aceitável
racionalmente. As paredes reconfortantes do universo de Tycho
tinham sido escancaradas deixando nas garras do nada. Ingênuo,
arrogante, eu pretendera catalogar o que não era catalogável, o que
representava um pálido reflexo da misteriosa vontade divina e não
a sua humana interpretação. Montano achava que eu tinha o direito
de saber a verdade, mas a verdade tinha um gosto que empastava a
boca e que apagava para sempre todo o sentido e toda a esperança
da minha vida. (Ele viu o infinito.) Na virada de uma noite abando-
nei a observação do céu e oprimido pela frustração e com os olhos
cegos de lágrimas parti o perspicillum em mil pedaços. Depois
peguei meu colchão de palha, deixei a cozinha e me retirei para o
subterrâneo onde tinha sido o laboratório de alquimia. As bocas
vazias dos fornos me acolheram em um negro risinho de sua deso-
lação. Abandonei o céu para me arrastar no ventre da terra como se
as sombras representassem a única proteção que me restava. Arran-
jei-me o melhor que pude. Uma vez mais na minha vida eu me
encontrava recomeçando de um monte de restos.
Ele viu um céu que não tinha fim e faz a seguinte pergunta:
(se vocês olharem esses três mundos antes disso aqui ficar (...
...) é muito fácil entender porque a história da
filosofia até Giordano Bruno e depois até Espinosa puderam con-
ceber a transcendência de Deus ao mundo, à Natureza.) onde está
Deus? Por detrás da curvatura imperceptível da esfera das estrelas
fixas pronto para nos acudir, nos punir, pronto para nos conceder
suas palavras de advertência, agora, ao contrário em que lugar o
exilaram? Existe um Deus adequado para este universo infinito?
Devemos inventar um outro, substituí-lo por um número, por uma
nova substância? O mundo assim como eu aprendi não existe mais.
Uma luz irreverente invadiu a cena rarefazendo a sombra em que
se alinhava o mistério. No fundo, até Tycho Brahe procurava por
isso. Pagamos um preço justo? Era isso que ele aspirava? E essa
pergunta vocês reencontrarão no famoso pensamento de Pascal, “o
silêncio desses espaços infinitos me apavora”, porque agora não
sabemos mais onde Deus está, porque no infinito o centro está em
toda parte. E só foi capaz de enfrentar isso quem pensou a imanên-
cia de Deus ao universo: Bruno e Espinosa. Aqui (no modelo geo-
cêntrico, referente aos mundos lunar e supralunar) há lugar para a
transcendência, mas quando o universo se torna infinito não há
lugar para Ele, pois ou Ele está em toda parte ou não está em lugar
algum. É isso o início da Modernidade, que se inicia quando o
infinito é descoberto.
Pesquisas de Kepler
Agora, então, já que eu insisti que é um processo lento, vou
tomar hoje dois filósofos que fazem essa transição da Renascença
para a Modernidade. Primeiro vou tratar de Kepler, eminente as-
trônomo e astrólogo, qual a maneira que ele vai se relacionar com a
astrologia e de sua crítica da astrologia; depois Francis Bacon.
Kepler narra uma fábula, um sonho, no qual visita a lua e
pelo qual ele defende o copernicanismo.
Em 1602 Kepler publica uma espécie de almanaque no sen-
tido clássico (Não é do tempo de vocês, mas antigamente na Liber-
dade havia um lugar chamado o Trabalho do Pensamento [?] que
tem tudo, as fases da lua, horóscopos, as marés, avisos aos nave-
gantes, aos tecelões, tem histórias etc. Na origem almanaque é uma
palavra árabe, o primeiro almanaque foi feito por um matemático
judeu para produção de horóscopos. Ele faz um horóscopo para mil
anos. E essa idéia, do almanaque como estudo do ano vinculado à
astrologia e ao horóscopo se consagrou) que se chama Sobre o
fundamento preciso da Astrologia, no qual Kepler apresenta três
razões para que os fenômenos terrestres possam ser previstos por
meio dos fenômenos celestes: razões provenientes da causalidade
natural física, psíquica e a razão divina ou providencial. Kepler
mantém a idéia tradicional de que há duas luminárias no céu, o Sol
e a Lua; mantém também a idéia de que o Sol é masculino, quente
e seco, a Lua é feminina, fria e úmida, e mantendo a oposição entre
os quatro elementos (quente, frio, seco, úmido) e mantendo a opo-
sição entre feminino e masculino ele mantém as figuras tradicio-
nais dos planetas ou sete governadores (Vênus é feminina, Marte é
masculino, Saturno é maléfico), mas Kepler não se satisfaz com
essas descrições dos astros. Ele quer saber quais as razões físicas
para que estes astros se apresentem com essas qualidades, ou seja,
porque o Sol é quente e seco, a Lua é fria e úmida etc. Ele dirá que,
quando a luz celeste chega à Terra por meio do Sol, as leis da ótica
mostram que essa luz incide diretamente sobre a Terra e é por isso
que causa calor e secura; a luz da Lua, ao contrário –de acordo com
as leis da ótica – , é uma luz indireta, refletida, que chega portanto
indiretamente à Terra, fraca, e por isso, úmida e fria.
Kepler buscou um encadeamento racional de causas que
possam explicar a influência material dos astros sobre a Terra e
sobre os seres humanos, ou seja, ele eliminou o mistério dessa
influência do céu sobre os seres terrestres encontrando numa ciên-
cia, na ótica, a explicação do modo de relação destes astros com a
44
Terra. Por isso Kepler, astrólogo, é moderno, porque ele não se
satisfaz com a descrição e o mistério; ele quer a explicação causal
por meio de leis científicas, típico de um moderno. Operação seme-
lhante pode ser notada quando ele vai procurar não as causas dos
efeitos materias do céu sobre a Terra, mas as causas dos efeitos
psíquicos dos astros, isto é, na Astrologia a influência dos astros
sobre a alma humana é explicada não apenas pelas qualidades que
cada astro possui, mas também pela posição que ele ocupa e a sua
relação com outros astros que possam ter qualidade semelhantes às
suas, em relação de simpatia com elas, ou opostas às suas, em
relação de antipatia. Portanto, essas qualidades mais a posição mais
a articulação entre os planetas forma figuras chamadas aspectos. A
Terra, Natureza possui uma alma, um ser vivo, animada, prova
disso é o período de gestação e parto dos vulcões, nos minerais que
brotam do solo, na vivificação das plantas, então a Terra é mãe.
Todos compartilham da alma do mundo. Então a influência dos
astros incide sobre todas as coisas, as marés, o comportamento
humano. O estudo dos aspectos é muito importante porque eles
podem ser benéficos ou maléficos; eles permitem prever o tempo
(metereologia), colheitas, guerras, quedas ou ascenção de impérios,
nascimentos, pode-se fazer tudo isso a partir do estudo dos astros.
Kepler quer saber como matematicamente se pode explicar
porque os aspectos (configurações) dos astros atuam sobre as al-
mas. Ele diz que a recepção e a percepção da luz de cada astro
pelas almas dos seres se dá de maneira inconsciente. Essas luzes
chegam incessantemente sobre as almas dos seres, nós a recebe-
mos, mas não as percebemos diretamente, apenas [percebemos]
seus efeitos. Os aspectos exercem influência sobre as almas das
coisas e sobre a alma humana porque eles não são senão a maneira
pela qual em termos matemáticos e óticos a luz de cada astro inci-
de, se reflete ou refrata em cada uma das coisas. Portanto o que
Kepler faz é afirmar que há uma razão, uma causa racional que
pode explicar o por que da influência dos astros sobre os seres
terrestres. E é possível dizer que a Terra se emociona quando há
uma conjunção dos planetas superiores, ela se emociona num
eclipse, na passagem de um cometa, a Terra treme, chora chuvas
torrenciais, maremotos, e isto que se passa com a Terra se passa
também em cada ser natural e com a alma dos homens. Então a
pergunta é “por que isso é possível?”. Kepler fará uma série de
cálculos geométricos acerca das configurações e ele vai dizer que
só são significativas para a alma da Terra e para as almas dos ho-
mens as configurações dos astros que formam polígonos regulares
(Kepler propõe um modelo de poliedros encaixados uns dentro dos
outros). Sempre que o aspecto formado pela conjunção (qualidades
do astro, posição dele, articulação com o outro) astral, sempre que
houver esse encontro e for determinada a posição destes astros e as
qualidades que eles possuem, se isso formar um polígono regular
eu posso calcular matematica e opticamente a incidência da sua luz
na Terra. Todas as outras formas que forem irregulares não são
significativas e devem ser deixadas de lado. Novamente em busca
de uma explicação racional para um acontecimento que é astrológi-
co, afastando o caráter misterioso deste acontecimento e o trans-
forma num acontecimento racionamente compreensível. Por isso
ele é um moderno.
Num ensaio sobre Kepler, de Gerard Simon, no capítulo
chamado “A Astrologia no séc. XVI” o comentário de Simon sobre
Kepler é o seguinte: “Kepler reinterpretou as velhas técnicas astro-
lógicas tentando encontrar para elas um fundamento natural. Para
aquilo que é decifrado antes dele como signos ele procura explicar
pelas causas (o pensamento renascentista opera com signos, seme-
lhança, sinais. Kepler passará da noção de sinal para a noção de
causa; do conhecimento como hermenêutica para o conhecimento
como causalidade. A modernidade vai acontecendo nessa mutação
no interior de uma disciplina que é uma das mais clássicas da
renascença), as propriedades das luzes, das luminárias, dos plane-
tas, a grandeza angular dos aspectos, e ao fazer isso embora con-
servando a influência da tradição entretanto faz com que ela perca
seu mistério.” Resta explicar os fenômenos terrestres que escapam
da regularidade: surgimento de cometas, surgimento de uma estrela
nova. A Bíblia narra acontecimentos excepcionais, a parada do Sol
para que Josué possa ganhar a batalha, narra o surgimento de uma
estrela nova que guiará os reis magos até Belém. Os seguidores de
Aristóteles nunca contestaram que esses acontecimentos pudessem
se dar, mas eles não os consideravam acontecimento astronômicos,
mas metereológicos, coisas que aconteciam no nível do clima, por
conta dos ventos, da chuva, da neve, de tal modo que nossa percep-
ção terrestre era de algo novo e inusitado no céu, mas na verdade
era porque entre o céu e a Terra se interpôs uma camada de aconte-
cimentos metereológicos ou atmosféricos, por isso nós tínhamos a
ilusão de estar diante de acontecimentos astrológicos de fato.
Kepler vai seguir nesse ponto Copérnico e Tycho Brahe:
não são fenômenos metereológicos, mas astronômicos e excepcio-
nais, irregulares, e do ponto de visto astrológico, são os mais im-
portantes porque eclipses e cometas significam guerras gigantescas,
ascenção de imperadores, os grandes acontecimentos políticos.
Descartes, durante a infância, no Colégio de LaFléche, (01:16:45)
presencia a passagem de um cometa. Tudo que se escreveu acerca
desse cometa, a doença de Luís XIII, a ascenção de Luís XIV, tudo
isso foi o cometa, a ponto que Belle, no final do séc. XVII escreve
um tratado sobre os cometas para desmanchar as superstições em
torno dos cometas. Estes acontecimentos irregulares, excepcionais
eram os astrologicamente os mais importantes, então era preciso
dar uma explicação para eles. É preciso dizer qual é a causa natural
desses acontecimentos. Kepler como um bom europeu cristão
protestante recua: “são acontecimentos astronômicos, manifestação
da vontade providencial e insondável de Deus. Não é possível
explicá-los por causas naturais, só pode explicar quem recebeu de
Deus um dom para interpretar esse sinal, é o dom da profecia.”
Então os profetas recebem de Deus uma inteligência especial que
lhes permite decifrar o sentido desses acontecimentos excepcionais.
Ora, o que Kepler está fazendo ao dar esse recuo? Ele está estabe-
lecendo a diferença entre conhecimento científico e conhecimento
revelado. No ato mesmo do recuo ele estabelece uma distinção
claramente moderna, que é a distinção entre revelação e ciência.
Ele não diz que possui o dom da profecia e é capaz de explicar os
acontecimentos astronômicos excepcionais, mas diz que tais fenô-
menos não pertencem ao campo da ciência, pertencem ao campo da
religião; isso é moderno.
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A modernidade de Kepler aparece na crítica que ele vai fa-
zer à concepção tradicional do zodíaco. Vocês sabem que além das
propriedades atribuidas aos planetas, conforme sejam masculinos
ou femininos, representem este ou aquele dos quatro elementos, e
além dos aspectos, isto é, das figuras que formam em conjunção
com outros ou por suas oposições, os astrólogos também conside-
ravam que a influência de cada planeta poderia aumentar ou dimi-
nuir dependendo da posição ocupada por ele no zodíaco (zodíaco é
aquele cinturão que corresponderia à via láctea onde estão fixadas
as constelações), isto é, qual é a casa zodiacal que o planeta ocupa.
Os planetas vão variar sua influência pelas suas propriedades,
aspectos e casa zodiacal. Como são sete planetas as casas zodiacais
são distribuidas uma para o Sol, uma para a Lua e duas casas para
cada um dos outros cinco governadores. Quando um planeta ocupa
a casa do signo que lhe pertence, então ele é predominante, são
suas qualidades e aspectos vão exercer sua influência sobre al-
guém, um animal ou sobre algum acontecimento político; ele é
dominante quando está na sua casa. Quando um planeta está na
casa que pertence ao outro, ele é governado por este outro, por isso
sua influência é mediada pela influência do signo cuja casa ele está.
Combinadas as propriedades dos planetas, seus aspectos e configu-
rações num dado momento e a sua posição zodiacal pode-se prever
o que acontecerá na Terra, o que acontecerá com alguém, ou seja,
as propriedades, os aspectos e as posições zodiacais são signos que
o astrólogo decifra e interpreta de acordo com as quatro grandes
articulações da semelhança: analogia, conveniência, simpatia,
antipatia.
Kepler fará a crítica dessa astrologia: não há nenhum moti-
vo racional para a divisão do zodíaco em doze partes, tampouco
para o nome destas partes ou signos (crítica da arbitrariedade, pois
poderiam ser dez ou nove casas). É um astrólogo moderno, usa os
critérios próprios dos modernos para refutar a astrologia zodiacal,
mas mantém as outras duas formas da astrologia. O que o exemplo
do Kepler nos dá é que haverá uma mutação que é fruto de um
processo lento e contínuo.
Francis Bacon: idéias gerais
(Farei um apanhado dos principais pontos pelos quais eu
quero marcar o Bacon também como uma transição em direção à
modernidade)
Bacon conservará três legados da magia natural renascen-
tista: 1) o ideal da ciência como uma potência ativa para modificar
a situação do homem e da natureza; 2) mantém a definição (expli-
citamente no começo do Novum Organum) do homem como “mi-
nistro e intérprete da natureza”, não como de homem animal racio-
nal; 3) a Natureza é organismo vivo, vivente, constituído por for-
mas secretas que precisam ser desvendadas, o conhecimento é
desvendamento das formas secretas da Natureza. Esse tríplice
legado da magia natural explica alguns dos principais temas da
filosofia baconiana: primeiro: todos os corpos são dotados de
percepção que lhes permite escolher a relação com outro corpo e
essa percepção precede todo operação que o corpo realizará.
Segundo: existe entre todos os seres um vínculo de caráter
universal que se manifesta como potência de atração ou potência de
repulsão.
Terceiro: há em todos os corpos um princípio de vida e nu-
trição, assim como de dissolução e de corrupção.
Quarto: a natureza é feita de formas em movimento, isto é,
os seres naturais são todos apetite e inclinação. A Natureza possui
um princípio interno de transformação segundo leis fixas e deter-
minadas que vão determinar suas alterações e a instabilidade da
suas permanências. A Natureza é movimento ininterrupto.
Quinto: a Natureza ama esconder-se, ou seja, a Natureza é
constituída por estruturas ou formas escondidas que homem só
poderá alcançar por meio do conhecimento experimental. Os expe-
rimentos permitem alcançar as formas secretas da Natureza por
meio do conhecimento daquilo que Bacon chama de naturezas
simples, que são como um alfabeto da Natureza, deve ser lido indo
do múltiplo ao simples –a Natureza sempre se coloca como uma
complexidade –, do indefinido em direção ao definido, da compo-
sição à decomposição, ou seja, deve-se fazer na Natureza como se
faz na gramática, por isso Bacon diz “encontrar o alfabeto”. Isso
significa que a Natureza deve ser conhecida analiticamente. O que
são as naturezas simples, esse alfabeto? A cor, o peso, a dutilidade,
a solidez e fluidez. (A hora que Descartes e Galileo aparecerem
tudo isso desaparecerá e será chamado de quarteto [? 01:37:25]
secundário.) Essas qualidades ou naturezas simples devem ser
graduadas e reunidas para formar uma outra natureza com base no
conhecimento nos elementos constantes e universais da Natureza.
Então para que esse procedimento analítico para chegar às nature-
zas simples ou a essas propriedades mínimas que todo ser possui?
Porque se eu as conhecer eu as posso compor de outras maneiras e
produzir naturezas novas (que era o que a magia natural queria
fazer). Bacon dispunha de meios científicos e experimentais para
fazer isso [produzir naturezas novas], não é necessário ficar na
caverna do mago fazendo isso. Esta é uma peculiaridade interes-
sante que vai explicar por que Bacon escreve a Nova Atlântida, na
qual a casa de Salomão tem como função fazer com que as pesqui-
sas nos permitam criar novas naturezas, criar aquilo que a Natureza
não cria (anacronicamente, é o genoma). No caso da Nova Atlânti-
da, se o cientista conhecer as propriedades simples do peixe de
água salgada e do peixe de água doce ele será capaz de recombinar
essas propriedades e terá, com isso, peixes que sobrevivem em
ambos os ambientes.
Sexto: a Natureza existe de três maneiras: natura libera (na-
tureza livre que, por sua própria potência, engendra as espécies e as
coisas naturais), natura vaga (natureza errante, que está submetida
à revolta e corrupção da matéria, é a natureza quando se desgover-
na e produz monstros), natura vexata et constricta (natureza ator-
mentada e jugulada pelo homem, submetida pela arte e pela técni-
ca, pelo ministério humano para produzir coisas artificiais de modo
que é a Natureza alterada pelo homem por meio da técnica para
produzir o que é útil ao homem.
Sétimo: visto que a Natureza é movimento, a ação do ho-
mem sobre ela só será eficaz se for pelo movimento. Por isso Ba-
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con diz que a técnica consiste no movimento de juntar ou separar
corpos e esse é o único poder que o homem tem sobre a Natureza,
pois o restante a Natureza faz por si mesma. Se o homem só pode
agir sobre a Natureza aproximando ou afastando os corpos naturais
onde ele não puder juntar ou separar o homem não terá nenhum
poder. Ora, se a natureza é movimento e a técnica é movimento,
Bacon vai dizer que a técnica é apenas um prolongamento da ação
da natureza sob condução do homem. A técnica não rompe, não
difere, mas prolonga a natureza sob condução humana. É por isso
que o terceiro aforismo do Novum Organum diz que o homem só
pode dominar a natureza se ele começar por obedecê-la.
Oitavo: Bacon escreve uma história das técnicas que é um
capítulo da história das ciências. Isso é uma novidade radical com
relação à tradição, pois agora para exercer a técnica é preciso ter o
saber científico. Porque a técnica só pode operar se agir sobre as
formas, isto é, sobre as estruturas secretas da natureza e se conhe-
cer as naturezas simples, portanto sem as ciências e sem a experi-
mentação científica a técnica não pode se realizar plenamente. A
idéia fundamental é que na medida em que a técnica é aquilo que
vem do conhecimento científico de tal maneira que é possível
atormentar e dominar a natureza por meio dos experimentos para
que ela ofereça o seu alfabeto e a técnica possa refazer as palavras,
fazer outra língua com aquele alfabeto, isso significa que não só a
técnica depende da ciência (porque depende do conhecimento da
natureza) mas significa também que a técnica é uma maneira de
manipular a natureza prolongando a atividade da natureza numa
direção que a natureza ela mesma não realizaria. A técnica é o
homem acrescentado à natureza; não é mais mimesis, não é mais
imitação, mas intervenção nela.
Essa idéia do Bacon aparece numa obra praticamente con-
temporânea escrita por um italiano, Giovanni Ciampoli, que escre-
ve o seguinte no livro que se chama Do corpo humano: “não há
alimento mais comum do que o pão, mas bom Deus, quantos traba-
lhos são necessários para que o trigo seja atormentado antes que o
possamos utilizar sob a forma do pão que nos conserva. E o infeliz
trigo, depois de tão grande martírio, tem a glória de fazer esse pão
e reduzido sob essa forma preserva nossa saúde e a vida. Entretan-
do, se o comêssemos tal como a natureza o fez, com suas belas
espigas e arestas, com as quais está por assim dizer armado, ele nos
daria doenças e a morte”. A natureza fornece o material, se eu o
tomar como natureza livre grandes catástrofes podem acontecer;
para que eu possa operar sobre a natureza e colocá-la a meu serviço
eu preciso atormentá-la. O tormento da natureza é o experimento,
ou seja, provocar a natureza para que ela produza efeitos que natu-
ralmente ela não produziria, forçá-la para direções para as quais ela
não iria. O modelo baconiano das ciências e das técnicas (agora
inseparáveis) é triplo e lembra as heranças da magia natural.
O primeiro modelo é a jardinagem, aquilo que ele chama
de a geórgica (do poema de Virgílio que são dedicados à agricultu-
ra). O agente (cientista) nesse modelo é o artesão jardineiro, inter-
fere no movimento natural, irrigando ou drenando o solo, aduban-
do, semeando, podando, enxerta, desloca lacustres para montanhas,
espécies de beira-mar para desertos, ergue estufas, varia o solo para
uma mesma espécie etc. O jardineiro é um transportador como a
abelha, por isso não há diferença entre o mel natural da abelha e o
açúcar artificial que o jardineiro fabrica. Então o homem intervém
na natureza no modelo da jardinagem como aquele que realiza uma
operação, a antecipação do tempo. O técnico opera como alguém
que fizesse nascer rosas em março ou crescer uvas maduras, obras
que não são contrárias, não estão acima da natureza, mas fazem eco
à própria natureza quando o técnico é capaz de escutar a voz da
natureza. Bacon dirá que ele pode violentar a natureza porque ele
sabe abraçá-la. O modelo da jardinagem a técnica acelera ou atrasa
o processo natural (ou o tempo).
O segundo modelo vem da alquimia, da purificação. A téc-
nica vai operar com aquilo que é o núcleo da natureza, o lugar onde
a vida natural se dá, que é o calor. A técnica opera com o calor
natural que é princípio do movimento e da vida e a maneira do
alquimista com seus alambiques o que o técnico usa é a natureza
como fornalha; ele não faz fornalhas para agir. Ele toma a natureza
como uma imensa fornalha que é capaz de purgar e despurgar seus
próprios elementos de tal modo que a função do técnico é fazer
com que a natureza seja capaz de se livrar de todas as matérias que
são prejudiciais, putrefatas, corrompidas, para que ela possa operar
sozinha e bem. Se no modelo da jardinagem se trata de antecipar o
tempo, no modelo da purificação se trata de misturar ou separar,
inocular e enxertar no interior da própria natureza.
O terceiro modelo vem de Vesálio, ou melhor, da anatomia
tal como ela foi proposta por Vesálio. A tarefa do cientista e do
técnico é conhecer as articulações ocultas entre as partes das coisas
e as articulações secretas das partes de uma coisa com as partes de
outra coisa de tal maneira que o técnico possa fabricar novas arti-
culações e produzir coisas novas. Nos três modelos é possível
perceber a tarefa da técnica: fazer vir ao mundo aquilo que a natu-
reza sozinha não é capaz de fazer acontecer. Não há diferença de
essência entre a técnica e a natureza, a técnica é simplesmente a
natureza prolongada, melhorada, benéfica, mais produtiva. Essa é a
imagem extremamente otimista que o Bacon tem da técnica. Nós
ainda não temos aqui aquele elemento pelo qual já entramos na
tecnologia. Alguns autores atribuem o advento da tecnologia ao
Bacon. Eu acho que é muito cedo. Está tudo pronto, mas quem dá o
passo à modernidade é Galileo. Da mesma maneira que Kepler
opera sobre os dados da Renascença, mudando a maneira de lidar
com esses dados Bacon toma toda a herança da magia natural e
refaz essa herança numa forma nova. Faz a modernidade surgir de
uma reformulação da magia natural.
Aula 08 (08-10-2012)
A minha proposta hoje é acompanhar em alguns textos do
Bacon aquele conjunto de ideias dele sobre a natureza e sobre a
técnica, que eu apresentei na aula anterior,e examinar um pouco os
três grandes modelos da técnica: o da jardinagem, o da alquimia e o
da anatomia, para depois, fazer a passagem efetivamente os mo-
dernos, tomando como principal referência Descartes e Liebniz,
evidentemente, com o pressuposto deles que é Galileu.
Eu vou mencionar, aqui, de início, alguns aforismos No-
vum Organum, de Bacon. Porque estes aforismos nos permitem
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entender melhor esta curiosa definição que Bacon propôs para a
técnica ou arte: é o homem acrescentado à natureza; então, é a
primeira vez que se rompe a noção de mimeses (da técnica como
imitação da natureza) e vai se pensar, por enquanto, como um
acréscimo, aquilo que o homem acrescenta à natureza. Nós vamos
ver que o passo seguinte, passo moderno propriamente dito, não é
mais aquilo que o homem acrescenta à natureza, mas é a mudança
que o homem opera na natureza. A técnica como uma transforma-
ção da natureza pelo homem. Então, na tradição,aproveitamento da
natureza pela técnica, a técnica imita o que natureza faz. No instan-
te intermediário, renascentista, e com expressão mais clara em
Bacon, a técnica é, na verdade, a presença do homem na natureza,
homem como um agente sobre a natureza e, finalmente, o instante
moderno, a mutação (depois de 25 séculos, a grande mutação) que
é: técnica é a transformação da natureza pelo homem, portanto,
uma intervenção que o homem faz natureza para alterá-la. Isto
preparado pela concepção baconiana, mas vai ultrapassar a concep-
ção baconiana. O primeiro aforismo, do Novum Organum, diz: "O
homem, o ministro de e intérprete da natureza, faz ele entende
tanto quanto constata pela observação dos fatos, ou pelo trabalho
da mente, sobre a ordem da natureza. Não sabe, nem pode, mais do
que isso". O primeiro ponto importante é a maneira como o homem
apresentável. O homem é apresentado como ministro e como intér-
prete. Ministro significa... Bacon usa uma expressão que tem a sua
origem em Cícero, quando este distingue entre: ministerium e
magisterium, a partir dos dois comparativos latinos (minus = me-
nos magis = mais). Entre, portanto,ministerium e magisterium ou
entre aquele que é o administrador de algo que é maior do que ele,
ele é menor de que aquilo que ele cuida e o magister, o mestre, o
senhor, aquele que a maior do que aquilo que ele cuida, ele é supe-
rior àquilo que ele cuida. O que faz Bacon? Bacon define o homem
como ministro da natureza, portanto, como inferior à natureza. Ele
é aquele que administra a natureza. Mas ele não é só o administra-
dor da natureza, ele é também o intérprete. De Bacon limita o
poder do homem a esta administração e esta interpretação, ou seja,
o que o homem sabe e o que ele faz depende de tudo aquilo que ele
pode conhecer ou constatar por meio da observação dos fatos ou
pelo trabalho do entendimento, seja pela experiência (observação
constatação dos fatos), seja por teoria (elaboração de ciência teóri-
ca), seja por esse caminho ou pelo outro e, de preferência, pela
combinação de experiência e teoria, é que o homem pode adminis-
trar e interpretar a natureza. O homem não pode mais do que isso.
Por que é esta restrição? O que visado por Bacon quando ele esta-
belece uma restrição ao dizer "isto é tudo que o homem sabe, isto é
tudo que o homem pode"? Ele não sabe mais do que isso, não pode
mais do que isto. É crítica de Bacon à tendência renascentista de
que o homem pode mais do que a própria natureza. Lembrem-se, a
ideia de Giordano Bureau, Agripa, de que o homem é capaz criar
novos mundos. O que Bacon está dizendo: não! O homem é capaz
de administrar este mundo ao qual ele foi ele foi dado, e que ele
pode conhecer este mundo, mas ele não pode mais do que isto.
Ocorre que o quarto aforismo, diz: "No trabalho com a na-
tureza, o homem não pode mais do que unir e apartar corpos, o
restante realiza-o a própria natureza em si mesma". O primeiro
aforismo de o quarto aforismo estabelecem limites para o homem.
O que o homem pode fazer? Ele pode conhecer a natureza, consta-
tando ou elaborando teorias. E elepode agir da natureza. Esta ação
é uma ação na qual ele pode, ou reunir corpos, ou afastar corpos.
Isso é o que ele pode fazer sobre a natureza. Então, o que é apre-
sentado, por Bacon, é extremamente modesto, "o que o homem
pode e o que ele não pode", sobretudo, porque ele vai dizer, no
caso o que o homem pode fazer, ele diz: a natureza faz sozinha
todo o restante. Ora, isso é muito estranho, este aforismo 1 e o
aforismo 4 são muito estranhos se nós levarmos em conta o que é
dito entre um e outro, ou seja, os dois aforismos mais conhecidos
do Bacon. Aqueles pelos quais quando se vai falar em Francis
Bacon é com estes dois outros aforismos que se começa. O aforis-
mo dois diz: "Nem a mão nua, nem o intelecto, deixados a si mes-
mos logram muito. Todos os feitos se cumprem com instrumentos
e recursos auxiliares de que dependem, em igual medida, tanto o
intelecto quanto as mãos. Assim como os instrumentos mecânicos
regulam e ampliam o movimento das mãos, os da mente aguçam o
intelecto que o precavem".
O que o aforismo 2 diz é que: o homem contra uma série
de recursos auxiliares pelos quais ele pode ampliar o poder das
mãos e ampliar o poder do intelecto. O aforismo 1 diz: o homem só
pode o que os seus olhos constatarem que o que é a sua mente
puder pensar. Portanto, o que a experiência lhe ensinar e a teoria
lhe comprovar. Mas o 2 diz: este poder (da experiência, portanto, o
poder das mãos) do conhecimento (e portanto, o poder do intelecto)
podem ser ampliados. O homem pode encontrar instrumentos pelos
quais ele amplia estas duas únicas coisas que ele pode. Ele pode
constatar e ele pode conhecer. Ele só pode fazer isto, não pode
mais. Só que só isto que ele pode, agora, o aforismo 2 dá a enten-
der que isto pode ser enormemente aumentado, se o homem tiver
instrumentos adequados para fazer isso. E a comparação imediata
que seria impensável num texto antigo é a comparação com os
instrumentos mecânicos. Assim como os instrumentos mecânicos
ampliam o poder das mãos, assim também os instrumentos intelec-
tuais vão poder aumentar o poder da mente. O instrumento intelec-
tual é o Novum Organum, é a proposta de um novo método para o
instrumento. Ele vai ser o grande instrumento de que vai ser ofere-
cido ao conhecimento; e, para as mãos, vão ser as técnicas.
Mas o aforismo 3 vai ainda mais longe, ele diz: "O saber e
poder do homem coincidem, uma vez que sendo a causa ignorada,
frustra-se o efeito, pois a natureza não se vence senão quando se
lhe obedece. E o que a contemplação apresenta-se como causa é a
regra na prática. Este aforismo que é, sem dúvida, o mais conheci-
do ("Saber é poder ") é apresentado... Nós vamos ver já, já uma
série de elementos muito importantes que vão ser colocados aqui,
mas este terceiro aforismo introduz a noção de causalidade, a exi-
gência de que o conhecimento seja o conhecimento causal e que
você só tem poder sobre a natureza se você começar por obedecê-
la. A ideia, portanto, é de que é pela obediência à natureza que
você exercerá poder sobre ela.
Estes quatro primeiros aforismos.... (e eu vou, daqui a
pouquinho, deter um pouco mais no terceiro) dependem desta
afirmação que é feita no primeiro e no quarto de que na natureza e
a única coisa que acontece é "ad movere" e "amovere", ou seja, na
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natureza reúne e separa, reúne e separa, corta, e esta é a única ação
que o homem pode fazer: reunir e separar corpos. A ação do ho-
mem sobre a natureza paraaí. Ora, isso significa, o verbo "ad mo-
vere" e "amovere"derivados de "movere": a natureza é movimento.
É isto que ela é. A natureza é um movimento que ela possui, por
ela mesma, força para criar e mudar as coisas, ou seja, a natureza
cria e modifica as formas secretas que constituem a estrutura das
coisas. E isto significa que a natureza é este movimento criador das
formas das coisas e transformador das formas das coisas, a nature-
za é: vida. E deste ponto de vista, Bacon que é um grande filólogo,
respeita o significado latino da palavra "natureza". Natura se deriva
do verbo depoente, sempre conjugado na voz passiva, que é o
verbo "nascor", que é a nascer e "dar nascimento a". Natura signi-
fica aquilo que nasce ou aquilo que tem o poder de "dar nascimento
a alguma coisa". Natura significa a ação de fazer vir à existência. E
é por isto, então, que a natureza é vida. Ela é fonte de vida,causa de
vida e ela própria, no seu conjunto, é exercício de vida.
Bacon vai dizer que a natureza é feminina. Ela é feminina,
isto é, ela é fecunda, ela age de dentro de si mesma para engendrar
todos os seres. E ela existe (como eu disse a vocês na aula passada)
em três grandes estados: a natureza libera (livre), que é a natureza
no seu estado normal, engendrado as coisas (as formas das coisas),
as espécies naturais; a natureza vaga (ou errante) que é submetida à
corrupção e aos desvios e desordens que são próprios da matéria, a
natureza quando ela engendra os monstros; e a terceira forma da
natureza existir é a natureza constrita (ou a natureza jugulada,
controlada, dominada) pelo ministério humano, isto é, pela arte,
pela técnica.
Então, a natureza é uma fêmea e ela pede o macho que a
ajude a orientar os seus movimentos. Deixada a si própria, ela faz
pouco, ela é quase que "preguiçosa", no mínimo. E, sobretudo,
deixada a si mesma, ela corre o risco de produzir delírios, mons-
tros. Ela precisa, portanto, de um agente másculo que possa contro-
lá-la, dominá-la, orientá-la, isto é, jugulá-la. Este a gente é o ho-
mem, através da técnica. E é este o sentido da definição baconiana
da técnica, a técnica é: o homem acrescentado à natureza. É por
isto que a técnica não é mais imitação da natureza, mas é a inter-
venção do homem sobre a natureza. Ora, isso significa que, pela
primeira vez, é que não há diferença de essência entre as coisas
naturais e as coisas artificiais; ou entre as coisas produzidas espon-
taneamente pela natureza e as coisas produzidas pela natureza sob
orientação do poder da técnica. Por que? Porque a natureza é mo-
vimento: o movimento de unir e separar corpos. E a técnica é exa-
tamente isto. E é o que aparece no quarto aforismo em que diz: o
homem só pode reunir ou separar corpos. Ou seja, ele só pode fazer
o que a própria natureza faz. Só que agora ele vai fazer isso com
uma série de critérios, finalidades, determinações, orientações, que
a natureza sozinha não teria. Então, é a primeira vez, no pensamen-
to e na prática ocidentais, que o produto da técnica e o produto da
natureza, são iguais, são de mesma essência.
O que faz ficar claro ou porquê de Bacon dizer: o homem
só pode fazer isto e não pode fazer mais do que isto. Só que isto
que, aparentemente, era uma enorme limitação, Bacon e diz: o
homem pode só isto, não pode mais do que isto! Mas esta limitação
é dizer: o homem pode o que a natureza pode! E, portanto, é um
poder imenso que o homem tem. Então, sob a aparência de limitar
o poder do homem no quarto aforismo, o que Bacon preparou foi a
afirmação que o homem tem, praticamente, o poder ilimitado,
desde que a operação da técnica seja igualzinha a operação da
natureza, reunir e separar corpos, não mais do que isto.
Agora, fica claro porque o terceiro aforismo vai exigir que
o homem primeiro obedeça à natureza porque só com esta obediên-
cia ele poderá dominá-la. Obedecer à natureza significa: conhecer
as formas secretas que a natureza produz e conhecer os movimen-
tos que a natureza realiza. A partir do momento em que eu conheço
as formas e os movimentos e eu posso alterá-los. O homem tem,
portanto, o poder sobre a natureza quando ele conhece o que ela é
e, portanto, ele se submete ao que ela é; mas é justamente o porquê
ele se submete e sabe o que ela é ele pode alterar aquilo que ela é.
Ele não pode fazer que a natureza deixe de ser o movimento, não
pode fazer que a natureza deixe de ser em vida, não pode fazer que
a natureza seja produção de formas, de estrutura das coisas: isso
não vai acontecer. Mas, ele pode alterar inteiramente a maneira
como a natureza opera nos seus movimentos e na produção das
formas. E é por isto que ele terá poder sobre ela.
É para este poder sobre ela que ele precisa jugular a nature-
za, é preciso que ela esteja no seu terceiro estado: a natureza cons-
trita, isto é, atormentada. E este tormento é o laboratório. Então,
daqui por diante o laboratório se torna o lugar no qual a natureza
deve ser atormentada para que, depois de conhecida, possa ser
alterada pelo homem.
"Dando ao homem o lugar de um intermediário entre a na-
tureza (as leis naturais) e a natureza (as coisas artificiais, porque as
coisas naturais e as coisas artificiais são naturais, todas elas; é tudo
unificação o separação de corpos em movimento), a função do
homem é ser um mediador entre as coisas naturalmente produzidas
pela natureza e as coisas artificialmente produzidas pela natureza.
E é isto que significa o homem ser ministro. Ele é ministro da
natureza porque ele é o intermediário entre duas capacidades que a
natureza sozinha tem, mas que sozinha ela não exerce, ela precisa
do homem para exercer; e que era a de realizar sempre, de maneira,
a operação natural de engendramento de formas e de realizar sem-
pre, de melhor maneira desejada pelo homem, a produção das
formas artificiais. A natureza é, portanto, sempre trabalho: o traba-
lho de produzir ou as formas espontâneas, ou as formas impostas
pelo ministro, pelo administrador). Ou seja, nós estamos em plena
concepção capitalista do que seja a natureza. A natureza não é mais
a grande mãe, embora ela seja pensada como vida, ela é um labora-
tório inesgotável para a ação do homem. É isto que ela é.
Isto torna compreensível porque o primeiro grande modelo
da técnica é a jardinagem; porque o técnico pensado como um
jardineiro. É porque o primeiro modelo grande é o do homem
interferindo no movimento que naturalmente a natureza realiza.
Ele: irriga e drena o solo, aduba, semeia, poda, enxerta, transplanta,
desloca espécies lacustres para montanhas, espécies montanhosas
para regiões de lagos, aquilo que de beira-rio para beira-mar, o que
é de beira-mar para beira-rio, o que é de beira-rio e de beira-mar
para desertos, o que é de desertos para de rios e de mares; ele ergue
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em estufas, constrói herbários, protege do sol ou expõe aos raios
solares, protegido vento ou expõe ao ar, varia os solos para uma
mesma espécie ou coloca diferentes espécies em um mesmo solo, e
assim por diante.... Isto tudo um jardineiro faz ele é isto que um
técnico faz. Um técnico é aquele que opera exatamente à maneira
de um jardineiro: ele vai simplesmente operar sobre operações que
a natureza realiza mas que ela não realizaria sozinha, e alterar o
curso dela, seja por mudança de ritmo, seja por mudança de lugar,
e assim por diante.... Mudança de condições. Então, Bacon vai
dizer: o jardineiro é um transportador como a abelha, não há dife-
rença de essência entre o mel natural que a abelha produz que o
açúcar artificial que o técnico fabrica. Esse primeiro procedimento
vai, entretanto, pedir um complemento. Bacon vai mostrar que o
procedimento da jardinagem, que é uma continuação do procedi-
mento natural da natureza, pede uma acréscimo que acompanhe
também um outro procedimento natural da natureza, mas que seja
capaz de intervir também aí. Este outro procedimento que natural-
mente a natureza realiza é aquele que tem como modelo, no plano
da técnica, a alquimia. Então, além da jardinagem, a alquimia. Por
quê? A natureza é vida, movimento vital, porque ela é um calor
natural. Bacon vai manter uma ideia que vai estar presente em
Descartes, vai estar presente em Liebniz, vai estar presente prati-
camente até o século 19, que uma ideia de origem hipocrática,
galênica e aristotélica que é articular vida e calor; a fonte da vida e
o calor. E é por isso que o coração tem o lugar que tem nas tradi-
ções médicas. Que eu vou ver isto daqui a pouquinho, vocês vão
ver, na hora em que Harvey faz uma revolução porque ele descobre
a circulação do sangue e mantém a ideia do calor. E quando Des-
cartes vem para refutar Harvey e também propor uma outra teoria a
respeito da circulação do sangue, ele mantém a ideia do calor
natural. Vida significa: calor interno natural. Então, "a natureza é
vida" significa: a natureza é um calor interno natural, ela é uma
fornalha natural, ela era um alambique natural. Ora, o que faz o
alquimista? Por meio das fornalhas, por meio dos alambiques? Ele
faz um esforço para purificar a natureza, para purgar e expurgar a
natureza de todos aqueles elementos que são contrários à a verda-
deira essência de uma coisa natural. Tanto que o alquimista espera-
va deste processo extremo de purificação poder transformar todos
os metais em ouro. A explicação não era uma coisa misteriosa, um
mistério alucinado; você tem esta pluralidade de metais por causa
das misturas, são as impurezas; se você purificar todos os mentais,
tudo vira ouro; o procedimento, portanto, era o da purgação e da
purificação. Então, Bacon propõe que o segundo elemento impor-
tante na técnica, e que vem se acrescentar à técnica como ação de
jardinagem, é a agora a técnica como ação de purificação, purga-
ção,expurgo das formas naturais. O que o técnico faz liberar a
natureza de tudo aquilo que atrapalha seu desenvolvimento, seu
crescimento, sua plenitude de vida. O técnico, portanto, ajuda a
natureza a se realizar melhor ainda.
A estes dois modelos da técnica vai se acrescentar um ter-
ceiro. Este agora vem diretamente dos procedimentos da medicina,
em particular, da anatomia e da fisiologia. Ou seja, é preciso disse-
car as coisas naturais para encontrar sob elas a sua forma secreta. A
dissecção [a dissecção na área da anatomia humana é o ato de
explorar o corpo humano através de cortes que possibilitam a
visualização anatômica dos órgãos de regiões que existem no corpo
humano e assim possibilitar o seu estudos] e a vivessecção [ato de
dissecar um animal vivo com o propósito de realizar estudos de
natureza anatomo-fisiológica] são fundamentais como operações
técnicas de desvendamento daquilo que está em segredo na nature-
za.
Desta maneira, embora Bacon conserve muito do vocabu-
lário renascentista, ainda fale em simpatia, antipatia, falem ainda
empregando termos da medicina alquímica, usando termos da
astrologia; apesar de haver todo este conjunto conceitual e vocabu-
lar de tipo renascentista, o que ele está apresentando (e neste ponto,
se separando da renascença) é uma concepção inteiramente artifici-
alista da natureza; ou seja, em um primeiro momento, o que a gente
viu é que não há diferença entre a natureza e a arte. A parte faz o
que a natureza faz. O procedimento seguinte, quando você aplica a
jardinagem, a alquimia e a anatomia (portanto, o como você aplica
os procedimentos técnicos sobre a natureza e você a depura ao seu
ponto máximo e descobre seus constituintes mínimos sobre os
quais você poderá alterar, você inverte e você vai mostrar que, em
última instância, a natureza, ela própria, não difere em nada de uma
operação de tipo técnico). Então, em primeiro instante eu olho a
natureza e digo: se eu quiser agir sobre ela, eu tenho pensar uma
técnica que esteja em acordo com as operações naturais. Depois, eu
descubro que a natureza costumam se esconder, que é preciso
decifrá-la, interpretá-la, que quem faz isto é o laboratório onde a
natureza é atormentada para que ela possa mostrar as suas formas.
Esta amostragem é união e separação à maneira do jardineiro;
purificação e depuração, à maneira do alquimista; e chegada aos
elementos simples, mínimos de combinação, como no anatomista.
Ora, quando eu chego neste ponto, eu não posso estabelecer ne-
nhuma diferença de ciência entre o modo de ação da natureza e o
modo de ação da técnica. Eu começo dizendo que a técnica é o
homem acrescentado à natureza para concluir que não há diferença
entre natureza e arte. Que, portanto, a natureza é, ela própria, um
enorme artifício; natureza é: um objeto técnico!
Podemos, então, resumir a posição do Bacon a partir de
uma obra que ficou inédita (que não foi concluída, também, por
ele) chamada Sylvasylvarum (A Floresta Das Florestas) que preten-
dia ser uma enciclopédia universal das ciências e das técnicas, em
que Bacon pretendia reunir uma única história, apresentar uma
história universal da natureza e das artes. Então, nós estamos acos-
tumados: "História da natureza", "História natural", "História das
artes", "História da ação humana". O que este movimento (pelo
qual o eu procurei mostrar a vocês, que a natureza se transformou,
a partir de Bacon, num enorme artefato técnico) permite Bacon
imaginar uma história universal do saber que História Da Ciência,
História Da Natureza e História Das Técnicas: uma história só. Isto
é o que ele pretende fazer neste livro e, embora o livro não tenha
sido concluído, o que ele apresenta cinco pontos que foram decisi-
vos para a formação do pensamento moderno. Primeiro: todos os
corpos são dotados de percepção, mesmo os inorgânicos; e é esta
percepção que permite a um corpo estabelecer relações com outros
corpos e realizar as operações que ele realiza. Além de todo corpo
ser uma percepção, em todos os corpos há o apetite ou a inclinação,
isto é, uma força interna de atração ou de repulsão do movimento.
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Terceiro: todos os animais e todos os homens são dotados de fanta-
sia, isto é, de imaginação como um conjunto de imagens sensoriais
que vão determinar as operações dos seus corpos. Em quarto lugar:
há em todos os corpos um princípio de vida e de nutrição que
garantem a manutenção do corpo, mas também um princípio de
dissolução e corrupção que explica a morte. E em quinto lugar: a
ação do homem que é apenas um prolongamento da ação da natu-
reza. E aquilo que o vulgo toma por milagre e mistério é apenas
obra natural feita pelo homem, porque o homem consegue anteci-
par o tempo, prolongar o tempo e alterar o tempoda natureza. Eu-
leio o que devo escreve: "O homem intervêm na e sobre a natureza
como uma antecipação do tempo, como alguém que fizesse nascer
com rosas em março ou crescer uvas maduras, o obras que não são
contrárias à natureza nem se encontram acima ou fora da natureza,
pois na arte adere ao natural, faz-lhe eco, porque lhe escuta a voz
que lhe responde, podemos violentar a natureza porque sabeabraçá-
la. Acelerar ou retardar o movimento natural, isto é, antecipar ou
atrasar o tempo, eis a ação da técnica, verdadeiro ministério, como
do verdadeiro médico, que violenta a natureza para que esta possa
agir plenamente sozinho".
Então, tem neste admirável mundo novo, trazido pelo capi-
talismo, que a natureza e finalmente se transforma neste laboratório
inesgotável como se estivesse desde sempre predisposta a todas as
ações que os seres humanos queiram realizar sobre ela, desde que
eles primeiro tenham tido o cuidado em conhecê-la. Ora, nós va-
mos encontrar em contraponto ao jardineiro baconiano, ao modelo
de jardim de Bacon, um outro jardim. Um outro jardim praticamen-
te contemporânea ao jardim inglês proposto por Bacon, mas que é
um jardim à francesa. O modelo de jardim proposto por Bacon (o
famoso jardim inglês, que é vigente até hoje; lá na Inglaterra esta é
uma das joias da coroa, mostrar o jardim) é da seguinte maneira:
você entra, tem um gramado.... Eu tenho um amigo, que foi passar
um fim-de-semana na casa de um lorde inglês... e aí, estão lá senta-
dos, tomando o chá das cinco,... aquelegramado... e aí, este meu
amigo virou para lorde... "Isto é uma beleza, né? Como vocês
fazem ficar assim?" e aí o lorde disse para ele: "Muito simples.
Durante 500 anos, você corta e volta... corta e volta... cota de vol-
ta... e fica assim!". Então, você tem o gramado (este gramado que
você leva 500 anos para fazer), em seguida ao gramado vem jar-
dim, isto é, uma certa distribuição de flores e de plantas, mas, ao
fundo, deve ser mantida a lembrança do que é natureza se o homem
não fizer nem o gramado nem o jardim.... e que é a floresta, não
tem um bosque (tem o Robin Hood lá... no bosque). Agora, este
bosque é um bosque baconiano; isto significa o seguinte: ele é
cultivado para parecer selvagem, que ele não é aquilo o que a
natureza, atabalhoadamente, vai fazendo; não! É para lembrar que
a natureza pode fazer estas coisas, mas a melhor maneira de lem-
brar que a natureza pode ficar de enlouquecida em fazer as coisas
crescerem tudo fora do lugar e tudo fora de ordem, é fazendo isto
você mesmo. Você controla o bosque, você escolhe o que vai ser
implantado, onde vai podar, o que é mais para cima ou mais para
baixo, ou seja, o bosque inteiramente artificial. E ele é, na sua
artificialidade, total: a imagem que um baconiano tem da natureza.
Isto é um jardim à inglesa. O jardim àinglesa é, portanto, o domínio
da entrada pelo gramado, domínio da percepção e da beleza pelo
jardim e o aviso de todo o poder que você tem que exercer sobre a
natureza no bosque que ficou... (?).... Agora, nós temos um outro
tipo de jardim, que é um jardim à francesa. Normalmente, e a gente
usa a referência Versailles como o caso típico, mas Versailles é um
dentre muitos dos casos do jardim francês. O que Versailles tem, o
que há de paradigmático no caso do jardim de Versailles é que nele
se torna legível aquilo que será ideia moderna da técnica a partir
da Contrarreforma e da monarquia sua luta. Se a gente toma o
modo como Bacon concebeu a técnica... vocês recebem? É sempre
o homem trabalhado; e trabalha daqui, jardinagem de lá... é a ideia
protestante de que o trabalho dignifica homem. Então, a técnica é
pensada como trabalho. Quando você passa para o modelo francês
(e que vai depois estar presente na Espanha, na Alemanha)... quan-
do você passa pelo modelo da Contrarreforma, portanto, modelo
católico, romano da técnica, o modelo da técnica não é o trabalho,
o modelo da técnica é o poder absoluto. E é por isso que o caso de
Versailles é o caso exemplar, porque ele é a expressão máxima do
poder de Luís XIV. Por que? Que poder é este? É transformar o
natural em algo inteiramente artificial e fazer com que o artifício
que criou este objeto artificial, que este artifício, apareça como
natural. Este artifício que vai aparecer como natural é o poder do
monarca absoluto. É ele quem tem poder de artificializar a natureza
de ponta a ponta.
Um dos engenheiros que escrevi depois um dos famosos
guias do jardim universalis... porque, os jardins franceses, e em
particular, o jardim de Versailles, tem esta peculiaridade de preci-
sar de guia. Hoje para nós isto é a coisa mais simples do mundo,
porque todo mundo está acostumado a viajar e a levar o guia. Eu
acho que o mais interessante é o turista norte-americano, porque
ele leva guia, as máquinas (o turista japonês também faz isto),
então ele vai, ele se hospeda em um hotel norte-americano (ou em
um hotel japonês), ele come a comida americana ou comida japo-
nesa, convive com os americanos e japoneses, que estão lá no
ônibus junto com ele... e aí ele: clica clicaclicaclica; quando ele
chegar em casa, ele vai mostrar e aí ele vai viajar; ele viaja na hora
em que ele chega em casa. Por que a viagem são os objetos artifici-
ais que ele produziu no correr das suas andanças. Ele não viaja, ele
não tem como viajar. Ele tem um conjunto de objetos técnicos que
o protegem do risco de viajar, de tal modo que ele possa depois
tranquilamente viajar, em casa (ficar em casa para viajar). Ora,
para este tipo de turista, em que nós nos mas formamos (porque a
estupidez é universal), falar que o jardim de Versailles precisava de
um guia vir a bobagem. Agora, tentem pensar no século XVII um
sujeito que vai da Córsega para Versailles que chega lá e vê um
treco jamais visto, não é só o que tem aquela forma geométrica e
aquele jardim que não acaba nunca. Por causa de todos estes obje-
tos que têm neste jardim ele vai encontrar fontes que cantam, nin-
fas que dançam, cenas de Homero que se realizam, batalhas entre
os titãs, entre os deuses, vai haver mudanças... é uma coisa inacre-
ditável que ele vai ver! Isso sem que ele veja um único operário,
um único indivíduo mexendo em todas aquelas coisas; um seja, ele
vai fazer experiência alucinante dos autômatos. É isso que ele vai
ver. E o guia é um guia... você sabem: a famosa obra de Descartes,
que tem a gente considera que e no muro pensamento moderno,
que são As Regras Para A Direção Do Espírito. Eu costumo dizer
51
que os primeiros guias de Versailles são "As regras para a direção
do olhar". Quer dizer, o guia ensina você a olhar o jardim. Porque
se você não souber o olhar jardim, você não vai entender o que o
jardim é. Ou seja, o jardim é o poder de Luís XIV de criar um
mundo a partir do nada. É isto que a técnica visa.
Então, um dos autores, um dos engenheiros, que é autor de
um guia, diz o seguinte: "Pode-se dizer que Versailles é um lugar
onde a arte trabalha sozinha e que a natureza e parece haver aban-
donado para dar ocasião ao rei de aí fazer aparecer uma espécie de
criação, em várias obras magníficas e uma infinidade de coisas
extraordinárias". Então, o jardim é apresentado como sendo da
ordem do magnífico e do extraordinário; e é o local onde a arte
trabalha sozinha que a natureza... foi embora.... A natureza foi
embora e deixou por conta da técnica tudo! Este texto é exemplar
porque, agora, eu não tenho mais a noção de que a natureza está ali
e é uma técnica que trabalha na natureza. Então, não,a ideia é: a
natureza não precisa da natureza mais, nós não precisamos dela; ela
pode ir embora, porque a técnica faz sozinha tudo! Isto é o jardim,
este é como o jardim. Ou seja, o jardim de Versaillesexige um guia.
Porque o guia está encarregado de impedir que o visitante se perca;
ele tem que guiar os passos e o olhar do espectadordando a ele
regras para olhar e regras para andar, ou seja, o guia não é uma
descrição, o guia é um conjunto normativo, ele é um conjunto de
regras e de normas para o espectador do jardim saber em que e
lugar ele deve se colocar, dali para onde o ele deve olhar, o que ele
vai ver, o que significa isso que ele está vendo, ou seja, ele recebe
uma explicação completa do objeto do qual ele está. Por quê?
Porque este objeto é um objeto técnico em estado puro, não sobrou
nada que o olhar do visitante pudesse identificar... "Ah, lá na minha
terra é assim também" ou "Ah, que bonita aquela árvore, com
aquela flor...". Não sobrou nada que se possa identificar como algo
que é comum à natureza. Os indivíduos estão postos diante do
artifício levado a suas últimasconsequências. É técnica pura. Nós
podemos dizer que a função do guia é oferecer.... Agora eu vou
parodiar o título da obra de Descartes: "Oferecer regras certas e
fáceis para a direção do olhar". "Oferecendo-lhe a ordem e a medi-
da dos objetos e dos lugares para que ele possa experimentar (por-
que esta é função principal do guia) uma quantidade inumerável de
sensações e de sentimentos que jamais experimentados por ele".
Então, não é só que ele vai ver o que nunca viu, ele vai sentir o que
ele nunca sentiu.
Ora, o guia tem a peculiaridade (quando você lê o guia) de
apresentar esta artificialidade total como se isto fosse a natureza,
isto é, os objetos que estão ali, o modo como eles estão dispostos,
os recursos que o espectador é convidado a fazer, são de tal nature-
za que o que o visitante do jardim tem que experimentar é a repre-
sentação unívoca do poder do rei como poder absoluto para domi-
nar de substituir a natureza. Então, a função do guia é fazer com
que, ao visitar aquilo que nós consideraríamos aquilo que há de
mais natural. Que pode haver de mais natural que no jardim? Em
um jardim, a natureza impera. Ora, ao fazer, o viajante, o especta-
dor, o visitante do jardim, que era a experiência do jardim como
aquilo que é produzido por um ato da vontade do rei, o que o jar-
dim deve produzir no visitante é a experiência da desnaturação e da
invenção de uma outra natureza por força do poder do rei. Portanto,
a natureza não é senão o artifício que o poder artificial do rei cria.
Há uma inversão do percurso e lá no final do percurso a natureza é
uma invenção do rei.
Os guias se demoram sobre as águas, já que há rios, ria-
chos, pontes, lagos, tudo o que você possa imaginar no jardim. Os
guias levam a páginas e páginas falando sobre as águas, sobre a
fluidez das águas. E o fato de que isso que parece indominável, que
é esta coisa fluida de solta no mundo, é sobre isso que aparece o
primeiro exercício de poder técnico, que é a transformação desta
fluidez líquida, a fluidez aquática, em lagos, fontes, remansos, ou
seja, o aprisionamento e o recondicionamento deste elemento
natural em algo inteiramente artificial. Mas que é artificial sob a
forma do natural; um lago é natural, um riacho é natural, um rio
énatural, uma fonte é natural. É sob o aspecto da máxima naturali-
dade que você tem a máxima artificialidade. E é por isso que o guia
o enfatiza, já que você está diante de uma operação extraordinária
pela qual a natureza se desnaturalizou e os objetos técnicos que
foram colocados são objetos naturais. Não há, portanto, nenhuma
distinção possível entre arte e natureza.
Um outro autor de guia,... (?)..., escreve o seguinte: "Po-
demos dizer que o vosso príncipe se apraz em fazer com que arte
ultrapasse e embeleze a natureza em toda parte. Para ele (o prínci-
pe), não é problema mudar os lagos de lugar, a mesma água que faz
tantos outros milagres em outras partes do jardim, com as fontes,
os remansos, retorna pacificamente de onde veio e parece tão mo-
desta e tranquilo quanto antes. Deve se felicitar a essas máquinas
que acionam as fontes por deixarem os riachos em seus leitos, tanto
é verdade que arte sabe presentemente ultrapassar a natureza". E a
introdução deste elemento, o que é mais importante aqui, são as
máquinas que estão fazendo isto. As máquinas, que ninguém vê,
estão todas escondidas. É um espanto... daqui a pouco vou citar um
texto de Descartes sobre isto. O visitante vem andando, de repente,
ele dá de cara com uma sereia e um fauno que estão dançando, e
jogam água de um para outro, e esta queda d'água faz na forma de
uma melodia, e desta melodias saem passarinhos voando. Imagina
tudo isso no século XVII: ninguém vê de onde tudo isso apareceu!
Há uma brutal acontecimento, isto é, um conjunto fantástica de
autômatos dançando, cantando, produzindo mil e um efeitos, e não
há nada que você possa ver e dizer: "Ah, é por isso!". Não tem, não
tem! Eu penso... são essas coisas que nunca mais pode acontecer
com ninguém, infelizmente o tempo não volta para trás. Eu imagi-
no que a experiência de um visitante de um jardim deste no século
XVII deixaria no chinelo qualquer videogame. É uma experiência e
inacreditável porque você não tem distância, você está imerso na
máquina, você está dentro dela. Um jardim (e é isto que eu quero
dizer agora para vocês, é isto que eu quero desenvolver), o jardim
de Versailles é a expressão acabada da máquina perfeita: é isto que
foi produzido. Foi produzida uma máquina perfeita e ela é perfeita
porque ela é constituída de autômatos invisíveis, cujo funciona-
mento é inteiramente visível e porque não sobrou mais nada que
você possa chamar de natural. No entanto, todo este artifício (nós
vamos ver) é natural; há uma certa concepção do que seja natureza
que vai fazer estes artifícios, toda essa maquinaria, ser perfeitamen-
te natural. Que é o que o guia dizia, não há? "A arte sabe, presen-
temente, ultrapassar a natureza".
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Então, para nós termos uma ideia do que vai acontecer
agora com a técnica e o que significa, portanto, o advento da má-
quina efetivamente. Porque agora nós vamos entrar no mundo da
máquina, não é mais no mundo de instrumentos técnicos, nós
vamos entrar num mundo onde os instrumentos técnicos vão estar
inseparavelmente ligados a um outro tipo de objeto técnico que é a
máquina. Nós estamos num momento de emergência do maquinis-
mo.
Para termos um quadro do que é neste momento, eu vou
ler uma passagem de um texto de Gerand Simon, que está na bibli-
ografia de vocês, no capítulo As Máquinas No Século XVII: Usos,
tipologia, ressonâncias simbólicas, que está no livro Sciencesetsa-
voirsau XVI et XVII siècles. Neste capítulo, o autor escreve o se-
guinte: "Para compreender o trabalho de imaginação suscitado
pelas máquinas no século XVII é importante lembrar o que era
designado sobre esta palavra máquina, que tipos de objetos e de
engenhos aí estavam classificados e o que podia sugerir o espetácu-
lo do seu uso e do seu funcionamento. Entende-se for máquina nos
anos 1650 toda invenção engenhosa produzindo, graças a meios
combinados, um efeito esperado. A palavra permanece próxima do
seu sentido etimológico (máquinas, lembram? Estratagema; o
primeiro sentido desta palavra que nós vimos) que agrupa três
acepções amplas que devemos a distinguir: primeiro, a palavra
designa, de início, um engenho articulado ou não, que vai da má-
quinas simples, como a alavanca ou a polia, até a arma de fogo e o
veículo e cuja causa motriz pode ser indiferentemente água, o
vento, o animal ou o homem. Um navio, um canhão, uma carrua-
gem, se colocam, assim, na mesma categoria de um relógio, um
jato d'água ou um moinho". Este é o primeiro sentido da máquina.
"... em segundo lugar, designa-se pelo termo máquina uma maqui-
naria, uma combinação de máquinas, várias delas frequentemente
complexas. Os usos que são feitos dela são muito variados". Desde
o início, da... (?)..., quando você fecha o pântano? Drenagem...
desde a drenagem dos pântanos da Holanda, a hidráulica fez gran-
des progressos e suscita muitos trabalhos de prestígio; assim, por
exemplo, a famosa máquina de Marly agrupava 259 bombas repar-
tidas em três andares para elevar, com um grande ruído, água do
Senna até os castelos de Marly e de Versalhes para alimentar os
seus jardins, as suas fontes, as suas ninfas e os seus... (?).... Mas o
sentido primeiro, sem dúvida mais fundamental, é o de maquina-
ção... máquina, né? Máquina, maquinação, astúcia... a noção de
que, seja na sua acepção material seja na sua acepção simbólica,
ela implica sempre a noção de artifício que põe em movimento
molas escondidas da natureza ou do natural para chegar ao fim
procurado. Longe de evocar o fantasma de um mundo desumano,
porque contra a natureza, a máquina suscita, antes, o mito de uma
natureza inteiramente humanizada porque domesticada e domina-
da. A máquina é sempre, e em todos os sentidos da palavra, um
produto da técnica. Ela resulta, de início, de um trabalho do artesão
que se estima que se aprecia. No ateliê ou na manufatura, cada
corpo de ofício intervêm, toura tour (um por vez), com todo seu
savoir fair (tato, a habilidade de comportar-se e falar apropriada-
mente
em qualquer situação). No começo do seu diálogo sobre as
duas novas ciências, de 1638, Galileu se descreve flanando com
seus amigos no arsenal de Veneza. Ele ama, ele lhes diz, afirma
aqui passear, dirigindo-se aos artesãos que aliam necessariamente a
maior habilidade de juízo e juízo, o mais penetrante. Ele gosta de
conversar com os artesãos para discutir sobre as observações que
seus predecessores lhes negaram que aquelas que eles próprios
fizeram. É deles, diz Galileu, que ele tira a sua melhor informação.
É com eles que ele se interroga sobre a razão de ser de certos para-
doxos mecânicos. Quando ele toma os exemplos das máquinas, ele
pensa naturalmente ou num navio, ou num relógio, elas relevam de
domínios nos quais as técnicas do tempo e iam até o máximo delas
próprias. Nunca tinha havido cuidado tão grande para terminar
obras tão difíceis de realizar como os navios de guerra, os objetos
de relojoaria, que eram absurdamente decorados. Hoje em dia estas
indústrias produzem os engenhos em séries, identificados pelos
seus modelos. Mesmo os nossos navios, ainda que construídos um
por um, e dotados de nome próprio, se situam numa classe definida
por um protótipo. No século XVII, porém, cada máquina é singular
e destinada a um uso singular; ela é frequentemente comandada de
antemão pelo futuro utilizador que define as características pelas
quais ele vai pagar muito caro. Obra de fabricação corrente, a
máquina é enfeitada para honrar o seu autor e seu possuidor. Ela é
uma obra-prima no momento da sua realização, quando ela é com-
plexa ou luxuosa e sempre destinada aos grandes, ela é magnifica-
da por um cenário que a transforma em uma obra de arte. Um
sentimento mais corrente que a máquina inspira é o da admiração.
Ao mesmo tempo diante da engenhosidade que ela pressupõe e dos
efeitos surpreendentes que ela produz por si mesma, ela é sempre
uma curiosidade e um espetáculo e frequentemente ela é produtora
de espetáculos. As máquinas mais custosas não estão destinadas a
usos artesanais ou industriais, a maior parte delas serve para entre-
ter nas casas dos príncipes e dos reis para produzir a experiência
permanente do maravilhoso (são os jardins). Uma das funções da
máquina, a mais frequentemente apontada, é a de prolongar de
imitar a natureza, dando corpo aos artifícios e aos simulacros;
graças a ela, que já é uma astúcia, se faz agora uma astúcia dupli-
cada em ilusão. A máquina empurra sempre para mais longe a
fronteira do verossímil, porque ela conferiu ao imaginário visibili-
dade; ela torna o estatuto da visibilidade equívoco, embaçado e a
ancora na vida, fazendo crer muito pouco naquilo que se vê". É a
abertura do Discurso Do Método. Dá para entender porque que
Descartes começa o Discurso do jeito que ele começa..... "Instru-
mento por excelência do maravilhoso, a máquina faz melhor do
que representar os sons, ela os alimenta de ela o faz muito além da
arte do espetáculo; ela se torna o espetáculo do cotidiano e o coti-
diano como puro espetáculo".
Então, este é... vamos dizer... o mundo no qual a máquina
faz a sua aparição inicial. Ora, embora ela faça esta aparição inicial
e embora num contexto que nós vimos quando estudamos os gre-
gos, quando estudamos os medievais e mesmo quando estudamos a
renascença, que é um certo desprezo pela máquina enquanto produ-
tora de espanto, de maravilha, de surpresa e de mistério; agora, ela
está inserida num outro espaço político, econômico-político, no
qual a produção do maravilhoso, do misterioso, da duplicidade da
percepção (você não sabe se está vendo ou não, você não sabe se
estão ouvindo ou não); ou seja, deste modo de tornar o conjunto da
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percepção altamente duvidoso e, ao mesmo tempo, estranhamente
assombroso, é próprio do mundo das monarquias absolutas de é
próprio do mundo capitalista em expansão. Então, nós não vamos
ter a repetição tradicional do desprezo por essas máquinas formi-
dáveis e pelo o autômato, ao contrário, isto vai ser objeto de refle-
xão, objeto de pensamento e de elaboração, que vai desembocar na
grande mutação moderna que é o nascimento da tecnologia. E é
isto que nós vamos ver agora. Porque a tecnologia nasce.
Eu vou ler... [um aluno pergunta qual a diferença entre
técnica e ciência]. É isso que nós vamos ver agora, disso que nós
vamos falar. Por enquanto o que você tem é a parte são clássica,
tem os artesãos lá, formidáveis, descobrindo 1001 coisas, tem os
cientistas aqui: tudo isso vai se embrulhar, agora.
Então, eu vou ler um texto conhecidíssimo de vocês....
[Uma nova pergunta de aluno] Resposta: faz tudo parte de um
mesmo processo de exercício da dominação, não há a menor dúvi-
da; e, no caso da etiqueta, ou livrinho do Renato Janine é precioso;
e também o do Salinas sobre os reis que a etiqueta; porque a função
da etiqueta, a invenção disso por Luís XIV, que depois se espalha
pelo resto da Europa, é a maneira inteligente de destruir o feuda-
lismo por dentro, retirar da nobreza todos os seus privilégios e
poderes, concentrá-la em Versalhes e mantê-la lá. Então, você vai
ter os nobres disputando quem é que segura o guardanapo do rei,
quem é que traz... quem é que o de manhã pega o pinico do rei...
isto só para quem for “hiper-conde” dos duques de não sei de onde
que vai ter o direito de pegar a pinico do rei. [risos]. Ou seja, é
duma sabedoria, duma inteligência o que a corte do Luís XIV faz...
muito mais do que os Tudors haviam conseguido fazer; Henrique
VIII, sobretudo, Elizabeth já tinham montado um esquema de
controle através da corte, mas, igual ao Luís XIV... e depois como
as monarquias absolutas ou fazer, ninguém! Só ele vai.
Então, eu vou ler um texto que é muito conhecido de vo-
cês, mas que talvez não tenha sido lido nesta perspectiva; por isto é
que vou lê-lo agora. Então, na abertura do Leviatã,Hobbes escreve:
"Do mesmo modo que em tantas outras coisas a natureza (e agora
vem entre parênteses a definição hobbesiana da natureza). A natu-
reza (arte, mediante a qual Deus fez e governa o mundo) é imitada
pela arte dos homens também nisto: que lhe é possível fazer um
animal artificial, pois vendo que a vida não é mais do que movi-
mento dos membros, cujo início ocorre em alguma parte principal
interna. Por que não poderíamos dizer que todos os autômatos
(máquinas e se movem a si mesmas por meio de molas, tal como
ou relógio) possuem vida artificial? Pois, o que é o coração, senão
uma mola, os nervos, senão outras tantas cordas e as juntas, senão
outras tantas rodas, imprimindo movimento ao corpo inteiro tal
como foi projetado pelo o artífice? E arte vai mais longe ainda,
imitando àquela criatura racional, a mais excelente obra da nature-
za, o homem. Porque pela arte é criado aquele grande Leviatã que
se chama Estado ou cidade, cívitas em latim, que não é senão um
homem artificial e no qual a soberania é uma alma artificial, pois
da vida e movimento ao corpo inteiro. Os magistrados e outros
funcionários judiciários ou executivos são as juntas artificiais. A
recompensa e o castigo são os nervos que fazem o mesmo no corpo
natural. A riqueza e a propriedade de todos os membros individuais
são a força. A concórdia, a saúde, a sedição, a doença, a guerra
civil, é a morte. Por último, os pactos e convenções assemelham-se
àquele fiat: "Façamos o homem", proferido por Deus na criação".
A primeira coisa que é interessante é que o texto se abre
definindo a natureza como técnica. A natureza é um objeto técnico
que foi fabricado por Deus. Este é o primeiro ponto novíssimo.
Não quer que haja a possibilidade de identificar a natureza e técni-
ca... tudo o que nós vínhamos vendo até aqui. Agora não! Agora,
de imediato, a definição de natureza é a da natureza como objeto
técnico. É isto que ela é. Ela é produto da arte divina. E a arte
aparece, classicamente (com a afirmação clássica), como imitação
da natureza. Mas, não é curioso? Que a natureza é arte, que signifi-
ca dizer que a arte imita a natureza. O que a Hobbes está fazendo
aí? Porque ele está dizendo é que há uma potência da arte para criar
não apenas coisas artificiais, mas para criar um animal artificial.
Agora, não é pouco o que a arte vai criar. Porque agora nós entra-
mos em um campo em que arte cria... vida! Ela vai criar um ani-
mal. Então, é imenso o que está sendo dito aqui. A natureza é arte
divina e a arte humana imita a arte divina porque assim como deus
disse "Faça-se o homem", o homem foi feito; o homem diz "Faça-
se o Estado", o Estado é feito. Ou seja, Deus criou o homem natu-
ral, e o homem é capaz de criar um homem artificial. Epor que tudo
isso possível? Porque é tudo técnica; não tem natureza mais, não
tem nada natural; tudo isto é possível porque a ação de Deus e a
ação do homem são idênticas. Isto é, eles são técnicos, eles são
themakers, eles são fazedores. E o que é interessante é o modo ...
Extraordinário, é uma beleza que este texto do Hobbes Leviatã
inteiro é uma beleza, mas este texto é precioso porque o natural,
que é o corpo humano, é descrito como um mecanismo artificial:
rodas, molas, relógio... então, um corpo humano, que é natural, é
descrito por Hobbes com o uso de referências artificiais: polia,
roda, corda... por aí vai.... E, ao contrário, ele vai descrever o corpo
político, que é um artifício, usando só elementos naturais: os ner-
vos, o coração, o sangue, a saúde, a doença. Então, o que significa
esta montagem fantástica deste texto? O natural é descrito em
usando como referência os objetos artificiais (... o corpo humano
como um relógio) e o artificial é descrito como natural (o corpo
político descrito a partir de funções anatômicas e fisiológicas de
um corpo humano natural). O fato de que você possa descrever o
natural com os elementos técnicos de possa descrever uma criação
técnica usando as referências naturais significa (e é isto a definição
da natureza como arte divina e da política como arte humana)...
significa dizer: não há mais diferença entre natureza e técnica!
Acabou! Tudo é natural, tudo é artificial, tanto faz! A clivagem, a
separação, entre o natural e o artificial caiu por terra. É isto que
desapareceu. É claro que nós vamos ter que ver por que isso acon-
teceu. Estou dando a vocês o instante em que o processo está con-
sumado, isto se consumou: é assim.... E nós temos que saber por
que isto aconteceu, o que foi que fez que isso acontecesse.
Uma coisa mais interessante do que em Descartes escreve
no Tratado Do Homem. O que nós poderíamos dizer: " Hobbes já
falou que a metafísica é uma bobagem, já explicou que a física tem
os seus limites, que nós podemos conhecer aquilo que nós podemos
fazer, portanto, ciência mesmo é a matemática, a psicologia, a ética
e a política: o resto é tudo elucubração e nós temos que contar com
54
experiência... enfim, destes lugares comuns que a gente usa para
falar do Hobbes e dos chamados a empiristas ingleses. Mas com
Descartes a coisa é mais complicada porque o homem cria a meta-
física moderna, é ele que traz a passagem da pluralidade substanci-
al para três substâncias, a distinção metafísica entre estas três subs-
tâncias, a simplificação total, completa, da tradição aristotélico-
escolástica, todo aquele universo deixado pela escolástica, pelo
aristotelismo, tem as é a separação nítida, claríssima, sem a qual
Descartes não é Descartes, que é a separação da res extensa, o
movimento, e a res cogitans. ora, se é assim, nós poderíamos per-
guntar: não é estranho ver Descartes escrever uma coisa que faz
pensar em Hobbes? Porque no Tratado Do Homem, Descartes
escreve o seguinte: "Eu suponho que o corpo (ele está falando do
corpo humano) e nada mais seja do que é uma estátua ou uma
máquina de terra que Deus forma, deliberadamente, para torná-la
mais possível semelhante a nós". Então, num primeiro instante,
criação do homem: o homem é um objeto técnico, ele é uma está-
tua, feita por um extraordinário artesão, que é Deus. Como é lá em
Hobbes.
"Vemos os relógios, as fontes artificiais, os moinhos e ou-
tras máquinas semelhantes, que sendo feitas só pelos homens não
deixam de ter a força de se mover por si mesmas, de diversas ma-
neiras. E eu não poderia imaginar tantas espécies de movimentos
que supõem sejam feitos pelas mãos de Deus, nem lhe atribuir
tantos artifícios que não possa imaginar que esta máquina (esta
máquina que é o corpo) não os possua mais ainda. Vemos nas
fontes e nas grutas que há nos jardins dos nossos reis que a única
força pela qual a água se move ao sair da sua nascente para nela
mover diversas máquinas ou mesmo fazer tocar com os instrumen-
tos ou ainda pronunciar palavras conforme as diferentes disposi-
ções dos tubos que a conduzem. O que verdadeiramente pode-se
muito bem comparar os nervos da máquina que escrevo (nosso
corpo, né?) ao tubos da máquina destas fontes. Seus músculos e
seus tendões a outros diferentes engenhos de energia que servem
para movê-la; seus espíritos animais podem ser comparados à água
que as move, cujo coração é a nascente e as concavidades do cére-
bro são as aberturas. Os objetos exteriores, que só por sua presença
agem contra os órgãos dos seus sentidos e que assim determinam à
máquina a se mover de diversas maneiras, conforme a disposição
das partes do seu sério, são como estranhos que entrando em algu-
mas dessas fontes causou, inconscientemente, os movimentos que
nela se fazem em sua presença, pois não podem caminhar aí senão
alguns canteiros, de tal maneiras dispostos que, por exemplo, se ele
se aproximam de uma Diana que se banha, eles a farão esconder-se
em algum caniço; se passarem mais adiante para segui-la, o farão,
contra si um Netuno, que os ameaçará com o seu tridente; ou, se
forem para a algum outro lado, farão sair o um monstro marinho,
que eu lhes vomitará água contra o rosto, ou coisas semelhantes,
conforme o capricho dos engenheiros que as fabricaram para os
jardins dos nossos reis. E enfim quando houver uma alma racional
nesta máquina, ela terá sua sede principal no cérebro que será nela
como um encarregado da fonte que deve estar nas aberturas onde
vão ter todos tubos nesta máquina quando quiser excitar, impedir
ou mudar de algum modo os seus movimentos".
Esta descrição que Descartes faz do corpo humano, ele vai
repeti-la com outras variações na quinta parte do Discurso Do
Método (eu vou voltar para isto), ela vai ser retomada em várias
cartas, ele tem uma longa troca epistolar a respeito dos autômatos,
ele está empenhadíssimo na fabricação de autômatos; mas, o que
interessa neste primeiro momento aqui não é tanto o interesse de
Descartes pelas máquinas, pelos autômatos, é o fato de nós vemos
uma descrição que em tudo se assemelha à de Hobbes, só que
agora, o que Descartes está descrevendo, é a maneira como Deus
fabricou o corpo humano. Então, invés de "Faça-se o homem" que
o homem foi feito; ou "Seja feito à nossa imagem e semelhança...".
Não, não... Deus foi lá que fabricou, como um artífice, como umar-
tesão. E ele fabricou este corpo, dando a este corpo todas as carac-
terísticas de uma máquina. O nosso corpo é, portanto, uma máqui-
na; e uma máquina que se assemelha a essas máquinas maravilho-
sas que estão nos jardins dos nossos reis que são os autômatos. Mas
é disso que se trata. Então, nós temos aqui em Descartes a mesma
colocação, o mesmo estilo de colocação, que foi feita pelo Hobbes.
O Hobbes para descrever o animal político e Descartes para des-
crever o animal humano ; seja como for um animal que esteja
sendo descrito, é a primeira vez que nós vamos ver um animal
descrito como uma máquina; até o instante que Descartes vai for-
mular este conceito, e ele vai descrever o corpo como um animal-
máquina. A expressão animal-máquina é criada por Descartes para
descrever os corpos (os corpos vivos).
Então, a nossa tarefa é saber por que isso acontece e como
isso acontece. Para nós entendermos como se chegou a esta total
indiferenciação entre a natureza e a técnica, e como se chegou a
esta imagem da totalidade dos seres como formas variadas de
máquinas, nós temos que perguntar o que foi que aconteceu com o
objeto técnico. Para que a máquina pudesse se tornar isso que ela
se tornou, algo deve ter acontecido com o os objetos técnicos: qual
é a mudança dos objetos técnicos sofrem para que eles possam vir a
ocupar este lugar.
Eu vou abrir esta discussão com as primeiras frases de Ga-
lileu no Mensageiro Das Estrelas. Galileu abre o Mensageiro Das
Estrelas escrevendo seguinte: "São, em verdade, grandes as coisas
que neste pequeno tratado proponho aos olhos e à reflexão de todos
os observadores da natureza. Certamente, grandes por sua própria
excelência e sua novidade sem precedentes, pois nunca conhecidas
em todos os tempos passados, mas também por causa do instru-
mento, graças ao qual, manifestaram-se aos nossos sentidos".
Então,Galileu começa dizendo que o que ele vai apresentar
é novo pelo conteúdo; é a descoberta de estrelas inumeráveis, até
então jamais vistas, a superfície irregular da Lua, os satélites de
Júpiter, enfim, tudo o que ele vai apresentar no livro; mas, ele
acrescenta este dado novo: ele diz que o que ele está apresentando
é novo por causa do instrumento que o permitiu a ele fazer as
descobertas que ele está transmitindo. Então, é a primeira vez que
um cientista se refere a um instrumento técnico como um elemento
que é constitutivo de um novo saber que ele está produzindo. Há,
portanto, um objeto chamado perspiscillum que não é mais a lune-
ta; a luneta era o que os comerciantes e navegantes holandeses
usavam do mar; aqui não é uma luneta, aqui é um telescópio. Isto é,
55
a existência de um instrumento que interfere e determina a produ-
ção de um saber novo. Galileu vai descrever este instrumento e ele
vai dizer que a construção deste instrumento resultou da aplicação
das leis da óptica de refração da luz na fabricação das lentes, ambas
planas, mas uma delas com uma face convexa e a outra com uma
face côncava. Por que ele dava esta longa explicação a respeito da
cientificidade do objeto? Ele não diz: "Olha! Eu fui experimentan-
do e conversei com os artesãos... e a gente viu que se fosse por
aqui... se fosse pular... polia uma lente assim... polia uma leite
assado.... Eu sei que os padres estão dizendo que a gente não pode
ver nada disso porque tudo isso são fenômenos meteorológicos que
estou tomando por fenômenos astronômicos, porque essas lentes
causam ilusão.... Eu sei de tudo isso". Não! Não é isto que ele diz.
Ele diz: "Este objeto aqui foi construído graças à aplicação, na sua
construção, das leis da óptica que permitiram determinar o modo
como as lentes tinham que ser fabricadas, a posição que elas ti-
nham que ocupar e o modo como elas tinham que ser usadas. En-
tão, em instante nenhum, Galileu diz que foi por ensaio e erro, por
tentativa... graças ao auxílio dos artesãos.... Não! Ele diz: eu tenho
nas mãos um objeto que não engane, como os padres estão dizendo
que enganam, que me fariam ao ver o que não há, que me fariam
ver manchas onde não tem, que deformam. Não! Eu tenho nas
mãos um instrumento que foi produzido por um saber científico e,
portanto, este instrumento e não me engana e não engana nenhum
observador. Então, é a primeira vez, portanto, que um objeto téc-
nico é apresentado como objeto científico que leva Galileu a dizer:
este objeto tem uma precisão porque, além de aproximar os obje-
tos, ele permite vê-los sem nenhuma nebulosidade e sem nenhuma
de formação. Seja, nós não estamos mais diante de óculos para
míopes por mero uso que se fez das lentes, não são lunetas para a
diversão no circo e não são as lunetas usadas pelos navegantes, em
particular, os de Veneza e os da Holanda. Não! O que nós temos
agora é um objeto tecnológico. Por que este objeto não é um objeto
técnico, porque ele é um como objeto tecnológico? Ele é um objeto
tecnológico porque ele é ciência encarnada, ciência aplicada. A
fabricação dele pressupõe um conjunto de conhecimentos que não
são empíricos, que não são práticos, que não são artesanais: são
conhecimentos sobre as leis da óptica, são conhecimentos, portan-
to, sobre a luz. E mais: este instrumento se tornou possível graças a
um saber científico que se depositou nele e, ele próprio, vai ser
responsável pelo surgimento de novos conhecimentos científicos.
Ele torna possível a Galileu apresentar todas as descobertas astro-
nômicas e as mudanças astronômicas que ele está propondo. Então,
o objeto técnico mudou de sentido e é esta mudança (que eu vou
examinar um pouco mais) que está no cerne da noção de máquina e
com ela, da noção de natureza. Isso que acontece com o telescópio
vai acontecer com o microscópio também. Ou seja, seguindo o
adágio do Bacon que "a natureza ama se esconder", dois ingleses,
Hook e Pawer, se dedicaram à construção, simultânea à que está
acontecendo também na Holanda, do microscópio. E eles escrevem
numa obra chamada Micrografia em que eles trabalham com a
noção de desproporção entre o olho e os objetos naturais, seja por
causa da vastidão da natureza que o olho no alcança, seja por causa
da pequenez dos objetos naturais que o olho também não alcança.
Ou seja, eles vão propor o microscópio como um instrumento
também baseado nas leis da óptica, baseado, portanto, no conheci-
mento científico e a respeito da óptica, e da dióptrica, para a cons-
trução deste objeto, que é o microscópio, cuja finalidade é, eles
dizem, permitir penetrar naquilo que a natureza se esconde, naquilo
que a natureza oculta. Eles estabelecem, então, duas grandes condi-
ções para que o microscópio possa ser cientificamente empregado:
em primeiro lugar, é preciso que a observação se volte para aquilo
que é constante, frequente e certo nas coisas particulares, ou seja,
não observar qualquer coisa, é preciso determinar a natureza do
objeto que vai ser observado; ele tem que ter algumas característi-
cas que permitam dar a ele um tratamento científico; e a segunda
condição é que este objeto técnico seja um olho artificial que se
acrescenta ao olho natural. Então, a tarefa do microscópio, ao
tornar visível o invisível, vai libertar a filosofia de todas as cons-
truções mitológicas (particularmente, as construções respeito de
monstros) e vai libertar também os filósofos de conjecturas vazias e
de especulações vazias. Ou seja, os construtores do microscópio,
como se pode perceber, são leitores da fervorosos de Lucrécio. E a
ideia, portanto, de que aquilo que pode ser efetivamente observado
pelos homens com rigor liberta os homens da especulação mitoló-
gica, da religião, da superstição e do medo. Há, portanto, um lado
Lucreciano numa convicção do caráter liberador que um instru-
mento tem. Eles consideram que, graças ao microscópio, vai ser
possível construir uma espécie de alfabeto das formas complexas,
ou seja, assim como a geometria tem pontos, linhas, corpos sim-
ples, para depois poder trabalhar os corpos complexos, assim tam-
bém o microscópio. Ele vai começar com a fluidez, a fixação e a
cristalização de partículas; depois, a relação entre as partículas, e a
germinação e animação das plantas; e a sensação, a percepção e a
imaginação dos animais. A ideia, portanto, é que o microscópio vai
permitir esclarecer o mistério de ações à distância que se atribuía à
simpatia, antipatia, à semelhança; eu posso me livrar de todas essas
noções, porque agora eu vou ver a ação das partículas; são as ações
das partículas que, reunindo ou se afastando, que vão explicar
aquilo que mitologicamente se chamava de simpatia, antipatia,
amor, ódio e etc; vai livrar a natureza de todos antropomorfismos e
antropocentrismos. E, ao mesmo tempo, vai tornar inteligível a ida
do simples ao complexo. É isso que este instrumento tecnológico
vai fazer. Então, é possível, pelo trajeto que nós fizemos desde os
gregos até aqui, observar que entramos em um outro mundo, é um
outro lugar, estamos num outro espaço (é um outro lugar); estamos
não só num outro tempo, nós estamos num outro espaço de pensa-
mento em que o objeto técnico é a agora constitutivo do saber
científico, tanto para sua construção quanto para o avanço do pró-
prio saber. É esta a mutação que ocorreu. Então, nós sabemos que
desde o final do século XV mas, sobretudo, o XVI até o XVII, os
problemas de velocidade e orientação dos navios conduzem a arte
da navegação, pouco a pouco, para as vizinhanças da astronomia e
dos estudos das marés. Ora, a arte da navegação leva à ideia de um
controle do tempo e da marcação da relação entre o espaço e o
tempo e, portanto, a arte da navegação vai conduzir, pouco a pou-
co, à noção de cronometria, ou seja, de um tempo dotado de preci-
são. Deste modo, a navegação se aproxima da astronomia para que
ela seja uma técnica adotada de precisão e, ao mesmo tempo, ela
propõe pelas suas próprias necessidades da marcação exata do
tempo e do espaço (da relação entre o tempo de o espaço) o surgi-
mento de uma disciplina científica que vai ser a cronometria. E vai
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ser o nascimento do relógio como objeto de precisão ou, como
diz... (?)..., não é o relógio é o cronômetro: o relógio é o relógio, o
que nasce agora é o instrumento de precisão chamado cronômetro.
Da mesma maneira, os problemas de ventilação nas minas... sejam
as minas descobertas nas Américas, sejam as minas de carvão na
Europa (porque nós estamos no início da manufatura, se aproxi-
mando da primeira revolução industrial)... então, há problemas de
ventilação nas minas e da capacidade para extrair os metais; isto
vai aproximar a mineração da aerostática e da hidrodinâmica, de
tal modo que a técnica de extração dos metais passa a pedir elabo-
ração científica pela hidrodinâmica e pela hidrostática as quais, por
seu turno, ganham a possibilidade de construir instrumentos técni-
cos para o seu própria avanço graças aos procedimentos nas minas
americanas e nas minas europeias. Ou seja, o mesmo acontece com
a fabricação das bombas hidráulicas com os problemas de tingi-
mento postos na arte da tecelagem e que vão desembocar no o
desenvolvimento da química. A arte da guerra vai exigir uma nova
balística, e ela vai obter esta nova balística graças ao momento em
que a mecânica vai se encaminhando em direção da cinemática
para a dinâmica. Ou seja, o que está acontecendo, desde o final do
século XV e, sobretudo, durante o XVI e XVII, o instante no qual o
capitalismo finalmente se concretiza, o que se dá é uma transfor-
mação na relação entre as ciências e as técnicas adjacentes a elas e
que nunca tinham tentado em relação. Cada uma dessas disciplinas
já existia, cada uma destas práticas já existia; o que não existia era
a relação entre elas. O fato de que uma ciência se vale de uma
técnica para produzir um novo conhecimento científico ou que um
novo conhecimento científico atue sobre uma técnica para produzir
uma mudança no plano da prática, no plano da economia. Então, o
que o capitalismo faz é esta coisa gigantesca de entrelaçar... e ele...
nós vamos ver quando estudarmos o mundo contemporâneo que
nós chegamos ao apogeu deste entrelaçamento. O que o capitalis-
mo fez foi entrelaçar, de maneira impossível de você desmanchar,
o universo das técnicas e o universo das ciências. E é este entrela-
çamento, pelo qual o conhecimento científico produz novos objetos
técnicos e os novos objetos técnicos alteram os conhecimentos
científicos, esta mutação é o que se chama: o advento da tecnolo-
gia. A tecnologia é isto.
Nós podemos ver matematização disso por todos os filóso-
fos. Nenhum deles deixa de tratar diretamente deste tema, da rela-
ção entre os instrumentos técnicos e o saber, e da relação entre arte
e natureza e assim por diante.... Este é um tema constante que vai e
volta incessantemente durante toda a modernidade, durante todo o
século XVII. Então, no Discurso Do Método, por exemplo, Descar-
tes vai dizer que é possível chegar a conhecimentos muito úteis e
para a vida desde que se abandone esta filosofia especulativa que
se ensina nas escolas. Ele abre o Discurso Do Método com isso. E
ele vai dizer que... ele vai iniciar as Meditações dizendo que seria...
ele está à procura, na filosofia, daquilo que Arquimedes ofereceu
para as ciências e as técnicas: um ponto seguro com o qual você
pode levantar o globo terrestre. Então, a hidrostática e a hidrodi-
nâmica de Arquimedes permitem uma alavanca que era impossível
construí-la, mas ela é inconcebível... uma alavanca por meio da
qual o homem podia erguer o globo terrestre, mudar o globo terres-
tre de lugar. Descartes tem sempre o programa mínimo; o progra-
ma mínimo de Descartes era: mudar a terra de lugar, fazer uma
medicina para ninguém morrer nunca mais... ele é o máximo! Eu
acho Descartes o máximo; porque todo o filósofo é muito maluco
(tem que ser isto — porque senão a gente estava aqui). Tem que ter
um bom um grão de loucura, sobretudo porque uma das coisas que
a gente tem que ver é: está tudo errado, não tem nada desse jeito,
vamos fazer de um outro jeito... bem, um bando de indivíduos que
chega diante de um mundo que está todo satisfeito e diz que estava
tudo errado, vão fazer tudo diferente.... Somos nós! Nossa função
é:.... Temos que ter um grão de loucura razoável. Nos grandes
filósofos o grão de loucura é imenso, aliás, o grão de loucura o
homem é um grão é um treco... os outros, mais modestos, quer
dizer... é um grãozinho de loucura, mas tem que ter! Então, o do
Descartes é maravilhoso, porque Descartes está a espera de mudar
a Terra de lugar e, sobretudo, ele é explícito, e ele não tinha o
menor interesse de escrever as Meditações, ele não tinha o menor
interesse de escrever os Princípios Da Filosofia, de escrever o
Discurso Do Método; ele escreveu o isto porque a “padraiada” da
universidade de Paris e Sorbonne ia botar ele na fogueira como já
tinham quase feito com Galileu; então, ele resolveu dar uma expli-
cação metafísica... mas, o que Descartes queria fazer era aquilo,
que foi o sonho dele, é a medicina... medicina... o sonho de Descar-
tes era começar garantindo a longevidade e, depois, dentro de
limites: é isto que ele está procurando. E é por isto que, na perspec-
tiva dele, a separação entre a res cogitans e a res extensa é funda-
mental. Para ele poder bolar uma medicina na qual o corpo se torna
uma máquina e mortal, inviolável, ele precisa separar as duas
substâncias, garantir a autonomia da res extensa, que é sobre a qual
a medicina vai operar. E é o instante mais interessante, ao lado dos
textos de medicina que ele escreveu, é o Tratado Das Paixões Da
Alma, porque aí ele dá início tudo aquilo que viria a se a psicologia
moderna, porque ele vai explicar um conjunto de acontecimentos
que se atribuía à mente. Ele vai mostrar que é o corpo... e que há
uma capacidade do corpo de fazer tudo aquilo, porque que Descar-
tes são os automatismos corporais: a figura do autômato. A ideia do
animal-máquina não é uma elucubração metafísica, é uma ideia que
é fundamental para um medicina que tem como programa mínimo
a imortalidade. É isto que ele quer. Então ele fala no Discurso Do
Método, ele fala a isso nas Regras Para A Direção Do Espírito — é
uma ideia que o Liebniz também tem — que é o absurdo que nem
os sábios, os filósofos, sentiram sempre pelos técnicos; pelos arte-
sãos. Do mesmo modo que Galileu dias: eu passeio de aqui pelo
arsenal e converso com os artesãos porque eu aprendo com eles,
Descartes faz essa afirmação e Liebniz vai fazer também esta
afirmação: um dos maiores atrasos da Europa foi de ter sido inca-
paz de estabelecer a relação entre os técnicos e os sábios, a técnica
e a ciência, de os sábios irem até os ateliês, às oficinas, aos o labo-
ratórios, o para aprendercom os artesãos, para aprender com os
técnicos. A ideia é(esta é uma ideia que só pode surgir no capita-
lismo) de que o conhecimento tem que ser o último para o bem-
estar dos seres humanos; o conhecimento não é só alegria de saber
das coisas, o conhecimento é poder fazer com que a vida seja me-
lhor: melhorar a vida dos seres humanos, é para isto que se desen-
volve o conhecimento. E, deste ponto de vista, que ele vai fazer um
elogio dos mecânicos.
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Liebniz vai escrever o seguinte: "Não há arte mecânica, por
menor ou desprezível que seja, que não possa fornecer algumas
observações ou considerações notáveis e todas as profissões ou
vocações possuem certas habilidades engenhosas que não é fácil
notar que, no entanto, podem servir a muitas consequências mais
relevantes. Pode-se acrescentar que a matéria importante das manu-
fatura de do começo não poderia ser bem regulada senão por uma
descrição exata do que pertencem a todos tipos de arte; de que os
negócios de milícia, finanças, marinha, dependem muito das ma-
temáticas e da física. E o principal defeito de muitos cientistas, que
se diverte em apenas com discursos vagos e repetidos, quando há
todo um campo para exercer o espírito com objetos sólidos e reais
para a utilidade do público". E, por isto mesmo, também, tanto
Descartes quanto Liebniz criticam as Corporações De Ofício; eles
dizem: do lado dos cientistas e dos filósofos, toda esta ignorância
de não perceber essa necessidade de ir ao conhecimento prático dos
artesãos e de não perceber o quanto saber teórico depende deste
conhecimento prático; mas, do lado dos artesãos, os segredos das
corporações — corporações fechadas sobre si, hierárquicas, verti-
cais e mantidas pelo segredo. De tal modo que vem, procura a
corporação, ele precisa de dados, precisa de informações, ele preci-
sa de uma série de recursos instrumentais e a corporação se nega a
dar, porque ela defende o segredo de um ofício. É um momento
crucial, porque é um momento de quebra da especulação, enquanto
mera especulação, e de lutacontra as corporações.
Neste novo quadro econômico, filosófico, político, o qual
é o novo estatuto da técnica? (eu vou fazer só mais isso e eu con-
cluo na próxima aula, explicando porque a natureza é máquina —
eu deixo para explicar a identidade entre a natureza e a máquina na
próxima vez). Então, qual é o estatuto da técnica? Primeiro, os
objetos técnicos estão destinados a resolver problemas técnicos,
práticos, em todos os campos da atividade humana de eles são
vistos como invenções. Em segundo lugar, eles são projetos para a
construção de outros instrumentos e de outras máquinas. E estas
máquinas e estes outros instrumentos são vistos como instrumentos
de precisão. Em terceiro lugar, o objeto técnico se insere num
contexto novo que é a do surgimento dos primeiros laboratórios. E
a articulação que passa a haver entre a física, a biologia, a química,
a astronomia e a matemática. Em quarto lugar, o objeto técnico é,
na verdade, o objeto tecnológico ou ciência aplicada. E os casos
exemplares são o telescópio, o microscópio e o cronômetro. Sobre
o cronômetro, eu vou ler uma passagem do Koyré sobre qual é o
significado do relógio de precisão, que nasce a partir de todo o
trabalho de Huygens sobre as leis do pêndulo; vai primeiro traba-
lhar as questões do pêndulo, a partir das leis do pêndulo, a questão
da isocronia, e a partir da isocronia, a construção dos cronômetros.
Então eu cito Koyré: "Até a primeira metade do século XVI, o
tempo é ainda tempo vivido; aquele tempo do senso comum, se-
gundo o qual a vida passa de acordo com as medidas naturais do
dia e da noite ou dos movimentos da abóboda celeste. Somente na
metade do século XVI, em correspondência com o crescimento da
riqueza urbana sobre a camponesa, que se mostra a necessidade de
uma medida mais exata do tempo;porém, o relógio precisam, o
relógio concebido não como simples objeto de uso, mas como
instrumento científico, nasce no momento em que o contato da
técnica e da ciência alcança o seu pleno amadurecimento da obra
de Galileu e de Huygens. Em Galileu que, pela primeira vez, en-
contramos historicamente realizada há plena convergência entre a
tradição, que e desemboca nas experiências e na prática dos arte-
sãos e técnicos e a grande tradição teórica da mecânica e metodo-
lógica da ciência europeias. A investigação teórica da mecânica
prática e a sua transformação em ciência são obras de Galileu; em
sua obra fundam-se, num sólido conhecimento teóricos, a mecânica
empírica e a ciência do movimento; e é no interior dessa ciência do
movimento que Huygens construirá o primeiro objeto de precisão
respeito do tempo: o cronômetro".
O que vai se tornar, também, evidente na partida desta mu-
tação do estatuto da técnica e da relação entre técnica e ciência e a
percepção de que a ciência não pode ser obra de um só. É a percep-
ção de que a ciência é uma obra coletiva: uma obra coletiva dos
teóricos com o os práticos. E é isto que explica a ideia de que a
ciência é um saber público e não saber secreto, que o laboratório
que é um lugar não só de pesquisa, mas de cooperação, de colabo-
ração coletiva; e isto dá o nascimento dos colégios científicos,
separados, distantes das universidades que são dominadas pela
igreja. Então, você tem na Inglaterra a Royal Society, na França,
College de France e na Itália, a academia dos Linces.
Todas estas mudanças têm um pressuposto teórico (elas
todas têm um pressuposto econômico, social e político — é o
advento do capitalismo que está fazendo tudo isso) importante que
é a mudança do conceito de natureza. Isso nós vamos ver na pró-
xima vez, então... o que acontece? A natureza que era,kineses, vida,
mãe, organismo vivente... a natureza vai gerar: máquina. E é isto
que nós vamos ter que apreciar.
Aula 09 (15-10-2012)
Vamos concluir hoje os modernos, porque, na próxima vez,
eu vou fazer um salto (do mesmo modo em que eu fiz um salto
quanto a idade média) com relação ao século XVIII, vou fazer aqui
e ali alguma referência, e vou direto ao século XIX, e aí eu vou
retomar a discussão (como a gente fez no início do curso), que é a
relação entre a questão da técnica, da sociedade e da economia;
porque no percurso que o fiz até aqui, o que foi sendo estabelecido
foi o vínculo entre a técnica e ciência até nós chegarmos a noção de
tecnologia. Nós temos que retomar agora — mas vou retomar a
partir do XIX — o vínculo entre técnica e ciência, economia e
sociedade. Portanto, a questão... a relação entre técnica e trabalho,
que foi o nosso ponto de partida (lembram?)... técnica e trabalho...
e aí a partir da relação entre técnica e trabalho a relação entre téc-
nica e do modo de produção capitalista e as duas revoluções indus-
triais, ou seja, nós vamos entrar de maneira muito breve e muito
simplificada na análise que Marx faz do maquinismo... e a partir da
análise marxista do maquinismo e da técnica, e portanto da condi-
ção do trabalho, a minha ideia é, no mês novembro, nós examinar-
mos, finalmente, o que aconteceu com a técnica nos dias de hoje
que é esta controvertida noção de técnica e ciência: a sociedade do
conhecimento e tecno-ciência. Então, a minha perspectiva é con-
cluir os modernos, hoje, e aí, na próxima vez, fazer uma breve
menção a um alguns pontos do século XVIII, e depois tomar a
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análise do maquinismo que Marx faz no Capital; vincular técnica,
trabalho e modo de produção capitalista, para depois passar para a
segunda revolução tecnológica, no instante que vai se passar da
máquina efetivamente para o autômato; e a partir do momento em
que se passa da técnica para a extensão dos membros (das pernas,
dos pés e dos órgãos dos sentidos — é isto que a técnica fazia) para
a extensão do cérebro; e portanto, a mudança na natureza do objeto
técnico. Uma coisa é objeto técnico quando ele é uma expansão da
visibilidade do corpo, outra coisa é a com objeto técnico quando
ele é a expansão da invisibilidade do cérebro, o seja, quando o ele é
a expansão do pensamento. Não mais a função física, corporal, mas
a força psíquica. E o que acontece quando você tem esta mudança
da natureza do objeto técnico? Porque o que nós estamos exami-
nando é (o que eu pretendo estabelecer como conclusão hoje é...)
como se passa de uma visão da natureza como um organismo vivo
no interior do qual o homem e a técnica estão inseridos de tal ma-
neira que a técnica é pensada como uma imitação da natureza para
a separação entre o homem e natureza, técnica e natureza, de tal
maneira que a técnica deixa de ser imitação da natureza para se
transformar em uma intervenção sobre a natureza e o exercício de
um poder sobre a natureza, com o advento da tecnologia. Este foi o
trajeto. O momento seguinte é o instante em que esta tecnologia é
tomada diretamente de como força produtiva. E ao ser tomada
como força produtiva, no interior do modo de produção capitalista,
como a técnica opera, e depois o instante em que há uma mutação
na natureza do objeto técnico quando ele passa de máquina a autô-
mato propriamente dito; e o fato de que o grande modelo neste
segundo caso, modelo invisível do objeto técnico, vai ser a biolo-
gia, vai ser o ser vivo. É interessante, porque nós vamos abando-
nando pouco a pouco a ideia da natureza como um ser vivo (nós
vamos ver a consumação disso hoje), a natureza se torna uma
máquina e o movimento posterior (quando se passa da máquina
para o autômato) é encontrar o autômato perfeito: e o autômato
perfeito é o corpo humano; de tal modo que a biologia ressurge
como (não a biologia da renascença, evidentemente) concepção
biológica, concepção do vivente, reaparece como modelo do objeto
técnico. Mas em instante nenhum nós não vamos pensar isso como
um círculo; porque se nós pensássemos como um círculo nós terí-
amos que abandonar a noção de História; nós teríamos, pura e
simplesmente, a repetição. Não é uma repetição, é uma mutação:
uma mutação gigantesca! O que é curioso, entretanto, é que esta
mutação recupere a noção de vida como modelo da técnica — só
isso.
Bem, eu vou tomar alguns poucos que já apresentei aula
passada só para... [interrupção da aula devido ao barulho, Marilena
pede para que a porta seja fechada]. Eu vou tomar alguns pontos
que eu havia apresentado no fim da aula passada, porque eu quero
salientá-los como pontos importantes da conclusão deste percurso,
agora.
Então, nós vimos que desde o século XV e, sobretudo,
desde meados do século XVI, como as grandes navegações e a
formação do impérios coloniais ultramarinos... houve um conjunto
de exigências feitas no plano da navegação, da guerra, do comércio
e da mineração que impulsionaram as artes mecânicas. E as empur-
raram em direção, como já vimos, o ao conhecimento científico; ou
seja, problemas, por exemplo, com velocidade e orientação dos
navios vão levar a arte da navegação para as vizinhanças da astro-
nomia e para o estudo das marés, mas também vão conduzir a
astronomia pela sua relação com a arte da navegação à cronome-
tria, à marcação de espaços e de lugares, lá onde não tem espaço
nem lugar, que é o mar, ou seja, a criação das latitudes e longitudes
e a produção da cartografia como a expressão real daquilo o que é
o objeto das viagens; não mais uma cartografia mítica e fantástica,
mas o mapa com o retrato fiel da realidade. Então, uma aproxima-
ção da astronomia com o à navegação leva ao surgimento dessas
formas de medição (como são a latitude e a longitude), mas tam-
bém ao surgimento da ideia de que é preciso uma marcação de e
absoluta precisão de espaço e tempo; e o simples relógio mecânico
já não é suficiente para isto; vai ser desenvolvido em todo o traba-
lho, sobretudo por Huygens, no campo da cronometria. E a ideia
agora, através da figura do pêndulo, da marcação da isocronia no
pêndulo, o surgimento do relógio como instrumento de precisão,
isto é, o cronômetro. Depois, surge a marcação da temperatura, o
termômetro; a marcação da variação da umidade e da secura do ar,
o barômetro; e, ao lado disso, evidentemente, na astronomia, a
passagem da luneta ao telescópio; e na biologia, especialmente da
zoologia, a passagem, ou a descoberta e a invenção do microscó-
pio. Nem então, há um conjunto de exigências que são feitas inici-
almente no plano econômico e que vão ao pedir o surgimento de
objetos técnicos de uma natureza nova. Além disso, por exemplo
no caso das minas, de ouro e prata nas Américas, e as minas de
carvão na Europa, começam a surgir problemas de sustentáculo das
minas, garantia de profundidade da escavação e ventilação. O que
vai unir a mineração aos estudos na física de aerostática e de hidro-
dinâmica. Então, as ciências vão sendo atraídas para uma articula-
ção entre elas (articulação que não havia) que são pedidas por
exigências econômicas ligadas a técnica. A mesma coisa vai acon-
tecer com toda a indústria da tecelagem, seja do ponto de vista de
novos fios (no caso, por exemplo, do aparecimento do algodão que
foi uma verdadeira revolução)... a maneira de trabalhar o algodão
que é diferente da maneira de trabalhar o linho, diferente da manei-
ra de trabalhar a seda. Então, você tem novos fios, diferentes exi-
gências na maneira de trabalhar esses fios, mas não só no modo de
fiá-los e sim o modo de tecê-los; e sobretudo no modo de tinji-los.
O que é convocado, então, em alta escala pela manufatura da tece-
lagem é química; enquanto a física e a astronomia são puxadas pela
mineração e pela navegação, a tecelagem vai puxar o trabalho da
química; e assim por diante. Ou seja, o modo de produção, que é,
por enquanto, o capitalista-mercantil, mas já rumando para o capi-
talismo manufatureiro, esta nova forma do arranje econômico vai
provocar uma mudança no modo de relação entre ciência e técnica
e do conceito de objeto técnico; tudo isto vai se transformar.
Esta nova relação entre o saber que a prática é que vai ser
tematizada pelos filósofos. (O nosso curso não é um curso sobre a
técnica, quer sobre o pensamento da técnica.) Então, como é que os
filósofos tematizam dessa relação. Descartes vai escrever no Dis-
curso Do Método que, eu cito: "É possível chegar a conhecimentos
muito úteis para a vida, desde que seja abandonada esta filosofia
especulativa que se ensina nas escolas". É por isso que ele inicia o
Discurso do Método e as Meditações exprimindo o desejo de que
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houvesse para a filosofia algo que estava prometido para as ciên-
cias, que é encontrar para filosofia o mesmo que as ciências já
havia encontrado, o ponto de Arquimedes, ou seja, que ele ponto a
partir do qual possível construir uma alavanca que levanta o uni-
verso. Descartes vai encontrar esse ponto, esse famoso ponto fixo,
essa alavanca arquemediana no cogito; embora, ele vá provar a
existência de Deus, a primeira verdade não é Deus, a primeira
verdade é o cogito.
Esta referência que é feita por Descartes à hidrostática de
Arquimedes e não é casual, há referência a Arquimedes vai se
tornar uma constante no final do século XVI e no início do século
XVII. Por quê? Porque um dos primeiros desenvolvimentos técni-
cos e científicos que vão ocorrer neste período estão ligados à
hidrodinâmica; a passagem da hidrostática para a hidrodinâmica,
donde o papel que Arquimedes vai ter. Arquimedes é aquele que
formula a teoria de uma hidrostática e de uma hidrodinâmica que
poderia, dadas as condições materiais e as condições teóricas para
isso, se transformar em técnica. Então, há uma referência contínua
à figura do Arquimedes; e esta referência vai aparecer inclusive
quando são pensados modelos para o corpo humano, quando Har-
vey...? [XVII:13]. Quando Harvey pensa o modelo para o coração,
e a descoberta que ele faz da circulação do sangue, o modelo é a
bomba hidráulica. É lá na hidrostática e na hidrodinâmica que ele
vai procurar um modelo, que era o mesmo modelo que vai estar
presente em Descartes; há uma constante, uma presença fortíssima,
do modelo hidráulico para pensar o funcionamento das máquinas,
sobretudo até primeira metade do século XVII. Depois, este mode-
lo vai em uma outra direção, mas inicialmente o grande modelo é o
modelo hidráulico. E por isso a importância da figura de Arquime-
des. Na parte cinco do Discurso Do Método, depois que Descartes
expõe de maneira abreviada o percurso das Medicações... quando
chega na parte cinco, ele vai apresentar o programa de uma nova
filosofia. E este programa, esta nova filosofia, é apresentada por ele
da seguinte maneira (eu vou citar Descartes): "Mas, tão logo adqui-
ri algumas noções gerais relativas à física, e começando a compro-
vá-las em diversas dificuldades particulares, notei até onde podiam
conduzir e o quanto diferem dos princípios que foram utilizados até
o presente e julguei então que não podia mantê-las ocultas sem
pecar grandemente contra lei que nos obriga procurar o que depen-
de de nós o bem geral de todos os homens, pois elas me fizeram
ver que é possível chegar a conhecimentos que sejam muito úteis à
vida e que ao invés da filosofia especulativa que ensina na escola
que se pode encontrar uma outra prática pela qual, conhecendo a
força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de
todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente como o
conhecemos os diversos ofícios dos nossos artesãos, poderíamos
entregá-los da mesmo maneira em todos os usos dos quais são
próprios e assim nos tornar como que os senhores e possuidores da
natureza. O que é desejável, não só para a invenção de uma infini-
dade de artifícios que permitiriam gozar sem qualquer custo os
frutos da terra e de todas comodidades que nelas se acham, mas
principalmente o também para a conservação da saúde, que é sem
dúvida o primeiro bem, fundamento de todos os outros bens, desta
vida". Este é, portanto, o programa de Descartes. Como vocês
vêem é um programa... se gente toma o que aconteceu na história
da filosofia e a consagração de Descartes causa das Meditações,
nós vamos ver como a história é, no fundo, curiosa; porque ela
consagra Descartes por aquilo que para Descartes não tinha grande
importância. A única importância que tinha para ele no caso das
Meditações era assegurar a clara separação entre o corpo e alma
(ou entre a res cogita e a res extensa) porque a condição para todo
este programa técnico e científico que ele propõe, todo este pro-
grama ligado as artes mecânicas e a medicina, dependia, de acordo
com Descartes e de acordo com Galileo, de finalmente desespiritu-
alizar a natureza; fazer com que a natureza não fosse mais (a natu-
reza que vem desde Aristóteles) dotada de finalidade, o processo de
busca da perfeição, tudo aquilo que nós vimos que a natureza era.
A ideia é desvencilhar a natureza de toda esta concepção qualitati-
va e finalista para pensá-la (eu vou mostrar isso para vocês já-já)
como algo quantitativo, mensurável e perfeitamente conhecido do
ponto de vista a matemático. É a matematização da natureza, a
matematização da extensão que interessa para Descartes. Então, a
função das Medicações é assegurar que esta distinção entre a res
cogita (o pensamento, a alma ) e os corpos, a natureza que Descar-
tes quer. Ele é consagrado pela Meditações, mas o programa que
ele vocês viram qual é: o desenvolvimento da mecânica, para que o
homem possa fluir, sem esforço, os frutos da terra e a medicina,
porque a saúde é o mais precioso de todos os bens; por isso, Des-
cartes quer uma filosofia prática, ele foi consagrado como um
grande metafísico, que não era intenção dele.
Este programa proposto por Descartes é o que o leva ao
elogio dos mecânicos, o elogio dos artífices; e nós fomos encontrar
exatamente o mesmo elogio aos artífices e a mesma crítica a uma
filosofia inteiramente especulativa em Leibniz, o monadologia
Leibniz vai escrever para: "Não há arte mecânica, por menor que
seja, que não possa fornecer algumas observações e considerações
notáveis e todas as profissões, ou vocações, possuem certas habili-
dades engenhosas que não é fácil notar que, no entanto, podem
servir a muitas conseqüências das mais relevantes. Pode-se acres-
centar que a matéria importante das manufaturas e do comércio não
poderia ser bem regulado não por uma descrição exata do que
pertence a todos os tipos de arte e que os negócios de milícia,
finanças, marinha, dependem muito das matemáticas e da física
particular; e o principal defeito de muitos cientistas e que se diverte
apenas com discursos vagos e repetidos quando há todo um campo
para exercer o espírito com objetos sólidos e reais para a utilidade
do público".
Então, Leibniz vai lamentar que os teóricos nunca tenham
ido ao observar os artesões, nunca tenho ido as oficinas, aos ateli-
ers, as minas, aos moinhos, as manufaturas de fiação e tecelagem.
O que efetivamente os técnicos, os mecânicos, os artesãos faziam,
e, por isso, o que eles deixaram escrito sobre as artes e as ciências
não tem valor nenhum. Ao mesmo tempo, Leibniz também critica
as corporações de ofício. Do mesmo modo que Descartes diz que
seria um crime eu fazer as descobertas que fiz e mantê-las secretas
quando elas concernem ao bem público; do mesmo modo, Leibniz
para fazer a crítica das corporações de ofício que trata cada um dos
ofícios como um segredo. Ou seja, o que está surgindo, nestas
afirmações que já apareciam nas obras de Galileo, está surgindo a
ideia de que o conhecimento científico e as técnicas são públicos.
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Eles não são conhecimentos, saberes, práticas secretos e concentra-
dos apenas nas mãos de alguns: eles são bens públicos. Isso é uma
novidade, uma grande novidade, também.
Então, diante destas mudanças, qual é o estatuto da técni-
ca? Bem, isto eu já apresentei rapidamente para vocês na aula
passada, eu retomo hoje. Primeiro, os objetos técnicos são conside-
rados como soluções para problemas em todos os domínios da
atividade humana. Eles não são objetos para este ou aquele Campo
da atividade humana e, mas para toda atividade humana você pode
ter objetos técnicos que são soluções para problemas existentes
nestas atividades. E por isso os objetos técnicos são considerados
invenções. Eles são inventos destinados a resolver a problemas
práticos em todos campos da atividade humana. Todos. Em segun-
do lugar, eles são concebidos a partir de projetos de construção.
Eles não são empiricamente tentados: "Em um experimento, que o
fazia assim, não deu certo, tento de um outro jeito — não, não!".
Agora, existe a noção de uma engenharia dos inventos, a noção de
que é preciso ter projetos para a construção destes objetos. E como
eles são, portanto, produtos de projetos de construção, eles me são
vistos como instrumentos de precisão. Em terceiro lugar, portanto,
o objeto de precisão vai se inserir numa lógica nova. Na tradição, a
lógica era pensada como a... que é a arte do silogismo proposta por
Aristóteles. A lógica, com acréscimos aqui e lá permaneceu intoca-
da como arte de demonstração, como técnica de demonstração,
desde os Segundos Analíticos. Agora, esta expressão vai ser dire-
tamente usada por Descartes — é o primeiro, na Regras Para A
Direção Do Espírito, ao usar essa expressão e depois se expande.
Ele vai falar em... (?)... e na ciência é uma arte de descoberta, ela é
uma lógica da invenção de solução para problemas. Então, o objeto
técnico vai se inserir nesta nova lógica científica que a da invenção,
a da descoberta de solução para problemas teóricos e práticos. E,
em quarto lugar, como uma já vimos, o objeto técnico se torna um
objeto tecnológico, ou seja, ele é ciência aplicada. E os casos
exemplares são, evidentemente, o telescópio, o microscópio e o
relógio. Porque, o relógio, ao ser transformado em cronômetro
muda concepção que se tinha do templo. Eu cito uma pequena
passagem do Quaret (?) para a [32:06], explicando justamente esta
mutação na percepção do tempo, ele diz: "Até primeira metade do
século XVI, o tempo é o tempo vida, é o tempo do senso comum,
segundo qual a vida passa de acordo com as medidas naturais do
dia e da noite ou dos movimentos da abóboda celeste. É somente
na metade do século XVI, em correspondência com a riqueza da
riqueza urbana sobre camponesa que se mostra a necessidade de
uma medida mais exata do tempo. Porém, o relógio de precisão, o
relógio concebido não como um simples objeto de uso, mas como
instrumentos científico nasce em um momento em que o contrato
entre a técnica e ciência alcança o seu pleno amadurecimento da
obra de Galileo e de Huygens. É em Galileo que pela primeira vez
encontramos historicamente realizada a plena convergência entre a
tradição que desemboca nas experiências e na prática dois artesãos
e técnicos e a grande tradição teórica da mecânica e metodológica
da ciência européia. A transformação da mecânica em ciência com
obra de Galileo e a obra de Huygens. Em suas obras só vão se
fundir no solo do conjunto o conhecimento teórico, a mecânica
empírica, a ciência do movimento". Então, o que o cronômetro
introduz é percepção do tempo como algo matematicamente men-
surável, o tempo não é o tempo da nossa experiência vivida: o dia,
à noite, o nascimento, o crescimento, a morte... não é mais esta
referência, as quatro estações do ano... o tempo não é medido mais
por essas referências que são as referências da nossa vida cotidiana
de um tempo que é qualitativo e psicológico, este tempo que dura
mais ou dura menos dependendo da experiência que estou tendo.
Por exemplo, uma experiência de imenso prazer percebe-se um
tempo que não dura nada; se a experiência de um terrível mal: este
tempo não acaba nunca. É este tempo que desaparece. Nós vamos
ver que vai desaparecer o espaço da percepção, o espaço qualitati-
vo da percepção, o espaço onde há lugares, o onde existe o longe, o
perto, o alto, baixo: tudo isto são qualidades parciais, vindas da
percepção, tudo isto é abandonado pela ciência moderna. A ciência
moderna não lida com o espaço qualitativo, ela lida com o espaço
geométrico, o espaço inteiramente quantificada; portanto, com
espaços em lugares (sem alto, nem embaixo, bem próximo, bem
distante — acabou isto). Da mesma maneira, o tempo; não o tempo
longo, curto, o amanhã, o ontem, o depois de amanhã, o futuro, o
passado: o tempo é o tempo cronometrado; o tempo se geometriza,
também. Ou seja, o que a nova ciência está apagando a noção de
um mundo qualitativo no qual mãos vivemos, ela vai substituir este
mundo qualitativo da nossa experiência comum e cotidiana por um
mundo limpo, límpido, claro e distinto, que é um mundo inteira-
mente matematizado e mecanizado. É isso mundo novo no qual a
técnica se torna tecnologia.
Eu vou apresentar um texto de Jean Pierre Cerry ... ? ...
[36:53], ele está na bibliografia de vocês... um trecho do livro que
sintetiza este percurso total de mostrar para vocês. O texto do Cerry
diz o seguinte: "Medida que matematização dos fenômenos se
tornam inseparáveis e doravante vão juntas. A articulação nova e
de ciência e técnica encontra aí a sua razão de ser". Tanto que torna
possível esta articulação nova e inesperada entre ciência e técnica,
foi, justamente, a mensuração e a matematização dos fenômenos;
ou seja, a desaparição da qualidade e a sua substituição pela quan-
tidade. Eu prossigo: "Até por volta de XVI00 a astronomia era a
única ciência que utilizava instrumentos. Quando nós chegamos na
altura de XVII00 (portanto, um século depois) nenhuma ciência
podia pretender passar sem instrumentos. O emprego de instrumen-
tos havia se tornado uma dimensão de toda e qualquer ciência. A
demanda por instrumentos de precisão não é uma demanda externa
e sim provêm dos próprios meios científicos. A demanda por ins-
trumentos de precisão traduz uma exigência interna a própria ciên-
cia. É o caso da cronometria, dos instrumentos para produzir um
vácuo, dos telescópios e microscópios. O universo da precisão, o
livro da natureza escrito em caracteres geométricos como dissera
Galileo não permanece o objeto ideal de uma experiência de pen-
samento, mais é que ele mundo que tem que ser encontrada pela
medição. Como tentam fazer todos os sucessores de Galileo. O
instrumento científico está na junção do mundo material e do fe-
nômeno matematicamente concebido. Ele produz realmente o
fenômeno matematicamente conduzido". Ou seja: a ideia é que vai
se desenvolvendo um pouco a pouco... não passa pela cabeça de
um sábio do XVII, de jeito nenhum. Mas vai ser a ideia de um
sábio do XIX que o objeto da ciência não é um objeto de uma
61
descrição que ele é o objeto de uma construção. O objeto científico
não existe como um dado da natureza, ele era construído pelo
cientista no laboratório. Esta construção já começam XVII. Basta...
um livro fascinante, está na bibliografia de vocês... que é uma
discussão que Shaifen a ...?... [40: 39] da e Chapiro fazem... a
discussão entre Hobbes e Boyle a respeito do vácuo. Boyle vai nos
ler uma bomba para construir o vácuo, porque toda a teoria e quí-
mica de Boyle é uma teoria... ela não é atomista, ela é, vamos
dizer, molecular; mas ela depende da existência do vácuo; então, o
nascimento da química moderna com Boyle depende de que o
vácuo que exista. Porque, você sabe, desde os gregos, com exceção
dos e pecuaristas (portanto, com exceção de Epicuro e de Lucrécio)
sempre se disse que o vácuo é inexistente, a natureza odeia o vá-
cuo, o vácuo é impossível. Descartes vai dizer que o vácuo impos-
sível, Spinoza vai dizer que o vácuo impossível... Leibniz vai
titubear, como tudo que é próprio do Leibniz... "Pode ser que aqui
e ali...". É o conciliador, e a figura de gentil... o Leibniz, né? Então,
ele acaba não se decidido, finalmente, entre a afirmação ou a nega-
ção do vácuo... "Em certas coisas há vácuo, em outras não há...". (é
um pouquinho como pensam Leibniz). Mas, no caso do Boyle, a
nova química só é possível se ele demonstrar que o vácuo existe.
Bom, vai haver uma briga colossal como Hobbes, que vai dizer:
"Não existe vácuo". Porque, dizer que o vácuo existe, significa
dizer que o nada existe; os seja, em termos eleatas, platônicos,
gregos, significa dizer que: o não-ser é. É isso que o vácuo signifi-
ca: o não-ser é. Então, não pode haver o vácuo. E Hobbes vai lá, na
Royal Society... as experiências do Boyle provar os enganos que
Boyle está cometendo. Então, Hobbes está dizendo: "Não tem
vácuo, coisa nenhuma! Tem uma enorme rarefação do ar. Por isto
que estas coisas aí acontecem". Mas, Boyle para dizer: "Tem vá-
cuo". Eu estou mencionando isto só pelo seguinte: a condição para
que uma ciência moderna como a química nasça é a existência de
um objeto tecnológico, um instrumento tecnológico, um instrumen-
to de precisão que garanta uma tese teórica. Então, Boyle vai cons-
truir uma máquina de fazer o vácuo. Torricelli vai fazer o tubo. Ou
seja, o que Cerry está dizendo é: a exigência de objetos técnicos,
como objeto de precisão, não é uma coisa que se passa externamen-
te à ciência. Este tipo de objetos se torna uma exigência imanente a
própria ciência. As ciências precisam destes objetos, até para se
conste do ele como tais. E o caso típico... nomes já vimos na astro-
nomia que sem luneta, o telescópio, Galileo não poderia fazer o
que fez. Galileo precisou da hipótese do vácuo para produzir a
primeira grande teoria mecânicas do movimento, e Boyle vai cons-
truir este objeto, que e é a bomba de produzir vácuo para garantir....
É isto que está acontecendo, esta mutação que está sendo feita. O
instrumento científico está na junção do mundo material e do fe-
nômeno matematicamente concebido. Ele produz, realmente, o
fenômeno. O caso de Galileo, agarrando a luneta, que empirica-
mente tinha encontrada por um holandês, mas, virando-a para o
céu... é um episódio que não se reduzirá mais. Por quê? Por que
doravante considerarão que é um dever seu construir seus próprios
instrumentos de observação, os seus próprios instrumentos de
medida e os seus próprios instrumentos de operação. Assim, não
deve causar espanto que sejam os cientistas que se vejam obrigados
a fazer, segundo as circunstâncias, o papel de artesãos. Eles somen-
te eles, e não os artesãos propriamente ditos, podem garantir o
sentido da exigência de queda solução técnica de problemas. A
qualidade (isto já falei e na aula passada) dos vidros das lentes,
indispensáveis para o uso das luneta astronômicas e os telescópios
e sem nenhuma medida comum com aquilo que faziam os fabrican-
tes de óculos. Não se contam os exemplos deste novo tipo de diá-
logo e de coloração. Descartes colabora com Ferrier ...?... [ 46:42]
para construir uma máquina de cortar vidros, Huygens trabalha
com Isaac Tourre ... ?... e depois com Salomão Coster ...?... para
fabricar pêndulo. Pascal precisa do seu artesão, De Ruan ...?..., o
para fabricar sua máquina de vácuo. Ou seja, o tempo todo o cien-
tista e o técnico com sendo indiserníveis. Newton consegue cons-
truir o seu telescópio com espelho quando... alguns anos antes, dois
excelentes artesões, Richard...?... e Christopher Cock fracassaram
para fabricar esse instrumento para o matemático James Gregory.
Huygens é também, em larga medida, o realizador e construtor dos
seus próprios instrumentos. Na pesquisa da precisão, que eles
animam, os promotores da ciência moderna são mesmo tempo
promotores de uma técnica que rapidamente vai se tornar um mo-
delo de toda a técnica perfomativa e progressista, que se pode
agora chamar agora de tecnologia da precisão. Os modernos não
erravam é medir a preeminência da sua ciência com relação aos
antigos, pela superioridade instrumentos como o telescópio e o
microscópio. E na verdade eles poderiam acrescentar o relógio ao
piano, a bomba de Boyle ao termômetro e ao barômetro. Poucos
homens de ciência não deixaram doravante o seu nome ao um
dispositivo material: uma máquina, um aparelho, a um.... Você fala
na máquina de pascal, na máquina de Boyle, na máquina de Torri-
celli, na máquina de Descartes; ou seja, eles deixam o seu nome
ligado à produção de um instrumento técnico, tanto quanto de uma
ciência. Explicar e produzir se tornaram estreitamente associados
nessa nova epistemologia. O conhecimento da natureza passa a
pelo conhecimento e produção de artifícios. O fenômeno elaborado
está no ponto final de uma técnica muito mais do que no seu come-
ço. A técnica é pensada mais como uma imitação da natureza, mas
como um enriquecimento, extensão, prolongamento da natureza ao
ponto de que a referência mesma a natureza começa a se tornar
cada vez mais supérflua e desnecessária. A referência constante é a
experiência, ao experimento, instrumentado e cuidadosamente
descrita. É assim que se deve descrever a narrativa feito por New-
ton da suas experiências em ótica. A experimentação é, daqui e por
diante, uma técnica dos efeitos científicos reproduzíveis e repetí-
veis à vontade. O tubo de Torricelli, a bomba de ar de Boyle, estes
dispositivos, que pela primeira vez, criam um ambiente totalmente
artificial, dando lugar a experiências cruciais da nova ciência.
Pode-se estabelecer que, por exemplo, o som, diferentemente da
luz, não se transmite no vácuo e que os corpos, mesmo de dimen-
sões e peso diferentes, caem com a mesma velocidade na ausência
do ar. Então,... foi este longo percurso que o descreveu os seis, nos
quais, no ponto final, o objeto técnico se torna decisivo para a
produção de um conhecimento científico. No ponto inicial, o co-
nhecimento científico se vale destes objetos; no ponto final, estes
objetos é que permitem a elaboração do próprio conhecimento
científico. Ora, todos estes acontecimentos evidentes para os mo-
dernos que nenhuma ciência pode ser o obra de um só; mas, que ela
tem de ser uma empresa coletiva. Em que ela não pode se desen-
volver se for mantida a ideia do segredo. Que portanto além de ser
62
obra coletiva, ela tem que ser uma obra pública. E pela envergadu-
ra dela, os sábios vão dizer (e há textos de Descartes, de Leibniz,
de Boyle, de Hobbes... todos eles) que esta empresa tem que ser
patrocinada pelo estado, patrocinada pelos reis e se realizar longe
das universidades. As universidades atrapalham o novo conheci-
mento científico. (elas são, como expliquei vocês nó passada,
profundamente conservadoras e reacionárias — então, os grandes
acontecimentos filosóficos e científicos da modernidade ocorrem
fora das universidades).
A recuperação do valor das velocidades parecer feita no
século XVIII a partir da revolução francesa. A revolução francesa
recria a ideia de universidade, a ideia de escola pública, de um
saber público, e a partir da revolução francesa você tem, então, a
reformulação das universidades em toda a Europa. E aí o valor que
elas passam a ter em toda a Europa. Mas é preciso esperar a revo-
lução francesa para isso acontecer. Ou seja, precisa esperar o ins-
tante no qual finalmente alguém diz, com todas as forças as armas,
põe a religião de lado, põe a religião de lado, põe os profetas fora
deste pedaço, põe o santos lá longe, os anjos mais longe ainda... e
vamos trabalhar!... se se quer uma universidade... tem que fazer
isso. Mas precisou da revolução francesa para fazer isso. Então,
além desta ideia de que é um saber público, de que é um saber
coletivo, de que é um saber que tem de ser um empreendimento do
próprio estado, que tem que ser dar à distância das universidades;
portanto, com a criação de colégios, academias, sociedades, associ-
ações, laboratórios, dos pesquisadores... também surge a ideia de
que há um desenvolvimento das ciências e das técnicas. Ou seja,
ideia que vem desde Giordano Bruno e Bacon, em que agora se
torna uma experiência real dos salários que é a ideia de progresso
das ciências. Progresso das ciências, o progresso das técnicas de A
ideia de que, portanto, o conhecimento se desenvolve. Toda esta
mudança pressupõe ainda uma mudança no conceito de natureza:
muda o que se pensa da técnica, muda o que se pensa do conheci-
mento científico e, evidentemente, muda o conceito de natureza.
Nós vimos que, desde os gregos, a natureza era pensada como
kinesis ...?... [ 56:33]; ou seja, como movimento entendido como
um processo de geração, vida e morte de todos eles, como um
processo dotado de finalidade e como um conjunto de mutações
qualitativas dos seres. A natureza era, portanto, esse grande orga-
nismo, que ser vivo, qualitativo, dotado de discussões internas
decorrentes dos seus componentes (água, ar, a terra de fogo), de-
correntes dos lugares naturais (os leves sobem, os pesados caem, a
substância do mundo sub lunar, são os quatro elementos no mundo
celeste, é o quinto elemento, ou éter, corruptível... e assim por
diante). E estes lugares, além de serem lugares naturais determina-
dos pelos elementos de que as coisas são feitas, estes lugares natu-
rais também são lugares inseparáveis da nossa percepção do espa-
ço. Estes lugares são marcados pelo: longe, perto, alto, baixo; os
corpos são marcados por: pesados, leves, quentes, frios; ou seja, a
natureza é toda feita de um tecido de qualidades. O tempo é o
tempo vivido, portanto qualitativo; o espaço, é um espaço organi-
zado qualitativamente e a natureza é este ser vivo em kinesis ...?....
O que é a natureza? A natureza se torna, em primeiro lu-
gar, algo inteiramente quantitativa, geométrico, matematizável. As
qualidades existentes não são qualidades da natureza, são qualida-
des que a percepção de imaginação humanas colocam na natureza.
O mundo qualitativo é o mundo subjetivo. A natureza objetivamen-
te não tem qualidades. A natureza se torna uma estrutura matemáti-
ca homogênea. Não há diferença mais
o céu e a terra, a lua e a terra; a primeira coisa que a astro-
nomia vez foi isso: a homogeneidade do universo. E a homogenei-
dade daquilo que todos os seres do universo realizam, isto é, o
movimento; só que o movimento não é mais de kinesis, o movi-
mento não é mais: nascimento, vida, morte... alterações qualitativa;
o movimento não é a um processo (que é que a kinesis é). O mo-
vimento é o estado do corpo, e um estado que pode ser medido.
O novo conceito de natureza decorrem, portanto, de duas
grandes mudanças que a ciência da natureza introduz. A primeira é
aquilo que Cuarre ...?... [61:06] chama "A geometrização do espa-
ço". O espaço deixe de ser pensado como um conjunto de lugares
naturais, que corpos que se distinguem uns dos outros pelas suas
qualidades ou pelos seus elementos e se torna um meio neutro,
homogêneo, sem qualidades, inteiramente mensurável; o espaço
são: linhas, pontos e figuras. É isto o espaço. Não há, portanto,
lugares naturais e não há distinção entre os corpos segundo sejam
pesados, leves, quentes, frios, próximos, distantes... tudo isso desa-
parece. Em segundo lugar, a mecanização do movimento, ou seja, o
movimento de ser mudança qualitativa, geração, vida e morte e a
realização de finalidades para se tornar o estado momentâneo de
um corpo.
As quatro causas desaparecem e a natureza explicada por
uma única causa, justamente aquela que na tradição era menos
importante de todas e que agora se torna sinônimo de causalidade,
que é a causa eficiente. Causa eficiente é a causa de todos fenôme-
nos naturais. Vocês se lembram que na tradição a causa mais im-
portante era a causa formal, a essência, e a causa final, o motivo
pelo qual algo acontecer. A causa forma auxiliava à causa material
para explicar porque uma coisa era assim que ou assada. E a causa
eficiente tinha este papel perfeitamente secundária que era o de
permitir que uma forma fosse ocupar uma determinada matéria, ou
que uma matéria recebesse uma determinada forma. Você se lem-
bram que nos vimos na definição aristotélica da técnica: a saúde
vem da saúde, por meio do médico; a casa vem da casa, por meio
do pedreiro. Nós havíamos visto que na concepção da técnica, a
técnica era efetivamente a causa eficiente, e a causa eficiente era
apenas um instrumento para que as verdadeiras causas pudessem
alterar. A operação da causa final, da causa formal e da causa
material pedia a contribuição de uma causa instrumental que rela-
cionava, que punha em relação, a forma, matéria, a finalidade.
Você se lembram que no caso das sociedades a causa eficiente era
o artesão. E vocês se lembram das análises que nós fizemos na
famosa taça de prata, do que o mais importante era a a finalidade, o
sacrifício, ao qual as estava destinada e o usuário. Ou seja, a causa
final comandavam processo e a causa eficiente, simplesmente,
obedecia os mandamentos impostos pela forma, pela matéria e pelo
fim. A forma, matéria, e o fim deviam à causa eficiente, estou é, ao
artesão, o que ele tinha de fazer. Ele próprio nunca tinha o autono-
mia nenhuma, liberdade nenhuma, inventividade nenhuma; ele era
um realizador de rotinas exigidas pela matéria, pela forma, pelo
63
fim. Isso tudo desapareceu. Não há mais finalidade, não se fala
mais em causa formal, não se fala mais em causa material: a natu-
reza é, pura e simplesmente, um conjunto de todos os movimentos
mecanicamente explicáveis pela causalidade eficiente. E é por isso
que era essencial, para Galileo primeiro, e para Descartes depois,
dizer: "Vamos separar, de uma vez por todas, o pensamento, a alma
e a extensão". Para que se façam uma ciência da natureza, para que
se conquiste a natureza, para que a natureza seja dominada é preci-
so desumanizá-la, isto é, tirar dela tudo aquilo que era uma visão
antropomórfica e antropocêntrica dela; pensá-la como mãe, pensá-
la dotada de fins, dotada de alma, dotada de inteligência: tira tudo
isso. E o que é que temos? Temos uma estrutura geométrica, uma
estrutura matemática de movimentos que explicam a existência de
todos corpos e de todos fenômenos naturais. Uma vez liberada a
natureza do peso do qualitativo e do peso do antropomorfismo e do
antropocentrismo a ciência e a técnica podem caminhar juntas sem
problema mais. Por que? Porque a técnica é justamente a famosa a
causa eficiente e a natureza é só causa eficiente; ou seja, o que
acontece agora é que a natureza deixe de ser um conjunto orgânico
e vivente de formas, essências, qualidades inerentes, funções, fins,
para se tornar de grandezas mensuráveis, cientificamente demons-
tráveis e sob a alteração exclusiva da causa eficiente. Todos os
fenômenos naturais, portanto, são corpos constituídos por partícu-
las dotadas de grandezas, figura e movimento. E o seu conhecimen-
to se dá por meio de leis necessárias do modo de composição e de
decomposição de partículas segundo as leis necessárias do movi-
mento: é pura mecânica. A ciência moderna é uma mecânica.
Consequente mente, o que é a natureza? A natureza é uma máqui-
na. E a máquina não é mais pensada como um estratagema astucio-
so e habilidoso para vencer uma dificuldade, a máquina é pensada
como um modo natural, normal de regular o funcionamento de
todos os corpos em movimento. É isto a máquina.
Boyle vai escrever o seguinte: "O universo é a máquina
semovente, o relógio determinado pelos dois princípios universais
dos corpos: a figura e o movimento". É isto natureza. Para esta
nova natureza, Deus, ainda que ele receba referência de "arquiteto
do diverso", "O geômetra perfeito", essas figuras ainda a pareçam,
na verdade, deus é pensado como um engenheiro; ele fabrica a um
mundo que está inscrito em caracteres matemáticos, como disse
Galileo (conhecer o mundo é saber ler o mundo escrito e caracteres
matemáticos), deus fabrica este mundo perfeito e caracteres mate-
máticos, mas — diferentemente de todos os demiurgos que durante
vinte e tantos séculos o comparam a metafísica, em que é o caráter
geométrico do mundo, perfeição geométrica do mundo, que conta
— agora não é isso que conta, o que conta é a perfeição da máqui-
na que fabrica e por isto que a imagem com a qual praticamente
todos os modernos se referem ao universo e a natureza é do reló-
gio: deus é este o relojoeiro perfeito. É célebre e a passagem de
Leibniz na harmonia preestabelecida quando ele diz: "Deus fez
dois relógios perfeitos , deu corda ao mesmo tempo e os pôs a
funcionar. O relógio da matéria e o relógio do espírito. E é a opera-
ção sincrônica, harmônica, simultânea, uníssona e perfeita destes
dois relógios que constituem o universo. O universo é a harmonia é
estabelecida por deus e entre um relógio que é o espírito e o relógio
que é matéria". É isto o universo. E, com é a diferença entre deus e
nós? A gente faz um relógio e... (agora não mais, né? Agora a
gente só toca bateria) dá corda. Deus deu corda uma vez só e aca-
bou.... Não sei se vocês percebem que a diferença entre nós e deus
não é de essência, é somente de grau. O relógio que eu fabrico, eu
preciso sempre dá corda nele. Deus faz e ele dá corda uma vez só.
Mas é sempre um relógio que um relojoeiro fabricou. Essa é a
figura da natureza, de um imenso relógio.
É por isso que Descartes nos Princípios Da Filosofia vai
inscrever o seguinte: "Não há diferença alguma entre as máquinas
que os artesãos constroem e os diversos corpos que se compõe a
natureza senão esta: que o os esforços das máquinas de vendem
apenas das ações dos tubos ou das molas e de outros instrumentos
que devendo possuir alguma a proporção com as mãos daqueles
que as constroem são sempre suficientemente grandes para deixar
aparecer suas figuras de seus movimentos, enquanto que os tubos e
as molas, produzidos pelos efeitos naturais, são geralmente bastan-
te minúsculos para serem percebidos por nossos sentidos". Portan-
to, a diferença entre o objeto natural e o objeto técnico é uma dife-
rença de grau. O objeto técnico depende do corpo do artesão de
portanto a capacidade de miniaturização que este corpo tem é
pequena, ou seja, eu percebo os elementos componentes da máqui-
na, eu abro o relógio e vejo as molas, as rodas, os dentes das rodas;
eu vejo tudo; porque isto é o máximo que o corpo do relojoeiro,
seus olhos e suas mãos, consegue fazer. Se eu olhar um verme,
mesmo que eu o olhe (daqui a pouco, eu vou citar um texto de
Leibniz)... com um microscópio poderosíssimo haverá partes dele
que eu não enxergarei como rodas, molas e estudos; porque o
relojoeiro divino, deus, fez isso em um grau de miniaturização e de
invisibilidade que um artesão humano não é capaz de fazer. Mas a
diferença é de grau. Quer dizer, o que e Leibniz vai dizer é: a dife-
rença é de grau porque, no nosso caso, por mais que eu diminua, eu
vou dar sempre tem algo que é incompatível com a minha mão de
meu o olho; e no caso a natureza vai muito além do que pode o
meu olho ou a minha mão. Mas é só esta diferença. Então, essa
identificação entre a natureza e a máquina, ou entre máquina e a
natureza, este processo pelo qual, primeiro, a ciência e a técnica se
articularam, e uma não vai sem a outra; e esta articulação decorren-
te da maneira com que a natureza é conceituada como matematizá-
vel e mecânica e redutível à dimensão de compreensão da mecâni-
ca (portanto, da máquina), todo este processo, faz com que se
estabeleça uma relação inédita, até então impensável, entre o saber
e o fabricar. Há um vínculo, agora; tal quis saber é saber fazer. Este
vai ser o grande adágio epistemológico do século XVII: só sabe
quem faz. Este é o núcleo da epistemologia do século XVII. Eu vou
voltar para a isto daqui a pouco.
Saber era saber fazer. E só sabe quem faz. Então, esta rela-
ção entre saber e fabricar (portanto, entre teoria e técnica) faz com
que a relação entre teoria e técnica (ou entre saber e técnica) tenha
algumas características muito novas. Primeiro, há uma inovação
quanto ao modo de emprego dos objetos técnicos, ou seja, eles se
tornaram instrumentos para fornecer informações quantitativas e
qualitativas sobre as coisas. Em segundo lugar, eles próprios são
produzidos a partir de informações científicas. Em terceiro lugar, e
como conseqüência, estes instrumentos, que fornecem estas infor-
mações de que foram eles próprios produzidos fora informações
64
científicas, passam a determinar os resultados das pesquisas cientí-
ficas; e, portanto, eles passam a determinar o conteúdo dos conhe-
cimentos teóricos, que era impensável antes desta mudança. Os
objetos técnicos não são meros auxiliares da observação, eles não
são uma melhoria dos nossos órgãos dos sentidos, eles não são
apenas o que nos permitem ver o que sem eles ficaria invisível.
Eles são tudo isso, mas isso não é o essencial. Estes objetos não
vêem mais ou melhor do que nós, não percebe mais ou melhor do
que nós; eles percebem, veem de outra maneira, de uma maneira
que nós poderíamos ter. Eles não são, portanto, uma prótese, eles
são o aparecimento de uma dimensão perceptiva, independente dos
olhos, que é absolutamente gigantesco. Se isso não vai dá para
entender o surgimento do automatismo do século XIX, do maqui-
nismo e do automatismo do século XIX. Tem que se perceber que
algo distinto do corpo humano, embora guardando todas as seme-
lhanças para uso humano (microscópio, telescópio, barômetro)
guardam essa semelhança, mas eles não são mais o nosso corpo
melhorado, eles são um outro corpo, visto, de modo geral, como
um corpo mais perfeito que o nosso. É assim, por exemplo, que o
microscópio, quando Leibniz toma o microscópio, ele considera
que o microscópio é o instrumento fundamental do que ele precisa
para a demonstração da metafísica do infinitamente pequeno. Mas
não porque o microscópio o faz ver coisas infinitamente pequenas,
e porque o microscópio faz ver a densidade e a continuidade dos
seres, do infinitamente grande ao infinitamente pequeno; o que o
microscópio permite é a verificação de uma tese metafísica sobre a
ausência de descontinuidade na natureza. É afirmação de que a
natureza é de tensão e descontínua. É isto que o microscópio faz...
ou seja, ele permite ver aquilo que eu jamais veria, porque nos
olhos não vêem desta maneira. O microscópio vê de uma outra
maneira, e esta maneira que ele vê garante uma tese metafísica, que
a tese da densidade e da continuidade de todos os seres do univer-
so. O telescópio havia garantido para Galileo a tese metafísica da
homogeneidade dos movimentos do universo inteiro; que não há
diferença entre o céu e a terra, entre o mundo lunar e o mundo
celeste. O telescópio permitiu isso; e o microscópio vai permitir a
Leibniz a demonstração da metafísica da continuidade.
Evidentemente, vocês se lembram, eu comecei a parte dos
modernos com os jardins, os jardins de Versalhes. Por quê? Porque
a paixão dos modernos, aquilo que estão procurando, é o autômato.
Eles estão procura da máquina perfeita, porque o que deus fez foi
um autômato. Quando você diz que deus é um relojoeiro perfeito, é
um ligeiro perfeito, o universo que ele fez é um autômato; precisou
do impulso inicial, depois do funciona sozinho. A marca do autô-
mato é não só a capacidade do funcionamento, mas de auto-
regulação... o autômato é capaz de corrigir seus erros e de auto-
transformação; um autômato é capaz de produzir uma mudança
qualitativa naquilo que ele faz. E então, o sonho dos modernos que
é uma máquina que seja um autômato. O que é um autômato?
Descartes vai dizer, no Discurso Do Método, o seguinte: "Uma
máquina móvel, que a ou o engenho humano pode produzir sem
pregar nisto se não pouquíssimas peças em comparação com o
corpo humano". Então, a máquina ideal, a norma de uma perspecti-
va maquinista é a da máquina que possui nela mesma o princípio
do seu movimento, o princípio da sua ação, o princípio da sua auto-
regulação e o princípio da sua autotransformação. Para os moder-
nos, a máquina, o autômato que eles conseguem fazer com toda
estas características é o relógio, mais que os autômatos que estão
nos jardins do rei: é o relógio. Mas, onde está o modelo do autôma-
to? O que leva a pensar autômato como a forma perfeita da máqui-
na, o modelo do autômato, a forma perfeita? É o corpo humano, é
ele o grande e o autômato. Eu vou ler um texto, o célebre, de Des-
cartes, no Tratado Do Homem, em que ele vai escrever o corpo
humano (é de Descartes que veio conceito de animal-máquina; ou
animou-máquina é o corpo do animal vivo, do qual o nosso corpo é
o caso é exemplar): "Relógios, fontes artificiais, moinhos e outras
máquinas do mesmo gênero, embora construídas pelos homens,
não estão desprovidas de forças para se moverem a si mesmas de
maneiras diversas e também para aquela máquina que supomos
feita pela mão de deus: o corpo humano. Para ela, não me parece
poder imaginar tantos tipos de movimento, nem atribuir-lhe tantos
artifícios que possam impedir pensar ainda em outros". Agora, eu
salto em trecho; vamos ver algumas descrições que ele faz da
máquina humana. "A respiração e outras ações comuns de nature-
zas semelhantes, como a circulação do sangue do coração e cére-
bro, a respiração, outras ações comuns de natureza semelhantes
desta máquina que depende do movimento dos espíritos animais
podem ser comparadas ao movimento de um relógio ou de um
moinho que a queda d'água pode tornar contínuo". Então, você
pode pensar em um moinho como um o autômato, assim como o
relógio é um autômato se eu esquecer um momento em que é preci-
so dar corda. Na Monadologia, Leibniz escreve o seguinte: "Assim,
cada corpo orgânico de um vivente é uma espécie de máquina
divina, ou autômato natural, que ultrapassa empiricamente todos
autômatos artificiais, porque uma máquina feita pela arte do ho-
mem não é máquina em cada uma das suas partes, por exemplo: o
ambiente de uma roda de latão de partes ou fragmentos que já não
são artificiais (então metal estava lá natureza). E já nada tem que
assinale a máquina com relação ao uso ao qual a roda estava desti-
nada; mas, as máquinas da natureza, isto é, os corpos vivos, ainda
são máquinas em suas menores partes até o infinito. É isso que faz
a diferença entre a natureza e a arte; isto é, entre arte divina e a
nossa". Então, a nossa arte há um limite, no instante que o objeto
que está compondo a máquina feita é um objeto encontrado na
natureza, este objeto não foi feito. Enquanto que no caso da máqui-
na divina, aquela que deus faz, ela é a máquina até o fim, ela foi
produzida por deus até o fim. Mas a diferença é de grau novamen-
te. A máquina que o ser humano faz é finita, a máquina que deus
faz é infinita. Mas,...?... são iguaizinhos, não há diferença entre
elas. A única diferença entre o artefato e o corpo vivo está no fato
de que sou corpo vivo é a máquina até o infinitesimal da sua cons-
tituição; e é por isto que o autômato perfeito é aquele que é um
autômato completo, ou seja, aquele que é uma máquina infinitesi-
mal, de tal modo que o ser vivo (ou o ser orgânico) é apenas um ser
mecânico levado a uma interação finita de si mesmo, e vice-versa.
O ser mecânico é organizado até a sua ínfima parcela de tal manei-
ra que existe máquina nas partes infinitesimais do organismo natu-
ral. E assim, também no organismo, as partes infinitesimais são
máquinas naturais. É por isso que, para Leibniz, mais até que para
Descartes, tecnologia deveria se voltar preferencialmente à tecno-
logia do infinitamente pequeno; porque se nós desenvolvermos a
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tecnologia dos infinitamente pequeno, nós estaremos cada vez mais
próximos da capacidade divina de produzir autômatos perfeitos. Há
dois modelos, dois grandes modelos, dou o autômato moderno. O
primeiro, já mencionei aqui muitas vezes, vem da astronomia e é o
relógio; e o outro, que eu já mencionei aqui também, veio da hi-
drodinâmica, é a bomba hidráulica. O relógio como máquina per-
feita, ou como o autômato perfeito, vai aparecer pela primeira vez
em Kepler; e o modelo do o autômato perfeito como uma bomba
hidráulica era trazido pela descrição do coração e da circulação do
sangue por...?...Harvey [94:46]. Kepler escreve o seguinte: "A
máquina do universo não é semelhante ao ser divino animar (por-
tanto, há um organismo vivente) e; a máquina do universo é seme-
lhante a um relógio e nela todos os variados movimentos dependem
de uma simples força ativa material, assim como em todos os
movimentos do relógio são devidos a um simples pêndulo". No
Mistério Cosmográfico, a máquina do universo é pensada por
Kepler geometricamente (era para eu para ter trazido a figura para
mostrar para vocês, aqueles que não conhecem, mas é fácil... em
qualquer google vocês encontram; peçam para ver a máquina do
universo projetada pelo Kepler) poliedros encaixados uns dentro
dos outros até o encaixe final, aquele que abriga todos poliedros e
que é o círculo; e Kepler vai dizer e este encaixe dos poliedros no
círculo era o que vai explicar o número de planetas, a ordem dos
planetas e a assimetria dos movimentos que eles realizam. Mas esta
concepção, que é uma concepção sinemática do universo vai ser,
logo em seguida, substituída por uma outra, que é uma concepção
dinâmica na qual o relógio vai entrar. Nesta concepção dinâmica,
Kepler vai substituir o círculo, que era a medida do encaixe de
todos os poliedros, pela elipse. Ou seja, a elipse de Kepler é a de
formação do círculo ou aquilo que tende para o círculo ao infinito;
então, a elipse é uma tendência ao circulo, mas uma tendência que
nunca se realizará. Ela é o círculo deformado. Mas porque que a
elipse entra? A elipse e lenta porque ela vai provocar àquilo que era
impossível provocar no círculo. Na concepção do círculo você tem
uma sinemática: um movimento regular continuo que o círculo
realiza. Agora, isto não dá conta do sistema planetário, porque o
sistema planetário não pode ser explicado sistematicamente; ele
tem que ser explicado dinamicamente; isto é, é preciso uma força.
Kepler vai falar em potência, é preciso uma potência; só Newton
que efetivamente vai introduzir a força da gravitação. Mas antes
que Newton fale em uma força, Kepler vai introduzir a noção de
potência. E a potência é aquilo que a elipse exprime. A elipse
espreme um um círculo que tem a potência de se mover em pólos
diferenciadas; ele pode, portanto, ele pode colocar os planetas em
diferentes pólos das diferentes elipses e explicar todo o sistema
planetário sem precisar daquela monstruosidade que eram os ele-
mentos que acabavam no sistema ptolomaico. A coisa se simplifica
enormemente desde que você pense a elipse como um círculo que
tem a potência de um movimento desigual. Isto que é introduzido
aqui. Ora, quando isso é introduzido é introduzida a ideia de que se
tem um autômato, de que o universo é um autômato, porque deus
colocou nele uma potência para se mover a si mesma. Então, invés
do movimento ser a (...?...) de todos os astrônomos, aquilo pelo que
eles foram parar na fogueira, aquilo pelo que os livros foram quei-
mados, agora a dinâmica, a força, a potência, movimento, torna-se
a melhor prova o da existência de deus como a inteligência supre-
ma; porque deus fez o autômato perfeito; porque a elipse é a prova
do automatismo perfeito do universo, a máquina perfeita do univer-
so. Agora, Harvey [foi um médico britânico que pela primeira vez
descreveu corretamente os detalhes do sistema circulatório do
sangue ao ser bombeado por todo o corpo pelo coração] vai escre-
ver o seguinte sobre a circulação do sangue: "Comecei a pensar que
onde há movimento, deve acontecer em um círculo". O ponto
interessante é o seguinte: quase que contemporâneos, Kepler vai
afastar o círculo da astronomia (não há mais lugar para o círculo na
astronomia), mas Harvey vai introduzir um círculo no interior do
corpo humano, porque a circulação do sangue é pensada por ele
como um movimento circular. "... comecei a pensar que onde há
movimento deve acontecer em um círculo". E aqui Harvey menci-
ona longamente Aristóteles e o movimento circular da água como
as nuvens, descem com a chuva rumo à terra, etc. Harvey é um
aristotélico; está fazendo uma revolução, mas ele é um aristotélico.
"... comecei a pensar onde é há movimento deve acontecer em um
círculo, e de modo semelhante, deve passar-se no corpo por meio
do movimento do sangue quando retorna ao seu soberano, o cora-
ção, como sua fonte ou morada mais interior para recobrar o estado
de excelência ou de perfeição. Aqui (no coração), o sangue e recu-
pera a fluidez natural, recebe a infusão do calor natural, férvido,
espécie de tesouro de vida, impregnada-se com os espíritos e com o
bálsamo para novamente dispersar-se. Tudo isso, depende, apenas,
do movimento e da ação do coração. O coração, consequentemente,
é o início da vida, o sol do microcosmo, assim como o sol em
movimento deve ser designado como o coração do universo". Feita
esta apresentação, Harvey vai descrever como se dá a circulação do
sangue, a grande que é pequena, o papel dos pulmões, diferenças
entre o sangue venenoso e o sangue arterial, e vai fazer toda uma
demonstração que destrói a anatomia e a fisiologia galênica, lucrá-
tico-galênica, porque agora ele vai demonstrar (e o livro em que ele
demonstra isto se chama De motumcordis - Do movimento do
coração), ele vai fazer uma apresentação do movimento do coração
que explica a vida. O coração é responsável pela vida. E ele é
responsável pela vida por causa do movimento que ele realiza; e
este movimento é de uma bomba hidráulica. A decisão que Harvey
faz da circulação do sangue e do movimento do coração é de uma
bomba mecânica. E é por isto que no final do século XVII, a fusão
do modelo astronômico do relógio e do modelo atômico (a bomba
hidráulica), fisiológica, vão se fundir para produzir a imagem ideal
do o autômato. E Borelli, no final do século XVII, escreve o se-
guinte: "O autômato tem uma certa sombra de semelhança com o
os animais na medida em que ambos são copos orgânicos automá-
ticos que empregam as leis da mecânica e são movidos por potên-
cias naturais". Portanto, a naturalização do o autômato e a arteficia-
lização da natureza.
Agora, eu quero completar... todas estas mudanças estão
articuladas a essa noção, que eu disse vocês, é o adágio epistemo-
lógico crucial do século: só sabe quem faz. Então, por exemplo,
Gassendi, vai escrever o seguinte: "A respeito das coisas naturais,
indagamos do mesmo modo que sobre as coisas que nós próprios
somos autores. Das coisas da natureza em que o isto é possível
usamos a anatomia, a química, e todos tipos de auxílios, a fim de
compreender, analisando e decompondo os corpos, até onde for
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possível, de que elementos de segundo quais critérios eles são
compostos". Gassendi considera que nós não estamos impedidos de
conhecer a máquina do mundo, porque pela a análise das sensações
e dos corpos, por composição e decomposição, até o limite, nós
podemos descobrir do que os corpos são feitos de como eles são
feitos e como ele se se movem". Por causa disso, Gassendi vai
dizer: não há diferença entre as máquinas que compõe o mundo e
aquelas que nós sabemos fazer; e, é porque aquilo que nós sabemos
fazer, e as coisas que estão no mundo, são de mesma natureza em,
eu posso conhecer o mundo. Mercenne, por sua vez, vai escrever:
"É difícil encontrar princípios ou no verdades na física. Pertencen-
do o objeto da física às coisas criadas por deus, não devemos nos
surpreender se não pudermos encontrar as verdadeiras razões e o
modo como essas coisas agem que padecem. Conhecemos, de fato,
apenas as verdadeiras razões daquelas coisas que podemos constru-
ir, seja com as nossas mãos, seja com o nosso intelecto; mas, nós
não podemos construir nenhuma das coisas feitas por deus". Contra
isto que o Descartes vai escrever para Mersenne, dizendo: podemos
fazer tudo. Esta ideia de Mersenne reaparece por motivos diferen-
tes em Hobbes, ele vai dizer como Mersenne: as coisas que deus
fez, estas nós não podemos conhecer. Mas porque Hobbes diz isto?
Enquanto Mersenne disse isso para garantir o mistério da ação de
divina, e a criação, e etc, e a religião... Hobbes diz: não dá para
conhecer, não dá para fazer uma física, não dá para fazer uma
metafísica, vamos deixar isso de lado, a religião que cuide disso,
nós vamos fazer outra coisa; nós fomos fazer política, vamos es-
crever sobre a política, sobre a ética, sobre a psicologia; isto é,
sobre aquilo que nós podemos fazer. Nas "Seis lições para os pro-
fessores de matemática", do instituto Servian, Hobbes escreve
seguinte (é a greve consagração do homem como o "themaker", o
homem como aquele que faz): "Entre as artes, algumas são de-
monstráveis, outras, indemonstráveis. São demonstráveis aquelas
nas quais a construção do objeto está no poder do artista (do arte-
são) que na demonstração apenas deduz as conseqüências da sua
operação. A razão disso está em que a ciência de um objeto é sem-
pre derivada do conhecimento prévio das suas causas, geração e
construção. Consequentemente, ali onde as causas são conhecidas,
há lugar para a demonstração, mas não onde as causas são procura-
das. A geometria era, pois, demonstrável, porque as linhas e figu-
ras, a partir das quais raciocinamos, foram traçadas e descritas por
nós mesmos. E a filosofia política é demonstrável porque somos
nós mesmos que fazemos do corpo político; mas, porque e dos
corpos naturais não conhecemos a construção e procuramos conhe-
cê-los pelos efeitos, não há demonstração do que são as causas que
buscamos, mas apenas o do que poderiam ser". Assim, o cuidado
que Hobbes tem, na abertura do Leviatã, que nós vimos aqui, é de
estabelecer uma analogia entre alteração divina (a natureza que a
obra de arte de deus) e a operação humana (o Estado é obra do
homem). Ambos os dois são máquinas, o homem, como deus, é "
The maker", o artesão,, é o fazedor. E assim como deus sabe o que
faz, o homem também. E só faço quem sabe; caso contrário, são
conjecturas, está fora do campo do que interessam para uma de-
monstração e para uma ciência, sobretudo para a ação humana.
Essa exigência de que é preciso saber aquilo se faz, e só se faz um
tiro que se sabe, esta exigência vai ser mantida para todos os filóso-
fos, independentemente deles afirmarem ou não a possibilidade da
metafísica, deles afirmarem ou não a possibilidade de uma física,
como é o caso, por exemplo, de Descartes. É claro que, para garan-
tir que se possa ter uma metafísica, que baseado nessa metafísica se
pode ter uma física (ou seja, que se tenha uma física tem que ser a
res extensa, independente da res cogitas — para isso se precisa ter
uma metafísica que mostre que existem só dessas duas substâncias
de como elas são separadas, para isso um deus veraz tem que ser
demonstrado). Descartes precisa demonstrar um deus veraz. Ele
precisa disso para garantir quando nós conhecemos, nós conhece-
mos verdadeiramente as causas das coisas. Por que ele precisa
disso? Ele precisa disso para segurar que a operação pela qual deus,
como um engenheiro, faz a natureza, é uma operação que nós
podemos conhecer e que nos permite, por nossa vez, sermos novos
engenheiros e criar nos nós naturezas e dominar nos esta natureza
que deus que fez. Então, a natureza criada, que é demonstrável para
Mersenne e para Hobbes, é perfeitamente demonstrável, segundo
Descartes. Ele faz uma metafísica que permita a isso. Então, ele vai
dizer que deus não está submetido a nenhuma verdade e nenhuma
lei, deus cria as verdades eternas de criar todas as leis. No momen-
to em que ele cria, esta criação era inteiramente contingente: deus
poderia perfeitamente ter decidido que dois mais três são oito; não
há nenhuma razão intrínseca à vontade divina que dois mais três
seja cinco. 2 + 3 são 5 porque deus decidiu que ia ser assim. Deus,
por um ato absolutamente contingente da sua vontade, cria as
verdades eternas e cria as leis necessárias da natureza; a partir daí,
estamos conversados: deus, se quiser, muda, faz milagre, muda,
suspende tudo isto (isto é lá com deus, ele sabe se ele quer suspen-
der tudo isto, fazer milagre, acabar com esse mundo... fazer outro...
isto é lá,... isto eu não posso saber). Mas, este mundinho aqui que
ele fez, este um aqui... tudo o que ele colocou aqui, ele colocou
como lei universal-necessária (eu posso conhecer como lei univer-
sal e necessária, portanto eu posso conhecer a natureza e possa
fabricar outras: deus me deu a capacidade para conhecer a sua
criação de — e se eu conheço a criação, e só sabe quem faz, eu sei
o que deus fez e agora vou saber o que eu faço). O melhor caminho
para isto, diz Descartes, é pensar a física como uma fábula: "nao
posso garantir que deus fez mesmo fundo deste jeito, mas posso ser
como Copérnico e de dizer, por hipótese, eu vou considerar que é
assim, assim e assim..."; no entanto, a minha metafísica vai garantir
para mim que esta física é verdadeira; então, se eu fizer física sem
metafísica, eu tenho que ficar numa posição igual à de Copérnico,
dizer: "É uma hipótese, por enquanto nenhum fato contrariou esta
hipótese". E explicar o mundo através da física que está nos Princí-
pios da filosofia. Se, entretanto, eu fizer uma metafísica que asse-
gure:1) quer características da a res extensa e são estas; 2) e que
depois que deus decidiu que estas eram as características da res
extensa, ela se torna leis universais e necessárias, a física está
garantida. Então, eu não tenho só a garantia da matemática, eu
tenho a da física também; e se eu a garantia da matemática e da
física, é óbvio que eu tenha garantia de toda a mecânica; e se eu
tenho a garantia da mecânica é óbvio que vou ter a garantia da
medicina. E é isto que interessa. O que Descartes que fazer... o
programa de Descartes, eu já disse vocês, é a medicina, que é o que
interessa para ele. Como Descartes e vai chegar lá? Como ele vai
da metafísica para física e da física para a medicina? Ele vai passar
um por uma compreensão do que seja o corpo humano. Ele produz
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a famosa teoria do animal-máquina, os seja, ele vai explicar o
corpo humano em termos da mecânica. Ele dispõe de uma física
que vai permitir a ele uma anatomia e uma fisiologia mecânicas
que depois vão garantir uma medicina. O animal-máquina é conce-
bido por Descartes como um autômato; é a figura do autômato que
vai presidir a elaboração cartesiana do corpo humano. O modelo,
para Descartes,, como foi para Harvey, é a bomba hidráulica: ele
vai pensar um modo de funcionamento do nosso corpo a partir da
bomba hidráulica, porque para ele, como para Harvey, o coração é
a sede da vida; que ele pensou coração, como Harvey, como fonte
de um calor interno de que a vida este calor interno. A diferença
entre Harvey e Descartes é que um considera coração um músculo
e outro, não; que esta diferença vai dar em outra. Mas, basicamen-
te, eles concebem o coração como fonte da vida, fonte da vida
porque ele é o centro do calor e o modelo era o da bomba hidráuli-
ca. Eu vou ler um pequeno trecho, de Descartes, que é muito céle-
bre, em que o corpo humano como máquina, ou como um autôma-
to, é descrito por ele no Tratado do homem: "Que já teve oportuni-
dade de ver de perto os órgãos das nossas igrejas, sabe como neles,
os foles impulsionam o ar em alguns receptáculos que, parece-me,
são chamados de porta-ventos. E como este ar entra nos túmulos,
ora em uns, ora em outros, segundo as diversas maneiras como o
organista move seus dedos sobre o teclado. Pode-se aqui conceber
que o coração e as artérias que impulsionam os espíritos animais as
concavidade do cérebro que de nossa máquina são como os foles
deste órgão que impulsionam o ar aos porta e-ventos e que os
objetos exteriores que se movem conforme os nervos faz com que
os espíritos animais contidos nestas concavidades entrem de lá em
alguns poros que sejam como os dedos do organista que, segundo
os toques que eles pressionam, fazem com que o ar que entre dos
porta-ventos a alguns tubos. E como a harmonia dos órgãos não
depende deste arranjamento dos seus tubos que se vê de fora, nem
da configuração dos seus porta-ventos e outras partes, mas só de
três coisas a saber: do o ar que vem dos foles, dos tubos que fazem
o som e da distribuição deste ar nos tubos. Assim também, quero
advertir que as funções, que são tratadas aqui no corpo humano,
não dependem de forma alguma da configuração exterior de todas
essas partes visíveis que os anatomistas distinguem da substância
do cérebro, nem das suas concavidades, mas só dos espíritos ani-
mais que vêm do coração, dos poros do cérebro por onde passam e
do modo como eles se distribuem nestes poros. Desejo que se
considerem todas as funções: respiração, a circulação do sangue, o
crescimento dos membros, nutrição, sono, vigília, recepção da luz e
do som, sensação, percepção, imaginação, memória, que todas elas
seguem naturalmente nesta máquina somente da disposição dos do
seus órgãos, nem mais e nem menos do que fazem os movimentos
de um relógio ou de um outro autômato, seus contra-pés e suas
rodas; de modo que não é necessária conceber, quanto a elas, al-
guma outra alma (alma vegetativa, alma sensitiva), nem um outro
princípio de movimento de vida além do seu sangue e que os espí-
ritos agitados pelo calor do fogo que queima continuamente no seu
coração e que não é de outra maneira que todos os fogos estão nos
corpos inanimados. Basta isto para saber que somos máquinas,
autômatos perfeito". O ponto culminate deste caminho... você se
lembram começa lá com Galileo, virando a luneta para o céu, Tico
Brahe e Kepler discutir dos movimentos de Marte, o microscópio e
telescópio passando a oferecer o infinitamente pequeno e o infini-
tamente grande, e o caminho pelo qual sabe quem faz, de tal modo
que finalmente a mecanização da natureza e a naturalização da
técnica conduzem, ao fim e ao cabo, não sou a essa transformação
da concepção de ciência e na concepção de técnica, mas da maneira
pela qual um ser humano passa a ser visto. Ele vai ter uma alma...
depois Descartes vai dizer, tendo uma alma, muita coisa vai funci-
onar de um outro jeito, mas do ponto de vista do seu corpo, o ser
humano é um autômato perfeito, criado por deus. E como nós
sabemos que ele é assim, nada nos impede de criar outros tão per-
feitos quanto. Os engenheiros criam os de jardins dos reis, Descar-
tes tinha um sonho de fazer isso na medicina e garantir para nós
não só longevidade mas de preferência, programa mínimo, a imor-
talidade.
Então, terminamos os modernos. Da próxima vez, Marx,
revolução industrial, trabalho e técnica do modo de produção capi-
talista e tudo o que vai acontecer até chegar no virtual.
Aula 10 (22-10-2012)
Hoje nós vamos examinar o surgimento daquilo que cons-
titui a nossa própria maneira de ter um pensamento e uma experi-
ência respeito da técnica (mesmo no mundo contemporâneo)...e
que é a identificação da técnica com o maquinismo, e que é aquilo
que se realiza quando o modo de produção capitalista passa da
forma manufatura para a forma indústria. Portanto, é aquilo que se
passa no modo de produção capitalista com a chamada Primeira
Revolução Industrial que vai ocorrer no final do século XVIII até
meados do século XIX. A Segunda Revolução Industrial, que
começa na segunda metade do século XIX e vai até a altura dos
anos de 1950 e, depois, a partir dos anos 50 do século XX; mas,
sobretudo, dos anos 60 à terceira revolução, só que esta não é a
chamada mais de "Revolução Industrial", ela é considerada uma
revolução pós-industrial. E ela é chamada de revolução informáti-
ca.
Mas, nessas três etapas, tanto na primeira como na Segunda
Revolução Industrial, como na revolução informática, a técnica
está vinculada à noção de maquinismo. Por que estou enfatizando
isto? Eu estou enfatizando isto porque é evidente que nem toda
técnica é uma máquina; basta nós lembrarmos que a palavratecné,
cuja tradução latina ars envolve as chamadas artes liberais, tanto
quanto às artes mecânicas e, portanto, envolve a dança, à música, a
escultura, a pintura; tudo aquilo que a partir do século XVIII o
pensamento burguês passou a chamar de belas-artes. Mas também
envolve aquilo que a antropologia passou a mostrar como constitu-
tivo da cultura: a culinária, o vestuário, a forma da agricultura e
assim por diante; ou seja, há um conjunto de técnicas a que se
referem, seja a questão das belas-artes, seja a questão do modo de
organização da cultura em diferentes sociedades que não identifi-
cam técnica e máquina.
No entanto, a Primeira Revolução Industrial, depois, a Se-
gunda Revolução Industrial, estabeleceram para a sociedade oci-
dental capitalista esta identificação entre a máquina e a técnica. Por
quê? Em primeiro lugar, porque (e é isto que nós vamos ver hoje) a
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máquina vai se tornar a condição da existência de todos os outros
objetos técnicos; então, todos os objetos técnicos que não são
máquinas (por exemplo, os objetos de precisão ou os objetos ne-
cessários para as belas-artes, ou ainda para vida cultural), sejam
eles de que tipo forem, tem, como condição para sua existência, a
máquina. Nós vamos ver que a máquina produz objetos técnicos.
Em segundo lugar, a máquina vai se tornar, na sociedade
industrial (capitalista), o paradigma da racionalidade, da sistemati-
cidade, da normatividade, que caracterizam as técnicas. Por quê?
Porque a máquina vai aparecer como o exemplo primordial, o caso
primordial, de uma causalidade controlada pelo homem, de uma
continuidade segura de ações e de um conjunto de concatenações
eficazes. Então, esses elementos do controle (controle da causali-
dade), a segurança (continuidades segura das ações) e a eficácia
(das concatenações produzidas por esta ação) fazem com que a
máquina se torne o paradigma, o modelo do que seria uma ação
racional.
E, em terceiro lugar, porque a máquina vai expandir a no-
ção de objeto tecnológico, que nós vimos, antecede à Revolução
Industrial (que é o momento do século XVII). Por quê? Porque a
máquina vai exigir novos conhecimentos científicos e vai permitir
a implementação de novos conhecimentos científicos. Então, aqui-
lo que era próprio do objeto de precisão, como definição do objeto
tecnológico, agora se transfere para a máquina: a máquina se torna
o objeto tecnológico por excelência; primeiro, porque ela é produ-
zida a partir de um saber teórico e, segundo, porque ela permite o
desenvolvimento de novas ferramentas para o desenvolvimento do
saber teórico, também. Então, ela provém de um conhecimento
científico e ela assegura que o desenvolvimento posterior desse
conhecimento científico. Então, ela é esteobjeto tecnológico que
tem a peculiaridade de... (eu vou insistiu muito nisso hoje) fabricar
outros objetos tecnológicos. Você tem o pêndulo, o cronômetro, o
relógio, o microscópio, o telescópio: eles são instrumentos tecnoló-
gicos, mas eles próprios não produzem um novo objeto tecnológi-
co. Eles são ferramentas que tem o seu uso claramente definido e
determinado, este objeto começa e termina nele o uso que ele tem.
A peculiaridade da máquina, como objeto tecnológico, é que ela é
capaz de produzir novos instrumentos tecnológicos; produz-se,
graças ao maquinismo, novos objetos. Então, vamos dizer, os
objetos tecnológicos como objetos de precisão clássicos são aque-
les que existem e cumprem uma função determinada; o objeto-
máquina (o objeto tecnológico "máquina") tem a peculiaridade de
ser capaz, dependendo das instruções recebidas, da finalidade
proposta e pelo controle que vai ser exercido, este instrumento é
capaz de produzir um instrumento novo: a máquina produz máqui-
nas, é isto que ela faz.
A máquina se torna o modelo, o paradigma do pensamento
da técnica, sobretudo, pelo modo como ela vai se relacionar com o
trabalho. Você se lembram que no início deste curso, o que eu
procurei mostrar foi a concepção do trabalho existente na Antigui-
dade, na Idade Média, e até um certo ponto da Renascença, que
circunscrevia a técnica em um campo mínimo da ajuda para o
homem na relação com a natureza, isto é, uma ajuda para que o
homem pudesse vencer um conjunto de obstáculos, postos a ele
pela natureza, e não mais do que isto; dada a função do trabalho
nas sociedades escravistas, dado o lugar menor ocupado pela inter-
venção técnica sobre a natureza, e a concepção mesma da natureza
como um ser vivente, autônomo, capaz de produzir a sua própria
existência. A concepção de natureza, a organização social escravis-
ta, o modo de conceber o trabalho como dor, fadiga, pena, castigo,
aquilo de que você precisa se livrar, e o vínculo entre a técnica e
uma natureza que opera por si mesma (e, portanto, a técnica sim-
plesmente imita a operação natural, todo este conjunto de concep-
ções está vinculada a este lugar menor que o trabalho tem nessas
sociedades).Ora, sabemos que o modo de produção capitalista só
existe porque inventa a figura do trabalhador livre (o trabalhador
livre como um trabalhador assalariado) e o crescimento da riqueza
(que é o capital, que é um caso inédito) – esta é a única forma
econômica na qual riqueza cresce e que se deve a um modo muito
peculiar da exploração do trabalho: o trabalho como força produti-
va. Então, esta alteração sem precedentes que o modo de produção
capitalista vai realizar sobre, primeiro, a figura do trabalhador. O
trabalhador deixe de ser um escravo, deixe de ser o servo da gleba
e deixe de ser o pequeno camponês independente e o pequeno
artesão independente – ele é expulso da terra, ele é expulso das
corporações e só resta a ele vender seu próprio corpo que o seu
próprio espírito, que é o que ele vai fazer no mercado da força de
trabalho: o chamado trabalhador livre, como Marx vai explicar.
Este capítulo que eu considero uma das coisas mais sensa-
cionais que alguém já escreveu, que o famoso capítulo que conclui
o primeiro volume do Capital, que é a acumulação primitiva, na
qual Marx vai mostrar como é que surge essa figuraesdrúxula
chamada de "trabalhador livre". E Max vai dizer: ele livre sim,
livre de possuir a terra para trabalhar, ele é livre dos instrumentos
para o artesanato, ele é livre de possuir um lugar para deitar, ele é
livre de possuir comida para comer, e assim por diante.... Ou seja,
ele não tem nada! Está completamente espoliado e expulso do
campo para a cidade. Na cidade, a espoliação dos artesãos, no
campo, a espoliação do campo por que os proprietários de terra vão
criar, por exemplo, as ovelhas para a indústria têxtil. E vão destruir,
portanto, toda a economia agrária-familiar e o pequeno proprietário
familiar, ou seja, toda uma população que é levada do campo para a
cidade e uma população da cidade que está espoliada. Esta massa
que surge vai ser a massa dos trabalhadores que têm uma única
propriedade para oferecer um mundo regido pela propriedade
privada: ele tem a propriedade do seu corpo, isto é, a propriedade
da sua força produtiva. É isto que ele tem, mais nada! E é isso que
ele vai vender no mercado. O proprietário privado dos meios soci-
ais de produção (que é isto que o capitalista é, é isto que o burguês
é)...
Eu vou abrir parênteses aqui. O que a direita, em toda a
Europa, nos EUA, então, através do departamento de estado norte-
americano, e depois pegando todas as Américas e aí, as igrejas, nos
púlpidos, etc., identificavam, e a partir evidentemente da exibição
hollywoodiana do Doutor Givago, a ideia de que o comunismo é o
fim da propriedade privada. Não é! O comunismo é distinção clara
entre a propriedade individual dos bens necessários à vida e ao
desenvolvimento corporal e mental de cada um que a sociedade
tem que assegurar para a todos. E a socialização da propriedade
69
privada dos meios sociais de produção. A propriedade capitalista
não é a propriedade privada. A propriedade privada existiu na
história do começo ao fim. A peculiaridade é que ela é a proprieda-
de privada dos meios sociais de produção: são os meios sociais de
produção que estão nas mãos do interesse privado, do poder priva-
do. Essa era a ideia de que o socialismo e o comunismo iam destru-
ir. Eles iam assegurar que os meios sociais de produção fossem
sociais e não privados. O que você tem então no momento no
momento da formação do capitalismo? Você tem a propriedade
privada dos meios sociais de produção; portanto, não é...
Alguns de vocês, eu acho, não eram nascidos na campanha
do Fernando Collor – a campanha do Fernando Collor foi uma das
coisas mais geniais, porque nem departamento de estado, nenhum o
pentágono nos seus momentos mcartistas mais burros teriam sido
capazes de uma coisa igual a esse e que surtiu efeito; a campanha
do Collor dizia o seguinte: primeiro, a rede Globo passava toda
noite, na sessão das dez, o Doutor Givago, e, de preferência, o
instante em que você tem a população de Moscou ocupando os
castelos da nobreza... e pegando tudo que era da nobreza, repartido
tudo; tinha o Doutor Givago toda noite e a propaganda do Collor
era a seguinte: "Você tem um apartamento, e o seu apartamento
tem três quartos, mas você usa só dois... então o pessoal do PT vai
invadir seu apartamento e pegar o terceiro quarto, porque é isto o
comunismo; você tem duas televisões – uma na sala e outra no
quarto – o pessoal do PT vai vir e pegar uma das televisões, porque
vai dizer que a família precisa de uma só, porque é isto o comu-
nismo"; então, o comunismo é pegar televisão, pegaram quatro,
pegar o segundo... é de uma burrice, de uma estupidez absoluta,
total! Só se compara à mulher do Serra carregando estátua de Nos-
sa Senhora Aparecida. [risos]. Só! Igual, eu nunca vi na minha
vida! E funcionou.... Funcionou porque a classe média... qual é o
terror da classe média? Perder a suíte, perder a terceira garagem,
perder o segundo carro. "– Imagine! A minha televisão liquida
(sic), lá, digital...". Os comunistas vão pegar tudo isso! Não pode!
Então, mas por que é possível toda esta ideologia absolu-
tamente alucinada! Porque se toma a noção de propriedade privada
dos meios sociais de produção como se fosse a propriedade privada
dos bens individuais necessários à vida de cada um. O que acontece
na emergência do capitalismo? Você tem uma massa que está
despojada de todas as formas de propriedade: da propriedade dos
meios de produção, da propriedade dos bens individuais para a
reprodução da vida e da propriedade do seu espírito do seu corpo
para se locomover, isto é, a liberdade de ir-e-vir. Você tem esta
massa espoliada e a propriedade privada dos meios sociais de
produção nas mãos de um grupo que vai formar a burguesia. É
nesse lugar que vai se dar a exploração. E o que vai acontecer é
que, ao vender a sua força de trabalho – que é a força produtiva –
para os proprietários privados dos meios sociais de produção, nessa
venda, evidentemente, o comprador é que ganha à parada.
Eu vou fazer uma caricatura aqui. E vocês não contem pa-
ra ninguém. Marx vai se torcer no túmulo com o que eu vou fazer
aqui, mas... não contem para ninguém.
A coisa é mais ou menos a seguinte: o trabalhador é con-
tratado para produzir 4 m de linho, coisa que ele pode produzir em
4h (1h para cada metro). Ele vai receber R$4. Só que ele vai traba-
lhar 8h, produzir 8 m de linho que vai ganhar R$4. Os R$4 que ele
não ganhou vão formar o capital. Então, o capital – esta riqueza
extraordinária que nunca houve na face da terra igual – esta riqueza
que é capaz de que crescer. Até chegar no capitalismo, a riqueza
não crescia, a riqueza se deslocava: Você faz uma guerra e a rique-
za deste reino que perdeu vai toda para o reino vitorioso; este reino
vitorioso e entra numa outra guerra e a riqueza dele vai para um
outro, se ele perder; e assim vai.... a riqueza se deslocava, ela não
crescia. O máximo de crescimento que você tem é aquilo que se
chama de riqueza suntuária, ou seja, os metais preciosos; mas
mesmo caso dos metais preciosos, isso não aumento da riqueza
social. No caso dos metais preciosos é o caso do aumento simbóli-
co da riqueza; porque esta riqueza suntuária não tem nada a ver
com a produção. Ela não tem nenhuma relação com o sistema
produtivo. Então, o capitalismo, é esta coisa fantástica de ser a
primeira forma de econômica na história humana em que a riqueza
cresce. E como a riqueza cresce? Então, a ideologia burguesa
explica que a riqueza cresce na hora do comércio. Então, o fusca
custou R$5.000 ao ser produzido e, aí, a Volkswagen põe na loja
dela por R$10.000. Então, estes R$5.000 a mais que ela vai ganhar
em cada fusca é que é o lucro. Não é nada disso! Isso tudo é bestei-
ra. A hora um em que o capital cresce é a hora em que o trabalho
na produção não foi pago. Então, um trabalhador trabalhou 8h,
produziu 8 m de linho e recebeu R$4, correspondente a 4 m de
linho que ele faria em 4h. Estes R$4 que não foram pagos vão
constituir a mais-valia, ou mais-valor, e isso que vai fazer o capital
crescer. Muito bem.
É neste espaço que a máquina vai aparecer. Quando se
passa... a primeira forma em que o capital... que o capitalismo vai
assumir no campo da produção vai ser a manufatura, que é o mo-
mento no qual as corporações são todas desfeitas e surge, nas
cidades, a reunião dos artesãos para tarefas em comum, e isso vai
prosseguir, evidentemente, com a indústria. O que interessa que
não é questão da manufatura; aqui, não interessa só a questão da
Revolução Industrial... e não ela, propriamente dita (vamos tratar
disso), mas, por que que com ela o paradigma da máquina se trans-
forma no grande paradigma sócio-cultural do ocidente, esta refe-
rência fundamental à máquina e ao maquinismo, ou seja, a identifi-
cação da técnica e da máquina, ou a técnica como maquinismo. É
isto que me interessa na aula de hoje.
Com relação ao trabalho, o que a máquina vai fazer? Na
medida em que ela é o paradigma da ação racional, que ela garante
a sistematicidade, a normatividade, o controle, a eficácia da ação, a
máquina vai aparecer com o poder de uniformizar diferentes traba-
lhos, regularizar diferentes trabalhos, retificar as ações dos traba-
lhadores que, sobretudo, vai amplificar os gestos necessários dos
trabalhadores na produção. Ou seja, a máquina vai ser um elemento
poderosíssimo de controle social. Ela não é apenas um objeto de
desenvolvimento econômico, ela é também um objeto técnico que
assegura o controle social. Essa é uma nova peculiaridade que a
técnica vai assumir. Este lugar ela nunca tinha tido; e ela nunca
tinha tido porque em nenhuma outra sociedade o trabalho e a ex-
ploração do trabalho tiveram o sentido que tem no capitalismo. Na
medida em que o trabalho e a exploração do trabalho no capitalis-
70
mo é o que explica a produção do capital, a acumulação do capital,
a reprodução do capital, a ampliação do capital, é óbvio que tudo
vai girar em torno do poder que vai ser exercido sobre o trabalho: o
capital depende intrinsecamente do trabalho e, portanto, a ideiaé de
exercer um controle total sobre o processo de trabalho.
O primeiro elemento que vai realizar isto, nesta fase da Re-
volução Industrial, é a máquina. Ela que vai fazer isto. E é sobre
isso, com uma variante que ficou faltando, mas que eu só vou
explorar na próxima aula... mas... é disso que trata Charlie Chaplin
nos Tempos Modernos. É o trabalhador inteiramente devorado pela
máquina, porque ele é controlado por ela. A máquina vai controlar
o tempo, espaço, os gestos, o corpo, o espírito, do trabalhador. É a
primeira vez que a técnica não vai ser apenas aquilo que os moder-
nos esperavam que ela fosse. O que eles esperavam? Que ela fosse
este instrumento poderosíssimo a exercer o domínio sobre a natu-
reza a serviço de uma vida melhor para os seres humanos. Era este
o sonho dos modernos. O sonho de Bacon, de Descartes, de Leib-
niz. Eles sonharam com isto, como sonharam os magos da Renas-
cença. Haviam sonhado com isto... que você possa ter um controle,
um domínio sobre a natureza tal que favoreça a vida humana.
Agora, nós vamos ter uma situação completamente diferen-
te, porque não só a técnica vai ser esta operação de exercer condo-
mínio e o controle sobre a natureza, mas ela vai ser este procedi-
mento para exercer condomínio e o controle sobre os seres huma-
nos. Esta é uma mudança também sem precedentes. Vocês se
lembram que até aqui havia uma certa autonomia do ser humano
com relação aos objetos técnicos, mesmo que ele os produzisse,
que eles fossem objetos de precisão, que eles ajudassem no cresci-
mento das ciências, mas o instrumento está lá e o ser humano está
aqui. Agora, não é mais isso. Agora o instrumento está aqui, absor-
vendo a natureza, ele faz isto, absorvendo e controlando trabalha-
dor. E isto se chama "o maquinismo". E é o maquinismo uma
invenção do modo de produção capitalista.
O primeiro tópico que eu quero mencionar é o aparecimen-
to de um novo campo científico que seria impensável até o final do
século XVII e que começa a se desenvolver no século XVIII pega
todo o século XIX, que é uma ciência chamada "ciência das má-
quinas" ou "mecânica industrial". No final do século XVIII, no
início do século XIX, portanto, quando está começando a se reali-
zar a Primeira Revolução Industrial, vai surgir um tipo novo de
escola, que é a escola que vai trabalhar com a ciência das máquinas
ou com a mecânica industrial: a escola de engenharia. E o que é
interessante, nós temos a ciência das máquinas (ou mecânica indus-
trial) e o nome que a escola de engenharia recebe –é o nome que
ela tem na França, primeiro, e isso se repete também na Alemanha,
na Itália, e vai aparecer na USP, criada por uma missão francesa: a
escola de engenharia se chama Escola Politécnica. Ela é o lugar da
técnica. Então, esta identificação da técnica com a máquina, essa
identificação da máquina com mecânica, a mecânica com a indús-
tria,engendra uma exigência de saber e de conhecimento que pro-
duz o nascimento de um tipo de ciência novo e um tipo de escola
novo, que é a escola politécnica. E não é por acaso que ela se cha-
ma "poli" técnica, ela é uma escola que ensina técnicas. Mas que
técnicas, ensina uma escola de engenharia? Ela ensina máquinas:
construir pontes, derrubar pontes, construir túneis, derrubar túneis,
construir um metrô, derrubar metrô... automóveis, aviões... todas
essas coisas que se fazem numa escola de engenharia. É construção
e demolição de máquinas: é isto que ela é.
Qual é a novidade? A novidade é que, nós já tínhamos visto
que os renascentistas haviam firmado a dignidade das artes mecâ-
nicas, nós havíamos visto que os modernos mostraram que sem a
tecnologia não era possível o desenvolvimento da ciência; portanto,
colaboração entre o conhecimento mecânico, ou dos mecânicos, e o
conhecimento científico na produção dos objetos de precisão. Mas
agora um passo a mais é dado, um passo inteiramente novo que não
é mais o de afirmar a dignidade das artes mecânicas, nem de afir-
mar que elas são necessárias para o desenvolvimento da ciência, é
afirmar que elas são objetos científicos, elas são elevadas à digni-
dade de ciência. A técnica se torna, portanto, objeto de ciência, ela
não é mais aquilo que a gente viudesde o começo do curso, esta
prática que ou é menosprezada, ou é elogiada, ou que é colocada na
condição de auxiliar... agora não. Agora ela ganhou o estatuto de
ciência; a técnica ganha, portanto, o estatuto de conhecimento
teórico para o projeto, a invenção, o projeto e a construção de
máquinas.
E as escolas de engenharia europeias (e, depois, vai ser o
caso da politécnica em São Paulo) estão diretamente vinculadas à
grande indústria, ou seja, os programas das escolas de engenharia
são determinados pelas necessidades, carências e exigências da
grande indústria. É aquilo que é preciso para o desenvolvimento da
grande indústria que se torna o objeto de ensino nas escolas poli-
técnicas ou nas escolas de engenharia. O núcleo deste ensino, que é
o coração da máquina, é o de propor o desenvolvimento da explo-
ração industrial sistemática das fontes de energia e das formas de
energia. Passar de energia animal e da energia humana à energia
natural, mas uma energia natural controlada. Donde a importância
que vai ter a máquina a vapor e todas as máquinas ligadas à hidro-
dinâmica. Depois deste lugar ocupado pelo vapor e pela hidrodi-
nâmica se associa auma outra fonte de energia, que é o carvão, a
exploração do carvão, e depois vapor e carvão cedem o lugar (eles
não desaparecem, mas eles cedem a primazia como fonte de ener-
gia) para a eletricidade. Então, o percurso vai: hidrodinâmica,
vapor, carvão, eletricidade... e prossegue.
Aideia nuclear é: a ciência das máquinas é inseparável do
desenvolvimento de conhecimentos e formas de exploração siste-
mática das fontes de energia. Isto é inteiramente novo, também;
mas, é isto que vai definir uma máquina. Quando ela deixa de ser
movida pela força do homem, como a alavanca, ou pela força do
animal, como o moinho ou o arado, quando ela passa a ser movida
por outras fontes de energia. Este é o núcleo das escolas de enge-
nharia.
E é por isto que um dos pontos centrais na mudança do es-
tudo das máquinas – seja para sua invenção, seja para sua constru-
ção – a mudança teórica mais importante, que vai ocorrer, produzi-
das pelas escolas de engenharia, é a passagem do estudo do que
eles chamavam de a máquina em repouso, ou a máquina em estado
de equilíbrio, para a máquina em movimento, ou a máquina nem
alteração. Ou seja, a máquina em estado de equilíbrio, ou a máqui-
71
na em repouso, é a máquina geometricamente e fisicamente conce-
bida. A máquina em movimento é a máquina em operação, que é
concebida, agora, pelo engenheiro. E essa operação, esta máquina
em movimento, esta máquina em operação, vai se chamar "a má-
quina em trabalho". Surge a ideia do trabalho mecânico como
trabalho que a máquina executa. Nós temos, portanto, o trabalho
como força do trabalhador e o trabalho como aquilo que a máquina
realiza. E é por isso que o trabalhador e a máquina fazem parte das
forças produtivas.
Eu não vou mexer nisso aqui, mas, mais adiante, a gente
pode falar. Mas, toda a análise que Marx faz da maneira pela qual o
trabalho morto, que é a máquina, se apropria do trabalho vivo, que
é o trabalhador. O que eu quero assinalar é simplesmente isto: que
a máquina em operação, a máquina em movimento, é chamada "em
trabalho". Então, lá no início do curso nos vimos que não existia
nem palavra para designar trabalho; havia, nas línguas antigas não
existia nenhuma palavra para designar trabalho. Agora, o trabalho
se torna nuclear e é ele que define o que a máquina faz.
O segundo aspecto que eu quero mencionar aqui é o sur-
gimento da figura do engenheiro; o técnico como um engenheiro.
Um dos engenheiros mais interessantes que é muito estudado nos
livros de história da técnica, e da história das máquinas, é um
inglês chamado Smeaton. É ele o primeiro, no caso da Inglaterra, a
estabelecer uma relação clara e sistemática com os empresários
capitalistas. E de pensar a função do engenheiro como a de um
inventor de objetos mecânicos postos para o desenvolvimento da
grande indústria; da passagem da manufatura para a grande indús-
tria. E, para isto, este engenheiro, vai introduzir uma noção nova
com relação às máquinas de que explica porque que a noção de
máquina em movimento vai se tornar tão importante e porque se
fala em trabalho mecânico. O que ele vai introduzir é a ideia de que
uma máquina produz uma multiplicidade de instrumentos.
[42:36]Em geral, se pensa a máquina como uma ferramenta
que produz um efeito: ela levanta um peso, ela derruba um objeto,
ela abre um sulco na terra, ela torce o fio; a ideia de que uma má-
quina possa produzir uma multiplicidade de efeitos era a grande
novidade que vai ser colocada na máquina e que vai explicar por
que se fala em trabalho, porque se fala em trabalho mecânico; ou
seja, a máquina é pensada como uma multiplicidade de operações
simultâneas ou sucessivas que permitem, através de um conjunto
de defeitos diferenciados, realizar um trabalho que é o único. O
trabalho realizado é único; as operações, entretanto, são múltiplas,
elas estão articuladas e conectadas entre si para produzir um resul-
tado único, de tal modo que as máquinas têm que ter um centro
operatório, que garanta a pluralidade dos efeitos, a simultaneidade
(ou sucessão) deles e a articulação segura entre eles. Este centro
pensado como um autômato. Então, é ideia de que a máquina tem
que ter um centro automático que vai garantir a pluralidade de
efeitos que ela capaz de realizar na produção de um trabalho. E é
por isso que ela é pensada como um trabalho, já que a noção de
autômato está ligada fundamentalmente ao homem. O homem é a
máquina, por excelência, que se move si mesmo. O trabalho é a
expressão deste automovimento. O que se pensa é uma máquina
que tenha um centro automático capaz de controlar, na simultanei-
dade e na sucessão, uma pluralidade de operações. Como o ser
humano controla o trabalho da mão direita, da mão esquerda, do pé
esquerdo, do pé-direito, do torso, da cabeça, os olhos, etc. O corpo
inteiro do trabalhador está posto em ação; é o corpo inteiro da
máquina que vai ser posto em ação. É Smeaton o primeiro que
pensa isto.
Eu cito um pequeno trecho de Séris (está na bibliografia de
vocês), no livro Machineetcommuniction (ele se refere à contribui-
ção de Smeaton): "Ele procura alguma coisa que inquietava não os
artesãos mas os industriais com métodos que são os métodos dos
físicos experimentais. Sua tentativa se inscreve na série de esforços
para definir uma unidade de potência (ou uma unidade de força) e
uma unidade de trabalho. Esta pesquisa é um dos traços que carac-
terizam o final do século XVIII, isto é, o esforço para particular
uma mecânica racional com uma mecânica prática".
O terceiro ponto que eu quero mencionar, terceira figura
que é importante, é a do professor de engenharia, que é o cientista.
O cientista (professor de engenharia)... e, eu vou tomar aqui um
dos professores, porque ele é um dos criadores da polytechnique,
na França, que é Carnot. Carnot vai explicar aos seus alunos o que
é a ciência das máquinas. A primeira coisa, ele diz: "Essa ciência
ainda não existe, essa ciência é uma ciência que nós estamos crian-
do, e estamos criando na escola polytechnique, nós estamos crian-
do na escola de engenharia. Por quê? Porque o que se tem até agora
(diz ele) são tratados que explicam máquinas particulares: este tipo
de máquina, aquele ativo de máquinas, e, sobretudo (diz ele), os
tratados sobre as máquinas as máquinas simples (as cinco máqui-
nas simples: a alavanca, a polia, o cabrestante, o parafuso, etc.).
Não só os tratados se referem a máquinas particulares, como, de
um modo geral, eles se referem aos instrumentos, as ferramentas,
que são as suas cinco máquinas simples. Ora, o que é preciso? É
preciso passar dessa pluralidade de máquinas e das ferramentas
simples a uma concepção universalizante da máquina, o que é a
máquina em geral, quais são as propriedades e funções que toda a
máquina tem que ter de, sobretudo, o trabalho deve se voltar para
as máquinas compostas e não para a descrição de uso de máquinas
e simples, que são ferramentas". Então, a primeira coisa importante
proposta por Carnot é a da generalização do conceito de máquina;
e, nesta generalização, a importância que é dada à composição da
máquina. O que é a composição (vou trabalhar mais isto daqui a
pouco) na máquina de uma ferramenta. E esta distinção, vocês vão
ver, é fundamental para Marx, a distinção entre a máquina e a
ferramenta; ou o que Marx chama de a máquina-ferramenta; a
máquina e a máquina-ferramenta. Esta, então, é a primeira exigên-
cia do que seria a ciência das máquinas.
Em segundo lugar, esta ciência, que tem ambição de ser
universalizante ou o mais geral possível e, portanto, não se deter
nas propriedades específicas de máquinas específicas, ela deve
considerar aquilo que não foi feito, segundo Carnot, até então, ela
deve considerar a máquina um corpo intermediário, cuja massa e
cuja inércia devem ser deixadas de lado para ficar apenas com este
corpo em ação ou em operação. Isso significa que a partir de Car-
not surge uma teoria das máquinas como não mais um ramo parti-
cular da mecânica, mas como sendo a mecânica propriamente dita.
72
Agora, eu cito, um texto de Carnot. Carnot diz o seguinte: "Trata-
se de considerar a ação recíproca das diferentes partes de um sis-
tema de corpo, que é a máquina, entre os quais se encontram aque-
les que estão privados da inércia que é comum a todas as partes da
matéria, tal como existe na máquina da natureza para ficar com
aquelas que retiveram da natureza o nome de máquina. A máquina
não é apenas um corpo, ou um conjunto de corpos, desprovidos de
partes e de propriedades, mas sim, há um conjunto articulado de
órgãos. A máquina é uma força natural". Então, a ciência das má-
quinas vai apropriar, portanto, da totalidade da mecânica. Primeiro,
ela se apropriou da mecânica prática que, depois, da chamada
mecânica operacional. A tarefa, portanto, da ciência das máquinas
é encontrar o movimento a real que uma máquina fará graças à
ação recíproca dos corpos que a compõe. Distinguindo o que um
corpo natural faria e o que este corpo artificial fará; mas, pensando
estes dois corpos, o natural e o artificial, da mesma maneira, isto é,
como força (como energia). A máquina, então, vai ser definida
pelos primeiros professores de engenharia, ou pelos primeiros
cientistas-engenheiros, como um sistema de corpos duros no qual o
movimento virtual (o movimento que ele pode realizar) é alterado e
modificado por um outro movimento real (aquele que está sendo
realizada) de tal modo que a máquina deve ser pensada como uma
interação entre corpos duros que possuem movimento real e movi-
mento virtual. Esse vai ser um modelo clássico da máquina do
maquinismo da Primeira Revolução Industrial. Na verdade, vai
atingir a Segunda Revolução Industrial, também; a noção de eletri-
cidade não vai modificar isto. O que são as máquinas, portanto?
Carnot diz o seguinte: "As máquinas, em geral, são corpos que nós
interpomos entre duas com mais potências para transmitir a ação de
um para o outro, seguindo determinadas condições, de acordo com
o que o objeto pode preencher. De que a potência se trata? De que
a ação se trata? Trata-se do efeito que a máquina deve produzir.
Estes efeitos são completamente diferentes se a máquina é pensada
como estando em equilíbrio ou se ela é pensada como estando em
trabalho. No caso do equilíbrio, não se tem como considerar senão
a intensidade das forças que operam; mas, no caso da máquina
emmovimento, no caso da máquina em trabalho, deve-se conside-
rar não só a intensidade das forças em alteração, mas também o
caminho que em cada uma delas tem que percorrer e as articula-
ções entre elas). Esta concepção, eu venho ao meu quarto ponto,
que é a da máquina em movimento e da máquina em trabalho, essa
concepção de que se trata de uma interação entre corpos duros,
segundo os movimentos virtuais e movimentos reais em interação
para obter uma pluralidade de efeitos (é isso a máquina), essa
concepção (da máquina) vai levar à ideia de que a máquina é um
organismo. Que ela tem que ser pensada como um organismo.
Carnot diz o seguinte: "O efeito de uma máquina em repouso e o
efeito de uma máquina em trabalho são efeitos muito diferentes. E
mais: são heterogêneas. No caso da máquina em equilíbrio ou em
repouso, trata-se de destruir, a de impedir, o movimento. No se-
gundo caso, o da máquina em movimento ou da máquina em traba-
lho, o objeto é fazer nascer o movimento de conservar o movimen-
to; e é claro que o movimento exige uma consideração muito maior
do que o repouso. O que é exigido agora? É exigido conhecer a
velocidade real de cada ponto do sistema". Nós não podemos avali-
ar o que significa isto se nós não pensarmos qual é a máquina que
está na cabeça desses engenheiros. A máquina que está na cabeça
desses engenheiros, em primeiro lugar, é a máquina a vapor; mas, é
sobretudo um conjunto de correias de transmissão, com rodas
dentadas, múltiplas engrenagens, alavancas, paradas, procedimen-
tos, centro de calor, centro de resfriamento, e assim por diante... ou
seja, (já, já, quando nós tomarmos o texto de Marx nós veremos do
que se trata). Trata-se de um corpo absolutamente colossal, consti-
tuído de um conjunto colossal de partes que estão articuladas umas
às outras segundo lugar que elas ocupam, a velocidade com o qual
elas operam e o tipo de efeito que cada uma dessas operações sobre
as outras partes da máquina e a máquina no seu todo. Ou seja, a
noção de máquina em trabalho, ou a noção de trabalho mecânico, é
isso: é percepção da máquina como uma complexidade de partes,
todas elas articuladas que essa articulação determinando o modo de
relação das partes entre si, a maneira como há uma transmissão (eu
vou já, já, falar da questão da transmissão) de movimento de uma
parte para outra e o modo como essa transmissão se dá segundo
velocidades distintas, temperaturas distintas para a obtenção de
efeitos distintos. Então, uma única máquina é esta pluralidade de
máquinas, no fim das contas, operando em conjunto. É disso que se
trata quando eles falam em trabalho mecânico ou a máquina em
movimento. Agora, por que ela é pensada como um organismo?
Porque esse conjunto de objetos, de partes, que constituem a má-
quina, constituem em primeiro lugar aquilo que se chama a força
da máquina ou potência da máquina, a energia da máquina. E
Carnot vai dizer: "As forças são consideradas na razão direta dos
efeitos a serem obtidos, de tal maneira que nós agora podemos
entender o conceito leibniziano de forças vivas". Eu não vou de-
senvolver aqui, não é o caso, mas toda a metafísica leibniziana vai
chegar ao conceito de forças vivas. Leibniz estava trabalhando e
chega à noção de força; Newton está trabalhando e chega à noção
de força; os dois vão chegar à noção de força. Só que, no caso de
Newton é esta força geral, genérica, universal, da natureza que é a
gravitação e no caso de Leibniz é um tipo de potência que todos
seres do universo possuem e que é mais do que aquilo que tem
Spinoza, em Descartes, em Hobbes, se chamava conatus. O cona-
tus é o esforço de autoperseverança na existência. A força viva,
segundo Leibniz, é mais do que isso, ou seja, com a noção de força
viva, e com a noção de força da gravitação, o que estes dois pensa-
dores introduzem é uma concepção dinâmica do universo. O mo-
vimento que era pensado de maneira cinemática, passa agora,
graças à noção de força, a ser pensado dinamicamente. Só que um
está lá explicando o que acontece no céu, e assim no céu como na
terra; e o outro, faz uma elaboração metafísica. Carnot diz agora:
"Se eu trabalhar com a máquina com este conjunto de corpos duros
em interação, numa interação e uma articulação para a produção de
uma pluralidade de efeitos, em função da maneira como um se dá a
ação de um corpo sobre outro e o modo como cada um transmite ao
outro o seu movimento, eu dei concreticidade àquilo que metafísica
chamava de força viva, ou seja, eu tenho que pensar a máquina
como um corpo dinâmico". A máquina é mecânica, porque ela é
movimento, só que este movimento não é mais o da máquina em
repouso, que é cinemática, mas é o da máquina em trabalho, que é
a dinâmica. A ciência da máquina, portanto, é a introdução de uma
concepção dinâmica do objeto técnico. Ele não é possível objeto de
precisão, ele não é a ferramenta útil, ele é uma operação de energia.
73
É isto que ele é, e é por isso que a função das escolas de engenharia
é ensinar as maneiras sistemáticas, racionais, e mais eficazes, de ter
o controle das fontes de energia; porque é isto que uma máquina é:
ela é uma operação de energia.
Isto significa que, eu dizia a vocês, vai haver a tendência
a... Se eu introduzo a noção de pluralidade de partes, a articulação
dessas partes, transmissão de movimento de uma parte para outra, e
penso tudo isso como uma operação simultânea e sucessiva de
energia, é óbvio que o modelo que subjaz à concepção da máquina,
agora que ela é dinâmica, já não pode ser um modelo que valia para
uma máquina em equilíbrio, a máquina em repouso, a máquina
cinemática. O modelo para ser o do corpo humano, ou do organis-
mo vivo; a máquina vai ser pensada como um organismo. Então,
quando era pensada como um organismo, ela é estudada pelas
escolas de engenharia que propõem estudar as máquinas por de-
composição das suas partes primordiais e imitar (é textual isto; os
professores de engenharia dizem); um professor de engenharia e o
conhecedor das ciências mecânicas ou da ciência das máquinas é
aquele que deve imitar o anatomista e o fisiologista; ele deve de-
compor todas as partes que formam a estrutura da máquina ele
deve conhecer a função de cada uma dessas partes e o modo de
relação entre essas funções. A máquina é portanto um organismo
vivo. A gente roda, roda, roda... e chega lá... sempre! Nós vimos
que a concepção de natureza vai, vai, vai... ele é sempre um grande
organismo vivo! Aí você separa a técnica da natureza, dizendo que
é uma coisa não tem nada a ver com outra, a técnica não imita a
natureza... tudo o que nós já vimos.... E aí vamos pensar como é a
máquina...: a máquina é um organismo vivo! Ela é pensada como
um organismo vivo. Tanto é assim que as máquinas possuem ór-
gãos; então, as partes são descritas como órgãos; elas têm: órgãos
receptores, que são aqueles que estão destinadas a receber a ação
imediata dos motores (os agentes dos motores, das fontes de mo-
vimento); possuem órgãos comunicadores, que são aqueles que
transmitem os movimentos de uma parte para outra e transformam
estes movimentos através desta transição; possuem órgãos modifi-
cadores, que são aqueles que modificam a velocidade das partes
móveis; possuem órgãos suportadores, que são os que servem
centro de suspensão, de rotação e de apoio para os outros órgãos;
possuem órgãos reguladores, que corrigem todas as irregularidades
dos movimentos de cada parte, previnem o desgaste, diminuem os
efeitos nocivos das resistências do meio, regulam a grandeza de
duração da intensidade dos movimentos, as interrupções, as reno-
vações, e assim por diante. Ou seja, os órgãos são os responsáveis
pela operação do conjunto diversificado dos efeitos de uma máqui-
na e, depois, do seu efeito geral; porque é uma máquina é pensada
a partir do efeito que ela produz, e é para isto que ela existe: qual a
finalidade que ela tem em que efeito a vai produzir.
Eu vou ler então dois trechos este livro que está na biblio-
grafia de vocês do Séris que se chama Machineetcommuniction. O
primeiro texto, o primeiro trecho que vou ler, vai se referir justa-
mete à relação entre as escolas de engenharia (o nascimento das
escolas de engenharia) e a Revolução Industrial. Eu vou ler as
páginas 453 e 454, primeiro. Séris diz o seguinte : "Os inícios da
grande indústria e as primeiras escolas de engenharia de introdu-
zem a noção de hoje atividade do trabalho ligado ao valor que
permite formular um programa sistemático para a exploração in-
dustrial da energia. Assim, três linhas de força se acoplam a ideia
da máquina como um instrumento de comunicação. É em virtude
de uma necessidade secreta, mas imperativa, que faz as máquinas
convergiram para uma perspectiva comum. A manobra dos navios
faz de espera a esperança clássica de um domínio da máquina pelo
saber do controle e do comando. É a comunicação ótima do capitão
com o navio com sua equipe e com o mar. A questão dos atritos
que atrapalham e prejudicam na máquina, isto é, que são obstáculos
à comunicação do movimento e à comunicação da força leva a uma
investigação que favorece a apreensão do funcionamento das má-
quinas como processos, segundo um eixo em que a transmissão não
é apenas correspondência e proporção entre dois extremos com
relação centro. A transmissão que se encontra como operação no
interior da máquina e que anula os atritos na trama experimental e
conceitual dos primeiros ensaios de quantificação que o abandono
a força humana pontual e instantânea para tomar o trabalho huma-
no na continuidade do seu exercício normal. Estes percursos permi-
tem concluir que a máquina se realiza como um princípio da
transmissão do trabalho. A máquina, de funcionamento uniforme, é
o lugar de uma única ação de movimentos que é emprestado na
entrada e restituído na saída. A máquina empresta alguma coisa da
força que se consome para mover, mas ela fornece uma coisa os
corpos que ela move em que resistiam a ela. Trata-se de compreen-
der a história deste problema até definição daquilo que as máquinas
comunicam e daquilo que se paga com seu funcionamento: do
trabalho, fonte e produção do valor (o valor no sentido marxista do
termo) como trabalho, a máquina nos faz alcançar um novo tipo de
positividade e apresenta uma configuração na qual o conceito físico
de energia poderá vir se inscrever. A noção de trabalho é elaborada
ao termo de uma longa reflexão sobre as máquinas, sobre as má-
quinas hidráulicas, mais do que sobre as máquinas em geral . Esta
reflexão não deve nada à máquina a vapor. Pelo menos, não lhe
deve nada diretamente, porque, em última análise, a prática e a
necessidade de substituição das forças motrizes, na perspectiva da
economia e do lucro é o que chama escolher à atenção dos sábios
para esta moeda mecânica que é a máquina".
E o segundo texto, no final do livro, Séris diz o seguinte:
"A máquina, em funcionamento, é o lugar no qual se realiza um
certo desgaste, um desgaste de trabalho, um desgaste dinheiro.
Quando se diz que a força viva é aquilo que precisa ser pago, a
força viva, ou seu representante, isto é, o trabalho como quantidade
de ação, é uma mercadoria que se compra para explorar e tirar
proveito. A nova positividade surge num ponto em que se articu-
lam trabalho e valor (valor, no sentido de Marx). Sabe-se que da
grande propensão da economia clássica de confundir com frequên-
cia o valor do trabalho e o trabalho como fonte do valor de troca,
mas, mesmo autores como Petty e Adam Smith, passando por
Benjamin Franklin, acabam em fórmulas que não tem equívoco e
que foram durante muito tempo incapazes de dar ao trabalho o
papel que efetivamente têm no capitalismo de fonte de todo valor.
A aparição simultânea do conceito de trabalho mecânico ao termo
de uma longa história que durou dois séculos, invés de ser um
efeito de uma importação metafórica do que se passava na fábrica
para que se passa na máquina, muito pelo contrário, resulta de um
74
mesmo abalo que percorreu o saber no seu todo, isto é, trata-se
agora de pensar o trabalho e a máquina como inseparáveis na me-
dida em que eles são longos os produtores de valor, e isto é o capi-
tal". Então, com isso nós temos, eu penso, um quadro no qual nos
podemos avaliar a mutação ocorrida: se eu tomo Platão e Aristóte-
les, MarsilioFicino e Giordano Bruno, Bacon e Descartes, e agora
eu tomo o engenheiro, ou a escola de engenharia, nós temos uma
percepção do que ocorre, da mutação que ocorre, esta mutação – o
que eu quis enfatizar até aqui é como se, no ponto final (ou num
ponto quase final – estamos na Primeira Revolução Industrial),
como se ao chegar na Primeira Revolução Industrial, a Primeira
Revolução Industrial agarrasse aquilo que é impensável no início
do percurso. Quer dizer, no início do percurso a técnica esta coisa
minimalista de imitação da natureza e que corresponde algum tipo
de sociedade de cultura para a qual nem existe a palavra trabalho,
para, no ponto final, técnica, trabalho, trabalho humano, trabalho
da máquina, serem uma só e mesma coisa. Ia haver uma ciência
disso. A elevação do trabalho, do trabalho mecânico e da máquina,
à condição de ciência. Então, esta é uma mutação gigantesca. Gi-
gantesca! Mas, que levou 26, 27 séculos para acontecer. Porque... o
susto que nós vamos levar daqui a pouco (daqui duas aulas, na aula
da outra segunda-feira) é a mutação que vai ocorrer na altura dos
ano XIX50 e, sobretudo, 60 e 70. A mutação que é a informática ou
a eletrônica vai introduzir. É como se a história tivesse precisar de
26 séculos para chegar até a mutação da Revolução Industrial e
depois em 50 anos que ela tivesse dado um salto correspondente a
mais de 26 séculos. E que é típico do tempo capitalista; esta é uma
das coisas que caracteriza o capitalismo que é a devoração da
temporalidade. É isso que o capital faz. E não é por acaso que
Benjamin Franklin cunhou a máxima: "Tempo é dinheiro".
Agora, eu vou passar.... Antes de passar a Marx, eu quero
ler um trechinho para ficar claro o contraste que vou estabelecer
entre Marx e a tradição da história da técnica ligada à Revolução
Industrial.
Eu vou ler... isto aqui também está na bibliografia de vo-
cês. Eu vou ler para vocês um ensaio chamado A Dinâmica Das
Tecnologias De Longo Termo, por François Caron. Vou ler um
trechinho só. Só para esclarecer: ele está escrevendo este ensaio
para indagar o que acontece para o surgimento da primeira grande
Revolução Industrial e a passagem da primeira para Segunda Revo-
lução Industrial. Então, ele diz que há três perguntas que precisam
ser respondidas, quando se quer examinar o que é que tornou pos-
sível cada uma destas revoluções industriais e qual foi a mudança
que ocorreu na passagem de uma para outra, então, as perguntas
que é necessário responder são as seguintes: "Em que medida
Revolução Industrial britânica (porque o termo "Revolução Indus-
trial" é aplicado ao que aconteceu na Inglaterra) constituem, na
história mundial, a grande descontinuidade ou uma fratura o mai-
or?". Então, a Primeira Revolução Industrial da qual a Inglaterra é
o paradigma, o modelo, não só porque ela aquela vai ocorrer, mas é
de lá que se expande para o resto da Europa, então, em que medida
a Primeira Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra deve ser
entendida como uma descontinuidade histórica, ou como uma
fratura temporal. Segunda pergunta: "Sob quais processos se efetua
a passagem de um sistema técnico para outro?". Ou seja, como se
passa da manufatura para a Primeira Revolução Industrial e da
Primeira Revolução Industrial para segunda. Então, da manufatura
para a Primeira Revolução Industrial: o vapor e o carvão (ele vai
dizer: o vapor e o carvão– são as fontes de energia ); Segunda
Revolução Industrial: eletricidade. Terceira pergunta: "Quais são as
características das recomposições estruturais que acompanham o
aparecimento dos novos sistemas econômicos?". Ele vai responder
a essas questões afirmando que há uma descontinuidade, uma
descontinuidade histórica que não aparece ao olho nu, mas que
pode ser percebida quando você efetivamente faz uma análise das
condições de surgimento de uma nova forma econômica. Ele está
se opondo, é óbvio, a uma concepção marxista da leitura da trans-
formação econômica. Em Max, a forma nova está pressuposta pela
forma antiga; acontece que a forma antiga só pode pressupor estes
elementos, ela não tem como por estes elementos na existência. É
no momento em que a forma antiga não conseguem repor os seus
próprios pressupostos é que ela abre o campo para a forma nova
que estava contida nela. A forma nova vai fazer o que? Vai ter a
força para por o que na forma anterior estava só pressuposto. E
quando esta forma não tiver mais força para repor o seu pressupos-
to, ela vai a lugar a uma forma seguinte. O exemplo clássico, que é
dado por Marx, é a forma econômica do capitalismo ela está pres-
suposta lá no modo de produção feudal, mas o modo de produção
feudal não tem como por esta forma, por que? Para por esta forma
é preciso ter a separação do trabalhador e os meios de produção; o
trabalhador tem que estar desligado da terra, estar desligado da
corporação, não pode ter posse de nenhum instrumento de trabalho;
enquanto isso não acontecer, nada muda. Então, no modo de pro-
dução feudal não tem como por esta figura do trabalhador;...?... na
aula de hoje, eu disse a vocês, o famoso trabalhador livre. Só que
isto está pressuposto no modo de produção feudal porque estão
aparecendo em todos os elementos pelos quais o camponês vai
perder a terra ou vai ser expulso dela, o artesão vai perder a corpo-
ração, vai ser expulso dela e vai perder a posse instrumentos de
trabalho. É na hora em que isso efetivamente acontece, que o modo
de produção feudal acaba, e o modo de produção capitalista come-
ça. O modo de produção capitalista só se manterá enquanto ele
estiver força para repor o seu grande pressuposto: o pressuposto do
modo de produção capitalista é a separação entre a propriedade
privada dos meios sociais de produção e as forças produtivas.
Enquanto o capitalismo for capaz de fazer essa reposição, portanto
foi capaz de repor esta divisão, que é o constitutivo dele, ele se
manterá. Quando ele não tiver mais força para repor os seus pres-
supostos, os seus pressupostos serão postos pela forma seguinte. A
forma seguinte vai fazer o quê? Vai destruir esta divisão. Esta
divisão estava pressuposta. Porque ela estava pressuposta? Ela
estava pressuposta porque como o capitalismo não conseguia mais
repor a divisão, significa que ela estava no fim. Ela estava acaban-
do. E é este final, isto que está acabando, que a revolução comunis-
ta vai efetivar que vai, então, colocar como... vai ser aquilo que vai
ser posto pela revolução, era o que estava só pressuposto pelo
capitalismo. Então, há pelo menos quatro maneiras de escrever a
história de Max. Pelo menos quatro. Cada uma delas, diferente da
outra, em contradição com a outra. É isto que caracteriza um gran-
de pensador. Se um grande pensador pensar tudo linearmente, ele
não é um grande pensador, ele é igual a nós. Então, Max tem, pelo
75
menos, quatro formulações de como pensar a história. Uma delas é
esta de que a forma seguinte está pressuposta na fórmula anterior.
E ela surge quando a forma anterior não tiver mais força para
impor seus próprios pressupostos. Continuidade, portanto, e o
movimento da história é posição,reposição, impossibilidade da
reposição, a nova posição, em que é o esquema hegeliano, dialético
clássico.
Este é o autor aqui que eu estou mencionando chamado Ca-
ron afirma: "É a descontinuidade..." Nós não vamos passar de uma
forma econômica para outra, de uma formação econômica para
outra, de maneira contínua, como nesta explicação de que o poste-
rior está posto na forma anterior. Então, o que ele vai dizer? Como
posso ler a descontinuidade? É isto que me interessa aqui. Ele vai
dizer que: "A descontinuidade vai aparecer, em primeiro lugar,
pelo crescimento brutal e considerável das taxas de investimento na
indústria, rompendo os antigos ritos de crescimento e com dados
estatísticos, agora, que mostram que esta alta das taxas de investi-
mento foi lenta, progressiva e monumental, que os exames dos
dados técnicos mostram, também, que há um conjunto de procedi-
mentos técnicos, que vem desde o final do século XVIII, que vão
produzir uma deformação estrutural na economia anterior até che-
gar a sua forma moderna, de tal modo que o sistema vai resultar em
um difícil processo de adaptação a esta nova forma". Ele diz: nós
podemos usar vários exemplos do fato de que a passagem de uma
forma para outra é lenta, é demorada, mas quando você passa de
uma para outra, o que você tem que é uma diferença; a nova forma
não estava preparada, pressuposta pela anterior, ela é outra coisa;
há uma ruptura, a nova forma rompe com a forma anterior. E os
dois exemplos que ele vai dar são: o primeiro é o que significa usar
carvão como fonte de energia e o segundo, que ele considera ainda
mais importante, é a máquina a vapor. Então, os dois grandes
elementos ligados ao modo como se dá a exploração das fontes de
energia, são para este autor uma prova, uma evidência, da ruptura.
Não é só que você substituiu a força humana e a força animal por
uma outraforça motora; é que a nova força motora, ela própria
exige uma exploração técnica; você tem que trabalhar o carvão
para que ele possa ser uma fonte de energia que você tem que
trabalhar a fonte hidráulica e água para que o vapor possa ser uma
fonte de energia. Então, o que ele diz é: qual é a ruptura? A ruptura
está no fato de que não se passou apenas da força humana e da
força animal para uma força aparentemente natural maior, mas o
que se tem é que fazer uma intervenção na natureza para que isso
que a natureza produz seja uma fonte de energia. É um modo,
portanto, de operar com carvão e o modo de operar com o vapor ou
com a água que transforma isso em fonte de energia. Portanto, eu
tenho de ter uma ruptura tecnológica, era uma outra maneira de
operar tecnologicamente com carvão ou com o valor, que vai ex-
plicar porque que há uma Primeira Revolução Industrial. E porque
a Primeira Revolução Industrial é aquela que se baseia no carvão
que no vapor. A segunda, vai se basear na eletricidade, etc., etc.
Eu só mencionei isso, porque agora nós fomos ao texto de
Marx que vai demolir essa suposição de que o carvão e a máquina
a vapor o surgimento da grande indústria...........
Eu vou começar lendo o texto de Marx. O texto é longo,
mas era um texto que se a gente cortar ou apenas parafrasear é
desses textos que você destrói. É um pouco como a abertura da
terceira meditação cartesiana. Se você fizer uma glosa da abertura
da terceira meditação, você acaba com ela. Do mesmo modo que se
você fizera uma glosa do apêndice da parte um da Ética de Spino-
za... não é legal. Há textos que tem de ser eles mesmos. Depois que
você os têm, aí sim, que se comenta... e é isto que eu vou fazer
aqui. Eu vou apresentar; evidentemente, não é o texto inteiro; o
capítulo XV é aquele momento em absolutamente glorioso da
descrição do maquinismo, e depois eu vou fazer alguns comentá-
rios de como Marx interpreta o advento do maquinismo. O que
significou a transformação da técnica de maquinismo, que a foi o
objeto da aula de hoje.
O texto que eu vou ler está no tomo primeiro do Capital,
no capítulo XV. O que vou citar tirei da minha edição de Marx, que
não era nem a edição alemã, nem a francesa, nem a brasileira; é a
reedição do Fundo De Cultura. Eu estou dizendo isso é porque eu
vou dizer, para os que têm esta edição, ou que consultem esta
edição, é o texto que vai... está no volume 1, que vai da página 305
à página 312, da edição que eu estou citando.
Eu começo: "Os matemáticos e os mecânicos definem a
ferramenta como uma máquina simples, e a máquina como uma
ferramenta composta. Os matemáticos e os mecânicos não enxer-
gam diferenças essenciais entre ambas que dão o nome de máquina
até para às potências mais simples, como a alavanca, o plano incli-
nado, o parafuso, etc. (o que foi o que nós vimos desde o começo: a
máquina se aplicando, inicialmente, a estes objetos simples). É
certo que toda máquina se compõe dessas potências simples (ou
destas forças simples), qualquer que seja a forma em que se disfar-
cem ou se combinem. Entretanto, do ponto de vista econômico,
esta definição é inaceitável". Os matemáticos e os mecânicos di-
zem que a ferramenta que era uma máquina simples de que é uma
máquina é uma ferramenta composta. Marx vai dizer: do ponto de
vista da percepção imediata, é isto aí mesmo! Não há dúvida que e
isto mesmo. Esta percepção imediata, entretanto, que identifica a
ferramenta e a máquina, não é válida do ponto de vista econômico.
Portanto, do ponto de vista da análise da economia, considerar que
a ferramenta é uma máquina simples (ou que a máquina simples é
uma ferramenta) e que a máquina é uma ferramenta composta, não
vale. Economicamente, isto não funciona. Entretanto, do ponto de
vista econômico esta definição é inaceitável "... pois não leva em
conta o elemento histórico.
Aula é interrompida para entrada de alunos de curso do en-
sino médio que foram convidados a assistir aula.
01: 43:00
Eu vou explicar, então, o que nós estamos fazendo aqui ho-
je.
O professor de vocês devem ter contado que este em curso
é um recurso que está trabalhando com a ideia de técnica. As várias
maneiras pelas quais, na história da filosofia e na história da ciên-
cia a técnica foi pensada. É a aula de hoje... Bem, nós fizemos um
76
percurso que começou lá na Grécia, passou pela Grécia, por Roma,
depois fizemos alguma menção à Idade Média ; depois, nós che-
gamos na Renascença (nos artistas que nos filósofos do renasci-
mento); depois, nós chegamos a um momento muito importante na
história da técnica e da formulação da técnica, que era o pensamen-
to moderno no século XVII, quando há uma passagem da técnica
para a tecnologia. Qual é diferença entre a técnica e tecnologia? A
técnica é uma maneira pela qual os seres humanos dispõem de
certos instrumentos, realizam certas ações, pelas quais eles estabe-
lecem uma relação com a natureza que possa servir aos interesses
da vida humana. Então, a técnica é esta maneira de intervir na
natureza usando alguns instrumentos que permitam uma melhoria,
o uma segurança, na vida humana; por exemplo: o arado (é um
objeto técnico), a alavanca (é um objeto técnico), a polia (é um
objeto técnico), um barco (é um objeto técnico). A característica do
objeto técnico é que ele está ligado diretamente a uma certa serven-
tia e, em geral, um artesão pode fabricá-la para o uso de outras
pessoas. Mas, às vezes, é o próprio usuário que vai fazer. Você
pode ter um camponês que corta árvore, faz o arado, corta o coro
na pele de algum animal, faz correias, pega o seu boi ou o seu
cavalo, a mula, o jumento, etc., prende lá... e ara a terra. Então, o
objeto técnico foi mais ou menos isto.
O objeto tecnológico é diferente do objeto técnico porque
ele era um objeto para a cuja fabricação é necessário um conheci-
mento teórico, é necessário um conhecimento científico. O objeto
tecnológico era um objeto no qual está inserido um saber científico
que permite fabricá-la. Os três exemplos clássicos desses objetos
tecnológicos são: o telescópio – porque, a uma coisa é o artesão
fabricar óculos para quem é míope, ou fabricar óculos para quem
tem hipermetropia (pole a lente de tal modo que ajuda a olhar); o
telescópio não é um objeto para ajudar a olhar, o telescópio terra
objeto que depende de uma ciência chamada dióptrica que deter-
mina o modo pelo qual as lentes operam, a relação entre as lentes
que a luz; exige, portanto, um conhecimento da física, das teorias
físicas sobre a luz, sobre a reflexão e a refração da luz, a relação
entre as lentes e o modo de reflexão refração da luz, e assim por
diante... exigem cálculos, exige uma série de coisas para que você
faça as lentes de tal modo que você construa um objeto que têm
uma finalidade científica, que é conhecer o movimento dos astros
que a natureza dos aços, isto é, conhecer o céu; eu vou obter um
conhecimento científico porque eu coloquei o conhecimento cientí-
fico na fabricação de um objeto que me permite fazer isto. A mes-
ma coisa é o microscópio. É o exemplo clássico é um tipo de reló-
gio, um relógio de precisão, chamado cronômetro. Então, na técni-
ca simples, você tem o relógio de sol; você tem lá aquelas duas
varetas e pelo modo como a sombra se espalha pelo no lugar onde
o objeto está colocado, você sabe que hora do dia é. Depois, você
tem o relógio mesmo, carrilhão, com suas engrenagens. Um cro-
nômetro não é isto. Um cronômetro era um objeto de precisão para
estudar o tempo que marcar a distância de latitudes e longitudes. O
que os modernos fizeram com o surgimento da tecnologia foi de
fazer surgir o objeto técnico que tem ciência nele, o conhecimento
científico. Ele permite avanços de conhecimento científico. Ele
nasce do uso da ciência e ele promove o desenvolvimento da ciên-
cia.
O terceiro momento que nós estamos vendo na aula de ho-
je é o instante no qual o objeto técnico volta para aquilo que ele era
no começo, isto é, o objeto ligado ao trabalho, a maneira como os
homens se relacionam com a natureza por meio do trabalho; só que
de seu objeto técnico não é mais um objeto simples (um arado ou
uma alavanca). Este objeto se tornou um objeto extremamente
complicado, um objeto complexo, um objeto respeito do qual vai
haver ciência, chamada "Ciênciadas máquinas". O objeto técnico se
transformou numa máquina. E é a máquina é um objeto complexo.
Vão surgir teorias a respeito das máquinas, portanto, ciência das
máquinas; vai surgir uma disciplina nova chamada mecânica indus-
trial e vai surgir um tipo novo de escola, de universidade, de facul-
dade, onde se vão estudar as máquinas, como se as constrói, se
projeta, se programa, se explica o que é uma máquina, os diferentes
tipos de máquina, a relação entre a máquina e o trabalho, a relação
entre a máquina, o trabalho e a natureza, a relação entre a máquina,
trabalho, o ser humano, e assim por diante.... Estas escolas novas
que surgem com o objeto de fazer uma ciência das máquinas e de
introduzir um conhecimento novo chamado de mecânica industrial,
essas escolas são as "Escolas de engenharia". A USP tem uma que
se chama, não por acaso, "Escola politécnica". É transformação da
técnica emo objeto de ciência; ele esta técnica transformado em
objeto de ciência é a técnica cujo objeto são as máquinas; portanto,
o aquilo que é necessário na indústria.
Então, o que nós estamos vendo na aula de hoje é o que
acontece no final do século XVIII e no correr do século XIX e XX
com o aparecimento da grande indústria. E o objeto técnico da
grande indústria é a máquina. E é a maneira pela qual as escolas de
engenharia nasceram a serviço dos empresários capitalistas. As
escolas de engenharia não nasceram a serviço dos trabalhadores
industriais; elas nasceram a serviço dos proprietários privados dos
meios sociais de produção, isto é, os capitalistas. São eles que
precisam das teorias e dos conhecimentos sobre as máquinas nas
quais eles vão colocar os trabalhadores.
Nós esmiuçamos da primeira parte da aula o que é uma
máquina, porque a máquina é chamada de trabalho, e assim por
diante.... O que a segunda parte da aula e fazer (eu estava come-
çando quando vocês chegaram) é tomar um texto considerado um
texto exemplar, um dos mais importantes na história do entendi-
mento do que seja a grande indústria, do que seja a Revolução
Industrial e do que seja uma máquina, que era um texto de Marx,
no Capital. Um capítulo que se chama A Grande Indústria ou A
Revolução Industrial. O que eu vou fazer é ler uns trechos do capí-
tulo XV do volume 1 do capital. Eu vou ler, vou fazer algumas
observações, e no final desta leitura, de um texto que é razoavel-
mente longo, eu vou fazer alguns comentários, eu vou interpretar
alguns pontos deste texto. Está claro? Dá para acompanhar? Então
vamos lá.
Deixei explicar para os alunos que estão aqui. É um con-
junto de alunos do Ensino Médio que vieram com seu professor de
filosofia, que é ameno deste curso de que vieram para ouvir uma
aula de graduação de filosofia.
Bem, eu vou é começar a leitura.
77
"Os matemáticos e os mecânicos definem a ferramenta
como uma máquina simples e a máquina como uma ferramenta
composta. Os matemáticos dos mecânicos não enxergam diferenças
essenciais entre ambas. E dão nome de máquinas até para as potên-
cias mecânicas mais simples, como a alavanca, o plano inclinado, o
parafuso, etc. É certo que toda máquina se compõe daquelas potên-
cias simples. Qualquer que seja a forma em que elas se disfarcem e
se combinem. Entretanto, do ponto de vista econômico, esta defini-
ção é inaceitável, pois não leve em conta o elemento histórico".
Então, o ponto inicial do texto de Marx é tradicional... que os
engenheiros (é disso que ele está falando, quando ele fala dos
matemáticos e dos mecânicos, ele está falando dos engenheiros)
não vêem nenhuma diferença entre o que eles chamam de ferra-
menta e o que eles chamam de máquina. Eles chamam a ferramenta
que uma máquina simples (por exemplo, a alavanca) e chamam
uma máquina de ferramenta composta (por exemplo, o relógio que
tem um monte de coisas lá dentro – e ela é composta)". Então, diz
Marx, os engenheiros, os mecânicos, os matemáticos, não veem
nenhuma diferença de natureza, nenhuma diferença de essência,
entre a ferramenta e a máquina. Mas eles estão enganados, porque
do ponto de vista de nossa percepção dos objetos parece óbvio que
eu possa chamar uma ferramenta de máquina simples e uma má-
quina de ferramenta composta – é óbvio, eu estou vendo, que uma
só tem uma coisa e outra tem várias; embora, isto pareça óbvio do
ponto de vista da nossa percepção direta, isto é incorreto. Porque
esta "indistinção" entre a ferramenta e a máquina não leve em
conta a história. Vamos ver o que Marx vai explicar.
"Outras vezes, se pretende encontrar a diferença entre fer-
ramenta e a máquina dizendo que (agora é a crítica do texto que
acabei de ler para vocês de Caron) a força motriz da ferramenta é o
homem (é o homem que pega a alavanca, que uso parafuso,que
precisa da polia, é ele que a força motriz), enquanto que a máquina
se move impulsionada por uma força natural distinta da força
humana (a força animal, a água, o vento – você tem o moinho de
vento, você tem o salto d'água, você tem a mó do moinho gerada
por animais, e assim por diante). Então, se diria: "Não, a ferramen-
ta e a máquina são diferentes, a diferença está no fato de que a
força que permite usar uma ferramenta é a força humana, enquanto
que a força que move uma máquina não humana. São os animais
ou a própria natureza (água, vento, etc.)". Marx vai dizer: esta
diferença é tão inadequada quando a diferença anterior; anterior-
mente havia uma indiferença entre máquina de ferramenta, agora,
se estabelece uma diferença, mas novamente, assim como aquela
"falta de diferença" era inadequada, esta maneira de fazer a dife-
rença, levando em conta qual é a fonte de energia (porque é isto o
que está sendo feito aqui), é inadequada. E acontece que, na histó-
ria da técnica ... Não foi por acaso que eu quis citar para vocês
Caron, mas eu citei vários autores no início da primeira aula, que
vão nessa direção, de estabelecer a diferença onde a diferença é
dada pela fonte de energia); então, que Marx está dizendo: a dife-
rença não passa por aí. Então, há diferença, mas não esta "da fonte
de energia".
"Toda maquinária, um pouco desenvolvida, se compõe de
três partes substancialmente distintas. O mecanismo de movimento,
o motor, o mecanismo de transmissão e a máquina-ferramenta ou a
máquina de trabalho. A máquina motriz (o mecanismo de movi-
mento) é a força propulsora de todo o mecanismo, a máquina mo-
triz pode engendrar a sua própria força motriz, como por exemplo é
o caso da máquina a vapor, a máquina elétrico-magnética, da má-
quina calórica, ou então ela pode receber o impulso de uma força
natural externa disposta para produzir este efeito, como uma roda
hidráulica do salto de água, a pá de um moinho de vento, etc". O
primeiro componente da máquina, o mecanismo motor (este é o
primeiro componente), e que pode vir da própria máquina ou de
uma fonte externa à máquina. O segundo é a transmissão. A má-
quina-transmissão, ou o componente transição, feito por meio de
correias, alavancas, rotas circulares, rodas de engrenagem, etc.,
regula o movimento, distribui o movimento, muda-lhe a forma, se
necessário, e o transmite à máquina-ferramenta. A máquina-
ferramenta é a última, a qual ainda não foi falada por ele.
"As duas primeiras partes do mecanismo (a máquina-
motor e a máquina-transmissão), só existem para comunicar à
terceira (a máquina-ferramenta) o movimento que a faz atacar o
objeto de trabalho e modificar sua forma. A máquina-ferramenta
não por acaso é por isso chamada máquina-trabalho". Vocês se
lembram que no percurso que nós fizemos até que era indiferente à
que aspectos da máquina era usado o termo trabalho. A máquina
era chamada de trabalho. Ela era chamada de trabalho mecânico. A
primeira coisa que Marx faz é retomar esta distinção esta colocada
aqui como o motor da transmissão da ferramenta, estava lá no
Carnot, lá no começo, lá nos primeiros engenheiros; nós vimos
isto. Mas o que é que Marx faz? Ele retoma esta tripartição para
modificar o significado desta tripartição. O que é o motor, o que é
transmissão e o que é ferramenta? É isto que interessa para ele.
Fazer essa distinção dos componentes da máquina, que é só essa
terceira parte que Marx dá o nome de trabalho. Para as outras
partes ele não dá o nome de trabalho; é esta que recebeu o nome de
trabalho; nós vamos ver por quê. As duas primeiras partes do me-
canismo, o motor e transmissão, só existem para comunicar a
terceira (máquina-ferramenta) o movimento que a faz a atacar o
objeto de trabalho, modificar a sua forma. A máquina-ferramenta,
não por acaso chamada máquina-trabalho, inaugura do século
XVIII a Revolução Industrial; portanto a Revolução Industrial não
começa nem com a máquina a vapor nem com o uso do carvão. O
que Marx está dizendo é: a Revolução Industrial não começa quan-
do tomam o motor ou a transmissão, que é o que a história da
técnica, a história do maquinismo, e a história da indústria fazem.
Em que hora começa a Revolução Industrial? Na hora em que eu
vou explorar o carvão ou na hora que surge a máquina a vapor...
Max diz: não! A Revolução Industrial surge quando o mecanismo
do motor e o mecanismo da transição estão a serviço do mecanis-
mo "ferramenta" ou estão a serviço mecanismo "trabalho".
"A máquina-ferramenta, não por acaso, chamada máqui-
na-trabalho, inaugura a Revolução Industrial. Ela serve de ponto
de partida toda vez que se trata de transformar um ofício ou a
manufatura em exploração mecânica".
Um outro trecho, que vou citar agora: "A partir do momen-
to em que o homem, invés de atuar diretamente com a ferramenta
sobre o objeto trabalhado, se limita a atuar como força motriz sobre
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uma máquina-ferramenta, a identificação da força motriz com o
músculo humano deixe de ser um fator obrigatório e pode ser
substituído pelo ar, pela água, pelo vapor, etc". Portanto, em que
momento eu introduzo seja o ar, seja o vento, seja o vapor, como
algo que é importante na Revolução Industrial? Não instante em
que eu suponho que graças a eles a Revolução Industrial começa,
mas no instante em que vejo que ação eles têm sobre a força huma-
na que operava sobre a máquina-ferramenta. Quando para operar a
máquina-ferramenta (a alavanca, o parafuso, o plano inclinado, a
polia...), quando para fazer a ferramenta funcionar, eu não preciso
da força humana, eu posso destruir a força humana por uma outra
força, como por exemplo o vapor: entrei e Revolução Industrial.
Não sei se vocês percebe onde vai a ênfase do Marx. A ênfase do
Marx vai.... Não é o que acontece com motor (portanto, com fonte
de energia), nem o que acontece com a transmissão movimento (a
composição interna da máquina); não é aí que está a Revolução
Industrial; a Revolução Industrial que está no que acontece com o
terceiro componente da máquina, que é ferramenta. Porque é ela
que tem ligação direta e imediata com força humana, é com ela
com que o trabalhador se relaciona. Portanto, o que Marx está
fazendo é... para entender a Revolução Industrial tem que ser pen-
sada a figura do trabalhador. O que se passa na máquina que altera
a figura do trabalhador: é isto que conta. Então, esta de composição
sutil que Marx está fazendo.
Agora vem o texto seguinte: "Uma máquina, da qual parte
a Revolução Industrial, é que substituiu o operário, que maneja
uma única ferramenta por um mecanismo que altera com uma
massa de ferramentas iguais, ou parecidas, ao mesmo tempo que
movidas por uma única força motriz, seja qual for a forma desta.
Nisto consiste a máquina com a qual nos encontramos aqui como
um elemento simples da produção maquinizada". O que a máquina,
na exposição de Marx? A máquina, a partir da qual a Revolução
Industrial acontece, é aquela máquina que substitui o operário, que
maneja uma ferramenta, por um mecanismo que o era simultanea-
mente com a massa de ferramentas de uma só vez. Então, a Revo-
lução Industrial ocorre no momento em que o operário é substituí-
do por um mecanismo. O operário que trabalha com uma ferramen-
ta é substituir por um mecanismo que trabalha com muitas ferra-
mentas ao mesmo tempo. Max vai dizer que a máquina e é isto,
máquina é este objeto que substituiu o operário.
"Ao se ampliar o volume da máquina de trabalho (que era a
ferramenta) e multiplicar-se o número de ferramentas com que ela
opera simultaneamente, torna-se necessário um mecanismo motor
mais potente e, por sua vez, este mecanismo para poder vencer e
dominar a sua própria existência e exige uma força motriz mais
potente do que a humana. À parte o fato do que o homem era um
instrumento muito imperfeito de produção, quando se trata de
conseguir movimentos uniformes e contínuos). O que Marx está
fazendo? Agora está invertendo a explicação tradicional sobre a
origem da Revolução Industrial. O que está dizendo? Ele está
dizendo: é porque vai haver a substituição do operário que maneja
uma máquina-ferramenta por um mecanismo que opera em simul-
tânea um grande conjunto de ferramentas que e é preciso uma força
motora maior. Ou seja, a maneira pela qual a máquina vai operar é
ela, enquanto ferramenta, que vai pedir a máquina a vapor. O que
Marx está dizendo é: a Revolução Industrial não começa com a
máquina a vapor. A máquina a vapor é uma consequênciada Revo-
lução Industrial. Da mesma maneira: a Revolução Industrial não
começa com o carvão; a exploração do carvão é uma consequência
da Revolução Industrial; porque, a Revolução Industrial se dá no
momento em que há uma revolução da máquina, em que muda o
que a máquina é. Por isso que é tão importante para Marx dizer:
tem que distinguir entre a máquina e a ferramentas. Por que eu
tenho que distinguir? Porque a ferramentas é aquela componente da
máquina da qual depende haver ou não haver Revolução Industrial;
da qual depende haver ou não haver a grande indústria. Então, se
eu identifico a máquina e a ferramenta, eu não tenho como explicar
o surgimento da Revolução Industrial; porque o elemento que vai
fazer a Revolução Industrial acontecer é justamente a mudança
ocorrida na ferramenta. Se eu não a distingo da máquina, eu não
posso explicar como revolução a Revolução Industrial acontece. O
uso do carvão como fonte de energia, o uso da máquina a vapor ou,
depois, o uso da eletricidade, o uso destes elementos: primeiro, não
definem o que uma máquina é; segundo, não são a causa da Revo-
lução Industrial; terceiro, são efeitos da Revolução Industrial. A
Revolução Industrial acontece quando eu substituto um operário
que maneja uma única ferramenta por para mecanismo que altera
com uma multiplicidade simultânea de ferramentas e que, por isso,
precisa de uma força motriz, de uma fonte de energia, maior, mais
forte. Portanto é a máquina que vai fazer esta exigência da nova
fonte de energia.
"Quando o homem apenas intervêm como simples força
motriz, isto é, quando sua antiga ferramentas deixou o posto para
uma máquina instrumental, nada mais se opõe a que o homem seja
substituído como força motriz pelas forças naturais". Uma vez
ocorrida primeira mudança, ocorrida a mudança do operário que
lida com uma ferramenta para um mecanismo opera com uma
pluralidade simultânea de ferramentas, força motriz humana se
torna desnecessária, portanto, nada impede que ela seja substituída
por qualquer outra força natural (o carvão, o vapor, a eletricidade).
O que está sendo descrito é o movimento pelo qual o homem, no
caso o trabalhador, vai se tornando dispensável para a máquina.
Nós vamos ver em que hora o trabalhador se torne indispensável,
mas, por enquanto, nós temos um movimento pelo qual é o traba-
lhador uma sendo perfeitamente dispensável para a máquina-
trabalho.
"Foi a segunda máquina a vapor de Watt, a chamada má-
quina dupla, a que introduziu o primeiro motor, cuja força motriz
se engendrava nele mesmo, alimentando-a com carvão e água e
cuja potência era controlável em um todo pelo homem. Uma má-
quina móvel, suscetível de ser utilizada na cidade e não apenas no
campo, como era o caso da roda hidráulica, que permitia concentrar
a produção nos centros humanos, ao invés dispersá-la pelo campo.
Uma máquina universal por suas possibilidades tecnológicas de
aplicação e relativamente pouco supeditada(?) em seu aspecto
geográfico à circunstância de ordem".
O que a máquina a vapor vai significar? Ela é usada, inici-
almente, para auxiliar nos trabalhos de mineração. Só depois você
percebe que ela tem uma aplicação muito mais ampla, muito mais
79
poderosa, e muito mais interessante, que é a que vai ser pela grande
indústria. Mas ela é esta máquina formidável não só porque ela vai
ser o elemento motriz do conjunto das máquinas dentro da grande
fábrica; é porque ela pode operar com outros objetos técnicos fora
da fábrica. Por exemplo: o transporte público; você vai ter o trem –
vai surgir o trem. Não só você tem o barco a vapor funcionando, já
há também superando o navio à vela... você tem o barco a vapor,
você tem o trem; você tem lá dentro da fábrica e depois você vai ter
variações na forma de transporte e depois ela começa a entrar numa
série de coisas, sendo que, a primeiras experiências com a eletrici-
dade vão ser feitas a partir do impulso dado pela máquina a vapor.
É ela quem funciona para que a eletricidade opere. Mas ela só
aparece, ela só tem este papel, depois que o homem foi substituído
como força motriz. Antes disto ela não tem este papel.
Agora vem o texto seguinte (eu estou avisando que são
textos seguintes porque eu não estou lendo o capítulo inteiro):
"Depois de converter as ferramentas de instrumentos do organismo
humano tem instrumentos de um aparato mecânico (a máquina-
ferramenta) a máquina motriz reveste uma forma substantiva to-
talmente emancipada das travas (dos obstáculos) em que tropeça a
força humana. Com isso, a máquina-ferramenta que era uma má-
quina isolada se reduz a um simples elemento da produção à base
de maquinária. Agora, uma única máquina motriz pode acionar
muitas máquinas de trabalho ao mesmo tempo; e ao multiplicaram-
se as máquinas de trabalho, acionadas simultaneamente, cresce a
máquina motriz e se desenvolve o mecanismo de transmissão,
convertendo-se em um aparelho volumoso". O que Marx está agora
fazendo é estar iniciando a descrição de uma máquina, de uma
máquina industrial.
"Abolida a figura humana e introduzida a ferramenta com-
plexa (a máquina-ferramenta complexa) que exige, então, agora
um mecanismo motor fortíssimo, no caso, o vapor; feito isto, ago-
ra, este mecanismo (do motor) vai se espalhar como mecanismo de
transmissão para que todas estas múltiplas ferramentas (ou estas
múltiplas máquinas-trabalho) operem simultânea ou sucessivamen-
te".
Então, o que se tem agora é a figura da máquina, propria-
mente dita. Eu não sei se vocês percebem... vocês lembram na hora
em que eu li que a máquina era descrita como um organismo, com
seus órgãos, etc.? Qual é diferença entre a descrição feita por Car-
not, a descrição feita pelos engenheiros, esta, proposta por Caron o
que Marx está dizendo. As outras são uma espécie de fotografia
instantânea máquina; é como se a máquina, tudo que ela é e tudo
que ela tem, existisse de uma vez só, num dado momento. O que
Marx está fazendo? Marx está narrando a história do surgimento da
máquina complexa; que estão mostrando cada elemento que foi
necessário, que fosse modificado, eliminado, introduzido, operado
assim, operado assado, para que a máquina surgisse. Ou seja, o mar
que se está narrando para nós o advento da máquina, o surgimento
dela. Nós temos aqui uma história, uma história de como a máqui-
na surgiu e não uma fotografia da máquina pronta, como se ela
tivesse existido assim, desde sempre; uma espécie de... vamos
dizer: do mesmo modo que a imagem teológica do mundo é a "
Deus disse: faça-se, e se fez...faça-se, e se fez...faça-se, e se fez... "
e o mundo ficou prontinho, em sete dias você tem o universo...
prontinho. Assim também, Carnot, Caron, os engenheiros... todo o
mundo descreve a máquina desta maneira: ficou pronta em sete
dias. E quanto ao Marx, este que está escrevendo um longo proces-
so de transformação do interior doprocesso de trabalho; e é a toda
essa transformação no interior do processo de trabalho que vai se
exprimir o surgimento da máquina, nesta complexidade que ela
tem.
"Ao multiplicarem-se as máquinas de trabalho acionadas
simultaneamente em cresce a máquina motriz (no caso, a máquina
a vapor) e se desenvolve o mecanismo de transmissão, converten-
do-se em um aparelho volumoso. Ao chegar neste ponto, temos que
distinguir duas coisas: a cooperação de muitas máquinas semelhan-
tes e no sistema da maquinaria. No primeiro caso (da cooperação
de máquinas semelhantes), todo o trabalho se executa pela mesma
máquina, ela que realiza as diversas operações que o operário
manual executava como a sua ferramenta. As que realizava, por
exemplo, o tecedor no seu tear ou as que levavam a cabo os vários
operários manuais com diversas ferramentas, que fosse indepen-
dentemente ou por turno, como membros de uma manufatura".
Então, o que caracteriza a manufatura? O que caracteriza a manufa-
tura era o tipo de máquina e de cooperação que a máquina realiza.
Então, não é que na manufatura não havia máquina, o que havia era
uma máquina diferente da máquina da grande indústria. A máquina
da manufatura é na verdade um conjunto, uma corporação de má-
quinas semelhantes que a juntas vão realizar uma única tarefa. É
por isso que o exemplo que Marx dá é o da fiação e da tecelagem.
Você tem lá um conjunto de máquinas operando para produzir o fio
ou para produzir tecido. Um exemplo também simples, que Marx
não dá a mas nós podemos tomar, é a máquina de costura. A má-
quina de costura é um conjunto de máquinas semelhantes que você
opera para obter um único resultado, um único efeito. Você vai
obter uma coisa costurada, é isso que ela vai fazer, não mais do que
isto. Então, diz Max: uma coisa é um sistema de máquinas seme-
lhantes operando em conjunto para produzir um efeito; isto é o que
se passa na manufatura. Não sei se vocês se lembram como Marx
descreve o aparecimento da manufatura. Você tem lá, antes da
manufatura, os artesãos; cada qual no seu ofício; e o que caracteri-
za o artesão é que ele faz o objeto por inteiro. Um carpinteiro corta
a madeira, corta o formato do banco, ele prende as partes do banco,
ele lixa as partes do banco, ele e encera o banco, ele faz o banco
inteirinho; ele faz um armário inteirinho; ele faz um tecido que
inteirinho, ele tece o fio, ele tinge o fio, que faz o tecido por inteiro.
Ou seja, um artesão é aquele que é capaz de fazer um objeto do
começo ao fim. É isso que ao manufatura vai destruir. A manufatu-
ra vai colocar os diferentes artesãos juntos, no mesmo espaço, ela
vai criar (daqui a pouco vou falar disso um pouco mais) a primeira
figura do chamado trabalhador coletivo. Então, eles estão todos no
mesmo espaço, trabalhando em conjunto, só que agora cada um faz
um pedaço do objeto. O caso mais fantástico na descrição de Marx,
da manufatura, o caso mais duro de doloroso, é o da fabricação do
alfinete. Nesta fabricação carro um que puxa o metal, um outro que
corta, um outro afina, um outro faça a pontinha, um outro gruda a
pontinha, um outro lixa tudo isso, um outro põe na caixinha. Agora
são centenas de pessoas fazendo isso. É realmente uma coisa mons-
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truosa, porque... o que vai acontecer? O cara que sabe puxar o fio,
agora, só sabe puxar o fio de metal; ele não sabe fazer o alfinete
inteiro mais. Então, ele foi espoliado de tudo (nós vimos no come-
ço da aula), e agora, ele está sendo espoliado do que era mais pre-
cioso que ele tinha: ele está sendo espoliados do saber, que ele
tinha; estão tirando dele o saber que ele possuía de reduzindo saber
que ele a uma ação puramente automática de fazer um gesto: um
estica, outro gruda a cabecinha do alfinete, outro, lixa isso.... É isto
que é o caminho da alienação. O que é a alienação? A alienação é:
o trabalhador não se reconhece no produto do trabalho dele. A
palavra "alienação" vem do uma palavra latina: alienus, que quer
dizer "outro do que". Na medicina, esta palavra era usada para falar
alguém que se tornava "outro do que ele próprio", de alguém que
perdia sua identidade e se tornava um "outro", isto é, louco, um
alienado. O alienado é aquele que se torna outro do que lhe é, perde
na sua identidade. Marx vai usar a alienação no sentido em que é
usada por Feuerbach; já era usada por Hegel, mas Marx vai dar um
sentido preciso a isto. No processo de trabalho, o trabalhador pro-
duz o produto, só que ao invés de ele considerar que o produto é
uma expressão objetivada daquilo que ele pensou, daquilo que ele
quis ter dos gestos que ele realizou, desde o produto ser, portanto, a
expressão objetiva da subjetividade do trabalhador, daquilo que ele
pensou, quis, fez, etc., daquilo que ele realizou, desde o produto
ser, portanto... o trabalhador fora... é ele que está lá, porque aquilo
é ele, foi ele que realizou. É isto que se perde, agora. Quando você
tem um cara que só faz a cabecinha do alfinete, que só faz puxar o
fiozinho de mental; como é que alguém pode se identificar com
isso? E dizer: isto é obra "minha". Então, o que você tem é "a
alienação do trabalho". Ou seja, o trabalhador não se reconhece no
produto. Porque ele não é o produtor completo, total, do produto. E
isso vai se agravar, a cada vez mais; na hora em que é para se fazer
[o produto] de tal jeito, em tanto tempo, tal quantidade; ou seja, no
instante que o trabalhador for espoliado do seu saber, do tempo...
espoliado de tudo! E ele simplesmente obedece às ordens da fabri-
cação. Que Marx está dizendo aqui é que: é diferente a situação
quando um conjunto de máquinas semelhantes executa uma mesma
tarefa, que seriam tarefas que um único operário realizaria – agora,
são vários que vão realizar, porque cada um deles vai operar uma
das máquinas – ele diz: isto é diferente do maquinismo da grande
indústria. Esta situação, que é própria da manufatura, é aquela na
qual... eu releio: "A máquina realiza diversas operações que o
operário manual executavam com a sua ferramenta, como por
exemplo as que realizava o tecedor com o seu tear ou a que levava
a cabo os diversos operários manuais, com diversas ferramentas,
quer independentemente, quer por turno, como membros de uma
manufatura". Agora é diferente. Como é? "Hoje, uma máquina de
fazer executa todas as tarefas. Uma única máquina, trabalhando
com diversas ferramentas combinadas, executa a todo o processo
que a manufatura se descompunha em várias fases graduais. Além
disso, agora, aqui na grande indústria, existe uma unidade técnica,
visto que, todas estas máquinas uniformes de trabalho recebem
simultânea e homogeneamente o seu impulso de um único motor
comum por meio de um mecanismo de transmissão, que, em parte,
é também comum a todas elas. E do qual partem correios que
transmissão especiais para cada máquina. De assim como muitas
ferramentas formam os órgãos de uma única máquina de trabalho
(Marx que está recuperando a descrição organicista que a que nós
vimos na primeira parte da aula), agora, todas estas máquinas de
trabalho funcionam como tantos outros órgãos harmônicos do
mesmo mecanismo motor. Mas, para que exista um verdadeiro
sistema de maquinaria que não uma série de máquinas e indepen-
dentes, é necessário que o objeto trabalhado percorra diversos
processos parciais articulados entre si, como outras tantas etapas
que executados por uma cadeia de máquinas diferentes, porém
relacionadas umas com as outras de que se complemento mutua-
mente". Não vamos esquecer: Marx está fazendo uma descrição
muito boa antes de ter aparecido aquilo que vai aparecer no come-
ço do século XX, com o fordismo, que é a linha de montagem.
Quando nós chegamos na fase da linha de montagem, aí, o desastre
já está... aí já "dançamos". Porque, a linha de montagem... ela sim...
a alienação levada ao seu máximo. Na verdade, é a linha de monta-
gem que está no filme do Chaplin, Os Tempos Modernos... aquela
loucura ... até ele ser devorado pela máquina. Mas o que já Marx
está descrevendo é a (só ele é capaz de perceber isso) percepção do
que a grande indústria está fazendo. Ou seja, já era a descrição da
linha de montagem antes de ela ter sido inventada por Ford. É isto
que está escrevendo. Porque o que ele está descrevendo é a maneira
pela qual a máquina vai impor a distribuição do espaço, o uso do
tempo, e as operações do corpo operário. É isso que ele está de
escrevendo. Quer dizer, você tem uma inversão do processo que
nós viemos até aqui; até que nós vimos o ser humano comandar a
ferramenta. Tanto que vocês se lembram quando da antiguidade e
na Idade Média , mesmo na Renascença, se têm o repúdio pelo o
autômato. E quando, entre os modernos, o autômato está lá, enfei-
tando os jardins dos reis, é que este autômato indica o instante no
qual o homem não tem nenhum controle sobre o objeto técnico.
Nenhum! O objeto técnico vai operar o conta própria. Mas isso não
seria grave; seria bom você ter um monte de objetos que operam
por conta própria– seria ótimo, mesmo para Asimov. Seria ótimo!
O que acontece é que estes objetos não vão funcionar por conta
própria sem primeiro submeter e dominar o espírito e o corpo do
ser humano que vai realizar um trabalho. Ele é isto que Marx está
escrevendo. Nós fomos ter um espaço predeterminado pela máqui-
na, depois, um tempo de operação, determinado pela máquina, um
conjunto de gestos que vão ser determinados pela máquina. Portan-
to, máquina determina: espaço, tempo, operações corporais, gesti-
culação corporal, corpo de espírito. É isso! A maquinária é isso!
Eu repito: "Mas, para que exista um verdadeiro sistema de
maquinária, não uma série de máquinas independentes, é necessá-
rio que o objeto trabalhado percorra diversos processos parciais
articulados entre si como outras tantas etapas de executados por
uma cadeia de máquinas diferentes, mas relacionadas umas com as
outras e que se complementam mutuamente. Aqui, voltamos a nos
encontrar com aquela cooperação baseada na divisão do trabalho
que era característica da manufatura, mas agora, por combinação,
não de diferentes trabalhos e sim, de diferentes máquinas parciais.
As ferramentas específicas dos diversos operários especializados
converte, agora, em ferramentas de outras máquinas específicas de
trabalho, cada uma das quais constituem um órgão especial criado
para uma função especial dentro do sistema do mecanismo instru-
mental combinado". Então, lembram-se, órgãos receptores, órgãos
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controladores, órgãos suportadores... todo aquele conjunto de
órgãos que definem a máquina são retomados aqui por Max para
dizer: é o corpo do operário que é completamente substituído pelo
corpo da máquina. É isto que está acontecendo.
Texto seguinte: "Na manufatura, os operários, isoladamen-
te ou em grupos, têm que executar cada sucesso parcial específico
com as suas ferramentas. E se o operário é assimilado pelo proces-
so de produção, é porque é um processo de produção, primeiro,
teve de se adaptar ao o operário. Na produção, com base na maqui-
naria, desaparece o princípio subjetivo da divisão do trabalho.
Aqui, o processo total se converte num processo o objetivo, é um
processo que se examina por si, se analisa por si, se realiza por si,
em todas as etapas e fases que o integram. O problema de executar
cada um dos processos parciais e de articular esses diversos proces-
sos parciais num todo é resolvido pela aplicação técnica da mecâ-
nica, da química, etc., para o qual, como é lógico, as ideias teóricas
tem que ser necessariamente corrigidas e completadas em grande
escala pela experiência prática acumulada. A máquina de trabalho
combinada que agora orgânico de diversas máquinas e grupos de
máquinas é tanto mais perfeita quanto mais contínuos o seu proces-
so total, isto é, quanto menores são as interrupções que se deslizam
no trânsito da passagem da matéria-prima, desde a primeira fase,
até a última. E, portanto, o processo é um tanto mais perfeito quan-
to menor a intervenção da mão humana no processo. E, quanto
maior o mecanismo que vai da fase inicial até a fase final, o siste-
ma de maquinaria, quer se baseie nas simples operação de máqui-
nas (de máquinas de trabalhos de um mesmo tipo, como por exem-
plo nas fábricas têxteis) ou na combinação de máquinas diferentes,
como nas fábricas do fio, constitui, por si, sempre e quando esteja
impulsionada por um motor que não receba a força de outra fonte
motriz consiste num grande autômato. Tão logo, como a máquina
pode executar, sem a ajuda do ser humano, todos os movimentos
necessários para elaborar matéria-prima, ainda que o homem a
vigie e intervenha de vez em quando temos um sistema automático
de maquinaria suscetível, como é lógico, de constante aperfeiçoa-
mento nos seus detalhes. Como sistema orgânico de máquinas,
movidas por meio de um mecanismo de transmissão, impulsionado
por um autômato central, a grande indústria adquire aqui a sua
fisionomia mais perfeita. A máquina simples é substituída por um
monstro mecânico, cujo corpo enche a fábrica inteira e cuja força
diabólica, que antes se ocultava na marcha rítmica, causada, quase
solene, dos seus membros gigantescos, desborda agora num torve-
linho fabril, febril, louco. Este mecanismo enlouquecido dos seus
inumeráveis órgãos de trabalho". É esta que eu considero uma das
descrições mais gigantescas, mais perfeitas, do que seja a máquina
moderna. Não criatura caso que Marx se apropria da discrição que
estava construída pelos engenheiros, de que para entender a máqui-
na, você deve ser como um anatomistas e como o um fisiologista;
decompor em todas as suas partes, entender a estrutura, depois,
recompor pelas suas funções de entender a máquina como um
conjunto regulado de órgãos. Era esta a proposta. E a descrição dos
vários órgãos. Marx diz: é isto mesmo! E este corpo que nós temos
era um monstro: a máquina é um corpo monstruoso. E, mais do que
monstruoso, ela é um organismo completamente enlouquecido;
porque, a menos que você esteja de fora, com todos os controles, e
diga: "Está fazendo isto porque isto, está fazendo isso por isso, está
fazendo aquilo por aquilo", se não for assim... e aí a máquina vai
errar, vai parar, vai quebrar... vai ter todos os problemas que ela vai
ter que ter; mas, caso contrário, se você entra na fábrica e vê aquilo
em funcionamento.... Eu não sei se vocês já tiveram a oportunidade
de entrar em uma fábrica e ver aquilo na fábrica... é louco! É um
"treco" completamente louco, não faz sentido. Agora, vocês imagi-
nem isto numa fábrica do século XIX, escura, enorme, um barulho
alucinado, uma poeira fora do comum, ou seja, o que há de terrível
está aí. E é neste lugar, terrível, que se tem este corpo gigantesco,
febril e enlouquecido funcionando. Funcionando rigorosamente a
todo vapor. É assim que ela está funcionando.
O que me interessa... eu quero destacar deste longo texto
alguns pontos que eu acho que são importantes com relação ao
nosso curso. Por que este texto de Marx é tão importante em um
curso sobre a técnica.
Primeiro ponto, a ideia central deste trecho é a de que a
máquina deixa de ser um utensílio ou instrumento para se tornar
capaz de produzir novas máquinas. E abrindo, portanto, o campo
para a etapa seguinte, que vai ser o automatismo, que nós vamos
estudar na próxima aula. O que nós temos aqui? Nós temos uma
história imanente da técnica, simultânea à história econômica e
social que determina a técnica. De tal maneira que é pela economia
e pelo social que a máquina se torna inteligível, mas ao mesmo
tempo os características da máquina vão explicar como é o univer-
so econômico e social. O que Marx nos faz entender a sociedade e
economia no meio da descrição da máquina, como processo de
trabalho, e depois, uma descrição da máquina tal que ela só se torna
compreensível se eu compreender a determinação econômica e
social dela. O que Marx faz é inseparável: eu só posso entender
uma técnica se eu entender as condições econômicas e sociais que
a produzem. Ao mesmo tempo, esta técnica ilumina a sociedade e a
economia que a produziu. Eu posso entender melhor essa economia
que esta sociedade graças aos objetos técnicos que ela possui.
Então, é um movimento imanente em que a história econômico-
social que esclarece a história da técnica e a história da técnica
esclarece as determinações, as características, próprias daquela
história social e econômica. Este é o primeiro aspecto importante
deste texto, que, na verdade, é uma característica do modo como
Marx pensa. Mas que aparece com muita clareza neste texto. Ou
seja, o que Marx faz? Marx narra um movimento pelo qual a má-
quina (e é por isso que ele insiste em distinguir máquinas e ferra-
menta, por isto que faz isso) se liberta, se separa, do modelo do ser
vivo, do organismo humano, para adquirir a sua própria vida, para
adquirir sua própria forma, seu próprio modo de funcionamento; de
tal modo que ela é aquilo que a sua estrutura de funcionamento
exige que ela seja. É como se Marx dissesse: questões técnicas que
exigem soluções técnicas e criam novas questões técnicas. Eu
posso a entender, de maneira imanente, as questões técnicas susci-
tando as suas próprias soluções e suas novas questões; esta é a
primeira coisa que ele faz; é por isso que foi tão importante dizer:
máquina e ferramenta não é a mesma coisa. A segunda coisa, nesta
maneira de Marx fazer a inter-relação entre a técnica e o social é o
modo como ele mostra que a grande indústria, ou a indústria mecâ-
nica, vai se iniciar sobre uma base material que inadequada para
82
ela. Por quê? Porque ela vai se iniciar sobre a base da manufatura,
sobre a base, portanto, da operação de um conjunto de máquinas
semelhantes que operam para produzir um único efeito. O ora, o
que a indústria vai fazer é romper com isso. E fazer com que você
tenha uma multiplicidade de máquinas diferentes com um comando
comum, automático, que produz uma multiplicidade de efeitos
simultâneos, ou sucessivos. O ponto de partida sendo a manufatura,
a base material sobre a qual a grande indústria vai ceder é justa-
mente a ferramenta, a máquina-ferramenta. E é aquilo que é exigi-
do pela máquina-ferramenta que vai introduzir a exigência de uma
mudança na máquina-motor. Ou seja, aquele percurso pelo qual
Marx inverteu, ao invés de dizer que a grande indústria começa
com a máquina a vapor e como se trabalha em carvão, ele diz o
contrário: ela começa com a ferramenta e a maneira como articula
e constrói um sistema de ferramentas exige que, para isto funcio-
nar, ela precisa de uma força motriz nova. E por isso que ela vai
parar na máquina a vapor. É, portanto, a máquina a vapor, aquilo
que é exigido pela base material deixada pela manufatura. A manu-
fatura deixa o sistema de ferramentas quando o sistema de ferra-
mentas começa a operar não mais pela semelhança, mas como uma
diversificação e complementaridade de tarefas e de estruturas: isso
aí pede uma nova força motriz, pede uma nova máquina-motor.
O que Marx está dizendo é: a forma assumida pela grande
indústria nasce nos pressupostos deixados pela manufatura. Há
uma continuidade que vai da manufatura para a grande indústria.
Porque é a maneira pela qual a manufatura opera é deixada para a
grande indústria; só que agora na forma de um problema, que
precisa ser resolvido com uma nova fonte motriz, ou seja, com uma
nova fonte de energia. Esse modelo, nós podemos aplicar para a
segunda revolução de industrial e mostrar como a eletricidade vai
entrar para resolver os problemas deixados pela ferramenta da
Primeira Revolução Industrial. E toda questão, que fica para a
próxima vez, quer saber se a revolução informática,eletrônica, está
assentada... tem seus pressupostos na Segunda Revolução Industri-
al ou não. Isso nós temos que resolver pela nossa própria conta
porque não teremos nenhum texto do Marx para explicar isso para
nós.
Há um momento em que Marx descreve o seguinte, e que
deixa claro porque que a grande indústria vai alterar esta mutação
na manufatura que é, entretanto, a sua base material; ele escreve o
seguinte: "A grande indústria e entrou em conflito do ponto de
vista tecnológico com a sua base dada pela manufatura. As dimen-
sões crescentes do motor e da transmissão, a variedade das máqui-
nas e ferramentas, a sua construção cada vez mais complicada, a
regularidade matemática que exigiam um número, a multiformida-
de e a delicadeza dos seus elementos constituintes a medida que se
afasta do modelo fornecido pelo ofício e pela manufatura e que se
transforma em formas incompatíveis com aquelas que são pura-
mente mecânicas, levam ao progresso do sistema automático e o
emprego de um material difícil de manejar. O ferro, por exemplo,
no lugar da madeira, e a solução de todos estes problemas que as
circunstâncias faziam surgir quase sucessivamente, batia sem
cessar nos limites pessoais do próprio trabalhador coletivo da
manufatura que não sabia como resolver. A grande indústria foi,
portanto, obrigada a se adaptar ao seu meio característico de prote-
ção, a máquina, para produzir outras máquinas a fim de que sua
máquina pudesse funcionar". O segundo ponto interessante que eu
quero comentar neste texto de Marx é que: a tripartição motor,
transmissão, ferramenta, era a tripartição clássica da mecânica
industrial e da ciência e das máquinas (como nós vimos no início
da aula), ela que Carnot, por exemplo, se opõe. E esta tripartição
era usada para explicar a gênese da Revolução Industrial. Então, o
que a Marx fez foi mudar a perspectiva, como eu expliquei. Na
perspectiva tradicional, não é o domínio de uma fonte de energia
gigantesca (carvão e vapor) que vai produzir a Revolução Industri-
al, é o contrário. São todos os problemas colocados pelas máqui-
nas-ferramentas para operar em conjunto, simultânea e sucessiva-
mente, que vão pedir a mudança da máquina-motor. Ora, isso
significa então que para Marx o ato de nascimento da Revolução
Industrial é o momento que passa despercebida a superfície social e
econômica, ou seja, que não se percebe como o momento no qual a
Revolução Industrial é o momento em que o órgão de operação
manual e mecanizado; é na hora em que a ferramenta manipulada
pelo homem é mecanizada e afasta o trabalhador é uma da supera-
ção. Portanto, era instante em que o trabalho concreto de um traba-
lhador se transforma no trabalho abstrato da fábrica que a Revolu-
ção Industrial acontece. A Revolução Industrial acontece, portanto,
por uma mudança na natureza do trabalho, na natureza da força
produtiva.
É por isso que Marx vai dizer: a máquina a vapor existia
no período da manufatura. Por que que lá no período da manufatu-
ra, ela não revolucionou nada? É por que no período da manufatura
não havia ainda surgiu condição pela qual a máquina vapor se
tornaria esse motor gigantesco que ela iria se tornar. Que não tinha
acontecido no período da manufatura? A separação entre o traba-
lhador e a ferramenta. Na hora em que a ferramenta se maquiniza,
o trabalhador é separado dela, agora sim a máquina a vapor, que
existia antes, vai poder funcionar. O que Marx está dizendo é:
nunca é a fonte de energia que explica a mudança na economia.
Eu estou frisando muito isso porque as ideias de desenvol-
vimento sustentável, do Greenpeace, da ecologia, da reciclagem...
todo trabalho que a Petrobrás está tendo estes últimos anos... e o
ministério do desenvolvimento... era tudo um equívoco! Porque
todo o pensamento em torno de: o que vamos fazer com as fontes
de energia. "O aquecimento se deu porque... não sei quê lá... o
desmatamento...". Não estou dizendo que essas coisas não estão
acontecendo, é claro que estão! A leitura da origem disso, da causa
disso, o modo de lidar com isso, é que está equivocada. E não é por
acaso que o equívoco venha de onde ele veio: ele veio dos EUA.
Quer a cabeça mais equivocada que é a dos norte-americanos? Não
tem. Eles pensam tudo errado, sempre! Porque eles pensam com a
careça capitalista, eles não enxergam um palmo adiante do nariz!
Não enxergam! Então, todo mundo contra isso.... "Quem é o gran-
de inimigo? O grande inimigo é a China com o". Claro que a China
tem que dar um jeito com carvão... aliás, a China não tem que dar
um jeito só com o carvão. Pelo amor de Deus! As coisas que a
gente compra da China, que dura uma vez; não há um brinquedo
que você use mais que uma vez. Eu não tenho coragem de comprar
um (?), porque ele não tem segurança nenhuma, é claro que ele vai
virar no meio da rua... ele não tem segurança nenhuma... ele é que
83
nem um aviãozinho. A camiseta, usa uma vez,... lavou, acabou!
Quer dizer, dominam o mercado, a China domina o mercado... mas
com essas coisas! Que todo mundo acho muito bom... tem trabalho
escravo, precinho camarada e dura um dia. Mas, o que as pessoas
gritam? As pessoas gritam: é carvão que a China usa, é este que é o
problema. Este é um dos problemas, mas este não é o problema da
economia chinesa... usar o carvão. E eu insistir de ler este texto
longuíssima do Marx e fazer este movimento com vocês porque a
mensagem que Marx deixa para nós é: o problema não é a fonte de
energia! O problema um modo de articulação do econômico com
social e: a operação de produção. E é lá, no modo como se articula
e se estrutura a produção que entra a questão da energia. Ora, o que
nós temos feito, o que o mundo tem feito nos últimos vinte anos,
pelo menos? E agora com mais intensidade do que antes. Tem
mexido só na questão da energia, ou seja, continua pensando que a
Revolução Industrial foi causada pela máquina a vapor, quando ela
não foi causada pela máquina a vapor. A máquina a vapor foi um
efeito da Revolução Industrial. A revolução em industrial precisou
dela para se cumprir, mas ela não causou a Revolução Industrial.
Nós estamos fazendo a mesma coisa, nós estamos pensando em
termos dos efeitos como se eles fossem as causas, ao invés de
trabalhar com as causas econômicas e sociais do problema. Esta-
mos fazendo tudo errado!
Eu sempre faço um comício... hoje é o comício contra a
ecologia.
O terceiro ponto que eu queriaenfatizar no texto de Marx é
que a maneira como ele apresenta a história da Revolução Industri-
al mostra que não elimina apenas a suposição de que há uma de-
terminação técnica na economia, ou seja, que o que se passa na
economia tem como causa o elemento da técnica, que a técnica é a
causa do que se passa na economia. Não só ele elimina essa ideia
como elimina também a ideia de que (que era a grande parte da
ideologia burguesa) o desenvolvimento técnico tem como objetivo
facilitar o trabalho, facilitar a vida humana, ou seja, a Revolução
Industrial é determinada pelas exigências do capital para explorar o
trabalho, maximizando a produtividade por meio das máquinas. É
isto a Revolução Industrial! Por que se diz que ela é uma revolu-
ção? Porque a máquina ultrapassa os limites orgânicos do corpo
humano e os limites das ferramentas manuais que imitavam os
órgãos do corpo humano, ou seja, é uma revolução porque a grande
indústria introduz a máquina como um trabalhador coletivo dotado
de mil mão e de mil olhos e com um ferramenta diferente em cada
mão e um olhar diferente em cada direção. É isso que é revolucio-
nário! É um instante no qual que pela primeira vez o objeto técnico
e o corpo humano se separaram. Não há nenhum parentesco, ne-
nhuma analogia, nenhuma semelhança, entre a máquina e o corpo
humano, entre o objeto técnico que era uma expansão do corpo
humano que este novo objeto técnico. E é por isto que Marx o
descreve como orgânico, como contendo órgãos, e como um mons-
tro.... Porque não é um corpo, não é um organismo, mas se você o
descrever assim, ele é um monstro.
O último aspecto que quero mencionar é justamente esta
questão da monstruosidade. Nós podemos pensar que Marx descre-
ve a monstruosidade da máquina para se referir também ao que se
conhece desde Hegel com a expressão "a astúcia da razão".
"A razão é astuciosa, ela faz as coisas acontecerem, diz
Hegel, independentemente do que os homens, como indivíduos,
como coletividade, pensam, querem". Ou seja, a razão está se
lixando para o que os homens, como indivíduos ou como coletivi-
dade, querem, sentem e pensam. A razão, o espírito, tem o seu
próprio caminho fazer, o seu próprio percurso a fazer, seus próprios
objetivos, que os homens são (seres humanos) um instrumento
disto. A razão, entretanto, é a astúcia porque ela convenceu os
homens de que isso é bom; os homens acham ótimo tudo isso,
porque eles estão convencidos de que é melhor para todos que seja
assim. A astúcia da razão é, portanto, convencer os seres humanos,
enquanto indivíduos, e enquanto coletividade, que o curso da histó-
ria, o percurso que a história faz, é ótimo. E que é bom para todos.
Esta famosa ideia do progresso. Não há ideia mais astuciosa, por
parte da razão, do que a ideia do progresso. Quando os homens
estão convencidos de que isto é um progresso, e que o progresso
significa aperfeiçoamentos e melhorias, a astúcia da razão ganhou a
parada. Se eu brecar e disser: primeiro, não há progresso; segundo,
não é bom.... Aí, a gente levanta os braços e diz: vamos fazer al-
guma coisa. Mas, enquanto eu acreditar que: há progresso, o pro-
gresso é bom, o progresso é o aperfeiçoamento, que não há nada
melhor para nós do que o progresso, a razão astuta ganhou a para-
da. Então, o que Marx está fazendo? Ao descrever a maquinaria da
grande indústria como uma monstruosidade febril e louca, ele está
pondo um breque no otimismo burguês, sobretudo, na primeira da
segunda metade do século XIX, quando havia um triunfalismo com
relação à Revolução Industrial. Os seres humanos, a humanidade,
tinha alcançado o seu pontodominante de progresso e desenvolvi-
mento. Então, é esta visão que Marx combate. Mas ele combate ao
mesmo tempo mais uma coisa que está embutida na astúcia da
razão na ideias do bem que ao progresso técnico. Vocês se lem-
bram, lá nas primeiras aulas, quando falei para vocês da idade de
ouro e falei de Aristóteles, vocês se lembram que um dos sonhos
do retorno dos seres humanos à idade de ouro, quando a terra sozi-
nha produz o alimento, a caça cai na sua porta, a pesca cai na sua
porta, os seres humanos não nascem e não morrem, já estão todos
adultos e prontos... a felicidade geral. Esta ideia reaparecem em um
texto belíssima de Aristóteles, quando ele diz: dia virá em que as
rocas e fusos trabalharão sozinhos de os homens não terão a dor e a
pena de fiar e de crescer, nem de plantar nem de colher. A ideia,
portanto, é que chegariam dia em que as máquinas trabalhariam
para os homens. Eles não teriam, não só a dor, o sofrimento e a
pena do trabalho, mas quando eles ainda teriam os frutos do traba-
lho. Então, a descrição de Marx é para dizer: os fusos estão traba-
lhando sozinhos, as rocas estão trabalhando sozinhas, quer infelici-
dade maior do que esta?
Aula 11 (05-11-2012)
Eu pretendo na aula de hoje fazer duas incursões a partir
daquela análise que eu fiz do texto do Marx sobre a Revolução
Industrial e o Maquinismo. A primeira é uma comparação entre
Marx e Heidegger. Porque Heidegger, vocês se lembram, eu come-
84
cei o curso com Heidegger e a questão da técnica, e eu havia pro-
metido a vocês que eu voltaria ao Heidegger quando nós entrásse-
mos no mundo contemporâneo. Então eu vou retomar agora o texto
do Heidegger, mas não mais o momento em que nós já tínhamos
visto em que o Heidegger analisa a técnica grega, mas o momento
em que ele se refere ao que ele chama de a técnica moderna. A
segunda incursão é uma comparação entre o que Marx diz e algu-
mas considerações e, eu fiz um recorte do que diz o Foucault em
Vigiar e Punir. Feita essa apreciação que nos dá um conjunto de
reflexões a respeito de um pensamento da técnica moderna aí eu
pretendo marcar o momento em que realmente se define a ideia de
que existe o objeto técnico. Eu vou tomar como referência o Si-
mondon, está na bibliografia de vocês, o Simondon, e a partir daí
colocar a passagem do maquinismo, que foi o que nós vimos do
século XVII até a aula de hoje, o que significa o maquinismo, do
maquinismo para o automatismo, a chamada revolução eletrônica e
o automatismo. Eu não sei se dará tempo na aula de hoje de che-
garmos ao automatismo. Se não der, ele será o objeto de estudo das
próximas aulas.
Então vamos retomar, muito brevemente, a perspectiva do
Heidegger, vista na primeira aula, e a do Marx, vista na aula ante-
rior, porque vão nos auxiliar a ter um quadro do pensamento sobre
a técnica moderna. Quando nós examinamos o ensaio do Heidegger
sobre a questão da técnica, eu me detive, evidentemente, naquele
momento a questão da poiesis, ou seja, a maneira pela qual, Heide-
gger apresenta a sua compreensão sobre a técnica antiga. O ensaio
do Heidegger, entretanto, prossegue porque ele vai contrapor a
poiesis grega à técnica moderna. A técnica grega na compreensão
do Heidegger, portanto entendida como poiesis e como mimesis, se
apresenta como uma ação no qual o homem não interfere na natu-
reza. Ele se coloca como um mediador para que a natureza se
mostre a si mesma, ou para usar o termo heideggeriano, a natureza
se desvele a si mesma e realize a sua própria ação. Por isso Heide-
gger vai dizer que o camponês ara a terra, semeia e depois ele
espera que a própria terra realize a ação de fazer a planta nascer,
crescer e amadurecer para a colheita. O trabalho do camponês
termina no ato de arar e semear e retorna no ato de colher, mas a
trajetória inteira é feita pela própria terra, sem que o camponês
intervenha nela.
A mesma coisa acontece, diz o Heidegger, com o moinho
de vento. A ação do homem é construir a torre, as pás do moinho,
colocar o moedor do grão, mas esse objeto só funcionará se houver
o vento e, portanto, é a natureza que vai moer o grão na medida em
é ela quem move as pás do moinho. Então, vocês se lembram, que
o exemplo que examinamos na primeira aula, famoso exemplo da
taça sacrificial, em que o ourives ou o artesão, tem como tarefa
fazer surgir no metal uma forma que, potencialmente, o metal era
capaz de receber. O artesão, portanto, é apenas o mediador que faz
aparecer em uma matéria à forma que inicialmente que ela tinha
em potência. Essa é a ideia de que, na técnica antiga, a técnica
colabora com a natureza e é por isso que ela imita a natureza, para
que a natureza possa operar, e fundamentalmente, o ponto nuclear
do Heidegger é de que a técnica antiga jamais comete uma violên-
cia contra a natureza. Ela colabora, ela é mediadora, ela imita a
natureza, mas ela não pratica nenhuma violência contra a natureza.
Em contrapartida, a técnica moderna, de acordo com o
Heidegger, em um ensaio que se chama À época da imagem do
mundo, é um ensaio que está em uma coleção chamada Caminhos
que não levam a parte alguma ou Caminhos perdidos. Há uma
tradução argentina excelente da Losada que se chama Sendas Per-
didas. Neste ensaio Heidegger vai dizer que a técnica moderna
coincide com o momento em que, pela primeira vez na história do
pensamento ocidental europeu é proposta uma cisão entre o sujeito
e o objeto. O que o Heidegger tem em mente, evidentemente, é
Descartes. É a metafísica cartesiana que de alguma maneira vai
dominar o pensamento moderno e propor aquilo que todas as ten-
dências e diferentes filosofias modernas afirmarão que é a separa-
ção, a distinção e diferença entra a natureza do sujeito e do objeto.
Para o Heidegger é a distinção metafísica proposta por Descartes
que vai converter o mundo em um objeto, um objeto perante o
sujeito. O mundo se torna uma imagem ou uma representação. Ele
é uma objetividade cuja verdade é dada pelo ato de representação.
É o sujeito que vai dizer o que é verdadeiramente o objeto, no caso
o que é verdadeiramente o mundo. Se o mundo se torna objeto, o
homem se torna sujeito. Assim, muito mais do que a ideia de que a
modernidade é a afirmação da autonomia da razão, que é a defini-
ção kantiana, hegeliana, husserliana da modernidade. Kant, Hegel e
Husserl dizem que o que caracteriza a modernidade é a autonomia
da razão. A autonomia da razão perante a igreja, a religião, perante
o Estado. É um pensamento que vai se realizar fora do universo
universitário, portanto, fora do campo regido pela igreja e do cam-
po regido pelo rei. Heidegger vai dizer que muito mais do que a
autonomia da razão, o que define a idade moderna, é a mudança
absoluta sofrida pela essência do homem quando este se converte
em sujeito. Eu vou citar o texto do Heidegger, À época da imagem
do mundo, em que ele vai explicar o que significa o homem se
transformar em sujeito. Ele diz: “O homem passa a ser aquele
existente no qual se funda todo o existente, à maneira de seu ser e
de sua verdade, isto é, tudo o que existe vai depender do ponto de
vista da verdade, vai depender de um existente que é o homem. O
homem se torna, portanto, o fundamento do existente, da verdade
do existente. O homem se converte em meio de referência do exis-
tente como tal. Quando o mundo passa a ser imagem, isto é, uma
representação, o existente em conjunto se põe como aquilo em que
o homem se instala. O que, como consequência, quer levar para
diante de si e manter diante de si, e desta maneira, por diante de si
em um sentido decisivo.” Por que o Heidegger está insistindo em
por diante de si, estar diante de si? É porque o objectum é ob(para
fora)+(jactum) > lançado > para fora. Objectum significa aquilo
que está posto fora, lançado para fora, objeto significa a exteriori-
dade. Então, o mundo é posto por este existente que é o homem,
como um objeto, como uma exterioridade cujo o sentido e a verda-
de vai depender do que o sujeito disser. O ser do existente se pro-
cura e se encontra na condição de representação do existente. Re-
presentar significa por diante de si o existente como um oposto.
Referi-lo e fazê-lo voltar a entrar nessa relação consigo como
domínio. O homem passa a ser o representante do existente no
sentido de que ele é o representante do que está frente a ele. A
representação é a maneira pela qual... ... (A professora para a aula
para explicar a definição de representação):
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Quando é feita a distinção entre res estensa e res cogitans,
a questão que é nuclear para esta distinção, e foi fundamental para
o nascimento de toda a física moderna, e ela é fundamental, mesmo
no Hobbes, que não admite a existência de uma res cogitans, o
nuclear é a ideia de que não há uma relação de causalidade entre
substâncias ontologicamente ou metafisicamente distintas. Isso
significa que a res extensa não pode exercer uma ação causal sobre
a res cogitans, e a res cogitans não pode estabelecer uma relação
causal sobre a res extensa, ou seja, os corpos não causam efeito no
pensamento e o pensamento não causa efeitos nos corpos. Pensa-
mentos causam pensamentos e corpos causam corpos, e é isso que
permite estabelecer uma física. Qual é o problema que é posto para
os modernos, para todos eles. Se o pensamento e a natureza, ou as
coisas, são substancialmente distintas e se entre elas não pode
haver uma relação de causalidade, eu não posso à maneira inocente
como pensavam o gregos ou os medievais supor que a natureza
causa em mim pensamentos como eu não posso considerar que
meus pensamentos produzam corpos. Se não existe esta relação,
como é que o conhecimento é possível? Porque sempre se pensou:
o que é o conhecimento? É a ação causal que alguma coisa exerce
ou sobre meus órgãos dos sentidos ou sobre o meu intelecto. Ora,
agora os corpos não podem ter uma relação causal com a alma,
então a pergunta é? Como é que a alma conhece os corpos? Se ela
não recebe a ação dos corpos, como que ela pode conhecê-los, e
como que ela sabe que os conhece? Essa é a trajetória da dúvida
metódica. É isso o que descartes está fazendo. Ele diz “não posso
aceitar como sempre se aceitou que eu conheço tudo que me é
dado. Eu tenho que saber o que é que eu, efetivamente, posso
conhecer”. E a questão, portanto, é saber como é que o mundo
exterior, a natureza, as coisas a res extensa pode ser conhecida pelo
pensamento sem que ela cause as ideias. A resposta vai ser a repre-
sentação. O que é a representação? A representação é o ato pelo
qual, a mente a alma, o espírito, o intelecto, pensamento, converte
em ideia o objeto externo. E é por isso que eu não tenho acesso ao
objeto externo como tal. Eu tenho acesso ao objeto externo enquan-
to ideia desse objeto, portanto, enquanto uma representação. É isso
que o Heidegger está dizendo, que é o núcleo da modernidade. Para
Heidegger é o surgimento da noção de representação. O conheci-
mento é uma representação. Aquele meio pelo qual, o sujeito de-
termina, decide, define o que é o objeto. E é por isso que o sujeito
se torna o fundamento da objetividade. Porque aquilo que a objeti-
vidade é, é aquilo que o sujeito vai dizer que ela é. Vocês podem
imaginar todas as dificuldades postas por este percurso. Não vai ser
a toa de que nós vamos chegar ao Kant. Quando Kant disser: “o
mundo mesmo, as coisas em si, o objeto tal como ele é metafisica-
mente em si mesmo é inalcançável. Nós só temos representações.”
Nós só temos, portanto, aquilo que a nossa razão formula, é isso
que nós temos. Nós vamos passar para o idealismo por isso. O
idealismo é consequência das dificuldades postas pela separação
entre o sujeito e o objeto e a transformação do objeto em uma
representação. Aí será necessário o passo seguinte quando Hegel
disser que, não nos interessa aqui por que isso não é um curso de
História da Representação. O que interessa para o Heidegger neste
momento é explicar que a cisão, sujeito e objeto, culmina na trans-
formação do mundo em uma representação feita pelo sujeito. Uma
imagem produzida pelo sujeito. Quando o homem se põe como
sujeito, ele simultaneamente se põe, ele põe o mundo como objeto,
e a tarefa da representação é suprir a dificuldade posta pela hetero-
geneidade das substâncias, ou seja, duas substâncias heterogêneas
não podem se relacionar causalmente. Então é preciso encontrar
um termo que torno o objeto e o sujeito homogêneos e esse termo
que homogeiniza o sujeito e objeto, que permite a relação do sujei-
to e do objeto é justamente a representação. Ora, por meio da re-
presentação, o que aconteceu, o homem como sujeito domina o
mundo. O homem tem uma relação de dominação com o mundo.
Não é outra coisa que Bacon e Descartes haviam dito que eles
queriam. O sujeito, diz Heidegger, vai se tornar o fundamento.
Heidegger vai usar o termo grego: hypokheímom, ou termo latino
que traduz hypokheímom que é fundamentun. O homem se torna o
fundamento. Logo veremos o que vai acontecer com a natureza.
Cito Heidegger novamente: “O fundamento, o que esta tem como
liberdade é o subjectum. O subjectum é aquilo que está sotoposto.
Aquilo que está sob, que é lançado posto sob alguma coisa.” É por
isso que ele é o fundo de alguma coisa. O objectum é o que está
lançado diante e o subjectum é o que está pressuposto, é o que está
posto como fundamento. E é isso: subjectum é a tradução que o
Heidegger vai usar para o termo grego hypokheímom, porque
Aristóteles usa hypokheímom para se referir a substância, mas não
vou me alongar porque complica muito.
O sujeito, o subjectum hypokheímom é o fundamento. O
subjectum tem que ser algo certo que satisfaça as exigências de sua
essência. Qual é essa certeza que forma o fundamento e dá o fun-
damento? O ergo cogito ergo sum. A certeza, é uma proposição
que postula aqui, ao mesmo tempo que o pensar do homem, ele
próprio está presente sem a menor dúvida. Isto é, ele é dado de uma
só vez ou ao mesmo tempo.
O que o Heidegger está dizendo é: a primeira certeza nesse
processo pelo qual o sujeito vai poder ter a garantia de que ele tem
acesso verdadeiro ao objeto, o primeiro passo, é que o sujeito
garanta que ele tem acesso a si próprio, que ele tenha um acesso
verdadeiro, certo, indubitável, a si próprio.
Então essa certeza inicial que é o que vai garantir que o su-
jeito é uma verdade, e que sendo uma verdade ele pode ser funda-
mento de outras verdades é “ego cogito, ergo sum”. É preciso
chegar ao cogito. É por isso que Descartes, segundo Heidegger, vai
fazer todo percurso de tal maneira que ele possa demonstrar que o
primeiro conhecimento absolutamente indubitável, a primeira
verdade que vai permitir a formação da cadeia de razões ou da
cadeia de verdades é o pensamento. Então o ergo cogito se apre-
senta como o autoconhecimento pelo qual o sujeito se põe a si
mesmo como verdadeiro. E é a verdade do sujeito que vai dar a ele
a condição de ser fundamento de todas as outras verdades. É claro
que Heidegger está fazendo uma economia de Deus, porque Des-
cartes ainda vai provar Deus. O que o Heidegger está fazendo é
uma leitura kantiana, hegeliana, husserliana das Meditações, e
portanto, é o cogito. Em Descartes é o cogito e Deus. Se você tirar
Deus não sobra muita coisa para cogito.
De todo modo, o que Heidegger está dizendo é como é que
surge o sujeito? O sujeito surge através da figura do cogito, e que é
dado de uma só vez. É por isso que ele é uma intuição, você não
86
deduz o cogito, você não obtém o cogito por uma argumentação de
raciocínio. O cogito é uma intuição, ou seja, ele é dado ao pensa-
mento de uma só vez, num único instante, num único olhar espiri-
tual. É isso a intuição cartesiana.
A certeza é uma proposição que postula que, ao mesmo
tempo que, o pensar do homem, ele próprio está presente, o próprio
pensamento, sem a menor dúvida, isto é, dado de uma só vez ou ao
mesmo tempo. Pensar é representar. Relação de representação com
o representado. Representar significa, a partir de si mesmo, do
cogito, pôr algo diante de si (objectum) e garantir o que foi posto
como tal. Ser subjectum passa a ser agora o distintivo do homem
como ente pensante representador.
Então de acordo com Heidegger, a partir de Descartes, não
só a verdade se torna submissão do ser, a ideia posta pelo sujeito,
mas ainda como consequência, vai mudar o estatuto da ciência. E é
dessa maneira que o Heidegger vai interpretar tudo aquilo que nós
vimos com o nome de matematização da ciência moderna. Nós
vimos a matematização como a geometrização da natureza. Ora,
qual é a explicação do Heidegger? O Heidegger vai á expressão
grega tà mathéma, que é uma expressão que significa tudo aquilo
que se sabe verdadeiramente e com certeza de antemão sobre al-
guma coisa e que permite dominá-la inteiramente pelo pensamento.
É por isso que a geometria é tà mathéma, aritmética é tà mathéma,
aspira-se a uma astronomia que seja tà mathéma. É por isso que,
em termos aristotélicos, é impossível uma física tà mathéma, por-
que a physis é movimento, passagem da potência ao ato, eu não
tenho como dominá-la intelectualmente.
Então tà mathéma significa aquilo sobre o que eu tenho
domínio intelectual. Tudo aquilo sobre o que eu tenho o domínio
intelectual completo é um objeto matemático. A matemática não é,
portanto, esse conjunto de disciplinas que a gente aprendeu a cha-
mar de matemáticas. A matemática é uma maneira de conhecer. É
aquela maneira de conhecer que ocorre quando eu tenho o domínio
completo e absoluto sobre o objeto do conhecimento.
No caso das disciplinas chamadas matemáticas é obvio que
eu tenho esse domínio porque é o pensamento que constrói esses
objetos. Eles são uma construção do próprio pensamento, que,
portanto, domina inteiramente a sua própria construção. Todo ideal
moderno que aparece na ideia de Descartes que vocês certamente
estudaram nos outros cursos de História da Filosofia, quando Des-
cartes propõe a mathésis universalis, isto é, quando ele propõe uma
matemática universal que abrange a filosofia e a totalidade das
ciências, o que Descartes está propondo, a ideia da mathésis uni-
versalis, é a totalidade do conhecimento: é tà mathéma, isto é, o
pensamento pelo domínio completo, integral e perfeito de todos os
objetos do conhecimento. É isso a mathésis.
Muitos que leem Descartes, dizem: mas que história é essa
de que ele matematiza? Leia as Meditações. Cadê a matemática?
Ora, as Meditações são a matemática em estado puro. Em primeiro
lugar porque as Meditações se realizam segundo um método defi-
nido pela matemática euclidiana como análise, que é um procedi-
mento que vai do efeito para a causa e esse procedimento só é
possível se para cada elemento posto eu determinar a sua causa e
mostrar que ele é um efeito e mostrar que ele é causa do elemento
seguinte, o qual, por seu turno, é um efeito que é causa do elemento
seguinte. É isso a ordem das razões. É isso a cadeia das razões.
Então, pega a primeira Meditação, pega o percurso que
Descartes vai fazer até chegar a Deus. Primeiro instante: “Estou eu
aqui, ao pé do fogo, olho a cera, ela derrete, muda de cor, perde o
perfume”. O primeiro instante é: o meu corpo diante de outros
corpos, relação de pura exterioridade. O meu corpo tendo a relação
de sensação ou de percepção de objetos externos. Se eu ficar nessa
pura exterioridade eu duvido de tudo porque essa exterioridade
muda de forma, de grandeza, muda ininterruptamente. Não há
nenhuma identidade a qual a minha percepção, a minha sensação,
possa se agarrar. Movimento seguinte, isso o que eu percebo lá nos
corpos, provavelmente está nos meus sentidos, então eu vou de lá
pra dentro. Agora eu venho pro meu corpo e examino os meus
sentidos. Uma vez que eu vim para o meu corpo e examinei os
meus sentidos, eu continuo sem poder fazer nada com aquilo por-
que isso ainda é objeto de dúvida, porque os sentidos estão me
enganando. E eu agora vou fazer mais um passo pra dentro, e o
passo que eu vou fazer pra dentro é: “será que eu estou sonhan-
do?” Como é que eu distingo o sonho da vigília? E se eu não puder
fazer essa distinção, vamos dar um passo mais pra dentro: “será
que eu estou louco?” Vocês percebem, é de um rigor absoluto o
trajeto que Descartes faz, é da exterioridade pra uma primeira
interioridade, uma segunda interioridade, uma terceira interiorida-
de, uma quarta interioridade, até dizer cogito, penso. Só que uma
vez que eu digo penso, o que é que eu penso? Tá lá fora. Como é
que eu me relaciono com isso que tá lá fora? Agora eu preciso um
terceiro termo, que garanta que o que eu penso e o que tá lá fora
são verdadeiros. Eu preciso de um Deus verdadeiro. Isso aí é um
procedimento rigorosamente matemático. As Meditações são escri-
tas num estilo matemático, segundo um método matemático, igual-
zinho à ética de Espinosa.
A ética de Espinosa fica mais fácil porque Espinosa escre-
ve definição, axioma, postulado, proposição, então fica na cara
graças aos termos matemáticos que ele emprega, mas qual é a
diferença entre o procedimento matemático de Descartes e o de
Espinosa? É que o procedimento de Descartes vai do efeito para a
causa, esse é o procedimento da análise. Espinosa procede com o
método sintético, ele vai da causa para o efeito. Descartes vai
chegar a Deus no percurso, Espinosa vai partir de Deus. Então tudo
isso é tà mathéma. Tudo isso é mathésis universalis. Bom, fecho
parênteses.
Voltemos ao Heidegger. A partir de Descartes então a ideia
de um ideal do saber como mathésis universalis lembrando-se,
portanto, que tà mathéma significa tudo aquilo que se sabe de
antemão sobre alguma coisa e que permite dominar inteiramente
essa coisa pelo pensamento.
Então, ao se tornar uma matemática universal, nesse senti-
do, a ciência moderna põe seu objeto, ela constrói o seu objeto a
partir de decisões que são tomadas pelo sujeito. Heidegger pergun-
ta o que significa esta posição do mundo como objeto de um cálcu-
lo, significa exercer o domínio sobre o mundo e, por isso, diz o
Heidegger, nós não temos que nos espantar com o sentido novo
87
comparado com os gregos, sentido novo que vai ser assumido pela
técnica na medida em que a técnica agora aparece como uma impo-
sição do homem sobre as coisas. Por meio da técnica o homem
dispõe da natureza, a natureza se torna disponível para as ações
humanas e por meio dela o homem transforma a natureza. Vocês se
lembram, a natureza se torna idêntica ao artefato, ao artifício, ao
artificial. A diferença entre o natural e o artificial é só de grau, não
de natureza. Porque tudo é artefato, a natureza é um artefato divino,
depois artefato humano através da técnica. Tudo é artefato. Diz o
Heidegger: com os modernos o que se inicia é o percurso no qual o
homem finalmente se põe como distinto da natureza e como capaz
de instaurar o mundo autônomo, separado da natureza, graças à
maneira pelo qual o homem vai usar a natureza. Esse mundo autô-
nomo por meio do qual o homem usa a natureza e se separa dela se
chama cultura. É o nascimento da cultura, a oposição entre nature-
za e cultura surge, portanto, quando a modernidade cria o sujeito e
o objeto e quando a técnica se torna dominação sobre a natureza.
Heidegger vai dizer a técnica se torna, portanto uma vio-
lência, uma violência exercida sobre a natureza, porque ela vai, o
homem vai impor à natureza, à representação de um objeto domi-
nável e controlável. Essa violência, nas traduções dos textos do
Heidegger, em alemão ele diz gestell, e a tradução desse termo
“provocação”. Vocês de lembram do Bacon e a natura vexata?
Que o laboratório deve atormentar a natureza para que ela apresen-
te tudo o que esconde. É essa a ideia da provocação do Heidegger.
O homem provoca a natureza, a técnica é uma provocação feita
sobre a natureza.
O que a técnica visa? Ela visa, e esse é o ponto que me in-
teressa porque aqui, esse é um ponto chave para marcar a distancia
entre o Marx e o Heidegger, o que visa a técnica? Segundo Heide-
gger, a técnica visa liberar todas as formas de energia naturais para
uso e controle humanos. O que é a natureza? O homem é o funda-
mento e a natureza é o fundo. Um fundo inesgotável. A gente fala
em propriedade fundiária para se referir a terra porque a terra é o
que aparece como primeiro fundo, mas a técnica concebe agora a
natureza como um fundo inesgotável. Nesse fundo se escondem
formas de energia que devem ser exploradas e acumuladas para se
tornarem disponíveis para o homem.
Eu vou citar agora uma passagem do texto “A questão da
técnica”, até aqui eu estava me referindo ao texto sobre a imagem
do mundo, agora eu vou voltar ao texto sobre a questão da técnica e
citar. Heidegger diz: “O que é a técnica moderna? Ela é como a
antiga, um desvelamento. É somente quando demoramos o nosso
olhar sobre esse traço fundamental é que podemos ver o que há de
novo na técnica moderna. O desvelamento, entretanto, que rege a
técnica moderna, não se desdobra numa pro-dução no sentido da
poiesis.” O trabalho de desvendar, desvelar numa matéria uma
forma que ela já possuía. Heidegger vai dizer: “Não é isso agora
mais. O desvelamento que rege a técnica moderna é uma provoca-
ção pela qual a natureza é posta sobre a condição de liberar uma
energia que possa ser extraída e acumulada. Ora, não se poderia
dizer isso sobre o moinho de vento? Não. Suas asas giram ao vento
e são dadas diretamente ao seu sopro, mas se o moinho de vento
coloca a nossa disposição a energia do ar em movimento, não é
para acumular essa energia.” Essa é chave pro Heidegger. Do
mesmo modo que a técnica antiga, a moderna desvela, mas a técni-
ca antiga não tinha a pretensão de acumular as energias naturais, de
extrair as energias naturais e de acumulá-las para uso humano. A
energia natural era despendida como tal, é o caso do moinho de
vento. A energia do vento é despendida no movimento das abas do
moinho e acabou. Ao contrário, agora vem a acumulação. Ao
contrário, uma região é provocada para extração de carvão e de
minerais. A crosta terrestre se desvela hoje como uma bacia carvo-
eira e o solo como um entreposto de minerais. Tudo era completa-
mente diferente, o campo tal como ele aparecia para o camponês
que o cultivava outrora, quando cultivar significava cuidar. O
trabalho do camponês não provocava a terra cultivável quando ele
semeava o grão, ele confiava a semente às forças de crescimento e
cuidava para que ela prosperasse. No intervalo, a cultura dos cam-
pos ela também foi tomada num movimento aspirante de um modo
de cultura de outro gênero que requer a natureza no sentido de
provocação, em outras palavras, a agricultura é hoje não o cultivo
da terra, mas uma indústria de alimentação motorizada. O ar é
requerido para o nitrogênio; o solo para os minerais; o mineral, por
exemplo, para o urânio; este para a energia atômica e esta pode ser
liberada para fins pacíficos ou de destruição. O modo de provocar
as energias naturais é uma avanço no sentido pejorativo do termo, é
avançar o sinal, que visa fazer avançar, aparecer uma outra coisa,
isto é, fazê-la crescer rumo a sua utilização máxima e com os me-
nores gastos. O carvão extraído não está posto lá para que ele fique
simplesmente lá. Ou não importa onde, ele é estocado, isto é, ele é
colocado num lugar para que o calor solar contido nele possa ser
usado para outra coisa. Assim, cada coisa é liberada para produzir
um efeito como no caso do carvão em que um forte calor vai levá-
lo ao vapor cuja pressão aciona um mecanismo e dessa maneira
mantém uma fábrica em atividade.
Outro exemplo do Heidegger: uma central elétrica é cons-
truída no Reno, ela o obriga a liberar sua pressão hidráulica que,
por sua vez, faz as turbinas girarem. Esse movimento, por sua vez,
faz girar a máquina, cujo mecanismo produz a corrente elétrica
para qual a central regional e a sua rede são levadas para os fios de
transmissão. No domínio dessas consequências, se encadeia uma
outra, a partir da colocação da energia elétrica de tal modo que o
rio Reno aparece ele também como alguma coisa a acumular. A
central não é construída na corrente do Reno, como uma velha
ponte de madeira construída outrora, é antes o rio que é murado na
central, isso que ele é hoje como rio, ou seja, um fornecedor de
pressão hidráulica. E ele o é pela essência da central. O que o
Heidegger vai dizer, todo esse movimento conduz a uma maneira
de intervir tecnicamente sobre a natureza em que a natureza não só
é provocada, violentada, para que ela ofereça os seus materiais,
mas a ideia de, primeiro: deve haver uma acumulação desses mate-
riais e que esses materiais se interligam como fontes de energia
para um terceiro elemento. Por exemplo, você tem a terra, o sol e o
carvão. O aquecimento do carvão e o vapor, o vapor e a máquina, a
máquina e a fábrica. Então o que o Heidegger está dizendo é, o
artesão realizava por completo na sua oficina um objeto partindo
dos elementos que a natureza lhe dava e dos instrumentos que ele
havia construído. Não havia uma cadeia, aqui o que a técnica faz é
88
encadear todos os elementos naturais como energia acumulável
para que essa energia acumulável se desemboque numa outra for-
ma de energia acumulável que desemboca numa outra até desem-
bocar nas máquinas e na operação industrial. É a ideia, portanto, da
natureza como um deposito inesgotável de fontes de energia acu-
muláveis para a operação industrial, é isso a técnica. Fim as cita-
ção.
O que me interessa no ensaio do Heidegger sobre a técnica
moderna são três aspectos:
O primeiro é que ele, ao propor a relação entre a técnica e
as ciências naturais modernas, ele faz com que a técnica
dependa da cisão metafísica e epistemológica entre sujei-
to e objeto. O primeiro ponto importante é esse. É a cisão
metafísica do sujeito e do objeto e o resultado disso sobre
as ciências que determina a forma moderna da técnica.
O segundo ponto é o fato de que ele toma a técnica na
perspectiva da apropriação de fontes naturais de energia,
sem fazer qualquer referencia ao estatuto e as mudanças
do trabalho produtivo.
E em terceiro lugar o fato de que ele apreende perfeita-
mente, corretamente, o caráter cumulativo e acumulativo
da técnica, sem, entretanto, estabelecer nenhuma relação
com o lócus que define a acumulação como núcleo da so-
ciedade moderna, que é o modo de produção capitalista.
Então nós temos neste ensaio, ele é um exemplo perfeito de
idealismo. A técnica vem de uma cisão metafísica, ela acumula a
energia natural, porque ela faz uma violência à natureza, e ela tem
um processo cumulativo porque é tudo tà mathéma. E o mundo
gira.
Esses três aspectos é que eu acho que contrastam justamen-
te com a perspectiva do Marx. Com a perspectiva histórico-
materialista do Marx. Tomando como referência apenas aqueles
elementos que eu propus na aula passada, não vou avançar mais
nada no pensamento do Marx. Tomando a maneira como ele esta-
belece a gênese do modo de produção capitalista e a maneira como
ele descreve o maquinismo ou a grande indústria isso nos permite
fazer a distância entre o Marx e o Heidegger.
Primeiro, a cisão que é determinante do processo de trans-
formação da técnica não se encontra na cisão metafísica, entre o
sujeito e o objeto, e sim entre a cisão entre o trabalhador e os meios
de produção ou na cisão social entre os detentores dos meios soci-
ais de produção e as forças produtivas.
Segundo, no tocante à relação entre a técnica e as fontes
naturais de energia nós vimos que era clássica a tripartição motor-
transmissão-ferramenta para explicar a revolução industrial. Essa
tripartição é que é mantida pelo Heidegger. Quando ele coloca no
motor, portanto, nas fontes naturais de energia o lugar onde se dá a
mudança da técnica, ou seja, a mudança da técnica era explicada
pela sua referencia às fontes de energia, nisso é mantido e desen-
volvido pelo Heidegger. O que nós vimos que Marx faz, Marx vai
mudar toda essa perspectiva de compreensão da revolução industri-
al e da operação da técnica, mostrando que não é o domínio de uma
força gigantesca como, por exemplo, o vapor que vai ser responsá-
vel pelo surgimento do objeto técnico máquina. A mudança técnica
não se realiza a partir do motor, a partir da fonte de energia, ela se
realiza a partir do que acontece com a ferramenta, isso é, com o
homem. São as máquinas-ferramentas, que são independentes da
máquina-vapor que existiam antes da máquina a vapor, são elas
que vão ser inseridas na lógica industrial e elas é que vão exigir,
para sua operação eficaz o surgimento da máquina a vapor, ou seja,
Marx inverte. Você tem a aparência. Agora vamos usar a expressão
no seu rigor dialético. A mutação técnica aparece como uma muta-
ção no emprego das fontes naturais de energia, essa maneira pela
qual ela aparece não é, entretanto, aquilo que ela é, o seu modo de
aparecer oculta necessariamente o modo pelo qual ela é efetiva-
mente posta. A técnica é posta, o objeto técnico é posto a partir de
algo que acontece na relação dos próprios objetos técnicos pré-
existentes quando eles são considerados forças produtivas, e é esse
elemento que vai determinar, vai pôr, a mudança da técnica, no
caso um conjunto de ferramentas que pré-existiam à máquina e
cuja articulação e cujo uso eficaz para o capital pede que elas sejam
reunidas através da máquina a vapor. É, portanto, algo que se passa
na esfera do trabalho que vai determinar o uso que se vai fazer de
energia, a explicação empírica, metafísica, clássica é: mudou a
fonte de energia, muda a técnica, muda a economia. Marx: muda a
economia, a mudança da economia determina uma mutação no
processo social do trabalho, a mutação no processo de trabalho
implica uma mutação no emprego das ferramentas ou dos instru-
mentos cuja articulação vai pedir uma mutação técnica que é a
máquina, no caso a máquina a vapor. Ou seja, o que o Marx vai
mostrar é que para compreender o processo eu tenho que inverter a
aparência, aparece assim, não é assim! Portanto, é do lado do traba-
lho que se deve buscar a emergência necessária da mudança na
técnica e não nas fontes de energia.
Terceiro ponto, com relação ao caráter cumulativo da téc-
nica, Marx mostra que o maquinismo é o momento no qual uma
máquina vai dar origem a outras máquinas, isto é, o motor usado, a
energia usada, vai se afastar cada vez mais da força humana, da
energia humana, da energia animal e vai pôr em movimento um
número enorme de máquinas articuladas, umas as outras, que
transmitem movimento umas as outras. A cumulação técnica,
portanto, não se dá pelo fato de que a natureza é considerada um
reservatório inesgotável, eu extraio as fontes de energia e acumulo
essas fontes de energia para usá-las em determinada direção. Ao
contrário. O processo pelo qual, o primeiro movimento de emprego
da energia natural leva a produção de um objeto técnico, no caso a
máquina, cuja operação vai por ela mesma exigir novas máquinas
e, portanto, mais energia e outro acúmulo de energia. É no interior,
no caso do Heidegger você tem a impressão pela análise que ele faz
das fontes de energia, que ele está fazendo uma análise imanente da
mudança da técnica e que o Marx estaria fazendo uma análise
externa ou transcendente, porque ele estaria pegando o processo de
trabalho. É o contrário. O que o Marx está mostrando é que, é
imanente à operação do maquinismo o engendramento de uma
máquina por outras máquinas. De tal modo que a fábrica, a grande
indústria, é esse corpo gigantesco de máquinas articuladas umas as
outras, que transmitem umas as outras movimento. O que se tem,
89
portanto, é a ideia de que a maquina industrial é uma maquina
diferente de todas as outras máquinas que já foram construídas pelo
homem, porque ela é na verdade um sistema de máquinas. Ela não
é uma máquina, mas um sistema articulado, um sistema combinado
de múltiplas máquinas. E é por isso que a imagem que o Marx
apresenta é a imagem do monstro, essa coisa gigantesca que ocupa
o edifício inteiro da fábrica e à qual os trabalhadores estão acopla-
dos. É nesse campo que se compreende aquilo que Marx chama “a
servidão dos trabalhadores na grande indústria”. Você tem a
dominação, tem a exploração, tem tudo aquilo que sabemos, mas
há algo peculiar no modo pelo qual a exploração e dominação na
grande indústria se dão, é aquilo que Marx vai dizer. É a servidão
do trabalhador e se apresenta de duas maneiras principais:
Em primeiro lugar, Marx distingue duas formas simultâ-
neas do capital. O capital constante, que é matéria prima e os
meios de produção. E o capital variável, que é a força de trabalho.
Por conseguinte, Marx vai deixar claro que o objeto técnico, na
medida em que ele está lá no capital constante, ele não produz mais
valia, ele não produz valor. O que produz valor, produz mais valia,
é o trabalho. Portanto, o objeto técnico, como tal, não é aquilo o
que produz capital. O que é que produz capital? O homem e a
natureza. Eles são considerados pelo Marx fundos, mas eles não
são fundos por causa da técnica, como supõe o Heidegger. Eles são
fundos por causa da relação de produção. São as relações de produ-
ção que tornam o homem e a natureza fundos, e não a técnica. E
não pode ser a técnica porque a técnica não produz valor.
O segundo aspecto importante nessa servidão dos trabalha-
dores é que a grandeza da produção de valor, produção de mais
valor, de mais valia, da cumulação do capital, nós sabemos que ela
depende do tempo de trabalho socialmente necessário para repro-
duzir o trabalhador, reproduzir, portanto, a força de trabalho, a
subsistência do trabalhador e para acumular o capital. Ora, interes-
sa ao capitalista como classe, não ao indivíduo burguês, mas ao
capitalista como classe, interessa diminuir esse tempo socialmente
necessário para produção. Por quê? Porque se você diminui esse
tempo você aumenta a força produtiva do trabalho, ou seja, em
menos tempo vai se produzir mais. Isso significa que a introdução
da máquina está ligada não a toda fantasmagoria da técnica violen-
tando a natureza, a máquina é introduzida como fator essencial
para a diminuição do tempo de trabalho socialmente necessário,
para produzir uma quantidade cada vez maior de mais valia. Por-
tanto, do ponto de vista do capitalista como classe a máquina au-
menta a força produtiva do trabalho permitindo produzir em menos
tempo a mesma quantidade de mercadorias e aumentar a cumula-
ção do capital. Em segundo lugar, do ponto de vista do capitalista,
a máquina abaixa os custos do capital variável, isto é, do trabalho.
Ela abaixa o custo do salário, ela abaixa o custo da reprodução da
força de trabalho, ou seja, ela abaixa o custo da subsistência do
trabalhador.
Em terceiro lugar, o caráter cumulativo da máquina não é
algo inscrito nela como objeto técnico e sim no fato de que a má-
quina, ela acumula e ela é cumulativa e ela vai acoplando outras
máquinas, porque ela não cessa de operar. Uma vez posta em mo-
vimento, seja com o vapor, seja depois com a eletricidade, uma vez
ela posta em movimento ela não cessa de operar, e com isso ela vai
provocar uma apropriação crescente da força de trabalho, isto é, ela
vai aumentar o número de trabalhadores, ela vai prolongar a jorna-
da de trabalho, porque o trabalhador não pode deixar a máquina
parar, ela vai exigir do corpo e do espírito do trabalhador um esfor-
ço gigantesco, porque qualquer perda de atenção ou ele é engolido
pela máquina ou ele produz uma paralisia da máquina, e ele é
penalizado com isso, e, sobretudo, essa cumulação que intensifica o
trabalho e vai permitir que, para as operações mais simples das
máquinas, a força de trabalho seja feminina e infantil. Então você
tem o trabalho das mulheres, o trabalho das crianças nesse processo
de alongamento, encompridamento da jornada de trabalho e dimi-
nuição do salário, ou seja, a máquina acumula sim, ela acumula a
servidão do trabalhador, é isso que ela faz.
E nós sabemos, eu vou passar brevemente sobre isso por-
que depois eu vou voltar, mas nós sabemos que essa servidão
prosseguiu com as transformações no modo de produção capitalista
quando se tem como foco ou como núcleo a exigência da diminui-
ção do tempo de trabalho socialmente necessário para a produção
crescente de mercadorias. É essa exigência da diminuição do tempo
de trabalho que determina mudanças técnicas e, como se vê, quan-
do se passa para o uso dos motores à combustão, o emprego de
energia fóssil, o uso da eletricidade na organização do trabalho. E o
caso exemplar desse instante no qual a eletricidade entra como
modo pelo qual a máquina entra em operação e o modo como a
partir daí ela articula todas as ações da força de trabalho, todas as
ações dos trabalhadores, o caso exemplar é evidentemente a orga-
nização fordista do trabalho industrial, ou seja, a linha de monta-
gem, a produção em série e a linha de montagem. E se isso não
bastasse, houve essa coisa formidável que foi inventada no começo
do século XX e prosseguiu até hoje chamada taylorismo. A ideia
do Taylor, do taylorismo, é aquilo que é chamado de gerência
científica do trabalho, é a ideia de que não apenas se trata de dimi-
nuir o tempo socialmente necessário para a produção de uma quan-
tidade crescente de mercadorias, mas é preciso exercer um controle
sobre o tempo do trabalhador, não apenas um controle que a má-
quina exerce, a máquina define o tempo do trabalhador, ela define
o tempo, ele opera no tempo dela, mas o que a gerência científica
propõe, o que o Taylor propõe é um estudo, uma ergometria, um
estudo do corpo do trabalhador na relação com a máquina para
estabelecer as formas mais eficazes, mais eficientes, mais redutoras
de tempo do uso do corpo do trabalhador.
Então, qual é a posição que ele tem que ficar em pé: pés
afastados ou pés juntos? Mãos afastadas ou mãos juntas? Quanto
tempo ele leva para fazer esse movimento? Será melhor, portanto,
digamos que ele leva meio segundo pra fazer isso nessa altura,
formidável, formidável. Então vamos elevar um pouco a altura da
máquina pra ele fazer isso. Não, a gente despede o trabalhador
baixinho e põe um alto, porque o trabalhador alto faz esse movi-
mento no meio segundo requerido. Em que tipo de cadeira ele deve
sentar naquelas funções que exigem que ele se sente? Cadeira alta,
cadeira baixa? Cadeira com encosto, cadeira sem encosto, banqui-
nho? Giratório, não giratório? Tudo é controlado.
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Quantos passos ele tem que dar desse lugar onde ele está
para apertar um parafuso ao ponto seguinte no qual ele aperta o
segundo parafuso? Tem que dar três passos? Se ele for uma pessoa
pequena ele precisa dar quatro, então nós vamos contratar o traba-
lhador maior que tem uma passada maior, porque nós vamos calcu-
lar o tamanho da passada para saber em quanto tempo ótimo o
trabalhador aperta esse botão e depois o outro. Quantos passos ele
precisa dar para ir até o banheiro? E quantas vezes ele deve ir ao
banheiro? Ele deve tomar água quantas vezes? Onde deve estar o
bebedouro para que ele faça rapidamente o percurso até o bebedou-
ro e volte até o seu posto de trabalho? Ou seja, é um controle com-
pleto do corpo do trabalhador na sua relação com a operação da
máquina.
E a gerência científica, agora eu vou abrir um parênteses,
que é uma coisa que eu gosto muito, eu adoro contar isso, é o meu
comício de hoje. Bom, e isso se aplicou depois aos escritórios,
então o tamanho do clipe, o peso do grampeador, o tamanho da
máquina de datilografia, a forma da escrivaninha, o lugar onde o
secretário ou a secretária senta, a taquigrafia, ou seja, controle total.
Não há um trabalhador, em qualquer setor do trabalho capitalista,
com exceção de nós aqui evidentemente, que não seja controlado,
ferozmente controlado no seu corpo e no seu espírito a cada segun-
do. Bom, mas a gerência cientifica, que isso tudo é chamado de
gerência científica, a gerência científica é baseada na sobreposição
da divisão social das classes com uma nova divisão. A divisão
fundamental é o capital e o trabalho, o burguês e o operário e
assim por diante, você tem essa divisão fundamental. A gerência
científica introduz uma segunda divisão no campo do trabalho. Ela
distingue entre a direção e a execução, ou seja, a medida em que o
processo industrial e que as mudanças técnicas vão ocorrendo,
considera-se que a complexidade técnica da produção ultrapassa a
capacidade do trabalhador. Ele não tem capacidade pra isso. Então
é preciso que haja, agora sim, especificamente designados com esta
palavra, é preciso que haja técnicos, que são especialistas no co-
nhecimento de todas as minúcias e complexidades da grande forma
que foi assumida pela indústria, sobretudo pela indústria fordista.
Esses técnicos são chamados de gerentes da produção. E
eles são definidos pela posse do saber. Eles possuem o saber sobre
a complexidade técnica que os trabalhadores não possuem. Como
ele dispõe desse saber, ele tem a função de comando, ele manda, e
os trabalhadores que são despojados de saber, executam. Então
você tem a divisão social entre os que sabem e mandam e os que
não sabem e executam ou aquilo que eu chamei a ideologia da
competência. O competente manda e o incompetente obedece.
Essa é a divisão em todas as esferas da produção e dos serviços
capitalistas.
Então, há uma greve absolutamente genial que os operários
fazem, faziam né, em todos os países, conhecida, não sei se vocês
sabem, ela era conhecida como a greve do zelo. A greve do zelo
consistia no seguinte: os trabalhadores iam para a produção, espe-
cialmente os da linha de montagem e executavam tudo o que era
estabelecido pelas regras da gerência científica. Eles não faziam
nada que envolvesse alguma habilidade própria, algum saber pró-
prio, algum conhecimento próprio, nada. Eles executavam, como
autômatos, as regras da gerencia cientifica, eles eram zelosos. E
quando chegava lá no final o produto era imprestável, não servia
pra nada, estava todo errado, todo defeituoso, era uma porcaria
completa. Por quê? Porque o saber dos trabalhadores, a competên-
cia dos trabalhadores, a habilidade dos trabalhadores estava ausente
da produção. Então a gerência científica é essa coisa formidável,
extraordinária de querer diminuir o tempo, aumentar a acumulação,
produzir mais mercadorias e dar com os burros n’água, porque ela
é totalmente incompetente, porque ela não conta efetivamente com
a figura do trabalhador, ela eliminou a figura do trabalhador. Então
eliminar essa figura, ela destrói a produção. Fim do meu comício
de hoje.
Então o que eu estou querendo apontar é que quando Marx
descreve o maquinismo da grande indústria como monstruosidade,
como ele fala “num monstro” e na servidão dos trabalhadores a
esse “monstro”, o que ele está antecipando e colocando como
elementos pra uma análise que futuramente se pôde fazer, é o que
acontece a medida que se dá aquilo que, e eu vou examinar isso em
outra aula através do Marcuse, em que se dá a chamada racionali-
zação da produção por meio dos instrumentos técnicos.
Ora, isso o que o Marx vê na grande indústria, primeiro ele
vê isso na manufatura, depois na grande indústria, é exatamente o
que o Foucault vai mostrar que vai acontecer socialmente no nível
do corpo e da alma dos trabalhadores no momento em que começa
a revolução industrial no final do século XVIII. E essas ideias, bom
ele apresenta primeiro, vocês sabem, a da Loucura no XVII. Agora,
o bio-poder, toda a história da sexualidade e esta questão, da pro-
dução do corpo, do que ele chama os corpos dóceis para o trabalho,
ele faz em Vigiar e Punir. Então ele começa assinalando a diferen-
ça entre a forma monárquica da punição e forma da punição após a
queda do antigo regime, após a Revolução Francesa e com o ad-
vento da produção capitalista. Ele vai dizer que, no Antigo Regime,
a punição era um suplício que visava destruir o corpo do punido e
culminava com o cerimonial público, o espetáculo público da sua
execução, isto é, a sua subida ao cadafalso, seja a forca, seja a
guilhotina, seja depois o tiro com a espingarda, mas havia um
espetáculo público para manifestar a vingança do soberano contra o
criminoso e produzir o terror nos súditos que contemplavam o
espetáculo da execução e frequentemente a execução era acompa-
nhada até depois do esquartejamento e de salgamento, no caso do
Tiradentes por exemplo.
Ora, Foucault vai mostrar que depois da Revolução France-
sa, depois da queda do antigo Regime e com o início do modo de
produção capitalista, a punição muda de caráter, ela não pretende
mais destruir o corpo do culpado e sim domesticar esse corpo.
Tornar esse corpo disciplinado, contido, dócil, apto para o trabalho
industrial. Portanto, em lugar da tortura destrutiva ela passa a
praticar o que Foucault chama de uma tortura científica, que opera
para não desfazer o corpo e sim discipliná-lo na prisão, ou seja, por
meio do confinamento do criminoso. Ora, para realizar essa domes-
ticação, essa disciplina do corpo e da alma dos punidos, vão ser
necessárias inúmeras técnicas que vão operar sobre os corpos dos
prisioneiros nos seus mínimos detalhes e essas técnicas são prove-
91
nientes de conhecimentos científicos. Além disso, para que a prisão
seja eficaz ela deve ter duas características:
Em primeiro lugar ela deve aparecer como um centro de
educação. Ela vai reeducar o condenado, o prisioneiro, para que ele
se torne socialmente útil. A ideia, portanto, é de que houve um
desvio na educação que produziu esse efeito. É claro, excluídos
todos os casos nos quais a psiquiatria vai dizer que é loucura. Aí
você não põe na prisão, você põe no hospício, você confina num
outro lugar, é também tudo muito científico. Você confina o louco
num hospício, mas se ele não for louco, você confina na prisão. A
primeira coisa é confinar para reeducar.
Mas a segunda coisa é que isso só será eficaz através de um
sistema de vigilância, ou seja, é preciso que o prisioneiro saiba e se
sinta vigiado 24 horas por dia em todos os seus gestos e que, por-
tanto, ele está sob o controle do vigilante. Para isso é preciso o
recurso, a arquitetura e a engenharia, e esse recurso, a arquitetura e
a engenharia vai produzir algo que o Foucault vai chamar de uma
máquina de poder que é o famoso pan/opticum (olhar/ver tudo).
Então agora eu vou citar alguns trechos do Vigiar e Punir.
O primeiro trecho que eu vou citar se refere à mudança na forma da
punição e depois o segundo trecho que eu vou citar é o controle, a
disciplina, o controle, a operação técnica do panoptico:“Existe ao
cabo a seguinte divergência: a cidade é punitiva ou deve haver
uma instituição coercitiva? De um lado um funcionamento do
poder penal repartido na totalidade do espaço social presente em
toda parte como cena, espetáculo, signo, discurso, lisível como um
livro aberto, operando por uma recodificação permanente do
espírito dos cidadãos, assegurar a repressão do crime pelos obstá-
culos colocados a partir da ideia de crime e agindo de maneira
invisível sobre as fibras do cérebro como dizia o médico Servan.
Um poder de punir que corria ao longo de toda rede social e agi-
ria em cada um dos seus pontos e acabaria por não ser mais per-
cebido como um poder de alguns sobre alguns, mas como uma
reação imediata de todos com relação a cada um”. Ou seja, a
primeira possibilidade é pensar a estrutura da cidade como uma
estrutura política, e ele vai mostrar como o urbanismo do início da
Revolução Industrial em toda Europa é isso. A cidade é uma rede
penal. É isso que ela é. Isso tá ligada à ideia que vai ser desenvol-
vida pelos historiadores Thompson, Christopher Hill, Hobsbawm, a
ideia de que os trabalhadores constituem uma massa perigosa, que
inunda as cidades e, portanto, é preciso que a cidade, como tal, seja
uma rede penal de controle, vigilância e disciplina. Essa é uma
coisa que o urbanismo, as técnicas de urbanismo vão fazer. Mas há
uma segunda questão colocada ao lado dessa, e no caso das técni-
cas de urbanismo, vocês sabem, quem analisa isso maravilhosa-
mente é Walter Benjamin quando ele analisa Paris, capital do
século XIX, por que Paris tem os grandes boulevards, que foi a
maneira que o arquiteto e engenheiro Haussmann inventou para
impedir as manifestações dos trabalhadores.
A outra possibilidade é um funcionamento compacto do
poder de punir. Um encarregar-se meticulosamente do corpo e do
tempo do culpado, um enquadramento dos seus gestos, das suas
condutas, por um sistema de autoridade e de saber, uma ortopedia
que se aplica aos culpados a fim de reerguê-los e readestrá-los
individualmente. Uma gestão autônoma desse poder, que se isola
tanto do corpo social quanto do poder judiciário propriamente dito.
É nisto que se engajou a emergência da prisão moderna. A institu-
cionalização do pode de punir ou mais precisamente o poder de
punir está mais assegurado quando ele se esconde sobre uma fun-
ção social geral não só na cidade punitiva ou punidora, mas tam-
bém quando ele se investe numa instituição coercitiva, num lugar
fechado, onde se possa ter um reformatório. Em todo caso pode-se
dizer que se encontra no final do século XVII são três maneiras de
organizar o poder de punir.
A primeira é aquilo que funcionava ainda apoiando-se no
velho direito monárquico, portanto no cerimonial da punição e da
execução;
As outras duas se referem a uma concepção preventiva, uti-
litária, corretiva de um direito de punir que pertenceria à sociedade
inteira, mas essas duas maneiras são bem diferentes umas das
outras no nível dos dispositivos técnicos que elas exigem. Esque-
matizando muito, pode-se dizer que no direito monárquico a puni-
ção é um cerimonial de soberania, ela utiliza as marcas rituais da
vingança que ela aplica sobre o corpo do condenado. Ela desdobra
aos olhos dos expectadores o efeito de terror tanto mais intenso
quanto mais descontínuo irregular e sempre acima das suas pró-
prias leis. Isto é, ela trás a presença física do soberano e do seu
poder. Ao contrário, no projeto dos juristas reformadores, a puni-
ção é um procedimento para requalificar os indivíduos como sujei-
tos de direito. Ela utiliza não marcas, mas signos, conjuntos codifi-
cados de representações do qual a cena do castigo deve assegurar a
circulação a mais rápida possível, a aceitação, a mais universal
possível. No projeto de instituição carcerária que se elabora, a
punição é uma técnica de coerção dos indivíduos, que ela põe em
obra por meio de procedimentos de amansamento do corpo. Por
meio de traços e sinais sob a forma de hábitos ela opera sobre os
comportamentos e ela supõe a posição de um poder específico de
gestão técnica da pena. Passa-se do soberano e de sua força e do
corpo social para o aparelho administrativo. O corpo que é suplici-
ado, a alma, cujas representações são manipuladas, o corpo que é
domado, aí estão três séries de elementos que caracterizam três
dispositivos enfrentando-se uns aos outros no final do século
XVIII. Não se pode reduzi-los nem a teorias diferentes do direito,
nem identificá-los a aparelhos e a instituições, nem fazê-los derivar
de escolhas morais, eles são modalidades, segundo aos quais se
exerce o poder de punir, são postar em marcha, portanto, três tec-
nologias de poder. O problema é então o seguinte: como aconteceu
que o terceiro, a punição via carcerária foi aquele que finalmente se
impôs. Com relação aos outros dois, do soberano e ao da cidade.
Como o modelo coercitivo corporal solitário, secreto, do poder de
punir, substituiu o modelo representativo, cênico, significante,
público e coletivo, do antigo regime? Bom, Foucault vai responder
a esta pergunta dizendo que a sociedade que se institui no final do
século XVIII, portanto, após a Revolução Francesa, e a queda do
antigo regime, propõe outra organização do poder no qual a racio-
nalidade administrativa se torna central. E do ponto de vista políti-
co, social e econômico, ela propõe a substituição da cerimônia
pública de vingança punitiva pelo confinamento na prisão, porque a
prisão está encarregada de domesticar e disciplinar os corpos para o
92
trabalho industrial e, por isso, a prisão surge como uma técnica
mais racional e mais eficaz do que as outras formas de punição.
Agora resta saber como que opera essa racionalidade prisional, ou
seja, como é que a racionalidade técnica da prisão vai operar. En-
tão, para isso, Foucault vai analisar a invenção de uma tecnologia
de vigilância e controle que ele apresenta como uma máquina do
poder e que é o panóptico. Sugiro que vocês peguem alguma edi-
ção do “Vigiar e Punir” para ver as várias propostas do panóptico.
A que o Foucault analisa é a primeira que é a do Bentham, mas
depois, ele vai se reproduzir em toda parte, e o que nós vamos ver é
que o formato que o panóptico tem vai ser o formato que a grande
indústria terá particularmente na etapa Fordista. A organização
arquitetônica da grande fábrica vai ser idêntica a da prisão, a do
panóptico. É a mesma técnica de vigilância que é usada nos dois
casos. Eu cito Foucault: “O panóptico de Bentham é a figura arqui-
tetônica da composição desta ideia. Conhece-se o seu princípio.
Como é essa arquitetura? Na periferia, um edifício em anel, no
centro uma torre. Esta é furada com grandes janelas que abrem para
a face interior do anel. O edifício periférico e dividido em celas.
Cada uma atravessa toda a espessura do edifício. Elas têm duas
janelas. Uma virada para o interior, que corresponde às janelas da
torre, e outra, virando para o exterior, que permite a luz atravessar
a cela de ponta a ponta. Basta então, colocar um vigia na torre
central e colocar em cada cela um prisioneiro, que pode ser um
louco, um doente ou um condenado, um operário ou um estudante.
É feito contra as revoltas estudantis, as revoltas populares, portan-
to, os estudantes e os operários, e, claro, é o instante no qual, você
tem o confinamento dos loucos, e dos doentes, os embestiados, e os
criminosos. Mas é o mesmo procedimento para todos. Ou seja,
você vai à prisão, no hospital, ou na fábrica, é a mesma técnica
arquitetônica que está presente. Portanto, o que se tem é a vigilân-
cia. O controle e a vigilância. Pelo efeito da luz do sol que penetra
na cela, quem está na torre pode ver exatamente as pequenas silhu-
etas dos cativos nas celas, que estão na periferia do edifício em
anel. Há tantas celas, tantos pequenos teatros, para cada ator, por-
que em cada uma há um único ator que é perfeitamente individua-
lizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza
as unidades espaciais que permitem ver sem cessar e reconhecer
imediatamente. Em suma, inverte-se o princípio da antiga prisão,
na antiga prisão, pensem na Bastilha, em prisões como ela você
enfia o cara em um buraco e esconde ele lá. Agora mudou comple-
tamente. Inverteram-se as três funções. Encerrar, privar de luz, e
esconder. Disso se guarda a primeira função e suprimem-se as duas
outras. Em plena luz, o olhar de um vigilante capta melhor do que
na sombra que finalmente, na antiga prisão. protegia. A visibilidade
é uma armadilha. O que permite de inicio, como um efeito negati-
vo, é evitar que as massas, compactas, perigosas, que existiam nas
prisões antigas, aconteçam novamente. Agora, cada um está no seu
lugar. Bem fechado numa cela, e ele é visto de frente pelo vigilan-
te. Mas as paredes laterais o impedem de entrar em qualquer conta-
to com seus companheiros. Enquanto que na prisão antiga, estava
todo mundo junto num buraco só. Ou seja, ele não vê, ele não
informa, ele não é sujeito de uma comunicação. A disposição de
sua cela, diante da torre central, lhe impõe uma visibilidade axial,
mas as divisões do anel, as celas bem separadas, implicam uma
invisibilidade lateral. Se vocês tomarem o livro “O direito a pre-
guiça”, a descrição que é feita da grande fábrica é exatamente essa
aqui. As celas bem separadas implicam uma invisibilidade lateral.
É esta a garantia da ordem. Se os detentos são condenados nenhum
perigo que eles façam complôs; que haja uma tentativa de fuga
coletiva; projetos de novos crimes para o futuro; más influências
recíprocas. Se eles são doentes acaba o perigo do contágio. Se eles
são loucos, nenhum risco de violência recíproca. Se eles são crian-
ças, nada de malandragem, nada de barulho, nada de tagarelice,
nada de dissipação. E se eles são operários, nada de brigas, nada de
roubos, nada de coalizões, nada destas distrações, que atrasam o
trabalho, que tornam o trabalho menos perfeito, ou provoquem
acidentes. A multidão, a massa compacta, lugar de trocas múltiplas,
de individualidades que se fundem, um efeito coletivo é abolido em
proveito de uma coleção de individualidades separadas. Sob o
ponto de vista do vigilante ela é substituída por uma multiplicidade
contável e controlável. E do ponto de vista dos detentos, por uma
solidão sequestrada e vigiada. Vem daí, o principal efeito do panó-
ptico. Induzir no detento, ou no operário, um estado consciente e
permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automá-
tico do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente nos seus
efeitos, mesmo se ela for descontínua na sua ação. Que a perfeição
do poder tenda a tornar inútil a atualidade do seu exercício. Que
este aparelho arquitetônico seja uma máquina para criar e sustentar
uma relação de poder independente daquele que o exerce. Em
suma, que os detentos, ou os operários estejam tomados numa
situação de poder na qual, eles próprios acabam se tornando os
portadores. Para isso é preciso, ao mesmo tempo, mais e pouco,
que o prisioneiro esteja sem cessar observado por um vigilante.
Muito pouco, porque o essencial não é que ele esteja vigiado, e
sim, que ele se saiba vigiado, muito, porque não há necessidade de
que ele o seja efetivamente.
Para isso, Bentham colocou o princípio que o poder devia
ser visível, e inverificável. Visível, sem cessar, o operário terá
diante dele os olhos da alta silhueta da torre central a partir da qual
ele é espiado, inverificável, ele nunca saberá se está sendo atual-
mente olhado, mas ele deve saber que ele pode sempre estar sendo
vigiado. O panóptico é uma máquina para dissociar o par ver e ser
visto. No anel periférico, se é totalmente visto, sem jamais ver. Na
torre central se vê tudo, sem jamais ser visto.
Dispositivo importante porque ele automatiza e desindivi-
dualiza o poder. Este tem o seu princípio menos em uma pessoa e
mais numa certa distribuição organizada dos corpos, das superfí-
cies, das luzes, dos olhares, numa aparelhagem, cujos mecanismos
internos produzem a relação nas quais os indivíduos estão presos.
Há uma maquinaria que assegura a dissimetria, o desequilíbrio e a
diferença. Pouco importa por consequência, quem exerce o poder.
Um indivíduo qualquer, quase ao acaso, pode fazer a máquina
funcionar. O panóptico é uma máquina maravilhosa que a partir
dos desejos dos mais diferentes fabrica perfeitos homogêneos de
poder. O panóptico é utilizado como uma máquina para fazer expe-
riências. A submissão real nasce mecanicamente de uma relação
fictícia. Por isso, já não é mais necessário recorrer aos meios da
força para constranger o condenado à boa conduta, o louco a acal-
ma, o operário ao trabalho, o estudante a aplicação, o doente a
observação da receita. Não são mais necessárias grades. É suficien-
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te que as separações sejam claras e as aberturas bem dispostas. É
por isso que o panóptico é utilizado também como uma máquina
para fazer experiências, isto é, para modificar o comportamento,
domesticar, e domar os indivíduos. Experimentar medicamentos e
verificar seus efeitos. Ensaiar possíveis punições aos prisioneiros
de acordo com seus crimes ou seu caráter, procurar os mais efica-
zes. Ensinar simultaneamente diferentes técnicas para os operários.
Estabelecer qual é a melhor. Podem se tentar experiências pedagó-
gicas, em particular, retomar o célebre problema da educação
reclusa, utilizando as crianças perdidas. Vê-se então, se está em
presença de crianças muito bem educadas. Pode-se verificar assim,
que diferentes crianças podem se educadas em diferentes sistemas
de pensamento fazendo alguns acreditarem que dois e dois não são
quatro, que a lua é um queijo, e depois colocá-los todos juntos
quando estiverem com vinte ou vinte e cinco anos e ter-se-ia então,
um conjunto de discussões que valeriam bem as conferências pelas
quais se dispensa tanto dinheiro. Ter-se-ia com isso então uma
educação capaz de fazer novas descobertas no domínio da metafí-
sica.
O panóptico é o lugar privilegiado para as experimentações
sobre os homens, e para analisar, com toda a certeza, as transfor-
mações que podem se obter deles. Ele é um aparelho de controle
que controla os seus próprios mecanismos. Ele é, portanto, essa
máquina que se acopla com outras máquinas para operar sozinha.
Na sua torre central, o diretor pode espiar todos empregados que
têm sobre sua ordem, enfermeiros, médicos, contramestres, profes-
sores, guardiães. Ele poderá julgá-los continuamente e modificar a
conduta deles, lhes impor métodos que ele julga melhor. E ele
próprio, por sua vez, poderá facilmente ser observado. O panóptico
funciona assim como um laboratório do poder. Graças aos seus
mecanismos de observação, ele ganha em eficácia e em capacidade
de penetração no comportamento dos homens em crescimento de
saber, que vem se estabelecer sobre todos os avanços do poder, e
descobre objetos a conhecer sobre todas as superfícies sobre as
quais ele venha a se exercer. Ele é a grande máquina vigilante,
controladora, disciplinadora, do período da máquina industrial.
Então, o que eu quis fazer, trazendo Foucault, foi explicitar
aquilo que o Marx chamou de a servidão do trabalhador e que o
Marx apresentava apenas no interior da fábrica, e o que o Foucault
faz é mostrar que o espaço da fábrica finalmente se torna o espaço
da cidade e o espaço de todas as formas de confinamento. E que
tudo isso opera com uma técnica de controle arquitetônica, numa
obra de arquitetura, de engenharia, de pedagogia, de medicina, de
psiquiatria, tanto quanto de instrumentos e ferramentas.
Aula 12 (12-11-2012)
Quero dar dois avisos. Primeiro aviso: eu penso que a pru-
dência que exige que... porque na próxima segunda-feira nós não
teremos aula; na outra segunda-feira, que será a última aula, eu
proponho começar às duas da tarde. Se não precisar ir até às seis,
não vamos até às seis, se precisar ir até às sete, estamos aqui. Por-
que aí, eu concluo o curso. Na segunda-feira, da conclusão do
curso, eu vou trazer as três questões para vocês escolherem o que
querem fazer; e o prazo que eu coloquei para a entrega é na quinta-
feira, dia 6 de dezembro. Eu peço que vocês entreguem até às 7 da
noite, porque lá pelas 8,9, eu venho aqui buscar para passar o final
de semana na vossa companhia.
O que mais?
Acho que os meus avisos eram estes.
[ao responder uma pergunta, Marilena informa que quanto
à correção das questões elaboradas por ouvintes – ela a fará, mas
dará prioridade para os alunos]
Eu quero começar aula de hoje é... a aula de hoje vai ser
praticamente toda ela dedicada... [alguém interrompe a aula a fim
de disponibilizar uma lousa]
[alguém pergunta a respeito em quantas páginas o trabalho
deverá ser feito ao que ela responde: duas!, quem escrever três,
pode escrever;, escreve três, escreve quatro... eu leio duas! — risos
— não tem limite para vocês escrever, mas tem limite para eu ler;
tá? é se ficar... faz as duas páginas de falta um parágrafo de conclu-
são, é claro! vai pôr o parágrafo de conclusão na página três, é
óbvio! mas não uma página três, uma página quatro; eu me sinto
humilhada de fazer este pedido para vocês, mas é que não tem
jeito, porque a gente é posto para trabalhar em escala industrial,
então... é entrar na linha de montagem]
Então, o que eu vou ler dizer é que, praticamente toda aula
de hoje, eu vou dedicar a uma elucidação do objeto técnico enquan-
to tal; porque nós vimos a técnica: a técnica, o pensamento sobre a
técnica, e nós vamos ter que entrar (o que nós vamos fazer na
próxima aula)... sobre as condições que levaram à tecnologia con-
temporânea a ser o que ela é; mas, em uma aula eu me detive no
objeto técnico no objeto técnico como tal (nas características do
objeto técnico enquanto tal). Então, eu vou desdobrar esta discus-
são, primeiro com a diferença entre o objeto técnico artesanal e o
objeto técnico industrial; depois, a diferença entre o maquinismo e
o automatismo e depois as características gerais dos objetos técni-
cos, sejam eles os antigos, os medievais, os renascentistas, os
modernos e os contemporâneos. Algumas características que os
objetos técnicos possui que valem para todos ; mas valem para
todos eles.
Eu quero começar pedindo a vocês que olhem este quadro.
Eu fiz este quadro a partir de um texto de Simondon (Simondon, G.
Du mode d'existencedesobjetstechniques), está na bibliografia de
vocês. O livro este: O Modo De Existência Dos Objetos Técnicos.
Então, Simondon propõe fazer a distinção entre o artefato artesanal
e o artefato industrial (ou o objeto técnico artesanal e o industrial)
da seguinte maneira: o artefato artesanal, nele, primeiro, cada
objeto é único, o mesmo que o artesão que fabrica em vários. A
prova disto é o instante em que você vai ao antiquário, ou você vai
ao museu, e você vê as peças antigas. Se você vai, por exemplo, ao
Louvre ou ao BritishMuseum, que fizeram imperialisticamente, o
sequestro e o roubo de toda a produção da antiguidade... você vai
no Egito, você não vê nada, você vai na Grécia, você vê muito
pouco... para ver toda a civilização antiga, você vai lá nos dois
centros imperiais que roubaram tudo e puseram nos seus museus.
De toda maneira, feito este pequeno comício, você vai o que você
vê coleções de objetos, por exemplo: vasos, ânforas, arcas, cofres,
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vestidos, mantos; e, muitas vezes, são vários, que foram feito, às
vezes, na mesma cidade, às vezes, na mesma época e, no entanto,
cada um deles é inteiramente diferente do outro, porque o artesão
opera com os meios técnicos diretos ligados à operação que ele
realiza com as mãos e na circunstância dada. Suponha, por exem-
plo, que ele está soprando o vidro e começa a chover... e caem
algumas gotas de água sobre o vidro que ele está soprando, vai sair
um tipo de vidro. Ele está soprando e venta; e, a massa é mole, ela
se curva. Então, você tem um vaso cuja forma é curvada. Ou você
tem um carpinteiro que está fazendo uma arca. Dependendo de
como o martelo bate, a madeira reage, se a madeira estava verde, se
a madeira estava muito madura, e assim por diante, embora, ele
faça cofres ou arcas muito semelhantes, cada uma delas é comple-
tamente diferente. Então, a primeira característica do objeto artesa-
nal é que ele é único, cada um é um, mesmo que o artesão faça
inúmeros; sobretudo porque ele é um profissional que faça aquilo.
Então, ele vai fazer, realmente, muitos. Mas cada um deles é distin-
to do outro, porque está vinculado às condições diretas da confec-
ção do objeto.
Em contrapartida, o artefato industrial é um objeto em sé-
rie, ele é padronizado de eles são todos iguais.
O único lugar, eu acho, os objetos padronizados não são
rivais é no Brasil. [risos]. Você compra de cada um acaba sendo de
um jeito, como se fosse uma coisa artesanal: uma tragédia! Mas, de
toda maneira, no nível dos princípios, no nível abstrato dos princí-
pios, um objeto industrial é um objeto padronizada: idêntico a
todos os outros; não existe, portanto, a individualidade do objeto.
Como consequência, o artefato artesanal é personalizado:
você sabe... pelo menos... se você não souber quem foi o artesão,
você sabe, pelo menos, onde, quando, aquilo foi feito e para quem
foi feito. O artefato industrial é completamente impessoal. O arte-
fato artesanal, nós vimos isto quando estudamos a técnica na Anti-
guidade: o uso que determina a fabricação, ou seja, o usuário é que
encomenda o objeto, e é em função do uso que vai ser feito do
objeto que ele é fabricado. No artefato industrial, é o contrário. No
modo capitalista de produção, é a fabricação que vai impor o uso.
A produção cria o uso, ela inventa o uso.
O artefato artesanal é um objeto que analítico, ou seja, ca-
da elemento tem função própria e finalidade própria. O objeto pode
ser decomposto em suas partes e cada uma delas conserva sentido e
finalidade: se você desmonta um artefato,... você desmonta uma
arca, você não destrói partes que a compõe, tanto que você poderia
recompô-la ou fazer um outro objeto com aquilo. Ou seja, cada
parte mantém a sua integridade, porque elas foram simplesmente
acionadas com umas das outras.
O artefato industrial era um objeto sintético. Cada elemen-
to opera pela relação com outros, há dependência interna entre os
constituintes, troca de energia entre eles e se você desmonta, você
não remonta nunca mais, porque cada peça só funciona naquela
posição e naquela relação: ela não tem autonomia. Você desmonta
uma arca antiga e faz um cofre, você desmonta uma cadeira de
plástico e não faz mais nada. Você desmonta um rádio ou você
desmonta uma televisão antiga, você não vai fazer nada com as
peças separadas, elas não têm nenhuma possibilidade de uso quan-
do elas estão fora da relação com as outras peças com as quais elas
compõem o objeto, ou seja, as partes não tem autonomia, não tem
identidade fora da relação.
O objeto artesanal tem uma coerência interna frágil, seja,
cada parte realiza sua função sem as outros. Você pensa, por
exemplo, uma máquina artesanal em que cada parte da máquina
(pensa num moinho)... em que cada parte realiza sua função, de tal
maneira que se você corta uma das funções, as outros podem conti-
nuar se realizando. O moinho, provavelmente, não cumprirá sua
função, mas as outras partes funcionarão. É muito curioso porque
você tem um objeto analítico, um objeto cujas partes são indepen-
dentes umas das outras, e, ao mesmo tempo, uma coerência muito
frágil, porque cada parte na medida em que é separável e indepen-
dentes das outros, ela pode ser retirada. Isto modifica a operação
que o objeto vai realizar, mas ele opera assim mesmo.
O objeto industrial tem uma coerência interna forte. Ou se-
ja, há uma sinergia das funções e troca recíproca das energias e de
informação: o objeto é um sistema ou uma estrutura de múltiplas
funções interligadas.
Eu vou depois, mais adiante na aula, explorar esta noção
de que o objeto técnico é um sistema; que a sistematicidade é um
elemento fundamental na sua definição.
E no caso do artefato industrial você tem uma transforma-
ção, ou uma modificação. Vou evitar usar a palavra história... e
vocês vão ver durante aula porque eu vou evitar usar a palavra
história. Nós, do ponto de vista temporal, vamos dizer assim, o
objeto industrial passa por duas grandes formas distintas. Na sua
forma inicial, ele é um objeto mecânico (é a máquina, que nós
vamos ver, é o maquinismo), ou seja, ele é baseado na comunica-
ção de movimento entre as partes, por exemplo: a manivela, com
que se fazia o automóvel a começar a funcionar; iniciava a manive-
la na frente do motor e girar a manivela de era ela que fazia o
motor iniciar o trabalho. A mesma coisa ocorreu com telefone:
você geravam uma manivela atéacionar a energia necessária para o
telefone se comunicar com a telefonista, quer dizer, não se comuni-
cava com mais ninguém, se comunicava com a telefonista e ela
fazia a alteração que ligavam você com a pessoa com quem você
queria falar. No elevador, a mesma coisa: não só o elevador era
uma máquina inteirinha visível... você entrava (vocês são muito
jovem...) no elevador, via tudo do elevador, via tudo, porque ele
era de grades, ele era todo vazado e você via, para cima e para
baixo, e... tinha o ascensorista... tinha um cara lá... e ele não era um
ascensorista que tocava um botão, ele girava uma manivela para
fazer o elevador subir ou descer: aí uma operação inteiramente
mecânica para o elevador funcionar. O outro exemplo mais clássico
é o da máquina a vapor, ou seja, a forma inicial de um objeto técni-
co industrial é a forma mecânica e era máquina; e, como máquina,
e a operação dele é baseada na comunicação de movimento para
ele: você tem que imprimir o movimento nele para que ele possa
funcionar. A forma atual do objeto industrial, do objeto técnico,...
ele é um objeto automático, ele é um autômato e, portanto, ele não
se baseia na comunicação de movimento, que é o que caracteriza a
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máquina, ele se baseia na comunicação de informação entre as
partes.
Antes de nós examinarmos esta diferença entre o autômato
e a máquina,quero comentar pouco este quadro do Simondon. O
primeiro aspecto interessante deste quadro é que ele mostra o
objeto técnico artesanal dependendo das relações com o mundo
percebido, o mundo natural percebido, isto é, os aspectos qualitati-
vos da matéria são fundamentais para que o objeto seja produzido:
duro, mole, quente, frio, seco, úmido, grande, pequeno, comprido,
curto, ou seja, aquilo que, depois, na história da filosofia, vai rece-
ber o nome de "as qualidades secundárias", que são as qualidades
sensoriais. Então, são essas as qualidades com as quais o artesão
trabalha; que trabalha a partir desta maneira com que a matéria se
apresenta para ele, porque são estas as características da matéria
que vão determinar a forma que ele vai poder imprimir nela. Então,
o artesão preciso obedecer às condições que são impostas a ele que
a matéria. Ou seja, ele só pode colocar na matéria uma forma para
a qual a matéria está preparada. A matéria tem que estar potencial-
mente disposta, ou preparada, para receber aquela forma.
O objeto técnico industrial não tem mais nenhuma relação
imediata, ou direta, com um mundo natural percebido. Ou seja, ele
é regido pelas leis científicas da física e da química e, portanto, ele
é tratado do ponto de vista quantitativo. E é por isto que digo técni-
co, no mundo industrial, não é um artesão, ele é um engenheiro.
Ele dispõe de conhecimentos científicos, que são a física e química
(e a matemática, evidentemente), para determinar a fabricação, a
produção, do objeto. Simondon vai explicar um pouco o quadro
que ele apresentou, e eu vou citar um texto do Simondon que está
nas páginas 34 e 35 do modo de existência dos objetos técnicos.
Simondon diz o seguinte: "O objeto técnico artesanal é a abstrato
(ou seja, ele pode ser dividido nas suas partes), o objeto técnico
industrial é concreto (é uma síntese). A essência da concretização
do objeto técnico é a organização em subconjuntos funcionais no
funcionamento total. Cada estrutura preenche uma função, mas no
objeto técnico abstrato (que é o objeto artesanal) ela preenche
somente uma função, essencial e positivo, integrada no funciona-
mento do conjunto. No objeto técnico industrial concreto, todas as
funções preenchidas pela estrutura são positivas, essenciais e inte-
gradas no funcionamento do conjunto. No objeto concreto (indus-
trial), cada peça não é somente aquilo que deve corresponder à
realização de uma função desejada pelo construtor, mas era uma
parte de um sistema no qual se exerce uma multidão de forças que
se produzem efeitos independentes da intenção fabricadora. O
objeto técnico concreto é um sistema físico-químico no qual as
ações mútuas se exercem de acordo com as leis da ciência. A fina-
lidade da intenção técnica só pode atingir a sua perfeição na cons-
trução do objeto se estiver em identificada, portanto, com o conhe-
cimento científico universal. O fato de que o objeto técnico perten-
ce à classe de objetos factíveis que respondem a alguma atividade
humana definido nãolhe limita nem define em nada o tipo de ações
físico-químicas que podem se exercer neste objeto, ou entre este
objeto, no mundo exterior. A causalidade produtora neste objeto
técnico industrial não é a vontade nem a intenção do fabricador,
mas é a causalidade natural físico-química que o fabricador precisa
conhecer para que o objeto preencha a finalidade que lhe vai ser
dada".
Se observa, portanto, no Simondon e pela comparação en-
tre estas duas formas de objetos técnico é que vai se estabelecendo
uma quase independência do objeto em relação ao seu produtor.
Isto é essencial para nós entendermos o que se passa na grande
indústria quando Marx descreve o processo de alienação. O que
torna possível o processo de alienação do trabalhador, o seja, o fato
de que ele nãose reconhecer no produto do seu trabalho não é só a
fragmentação que a manufatura produziu e a hiperfragmentação
que a maquinária produziu. Não é só isso. É o fato de que a ação
que ele realiza é uma ação determinada por um conhecimento
técnico-científico que ele, trabalhador, não possui. Quem possui
isso era o engenheiro, é o arquiteto, que impõe um confronto de
ações que o trabalhador tem que realizar. Nós temos a ação do
trabalhador sob duas grandes formas. A primeira é: ele não pode se
reconhecer no produto do trabalho porque o trabalho se fragmen-
tou. A segunda é: ele não pode se reconhecer no produto do traba-
lho porque as condições da fabricação deste produto que ele vai
produzir não são estabelecidas por ele, são estabelecidas "fora"
dele, pelos técnicos e engenheiros. Isso significa que, portanto, vai
havendo uma independência, crescente, do objeto com relação ao
seu produtor. E é isto que suscita as posições (que eu vou examinar
na última aula)... as posições pessimistas com relação aos objetos
técnicos, isto é, a ideia de que os objetos técnicos (industriais)
escapam do controle humano. Eles escapam do controle humano...
primeiro, eles escapam do controle do fabricador, isto é, eles esca-
pam do controle do trabalhador; mas, depois (nós vamos ver isto
com o automatismo), eles vão escapar do controle do usuário e,
finalmente, eles vão escapar do controle do técnico e do engenhei-
ro. É como seu objeto ganhasse uma vida própria que é indepen-
dente da sua produção e do seu consumo. Estas visões pessimistas
vão aparecer não só as críticas à técnica (todas as obras de crítica à
técnica contemporânea), mas vão aparecer também com o surgi-
mento de um tipo novo de literatura, que só foi possível a partir de
um mundo industrial, que é a ficção científica. Portanto, a crítica
filosófico-científica da técnica, quanto a crítica literária da técnica
pela ficção científica, estão muito vinculadas a este movimento
pelo qual o objeto técnico, ou o objeto produzido pela tecnologia
cada vez mais avançada, escapa do controle do seu produtor, e
depois, do controle do seu consumidor.
[pergunta de aluno]
Boa pergunta! O Simondon está usando (eu devia ter dito
isto desde o começo) a distinção hegeliana entre abstrato e concre-
to. Para Hegel, aquilo que é dada e imediatamente a nossa experi-
ência, a nossa percepção, àquilo que oposto apontar com medo e
dizer: "Isto é azul", "Isto é uma parede", "Isto é um microfone",
"Isto é o meu colar", "Isto são vocês", isto que constitui, portanto, o
conjunto da experiência sensorial perceptivo é o que, Hegel diz,
isto é abstrato. Tudo o que é dado imediatamente a nós é abstrato.
Por quê? Deste ponto de vista, Hegel tem um predecessor muito
interessante, que é Espinosa. Porque Espinosa diz exatamente a
mesma coisa: aquilo que é dado na experiência imediata é abstrato.
Por quê? O que é algo abstrato? É abstrato aquilo cuja causa des-
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conheço, é abstrato aquilo cujo modo de produção eu desconheço.
É abstrato aquilo cuja origem eu desconheço. Então, tudo aquilo de
que eu tenho a experiência imediata e direta é a experiência do
aparecer do mundo para mim, o mundo aparece para minha consci-
ência desta maneira; mas eu ignoro porque ele é assim. Qual é o
movimento que produz tal como ele se apresenta para mim? E é o
desconhecimento da origem, o desconhecimento da causalidade (no
caso hegeliano é o desconhecimento do processo de engendramen-
to) é o que faz com que isto que eu percebo seja abstrato. É claro
que se você toma a fenomenologia husserliana (e dentro dela,
Merleau Ponty, por exemplo, vai fazer uma inversão completa
disso e vai propor uma fenomenologia da percepção e vai dizer que
não há nada mais concreto que a percepção. Mas, Simondon está
operando neste campo de origem — vamos dizer,espinosana-
hegeliana — em que o dado imediato (àquilo que é dado imediata-
mente na experiência), porque não me fornece a sua origem, a sua
causa, o processo da sua constituição, é abstrato. Ao contrário, o
concreto (agora eu vou usar o Marx)... Marx diz: o concreto é o
concreto porque síntese de muitas determinações, unidade do uni-
verso. É isto que é o concreto. O concreto é aquilo cuja gênese
necessário, cuja produção necessária e cujo processo necessária de
surgimento e de articulação dos componentes da produção de uma
síntese, unitária e identidade, são dados. É por isto que, tanto o
Hegel do como Marx, e na construção da Ética de Espinosa nós
poderíamos dizer um pouco isto, o concreto é dado lá no ponto
final. Eu não sei o que é o Capital quando eu leio o primeiro capí-
tulo do Capital. Quando eu leio o primeiro capítulo do Capital,
Max é taxativo; a palavra que ele usa, o verbo que ele usa é o mais
hegeliano possível, ele diz: o mundo capitalista, a sociedade capita-
lista, aparece como um mundo de mercadorias.... Aparece. No
último capítulo, do último volume do Capital, nós vamos saber
porque aparece assim. O capital é como a Fenomenologia Do
Espírito, do Hegel, ou como a grande lógica do Hegel, é um movi-
mento para explicitar a inversão da aparência na essência compre-
endida. É esta diferença entre o abstrato e o concreto: abstrato é o
ponto de partida, concreto é o ponto de chegada. Fundamentalmen-
te é isto. Salvo dois casos. Guimarães Rosa que diz: o concreto não
está nem no começo (...?...) nem no fim, ele está na travessia.
[Neste autor, se lê o seguinte: "Eu atravesso as coisas — e
no meio da travessia não vejo! — só estava era entretido na ideia
dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente
quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é
num ponto mais, bem diverso do que em primeiro se pensou (... ) o
real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é
na travessia..."]
Antonio Machado: "Caminante, no haycamino, se haceca-
minoal andar"; portanto, é o caminho que constitui o concreto e
não o ponto final e Merleau Ponty quando ele diz: "O revolucioná-
rio navega sem mapas porque ele não possui o álgebra da história".
Posições nas quais se contestam concepções hegelianas e herdada
por Marx de que lá no ponto final o concreto vai aparecer. Qual é o
concreto hegeliano? O Espírito absoluto, isto é, o Espírito que
recolheu dentro de si toda a sua história e, agora, ele é consciente
de si e sabe de si e, portanto, a história terminou. A história do
Espírito. A história empírica ainda continua, nós continuamos aí
empiricamente, mas a história, com "H" maiúsculo, que é um
movimento do Espírito para conquistasse a si próprio, acabou. Que
dia que acabou? Acabou no dia em que Hegel escreveu a última
página da grande lógica. No Marx ainda vai acabar na revolução,
enquanto o comunismo não chegar, o concreto não chega também.
O capitalismo é a abstração pela qual tem que passar para chegar à
concretude socialista e comunista. Então, são estas ideias.
É isto que está pressuposto aqui no texto do Simondon
quando ele diz: o objeto artesanal é abstrato. O que ele quer dizer
com isto? É dado na experiência direta, o imediata, o artesão de-
pende das qualidades que ele percebe: quente, frio, duro, mole,
comprido, curto... é por isto que é abstrato. O objeto industrial é
concreto no sentido em que ele é uma sistematicidade produzida
por uma causalidade físico-matemática. Então, eu conheço a gêne-
se dele; por isto ele é concreto.
Muito bomvocê ter perguntado, porque senão eu iria passar
batido aqui.
Por favor, de vez em quando me façam perguntas, porque
eu vou passando batido... eu sei o que dizer isto na penúltima aula é
o fim da picada... [ risos] mas, nunca é sem tempo; porque às vezes
eu passo batido achando que é cristalino... e não é! Precisa de uma
explicação.
Eu vou concluir com mais uma citação do Simondon. Esta
distinção entre o objeto de prata e o objeto concreto leva Simondon
a propor uma distinção. Esta distinção, nós poderíamos dizer, é
profundamente iluminista; ele distingue entre minoridade técnica e
maioridade técnica. Então, ele diz: "O estatuto deminoridade é
aquele segundo a qual o objeto técnico é, antes de tudo, um objeto
de uso, necessário à vida cotidiana, fazendo parte do ambiente no
meio do qual o indivíduo humano cresce e se forma. O encontro
entre o objeto técnico e o homem se situa, neste caso, é essencial-
mente durante a infância. O saber técnico é implícito, não reflexi-
vo, o costumeiro. O estatuto de maioridade corresponde o contrá-
rio, a uma tomada de consciência e a uma operação refletida do
adulto livre que tem a sua disposição os meios do conhecimento
racional e elaborado pelas ciências. O conhecimento do artesão se
opõe ao do engenheiro".
Então, minoridade técnica significa abstração e o objeto
voltado para o uso; maioridade técnica significa concreção e o
objeto de terminar por um conhecimento científico.
Nós vamos — eu espero —, na última aula, por um pouco
em questão esta distinção.
Há um discípulo do Simondon, Sévis, que trabalha um
pouco essa distinção entre minoridade e maioridade técnica. Um
dos exemplos interessantes que ele dá... ele dá vários exemplos do
que acontece quando você tem um objeto técnico inicial de sua
forma final. Ele vai dizer: há uma tecnicidade, e o grau da tecnici-
dade é tanto menor quanto mais avançado for o objeto técnico. O
que ele quer dizer o seguinte: a tecnicidade é de que conhecimentos
eu tenho que dispor para produzir um efeito técnico. O primeiro
exemplo que ele dá é o do fogo; ele diz, se você toma o mundo
primitivo e o mundo da descoberta do fogo, o fogo é obtido através
de rituais religiosos, ele é considerado mistério sagrado e ele é
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compartilhado por pouquíssimos, que são aqueles que detêm o
saber sobre a produção do fogo. (...?...) ele, hoje, com que a criança
da esquina acende isqueiro, risca um fósforo, solta uma bombinha,
acende o fogão, o seja, não há mais necessidade de nenhum conhe-
cimento técnico para usar o fogo. Então, você alcança a maioridade
técnica, do ponto de vista do usuário, quando você não precisa ter
nenhum conhecimento para usar essa técnica. E a minoridade
ocorre quando para usar esta técnica você precisa de um saber
imenso, em geral, ritualístico, secreto, misterioso... então, a ponta
da minoridade é as exigências que são feitas para que você tenha
acesso àquele objeto técnico. E a maioridade e terra: não é feita
mais nenhuma exigência a você. Outro exemplo que ele dá que
muito divertido. Ele diz: se você tomar a maneira como se juntam
essas de roupa, você vai ver que (no caso da Europa ocidental), no
caso dos gregos e romanos, não tem costura, você tem grandes
planos de você enrola, você pregueia, você faz uma série de coisas,
mas não há ideia de uma costura. E no caso, por exemplo, dos
guerreiros, se você tem tiras de couro, cipós que amarram, que são
usadas no vestuário de guerra. Se a gente caminhar um pouco,
chegar, por exemplo, na idade média; se você olhar... não dá para
tentar ver isto em filme de Hollywood; se você olhar estes objetos
em museus... em alguns filmes ingleses dá para ver isto, em filmes
franceses, também. A conexão entre as partes é por tiras: você
junta a manga e o ombro, amarrando uma série de tiras (a mesma
coisa atrás); ou seja... o resultado disto, de duas que , uma: se você
é um camponês, você põe aquela roupa e vai até ela acabar; se você
é nobre, você tem três ou quatro serviçais que vestem você e te
ajuda a se vestir, porque é um acontecimento, você se vestir. Você
tem que amarrar coisinha por coisinha.
Se você passa o momento da manufatura e da primeira re-
volução industrial, você tem o botão... o botão e a casa, e aí, facili-
ta. Aí, quando você vai chegando ao final da primeira guerra mun-
dial, surge o zíper e, com a viagem espacial, esta coisa maravilhosa
que é o velcro. Acabou!
Então, você vai da ausência de conexão na roupa a uma
elaboração desesperada de fios, fiapos de fitas para amarrar tudo
aquilo; depois... Não sei quantos de vocês já viram fazer o caseado
para um botão — não aquilo que a máquina faz..., não! — a costu-
reira fazer o caseado, e a mãe fazer o caseado de ensinar a fazer o
caseado: é um horror, é um inferno, fazer o caseado; você tem que
cortar no tamanho certinho, põe o botão, vê se deu bem e aí, você
vai costurar as bordas, depois, você vai as bordas inteiras, você vai
provar outra vez o botão, se ele passar, você vai repetir esta opera-
ção, agora, pelo avesso; e, de tal maneira que, quando a casa está
pronta, não se percebe mais que ela foi manualmente produzida:
ela é uma perfeição, parece que ela esteve lá desde que o pano
apareceu, esta é a casa perfeita. A mesma coisa, achuriar a barra,
quando você faz do vestido. Imagina!,se no meu tempo tinha esta
máquina estranhíssima (esqueci o nome dela) que faz a barra (in-
dustrialmente, ela faz a barra, este treco que está aqui). Você fazia
na mão; se fosse filó, cetim..., se fosse musseline, o modo de fazer
a barra era secompletamente diferente. Se você pega alguma coisa
de algum (...?...) de brim, você faz... chama-se de pé-de-galinha...
e... a arte de fazer isso, a verdadeira costureira, não deixa jamais
do lado direito aparecer que ela está fazendo pelo lado esquerdo; o
que significa que ela tem que pegar, a cada vez, um minúsculo fio
pelo avesso e passar a linha por aí, porque do lado de cá não pode
aparecer a confecção da barra. Eu tinha uma tia que quando ela via
estes trecos aqui — minha tia era costureira— ...quando ela via
estes trecos aqui, ela dizia: isso se chama carregação, isto é roupa
de carregação; ela ficava o horrorizada com fato de que ficava tudo
aparecendo. Mas se você vai fazer na musseline, se você vai fazer
no cetim, você não pode fazer o pé-de-galinha, você vai fazer um
achuriado, que são pequeninas... mas, pequeninas!... passagens que
a agulha faz entre o avesso e a barra de minúsculas, você não pode
fazer isto ser grande, porque se for grande... desmancha ou, depois,
surge uma folga e a barra começa a ficar toda embalada; tem que
ser rigorosamente feito, e todos do mesmo tamanho. Você é treina-
do para fazer tudo em um tamanho.
É claro que tudo isto aqui é um elemento fundamental da
liberação feminina; é o óbvio! Coisa melhor que as mulheres in-
ventaram para fazer tudo na máquina, aguentar tudo na máquina...
botar o velcro e: para bens! Vamos viver a vida! Por que você se
gastava e se desgastava de esta bobagem; mas isto era a exigência
que a minoridade técnica fazia do que era "a boa costura". Então, o
objeto técnico costurável. eu recomendo vivamente que vocês
leiam o livro da dona Gilda sobre a moda em que ela vai descre-
ver... há um instante em que ela faz uma descrição maravilhosa da
renda. Porque a renda era feito em casa (você fazia a renda), de-
pois, você aplicava a renda, e você bordava em cima da renda. Era
o que acontecia com as meninas operárias que para seguir a moda
faziam isto também, que faziam isto à noite à luz de vela até quase
ficarem cegas. Não é uma história engraçada, a história da técnica,
é sempre uma história de uma violência fora do comum. No caso
das mulheres, a cada passo, a exigência da perfeição no desempe-
nho no cotidiano foi sendo posta de lado, felizmente posta de lado.
Depois, claro (nós vamos ver isto até o final da aula), há um instan-
te no qual (isto ocorreu sempre desde o começo)... os grandes
instantes de grandes mutações técnicas estão vinculados à guerra
(são exigências feitas pela guerra que produzem isto). A primeira
guerra, todos determinados efeitos, no caso, felizmente, todas as
mulheres param de usar roupas compridas, dez anáguas, dez calci-
nhas, cinco meias, dois chapéus, cinco luvas, um babado... toda
aquela coisarada que elas tinham que usar. E passam, lépidas, nos
anos 10,20 e 30, a usar aquelas roupas frágeis, leves, de cotadas...
sem nada embaixo! Leves! Aí, vem a segunda guerra. O que a
segunda guerra faz! A segunda guerra faz uma coisa maravilhosa:
precisa das mulheres na fábrica; os homens foram todos para a
guerra e a produção industrial tem que continuar.... Como você põe
as mulheres na fábrica, se elas têm a casa para cuidar... e os filhos.
Então, você inventa a escola em tempo integral, creche, o jardim de
infância, o maternal... tudo isso... e os eletrodomésticos: os Estados
Unidos criam os eletrodomésticos. Por que, se a mulher tem: fogão
elétrico, o aspirador, o liquidificador, a máquina de lavar roupa, a
máquina de lavar prato... pronto! Ela faz isto de noite, quando ela
volta da fábrica. O que não se avalia era o que significa isto, por-
que, na hora em que você está liberada da carga, do besteirol do-
méstico. Não há nada mais idiota do que o trabalho doméstico
porque, você acabou de lavar um prato e vem um filho com uma
xícara e... você lava a xícara e você lava xícara e vem o tio com
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um copo e... você acaba de lavar o copo e vem a filha com a blusa
para lavar e outro para engomar... é uma coisa fora do comum!
Fora-do-comum! Quando você está liberado disto, quanta coisa
você vai fazer, né? Vai para escola, vai para a universidade, vai
viajar, vai escrever... você vai fazer mil coisas. E aí depois... bem
depois inventaram esta coisa extraordinária (com todos problemas
que ela tem)... inventarama pílula. Na hora em que inventaram a
pílula... o feminismo, liberação feminina, a liberação sexual... e
tudo ficou ótimo!
É uma pena que tudo isto aconteceu sob o modo de produ-
ção capitalista. Que a gente sabe tudo isto acontecer sob um modo
de produção capitalista. Mas, enquanto tal, são coisas interessantís-
simas para a gente passar para minoridade técnica para a maiorida-
de técnica. Vocês imaginem todos os procedimentos... por que
ficavam por conta das mulheres, né? Os homens nunca tiveram que
tomar providências nenhuma, nenhuma! Então, todas as providên-
cias artesanais que as mulheres tinham que tomar para não engra-
vidar. E tudo o que elas faziam depois que elas engravidavam. Ora,
vem a pílula... ponto e parágrafo!
Eu não tenho uma visão otimista da técnica porque ela se
realiza no modo de produção capitalista, mas eu não tenho uma
relação de tecnofobia. O que poderíamos fazer com os objetos
técnicos? Uma transformação social. Que é o que acontece com
eles: uma transformação social. (Antecipei a minha última aula).
Então, vamos lá!
Agora, agora vou passar para a questão de qual é a dife-
rença entre a máquina e o autônomo, para entender o objeto técnico
contemporâneo.
Numa obra intitulada "A Sociedade Informática", Adam
Schaff (ele está na bibliografia de vocês), se refere à revolução da
microeletrônica e ele nota que nós estamos completamente rodea-
das por ela no nosso cotidiano de tal maneira que nós não a perce-
bemos. Ou seja, o relógio de (...?...), a calculadora de bolso, o
telefone celular, os computadores, os voos espaciais... tudo isto nos
rodeia sem que a gente, agora, se surpreenda ou se dê ao trabalho
de uma reflexão sobre isso: eles estão dados aí, na nossa experiên-
cia e no nosso cotidiano. Ele fala também na revolução da microbi-
ologia que vai o ocorrerá a partir da descoberta do código genético
(dos seres vivos) e da qual nasce a engenharia genética que pode
alterar o código genético das plantas, dos animais e dos seres hu-
manos e estão aí nos transgênicos (a fazer sua festa no globo terres-
tre). Ele fala também da revolução da energia nuclear, ou seja, a
obtida mediante a fissão e a fusão controlada de átomos e que
poderia propiciar novas formas de energia, mas que está destinada,
até que se prove o contrário, aos militares, apesar de toda a fala do
seu uso pacífico.
Estas revoluções que são "micro", hoje em dia recebem
uma referência ainda mais "micro", que é a referência à "nano"; e
você passa a falar não numa microtecnologia, mas numa nanotec-
nologia. A ideia fundamental, trazida pelo Schaffer, e que a noção
de nanociência e nanotecnologia desenvolve, é o acesso do conhe-
cimento, e depois, das técnicas, ao infinitamente pequeno. É o
poder, o acesso, ao infinitamente pequeno.
No entanto, antes de examinar o que isto significa, é im-
portante compreender como é a mutação que a revolução da micro-
eletrônica, mais do que a da microbiologia e mais do que a da
energia nuclear, do ponto de vista de uma história da técnica. Os
antigos objetos técnicos, até a segunda revolução industrial, diz
Schaffer, eram objetos que a ampliavam a força do corpo humano,
eles eram uma ampliação do corpo. Na antiguidade, ampliação da
capacidade das mãos dos pés; depois, na modernidade, das mãos,
dos pés e dos olhos; com a grande indústria e as máquinas, o corpo
inteiro; mas era sempre um objeto que tinha como referência o
corpo humano do ponto de vista de troncos e membros e o aparelho
sensorial. Os novos objetos tecnológicos, nascidos desta revolução
da microeletrônica não ampliam mais as forças físicas, elas preten-
dem ser uma ampliação das forças intelectuais humanas, ou seja,
uma ampliação da capacidade do pensamento; porque estes obje-
tos, diferentemente dos anteriores, lidam com um novo paradigma.
Os objetos técnicos até a revolução da microeletrônica eram obje-
tos que lhe davam com a comunicação de movimento, eram má-
quinas; máquinas simplíssimas, como as cinco máquinas gregas (a
alavanca, a polia, o parafuso, o martelo, etc.) até a maquinária
complexa da segunda revolução industrial; mas eram máquinas,
comunicação de movimento. Ora, a novidade é que, agora, os
objetos técnicos dependem de informações e eles operam por in-
formações e comunicação de informações.
Esta ampliação da capacidade intelectual ou, pelo menos, a
ampliação das operações do cérebro, são evidentes com o compu-
tador. Ele amplia a capacidade de pensamento de uma maneira
gigantesca, ele realiza em segundos o que seria necessário séculos
para realizar, ele amplia a capacidade de memória, ele torna a
nossa memória quase nada, diante da memória que ele é capaz de
armazenar e mais, este objeto que amplia as capacidades intelectu-
ais, que amplia o pensamento, amplia a memória, opera por infor-
mação, ele está organizado de maneira a se autocorrigir; na maior
parte das vezes, ele é capaz de corrigir suas falhas e de corrigir seus
erros cometidos alguma, em algum processo; ou seja, ele possui
aquelas características que nós vimos com Descartes e Liebniz, em
Hobbes, definiam um autor.
Durante a primeira e a segunda revolução industrial, o
corpo humano se estendeu no espaço; primeiro, com o telescópio, o
microscópio, a máquina a vapor (que deu o trem, que deu o bonde),
depois, com as máquinas elétricas (o telégrafo, o telefone, o rádio,
o cinema, televisão) e as máquinas a combustão, como o automóvel
de o avião. Agora, com os satélites e a informática, é o nosso sis-
tema nervoso central que se amplia, se estende, no espaço que no
tempo. Nós podemos dizer que, como não há limites esta tecnolo-
gia nova, não há limites para estender o nosso sistema nervoso no
espaço e no tempo, nós podemos dizer que essa tecnologia (eu vou
examinar isto na última aula) caminha na direção de não apenas de
diminuir distâncias espaciais e diminuir intervalos temporais, ela
caminha no sentido de eliminar a distância espacial e o intervalo
temporal, ou seja, ela caminha na direção de um "aqui total" e de
um "agora total". É um mundo sem os horizontes do espaço e sem
os horizontes do tempo. Ela é uma tecnologia que abole a geogra-
fia, abole a diferença entre o distante e o próximo e do perto e
longe de que abole, do ponto de vista temporal, a distinção clássica
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entre passado, presente e futuro. Então, esta tecnologia é distinta da
que aconteceu até a segunda revolução industrial, porque o que
altera é o nosso modo de inserção (...?...), porque ela altera o nosso
sistema perceptivo. E é por isto que com esta nova tecnologia se
diz que o universo está online durante 24h. Ele não tem um obstá-
culo de distâncias e de diferenças geográficas, de distâncias de
diferenças sociais e políticas e ele não opera com a distinção entre
o dia e noite, ontem, hoje e amanhã. Então, tudo se passa aqui e
agora e isso se vê, não apenas na sala de bate-papo, mas se vê no
modo de operação do capital financeiro, que faz as suas operações
num piscar de olhos, entre empresas e bancos situados nos confins
do planeta, instantaneamente. É um mundo, portanto, do instantâ-
neo.
Esta revolução vai nos conduzir do maquinismo para o au-
tomatismo, ou seja, vai nos conduzir para um objeto técnico cuja
finalidade é substituir uma gente vivo nas funções de execução,
comando, vigilância e controle da produção, seja, o autômato não
imita o ser vivo (não aparece na ficção científica com os robôs,
não); o que o autômato faz é substituir o ser humano.
O automatismo se refere a três aspectos principais: o prin-
cípio do movimento, a operação e a execução da obra e as funções
de comando, regulação, vigilância e controle do objeto.
Princípio do movimento.
A palavra grega automaton significa algo que se move a si
mesmo, algo que é automotor, automovente e que tem em si mes-
mo o princípio do movimento. Era por isto que os modernos (nós
vimos) afirmavam que o autômato perfeito era o corpo humano, a
natureza, feita por Deus, porque depois Deus a cria ela passa a
funcionar por ela mesma que o corpo humano. Você se lembram do
texto do Liebniz da diferença entre a máquina feita pelo homem e a
máquina feita por Deus, no caso corpo humano, a máquina feita
pelo homem, ela esbarra, chega um momento em que as partes
componentes não são máquinas; enquanto que, no caso do corpo
humano, até a mais que ínfima parte, ainda é máquina e, por isso,
ainda é o autômato. Então, este sentido inicial é palavra autômato
tem, de mover-se a si mesmo, leva a considerar que uma máquina
que tem o seu próprio motor, que funciona a partir de si mesmo, é
um autômato. Ou seja, passa-se a falar em automatismo tanto lá
para os antigos quanto para os modernos, quanto para nós quando a
força animal, a força natural e a força humana são substituídas por
uma força técnica como um motor. Quando o motor da máquina
não é nem a força animal, nem a força natural, nem a força huma-
na, mas é uma força, ela própria, técnica, nós dizemos que temos
um automatismo. O autômato é aquele cujo motor é ele próprio um
objeto técnico. Nesse sentido do automatismo envelheceu. O objeto
técnico automático, ou o automatismo (autômato contemporânea),
é muito mais que o sentido que os antigos e os modernos deram
para o autômato. Então, nós entendermos este novo sentido que o
automatismo contemporâneo tem, ou que o autômato contemporâ-
neo tem, nós temos que levar em consideração as duas outras ca-
racterísticas do autômato. Não basta se referir à questão do movi-
mento e dizer: "bom, o autômato é aquilo que tem, em si próprio, o
princípio do movimento". Isto não basta! — para caracterizar o
autômato contemporâneo.
A segunda característica que o autômato tem (e isto é já a
marca do autômato contemporâneo): é a operação e a execução da
obra.
Considera-se que a máquina passa realizar sozinho e por si
mesmo todas as operações que vão executar a obra. Ela é capaz de
comunicar movimento a suas partes. E esta comunicação é chama-
da de automatismo operacional. Mas este elemento que é essencial
para entender o automatismo contemporâneo ainda não nos dá o
núcleo do automatismo contemporânea.
O que nos dá o núcleo do automatismo contemporânea é a
terceira característica do autômato: o comando, a regulação, a
vigilância e o controle exercido sobre a produção.
O objeto técnico automático contemporâneo pertence ao
sistema técnico dominante que é o sistema da tecnologia eletrônica.
Por isso, este objeto tem as seguintes características (e é isto o
autômato contemporâneo): primeiro, ele realiza operações que
implicam pensamento, isto é, se implicam linguagem; porque ele
opera com comunicação e informação de comunicação. Ele opera,
portanto, graças a uma codificação legível e compreensível para a
máquina. E é porque a máquina compreende o código que ela é
capaz de estabelecer as relações entre as suas funções e, é por isso,
que ela pode agir por si mesma e em si mesma.
O que são, portanto, as operações que a máquina realiza?
Essas operações são sistemas de sinais codificados sob a forma de
programas matemáticos e formalizadas em termos da lógica formal
contemporânea. Vocês sabem, em francês, o comprador se chama
"logiciel" [na verdade, este vocábulo em francês, antes, significa
"programa" em português; wikipédia: "Eninformatique, unlogiciel
est un ensemble d'informationsrelatives à destraitementseffectué-
sautomatiquement par unappareil de informatique"], para marcar
que ele opera graças à formalização lógica. Ou seja, o código, que
é um código de informação, que a máquina compreende transmite
as suas partes e indica que opera por mensagens, ela recebe mensa-
gem e envia mensagem. As suas partes estão interligadas por men-
sagens. E não dá para gente dizer "ah, que antropocentrismo louco,
escrever à máquina, parece que eu estou descrevendo...". Não!... é
isto mesmo que ela é. Ela é isto! Ela é aterradora, mas ela é isto;
ela é a compreensão de códigos matemáticos e lógicos que ela
transforma em mensagens e que ela envia para todas as suas partes
as quais trocam entre si mensagens. A ideia era: nós poderíamos
ser inexistentes, alguém tocou um botão e a máquina se pôs a
funcionar. A humanidade termina e a máquina está lá... funcionan-
do; ou seja, ela não precisa de nenhum ser humano para fazer o que
ela faz. Esta é a sua primeira característica.
Segunda característica: ela é dotada de autorregularão, ou
seja, ela é capaz de se voltar sobre si mesma para assegurar o seu
funcionamento correto, o seu equilíbrio interno e a correção dos
seus erros.
Terceiro. Ela opera com três tipos de comunicação: comu-
nicação clássica de movimentos, comunicação clássica de energia e
comunicação nova de informação.
Em quarto, ela opera em diálogo com o mundo exterior e
com o seu utilizador. E ela fazia isto graças ao programa. Sévis vai
100
nos explicar o que é um programa. Ele está na bibliografia de vocês
também. "O programa é a ingestão pela máquina de uma parte
constante das informações que podem vir do exterior e das instru-
ções dadas ao utilizador e recebidas do utilizador". É isto o pro-
grama.
Em quinto lugar, o autômato contemporâneo não é uma
máquina que se move a si mesma, ele é uma inteligência artificial.
Nós chegamos, portanto, à forma contemporânea do objeto
técnico.
Eu proponho, agora, fazer mais um percurso para exami-
nar as características que fazem com que um objeto seja considera-
do como um objeto técnico. E não só, tomando agora o objeto
técnico contemporâneo, mas o objeto técnico em geral. Aquilo tudo
que a gente viu no decorrer deste curso.
Basicamente, um objeto técnico é um objeto que se refere
a dois tipos de usos possíveis: ou como meio para a produção de
um outro objeto (portanto, como um instrumento, ferramenta,
máquina), ou como um resultado obtido pelo trabalho, pela fabri-
cação, pela produção; ou seja, um objeto técnico é tanto a ferra-
menta, o instrumento, a máquina, que produz um objeto, quanto é o
próprio objeto produzido, na medida em que ele... encarna nele, ele
traz dentro dele, o processo que o produziu. Ele é um objeto da
técnica. Então, eu tenho o objeto técnico como um processo... os
instrumentos para produzir um objeto e um resultado. O resultado
também é um objeto técnico.
Sob esta perspectiva, nós podemos dizer que um objeto
técnico tem as seguintes características (o objeto técnico em geral).
Primeiro: ele é fabricado pelo homem ou ele tem um homem como
causa produtora; ele é uma obra, ou seja, ele não é um efeito de
uma causalidade natural, ele é produto de trabalho.
[aparentemente, a professora "pulou" a segunda caracterís-
tica]
Terceiro: ele é um meio de produção e um produto. Por
exemplo, um martelo é um meio de produção; mas ele próprio foi
produzido, portanto, ele é um produto técnico. Ou seja, em objeto
técnico pode ser um instrumento para a produção ou a finalidade de
uma produção.
A outra característica é que, portanto, pela sua finalidade o
objeto técnico é um utensílio, ou seja, ele é um objeto de uso. Por
exemplo, o vestuário, o transporte, o calçado, os objetos de uso
doméstico e assim por diante. Ele pode ser uma operação humana:
culinária, agricultura, medicina, escrita, as obras de arte; tudo isto é
técnica, tudo isto que nós vimos no correr deste curso. Este conjun-
to de característica não é, senão, a enumeração que nós fomos
vendo no decorrer do curso.
Seja como instrumento de produção, seja como o utensílio,
ou seja, como uma operação, nos três casos a fabricação do objeto
técnico tem um pressuposto básico necessário que são as funções
naturais, ou seja, as matérias-primas disponíveis para a sua fabrica-
ção ou para a realização das suas operações. Mesmo que eu tome o
autômato contemporânea que... (não há nada mais distante do
mundo natural do que ele) há um conjunto de pressupostos que são
dados para que ele possa existir. E que são pressupostos naturais.
Então, o primeiro pressuposto são as condições naturais, que po-
dem ser totais, como no objeto técnico antigo, e mínimas, como no
objeto técnico contemporâneo. As condições históricas , isto é, as
condições sociais, econômicas, culturais, religiosas, científicas,
políticas, que permitem a sua fabricação ou a sua utilização, ou até
que provocam a sua fabricação ou a sua utilização.
O que significa dizer que é preciso considerar que as con-
dições históricas? Entendidas como condições econômicas, sociais,
políticas, culturais. Por exemplo: nós sabemos que os chineses
dispunham, desde toda antiguidade, das condições materiais e
naturais que permitirão a eles a invenção da pólvora e da bússola.
A pólvora é empregada para a diversão, para os fogos de artifício.
E a bússola era vista como uma curiosidade. Foi necessária passar
as condições históricas do início do capitalismo, portanto, uma
mudança nas condições econômicas, sociais e políticas, para que
estes dois objetos técnicos, antiquíssimos, se tornassem aquilo que
eles se tornaram: a pólvora, um elemento de guerra e a bússola, um
elemento de navegação, ou seja, se tornaram instrumentos técnicos
propriamente ditos.
Um outro exemplo. A bíblia narra que Deus não aceitou a
oferenda de Caim, mas aceitou a oferenda de Abel, e foi por isto
que Caim matou Abel. Ora, o que é que cada um ofertou a Deus?
Caim ofertou a Deus os produtos agrícolas, ele era um agricultor. E
Abel ofereceu a Deus os produtos do pastoreio, ele era um pastor.
A narrativa indica, em termos sociológicos e antropológicos, que
nós estamos perante uma sociedade que desvaloriza a agricultura e
valoriza o pastoreio; e isto que significa "Deus não aceitou a ofe-
renda de Caim, aceitou a de Abel e Caim matou Abel". É a luta
entre duas formas da produção econômica, entre a agricultura e o
pastoreio, que vai se repetir na história seguinte, a de Esaú e Jacó,
com um prato de lentilhas, é a mesma história que vai se repetir.
Este era um elemento paradigmático da estrutura sócio-econômico-
política do mundo e hebraico. E nós poderíamos pegar Homero ver
como era isto no caso da Grécia, pegar Virgílio e ver como era isto
no caso de Roma, ou seja,não é possível pensar o significado e a
importância de um sistema técnico ou de um objeto técnico no
interior de uma mesma sociedade sem levar em conta as condições
históricas e desta própria sociedade. Então, eu preciso das condi-
ções materiais, mas eu preciso também das condições históricas;
senão, o objeto técnico fica incompreensível. Então, você lê a
história de Abel e Caim ou lê a história de Esaú e Jacó e fica per-
guntando... por que Jeová não aceitou... Caim plantou com tanto
cuidado, colheu e elevou lá... diabos! Que deus mais tonto, mais
injusto! É que não é isto que está sendo narrado. O que está sendo
narrado é qual é o modo socioeconômico válido perante os hebreus
naquele período. É o pastoreio.
O outro exemplo nós já examinamos aqui, nós sabemos
que a luneta foi inventada pelos flamengos no século XVI e ela nos
circos, nos parques de diversão, como um objeto de curiosidade.
Ora, depois, com as navegações, ela se tornou um objeto náutico,
porque ela servia para aproximar as distâncias; mas, só quando
Galileu vira a luneta para o céu que ela se torna um objeto técnico
do mundo astronômico e da nova ciência.
101
Então, a história dos objetos técnicos está ligada, sem dú-
vida nenhuma, a uma história das invenções; mas, a invenção
destes objetos só pode ser compreendida se nós levarmos em conta
as condições históricas desta invenção. Mas isto não é suficiente
para que uma invenção técnica seja transformada em um objeto
técnico, isto é, naquilo que é ou utensílio, ou ferramenta, ou ins-
trumento, ou máquina, ou produto; é preciso que haja novas histó-
ricas, sociais, econômicas, que transformem uma invenção efeti-
vamente num produto técnico.
Então, o que nós podemos dizer é que o objeto técnico só
ganha sentido quando a sua finalidade e o seu uso são definidos por
um sujeito técnico que é determinado pelas condições econômicas,
sociais e políticas nas quais ele vive.
O quarto ponto que eu queria apresentar, ainda em redor
da qualificação do que seja um objeto técnico, é um conjunto de
critérios que servem para definir o que é um objeto técnico. E, em
particular, agora, pensando o objeto técnico da segunda revolução
industrial (portanto, o maquinismo) e a contemporânea (o automa-
tismo). Embora, várias das características que eu vou apresentar
aqui sejam válidas para todos os objetos técnicos.
Há três critérios para que se diga que o objeto escolheu um
objeto técnico: a sistematicidade, a normatividade e a historicidade.
Sistematicidade. Nenhum objeto técnico existe isolada-
mente, ele faz parte de um sistema, de uma rede de técnicas e de
uma cadeia de operações que o produzem e que determinam o seu
modo de funcionamento ou seu emprego. Isto vale para o objeto
técnico em qualquer tempo. Esta sistematicidade pode ser menor
ou maior, mas simples (abstrata) ou mais complexa (concreta), mas
ela existe, sempre. Isto significa que a racionalidade do objeto
técnico, ou da inteligibilidade do objeto técnico, não é dada apenas
pela sua finalidade, produzir um determinado fim, mas também a
racionalidade, a inteligibilidade dele, provém das relações que ele
mantém com saber prático e o saber teórico contemporâneo a ele.
O caso mais interessante, que eu acabei de mencionar, foi o caso da
luneta, transformada em telescópio; mas, isto vale para todos os
objetos técnicos.
Assim, nós podemos dizer queum objeto técnico é um sis-
tema de relações técnicas necessárias para sua produção, para sua
existência e para o seu emprego. nós podemos dizer que o objeto
técnico é um sistema sob três aspectos: primeiro, pelo conjunto das
condições teóricas e práticas da sua produção; segundo, pela ma-
neira em comum nele cada elemento opera na relação com outros,
de tal modo que há uma dependência interna entre os componentes
do objeto, que pode ser uma coerência frágil ou uma coerência
forte, como nós vimos no quadro do Simondon, mas tem que haver
esta coerência. E, em terceiro lugar, pelo conjunto das demais
técnicas que condicionam o seu uso [92:33]. Em uma coisa banal,
não há eletrodomésticos sem eletricidade.
[pergunta de aluno]
... entra tudo isto, mais adiante eu vou colocar isto, porque
entra a estrutura cognitiva como entra o lugar que ele ocupa no
interior das relações sociais. As duas coisas vão funcionar, ele é
sujeito neste sentido, como operador.
A ideia de que há um conjunto de condições, que são pres-
supostas para o objeto técnico tem que mostra que ele é um siste-
ma, você pode ter... por exemplo, se você tomar o caso do automó-
vel. O automóvel pressupõe, primeiro: um saber teórico, pressupõe
física e química, no mínimo; ele pressupõe um saber prático, ou
seja, uma rede de ações técnicas que são realizadas nas fábricas
onde ele é produzido; ele pressupõe em conjunto de outras condi-
ções técnicas como a extração da matéria-prima, as condições
técnicas das operações dos trabalhadores, as condições técnicas de
estocagem, as condições técnicas de distribuição, etc., e ele pressu-
põe um conjunto de condições técnicas para o seu uso, ou seja, o
aprendizado da manipulação do produto (é preciso aprender a
dirigir), a existência de uma malha rodoviária (onde ele possa
circular), a existência de uma rede de combustível (onde ele possa
se alimentar), a existência de postos de assistência técnica, as
regras do trânsito, mapas, locais de estacionamento doméstico e
público (ele afeta, portanto, a arquitetura e a urbanização) e assim
por diante. É um sistema! O automóvel não era um objeto técnico
que possa ser tomado isoladamente, ele só e compreensível se eu
levar em contaos pressupostos teóricos, os pressupostos práticos, as
condições efetivas para sua fabricação e as condições efetivas para
o seu uso e o que ele implica, portanto, para uma sociedade se ele
estiver em operação, tanto do ponto de vista da sua fabricação,
quanto do ponto de vista da sua circulação ou do seu consumo. Ou
seja, no caso de São Paulo (isto é tão óbvio), nós temos as monta-
doras — isto definiu por um período longo o que era a indústria de
São Paulo, o que era os metalúrgicos em São Paulo, o que elas
montadoras em São Paulo — e, ao mesmo tempo, hoje, o que
significa que esta afluência do nível do consumo por parte da clas-
se trabalhadora ampliada e por parte da classe média e que trans-
formaram São Paulo neste inferno que São Paulo se transformou.
Tudo isso se chama:automóvel. E este objeto, portanto, só faz
sentido se eu o ligar ao sistema todo do qual ele depende; senão, eu
nunca vou compreendê-lo. E isto vale para qualquer objeto técnico.
Qualquer um. A compreensão de um objeto técnico pede, portanto,
uma ida à sistematicidade interna, as articulações das suas partes
eos seus pressupostos (de fabricação e de uso). Então, nós podemos
dizer que um objeto técnico é um sistema porque ele se comunica
com todos os outros sistemas técnicos de uma sociedade a partir de
alguns sistemas técnicos dominantes; por exemplo: houve um
momento em que o sistema técnico dominante era o sistema hi-
dráulico, tudo o que se faz com a força da água; há um momento
em que é o sistema elétrico, o sistema petroquímico, o sistema
eletrônico, o sistema nuclear e, e assim por diante; ou seja, isto não
significa que os vários os sistemas não coexistam, não possam
coexistir numa mesma sociedade, mas já significa que um deles
numa sociedade é o dominante; e é ele que determina as formas de
relação do objeto técnico com os outros sistemas.
A segunda característica, o segundo critério de definição
do objeto técnico, é a normatividade. Um objeto técnico é um
savoirfaire (um saber fazer) que pressupõe um saber prescritivo e
normativo.
Vocês se lembram quando nós vimos os gregos que eu
examinei o verbo grego poien, de onde vem poíesis [ ação de fabri-
car, fabricação. Confecção de um objeto artesanal. Composição de
102
uma obra poética. O verbo poiéo significa: fabricar, executar,
confeccionar — obras intelectuais como um poema — , construir,
produzir — no trabalho agrícola de — , provocar — riso, doença,
vergonha, pobreza, lágrimas, riqueza — , fazer — sacrifícios aos
deuses, a guerra, o bem ou o mal a alguém — ; agir com eficácia
produzindo um resultado — um remédio, uma arma, um artefato —
. Aristóteles explicita o sentido principal da poíesis como uma
prática na qual o agente e o resultado da ação estão separados ou
são de natureza diferente. A poíesis Liga-se a ideia de trabalho
como fabricação, construção, composição e a ideia de tékhne — do
livro Introdução à História da Filosofia, de Marilena Chauí]. E que
poien significa medir, pesar, contar, juntar, separar, comparar,
distinguir, ou seja, desde o seu início, as operações da técnica
sempre foram (e são) e normas com regras de ação. Comparar,
medir, pesar, ajuntar, separar... ou seja, o objeto técnico não é um
achado, ele é um resultado que de um trabalho regrado ou de um
trabalho metódico. Não é por acaso que nas sociedades tribais
antigas, a tarefa técnica estava a cargo do feiticeiro (do pajé, do
xamã), porque é alguém que tinha que dispor de condições físicas,
psicológicas e de tempo para a este trabalho regrado e metódico na
produção de um objeto técnico.
Então, o que é a normatividade? A normatividade é o esta-
belecimento de modelos padrões, paradigmas, para a produção de
uma objeto chamado "objeto bem-feito". Aquilo que no início da
aula, quando eu falei da costura, quais eram os critérios para dizer
que aquilo era alta-costura, era a verdadeira e acabou costura.
Todos aqueles pequeninos critérios que eu mencionei aqui estão
ligados a esta ideia de que você tem que ter modelos-paradigmas
padrões que definem o que é o objeto bem-feito ou o objeto acaba-
do. Ou seja, a normatividade determina, para cada tipo de objeto,
levando em conta a sua finalidade, quais devem ser as suas medi-
das, as suas dimensões, de que materiais ele deve ser feito, qual é o
tempo para sua fabricação, o qual é a regulagem específica que ele
tem que ter, qual foi ser a sua durabilidade, e assim por dian-
te....Séris vai dizer que o objeto técnico é o produto de uma seleção
de possibilidades que são... uma seleção que é definida pela esco-
lha de um conjunto de normas e de regras que especificam o modo
da fabricação de um modo do uso do objeto. Por exemplo, uma
coisa “simplésima”(sic), os objetos eletrodomésticos que especifi-
cam se eles podem ser usados a 120 ou a 220 volts; os aviões espe-
cificam o tipo de um combustível que eles têm que usar e as condi-
ções em que eles podem alçar voo e aterrissar (claro, se for da Gol
e da TAM, não prestam a atenção nisto, mas, em todo caso, é exi-
gido — é normatividade saber as condições para decolar de aterris-
sar— por isto que.... vocês viram o que aconteceu ontem, um avi-
ãozinho lá que aterrissou... literalmente aterrissou!). Esta normati-
vidade aparece para o usuário (não para o fabricador, não para o
trabalhador que faz o objeto), mas ela é visível quando o usuário
recebe o manual de instrução do objeto que ele comprou: ele adqui-
re um objeto, e este objeto é um objeto técnico que obedece a
normas, padrões, paradigmas e eu só posso usá-lo se eu soubesse
operar no interior do padrão, do paradigma, da norma, que foi
estabelecida; por isto é que você tem o manual do usuário. Eu
costumo ler, não entender nada de errar tudo. É uma desgraça! Eu
sou uma desgraça com o manual do usuário. Então, o que a norma
ou a regra visa? Ela visa às seguintes coisas: primeiro, determinar
as necessidades intrínsecas para a produção do objeto; segundo, a
rapidez e a eficiência da produção; terceiro, o aumento da quanti-
dade de objetos produzidos; quarto, a qualidade do chamado "bom
objeto" (essas qualidades são: rendimento, solidez, durabilidade,
rentabilidade). Hoje em dia, a nova forma assumida pela acumula-
ção do capital, não há mais a noção de qualidade nem de durabili-
dade; essas normas se tornarão irrelevantes. A norma dos objetos
contemporâneos é a norma do descartável. Então, não tem que ter
qualidade, não tem que ter durabilidade, não tem que ter estoque,
estocagem... não tem nada disso; ele deve durar o tempo que dura
uma rosa....
A outra finalidade da norma é instituir um objeto padrão,
porque é pela figura do objeto padrão que vai se determinar qual é
o desempenho que este objeto tem no mercado e se ele pode como
competir com outros. E, finalmente, a função da normatividade é
instituir valores, no sentido simbólico; ou seja, o significado sim-
bólico que o objeto vai ter.
Finalmente, o terceiro critério para definir o objeto técnico
é a historicidade. Existem duas grandes explicações principais para
a mudança do objeto técnico. A primeira é a chamada de explica-
ção imanente. O que se diz: o objeto técnico, pelas suas caracterís-
ticas, pelo seu uso, vai suscitando inovações que o aperfeiçoam,
que determinam mudanças no seu modo de fabricação, e no modo
de fabricação com os demais objetos com que ele se relaciona. De
tal maneira que isto produz uma mudança em cadeia no conjunto
dos objetos técnicos. E, além disso, os defeitos e os problemas de
um objeto técnico suscitam também modificações que resultam em
objetos técnicos novos. A ideia, portanto, da explicação imanente é
que, no interior da própria técnica, se instala uma temporalidade
que é definido por ela mesma, ou seja, os objetos técnicos carre-
gam, deles mesmos e por eles mesmos, uma temporalidade que se
explica, seja pelas inovações que eles trazem, que acarretam a
mudança dos outros, seja pela correção dos seus defeitos, e assim
por diante.... A segunda explicação é a explicação histórica propri-
amente dita. Em primeiro lugar, há uma explicação que é histórico-
econômica que foi a que procurei enfatizar neste curso. Ou seja, as
mudanças na estrutura social e econômica é que produzem as
mudanças dos objetos técnicos. Ainda no campo histórico, aquilo
que se chama de uma explicação histórico-cultural, ou seja, as
mudanças no objeto técnico decorrem pelointervalo que se estabe-
lece entre o conhecimento científico e a sua aplicação, ou seja,
quando novos conhecimentos científicos propiciam uma mudança,
há um surgimento de um novo objeto técnico.
Frequentemente, se considera que as duas explicações, a
imanente e a histórica, são excludentes. Na verdade, elas não são.
Eu tentei, deste curso, mostrar que elas são... elas estão articuladas,
eu não posso entender as mudanças na técnica sem o subsolo dos
pressupostos econômicos, sociais e políticos, mas eles não me
explicam, no objeto técnico como tal, a mudança que este objeto
sofre. Para isto, eu preciso da explicação imanente a própria técni-
ca. Então, as duas explicações são fundamentais para nós defini-
mos, para nós termos um verdadeiro critério temporal a respeito do
objeto técnico. Então, sistematicidade, normatividade, temporali-
103
dade (ou historicidade), são os critérios pelos quais eu compreendo
o que é o objeto técnico e posso diferenciar, portanto, os objetos
técnicos das diferentes épocas e das diferentes sociedades.
Como eu examinei sempre as condições históricas, sociais,
da técnica nos vários períodos que nós examinamos aqui, é preciso
agora examinar quais são as condições históricas (portanto, sociais
e econômicas) no tocante à forma contemporânea da técnica. Isto é,
depois das revoluções micro e nano, na ciência e da tecnologia, o
que acontece com a forma contemporânea da técnica....uma coisa
que nós podemos dizer desde já. Na sociedade contemporânea, os
objetos técnicos se tornaram a mediação necessária e universal de
todas as condutas individuais, de todas as relações sociais e de toda
vida cultural. Sobre este aspecto, a sociedade contemporânea se
distingue dos períodos anteriores que nós analisamos. Isso me leva
então... eu vou fazer este último tópico. É rapidinho, este último
tópico.
Já que se trata de indagar das condições atuais, a primeira
coisa ao observar é a nova forma da inserção social da ciência.
Com a revolução informática, ou com o automatismo em sentido
pleno, nós estamos presenciando os efeitos (não as causas) de uma
nova forma de inserção do saber e da tecnologia no modo de pro-
dução capitalista. Nas revoluções técnicas, e tecnológicas, anterio-
res, a pesquisa científica, teórica, era autônoma; e ela se transfor-
mava em ciência aplicada quando ela era empregada na produção
econômica por meio de tecnologias vinculadas à produção econô-
mica; ou quando resultados teóricos eram retomados com fins
econômicos em laboratórios mantidos pelas grandes empresas de
produção.
Hoje, a ciência, na sua face teórica quanto na sua face
aplicada, que se tornou uma força produtiva. Ou seja, ela deixou de
ser um suporte para o capital, por meio das tecnologias, e se con-
verteu num agente da acumulação do capital (e da reprodução,
portanto). Entre outras consequências, isto mudou o modo de
inserção social dos cientistas, porque eles se tornaram agentes
econômicos diretos; aquilo que se chama o complexo industrial,
militar, é na verdade um complexo científico, industrial, militar. E
por quê? Porque hoje a força e o poder capitalista se encontram no
monopólio informação. Então, não é pouco nós termos visto que o
objeto técnico contemporâneo (o autômato) é um objeto de infor-
mação; ele é produzido por informação, ele opera por informação,
ele distribui informação, ele comunica informação, e assim por
diante.... Ele é o objeto técnico contemporâneo (o autômato), ele é
a expressão do lugar onde se situa hoje a força e o poder do capita-
lismo, que é sobre o conhecimento científico e sobre monopólio da
informação.
Há pessoas que têm uma visão muito tranquilo a este res-
peito e, sob certos aspectos, muito otimista.
Eu vou citar texto, está na bibliografia de vocês, o livro do
Manuel Castells, A Sociedade em Rede; na página 69 ele escreve o
seguinte: "Que caracteriza a atual revolução tecnológica não é a
centralidade de conhecimentos e informação, mas a sua aplicação
para geração de novos conhecimentos e de dispositivos de proces-
samento e comunicação da informação e um ciclo de realimentação
cumulativo entre a inovação que o uso. As novas tecnologias da
informação não são simplesmente ferramentas a serem aplicadas,
mas são processos a serem desenvolvidos".
Ora, quem é que desenvolve estes processos? Quem de-
senvolve esses processos é paciência incorporada ao complexo
empresarial, incorporada, portanto, ao capital. Castells não diz isto
(...?...), eu é que estou dizendo isto.
O segundo texto que eu vou citar, também é a página 79,
ele diz: "Há, por conseguinte, uma relação muito próxima entre os
processos sociais de criação de manipulação de símbolos (a cultura
da sociedade) e a capacidade de produzir bens e de distribuir bens e
serviços (as forças produtivas)". Ou seja, o que ele está dizendo é o
seguinte: tradicionalmente, mas éramos capazes de distinguir for-
ças produtivas (toda a operação da economia) e forças simbólicas,
seja o conjunto de formulações para o ocultamento do que se passa
com as forças produtivas (portanto, a produção de e ideologia), seja
a criação cultural como a criação de símbolos. O que castells diz, e
neste ponto ele tem absoluta razão: dado o modo novo de inserção
da ciência e da tecnologia na produção, se tornaram forças produti-
vas, ele tem toda razão em dizer que se estabelece uma relação
muito próxima entre os processos sociais de criação e manipulação
de símbolos (isto é, a cultura da sociedade) e a capacidade de pro-
duzir e distribuir bens e serviços, isto é, as forças produtivas. Pela
primeira vez na história, a mente humana é uma força direta de
produção e não apenas um elemento decisivo no sistema produtivo;
pelo que nós vimos. O que objeto tecnológico é ser uma inteligên-
cia, um intelecto, uma ampliação da mente e, portanto, ele é a
mente ampliada em operação, como inteligência artificial. Então,
eu repito: pela primeira vez na história, a mente humana é uma
força direta de produção; não apenas um elemento decisivo no
sistema produtivo. Então, antigamente, a ciência dava uma série de
contribuições para o sistema produtivo; agora, ela não faz isto:
agora, ela "é" o sistema produtivo; a mente humana (isto é, o saber)
é o sistema produtivo. Assim, computadores, sistemas de comuni-
cação, decodificação e programação genética, são todos amplifica-
dores e extensões da mente humana. " O que pensamos e como
pensamos é expresso em: bens, serviços, produção material, a
produção ou intelectual, sejam, alimentos, moradia, sistemas de
transporte, comunicação, mísseis, saúde, educação ou imagens.
Com certeza, os contextos culturais e institucionais que a ação
social intencional interagem de forma decisiva com o novo sistema
tecnológico, mais este tem a sua lógica própria, caracterizada pela
capacidade de transformar todas as informações em um sistema
comum de informações, em uma rede de recuperação e redistribui-
ção potencialmente (...?...)". Esta, eu considero uma das descrições
mais perfeitas da nova situação da tecnologia.
Nós havíamos visto que um traço essencial da nova forma
do capital é esta transformação da ciência em força produtiva. Essa
transformação da ciência em força produtiva deu origem a uma
expressão (e agora esta expressão como uma instituição) que é a
expressão
"Sociedade do conhecimento". Ou seja, com esta expressão
o que se pretende indicar é que a economia contemporânea se
funda sobre a ciência e a informação com o uso competitivo do
104
conhecimento do mercado. Ela se funda, também, na inovação
tecnológica e da informação, nos processos produtivos e financei-
ros. Portanto, tanto no setor de serviços como da educação, saúde e
lazer. Há uma homogeneização da idade que se torna, por isto,...
recebe o nome de "sociedade do conhecimento". É a sociedade da
informação. Não sentido de que nós estamos bem-informados
(muito pelo contrário, acho que nós nunca estivemos tão mal in-
formados... na nossa existência), mas no sentido que a ideologia da
informação era o operador fundamental da economia e da socieda-
de.
Vou citar o Castells, mais uma vez. "A produtividade e a
competitividade na produção informacional baseiam-se na geração
de conhecimentos e no processamento de dados. A geração de
conhecimento e a capacidade tecnológica são ferramentas funda-
mentais para a concorrência entre empresas, organizações de todos
os tipos de, por fim, entre países. O desenvolvimento econômico, o
desenvolvimento competitivo, não se baseiam na pesquisa funda-
mental (teórica ou básica), mas na ligação entre a pesquisa elemen-
tar e a pesquisa aplicada e sua difusão entre organizações e indiví-
duos. A pesquisa acadêmica avançada de um bom sistema educaci-
onal são condições necessárias, mas não suficientes, para que os
países, as empresas e os indivíduos ingressem no paradigma infor-
macional". A sequência é interessante: os países, as empresas e os
indivíduos... ingressem no paradigma informacional. "O desenvol-
vimento tecnológico global precisa da conexão entre a ciência, a
tecnologia e o setor empresarial, bem como com as políticas nacio-
nais e internacionais". Fim da citação.
Se nós dissemos que o objeto técnico se define pela siste-
maticidade, normatividade e temporalidade, este texto do Castells é
a síntese desses três elementos para o objeto técnico contemporâ-
neo.
[pergunta de aluno, quanto ao objeto da política, etc.]
... é um objeto da última aula. Na última aula vou discutir o
virtual, a liberdade, a felicidade e a política. Se der tempo, nesta
ordem.
Então, qual é o problema posto neste nível? Porque tem
um ainda não discuti o capitalismo. O que eu propus é: o que acon-
teceu com a ciência na forma contemporânea do modo de produção
capitalista; ela se tornou força produtiva. E ela se tornou força
produtiva porque o núcleo do poder econômico, da força econômi-
ca, do domínio econômico, é o conhecimento; portanto, é a infor-
mação. O objeto técnico é pensado como um sistema informacional
que o poder econômico é pensado como um poder da informação e
sobre a informação, o universo informacional. Este é o chamado
paradigma em que está montada a ciência contemporânea com a
tecnologia que lhe corresponde e a economia que a pressupõe. Ora,
a pergunta neste nível que fica é: quem é que tem a gestão desta
massa incalculável de informação que controla a sociedade? Quem
é que utiliza este informação? Como e para que utiliza a informa-
ção? Estas perguntas decorrem no fato de termos que considerar
um dado técnico. O dado técnico é: a operação que define a infor-
mática (a sociedade em rede...), a operação técnica que define a
informática é possibilidade da informática, é a concentração e a
centralização da informação. Ou seja, tecnicamente, os sistemas
informáticos só operam se eles operarem em rede e, portanto, se
eles operarem com a centralização dos dados e a produção de
novos dados pela combinação do que já foi coletado. E a pergunta,
portanto é: quem tem a gestão desta massa de informação, quem
tem controle dessa massa de informação? Ou seja, quem tem o
controle, quem tem a vigilância, quem tem o poder? Esta é a per-
gunta. E não é por acaso que, filósofos como Foucault, como De-
leuze, como Guattari, se interessaram em analisar a sociedade
contemporânea. E isto vocês já viram desde Vigiar e Punir, Fou-
cault vem vindo com isto... aideia da sociedade e da disciplina, em
Foucault, que vai exercer o controle final, seu máximo de controle,
é o controle sobre a vida; portanto, toda a revolução da microbiolo-
gia. E, no caso do Deleuze, o que ele chama de "A sociedade do
controle". Então, nós temos a vigilância e o controle; e é esta massa
de informação que está aí para exercer a vigilância e o controle.
Então, esta é a questão que eu pretendo trabalhar na última
aula. Na última aula vou examinar este problema da concentração
do poder e a questão do que é o virtual, e que problemas o virtual
coloca para nós.
Na próxima aula eu vou, se der tempo, examinar um pouco
como a ficção científica mexe com isso. No caso da microbiologia,
eu quero falar um pouco de Matrix; no caso da automação, eu
quero falavam pouco do Asimov; no caso da vigilância e do con-
trole, do Orwell e do (...?...); ou seja, se der tempo, eu vou falar um
pouco... porque eu tenho fascinação pela literatura de ficção cientí-
fica, eu sou completamente fascinada por ficção científica. Então,
se der tempo, eu quero falar um pouco sobre isto, porque você tem
toda uma concepção que vem desde Bacon, que é uma concepção
utópica sobre o progresso da ciência da técnica e uma ficção cientí-
fica que oscila entre a oposição utópica e a distopia, que é o aniqui-
lamento da utopia na forma do seu dilaceramento interno. Como
dizia um escritor-apresentador de programas de televisão, o Júlio
Gouveia (ele que colocou Monteiro Lobato na televisão)... a gente
assistia de verdade, toda a tarde, o Sítio do Pica-pau Amarelo, não
este besteirol disneylândico que a rede Globo faz, era de verdade o
Monteiro Lobato... e a cada vez que ele terminava, ele dizia: "Mas
isto é uma outra história que fica para uma outra vez". Então, se der
tempo, falarei da utopia, da distopia, da ficção científica... se não
der tempo, fica para uma outra vez.