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ASCENSÃO E QUEDA DA LUTA PELA TERRA NO GOVERNO LULA (2003-2010)
Camila Ferracini Origuéla Universidade Estadual Paulista – UNESP / Campus Presidente Prudente
ferracinicamila@yahoo.com.br Resumo Este artigo tem como objetivo apresentar uma breve análise sobre o processo de luta pela terra no Brasil ao longo dos dois mandatos do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010). Ressalto que, historicamente, a espacialização da luta pela terra, por meio de ocupações de terras e formação de acampamentos, possibilitou a territorialização e (re) criação do campesinato através da consolidação de assentamentos rurais (FERNANDES, 1996; 2000). Para isto, o debate bibliográfico e a análise de dados sobre ocupações de terras principalmente, acampamentos e assentamentos rurais serão fundamentais. O primeiro mandato de Lula (2003-2006) é marcado pela ascensão da luta pela terra e esperanças para com a reforma agrária, já o segundo (2007-2010) pela queda das ações dos movimentos socioterritoriais, ocupação de terras e formação de novos acampamentos. Palavras-chave: Luta pela terra, reforma agrária. governo Lula.
Introdução
A discussão sobre a política econômica e a política de reforma agrária ao longo dos dois
mandatos do governo Lula causa controvérsias e interpretações distintas. A principal
questão é, o governo Lula foi um governo de ruptura ou apenas deu continuidade às
políticas implantadas por Fernando Henrique Cardoso? Para alguns economistas, por
exemplo, a política econômica do primeiro mandato de Lula em nada se diferencia
daquilo que FHC havia consolidado por meio de políticas neoliberais e
macroeconômicas de geração de superávit primário com o aumento da produção e
exportação de commodities. Para alguns geógrafos, no que diz respeito à reforma
agrária, a proposta do II PNRA foi um grande salto para a política agrária brasileira,
contrariando o que havia sido feito por FHC e suas propostas de criminalização dos
movimentos socioterritoriais. Outros estudiosos interpretam a política de reforma
agrária do governo em questão como uma incipiente política de regularização fundiária,
contra-reforma ou a reforma agrária que o agronegócio queria (OLIVEIRA, 2006).
Todavia, apesar das esperanças, das propostas, do diálogo juntos aos movimentos de
luta pela terra e reforma agrária, o governo Lula pouco avançou, pode-se até mesmo
dizer que a sua política agrária teve os mesmos objetivos do que havia sido implantado
até então: algumas desapropriações em propriedades alvos de ocupações de terras,
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regularização de áreas e crédito fundiário. Esclareço, de antemão, que considerar o
governo Lula e suas políticas apenas como uma continuidade do governo FHC é uma
interpretação reducionista, até porque Lula sempre esteve disposto a ter contato com as
propostas dos movimentos, inibindo, até certo ponto, a criminalização de suas ações.
Mas, também, afirmar que esse governo concretizou ampla desconcentração da
propriedade fundiária é um equívoco.
Partindo das diferentes interpretações acerca do governo Lula, pretendo compreender
quais elementos contribuem para explicar a ascensão da luta pela terra no primeiro
mandato desse governo, seguida de queda no segundo mandato. Entendo que, além das
dificuldades nas ações dos próprios movimentos socioterritoriais que ao ocuparem
terras, formarem acampamentos, realizarem marchas, protestos, reivindicam
espacialmente o acesso a terra e reforma agrária, a atuação política e econômica do
Estado também contribui para com a ampliação ou o refluxo do desempenho dos sem-
terras.
Para compreender a atuação do Estado e sua relação com as práticas dos movimentos
socioterritoriais, o texto está divido em três partes. Inicialmente, discuto a importância
da atuação dos movimentos socioterritoriais que, ao ocuparem o espaço ou se
espacializarem, questionam a concentração fundiária e o processo de expropriação e
subordinação da classe camponesa perante o avanço do capital no campo. Já a segunda
parte é composta pela discussão sobre a ascensão da luta pela terra no primeiro mandato
do governo Lula e os possíveis elementos que explicam esse processo como: a) a
proposta do II PNRA; b) o frequente diálogo do presidente com os movimentos
socioterritoriais; c) o vínculo político e ideológico entre o presidente e a reforma
agrária. Na terceira e última parte do texto apresento a queda da luta pela terra, que pose
ser explicada a partir dos seguintes elementos: a) a correlação de forças impediu a
realização de uma ampla reforma agrária; b) a diminuição do número de assentamentos
rurais criados inibiu a ida de famílias sem-terras aos acampamentos; c) o presidente
preferiu ampliar os índices de distribuição de renda por meio de políticas
compensatórias, ao invés de investir em um processo de distribuição de terras e
desenvolvimento territorial. Concluo o artigo sistematizando as principais ideias
discutidas e os questionamentos acerca dos rumos da luta pela terra no Brasil.
Devo ressaltar que o presente artigo tem como base a pesquisa de iniciação científica
que desenvolvi ao longo da minha graduação, financiada pela Fundação de Amparo à
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Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), Formação da Rede DATALUTA: um
estudo sobre as mudanças das ocupações de terras no contexto da questão agrária
atual e monografia de bacharelado Paradigma e metodologias da questão agrária: uma
análise das ocupações de terras no Brasil com ênfase para o Pontal do Paranapanema-
SP.
Ocupar o espaço e resistir: a luta dos sem-terra
Historicamente, desde o Brasil colônia até a contemporaneidade, indígenas e
camponeses lutam pelo acesso a terra e resistem constantemente para permanecerem na
mesma. A Guerra de Canudos e as Ligas Camponesas no Nordeste, a Guerra do
Contestado no Sul, dentro outros exemplos, ilustram a trajetória dos mais de quinhentos
anos de luta pela terra no país (FERNANDES, 1999). Além destas, nos últimos trinta
anos principalmente, famílias sem-terras tem se organizado em movimentos
socioterritoriais e ocupado grandes extensões de terras improdutivas, os latifúndios. Ao
ocupar o espaço, essas famílias questionam a concentração fundiária, a expansão do
capital no campo e, ainda, territorializam a luta pela terra por meio da criação de
assentamentos rurais.
A ocupação da terra deu vida e é o grande trunfo do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST), um dos principais movimentos socioterritoriais de luta pela
terra e reforma agrária no Brasil. Conforme Stédile e Fernandes (1999, p. 117) “se não
ocupamos, não provamos que a lei está do nosso lado. É por essa razão que só houve
desapropriação quando houve ocupação”. Ao ocupar o espaço há a espacialização da
luta pela terra e do movimento socioterritorial e, consequentemente, a territorialização
do mesmo. Em outras palavras, a espacialização da luta pela terra proporciona a criação
de assentamentos rurais e a recriação do campesinato enquanto classe social
(FERNANDES 1996; 2000).
O MST, bem como a ocupação da terra, surgiram em um contexto socioeconômico
específico, o da modernização agrícola. Esta, na década de 1970 principalmente,
possibilitou significativas transformações na agricultura graças à inserção de
maquinários e a utilização de defensivos agrícolas. Concomitantemente a isso, inúmeras
famílias camponesas foram expropriadas ou subordinadas à lógica do capital. O
desenvolvimento do capital expropria e destrói o campesinato que migra para as cidades
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ou se recria em outra porção do território. Deste modo, a relação capitalista é por
natureza contraditória, cria relações capitalistas e recria relações não capitalistas, como
o trabalho familiar camponês (OLIVEIRA, 1996). Pode-se dizer que o capital
territorializa, desterritorializa e reterritorializa constantemente relações de produção
capitalistas e camponesas. Ainda, conforme Fernandes (2008, p. 5):
A formação do campesinato não acontece somente pela reprodução ampliada das contradições do capitalismo. A outra condição de criação e recriação do trabalho camponês é uma estratégia política do campesinato: a luta pela terra. É por meio da ocupação da terra que historicamente o campesinato tem enfrentado a condição da lógica do capital.
Nas décadas de 1980 e 1990, intensas ocupações de terras foram realizadas pelo MST
especialmente. A partir destas, ou seja, a partir da atuação constante de famílias sem-
terras organizadas em movimentos socioterritoriais, assentamentos rurais foram
consolidados, ampliando o território camponês no país. Além de ser imprescindível na
contemporaneidade para reivindicar o acesso a terra, as ocupações variam em
quantidade dependendo da conjuntura política e econômica do Estado.
No primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1998), por
exemplo, em virtude do elevado índice de ocupações de terras, dos Massacres de
Corumbiara e Eldorado dos Carajás, da Marcha Nacional pela Reforma Agrária, da
diminuição do preço da terra, entre outros elementos, o número de assentamentos rurais
criados aumentou significativamente quando comparados ao governo Fernando Collor
de Melo/Itamar Franco. Já no segundo mandato (1999-2002), além da criminalização
das ações dos movimentos socioterritoriais, FHC impediu a vistoria de áreas passíveis
de desapropriação por dois anos quando ocupadas por famílias sem-terra e, ainda,
executou por meio do Banco Mundial (BIRD) a reforma agrária de mercado,
mercantilizando o acesso a terra. Estes elementos, dentre outros, inibiram a atuação em
ocupações de terras dos movimentos socioterritoriais. Diferente deste, o governo Lula
proporcionou um cenário inédito no que diz respeito à luta pela terra no Brasil, como
veremos nos próximos tópicos.
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O primeiro mandato de Lula (2003-2006) e a ascensão da luta pela terra no Brasil
A eleição presidencial de 2002 distinguiu-se das demais graças à eleição do ex-
sindicalista, fundador e líder do Partido dos Trabalhadores (PT), Luís Inácio Lula da
Silva. Este derrotou com mais de 60% dos votos o então candidato do Partido da Social
Democracia Brasileira (PSDB), José Serra. Em seu Programa de Governo (2002), Lula
propôs para a reforma agrária desapropriações de terras e políticas de desenvolvimento
territorial para assentamentos rurais já consolidados. O objetivo do então candidato era
o de: inclusão social, geração de emprego e renda, além de segurança alimentar às
famílias camponesas.
Historicamente, o PT e Lula possuem laços políticos e ideológicos com o MST, o que
explica a atenção dada por Lula, ainda candidato em 2002, ao tema da reforma agrária
em seu plano de governo. Entre o final da década de 1980 e início de 1990, bem como
ao longo do governo FHC, Lula sempre apoiou as ações do MST na luta pela terra e
pela reforma agrária, criticando veementemente a política econômica e agrária do
governo PSDB, que abriu as portas do país ao neoliberalismo. João Pedro Stédile, um
dos coordenadores nacionais do MST, em entrevista ao geógrafo Bernardo Mançano
Fernandes (1999, p. 37), quando questionado sobre a relação do MST com PT, afirma:
Para nós a relação partidária sempre foi muito clara. É uma relação de autonomia. Por acreditarmos no caráter classista do PT, ajudamos a fundá-lo em vários lugares. Muitas das lideranças que surgiram da luta pela terra passaram a militar no partido, como dirigentes ou como parlamentares. A proposta de reforma agrária do MST também sempre esteve muito próxima à do MST. Algumas vezes, até mais radical. Lembro-me de uma vez em que José Gomes da Silva, membro da Secretaria Agrária Nacional do PT, defendeu enfaticamente que as propriedades rurais deveriam ser limitadas a um tamanho máximo de 500 hectares. Nossa proposta era de que esse limite fosse de mil hectares. Há uma proximidade quase natural entre um movimento com características popular, sindical e política, e a proposta política de um partido da classe trabalhadora. Esta proximidade nunca prejudicou a autonomia das duas organizações. Nunca misturamos as bolas. Eventualmente, em um ou outro lugar em que essa autonomia fosse prejudicada, em que pessoas tenham se desviado da luta ou em que o PT não tenha assumido a luta pela terra, isso trouxe prejuízo para os dois lados. Ou o MST fracassou, ou o PT fracassou.
As palavras de João Pedro Stédile, mais uma vez, informam a proximidade existente
entre Lula e PT e a reforma agrária no Brasil, bem como a atuação dos movimentos
socioterritoriais, principalmente o MST. Quando eleito, e ao assumir a presidência em
2003, Lula encheu de esperanças inúmeras famílias sem-terras que estavam acampadas
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há anos e, também, estimulou outras famílias a migrarem para ocupações e
acampamentos. Segundo os dados do Banco de Dados da Luta pela Terra
(DATALUTA, 2012), o número de ocupações de terras em 2003 praticamente duplicou
quando comparados a anos anteriores (ver gráfico 1). Da mesma forma, o número de
novos acampamentos registrados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) foram
elevadíssimos, um dos maiores na história da luta pela terra no país (ver gráfico 1).
Fonte: Banco de Dados da Luta pela Terra (DATALUTA), 2012; Comissão Pastoral da Terra (CPT),
2012.
Ainda em 2003, como resposta aos constantes questionamentos por parte dos
movimentos socioterritoriais em relação à reforma agrária, Lula convocou Plínio de
Arruda Sampaio e pediu para que este elaborasse um II Plano Nacional de Reforma
Agrária (II PNRA). Sampaio convocou uma equipe formada por diversos profissionais,
principalmente professores universitários que possuíam estudos e pesquisas sobre a
questão agrária brasileira, e, também, manteve contato constante com os movimentos
sociais. Durante a construção da proposta, Sampaio e sua equipe enfrentaram problemas
como: os técnicos do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), bem como o
Ministro Miguel Rosseto, eram contrários à proposta de reforma agrária elaborada por
Sampaio e equipe, para aqueles uma reforma era desnecessária, ou melhor, impossível;
conforme Rosseto, o plano era extremamente ousado para os cofres públicos e para o
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conhecimento técnico dos órgãos responsáveis pela reforma agrária, interpretado como
inaplicável para a realidade agrária brasileira (BRANFORD, 2010).
Em outubro de 2003, Sampaio e sua equipe apresentaram a proposta de assentar um
milhão de famílias sem-terra, com pouca terra, desempregados, entre outros. Além da
regularização fundiária, reconhecimento de áreas indígenas e quilombolas,
desenvolvimento de assentamentos já consolidados e, por fim, cooperar com famílias
que possuíam renda mensal inferior a três salários mínimos e meio etc (SAMPAIO et al,
2003). Apesar de elogiados pela proposta, Sampaio e sua equipe foram dispensados e
Lula apresentou uma versão diluída da proposta, que tinha como objetivo assentar
apenas 400 mil famílias.
Interpreto o plano de Sampaio e sua equipe como uma proposta de ruptura com as
políticas de reforma agrária em vigor até o momento, todavia, devido à correlação de
forças e ao próprio governo Lula, não vingou. Muitos autores, ao final do primeiro
mandato de Lula confirmaram que a reforma agrária proposta, na verdade, foi uma
política de regularização fundiária, ou seja, uma contra-reforma agrária (OLIVEIRA,
2006). Creio, antes mesmo de analisar números, já em 2003, que ao dispensar a
proposta de Sampaio, Lula reafirmou os verdadeiros objetivos de seu governo, e a
reforma agrária não estava entre eles.
Conforme Oliveira (2006), os números disponibilizados pelo Instituto de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA) e MDA sobre a reforma agrária no primeiro mandato de
Lula são contraditórios. O governo contabilizou como reforma agrária os assentamentos
rurais criados em áreas desapropriadas, por não cumprirem com a função social da terra
de acordo com a Constituição Federal de 1988, áreas regularizadas e reconhecidas ou,
até mesmo, reassentamentos, inflando os dados sobre a política de reforma agrária do
governo, que segundo esse mesmo autor deveria contabilizar somente os novos
assentamentos criados.
O governo Lula, para o geógrafo Bernardo Mançano Fernandesi, tem proporcionado a
reconceitualização da reforma agrária no Brasil ao priorizar a regularização fundiária, o
reconhecimento, a compra e venda de terras, assentando também famílias em lotes
vagos. Ainda, segundo Fernandes, o principal entrave para a desapropriação de terras é
o poder judiciário e a não atualização dos índices de produtividade, que datam de 1975.
Além dos elementos citados acima, pode-se destacar que a correlação de forças, antes
mesmo de Lula assumir a presidência, não era favorável a uma ampla e massiva reforma
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agrária. Ainda em 2002, ao longo de sua campanha eleitoral, mais precisamente no
documento Carta aos Brasileiros, o então candidato Lula se comprometeu perante o
Brasil e o mundo a cumprir com todos os encargos deixados pelo governo FHC,
conservando os acordos realizados até então com o mercado interno e externo,
principalmente com o Fundo Monetário Internacional (FMI) (JARDIM, 2009). Nesse
mesmo período chegou a visitar a Bolsa de Valores de São Paulo (BOVESPA)ii. Lula
optou pela governabilidade ao assumir compromissos com as mais diversas classes
sociais e com o capital internacional, demonstrando a ambos que seu governo não
oferecia perigo algum.
Após garantir à burguesia nacional e ao capitalismo internacional que seu governo não
era nada radical e conservaria as políticas iniciadas por FHC, Lula foi eleito, mas ainda
enfrentava outro problema, o Congresso Nacional. Neste o PT possui menos de um
quinto dos assentos e para continuar governando precisava encontrar aliados e foi isso
que Lula fez, atrelando seus interesses ao de diversos outros partidos políticos
(ANDERSON, 2011). Uma das evidencias de que alianças dos mais diversos tipos
foram seladas foi o episódio do escândalo do Mensalão, em 2005/2006, uma espécie de
mensalidade paga em dinheiro por favores políticos ou compra de votos.
Ser eleito e governar custaram caro ao Lula e PT, sem acordos de cunho econômico e
político, a presidência de ambos seria impossível. O sociólogo Francisco de Oliveira,
um dos fundadores do PT, que deixou o partido logo quando Lula foi eleito, em seu
livro Hegemonia às Avessas (2010), utiliza o conceito de hegemonia de Gramsci para
explicar o cenário político brasileiro. Para Gramsci, a hegemonia em uma ordem social
capitalista era a ascendência moral dos proprietários dos meios de produção sobre as
classes trabalhadoras, o que garantia o consentimento dos dominados a sua própria
dominação. Partindo dessas premissas, Oliveira (2010) interpreta o governo Lula da
seguinte maneira, os dominados inverteram a fórmula, pois possuem o consentimento
dos dominadores para a sua liderança na sociedade, uma espécie de hegemonia às
avessas, onde dominados governam a própria exploração.
Para alterar o modelo político e econômico em vigor até então, o governo Lula deveria
mudar a política macroeconômica, todavia, para reestabelecer o Brasil no mercado
internacional manteve a política econômica requerida pelo FMI. Entre continuidades e
mudanças, houve algumas pequenas rupturas no que diz respeito à política social no
governo Lula. O crescimento econômico que tomou o país a partir de 2004, devido aos
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investimentos maciços no agronegócio, proporcionou a criação de programas
assistencialistas como o Bolsa Família. Este está atrelado a uma das propostas do
governo de erradicar a fome no país, através da distribuição mensal de uma quantia em
dinheiro para famílias carentes.
Retornando ao tema da luta pela terra, pode-se afirmar que, apesar de o governo
Lula/PT possuir vínculos políticos e ideológicos com o tema da reforma agrária e com
movimentos socioterritoriais como o MST e, ainda, propor o II PNRA, o contexto
político e econômico da globalização/neoliberalismo e a correlação de forças políticas e
econômicas internas impediram que esse governo avançasse na distribuição de terras no
país. Até porque, o agronegócio foi e ainda é o grande trunfo do governo para geração
de superávit primário. O agronegócio pode ser caracterizado como “um complexo de
sistemas que compreende agricultura, indústria, mercado e finanças” (FERNANDES e
WELCH, 2008), que tem concentrado e centralizado a produção agrícola mundial em
apenas algumas grandes empresas transnacionais. A concentração se deve ao processo
de aglutinação de diferentes empresas e a centralização é quando uma mesma empresa
controla todos os setores da produção (STÉDILE, 2008).
A produção de commodities para exportação tem como base de sustentação a grande
propriedade, deste modo, a reforma agrária possível foi a regularização fundiária, o
reconhecimento e a compra e venda, sobretudo. Penso que a regularização de áreas é de
extrema importância para que camponeses de diferentes regiões do país tenham acesso à
políticas de crédito e desenvolvimento territorial, mas a desapropriação de áreas
improdutivas ou que não cumprem com a legislação ambiental e trabalhista e o
assentamento de famílias acampadas também são fundamentais para o processo de
recriação do campesinato e agricultura baseada no trabalho familiar.
As esperanças para com o governo Lula abarrotaram os acampamentos de sem-terras e
as ações dos mesmos em ocupações de terras, levando à ascensão da luta pela terra em
todo o país. As conjunturas do primeiro mandato de Lula, bem como a continuidade da
política macroeconômica aliada à políticas compensatórias, irão proporcionar outro
cenário para a luta pela terra no segundo mandato, a queda.
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Os reflexos do governo Lula e a luta pela terra no Brasil
A diminuição do número de novos assentamentos rurais criados, aqueles que
contemplam famílias acampadas organizadas em movimentos socioterritoriais, e às
políticas de cunho social compensatórias, além das dificuldades que movimentos como
o MST têm enfrentado nos trabalhos de base, explica, até certo ponto, a queda da luta
pela terra no segundo mandato do governo Lula. Oliveira (2011), afirma que os
movimentos socioterritoriais, especialmente o MST, estão adotando sistematicamente
novas formas de ações, como a luta contra o capital, o que proporcionou a queda da luta
pela terra e a perda do protagonismo político dos sem-terras.
Conforme os números apresentados no gráfico 1, o número de ocupações de terras e
acampamentos diminuíram ano a ano, de 2007 a 2010. Em 2010, por exemplo, foram
registradas apenas 184 ocupações de terras e 35 acampamentos em todo o país, índice
pequeno quando comparado a 2003, primeiro ano do governo Lula. Pode-se interpretar
que com a chegada de Lula à presidência, os números da luta pela terra aumentaram
significativamente e, quando este deixou o cargo em 2010, diminuiu como nunca visto
antes. Em relação aos assentamentos rurais criados, o governo também deixou a desejar,
foram apenas 41 em 2010. Vale ressaltar que dentre estes há desapropriações,
regularizações, reconhecimento etc.
O que explica o descenso da luta pela terra no final do segundo mandato do governo
Lula? Dentre as hipóteses, destaco: a) a política de reforma agrária do primeiro mandato
de Lula, que priorizou a regularização fundiária, o reconhecimento e a compra e venda
em detrimento da desapropriação de terras e assentamento de famílias acampadas; b) o
avanço do agronegócio sobre o latifúndio, impedindo que terras destinadas à produção
de commodities sejam desapropriadas; c) a ascensão de políticas compensatórias
imediatas, como o Bolsa Família, que inibi muitas famílias de lutarem por terras e
habitarem acampamentos; d) os movimentos socioterritoriais, dentre eles destaco o
MST, têm dificuldades de se organizar social e territorialmente diante do avanço do
agronegócio, da criminalização das ocupações de terras por meio de processos judiciais
aos líderes do Movimento e da incipiente política de reforma agrária.
Conforme Santos (2010), ainda no primeiro mandato do governo Lula, 55% dos
assentamentos rurais criados tiveram como política de obtenção a desapropriação da
terra, 21% o reconhecimento, 14% a regularização fundiária, 6% a compra de terras e
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4% a doação. Analisando os números apresentados pode-se afirmar que 45% do total de
assentamentos rurais criados provém de políticas alternativas à desapropriação, que
obteve a porcentagem de 55%. Já em relação à área dos assentamentos rurais,
contraditoriamente temos os seguintes números: 74% da área provém da política
regularização fundiária, 13% desapropriação, 10% reconhecimento, 2% compra e 1%
doação. Estes dados reafirmam que em relação à área, ou seja, ao tamanho em hectares
dos assentamentos rurais “criados” no primeiro mandato de Lula, a regularização
fundiária se sobressai em relação às outras políticas de obtenção.
O governo Lula priorizou políticas de obtenção baseadas na regularização de áreas,
reconhecimento e compra, desapropriando algumas propriedades. Este elemento nos
ajuda a compreender o descenso da luta pela terra já no segundo mandato, quando
famílias acampadas desistem da luta pela terra devido à demora ou a não realização da
reforma agrária. Devo ressaltar que somente a desapropriação de terras contemplam
famílias acampadas nas beiras das estradas, sendo que a diminuição do número de
famílias acampadas não significa o assentamento destas, mas sim a desistência.
A espacialização da luta pela terra proporciona a territorialização da mesma e a criação
de assentamentos rurais. Se não há territorialização, o processo de espacialização é
inibido. Ou seja, se o Estado não cria assentamentos rurais, as famílias que estão
acampadas há anos acabam desistindo e migrando para as cidades. Nos acampamentos
do MST no estado de São Paulo, especificamente na região do extremo oeste, o Pontal
do Paranapanema, o fluxo e o vai e vem de famílias nos acampamentos é constante. Da
mesma forma que novas famílias são incorporadas, outras voltam às cidades ou migram
para acampamentos de outras regiões. O acampamento é um espaço cada vez mais
vulnerável, a vida nestes é esporádica, com famílias que trabalham nas cidades e apenas
dormem nos acampamentos ou que moram nas cidades e retornam somente nos finais
de semana. Na foto 1 é possível observar que, ao longo da semana são pouquíssimas as
famílias que se encontram nos acampamentos.
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Foto 1: Acampamento Dorcelina Furlador, município de Sandovalina-SP
Fonte: Trabalho de campo, 2012.
Deste modo, se não há a criação de assentamentos rurais, algumas famílias desistem da
luta pela terra e se contentam com programas assistencialistas, como o Bolsa Família,
que contempla mais de 13 milhões de famílias com renda per capita inferior a R$ 70, 00
reais mensaisiii. O programa seleciona famílias com base nas informações inseridas
pelos municípios no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal,
instrumento de coleta de dados que tem como objetivo identificar todas as famílias de
baixa renda existentes no Brasiliv. O objetivo principal do programa é, única e
exclusivamente, o alívio imediato da pobreza.
Em paralelo a esses elementos temos o avanço do agronegócio canavieiro em alguns
estados do país, como São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso do Sul,
conceituado por Thomaz Júnior (2010) como o polígono do agronegócio. A intensa
produção de commodities, a valorização e aumento no preço das terras e a expansão da
produção em áreas antes improdutivas tem impedido que estas adentrem ao circuito da
reforma agrária e sejam desapropriadas. Deste modo, contemporaneamente o campo
brasileiro está pautado não só na disputa por terras, mas na disputa política e econômica.
O governo Lula conseguiu atrelar diferentes interesses em seus mandatos, primeiro
porque conteve os movimentos sociais, mesmo não investindo maciçamente na reforma
agrária, e sindicatos, expandiu a produção de commodities e, ainda, perseguiu as
recomendações do FMI. No que diz respeito à reforma agrária e a luta pela terra, com a
diminuição de assentamentos rurais criados e a disponibilidade de programas
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compensatórios, muitas famílias aderiram a estes ao invés de acamparem, até porque a
vida no acampamentos é extremamente precária. Assim, o governo não investiu na
reforma agrária, mas, sim, na assistência social (MARQUES e MENDES, 2006).
A correlação de forças internas e o cenário externo ou global nunca foram favoráveis à
reforma agrária e o governo Lula realizou apenas o que estava ao seu alcance, até
porque uma ampla e massiva reforma agrária causaria crise em seu governo. A não
consolidação de um número expressivo de assentamentos rurais, a opção pelo
agronegócio, as políticas compensatórias e as dificuldades encontradas pelos
movimentos socioterritoriais para arregimentar famílias na luta pela terra, justamente
devido aos itens citados anteriormente, levaram à queda da luta pela terra.
Considerações Finais
Concluo afirmando, e questionando em alguns momentos, que polarizar as discussões
sobre o campo brasileiro em: camponeses versus agronegócio ou reforma agrária versus
regularização fundiária, reduz a compreensão da complexidade do que é a questão
agrária na contemporaneidade, até mesmo porque muitos desses debates possuem raízes
no capitalismo financeiro internacional e ultrapassam o território e a política nacional.
Para compreender a luta pela terra e a atuação dos movimentos socioterritoriais, a
análise política e econômica em diferentes escalas é imprescindível e a polarização de
ideias só tende a restringir a realidade.
Explica-se a ascensão da luta pela terra no primeiro mandato do governo Lula através
dos seguintes elementos: a) Lula, PT e MST possuem raízes políticas e ideológicas no
que diz respeito à reforma agrária, o que criou esperanças e aumentou o número de
ações dos movimentos socioterritoriais; b) a proposta do II PNRA também contribuiu
para que diversas famílias sem-terras lotassem os acampamentos e participassem de
ocupações de terras; c) e, por fim, o constante diálogo entre Lula e movimentos. Já no
segundo mandato desse mesmo governo, pode-se atribuir a queda da luta pela terra aos
seguintes itens: a) a não realização da reforma agrária no primeiro mandato do governo
Lula inibiu a atuação de famílias sem-terras e movimentos socioterritoriais; b) o avanço
do agronegócio tem impedido o avanço da desapropriação de terras; c) políticas
compensatórias foram priorizadas e muitas famílias optaram por estas ao invés de
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lutarem por terra; d) os movimentos socioterritoriais estavam e ainda estão com
dificuldades de se organizar em um contexto de luta tão diverso.
Notas
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i Disponível em: < http://www.mst.org.br/Incra-prioriza-regularizacao-fundiaria>. Acesso em 21 de junho
de 2012. ii Ibidem, 2009. iii Disponível em: < http://www.mds.gov.br/>. Acesso em 21 de junho de 2012. iv Disponível em: < http://www.mds.gov.br/>. Acesso em 21 de junho de 2012.
Referências
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