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AS RELAÇÕES ENTRE POLÍTICA, COMÉRCIO E MEIO AMBIENTE
NO MERCOSUL: UM ESTUDO DE CASO**
Felipe Oliveira de Sousa*
RESUMO: O presente texto tem como objetivo realizar uma análise crítica dos
argumentos centrais dispostos no caso dos pneus remoldados entre a Argentina e o
Uruguai no âmbito de controvérsias do MERCOSUL. Na primeira parte (itens 1 e 2),
propõe-se uma sistematização dos principais argumentos e a identificação de algumas
inconsistências internas na argumentação do Tribunal Arbitral Ad Hoc e do Tribunal
Permanente de Revisão. Na segunda parte (item 3), coloca-se uma posição crítica sobre
a atual situação política do MERCOSUL, e oferece-se uma proposta de como
solucionar, do ponto de vista jurídico, de modo mais efetivo conflitos entre comércio e
meio ambiente no âmbito regional.
PALAVRAS-CHAVE: MERCOSUL; caso dos pneus remoldados; comércio; meio
ambiente.
ABSTRACT: This paper aims at developing a critical analysis of the central arguments
raised at the Retreated tires case between Argentina and Uruguay on the system of
controversies solution of Mercosur. On the first part (items 1 and 2), it is proposed a
systematization of the main arguments and an identification of some internal
inconsistencies on the reasoning of the Ad Hoc Tribunal and of the Permanent Tribunal
of Review. At the second part (item 3), it is developed a critical position about the
actual political situation of Mercosur, and it is offered a proposal of how to solve, from
the legal point of view, in a more effective way conflicts between commerce and
environment under the regional context.
KEYWORDS: Mercosur; Retreated tires case; commerce; environment.
* Doutorando em Direito pela UFRGS. Mestre em Filosofia do Direito pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bacharel em Direito pela
Universidade Federal do Ceará (UFC). Advogado.
** Este trabalho é uma versão alterada e revisada de uma apresentação por mim feita
como seminário na disciplina “Desenvolvimento Sustentável e Integração” na Pós-
Graduação em Direito da UFRGS. Gostaria de agradecer às críticas de todos os colegas
que, além de auxiliarem no aprofundamento do trabalho, evitaram que alguns equívocos
fossem cometidos. Em especial, gostaria de agradecer a Brenda Luciana Maffei pela
revisão atenta e rigorosa de uma versão anterior do presente artigo.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem um objetivo bastante específico: analisar criticamente
alguns dos argumentos centrais utilizados para justificar certas posições definitivas1
formuladas no caso dos pneus remoldados, tomando como referência as discussões
empreendidas no marco de controvérsias do MERCOSUL. É que, como se verá, o
referido caso é um caso concreto que torna evidentes todas as dificuldades teóricas de
estabelecer critérios seguros para controlar a racionalidade de decisões judiciais
diretamente relacionadas com a concretização das chamadas normas consagradoras de
direitos fundamentais 2 . Nesse ponto em específico, ver-se-á essa dificuldade no
processo de decidir sobre como configurar racionalmente uma ponderação entre a
liberdade de comércio e a preservação do meio ambiente. Tal ponderação, sendo a
dimensão mais substantiva do caso, não se reduz (nem é possível que se reduza) a juízos
puramente jurídicos, e também oferece a oportunidade da realização de um conjunto
bastante complexo de ponderações derivadas, i.e., de ponderações entre valores que se
encontram transversalmente relacionadas com a ponderação central entre a liberdade de
comércio e a preservação do meio ambiente. Disso decorre que se podem dispor, no
processo de justificação de tais decisões, vários tipos de argumentos, que variam desde
argumentos empíricos, sustentados em premissas fáticas (como afirmações estatísticas,
econômicas, técnicas etc), até argumentos normativos, os quais, por sua vez, variam de
argumentos estritamente jurídicos (como referência a disposições normativas legisladas 1 O termo “posições definitivas” aqui é usado em um sentido técnico, não-vulgar. Utilizo o termo “definitivo” para expressar normas concretas (individuais) acerca do que se deve ou não fazer em circunstâncias específicas. O termo “definitivo”, aqui, está em contraposição ao termo “prima facie”, que é um termo que designa deveres que podem ou não ser cumpridos completamente em situações concretas (que são cumpridos, comumente, em graus). Veja sobre o assunto, por todos: ALEXY, Robert (1985): pp. 71 e seguintes. 2 Aqui não entro na questão de em que medida os direitos fundamentais recepcionados no sistema jurídico de uma certa comunidade são também os mesmos direitos fundamentais recepcionados nos sistemas jurídicos de outras comunidades. A minha ênfase neste trabalho é na dimensão estrutural desses direitos, e, assim, na dificuldade que eles apresentam em serem aplicados em situações concretas, seja em virtude de sua generalidade, seja em virtude de seu caráter normativo de otimização. Confira, p.ex.: ALEXY, Robert (1985): pp. 72-75 .
em âmbito nacional e/ou regional), até argumentos formulados a partir de premissas
morais, que procuram fornecer alguma fundamentação ética para o dever de preservação
do meio ambiente ou que procuram sustentar a liberdade geral de comércio com base na
liberdade do ser humano enquanto ser autônomo (ou auto-determinável). Como se isso
não bastasse, tais argumentos guardam diversas relações entre si, na medida em que um
argumento empírico pode servir de premissa justificante para um argumento
estritamente jurídico, ou um argumento estritamente jurídico, p.ex., pode encontrar-se
intimamente relacionado com alguma valoração moral (como ocorre, em geral, no caso
da concretização dos direitos fundamentais).
A ênfase em cada um desses tipos de argumentos varia de acordo com a
necessidade de justificar uma decisão que seja mais ou menos ampla do ponto de vista
jurídico, i.e., de justificar uma decisão que se situa em um campo de tensão entre aquilo
que é juridicamente possível e aquilo que seria uma autêntica decisão política acerca do
modo como certos assuntos devem ser tratados em determinada comunidade de pessoas
ou de países. É por isso que casos como o dos pneus remoldados acabam reconduzindo
às questões teóricas (mais difíceis) que têm uma natureza muito controversa. São
questões desse tipo a de (a) em que medida um organismo inter-governamental3 pode
invadir a esfera decisória soberana de um país, ou (b) a de se deve o país sempre
submeter-se a uma decisão inter-governamental apenas em virtude de ela ser uma
3 Em uma versão anterior deste texto, fiz uso do termo “supra-nacionalidade”, e não “inter-governamentalidade” para formular essas questões. A substituição do termo se deve a uma atenção especial à distinção entre supra-nacionalidade (p.ex, a União Europeia) e inter-governamentalidade (p.ex., o MERCOSUL). No caso do MERCOSUL, essa relação de inter-governamentalidade se dá porque os seus órgãos centrais são compostos, em geral, por autoridades que provêm e/ou que são indicadas pelos Estados-membros do bloco. Por exemplo, no Tratado de Assunção, estatuiu-se que o Conselho do Mercado Comum é integrado pelos Ministros das Relações Exteriores e pelos Ministros da Economia dos Estados-Partes, e que o Grupo do Mercado Comum é coordenado pelos Ministros das Relações Exteriores. Ademais, ainda no caso do MERCOSUL, as diretivas e os regulamentos regionais têm de ser incorporados à legislação de cada Estado-membro para que tenham vigência em seu Direito interno nacional. No caso da União Europeia, há uma relação de supra-nacionalidade, na medida em que, p.ex., os membros do Parlamento Europeu (um de seus órgãos centrais) são eleitos pelos cidadãos, e, ademais (e essa é a diferença central), as diretivas e os regulamentos da União Europeia ingressam diretamente na legislação interna dos países-membros. Essas distinções se refletem, por exemplo, no caráter vinculante das decisões dos Tribunais de ambos os blocos. A vinculatividade, ainda que existente, dos laudos dos Tribunais do MERCOSUL é bem mais débil do que a vinculatividade das decisões dos órgãos da União Europeia, pois no MERCOSUL os Estados-membros não se comprometeram, em seu ato fundacional, a abrir mão de sua soberania interna para aceitar toda e qualquer decisão legislativa (e/ou judicial) do âmbito regional como sendo diretamente válida e como estando já incorporada aos seus sistemas jurídicos nacionais, tendo esta sempre de passar pelo crivo procedimental interno de cada país-membro, fato esse que não ocorre na estrutura institucional da União Europeia. Essa é a diferença central no contexto do presente trabalho e que justifica o uso do termo “inter-governamentalidade” mais do que “supra-nacionalidade” para o caso do MERCOSUL. Agradeço a Brenda Maffei por essa observação. Veja, para um aprofundamento no tema: VENTURA, Deisy (2003): pp. 55 e seguintes.
decisão de uma ordem superior, ou de se tem o país a autonomia de decidir, em todo e
qualquer caso, se vai ou não respeitar tal decisão, ou (c), para o caso mais específico
deste trabalho, a de quais são os limites de restrição da liberdade de comércio em função
da preservação ao meio ambiente no contexto regional. Sem um consenso relativo no
que pode contar como resposta para essas questões, dificilmente se pode alcançar
alguma estabilidade em termos políticos, e, assim, em termos de eficácia, no presente
contexto, das decisões tomadas pelos Tribunais do sistema de solução de controvérsias
do MERCOSUL. Ainda assim, não se deve perder de vista que essas são questões que,
já há algum tempo, situam-se na pauta central das discussões promovidas no contexto
institucional do referido bloco econômico.
Não assumo, como pressuposto deste trabalho, alguma resposta possível para
cada uma dessas três questões (nem assumo que é impossível respondê-las), e tomo
como um fator determinante no consenso relativo entre os países-membros do
MERCOSUL a experiência concreta realizada através da discussão de casos de
relevância inter-governamental, como o são, em geral, os casos que envolvem a
preservação do meio ambiente4. Somente a experiência concreta estendida ao longo do
tempo é que será capaz de conferir um amadurecimento institucional que torne possível
tomar o conjunto de países que hoje compõem o MERCOSUL (Brasil, Argentina,
Uruguai e Paraguai) enquanto uma unidade inter-estatal. É por isso que o método
utilizado neste estudo pode ser tido como um método indutivo, na medida em que
procura, a partir da análise de um caso concreto, inferir ao menos alguns caminhos
possíveis de respostas às questões mencionadas (e a outras questões que serão
suscitadas ao longo do texto). Assim, não parto de hipóteses gerais prima facie e,
4 Um outro caso que merece menção neste trabalho é o recente caso das papeleras também estabelecido no sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL entre a Argentina e o Uruguai. Esse caso, juntamente com o caso em comento, já refletem as complexidades que existem em uma decisão que busque conciliar a realização de valores relativos ao crescimento econômico dos países-membros do MERCOSUL com a preservação do meio ambiente na região inter-fronteiriça dos territórios desses Estados. O grande fator de complicação é que um problema ambiental nunca pode ser classificado como um problema circunscrito a um só país ou a uma só região, na medida em que um dano ambiental realizado dentro dos limites territoriais de um certo país (ou de uma certa região) sempre implica, em maior ou menor grau, uma interferência no estado do meio ambiente de todos os outros países, sobretudo daqueles que estão situados em regiões mais próximas. Essa é uma maneira de expressar aquilo que vem expressado sob a ideia de que a preservação do meio ambiente traduz uma necessidade global de toda a humanidade, que deve ser tratado a partir de uma perspectiva sistêmica, na medida em que garantir um sistema natural bem ajustado (i.e., adaptável e saudável) significa garantir o bem-estar de todos os seres humanos (das gerações presentes e futuras), e, inclusive, significa garantir,em última instância, a possibilidade de existência dos seres humanos. Para conferir na íntegra uma análise detalhada acerca do caso das papeleras, consulte: http://www.gvdireito.com.br/casoteca/default.aspx?pagid=FSDHUMPJ&menuid=98.
portanto, não uso a análise do caso dos pneus remoldados como uma forma de
demonstrar (ou de refutar) tais hipóteses (método dedutivo). A razão para isso é
simples: a experiência política regional no âmbito do MERCOSUL, além de realizar-se
em um plano concreto de diálogo entre os Estados que o compõem, é o fator que deve
conformar as perguntas a serem feitas em nível acadêmico sobre o assunto. Somente
desse modo é que a aproximação teórica acerca de temas de relevância prática (como é
o tema do presente trabalho) pode contribuir de modo decisivo para o avanço da
configuração institucional destinada a mediar (ou a arbitrar) as controvérsias
pretensamente jurídicas entre os países-membros do MERCOSUL.
Este texto está dividido em duas partes principais. Na primeira parte,
compreendida entre os itens 1 e 2, ofereço uma tentativa de sistematização dos
argumentos que julgo centrais para o caso dos pneus remoldados, sobretudo na recente
controvérsia estabelecida entre a Argentina e o Uruguai, procurando identificar, tanto
quanto possível, deficiências internas na argumentação usada nas decisões mais
substantivas sobre o caso5. Na segunda, compreendida no item 3, procedo a uma
5 Uma primeira discussão do caso dos pneus remoldados foi estabelecida, no sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL, entre o Brasil e o Uurugai. Em virtude dos limites do presente texto, preferiu-se por tomar como referência a última controvérsia estabelecida entre a Argentina e o Uruguai. Como um estudo complementar, pode ser bastante útil realizar uma análise comparativa dos argumentos dispostos tanto numa lide como na outra, sobretudo para ter em conta um padrão geral de desenvolvimento do caso dos pneus remoldados no MERCOSUL, e, em especial, para notar diferenças bastante relevantes nas decisões dos Tribunais Ad Hoc instituídos para solucionar cada uma das controvérsias. Diante dos limites do presente texto, tal análise não poderá ser levada a cabo aqui. Para uma visão da controvérsia entre o Brasil e o Uuruguai, confira: http://www.mercosur.int/t_generic.jsp?contentid=375&version=1&channel=secretaria&seccion=6. Um outro caso relevante sobre os pneus remoldados foi o que ocorreu entre o Brasil e a União Europeia na OMC (ver: http://www.wto.org/spanish/tratop_s/dispu_s/cases_s/ds332_s.htm). Um outro projeto que deixo registrado - , e que pode ser útil desenvolver posteriormente, - é o de investigar como se dá a recepção dessa discussão institucional no sistema regional do MERCOSUL (e também nas instâncias da OMC) no âmbito interno dos Tribunais brasileiros, projeto esse que também não há como ser realizado no presente texto. Para citar um exemplo, em junho deste ano (2009), o STF brasileiro decidiu, no AgR no. 171, uma controvérsia afirmando que a exportação de pneus usados, inclusive do MERCOSUL, é uma medida constitucional (para a decisão completa,confira:http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=pneus%20usados&base=baseAcordaos). O interessante da realização de um estudo comparado entre esses diversos casos é que, ainda que a linha argumentatitva tomada seja em alguma medida semelhante, as decisões foram relevantemente distintas umas das outras, o que pode gerar problemas no âmbito de que decisão deve prevalecer (ou deve ser cumprida). Considere, por exemplo, que a resolução da OMC determinou, em linhas gerais, que se o Brasil proibisse o ingresso de pneus usados e remoldados da União Europeia, teria de proibi-lo para todos os demais países (em virtude do princípio da não-discriminação). Essa resolução entra em confronto direto com o laudo VI do Tribunal Ad Hoc do MERCOSUL que solucionou a controvérsia entre o Brasil e o Uruguai, o qual, em linhas gerais, determinou que o Brasil deveria derrogar a proibição de importações de pneus por ser ela incompatível com a normativa do MERCOSUL (ver:http://www.mercosur.org.uy/t_generic.jsp?contentid=440&site=1&channel=secretaria&seccion=6 ; e, para um breve comentário do caso, confira: MOROSINI, Fabio (2007): pp. 69-88). Deve-se dar prioridade a uma decisão do MERCOSUL ou da OMC, ou a uma decisão do STF ou do MERCOSUL?
proposta de como seria possível tratar o assunto de um modo mais coerente, traçando
uma crítica de fundo à atual situação política do MERCOSUL. Ressalte-se, desde já,
que, em virtude dos limites deste trabalho, não busco dar um tratamento exaustivo de
todo o caso relativo aos pneus remoldados, mas apenas enfatizar aquilo que, na
argumentação desenvolvida, a meu ver aponta para o que é essencial para solucionar o
caso. Dessa forma, afasto de consideração argumentos de ordem técnico-processual, não
por tê-los como irrelevantes, mas apenas por considerar que tais argumentos não
contribuem decisivamente para o núcleo essencial do caso, que é tentar configurar uma
decisão racionalmente justificada, que busque conciliar a necessidade de preservar o
meio ambiente com a necessidade de não restringir em excesso a liberdade de comércio
dos países envolvidos.
2. UMA TENTATIVA DE SISTEMATIZAÇÃO DOS PRINCIPAIS
ARGUMENTOS
2.1. Visão preliminar: alguns argumentos colocados na controvérsia entre a
Argentina e o Uruguai
A mais recente controvérsia acerca dos pneus remoldados, no âmbito do
MERCOSUL, foi estabelecida entre o Uruguai e a Argentina em sede de Tribunal
Arbitral Ad Hoc constituído em conformidade com o Protocolo de Olivos6. O caso se
deu em virtude da proibição imposta pela legislação argentina de importar pneus usados
e câmaras de pneus recauchutadas, proibição essa válida para todo o território nacional
(lei argentina no. 25.626 de 09/08/2002). O ponto central foi o de avaliar se a restrição à
liberdade de comércio promovida pela referida lei configurava ou não uma restrição
não-justificada face à necessidade de proteção à saúde das pessoas e dos animais e da
preservação do meio ambiente. Tal avaliação pode ser realizada em virtude do princípio
da precaução (contemplado na Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente em 1992),
que permite restrição ao livre comércio quando essa restrição é justificada a partir de um
Essas são questões que se levantam imediatamente a partir de um estudo comparado desses casos. Fica o registro. 6 Veja:http://www.mercosur.int/innovaportal/innovaportal.GetHTTPFile/Protocolo%20Olivos_ES.pdf?contentid=102&version=1&filename=Protocolo%20Olivos_ES.pdf.
perigo de dano grave ou irreversível ao meio ambiente, mesmo que não se tenha certeza
científica sobre a ocorrência futura de um tal dano7.
Diante de tal restrição, o Uruguai argumentou que, antes de promulgada a
referida lei, a importação se restringia a pneus usados, mas era livre a importação de
pneus remoldados, categoria essa que incluiria os pneus recauchutados. Ainda segundo
o Uruguai, a referida restrição legislativa ignorou as diferenças que existem entre os
pneus remoldados e os pneus usados, na medida em que os primeiros não gerariam mais
problemas de segurança no trânsito ou de risco de dano ao meio ambiente do que
gerariam pneus novos. Também não seguiria que o argumento da segurança fosse válido
para justificar a restrição referida, já que os pneus remoldados seriam produtos seguros,
e que inclusive seriam produtos cuja utilização estava autorizada na frota de veículos da
Argentina. O argumento seria reforçado até mesmo pelo fato de que pneus remoldados
seriam usados em aeronaves, contexto no qual os critérios de uso seriam ainda mais
rigorosos. O Uruguai afirma, ainda, que a durabilidade de um pneu remoldado seria
idêntica a de um pneu novo, o que não provocaria um impacto adicional ao meio
ambiente8. Por fim, é relevante notar que o Uruguai ainda argumentou que a restrição
legislativa não estava direcionada a proteger o meio ambiente ou a saúde, mas sim a
proteger a indústria nacional argentina de pneus da competição externa9.
No outro lado da controvérsia, a Argentina, em linhas gerais, procurou
argumentar que a referida lei, além de estar em conformidade com as hipóteses listadas
7 Ressalte-se aqui que o critério da falta de certeza científica, a meu ver, é um critério que necessita ser tratado com uma atenção devida. É que já é uma posição tradicional em Filosofia da Ciência a de que proposições científicas são derrotáveis ou falseáveis, i.e., que proposições científicas operam mediante exclusão daquilo que seria falso, mas jamais poderiam verificar algo no mundo como definitivamente (ou absolutamente) verdadeiro. Em outras palavras, as proposições científicas somente são válidas provisoriamente, até o momento em que outras proposições mais precisas possam ser formuladas. Nesse sentido, nunca haveria uma certeza científica suficiente para asserir com certeza absoluta uma proposição científica que, por possuir um caráter prognóstico, i.e., um caráter de referir-se ao futuro, oferece sempre um inevitável grau de incerteza. O argumento da “falta de certeza científica”, a rigor, a partir dessa posição, não poderia ser um argumento válido, na medida em que nunca a certeza científica ofereceria algo absolutamente provável. A consequência disso é que tal argumento seria supérfluo para aplicar um princípio como o da precaução, i.e., a aplicação do princípio da precaução poderia dar-se sem avaliar o argumento da certeza científica, na medida em que, a rigor, tudo no futuro seria, em alguma medida, incerto. Sobre o assunto das proposições científicas, veja, por todos: POPPER, Karl. The Logic of Scientific Discovery (2002). 8 O Uruguai ainda levanta outros argumentos de ordem jurídica (como violação ao princípio do estoppel, aos princípios da boa-fé nas relações contratuais e do pacta sunt servanda, da livre circulação de bens no âmbito do MERCOSUL etc.). Como quer que seja, considero essa argumentação relevante, mas apenas de modo incidental, para dar uma maior força justificativa aos argumentos destacados no presente texto. É por essa razão que não os levo em consideração aqui. 9 Para conferir na íntegra um relato sobre a argumentação uruguaia, veja: http://www.mercosur.int/t_generic.jsp?contentid=375&version=1&channel=secretaria&seccion=6.
no artigo 50 do Tratado de Montevidéu10, configurava apenas uma restrição não-
econômica, e que era benéfica, inclusive, para o bem-estar de todos os povos da região,
na medida em que contribuía para a preservação do meio ambiente e da saúde das
pessoas, da fauna e da flora de todos os países-membros do MERCOSUL. A Argentina
classificou a restrição legislativa em tela como uma medida de caráter preventivo11 para
evitar um dano potencial que os pneus remoldados, sobretudo relativo a resíduos
perigosos de difícil e onerosa recuperação final, poderiam provocar ao meio ambiente e
à saúde das pessoas (das gerações presentes e futuras). A argumentação argentina,
ainda, afirmou que (i) o comércio de pneus remoldados realizado entre o Uruguai e a
Argentina foi marginal e insignificante e (ii) não se aplicaria ao caso o princípio da
proporcionalidade, pois quando se está em jogo a vida e a saúde dos habitantes de um
país, bem como os recursos naturais existentes, seria impossível adotar uma medida
proporcional12. Na sequência, afirma a Argentina que o objetivo da referida restrição
legislativa era o de manter o “passivo ambiental” (da Argentina) e não restringir o
comércio ou proteger as empresas nacionais e que os pneus remoldados no Uruguai
utilizavam carcaças importadas de países desenvolvidos as quais tinham uma vida útil
10 O artigo 50 do Tratado de Montevidéu assim dispõe: “Nenhuma disposição do presente Tratado será interpretada como impedimento à adoção e ao cumprimento de medidas destinadas à: a) Proteção da moral pública; b) Aplicação de leis e regulamentos de segurança; c) Regulação das importações ou exportações de armas, munições e outros materiais de guerra e, em circunstâncias excepcionais, de todos os demais artigos militares; d) Proteção da vida a saúde das pessoal, dos animais e dos vegetais; e) Importação do patrimônio nacional de valor artístico, histórico ou arqueológico; e f) Exportação, utilização e consumo de materiais nucleares, produtos radioativos ou qualquer outro material utilizável no desenvolvimento ou aproveitamento da energia nuclear.”(grifos nossos). Para conferir na íntegra o texto do Tratado, veja: http://www2.mre.gov.br/dai/m_87054_1980.htm.
11 Convém atentar aqui para a inconsistência do termo “preventivo” na argumentação da Argentina, que parece usar, em várias passagens de sua peça argumentativa, os termos “prevenção” e “precaução” como sinônimos. É já uma distinção bem sedimentada no vocabulário jurídico do Direito Ambiental a distinção entre os princípios da precaução e da prevenção. Em termos gerais, enquanto o princípio da prevenção implica a avaliação dos riscos de evitar danos e a realização de ações baseadas em conhecimento existente, o princípio da precaução sugere que certas medidas podem ser tomadas ou não-tomadas mesmo quando exista incerteza científica sobre algum dano provável ou sobre algum grau de risco ambiental. Veja, p.ex.: KISS, Alexandre; e DINAH, Shelton (1997): pp. 39-40. 12 O ponto (ii) da argumentação argentina é especialmente relevante para este trabalho, sobretudo como ponto de crítica, já que, no contexto, a ideia do “princípio da proporcionalidade” foi interpretada de modo equivocado, como procuro deixar explícito mais adiante no texto. O Tribunal Arbitral, como se verá, não enfrentou expressamente essa questão quando fundamentou a sua decisão. Tal questão da proporcionalidade somente foi colocada quando do pronunciamento ulterior do Tribunal Permanente de Revisão, que pautou a sua decisão em uma análise mais precisa a partir de quatro critérios “de rigor” (a adequação, a discriminação, a não-justificação e a proporcionalidade propriamente dita).
reduzida, oferecendo o risco de converter a região em um “lixeiro de resíduos
importados e potencialmente perigosos”13.
2.2 Por uma análise da argumentação disposta nos Laudos Arbitrais do sistema de
solução de controvérsias do MERCOSUL
2.2.1 Sobre os argumentos dispostos no Laudo Arbitral de 25/10/2005
Em Laudo emitido no dia 25 de Outubro de 2005, o Tribunal Arbitral colocou
que, em primeiro lugar, a controvérsia estabelecida entre a Argentina e o Uruguai se
situava claramente no embate entre dois princípios estruturais do MERCOSUL. De um
lado, colocava-se o princípio da livre circulação de mercadorias entre os países-
membros do MERCOSUL, traduzido na exigência de eliminação de obstáculos não-
econômicos ao comércio inter-estatal. Do outro lado, encontravam-se normas que
asseguravam a preservação do meio ambiente e da saúde das pessoas, dos animais e dos
vegetais presentes na região. Na sequência, ainda destacou alguns pontos não-
controvertidos na discussão, dentre os quais convém destacar: (a) havia um fluxo
comercial modesto de pneus remoldados exportados do Uruguai para a Argentina, fluxo
esse que restou interrompido com a promulgação da lei no. 25.626; (b) restou
comprovada a clara distinção entre os pneus remoldados e os demais tipos de pneus
reconstruídos (recapados ou simplesmente recauchutados); (c) restou também
comprovada a segurança razoável dos pneus remoldados (não havendo risco especial de
acidentes em virtude de serem remoldados), tanto é que o Uruguai e a Argentina,
independentemente desta controvérsia, permitiam livremente o uso de tais pneus em
suas respectivas circunscrições territoriais; e (d) restou também incontestável que o
pneu remoldado de automóvel só é passível de remoldagem uma única vez. A despeito
desses pontos não-controvertidos, destacou ainda o Tribunal que não houve
convergência no que se relacionava à durabilidade de tais pneus, havendo argumentos
científicos de ambos os lados para afirmar que a margem de durabilidade podia variar
de 30% até 100% em comparação com a vida útil de um pneu novo.
Dito isso, o ponto central da decisão do Tribunal foi tentar oferecer uma resposta
à questão de “se a exceção apresentada pela Argentina, [i.e., de] se a proteção da saúde
e da vida das pessoas... e a preservação do meio ambiente, tem condições jurídicas para
13 Para conferir na íntegra a argumentação argentina, veja: http://www.mercosur.int/t_generic.jsp?contentid=375&version=1&channel=secretaria&seccion=6.
opor-se ao princípio do livre comércio, em determinadas condições e/ou circunstâncias”
(grifo nosso)14. Essa tendência argumentativa do Tribunal também se manifestou na
seguinte passagem:
“...seu fundamento [da integração dos países no MERCOSUL] no livre
comércio somente pode ter sentido como instrumento de implementação do
bem-estar dos seres humanos que vivem na região. Leia-se bem-estar como
um conceito amplo, que implica todos os elementos que contribuem para
melhorar a qualidade de vida dos homens...o livre comércio não pode gozar
de prioridade absoluta, posto que é instrumento do bem-estar humano e não
um fim em si mesmo. O conceito de um mercado livre de barreiras deve ser
temperado com outros princípios, igualmente consagrados pelo Direito, tais
como a eficácia, a cooperação entre os povos, a prevenção, a precaução...”
(grifo nosso)15
Nessa linha discursiva, o Tribunal emprega um argumento bastante contundente
de que o Uruguai não conduziu em nenhum momento a discussão do caso nos termos do
problema ambiental, já que a pretensão uruguaia se restringia a “obrigar a Argentina a
seguir importando pneus remoldados produzidos no Uruguai, posto que esses [pneus]
têm igual durabilidade e segurança em relação aos pneus novos, sempre tiveram livre
ingresso no território argentino e não significam um impacto ambiental distinto do que é
causado pelo pneu novo”16.
14 Cf. LAUDO ARBITRAL do Tribunal Arbitral: p. 22. Disponível em: http://www.mercosur.int/t_generic.jsp?contentid=375&version=1&channel=secretaria&seccion=6. 15 Cf. LAUDO ARBITRAL do Tribunal Arbitral: p. 26. A afirmação do Tribunal de que o livre comércio não pode gozar de prioridade absoluta é uma colocação óbvia (ou, se se prefere, trivial), já que a medida do livre comércio somente é possível de ser determinada juridicamente no momento em que ela é ponderada com outros valores igualmente relevantes do ponto de vista jurídico. 16 Cf. LAUDO ARBITRAL do Tribunal Arbitral: p. 32. Aqui cabe notar que a argumentação uruguaia, ao afastar a questão ambiental não como irrelevante tout court, mas como irrelevante para as circunstâncias do caso em lide, não se direcionou para obrigar a Argentina a continuar importando pneus remoldados uruguaios, mas apenas em banir a restrição legislativa à possibilidade de importá-los (uma não-restrição é apenas uma permissão, negativa ou positiva, mas nunca uma obrigação de fazer alguma coisa), i.e., a argumentação uruguaia foi que o ponto de vista ambiental não poderia justificar uma tal restrição ao livre comércio, porque isso comprometeria, em última instância, o uso de quaisquer tipos de pneus (novos ou remoldados) por quaisquer dos países-membros do MERCOSUL, já que o nível de dano ambiental seria o mesmo no uso de quaisquer tipos de pneus. Esse argumento é reforçado pela posição, endossada inclusive pelo próprio Tribunal Arbitral, de que o comércio de pneus remoldados entre a Argentina e o Uruguai, antes da restrição, era modesto e pouco significativo. Essa é uma leitura que faço a partir da noção de que uma das características constitutivas de toda decisão judicial tem de ser a sua universabilidade, i.e., o conteúdo normativo de uma decisão judicial deve ser compreendido junto com uma pretensão de que o mesmo conteúdo normativo deve ser aplicado, tanto quanto possível, em todos os outros casos concretos análogos nos aspectos relevantes. Se assim não for, então ela deve ser qualificada como uma decisão incoerente, porque não-universalizável. Essa é uma crítica que pode ser feita, pelo menos, ao modo como o Tribunal expressou a sua leitura acerca da argumentação do Uruguai nesse ponto.
Por fim, o Tribunal dispôs sua decisão conclusiva, marcando as suas posições
nas questões centrais para definir se a restrição promovida pela lei argentina no. 25.626
foi ou não uma restrição justificada à liberdade de comércio nos países do
MERCOSUL. O Tribunal acolheu a posição de que a atividade de remoldagem de um
pneu é uma medida que deve ser incentivada, já que contribui para retardar a
acumulação de pneus usados. Foi um ponto relevante para o Tribunal, também, que
ainda que fosse válida a posição sustentada pelo Uruguai de que a vida útil de um pneu
remoldado fosse a mesma da de um pneu novo, é um fato inquestionável (i.e., não-
controvertido) que depois do término da vida útil de um pneu remoldado, tal pneu se
converte em um resíduo ambientalmente problemático.
Um outro argumento relacionado com esse é que também restou não-
controvertido que a vida útil de um pneu remoldado é menor do que a de um pneu novo,
já que enquanto um pneu novo é suscetível de ser remoldado (ainda que o possa ser
remoldado por uma só vez), um pneu remoldado não é mais suscetível de ser remoldado
uma outra vez. Disso se pode inferir também que do argumento uruguaio de que a vida
útil de um pneu remoldado é idêntica à vida útil de um pneu novo não deriva o
argumento (que, ressalte-se, não foi defendido pelo Uruguai) de que permaneceria
inalterado o passivo ambiental da Argentina, já que uma alteração nesse passivo com o
uso de pneus remoldados (importados ou não) é, no sentido forte, inevitável.
Relacionado com esse argumento está também o argumento uruguaio da
produção interna de pneus remoldados na Argentina, fato esse que pesa em favor da
derrogação da lei referida. O ponto aqui é que a remoldagem de pneus, quando é feita
dentro do âmbito nacional argentino e a partir de pneus que foram produzidos na
Argentina, contribui para retardar o aumento do passivo ambiental desse país, ao
contrário do que ocorre com a importação de pneus remoldados do Uruguai para a
Argentina. Disso segue a seguinte posição também sustentada pelo Tribunal:
“...o pneu remoldado não é em si mesmo um produto que possa causar dano
imediato ao meio ambiente. Sem embargo, esse mesmo produto reconstruído,
com estrutura originária de outras regiões do mundo, terá uma vida útil
substancialmente menor que a de um pneu novo. Vale dizer que será
transformado em lixo mais rapidamente e fará com que o Estado receptor
acumule precocemente resíduos danosos ao meio ambiente para os quais a
ciência e a tecnologia ainda não encontraram solução satisfatória”17
Diante disso, é entendimento compartilhado no Tribunal que a defesa do meio
ambiente, desde que fundamentada em razões justas18, pode ser usada como exceção às
normas gerais da integração regional e, portanto, como exceção às normas que regulam
o livre comércio entre os países do MERCOSUL. Assim, sendo inegável que a
importação de pneus remoldados pela Argentina aumentaria o seu passivo ambiental,
baseou-se a Argentina, segundo o Tribunal Arbitral, em uma razão justa para promulgar
a referida lei 25.626, motivo pelo qual o Tribunal julgou improcedente o pleito do
Uruguai, e considerou justificada racionalmente a restrição legislativa da Argentina ao
livre comércio, sobretudo no âmbito dos países do MERCOSUL.
2.2.2 Sobre os argumentos dispostos no Laudo do Tribunal Permanente de Revisão
(TPR) em 20/12/2005
Na sequência do caso, o Uruguai interpôs um recurso para revisar a decisão
acima exposta, e a nova decisão, tomada agora pelo Tribunal Permanente de Revisão,
provocou uma mudança de rumo na controvérsia. Outros argumentos foram dispostos,
agora, para justificar uma posição contrária à ajustada no Laudo Arbitral, i.e., para
justificar a incompatibilidade da legislação argentina com as normativas do
MERCOSUL, ou seja, para justificar autoritativamente a posição de que a restrição
legislativa da Argentina ao livre comércio deveria qualificar-se como uma restrição
juridicamente não-justificada. Passo à análise do núcleo essencial da argumentação
proposta pelo TPR, dando uma especial ênfase ao juízo de proporcionalidade realizado
nessa sede.
17 Cf. LAUDO ARBITRAL do Tribunal Arbitral: p. 40. 18 Uma crítica que se pode realizar, ainda que incidentalmente ao modo como o Tribunal expressa a sua decisão, é o uso de termos fluidos, como o termo “razão justa”. Isso dá margem à crítica de que o que o Tribunal está fazendo é, na verdade, definir o que é uma razão justa ou não, ou seja, em outras palavras, é definir se o que para a Parte é uma razão justa o é do ponto de vista pretensamente jurídico do Tribunal. Muitas vezes, como em algumas passagens da presente decisão, recorre-se, por maior que tenha sido o esforço argumentativo feito pelo Tribunal, a um argumento de autoridade acerca daquilo que é justo (construído em uma linha notadamente ideológica de raciocínio). A crítica aqui é fundamental, no ponto de questionar quais são os limites jurídicos que alega o Tribunal ter para auferir uma posição acerca da justiça, i.e., a questão de se o Tribunal exerce uma função jurisdicional, ou uma função marcadamente legislativa. Não disponho qualquer argumento ulterior nesse ponto, apenas utilizo o caso dos pneus para demonstrar a dificuldade que essa questão suscita nos casos jurídicos concretos. Vale ressaltar que essa questão ganha ainda mais ênfase em um Tribunal Arbitral que procura articular uma controvérsia entre partes que são Estados soberanos.
Uma primeira posição marcada pelo TPR é a posição de que não haveria
exatamente uma colisão entre dois princípios estruturais do MERCOSUL, pois, quando
se trata de uma integração de países, haveria apenas um princípio (o do livre comércio),
ao qual se podem contrapor algumas exceções (como, no caso, uma exceção de ordem
ambiental)19. Esse argumento é sustentado, entre outras razões, pela necessidade de
afirmar uma certa autonomia funcional do Direito da integração com relação aos demais
ramos do Direito. Na sequência, o TPR formula uma crítica à disposição do Laudo
Arbitral que apenas afirma, de modo insuficiente, que as exceções ao princípio de livre
comércio (como a saúde e a vida das pessoas, e a preservação do meio ambiente) teriam
condições jurídicas de opor-se ao livre comércio em determinadas condições e/ou
circunstâncias. O argumento do TPR é que o Laudo Arbitral não foi além, e, assim, não
estabeleceu critérios de rigor para definir tais condições e/ou circunstâncias, i.e., não
estabeleceu critérios precisos para tornar claras em que circunstâncias tais exceções ao
livre comércio seriam qualificadas como juridicamente possíveis.
Seguindo essa linha crítica, o TPR propôs, em primeiro lugar, que se devia
analisar se a medida em questão efetivamente restringia o livre comércio (critério esse
que se chamará aqui de “critério da adequação”). A análise da adequação, no presente
caso, teve resposta positiva, na medida em que efetivamente a proibição de importar
pneus remoldados foi considerada uma medida restritiva ao livre comércio, e, portanto,
uma medida adequada à restrição imposta pela lei argentina. Em segundo lugar, devia-
se avaliar o caráter discriminatório ou não-discriminatório da medida (esse é o segundo
critério de rigor usado pelo TPR). O ponto aqui seria avaliar, portanto, se tal medida não
foi de encontro ao chamado critério da universabilidade, e a posição do TPR foi a de
que a medida seria diretamente discriminatória 20 , pois afetava somente produtos
estrangeiros, a despeito do fato de não somente afetar o Uruguai, mas também a todos
19 A meu ver, aqui o TPR se equivocou, ao menos, no uso da teoria mais assente com respeito ao conceito de princípios jurídicos. É que tais exceções que o próprio TPR julga como possíveis em certas circunstâncias, elas mesmas têm de ser justificadas, e, pelo menos parte dessa justificação, decorre da possibilidade de tais exceções serem passíveis de derivação de outros princípios igualmente relevantes para a composição institucional do MERCOSUL (no caso, do princípio da preservação ao meio ambiente). O conceito central é que os princípios são comandos prima facie, e a própria realização do princípio do livre comércio depende do grau de restrição ou até mesmo do grau de realização que a realização do livre comércio implica para a realização dos demais princípios normativamente relevantes na estrutura jurídica do MERCOSUL. 20 Aqui o TPR adota uma distinção entre discriminação direta e indireta. A discriminação é indireta quando a medida se aplica igualmente a nacionais e a estrangeiros, mas seus efeitos interferem mais nos estrangeiros que nos nacionais. Por sua vez, a discriminação seria direta quando a medida não se aplica igualmente a nacionais e estrangeiros, como é a situação do caso em tela.
os demais países do mundo. Em terceiro lugar, devia-se verificar se a medida era ou não
justificada. A posição do TPR nesse ponto foi a de que a medida não poderia ter uma
justificação devida, já que, p.ex., nos antecedentes parlamentares da lei restritiva se
dispunha não somente a proteção ao meio ambiente, mas também a proteção da
indústria nacional provedora de pneus remoldados. Em quarto lugar, o ponto mais
difícil, tratava-se de verificar a proporcionalidade na medida, considerando que toda
medida que limitasse o livre comércio deveria ser sempre avaliada a partir de um
critério restritivo. Nas palavras do TPR
“...este TPR...acolhe a tese uruguaia, de que a mesma [referindo-se à medida
restritiva] é desproporcional frente a um produto, o pneu remoldado, que não
é nem resíduo nem um pneu usado segundo a própria conclusão do laudo
arbitral...Tampouco é proporcional porque o dano alegado segundo o critério
deste TPR não é grave nem irreversível...Tampouco é proporcional desde o
ponto de vista de que não se pode impedir o livre comércio, salvo quando
seja a única medida disponível, eliminando de circulação um produto
estrangeiro que é igual em segurança a um produto nacional...mas que talvez,
e não em todos os casos, é de menor duração. Tampouco é
proporcional...porque a medida tomada não previne o dano. As medidas a
serem adotadas no caso em questão...deveriam estar mais bem orientadas à
limitação e à eliminação dos pneus em fase de resíduos...”21
O TPR, depois de julgar a medida como restritiva, discriminatória, não-
justificada e desproporcional com relação ao princípio do livre comércio22, coloca um
argumento acerca da incerteza científica, na medida em que o Laudo Arbitral dispôs um
21 Cf. LAUDO ARBITRAL do TPR 01/2005: p. 9. Disponível em: http://www.mercosur.int/t_generic.jsp?contentid=375&version=1&channel=secretaria&seccion=6. 22 Essa leitura de quatro critérios que fez o TPR, poderia ser feita sob o método da proporcionalidade (e, portanto, através das (sub-)regras da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito) de um modo mais claro. Ocorre que, caso o TPR tivesse aceitado a tese mais teórica (mas não menos relevante na prática) de que a proporcionalidade é um método adequado para solucionar colisões entre direitos fundamentais, ele entraria em contradição com o seu argumento inicial de que haveria apenas um princípio estruturante do MERCOSUL, o do livre comércio. A meu ver, ainda que a estratégia dos quatro critérios tenha sido bem aplicada ao caso, o TPR dispôs, no início, de um argumento que prejudica internamente a sua própria argumentação. É que, uma vez que o Tribunal tenha identificado a medida como adequada no sentido de que restringe o livre comércio, mas também a identificou como uma medida não-necessária, porque haveria medidas menos restritivas que interfeririam menos (ou, ao menos, não interfereririam mais) na preservação do meio ambiente do que a medida em questão (a restrição legislativa argentina). Assim, sendo o entendimento do TPR de que a restrição legislativa argentina é adequada mas não-necessária, isso por si só já seria suficiente para julgá-la como desproporcional, e, portanto, com uma medida juridicamente incabível. Seria, assim, um argumento mais simples e mais difícil de ser refutado e, inclusive, de ser criticado externamente pela opinião pública, p.ex.
argumento sustentado no princípio da precaução de que seria possível justificar por si só
a adoção de medidas de proteção ao meio ambiente, mesmo quando não houvesse
certeza científica sobre o dano ambiental. O TPR considerou o uso do conceito de
incerteza científica no Laudo Arbitral uma manifestação arbitrária, já que os riscos para
a saúde e os danos para o meio ambiente foram reconhecidos por ambas as partes no
que concerne ao fim da vida útil dos pneus e à sua consequente transformação em
resíduo ambientalmente problemático23.
Por fim, o TPR alega ter identificado graves erros jurídicos no Laudo Arbitral,
razão pela qual se comandou a revogação total do Laudo. E, por consequência, também
se declarou que a lei argentina no. 25.626 era incompatível com a normativa do
MERCOSUL, motivo pelo qual a Argentina deveria derrogá-la ou modificá-la e, ainda,
que a Argentina estaria vedada a adotar ou a empregar qualquer medida que fosse
contrária ou que dificultasse o cumprimento dessa decisão.
2.2.3 O estado atual do caso
Aqui apenas faço um registro do que se seguiu da última decisão tomada pelo
TPR, a de que a Argentina derrogasse a lei 25.626 restritiva ao princípio do livre
comércio entre os países do MERCOSUL. Um problema que surgiu entrementes foi
que, diante do descumprimento da decisão imposta pelo TPR por parte da Argentina, o
Uruguai aplicou um conjunto de medidas compensatórias (uma tarifa alfandegária de
16% à importação de pneus novos da Argentina). Ainda como consectário dessa
decisão, a Argentina derrogou a lei que proibia o ingresso de pneus remoldados (lei no.
25.626), e sancionou outra em seu lugar (lei no. 26.329 promulgada em 20/12/2007).
Essa nova lei deu origem a outros problemas que não apareciam na redação da lei
anterior revogada. Em seus artigos 3º e 4º, por exemplo, a lei enuncia:
“Artigo 3. A importação de pneus remoldados de qualquer origem só poderá
ser autorizada em quantidades iguais ou inferiores ao número de pneus do
mesmo tipo, que tenham sido exportados a esse destino desde a República
Argentina, em forma previamente estabelecida para autorizar tal importação.
Artigo 4º. O Poder Executivo Nacional regulamentará as formalidades e
procedimentos para autorizar a importação de pneus remoldados de qualquer
23 Nas palavras do TPR: “Lo que en tal caso, tal incertibumbre científica permite es tomar alguna medida, pero no precisamente cualquiera” (p. 11).
origem, prévia verificação do número e o tipo de pneus usados exportados da
República Argentina a esse mesmo destino.”
Com base nessa última lei, a Argentina solicitou o levantamento das medidas
compensatórias, mas não obteve êxito com o Uruguai, que, por sua vez, argumentou
que, diante das condições a que a nova lei sujeitava as importações, a Argentina não
teria cumprido adequadamente a decisão do TPR24. Isso levou o Uruguai a provocar
mais uma vez a intervenção do Tribunal de Revisão. Em Abril de 2008, o TPR
novamente se pronunciou reafirmando a sua decisão anterior, entre outros motivos, por
considerar a nova lei argentina ainda diretamente discriminatória a estrangeiros e
desproporcional como já afirmado anteriormente. Dito isso, comandou o Tribunal que a
Argentina revogasse a nova lei ou que a alterasse ou modificasse para torná-la conforme
às considerações feitas, i.e., de modo a superar pelo menos um dos critérios de rigor
adotados pelo TPR, i.e., que a alteração da referida lei no. 26.329 pela Argentina só
seria admissível caso, ao menos, não fosse diretamente discriminatória, ou pudesse
restar justificada em alguma razão não-protecionista da indústria interna, por exemplo.
3. DOIS PONTOS CRÍTICOS NO CASO DOS PNEUS REMOLDADOS ENTRE
A ARGENTINA E O URUGUAI
Como já se pode ver dessas breves páginas, o caso dos pneus remoldados
encerra uma controvérsia bastante complexa, sobretudo no que concerne à sua
fundamentação argumentativa. É que, ainda que o objeto da controvérsia seja claro
(decidir se a restrição legislativa foi ou não justificada), decidir sobre que argumentos
são os mais adequados ou os mais seguros para tomar a decisão não se revela uma
tarefa fácil, na medida em que envolve a avaliação não só de juízos estritamente
jurídicos, sendo necessário o Tribunal se posicionar sobre questões controvertidas em
nível científico, econômico e político. Nesta seção do texto, procuro apenas reforçar
dois pontos críticos na argumentação desenvolvida acima, a saber: (a) a diferença
conceitual entre pneus novos, pneus usados, pneus remoldados e pneus recauchutados (e
algumas das consequências práticas dessa diferença); e (b) a divergência sobre a
durabilidade dos pneus remoldados. Ressalte-se que esta seção é útil apenas para
24 Note-se que o argumento central da Argentina com a promulgação da nova lei foi que se tentou encontrar uma posição intermediária entre a importação indiscriminada e a proibição total de importação prevista na primeira lei no. 25.626. Com a nova lei, o argumento da Argentina é que seria possível controlar internamente a quantidade de pneus usados exportados e a quantidade de pneus remoldados importados, sem, no entanto, aumentar o seu passivo ambiental.
clarificar alguns pontos inconsistentes da exposição de argumentos feita acima, e para
fornecer uma base justificadora da crítica de fundo que procuro realizar na parte II do
texto.
3.1 A diferença conceitual entre pneus novos, pneus usados, pneus remoldados e
pneus recauchutados
Como se observou da discussão acima, uma distinção conceitual clara entre os
vários tipos de pneus é algo necessário para a tomada de uma decisão judicial que
pretende alguma racionalidade. O uso inconsistente dos termos, muitas vezes, contribui
também para uma inconsistência no produto final que é a decisão. A questão central
aqui, obviamente, é a de saber o que é, mais exatamente, um pneu remoldado e como
ele se diferencia dos demais tipos de pneus (novos, usados e recauchutados). Foi
colocado na argumentação do caso que os remoldados seriam uma classe de pneus que
incluiriam os pneus recauchutados, ou que os remoldados e os recauchutados
formariam, juntos, uma classe de pneus pertencentes à classe mais geral de pneus
usados. Nenhuma dessas posições, porém, resultou suficientemente clara. A posição
final do Tribunal foi que “...a prova trazida ao processo indica que o pneu remoldado é
um produto que se utiliza de uma carcaça de um pneu usado, devidamente inspecionada
e que esteja em bom estado, sobre a qual se reconstrói um pneu, abarcando essa
reconstrução a banda de rodagem, os ombros e as laterais do pneus...”25.
É preciso esclarecer que, no entendimento mais acertado do tema, há uma
primeira diferença central entre um pneu novo e um pneu reformado. Enquanto um pneu
novo se define como um pneu que nunca foi utilizado para rodagem de qualquer forma,
o pneu reformado se define como sendo aquele pneu que foi submetido a algum tipo de
processo industrial com o fim específico de aumentar a sua vida útil de rodagem em
meios de transporte. Dentro da classe de pneus reformados é que, então, faz-se uma
segunda diferença central: a diferença entre pneus recapados, recauchutados e
remoldados26. Esses três tipos de pneus se diferenciam, precisamente, pelo modo como
são reformados. Enquanto que um pneu recapado é aquele pneu que é reformado com a
substituição da banda de rodagem, um pneu recauchutado é um pneu que é reformado
com a substituição da banda de rodagem e dos ombros, e um pneu remoldado é aquele
25 Cf. LAUDO ARBITRAL do Tribunal Arbitral: p. 29. 26 Para um tratamento mais aprofundado dessas diferenças, veja, p.ex.: MOROSINI, Fábio (2006): pp. 30 e seguintes.
pneu que é reformado com a substituição da banda de rodagem, dos “ombros” e de toda
a superfície de seus flancos. Dessa diferenciação mais clara, já é possível inferir que o
pneu remoldado é o pneu que, dentre os pneus reformados (incluindo, pois, os
recauchutados e os recapados), possui um grau de qualidade maior, já que seu processo
de reforma é mais completo. Ainda é importante acrescentar a noção de um pneu
inservível, que é aquele pneu que não se presta mais a processo de reforma que permita
condição de rodagem adicional. O pneu inservível, portanto, seria o estágio final dos
pneus reformados, sobretudo dos pneus remoldados que já não podem prestar-se a um
novo processo de reforma para serem reaproveitados enquanto pneus de rodagem.
O problema que o Tribunal parece ter enfrentado com maior atenção foi o de
que, a despeito dessas diferenças, é um fato inquestionável que quando o pneu (seja
remoldado, seja novo) se converte em um pneu inservível, ele se torna um produto que
causa ou pode causar dano ao meio ambiente e, particularmente, à saúde das pessoas. E
esse problema, na evolução tecnológica atual, ainda permanece sendo um problema
não-solucionável. Nas palavras do Tribunal Arbitral:
“Ademais, parece indubitável que ao final de sua vida útil, sejam pneus
novos, sejam pneus remoldados, tais produtos causam ou podem causar dano
ao meio ambiente e, particularmente à saúde das pessoas...Um pneu, ao final
de sua vida útil, não dispõe ainda de um processo de reciclagem
economicamente viável, não obstante os vários estudos que mundialmente
são realizados nesse sentido. Um pneu, ao fim de sua vida útil, se transforma
em resíduo indesejável e potencialmente perigoso. Os pneus inservíveis
vertidos ao ar livre, transformam-se em fonte de contaminação e de
verdadeiros criadouros de insetos. Além dessa conseqüência, podem tais
resíduos liberar elementos de sua composição danosos à saúde de seres vivos
e à natureza, inclusive contaminando as águas. Podem também os pneus ao
fim de sua vida útil ser enterrados em acervos sanitários...Vertidos no
subsolo, estima-se que tais produtos levem cerca de 500 anos para degradar-
se na natureza. Nesse período, os acervos que recebem pneus inservíveis
podem, com a liberação do processo de degradação, contaminar gravemente a
superfície freática, alcançando as águas subterrâneas, com conseqüências
danosas para o meio ambiente...Os resíduos resultantes desses pneus usados
são de difícil disposição, tardam séculos para degradar-se, são compostos por
inumeráveis elementos químicos e podem provocar sérios danos ao meio
ambiente, ao homem, aos animais...se abandonados ao ar livre.”27
Nessa passagem do Tribunal, aparece também um conceito que deve ser
destacado: o conceito de resíduos. Pelo que se dispõe na passagem, os resíduos estão
intimamente relacionados com os acima chamados pneus inservíveis, na medida em que
tais pneus seriam resíduos danosos ao meio ambiente sobretudo pelo seu lento processo
de degradação e pela sua suscetibilidade de ser um meio difusor ou potencializador de
várias doenças transmitidas por insetos28. Percebe-se, portanto, que o Tribunal está
atento ao problema ambiental, mas, como se verá na seção seguinte, ele não considera
esse problema ambiental como sendo um problema relevante e específico dos pneus
remoldados, já que todo pneu inservível (seja derivado de um remoldado, seja de um
novo) é resíduo ambientalmente problemático, razão pela qual não se poderia basear
uma decisão tão somente na questão ambiental.
3.2 A divergência sobre a durabilidade
A divergência sobre a durabilidade de um pneu remoldado e de um pneu novo
foi um elemento de controvérisa ineliminável no caso. É que cada Parte, baseada em um
argumento de autoridade científica, dispôs dados com pretensão de serem
cientificamente válidos. O ponto é que tais dados se revelaram mutuamente
inconsistentes, i.e., a única situação possível seria a de um dado ser verdadeiro e o outro
falso. A questão é que o requisito de prova científica é um requisito que, ao menos
prima facie, é designado para afastar o ônus de o Tribunal avaliar uma questão para a
qual não tem competência técnica, que está fora de seu campo de análise jurídica. Para
manter a coerência argumentativa, as opções para o Tribunal, em uma situação como
essa, seriam apenas duas: (i) ou o Tribunal desconsidera como irrelevantes para a sua
decisão ambos os dados científicos porque mutuamente incompatíveis, ou (ii) o
Tribunal teria de decidir-se em favor de um dos dados científicos, situação em que o
Tribunal tomaria um juízo técnico que extrapola a sua competência jurídica (e aqui,
também, poder-se-ia levantar a questão de que o Tribunal, ao tomar um juízo técnico,
estaria impondo alguma ideologia em sua decisão, não controlável racionalmente).
Veja-se como ocorreu no caso em exame.
27 Cf. LAUDO ARBITRAL do Tribunal Arbitral: p. 32. 28 Na América do Sul, obviamente, esse problema é enfrentado sobretudo com a dengue. Ver: MOROSINI, Fábio (2006): pp. 9 e seguintes.
O Uruguai, com apoio em um juízo científico emitido pelo IPT da Universidade
de São Paulo, defendeu a posição de que “um pneu reformado é ‘um pneu
remanufaturado através de um processo industrial que utiliza a estrutura íntegra dos
pneus usados, seguido de uma rigorosa inspeção. (...) O pneu assim obtido possui, em
princípio, as mesmas características do pneu novo, tendo inclusive de atender aos
requisitos exigidos para pneus novos. Dessa forma, adequadamente fabricado, o pneu
remoldado tem a mesma durabilidade e seria tão ou mais seguro que um pneu novo,
utilizado nas mesmas condições’...29. Pelo argumento uruguaio, portanto, a durabilidade
de um pneu remoldado era rigorosamente a mesma da de um pneu novo, e um pneu
remoldado, inclusive, podia tornar-se mais seguro que um pneu novo.
Por outro lado, a Argentina, com apoio em um juízo científico emitido pelo seu
Instituto Nacional de Tecnologia Industrial (INTI), sustentou que “...a duração de um
pneu reconstruído depende de seu tamanho e do modo em que foi usado. O que está
claro é que a probabilidade de falha do mesmo é muito maior que a de um pneu novo
pelo envelhecimento que tem a carcaça (= pneu usado sobre o qual se realiza a
reconstrução) (...) O rendimento se estima, com base mais prática que técnica em 30%
da vida útil de um pneu novo, mas depende muito do estado do pneu usado no momento
da seleção e da qualidade do processo de reconstrução...”30. Pelo argumento argentino,
portanto, ainda que se possa inferir que uma duração média de um pneu remoldado seja
de apenas 30% da vida útil de um pneu novo (dado que pode variar de acordo com a
qualidade e o tamanho da carcaça, e com a qualidade da reconstrução), seria
incontestável que um pneu remoldado é menos seguro que um pneu novo, em virtude de
ele ser originado de uma carcaça envelhecida.
Enquanto o Uruguai afirma, então, que a duração de um pneu remoldado é de
100% da vida útil de um pneu novo e que um pneu remoldado é tão seguro quanto um
pneu novo, a Argentina afirma que a duração de um pneu remoldado é da média de 30%
da vida útil de um pneu novo e que um pneu remoldado é menos seguro que um pneu
novo. A posição do Tribunal Arbitral, diante dessa flagrante inconsistência entre os dois
argumentos, foi a seguinte: “...restou finalmente comprovado que um pneu remoldado é
praticamente tão seguro em seu uso como um pneu novo. Que um pneu remoldado tem
a durabilidade entre 30% e 100% da de um pneu novo. Que um pneu remoldado é mais
29 Cf. LAUDO ARBITRAL do Tribunal Arbitral: p. 29. 30 Cf. LAUDO ARBITRAL do Tribunal Arbitral: p. 30.
barato que um pneu novo. Que um pneu remoldado não pode ser novamente
remoldado...”31. Ora, daí se pode inferir que a posição defendida pelo Tribunal Arbitral
foi uma posição intermediária, afirmando a igual segurança do pneu remoldado e do
pneu novo, mas também afirmando uma margem de durabilidade do remoldado que
pode variar largamente entre 30% e 100% da vida útil de um pneu novo. Aqui cabe uma
breve crítica à disposição do Tribunal. É que, como se disse, adotar uma posição
intermediária nessa questão científica significa, em última instância, fazer um juízo
científico distinto daquele que foi feito por cada um dos institutos designados para
avaliar a situação. Não restou comprovado, p.ex., que o pneu remoldado e o pneu novo
têm uma igual segurança, pois os argumentos da Argentina e do Uruguai são
mutuamente incompatíveis nesse assunto, razão pela qual o Tribunal deu uma
preferência (arbitrária) ao argumento uruguaio. Tampouco restou comprovada essa
margem de durabilidade (entre 30% e 100%), já que essa margem só resultaria de uma
combinação (impossível) entre dois argumentos científicos incompatíveis entre si, i.e.,
em outras palavras, o Tribunal não poderia ter inferido essa margem a partir de uma
combinação dos referidos argumentos, mas só poderia assim fazer caso houvesse um
terceiro juízo científico realizado por algum outro instituto idôneo que afirmasse uma tal
margem.
Como quer que seja, em outra parte do laudo, o mesmo Tribunal lembrou que
quando um pneu (remoldado ou não) se transforma em resíduo ambientalmente
problemático, a ciência e a tecnologia ainda não teriam condições de oferecer uma
solução adequada sobre o que fazer com tal resíduo para evitar o grave dano ambiental
que, hoje, a incineração de tais resíduos provoca. Isso, junto com o fato de que a
incineração é um processo economicamente muito dispendioso, contribuiu para o
Tribunal desenvolver o interessante argumento de que, a despeito da divergência acerca
da durabilidade, é um fato que um pneu remoldado não poderia ser remoldado uma
outra vez, enquanto que um pneu novo ainda poderia ser remoldado (uma vez), e, assim,
que o uso de pneus remoldados importados aceleraria o aumento do passivo ambiental
do país importador. O Tribunal, porém, sequer mostrou atenção à necessidade de tornar
mais preciso se o aumento desse passivo ambiental era ou não significativo. Esse
mesmo Tribunal reconheceu que a importação de remoldados do Uruguai para a
Argentina era pouco significativa, razão pela qual se poderia inferir, ao menos, que o
31 Cf. LAUDO ARBITRAL do Tribunal Arbitral: p. 38.
aumento do passivo ambiental argentino com o uso dos remoldados importados do
Uruguai fosse também pouco significativo. Essa inferência permitiria ao Tribunal tomar
uma outra decisão, que, diante dos argumentos postos, pareceria mais adequada ao caso,
a de que a restrição legislativa argentina foi uma restrição não-justificada do ponto de
vista ambiental (ainda que pudesse sê-lo do ponto de vista do livre comércio)32.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: UMA APROXIMAÇÃO CRÍTICA
Nesta última parte deste estudo, como já se colocou em sede de Introdução,
procuro desenvolver uma crítica de fundo à atual situação política do MERCOSUL, a
partir daquilo que pode ser extraído da discussão sobre o caso dos pneus remoldados
entre a Argentina e o Uruguai. Em termos gerais, o caso referido dos pneus remoldados
oferece uma oportunidade para levantar, pelo menos, três questões centrais: (i) os
argumentos baseados na preservação do meio ambiente foram suficientemente decisivos
para a solução do caso?; (ii) ao final, a ponderação levada a cabo entre o princípio do
livre comércio e o princípio da preservação do meio ambiente restou racionalmente
justificada e conseguiu realmente conciliar os complexos interesses econômicos e
ambientais envolvidos na controvérsia?; e (iii) o desenho institucional do MERCOSUL
oferece (p.ex., os documentos normativos e o sistema de solução de controvérsias) uma
estrutura suficiente para resolver divergências que envolvem comércio e meio
ambiente?33 A resposta a cada uma dessas questões demandaria muito mais do que aqui
se pode oferecer. De todas as formas, como afirmei na Introdução, o objetivo deste
trabalho é apenas extrair alguns caminhos possíveis de respostas, e não oferecer
respostas exaustivas e definitivas sobre esses problemas.
Antes de prosseguir, convém fazer algumas observações preliminares. No que
concerne a (i), é possível concluir dos argumentos expostos na primeira parte do texto
que o problema ambiental foi considerado tanto pela decisão do Tribunal Arbitral,
quanto pela decisão do Tribunal Permanente de Revisão, mas ambos, ainda que
tomando decisões opostas, não consideraram o referido problema como o fator
diretamente mais determinante para decidir o caso, seja em um sentido (de julgar a
restrição legislativa argentina como não-justificada), seja no outro sentido (de julgar a 32 Ressalte-se que aqui não desconsidero a questão ambiental, apenas faço uma interpretação que, diante dos argumentos colocados no caso, a questão ambiental não era uma questão de peso, tanto quanto o era, p.ex., a restrição absoluta da Argentina à importação de remoldados de qualquer país do mundo. 33 Essas três perguntas correspondem a uma reformulação das três perguntas colocadas na Introdução. Essa reformulação se fez necessária seja por uma questão de clareza analítica, seja por uma questão de coerência do texto.
restrição legislativa argentina como justificada). Ainda assim, o núcleo essencial da
argumentação, de um lado, foi a prevalência de razões ambientais (Tribunal Arbitral), e,
de outro lado, foi a prevalência de razões protetoras do livre comércio (Tribunal
Permanente de Revisão). O Tribunal Arbitral julgou a restrição argentina como
justificada em virtude do aumento do passivo ambiental que provocava a importação de
remoldados, mesmo sem dispor claramente se esse aumento era ou não significativo34.
O TPR julgou a restrição argentina como não-justificada em virtude de ser uma restrição
excessiva ao livre comércio, e de não interferir, no final das contas, tão positivamente
na preservação do meio ambiente.
No que concerne a (ii), pode-se derivar uma outra questão bem fundamental: se
ambos os Tribunais (o Arbitral Ad Hoc e o Permanente de Revisão) pretenderam
formular decisões que estivessem juridicamente fundamentadas (e, assim, que
estivessem juridicamente corretas), como é possível que a ponderação entre as mesmas
duas variáveis (livre comércio e preservação do meio ambiente) gere, em um mesmo
caso concreto, dois resultados (duas decisões) totalmente incompatíveis entre si? A
solução para esse dilema teria de restar em uma de duas opções: ou se tenta mostrar que
uma das decisões não cumpriu satisfatoriamente a sua pretensão de correção jurídica (e,
assim, que não estava juridicamente fundamentada), ou se admite que essa
possibilidade, ainda que seja uma ameaça à segurança jurídica, é uma possibilidade
inevitável, pois o juízo jurídico de Tribunais como esses do MERCOSUL jamais
poderiam restringir-se a juízos puramente jurídicos, sendo também, em certa medida,
juízos necessariamente políticos, o que caracterizaria uma evidente debilidade (e
insuficiência) do sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL. A tese que
procuro defender neste texto é uma posição combinada entre essas duas opções. É que,
como se viu, por exemplo, há sérias inconsistências internas na argumentação do
Tribunal Arbitral, e isso dá força à primeira opção, a de criticar afirmando que o
Tribunal Arbitral não cumpriu adequadamente a pretensão de correção jurídica em sua
decisão. De outro lado, porém, qualquer ponderação entre valores extremamente gerais
e fundamentais envolve uma atividade por parte de quem julga de dizer o que esses
34 Esse foi o ponto de crítica que se fez nas seções anteriores do texto acerca da inconsistência interna na argumentação do Tribunal Arbitral. É que a decisão, enquanto tal, ao julgar como justificada a restrição legislativa, considerou relevante o problema ambiental, mas ao longo da fundamentação dessa decisão, o problema ambiental foi considerado apenas como relevante tout court, mas não como especificamente relevante para a decisão do caso dos pneus remoldados. Essa inconsistência aponta para a crítica de que o Tribunal pode ter assumido uma posição política em favor da Argentina.
valores são, porque o conteúdo concreto desses valores não estaria pré-determinado às
decisões tomadas pelos Tribunais35. Ressalte-se que dizer que qualquer ponderação
entre valores envolve sempre, em alguma medida, um juízo político, não é dizer que
necessariamente toda ponderação é irracional ou totalmente subjetiva (posição
decisionista). Um juízo político, com efeito, pode sim ser racionalmente justificado, mas
isso tem de ser feito do modo mais explícito possível, sob o risco de que decisões
judiciais tão relevantes em sede do MERCOSUL sucumbam à manipulação ideológica
velada.
No que concerne a (iii), é importante questionar, em adição ao já exposto em (i)
e (ii), se é suficiente uma decisão em nível judicial para solucionar problemas
complexos envolvendo o livre comércio e o meio ambiente entre os países do
MERCOSUL. Nesse ponto, destaca-se, p.ex., o artifício do qual a Argentina se valeu
para “realizar” a medida estabelecida pelo TPR, de que fosse a primeira lei revogada ou
alterada para conformá-la às exigências da decisão (sem restringir discriminatoriamente
o livre comércio). A estratégia da Argentina, como se viu, foi derrogar a lei e promulgar
uma outra lei em seu lugar, que dispunha, por sua vez, não mais uma restrição explícita
ao livre comércio, mas uma restrição implícita que poderia ser imposta, no exercício da
discricionariedade das autoridades argentinas, sempre que se julgasse necessária para
controlar o aumento do passivo ambiental. Ora, o ponto de crítica aqui também é
evidente: a ineficácia das decisões judiciais emitidas no âmbito de solução de
controvérsias do MERCOSUL, em virtude da falta de condições políticas suficientes
para conferir autoridade legítima às decisões dos Tribunais referidos.
Esses três pontos permitem, no geral, a demonstração de que algumas das
considerações levantadas na Introdução são considerações razoáveis de serem
sustentadas. Agora se pode afirmar, sem correr o risco de ser trivial, que o problema
central para solucionar o caso dos pneus remoldados é um problema essencialmente
político que deve passar pela mediação institucional do MERCOSUL, mas que aí não se
35 Uma forma de expressar essa crítica seria apontando para a distinção entre conceito e concepção. Enquanto a existência do conceito é aquilo que permite a possibilidade de divergência entre várias concepções de um mesmo conceito, não seria possível defender um conceito sem preenchê-lo com alguma concepção que, no essencial, envolve uma opção política de quem articula o conceito. Assim, não se poderia falar de ponderação entre livre comércio e preservação do meio ambiente sem destacar também que o juízo jurídico dos Tribunais designados a realizar tal ponderação vai estar diretamente relacionado com a opção política de cada um dos membros do Tribunal de como conceber o que é preservação do meio ambiente e o que é o livre comércio entre os países do MERCOSUL no caso concreto, e, assim, de como conceber concretamente as complexas relações entre esses dois valores.
esgota. É que, se de um lado a força política das decisões dos Tribunais do
MERCOSUL é um fator que contribui positivamente para a integração dos países-
membros em torno de uma unidade inter-estatal36, do outro lado haverá sempre um
fator de tensão entre a referida força política e a necessidade de manter uma unidade
política soberana interna de cada país-membro. Uma integração regional, tal como a
entendo, não está a serviço de superar os limites estabelecidos por essa tensão
inevitável, mas deve procurar arranjar os meios institucionais que mais possam
contribuir para a transparência e para a desideologização do diálogo público a ser
travado entre tais países sobre questões que transcendem os limites das soberanias
nacionais.
Como quer que seja, a discussão aqui empreendida sobre o caso dos pneus
remoldados, além de tornar clara essa necessidade de um amadurecimento institucional
no âmbito do MERCOSUL (que só pode ser obtida, ressalte-se mais uma vez, através da
experiência concreta do diálogo institucional entre os países-membros), também
revelou algumas deficiências graves na própria argumentação sustentada pelos
Tribunais. O único meio de legitimidade política de que esses Tribunais “inter-estatais”
podem revestir-se é a elaboração de uma linha argumentativa consistente em cada
decisão e coerente de decisão para decisão. Ademais, é necessário que esses Tribunais
“inter-estatais”, exercendo, como exercem, uma função mista que resulta da tensão entre
decisões genuinamente políticas e decisões juridicamente fundamentadas (i.e. de
decisões que, apesar de políticas, possam ser tidas por todos como decisões
juridicamente possíveis), levem a sério as questões ambientais e, sobretudo, levem a
sério a posição de que se há algum limite ao livre comércio regional, esse limite deve
restar, necessariamente, na manutenção de um meio ambiente saudável e bem
equilibrado com capacidade de adaptação natural às diversas contingências fáticas que
possam ocorrer37. É que, em última instância, até mesmo a possibilidade do livre
36 E esse ponto pode inclusive ser observado pelo modo como a Argentina reagiu à última decisão do TPR. É que, ainda que tenha procurado “descumprir” a decisão “cumprindo-a”, o fato de a Argentina ter endossado esse tipo de ação estratégica é uma evidência da força política que vincula todos os países-membros comprometidos com a estabilidade institucional no MERCOSUL. O ponto central é que essa força política talvez ainda não seja suficiente. Isso não deve ser tomado necessariamente como um problema. Toda e qualquer tentativa de integração regional envolve um período de amadurecimento institucional, como já ressaltei na Introdução, que não pode ser suplantado pela imposição arbitrária de certas decisões “fora do tempo”. 37 No diálogo anglo-saxão sobre as questões ambientais, usa-se muito a expressão “resilience”, que nada mais é do que essa capacidade adaptativa natural que todo sistema vivo deve ter para manter-se vivo de acordo com as condições possíveis de sua existência. Sustenta-se, às vezes, que a mudança de paradigma
comércio está condicionada pela existência de um meio ambiente equilibrado. Não é
necessário construir um discurso ideologicamente engajado para verificar como
verdadeira tal afirmação.
Por fim, restam algumas conclusões de ordem prática que precisam ser
enfatizadas. À guisa de objetividade, refiro-me a elas pontualmente:
a) a total incompatibilidade das decisões tomadas pelo Tribunal Arbitral Ad Hoc e o
Tribunal Permanente de Revisão aponta para uma incoerência interna no sistema de
solução de controvérsias do MERCOSUL, e tal fato pode diminuir a força
argumentativa dos argumentos favoráveis à proteção do meio ambiente em decisões
posteriores sobre temas correlatos;
b) não resultou frutífera a tarefa ponderativa entre o livre comércio e a preservação do
meio ambiente, pois não houve uma separação clara entre as duas questões (nem sequer
houve uma separação clara da relevância entre elas). De um lado, a Argentina, em
última instância, não levou a questão ambiental a sério e colocou uma clara ênfase nas
razões protetoras de sua indústria nacional de pneus remoldados. De outro lado, o
Uruguai dispôs contra-argumentos que também enfatizaram a questão comercial;
c) das duas conclusões acima segue que o instrumental jurídico do MERCOSUL não foi
suficiente para solucionar, do ponto de vista jurídico, os conflitos surgidos entre
comércio e meio ambiente. A excessiva fluidez argumentativa das Partes e dos
Tribunais deixou evidente a necessidade de formar-se, antes de mais, uma política de
cooperação ambiental sólida entre os países-membros, seguida de uma regulamentação
rigorosa em nível regional sobre o controle e o tratamento de resíduos decorrentes da
fabricação de pneus, que favoreça a reutilização do que é produzido no âmbito do
MERCOSUL e que dificulte a interiorização de resíduos provenientes de outras regiões
do mundo.
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