Post on 09-Feb-2016
Michel Lorblanchet
Trad. Luís Lima
As origens da cultura (série)
As origens da Arte
(2009)
Prefácio
Falar das origens da cultura é falar de práticas (técnicas, linguísticas, religiosas) cuja
emergência não é compreendida nem pelo simples efeito, uniforme, dos dados
genéticos, nem pela adaptação de um grupo ao seu meio envolvente. É olhar para o
lugar onde certas populações fabricam novas competências, desdobram capacidades
de invenção, de aprendizagem e transmissão, dotando-se, no mesmo lance, de uma
identidade própria.
A etologia ensinou-nos que esses fenómenos não dizem unicamente respeito à espécie
humana: há primatas que inventam e transmitem procedimentos técnicos; para
comunicar, grupos de pássaros dotam-se de sinais não inatos. Em contrapartida, a
espécie humana trouxe à inovação cultural uma dimensão e uma potência inéditas,
graças às suas disposições cognitivas específicas. A invenção e o aperfeiçoamento de
ferramentas, a domesticação do fogo, o aparecimento das línguas, a criação dos ritos e
das artes, e, há dez mil anos, o surgimento dessas biotecnologias que são a agricultura
e a criação de gado ritmam a progressão cultural humana.
As investigações recentes renovaram profundamente a abordagem de tais fenómenos.
Para tornar esse conhecimento acessíveis ao grande público, o Collège de la Cité des
Sciences et de l’Industrie dedicou-lhe várias séries de conferências ao convidar os
melhores especialistas. É o conteúdo dessas conferências que se pode reencontrar na
presente série de trabalhos intitulada «As Origens da Cultura»: As Primeiras
Sepulturas, de Bruno Maureille; Os Começos da Criação de Gado, de Jean-Denis
Vigne; As Primeiras Ferramentas, de Pascal Picq e Hélène Roche; Os Começos da
Agricultura, de Marcel Mazoyer; As Origens da Linguagem, de Jean-Louis Dessalles,
Pascal Picq e Bernard Victorri; As Origens da Arte, de Michel Lorblanchet.
Roland Schaer,
Director da área de Ciências e Sociedade –
Cidade das Ciências e da Indústria
Apresentação
Ao decorar as grutas com as suas pinturas, ter-se-á o homem tornado subitamente
artista? Ou seria ele, desde as suas mais remotas origens, um artista que se ignorava
enquanto tal?
As respostas que os especialistas dão à questão da origem da arte dependem dos
respectivos domínios e pontos de vista de cada qual. Dependem, em particular, da
possibilidade de coexistência de diversas definições da própria «arte».
Apesar de um conhecimentos insuficiente dos dados arqueológicos, a posição tomada
por Georges Bataille, em 1980, pode encaminhar e esclarecer a reflexão sobre esta
temática.
Figura 1:
Representação esquemática da história da arte pré-histórica desde a sua origem.
Evolução da Arte / Evolução do Homem
0 anos / 1 milhão / 2 milhões / 3 milhões
Paleolítico Arcaico e Antigo / Paleolítico Médio / Paleolítico Superior
[da esquerda para a direita]:
Pedra-Figura (Makapansgat)
Primeiros esferóides e bolas
Primeiro uso do ocre vermelho
Primeiros bifaces
Colecção de pedras preciosas e de fósseis
[de cima para baixo:]
Marcas sobre pedras
Ossos incisos
Primeira arte rupestre: cúpulas (Índia)
Cozedura do Ocre
Proto-figura (Berekhat Ram)
Adorno
Pintura corporal
Arte parietal e arte móvel
Afro-Ásia – Europa no Início / Mundo Inteiro / África / Europa e Próximo Oriente
[da esquerda para a direita]:
Australopitecos
Homo Habilis
Últimos Australopitecos
Homo Erectus
Pré-Sapiens
Neandertal
Homo Sapiens (Homem Moderno) / Neandertal
1
O ponto de vista clássico
sobre a origem da arte
Georges Bataille e o ponto de vista clássico
sobre o nascimento da arte
A arte começa na gruta de Lascaux? Encandeado pelo esplendor das pinturas da cavidade, Georges Bataille celebrou a
gruta de Lascaux ao atribuir-lhe o lugar que merece na escala das criações humanas; e
fê-lo certamente melhor do que os pré-historiadores que ele considerava «demasiado
tímidos» e que não tinham sabido ou ousado fazê-lo. A sua sensibilidade literária
produziu alguma belas páginas sobre a temática, cujo conteúdo convém relembrar.
Para Georges Bataille1, a arte é o signo da hominização; Lascaux é o símbolo da
passagem do animal ao homem, é «o lugar do nosso nascimento» porque «se situa no
começo da humanidade cumprida»; «é o sinal sensível da nossa presença no
universo»; «nunca antes de Lascaux atingimos o reflexo dessa vida interior da qual
arte – e só ela – assume a comunicação».
As suas declarações têm a força da convicção: «Nenhuma diferença é mais vincada:
opõe à actividade utilitária a figuração inútil desses signos que seduzem, que nascem
da emoção e se dirigem a ela [...] sentimento de presença, de clara e ardente presença,
que nos dão as obras-primas de todos os tempos».
O Homem de Neandertal, «cuja face terá parecido mais bestial do que a de qualquer
homem vivo», não produzia qualquer «obra de arte». Pelo contrário, o Homem de
Lascaux prova a sua aptidão para ultrapassar a tradição e «fazer a obra de arte»: «Sob
a luz de igreja das candeias, ele excedia o que até então existira ao criar aquilo que
não existia no instante anterior».
Devemos pois «atribuir a Lascaux um valor de começo».
1 As citações de Georges Bataille são retiradas da sua obra La Peinture préhistorique: Lascaux ou la naissance de l’art, Genebra, Skira, 1986.
Não podemos acompanhar Bataille, nem nos seus desenvolvimentos teóricos sobre
«as proibições e transgressões» que crê reencontrar em Lascaux, nem, sobretudo, na
oposição categórica por ele formulada entre Homo faber, fabricante de ferramentas
pertencentes ao mundo do trabalho, e Homo sapiens, ser cumprido que daí em diante
pertenceria ao mundo do jogo (Homo ludens) e da arte – que, ainda segundo Bataille,
mas também de acordo com uma opinião amplamente partilhada, é jogo por
excelência.
Sabemos, hoje, que Lascaux não é o começo da arte no sentido cronológico do termo
já que, apesar da lamentável ausência de datação directa dos pigmentos, apenas lhe é
concedida uma idade de 17 mil anos.
Todavia, Georges Bataille tem parcialmente razão. Com a sua «cavalgada de animais
que se perseguem», a espectacular extensão de imagens cobrindo as suas superfícies
rochosas, Lascaux é, efectivamente, um dos primeiros monumentos artísticos da
história do Homen. Dado o seu acabamento estético, pode ainda ser considerado um
começo: melhor do que centenas de outros conjuntos parietais mais modestos, esta
gruta, tal como a de Altamira, fornece a prova inequívoca das mais elevadas
capacidades criativas dos homens desde o Paleolítico.
Depois dos escritos de Georges Bataille, outros locais de igual importância, mas de
uma antiguidade ainda maior, foram descobertos: a Gruta de Chauvet, a de Cussac, a
arte ao ar livre da Europa Meridional que, tanto quanto Lascaux, fazem remontar a
plenitude da arte até ao Paleolítico.
Coloquemos porém a seguinte questão: em que medida o «milagre de Lascaux» (que
tão bem poderia ser o de Chauvet, de Cussac, do Côa, etc.), equivalente ao «milagre
grego» segundo Bataille, nos seduz e quais são as consequências dessa sedução por
ele exercida sobre nós?
Por via das suas ferramentas e do seu género de vida, o homem de Lascaux – ou, mais
genericamente, o homem da Idade da Rena – é para nós um estranho; mas por via da
sua arte, pelo contrário, «comunica com a parente afastada que é para ele a
humanidade presente». Na forma de arte espectacular que esta gruta oferece,
reencontramo-nos, reconhecemo-nos. Somos levados a pensar – na nossa condição de
Ocidentais – que Lascaux, Chauvet, Cussac, Altamira, e os cerca de trezentos e
cinquenta sítios paleolíticos europeus ornados, assinalam o surgimento da ARTE, que
nada – ou tão pouco – anunciava até então.
Aos olhos dos artistas e dos escritores europeus contemporâneos (como, além de
Georges Bataille, André Breton, Pablo Picasso...), esta explosão de beleza parece até
eclipsar a mensagem desconhecida que tais imagens podem conter, mensagens às
quais os pré-historiadores se amarram de modo tão patético! Magia, totemismo,
simbolismo sexual, alucinações xamânicas* (por maioria de razão) parecem derisórias
quando comparadas com a emoção gerada pela contemplação das grandes
composições paleolíticas. Na sua potência e beleza, que sem dúvida ultrapassam o
respectivo sentido, estas obras parecem anunciar aquilo que, em 1790, Emmanuel
Kant designava por «beleza livre» (que ele opõe à «beleza aderente», como a das
ferramentas, por exemplo), uma liberdade comparável à da arte contemporânea,
liberta das mensagens religiosas que a arte tradicionalmente veiculava.
Pela primeira vez na história dos homens, estamos em presença não só de uma arte
figurativa, que representa elementos da realidade, como sobretudo de uma arte visual,
que se abre à comunicação, que se afixa e se encena, que se dirige aos outros homens
ou a divindades capazes, como eles, de ver e apreciar.
O «valor de exposição» desta arte, que se inscreve na envolvência natural das grutas
ou das paisagens ao ar livre, é efectivamente novo, independentemente da existência
no mesmo momento, e por vezes nos mesmos sítios, de uma arte secreta que se
esconde nas dobras da natureza e que é o duplo invertido da arte que se mostra2.
Uma opinião tradicional Como Bataille – que aqui contribuiu para uma introdução esclarecedora e cómoda – a
maioria dos pré-historiadores consideram que a arte começa com essa forma de arte
espectacular (não só parietal*, também arte móvel*) surgida «subitamente» na
Europa, há cerca de 35 mil anos.
Segundo a opinião de Henri Breuil, desenvolvida em 1952 no seu espesso livro Les
Quatre Cents Siècles d’Art Parietal, o Homem de Cro-Magnon torna-se artista ao
descobrir acidentalmente o poder de figuração de fenómenos naturais como as
«pedras-figura*», as formas rochosas naturais, os fosseis e as pegadas animais e
humanas (vestígios digitais, marcas de descarnação* sobre os ossos). O gosto dos 2 Dominique Sacchi (dir.), L’Art paléolithique à l’air libre; le paysage modifié par l’image, Colloque de Tautavel-Campôme, 7-9 de Outubro 1999, Carcassonne, GAEP, e Paris, GEOPRÉ, 2002.
homens modernos pela imitação seria o fundamento das primeiras realizações
artísticas.
Em 1964, André Leroi-Gourhan afirma igualmente que «o primeiro passo foi dado
pelo Homo sapiens». [Anteriormente] a gama do que se poderia designar por
manifestações pré-artísticas – ocres, cúpulas, formas naturais – criam uma estreita
auréola em torno do crânio achatado do Homem de Neandertal: qualitativamente e
quantitativamente, as manifestações moustierense e pós-moustierenses (ver quadro 1)
não têm comum proporção com o que se desenvolve subsequentemente.
Assim, para os grandes especialistas da arte pré-histórica do século XX, a arte surge
numa fase final da evolução humana há apenas algumas dezenas de milénios,
enquanto a história humana se estende ao longo de quase três milhões de anos. Esta
emergência é percebida como um progresso evolutivo cujo fundamento é biológico; é
considerada como a marca distintiva exclusiva do tipo humano último, o Homo
sapiens, o homem moderno*, nosso predecessor directo. Para alguns, até, a arte terá
nascido de uma mutação genética.
Outros, como os defensores da psicologia evolucionista, propõem uma teoria segundo
a qual a criatividade dos homens do início do Paleolítico Superior estaria ligada ao
aparecimento de novas capacidades cognitivas, permitindo a passagem de uma
inteligência sectorial ou especializada para uma inteligência generalizada.
Os homens de Neandertal só terão tido capacidade para fazer análises pontuais,
respondendo cada uma delas a necessidades imediatas da vida quotidiana, sendo o
homem moderno o único a poder fazer a síntese e a elaboração de conceitos gerais
que ultrapassam as necessidades imediatas. De acordo com esta teoria, a origem da
arte acompanharia a emancipação da linguagem articulada.
Especialista em arte rupestre, o sul-africano David Lewis-Williams3, associa o
nascimento da arte ao da consciência, que ele concebe como «um continuum, [que
vai] da consciência racional à consciência alterada». Só o Homo sapiens, com o seu
cérebro aperfeiçoado, dominaria «o espectro inteiro da consciência», do estado de
vigia ao do sono, passando pelo devaneio e pelo sonho, pelos fantasmas e por toda a
imagética alucinatória artificial ou natural. A «ponte neurológica» que parece existir
entre nós e os homens de Cro-Magnon – uma vez que o cérebro deles é idêntico ao
nosso – permitiria pensar que a partir do Paleolítico Superior se praticava a 3 As citações de David Lewis-Williams são retiradas da sua obra L’Esprit dans la grotte: la conscience et les origines de l’art, Mónaco, Éditions du Rocher, 2003.
introspecção e que havia interesse pelos estados de alma e estados psíquicos, ao ponto
de provocar alucinações que era preciso ter o cuidado de anotar, figurando-as nas
paredes das grutas! Assim, ainda segundo Lewis-Williams, os começos da arte
estariam ligados às alterações da consciência e ao xamanismo, que corresponderia a
uma «necessidade universal» [que consistia em] dar um sentido aos estados alterados
da consciência [e] que está na origem de todas as formas religiosas ulteriores».
Estas teorias globalizantes, amplamente mediatizadas – o xamanismo pretende
explicar as artes do mundo inteiro, e de todas as épocas –, apresentam uma visão
profundamente redutora da arte pré-histórica e da arte em geral. Não passam de uma
deriva do ponto de vista clássico que atribui a inteira paternidade da arte ao homem de
Cro-Magnon. Não se apoiam em dados arqueológicos objectivos mas antes numa
argumentação teórica de tipo metafórico, combinando o biológico e o cultural, sem
que se saiba claramente o que pertence a um domínio ou ao outro: as visões
inspiradoras dos xamãs sobre arte rupestre seriam assim uma mistura de motivos
alucinatórios universais, produzidos pela estrutura mental dos homens modernos
(motivos ditos «entópticos»), e de elementos culturais locais, por exemplo, ainda
segundo Lewis-Williams, «episódios de mitos relativos à formação de um xamã
contados aos noviços». Não tentaremos aqui uma refutação deste «caldo conceptual»,
para empregar uma fórmula utilizada por alguns opositores de tal ponto de vista: um
livro recente fornece uma crítica aprofundada4.
O ponto de vista clássico sobre o aparecimento da arte sublinha sistematicamente a
incompletude dos tipos humanos anteriores aos homens modernos, a sua inaptidão
intelectual e espiritual no sentido amplo, já que é geralmente admitido que a
expressão artística – sobretudo nesses tempos longínquos – está ligada às crenças: se
os homens de Neandertal e os Homo erectus eram incapazes de produções artísticas, é
porque a sua linguagem era insuficientemente evoluída e porque não tinham atingido
o estádio psíquico que permite a instalação das crenças mágico-religiosas. Esta
opinião leva a uma desqualificação das criações anteriores ao Paleolítico Superior,
constituindo a «estreita auréola» em torno do «crânio achatado» dos nossos
longínquos predecessores, que Leroi-Gourhan evocava. Essas produções são
consideradas não artísticas e relegadas para a categoria mais vaga, algo pejorativa, das
4 M. Lorblanchet, J. Le Quellec, P. Bahn, H. P. Francfort, B. e G. Delluc (dir.), Chamanisme et arts préhistoriques, vision critique, Paris, Errance, 2006.
criações ditas puramente «simbólicas», o que evita uma referência excessivamente
explícita ao termo «arte».
De acordo com a mesma teoria, a emergência da arte no Paleolítico Superior antigo só
pode ser brutal; efectua-se num tempo relativamente curto – no máximo um ou dois
milénios –, correspondendo à instalação dos imigrantes sapiens na Europa Ocidental.
É, pois, considerada uma revolução ou, melhor ainda, uma «explosão criativa»,
segundo a expressão de John Peiffer.
Como se trata de uma aparição no seio de um vazio artístico, a ideia de «progresso»
está associada ao fenómeno de duas maneiras: não só a arte é em si mesma um
progresso, como a sua evolução interna pode, também ela, apenas fundar-se no
conceito de progresso. A arte emerge no Paleolítico Superior, desenvolve-se depois ao
ritmo habitual do crescimento, passando da infância à maturidade e, depois, à
degenerescência (ou senescência), seguindo uma curva regular ascendente que se
torna descendente, passando das formas simples às formas complexas, do
esquematismo e da abstracção balbuciante a um naturalismo triunfante, para terminar,
no fim do Paleolítico Superior, após um percurso de 25 milénios, numa regressão
marcada por um esquematismo cada vez mais elementar que conduz à morte da arte
rupestre na Europa Ocidental, há cerca de dez mil anos. As cronologias estilísticas de
Breuil, e depois as de Leroi-Gourhan, desenvolvem-se em dois ou quatro estilos
sucessivos, quais trajectórias, comportando por vezes tempos de paragem e regressos.
Estas visões comportam algumas ideias implícitas. Com vestígios etnocêntricos, a
arte-progresso, figurativa e naturalizada, atesta a supremacia do homem moderno que
nós somos, mais particularmente do homem ocidental e, se levarmos o raciocínio ao
extremo que ele próprio sugere, acabamos simplesmente por acreditar que existe um
berço da arte e que este só pode ser europeu. A progressão das formas paleolíticas
supõe uma flecha do tempo claramente orientada para nós.
Por outro lado, estas visões tradicionais implicam uma definição redutora da arte: só
existiria arte na figuração espectacular e na representação do mundo real ou
imaginado. A arte paleolítica confirmaria até que, desde a sua origem, a função
primeira da arte consistiria em representar o real! Além disso, essa percepção da arte
pré-histórica coloca a tónica no aspecto mais espectacular da arte das grutas: as
figurações animais (por exemplo, os grandes touros de Lascaux); tendendo assim a
eclipsar os motivos indeterminados e os signos – menos impressionantes, é certo, mas
porém bem presentes e em grande número, nas paredes ornadas.
Um osso entalhado, traçados indeterminados, uma pedra com cúpulas, uma colecção
de fósseis, uma bonita ferramenta, o uso dos corantes e dos minerais raros não
saberiam responder a comportamentos artísticos ou não seriam merecedores da
qualificação «obras de arte». Não estará aqui presente uma projecção de um conceito
particular e redutor de arte?
A extraordinária diversidade da arte contemporânea deveria no entanto alargar a
percepção dos pré-historiadores que, entenda-se, não podem escapar completamente
ao ascendente da sociedade em que vivem. O pintor Pierre Soulages, por exemplo,
considera a pintura como «uma harmonização de formas e cores sobre a qual vêm
fazer-se e desfazer-se os sentidos que se lhe prestam»: supremacia auto-suficiente da
forma e da cor e, sobretudo, permanente disponibilidade semântica da criação...
Noções deste tipo poderiam ser úteis aos pré-historiadores nas suas investigações
sobre as origens da arte.
As contradições da concepção tradicional
do «nascimento da arte»
Estará a origem da arte ligada ao aparecimento do homem moderno? Os dados arqueológicos mostram que, contrariamente às hipóteses apresentadas no
capítulo precedente, o nascimento e a evolução da arte não são fenómenos uniformes,
mas «estilhaçados».
Não existe uma correspondência directa e imediata entre o aparecimento do homem
moderno e o da arte; por outro lado, a evolução da arte efectua-se segundo modelos
extremamente variados, diferentes consoante as regiões do mundo e as épocas
consideradas.
A falta de precisão e os limites das datações por radiocarbono não facilitam em nada a
compreensão dos fenómenos de contemporaneidade e de evoluções desencontradas no
tempo. No entanto, parece que na Europa – como aliás, vê-lo-emos, na Austrália –
existe um desfasamento de vários milénios entre a chegada dos primeiros Homo
sapiens e o aparecimento das primeiras grutas ornadas. O Aurignacense (civilização
dos primeiros homens modernos, ver quadro 1) não é homogéneo; não surge no
mesmo momento em todas as regiões da Europa. No Ocidente, a mais antiga gruta
ornada datada, a gruta de Chauvet, não parece ser contemporânea do mais velho
Aurignacense – que pode remontar até cerca de quarenta mil anos, na Cantábria, por
exemplo (deixemos de lado, por agora, uma gruta indiana com várias centenas de
milhares de anos, a de Darakhi Chattan; aí voltaremos.
Para mais, as primeiras formas de arte do Paleolítico Superior são diversas: parece ter
sido aproximadamente no mesmo momento, entre -34000 e -32000 anos, que se
desenvolveram as estatuetas do Jura Souable; as pinturas muito esquemáticas das
paredes da gruta Fumane, no Veneto; os espectaculares fresco da gruta de Chauvet, no
vale do Ardèche; os blocos gravados com motivos vulvares, no Vale de Vézère;
algumas pinturas bicromáticas (negro e encarnado), na cúpula de certos abrigos do
mesmo vale (abrigo Blanchard, abrigo de La Ferrassie); e simples incisões paralelas
nas paredes dos abrigos das Astúrias. Nos seu estilos, temas e técnicas, os motivos
mais antigos são pois radicalmente diferentes uns dos outros: alguns parecem simples
e rudimentares, enquanto outros são incrivelmente sofisticados, mobilizando à partida
todos os recursos da criação. Tal é o caso, por exemplo, das decorações da gruta de
Chauvet ou do homem-leão de Hohlenstein-Stadel, que poderia figurar na estatuária
egípcia!
Quadro 1. Cronologia simplificada dos tempos pré-históricos
Época
Geológica
Data Civilização Idade Homem fóssil
Holoceno
0
-1000
- 40 000
- 100 000
- 500 000
Bronze-Ferro
Cardial
Sauveterriana
Aziliense
Idade dos
metais
Neolítico
Mesolítico
Homem
Moderno
(Homo
sapiens)
Pleistoceno
Superior
Pleistoceno
Médio
Pleistoceno
Inferior
Magdaleniana
Solutrense
Gravetiense
Aurignacense
Châtelperroniana
Paleolítico
Superior
Moustierense
Paleolítico
Médio
Neandertal
Acheuliano
Paleolítico
Inferior
Homo Erectus
Homo habilis
- 1 milhão
- 2 milhões
Abbeviliano
Cultura Pebble
(ferramentas em
seixos)
As tentativas de aproximação que se esforçam por mostrar que a arte de Chauvet se
inscreve num contexto coerente não conseguem dissimular a extraordinária solidão do
grande santuário ardechense, cujos temas, técnicas e estilos se distinguem não só dos
que estão patentes nos raros conjuntos parietais europeus atribuíveis ao Aurignacense,
mas igualmente de todos os conjuntos do Paleolítico Superior. O mesmo sucede, aliás,
com Cussac, Lascaux e Altamira; o particularismo de cada gruta ornada, que os
esquemas evolutivos gerais têm dificuldade em integrar, é exaltado nos grandes
santuários que, em muitos aspectos, permanecem únicos.
A arte do Paleolítico Superior não parte, pois, de um ponto zero; a trajectória unívoca,
que vai do simples ao complexo e serve de base às cronologias estilísticas tradicionais
está morta!
Nem na Europa, nem em lugar nenhum do mundo, a arte do Pleistoceno Superior (fim
da época glaciar) se inicia com formas simples que evoluem para formas complexas.
Na Austrália, na mesma época que na gruta de Chauvet, por exemplo, convivem o
estilo figurativo geométrico de Panaramitee, os traçados digitais de certas grutas do
Sul e as figurações animais e humanas naturalistas da Terra de Arnhem. Na Índia, o
começo das pinturas abrigadas, que remonta a uns dez mil anos, faz conviver a arte
figurativa dinâmica dos «dançarinos verdes», a arte animalista hierática e simbólica, e
os motivos geométricos dos intricate designs (decorações geométricas complexas).
Em África, como noutros lugares, no seu início, a grande arte rupestre é dispare: no
Sara, coexistem dois estilos de pintura, o Bubalino, naturalista, e o das Cabeças
Redondas, mais simbólico; na África do Sul, motivos geométricos gravados, situados
entre -6000 e -2000, sucedem uma fase original de gravuras rupestres naturalistas.
Nem todas as regiões ocupadas pelos Homo sapiens apresentam arte de um nível
equivalente ao de Chauvet ou de Lascaux; podem até ser totalmente desprovidas dela.
Vastas regiões geográficas povoadas por homens «modernos», longos períodos do
passado desses mesmos homens, apresentam uma ausência total de arte parietal ou
rupestre: em grandes extensões da Ásia e da América não existe de todo; e, em África,
berço dos Homo sapiens desde há duzentos mil anos, existe uma arte móvel modesta e
muito esporádica, desde há 75 mil anos, mas a grande arte rupestre só aparece no
Holoceno (ver quadro 1). É claro que os aparecimentos e desaparecimentos da grande
arte animalista não se produzem ao mesmo tempo nas diversas regiões do mundo.
Que provas arqueológicas sólidas temos nós para sustentar que a arte rupestre sariana
remonta a uma fase anterior ao Neolítico? E alguns conjuntos premonitórios de
cúpulas, muito antigos e de datação sempre delicada, colocarão verdadeiramente o da
Índia antes do início do Mesolítico?
Na Europa o brutal desaparecimento da grande arte animalista em finais do
Paleolítico e a sua ausência no Mesolítico mostram com toda a evidência que a
equação «arte = Homo sapiens» deve ser, no mínimo, fortemente matizada!
Na Austrália, país povoado pelos homens modernos há mais de sessenta mil anos, o
tempo de latência que precedeu o mais longo e mais rico complexo de arte rupestre do
mundo foi da ordem dos dez a quinze milénios. Nas rochas ao ar livre desse
continente e nas paredes dos abrigos, alguns dez milénios antes de Chauvet, instala-se
uma tradição artística original que associa a abstracção pura a um naturalismo
figurativo com tendência geométrica, que persiste ainda nos nossos dias. Trata-se de
uma arte da superfície, com pendor ornamental, que se distingue radicalmente da arte
do volume – tendencialmente naturalista – do Paleolítico das nossas regiões e que se
opõe mesmo ao conjunto da arte europeia.
Assim, o aparecimento, o desaparecimento ou a ausência de arte no mundo na sua
forma mais espectacular, designadamente a arte das paredes dada ao olhar, são
fenómenos de diversidade desencontrados no tempo que não parecem estar
directamente ligados – pelo menos não exclusivamente – à presença ou à ausência do
homem moderno.
É até provável que esses aparecimentos e desaparecimentos se possam ter produzido
localmente no decurso do Paleolítico Superior europeu; têm múltiplas causas,
simultaneamente culturais, económicas, sociológicas e religiosas.
As causas do aparecimento da arte rupestre
na Austrália e na Europa Na Austrália, os primeiros imigrantes chegados da Indonésia ocuparam à partida a
totalidade de um continente vazio onde os recursos naturais eram abundantes. De
acordo com os vestígios de corantes encontrados no decorrer de escavações, durante
uma quinzena de milénios esses primeiros ocupantes não terão praticado mais do que
uma arte elementar – certamente a pintura corporal. Depois, há cerca de 45 mil ou
cinquenta mil anos, começou a progressiva rarefacção da «megafauna» (assim se
designa a fauna composta por espécies gigantes de herbívoros e aves como os
cangurus, vombates, emas...), que forneciam até então uma caça abundante e fácil.
Esta redução da fauna, que acabou por resultar na extinção de algumas espécies,
estava ligada a uma sobre-exploração por vias da caça, associada a um reforço da seca
que assolou o território em finais do Pleistoceno. A ausência de água deixou os
primeiros caçadores-colectores numa situação de stress económico que, segundo
alguns investigadores australianos, pode ter contribuído para o desenvolvimento da
grande arte do continente: poderá designadamente ter provocado a instauração ou o
reforço dos ritos favorecedores da fecundidade das espécies (são ainda frequentes nos
nossos dias) – sendo que comportam a realização de figurações rupestres.
Uma prova complementar da influência determinante que pode ter a evolução do
meio natural e da fauna sobre a produção artística é dada pelo desaparecimento da
arte paleolítica em finais da era glacial. Um mesmo fenómeno geral de mudança do
meio envolvente pode levar a resultados opostos em regiões diferentes. Uma
comparação aprofundada destes fenómenos, muito dissemelhantes na Austrália e na
Europa, seria sem dúvida instrutiva.
A chegada dos Homo sapiens à Europa Ocidental há cerca de quarenta mil anos pôde
constituir um dos factores favorecedores da emergência de uma arte nova – mas não
da arte propriamente dita.
Foi nas regiões mais remota e intensamente povoadas pelos homens de Neandertal, no
beco do Sudoeste da Europa, que a arte paleolítica se desenvolveu. A instalação de
recém-chegados no seio de uma população autóctone relativamente importante e
antiga provocou um aumento da densidade populacional, um acréscimo das trocas e
dos laços sociais e talvez ainda uma melhoria da linguagem. Seguiu-se-lhe uma
competição pela exploração dos recursos naturais bem como uma luta identitária
estimuladora das crenças, que resultou na edificação de santuários materializantes da
apropriação espiritual e económica dos grupos sobre a sua respectiva região.
Terá sido, portanto, o choque cultural e económico – ligado à imigração dos homens
modernos na Europa Ocidental e à convivência com os homens de Neandertal, ao
longo de vários milénios – o criador das condições excepcionais que facilitaram ou
suscitaram a emergência de uma nova religião e de uma arte nova. A situação no
Oeste europeu foi, pois, muito diferente da ocorrida no Próximo Oriente, onde a
simbiose entre Neandertais e homens modernos – que partilharam a mesma cultura
durante vários milénios – nada produziu de equivalente à arte do quaternário franco-
cantábrico. Na Europa, a arte das grutas e a sua fácies meridional, a arte a céu aberto,
são as respostas a contextos socioeconómicos particulares. É certo que o homem
moderno é efectivamente o autor da arte das cavernas, mas o homem de Neandertal
contribuiu para a exaltação das suas capacidades de artista! É possível, aliás, que o
homem de Neandertal não tenha ainda dito a sua última palavra em matéria de
arqueologia: muitas coisas continuam por conhecer sobre o Paleolítico Superior
antigo e sobre a paternidade das culturas que coabitavam na aurora desta nova era.
A aculturação que se produziu nesse momento pode ter sido menos limitada do que se
admite geralmente e terá ocorrido nos dois sentidos. Por um lado, o Neandertal não
terá sido o único beneficiário, uma vez que o Cro-Magnon terá progredido ao
inventar, no contacto com ele, uma nova forma de arte; por outro lado, o Neandertal,
cujas capacidades cognitivas estavam afirmadas havia muito tempo, pôde por vezes ir
muito longe na imitação do recém-chegado, e as suas capacidades artísticas puderam
desabrochar nesse contexto. É possível que um dia a investigação leve a aceitar que
ele seja o autor de uma forma de arte parietal; com efeito, não terá pelo menos
precedido os Aurignacense na realização muito simbólica das cúpulas em blocos de
rochedo?
A Austrália dá-nos ainda um último tema de reflexão: para compreender a repartição
dos estilos artísticos desse continente, os investigadores australianos tentam
prudentemente aplicar à arte pré-histórica os modelos sociolinguísticos das sociedades
aborígenas actuais. A arte rupestre é considerada um sistema de comunicação. Neste
contexto, nas regiões e nas épocas em que as condições de vida são as mais duras, o
território tribal e artístico é vasto, as condições de vida difíceis induzem uma forte
coesão social, um mecanismo de aproximação e a adopção de um mesmo estilo de
arte rupestre. Em contrapartida, nos meios favoráveis (junto ao litoral), onde a
população aumenta, desenvolvem-se tensões sociais, os territórios tribais contraem-se,
as identidades sociais locais afirmam-se e a regionalização dos estilos aparece e
reforça-se.
Este modelo australiano da fragmentação estilística e territorial em função dos
recursos e da densidade populacional poderia fazer luz sobre as pesquisas realizadas
no campo do aparecimento e da evolução da arte quaternária europeia e permitir-nos
ultrapassar o dogma da trajectória estilística unívoca proposta pelos investigadores
das gerações precedentes.
2
Uma outra abordagem
sobre a origem da arte
Uma definição de arte
O Paleolítico Antigo e Médio, que constitui um imenso período anterior ao advento
da arte das cavernas, é visto por Georges Bataille como «uma interminável senda».
Esta fórmula elegante parece convir àqueles que associam o nascimento da arte à
chegada – tão esperada – do homem moderno, no Paleolítico Superior.
Um outro ponto de vista pode ser proposto, mas implica várias notas prévias.
Antes de mais, a arte não se resume às gravuras rupestres figurativas tal como
aparecem esplendorosas nas paredes australianas e europeias. As suas manifestações
podem ser extremamente variadas desde a origem: arte utilitária das ferramentas, a
utilização dos fósseis, dos minerais e das «pedras preciosas», a arte móvel, as pinturas
corporais, adornos, máscaras, etc., podem também adoptar os estilos figurativo,
abstracto ou geométrico.
Convém, depois, despojarmo-nos do falso processo que a nova arqueologia anglo-
saxónica intentou aos especialistas europeus da arte das cavernas. Censura-lhes
projectarem o modelo da arte ocidental contemporânea nas produções paleolíticas, a
pretexto de que a noção de «arte» será desconhecida nas civilizações antigas, cujas
criações não podem ter tido como alvo a única busca do prazer estético, como
acontece com a criação contemporânea. A esta crítica podem avançar-se as seguintes
respostas:
– A noção de «arte» tem, certamente, uma história: convém desconfiar do discurso
estético moderno e ver nas figurações das paredes outra coisa além da sua simples
beleza e qualidade formal. O estudo da arte rupestre deve esforçar-se por recriar a
percepção e o uso das imagens pelos povos do passado.
A necessária prudência que a utilização do termo «arte» requer na investigação pré-
histórica não deve, porém, fazer esquecer que nunca houve a menor oposição – mas
sempre, pelo contrário, uma estreita associação – entre função estética e função
utilitária, religiosa ou mágica. Pelo seu impacto visual e pelos seus cânticos, a arte
religiosa visa impressionar o crente, facilitar a sua comunicação com a divindade. Na
arte tradicional e na arte dita «primitiva», a beleza garante a eficácia da magia; pelo
esplendor das cores e das formas exprimem-se o respeito devido às forças que
governam o mundo e o esforço por lhes ser agradável, seduzi-las e até vertê-las a seu
favor. A beleza figurativa ou ornamental é antes de mais funcional. Tal como os
homens, as divindades amam a beleza.
– O prazer está biologicamente associado à criação artística, é o seu motor. Em todos
os tempos, a contemplação das harmonias naturais, das cores, das luzes, das formas,
dos materiais tê-lo-á produzido, enquanto o espectáculo do feio terá sido sentido
como desagradável, se não mesmo repugnante.
A aptidão para se comover diante do espectáculo do belo que a natureza oferece – o
sentimento estético – constitui a essência do homem e produz uma «química», como
todas as emoções. Através da sua própria criação artística, o homem pretende
reproduzir, provocar o prazer que sente nessa contemplação do belo, um prazer que é,
pois, parte integrante da arte, quaisquer que sejam os seus objectivos declarados. Se o
sentimento ou a sensação estética constituem um dado permanente da natureza
humana, a concepção da própria beleza, pelo contrário, não é absoluta mas sim
construída e cultural, por isso variável de acordo com os grupos humanos, os períodos
e as regiões do mundo.
Para tentar definir-lhe a origem, alarguemos assim a definição de arte... Consideremos
como manifestações da arte no seu começo as realizações que são as marcas do
espírito sobre a natureza, a apropriação pelo homem das produções curiosas da
natureza e as criações humanas que, quaisquer que sejam os seus objectivos e
conteúdos (que ignoramos), implicam um jogo de materiais, de cores e de formas (das
quais nos apercebemos). Esta definição pretende ser útil ao arqueólogo. Só diz
respeito às artes que produzem marcas materiais, aquelas que apelam aos sentidos da
visão e, secundariamente, do tacto; deixa de lado as artes do som e da oralidade tais
como a música, o canto, a poesia, uma vez que essas formas artísticas apenas
fornecem vestígios materiais excepcionais ou muito tardios como, por exemplo, as
flautas em osso de aves do Paleolítico Superior.
Os antropólogos descobriram, porém, assinaturas anatómicas das artes da voz, da
linguagem, das vocalizações e do canto nos primeiros hominídeos, que utilizavam
tipos de comunicação vocal mais elaborados que os dos chimpanzés actuais. O
desenvolvimento dos lóbulos temporais no Australopiteco grácil atesta uma origem
muito antiga da linguagem e da música, enquanto a anatomia do nariz e da faringe
revela que um modo de linguagem articulada existia já há 1,5 milhões de anos! Esta
antiguidade provável da linguagem e da música advogam a favor de uma origem
extremamente antiga de todas as formas de expressão artística.
Um caso particular relaciona-se com a arquitectura, que produz vestígios materiais
muitas vezes efémeros. Os milhões de anos de nomadismo deixaram na paisagem
poucas marcas duráveis da implantação passageira dos homens. As primeiras
estruturas, feitas de ramagens, cestaria e peles, não eram concebidas para serem
duradouras, mas puderam todavia ter cumprido funções simbólicas... Muito antes das
primeiras cidades e dos primeiros monumentos ligados à sedentarização, as marcas
difusas dessas estruturas ligeiras, que os arqueólogos registaram desde o Paleolítico
antigo (Oldoway, Terra-Amata, etc.) colocam a origem da arquitectura entre as outras
formas de arte, no início da humanidade.
Nesta perspectiva, a história da arte e a do homem são indissociáveis: a arte começa
com o homem ou, talvez, com o seu predecessor directo, o Australopiteco.
Desde a sua origem, o homem afirma-se como um artista, porque partilha as suas
primeiras pulsões com outros animais, nomeadamente com alguns grandes símios e
porque, de antemão, colecta e colecciona as «obras de arte» da natureza, porque cria
imediatamente formas, produz marcas e traçados e, desde muito cedo, inventa os
primeiros adornos.
Uma arte de primatas?
De acordo com a biologia moderna, o homem e o chimpanzé estão muito próximos, já
que partilham 99% do seu material genético.
Sabe-se hoje que os chimpanzés fabricam ferramentas, que elaboraram culturas e são
capazes de aprender um certo número de palavras do vocabulário humano. Esta
proximidade explica que os comportamentos dos grandes símios, dos homens
modernos e dos homens pré-históricos possam ser comparados.
A partir da Segunda Guerra Mundial, por acção do etólogo e artista Desmond Morris,
são realizadas investigações sobre a pintura dos símios, numa óptica completamente
nova: trata-se de definir «a origem animal do sentido estético»5 num estádio
extremamente primitivo, anterior à própria cultura. Por experimentação e
comparação, importa delimitar um fundamento animal na pulsão criativa do homem.
Foi fornecida tinta e diferentes suportes (papel e madeira) a alguns chimpanzés em
cativeiro, tendo sido observada a sua reacção pictural.
Segundo Thierry Lenain6, o jogo pictural dos símios funda-se na necessidade de
marcar, de «perturbar a ordem visual estabelecida». A primeira pincelada, o risco a
lápis, tem como função atacar o campo, transtorná-lo, imprimindo-lhe um traçado. Os
símios parecem cair imediatamente na armadilha deste prazer da «marca
perturbadora», enquanto as crianças, no início mais inábeis do que eles, são menos
vítimas do mecanismo e libertam-se dele mais rapidamente para aceder à
simbolização e à representação. Por vezes, só muito mais tarde redescobrem «o
fascínio da marca pura por via do longo desvio cultural [da arte abstracta], situado a
anos luz da arte dos símios».
Estas experimentações evidenciaram, ainda segundo Lenain, a existência de estruturas
recorrentes no grafismo dos símios «resultando em grande parte dos esquemas
motores que caracterizam os gestos do traçar, tais como o vaivém do punho e do
antebraço». Surgem assim feixes de curvas devidas aos movimentos do antebraço que
5 Desmond, Morris, La Biologie de l’art. Études de la création artistique des grands singes et de ses relations avec l’art humain, Paris, ed. Stock, 1962. 6 As citações de Thierry Lenain são provenientes do seu livro La Peinture des Singes, Prefácio de D. Morris, Paris, ed. Syros-Alternatives, 1990.
se desenvolvem elipticamente em final de gesto, sendo a mão trazida de volta ao
ponto de partida, ou ainda a leques formados por traços convergentes, a barras
paralelas, a agregados de rectas e de curvas, bem como a formas mais simples:
pontuações, arcos de círculo e, por vezes, círculos.
Em casos raros, uma certa consciência do motivo parece manifestar-se, à força de
repetição: os traçados espontâneos de leques foram percebidos e depois reproduzidos
intencionalmente, segundo uma técnica simples implicando a representação mental
prévia do motivo.
Os grafismos dos símios são abstractos e informais – exceptuando dois casos
excepcionais de motivos figurativos, talvez sob influência humana?
O desenrolar do acto gráfico está fundado no fenómeno de inscrição: os traçados
sucessivos recobrem-se parcialmente, inscrevem-se uns nos outros e desempenham o
papel de campos gráficos sucessivos, permanecendo sempre visíveis. O jogo de cores
empregues uma após outra acrescenta múltiplas variantes nesta espécie de
composições. Por vezes, é igualmente perceptível um certo sentido de simetria.
Experiências recentes levadas a cabo com símios capuchinhos (ou macaco-prego,
Cebus apella) revelam que estes têm uma propensão para criar e utilizar ferramentas.
Colocados na presença de bolas de argila, juntamente com folhas, pedras e tinta, os
símios começaram a amassar, a bater, a fazer rolar as bolas para lhes dar uma nova
forma, pintando-as ainda com os dedos ou com folhas mergulhadas em tinta. Com um
pau, uma pedra ou com os dedos, gravaram placas de argila que lhes eram
apresentadas, produzindo marcas inorganizadas parecidas com os traçados digitais das
grutas ornadas do Paleolítico.
O conjunto destas experimentações faz luz, é certo, sobre as primeira manifestações
artísticas dos primatas e do próprio homem... mas suscita também algumas reservas:
· na natureza, os símios não pintam; as respectivas manifestações espontâneas
passíveis de serem qualificadas de artísticas são inexistentes ou excepcionais;
· sendo as condições radicalmente diferentes, é difícil comparar os comportamentos e
as produções estéticas de símios e homens pré-históricos: a influência exacta do
experimentador sobre o comportamento dos símios em laboratório é difícil de avaliar
e os hominídeos do Pleistoceno não tinham ninguém que lhes fornecesse papel e
cores, ninguém para imitar – pelo menos, no início da sua história!
A parecença entre os grafismos símios e os traçados digitais inorganizados nas
paredes argilosas das grutas paleolíticas é perturbante. Mas trata-se de uma
convergência formal devida a constrangimentos anatómicos: o braço do símio e o do
homem são parecidos e não permitem levar a cabo gestos radicalmente diferentes; não
podem, por isso, produzir espontaneamente marcas muito diferentes. Convém, no
entanto, observar que as vastas varridelas impulsivas dos símios não se encontram nos
inúmeros grandes painéis de traçados digitais pré-históricos, onde parece existir uma
mestria maior, mesmo quando é questão de traçados inorganizados.
O que faz falta ao símio é a consciência do trabalho que efectua. O seu acto gráfico é
uma mera reacção imediata, instintiva, a um estímulo exterior. A sua pintura poderia
ser comparada à pintura gestual (pintura moderna realizada a partir de gestos
espontâneos), mas é uma pintura do instante, desprovida da menor intenção
comunicativa e que, para lá do momento da sua criação, não se prolonga numa
verdadeira obra de arte duradoura.
Nestas experimentações, é interessante verificar que a simetria em espelho utilizada
pelos símios nas suas composições está inscrita na natureza dos primatas, mas que a
disposição simétrica de um desenho de símio não é mais do que uma resposta
imediata à solicitação de um desenho precedente. Em contrapartida, a fabricação de
um biface pelo Homo erectus é uma autêntica criação na qual a estrutura simétrica do
objecto está inteiramente pré-concebida. Em suma, símios e homens utilizam um
mesmo fundamento pulsional mas o homem coloca-o ao seu dispor enquanto o símio
fica dele refém.
Destas comparações entre as produções dos símios e dos homens retiramos mais uma
informação útil: não é unicamente o gosto pela simetria que ambos partilham mas
também o das formas geométricas básicas – curvas, círculos, barras paralelas, leques,
pontuações... – que são autênticos dados biológicos; trata-se de motivos que os
primatas produzem espontaneamente e não da marca de umas quaisquer alucinações ,
como afirma uma teoria xamânica recentemente reactivada.
Para concluir, relembremos igualmente o relato feito pelo zoólogo Julian Huxley, em
1942, a propósito do jovem gorila Meng que reproduziu repetidas vezes, com o
indicador, o contorno da própria sombra projectada no muro branco da jaula, como se
quisesse desenhar a sua silhueta. De acordo com Huxley, esse gesto poderia
esclarecer a origem da arte humana, cujos primeiros traçados lineares tenham talvez
sido guiados pela sombra dos objectos projectados no muro da gruta: estranha cena
que reenvia para o mito da caverna de Platão ou para o relato de Plínio o Velho: «o
princípio da pintura consistiu em traçar, graças a linhas, o contorno de uma sombra
humana» (História Natural, livro XXXV). Plínio desenvolve esta ideia no mito da
filha de Sicione: tendo o seu amante partido em viagem, ela conservava dele um
retrato em argila que fora modelado na sombra do seu rosto projectado sobre um
muro. De acordo com Régis Debray, que se apoia nesta posição, «a imagem é a
sombra e Sombra é o nome do duplo»7.
A ideia segundo a qual a arte pré-histórica poderia ser um duplo «mecânico» do real
(sendo essa função «reprodutiva» da arte eminentemente discutível) acaba de fazer
um divertido reaparecimento na Internet, numa hipótese formulada por Max Gatton:
ele concebe a origem da arte pré-histórica na projecção de imagens exteriores sobre as
paredes de uma tenda em pele de animal que terá desempenhado o papel de câmara
escura; a luz que penetra através de uma fenda projecta na parede oposta a imagem
invertida dos animais exteriores; basta então traçar-lhes o contorno!
Mas o aparecimento da arte pré-histórica, que é essencialmente uma arte do volume
antes de ser uma arte a duas dimensões, não pode certamente ser explicada pela
invenção de uma mera astúcia técnica!
7 Régis Debray, Vie et mort de l’image, Paris, Gallimard, 1994.
Coleccionador das obras de arte da natureza
Desde o início da sua longa história, o homem apresenta-se como um elemento da
natureza. Tal como algumas aves ou caranguejos, empreende imediatamente a longa
colecta de um bricabraque de produções naturais com formas bizarras e coloridas.
Pela escolha que deles faz, proclama esses objectos «obras de arte» e sonha ser o seu
autor. Toma posse do que de mais belo a natureza lhe oferece: fósseis, conchas,
pedras curiosas, matérias coloridas, cristais e minerais, aos quais se juntam todos os
materiais cintilantes perecíveis: plumas, corchas, plantas e flores...
Ao capturar a beleza, depressa toma consciência do seu próprio poder criador: «Tudo
o que parece harmonioso ao homem não pode senão ser a manifestação das leis que o
governam, a ele e ao mundo, daquilo que vê e daquilo que é, e que, por natureza – é
este o termo – o preenche e lhe convém. Está preso na trama em que foi tecido» (René
Caillois.8)
Os pintores modernos foram provavelmente quem melhor compreendeu a natureza
artística do homem; segundo Paul Klee: «O artista é homem: é ele próprio natureza,
pedaço de natureza na área da natureza.»
Coleccionador de fósseis As escavações revelaram o fascínio que os fósseis desde sempre exerceram sobre os
homens.
Os homens pré-históricos trouxeram fósseis (rinconelas, crinóides...) para o seu
habitat (por exemplo, em Combe-Grenal, em França, ou em Gesher Benot Ya’aqov,
em Israel), onde os pré-historiadores os descobriram e conservaram, centenas de
milhares de anos mais tarde, quando eram investigadores atenciosos, o que nem
sempre foi o caso! Assim, por exemplo, um dente de tubarão fossilizado foi
encontrado no sítio moustierense de Darra-I-Kur, no Afeganistão.
Ferramentas, nomeadamente bifaces, foram por vezes talhadas numa rocha que
continha um fóssil, escrupulosamente conservado no centro da peça: é o caso de
8 René Caillois, L’Écriture des pierres, Paris, Skira, 1970 (em coleccção de bolso: Flammarion, col. «Champs», 1987).
objectos provenientes dos sítios ingleses de West Tofts em Norfolk, de Swanscombe e
da saibreira de Bedford; a indústria Acheuliana de Saint-Just-des-Marais, na região
francesa de Oise, forneceu um ouriço cretáceo transformado em raspador.
Figura 2:
Este biface do Acheuliano Médio, datado de cerca de 300 mil anos, encontrado em
Swanscombe, em Inglaterra, contém um fóssil de ouriço do Cretáceo. Ilustração
baseada em K. P. Oakley.
No Paleolítico Médio, durante o período Moustierense, a colecta dos fósseis torna-se
mais frequente; são conservados ora como peças isoladas, ora para serem integrados
no fabrico de ferramentas: Combe-Grenal, La Ferrassie e La Plane, no Périgord (em
França), a gruta da Hiena, em Arcy-sur-Cure, também em França; Schweinskopf-
Karmelengerg, na Alemanha; Skhul e Qafzeh, em Israel, fornecem alguns exemplos.
Um numulite com cem mil anos, encontrado no sítio Moustierense Antigo de Tata (na
Hungria), foi decorado com uma cruz gravada em cada um das suas faces. O
Micoquiano (Acheuliano Final) da gruta de Külna, na República Checa, forneceu um
fragmento de resina fóssil. Um nucleu* do sítio Moustierense de Tercis-les-Bains, na
região francesa das Landes, inclui também ele um ouriço posto em relevo pela talha.
Os últimos Neandertais perpetuam a apanha dos fósseis nos níveis Châtelperronianos,
nomeadamente na gruta de Arcy-sur-Cure.
A colecta e a utilização esporádica desses elementos ensinam-nos assim que os
primeiros homens possuíam o sentido da forma e da cor e que estavam dotados de
uma certa fineza de toque; o comportamento deles parece estar próximo do nosso,
uma vez que continuamos a apanhar conchas e fósseis, que enchem os nossos museus.
Foram, efectivamente, as formas, a cores, a estrutura mais ou menos simétrica e
geométrica, a textura dos objectos, o seu aspecto por vezes luzidio, a suavidade ao
toque das superfícies polidas, a densidade da matéria que torna estas pedras
espantosamente pesadas na cova da mão, que captaram a atenção dos primeiros
homens – bem como a natureza ao mesmo tempo animal e mineral dos fósseis e a sua
origem aparente, frequentemente aquática. A seu carácter de raridade confere-lhes
importância, o que igualmente constituiu um carácter atractivo. É divertido observar
que o «neuro-marketing», que se desenvolve no comércio actual, assenta em dados
biológicos perceptíveis desde o início da humanidade.
Sabemos hoje como se formaram os fósseis e os minerais; no entanto, o nosso
deslumbramento nem por isso se atenuou. É difícil para nós imaginar a dimensão que
estas formações naturais terão tido no espírito dos nossos antepassados. Ao colocar
de antemão a questão da sua «autoria», tê-los-ão sem dúvida introduzido no domínio
das crenças, dos mitos e dos símbolos. Nas nossas tradições folclóricas modernas,
estes fósseis são muitas vezes designados por «pedras-da-lua», «pedras-do-sol»,
«pedras-de-raio», «pedra-da-lídia», etc. O sobrenatural junta-se espontaneamente a
estes estranhos presentes do firmamento que os Homo erectus começaram a moldar à
sua maneira. A mestria com que os primeiros artesãos talharam peças em torno de um
fóssil, sem o danificar, provoca admiração. A sua integração numa ferramenta
confirma o poder do fóssil que decora o instrumento, insuflando-o com uma força
sobrenatural, uma eficácia nova e mágica.
Coleccionador de corantes naturais Os corantes utilizados durante a pré-história são essencialmente matérias minerais
negras ou encarnadas. O único que pode ter sido utilizado e que deixou vestígios nas
jazidas antigas é o carvão de madeira, que seria comummente empregue mais tarde,
na arte parietal do Paleolítico Superior. Infelizmente, a distinção arqueológica entre
um resto de lareira e um carvão enterrado podendo ter servido de corante é
praticamente impossível.
O uso dos corantes encarnados – o carácter atractivo desta cor é universal – precedeu
o dos negros. Os pré-historiadores designam genericamente com o termo «ocre» uma
grande diversidade de substâncias contendo óxidos de ferro e cuja cor varia do
amarelo ao encarnado.
A primeira aparição de uma pedra de cor viva num sítio arqueológico foi assinalada
na África do Sul, em Makapansgat. Trata-se de um seixo de jasperite, uma variedade
de jaspe, descoberto num nível datado de três milhões de anos, segundo Raymond
Dart. Este seixo não chamou a atenção unicamente pela sua cor vermelha mas
também pela sua forma estranha, evocadora de uma face humana. Um Australopiteco
percorreu uma distância de vários quilómetros para trazê-lo até ao seu habitat. A
atracção pelos minerais encarnados parece estar inscrita nos comportamentos
biológicos dos primatas, antes mesmo da emergência do homem verdadeiro, isto é,
antes do aparecimento do género Homo.
Na África Oriental, esse berço da Humanidade constituído pelos planaltos etíope e os
desfiladeiros de Oldoway, na Tanzânia, duas descobertas merecem ser relembradas.
No sítio Acheuliano Antigo de Gaded, datado de 1,5 milhões de anos, a presença de
fragmentos de basalto erodidos, que quando esfregados produzem um pigmento
encarnado, permitem pensar que o Homo erectus pôde já, nesse tempos remotos, ter
utilizado tais pigmentos.
Dois nódulos encarnados de tufo vulcânico rubificado foram descobertos por Louis
Leakey, em 1958, nos desfiladeiros de Oldoway. Há mais de um milhão de anos,
esses detritos, então recolhidos como simples curiosidade, foram trazidos para o sítio
pelo Homo erectus.
Figura 3:
Seixo de jasperite encarnado de Makapansgat, na África do Sul, com três milhões de
anos.
Depois, em todo o Mundo Antigo, durante as centenas de milhares de anos do
Paleolítico Antigo, matérias corantes foram regularmente recolhidas pelo Homo
erectus.
Deu-se uma expansão generalizada do uso dos corantes no decurso do Paleolítico
Médio, tendo-se ainda intensificado no final desse período: em Tata, na Hungria, uma
lâmina de marfim de mamute polida carrega as marcas de um pigmento encarnado, tal
como em Molodova, na Ucrânia. As omoplatas de mamute da planície russa,
frequentemente gravadas e pintadas a vermelho, constituem uma tradição
moustierense ainda praticada na Morávia dos anos 22 mil e 29 mil antes dos nossos
dias.
O uso do corante torna-se sistemático no conjunto da área povoada pelos homens de
Neandertal, do Próximo Oriente (Israel, Líbano) até ao sudoeste europeu e,
particularmente, no sudoeste francês (nas jazidas do Périgord).
Na África do Sul, o pigmento encarnado é amplamente utilizado nessa época.
Numerosas grutas-habitat desse país (grutas de Mambata, de Pomongwo, de Klasies
River Mouth ou de Blombos) forneceram blocos de ocre gravados e milhares de
pedaços de ocre, todos utilizados... Na Namíbia, foram encontradas minas de
hematites (minérios de ferro que dão ocre vermelho), datadas de entre 100 mil a 40
mil anos. Na maior parte destas jazidas, são «proto-sapiens», isto é, precursores dos
homens de Cro-Magnon (ou «sapiens arcaicos»), que utilizam estes corantes.
A Austrália foi povoada há 60 mil anos e, durante esse mesmo período, os primeiros
colonos, Homo sapiens, possuíam já o domínio técnico do ocre vermelho e
esboçavam uma forma de pintura, como por exemplo na Terra de Arnhem.
Os modos de utilização das matérias corantes não cessaram de progredir.
Durante as primeiras centenas de milénios, uma simples apanha ocasional de «pedras
encarnadas» acompanhava a colecta de outras curiosidade naturais – minerais e
fósseis; talvez se efectuasse então alguma busca de materiais para o fabrico das
ferramentas.
Foram os acheulianos que, há 400 ou 300 mil anos, aproximadamente, começaram a
utilizar os ocres que tinham trazido para os seus habitats e empreenderam o seu
tratamento: as estrias e as facetas de uso encontradas em fragmentos de ocres revelam
que estes foram por vezes raspados para a obtenção de pó ou esfregados sobre uma
superfície dura como uma pedra ou mole como uma pele de animal ou humana.
Foram também os acheulianos quem terá transformado essas matérias ao inaugurarem
a prática da cozedura de certos ocres, como em Terra-Amata, em Nice. A calcinação
do ocre está ulteriormente atestada nos habitats moustierenses. Há que notar que se
encontraram, dessas épocas longínquas, abundantes provas materiais da utilização do
ocre vermelho como matéria corante mas que ainda não foram descobertas as marcas
correspondentes das pinturas ou dos motivos coloridos que podem ter sido efectuados,
porque os suportes sobre os quais esses pigmentos foram utilizados eram constituídos
por materiais perecíveis que desapareceram: tratava-se de pinturas sobre peles de
animais ou humanas, que não foram conservadas, ou então sobre rochedos ao ar livre,
que a erosão apagou. As primeiras manchas pintadas que chegaram até nós são
marcas e decorações em ossadas de mamutes da Hungria e da Rússia, datadas do
Paleolítico Médio (Tata e Molodova) e, sobretudo, as primeiras pinturas parietais do
Paleolítico Superior, conservadas graças à sua situação nas grutas.
Os trituradores de corantes, as mós e as pás (seixos ou blocos de calcário, de greda ou
de quartzito*), ligados a uma produção de pó sistemática e mais importante, surgem
há cerca de 150 mil anos, na Europa Ocidental.
Na época Moustierense, os homens (designados então «moustierenses») eram grandes
utilizadores de corantes. O conjunto de ferramentas ligadas à utilização enriquece-se:
no nível moustierense da gruta de Soyons, na região francesa de Ardèche, foi
descoberto um godé que continha ocre vermelho. As colectas diversificam-se, são
completadas pelos produtos negros do manganésio e do ferro, muitas vezes moldados
em forma de «lápis» (na realidade, pequenos nódulos com bicos afiados); também a
utilização do ocre se torna mais abrangente, já que, pela primeira vez, surge
ocasionalmente associada às sepulturas.
A utilização dos corantes é um fenómeno cultural perfeitamente circunscrito no
espaço e no tempo: 90 a 99 por cento dos corantes encontrados nas jazidas da segunda
metade do Paleolítico Médio, na região francesa de Périgord, são corantes negros
enquanto que, desde o período Châtelperroniano e até ao Aurignacense, ainda na
mesma região, essa percentagem inverte-se a favor do ocre vermelho. Fora desta
zona, nomeadamente no Moustierense da Europa ocidental, é o ocre vermelho quem
domina, e nenhuma manifestação do uso de corantes foi notada no Paleolítico Médio
germânico.
No conjunto do Moustierense ibérico, as fases mais recentes incluídas, o uso dos
corantes parece ter sido ora totalmente inexistente, como em Portugal e no Sul de
Espanha, ora bastante modesto, como na Cantábria. Desta feita, foram utilizados os
corantes encarnados, como no resto da Europa e do Mundo.
Pelo uso intensivo dos corantes, mais particularmente os negros, o Moustierense da
região do Périgord faz figura de excepção cronológica e geográfica. O progresso da
utilização dos corantes negros ao longo dos diferentes tipos de Moustierense poderia
indicar a existência, há 50 ou 40 mil anos, no Périgord, de um modo de pintura cuja
ocorrência foi concebida, em 1921, por Denis Peyrony, e, em 1952, por François
Bordes: tratava-se provavelmente de pinturas corporais, ou ainda de pinturas rupestres
realizadas dentro de abrigos que a erosão terá feito desaparecer.
Este fenómeno deve ser posto em paralelo com a multiplicação generalizada das
expressões simbólicas nesta época (inclusive no território do Sudoeste francês): ritos
de inumação, associação do corante e das sepulturas, marcas rítmicas sobre pedras
(cúpulas) e ossos, colecta episódica de fósseis e de minerais, primícias de adornos,
refinamentos tecnológicos e estética das ferramentas.
Antes mesmo do Châtelperroniano, ou simultaneamente, os moustierenses tinham
atingido o estádio evolutivo que autorizava a eclosão da arte das cavernas. De acordo
com o que se sabe hoje, estes povos não chegaram a realizar pinturas nas grutas
profundas quando já ornavam com cúpulas alguns blocos dos seus abrigos. Por outro
lado, e no mesmo momento, os australianos gravavam motivos figurativos nos
rochedos e realizavam, sem dúvida, pinturas. Se esta disjunção paralela ocorreu foi
porque, na Europa, os mecanismos sociais desencadeadores de tais práticas ainda não
tinham surgido.
Este substrato local, esta longa tradição estética moustierense explica o nascimento do
núcleo artístico aurignacense no vale de Vézère, há 35 ou 30 mil anos. A continuidade
das actividades artísticas entre o Moustierense e o Aurignacense é clara,
nomeadamente no abrigo de La Ferrassie, na região francesa da Dordonha.
Graças a outros mecanismos, e em contextos técnicos e estilísticos completamente
diferentes, em simultâneo mas de modo independente, a arte naturalista do Paleolítico
Superior surge igualmente na Europa média e no Leste de França (gruta de Chauvet),
ao mesmo tempo que noutras regiões do mundo.
Em 1968, Raymond Arthur Dart insistiu no simbolismo geral do ocre vermelho ao
lembrar que a palavra «hematite», frequentemente utilizada como sinónimo de «ocre
vermelho», deriva do grego haema, «sangue»; do mesmo modo, o termo inglês
bloodstone (literalmente, «pedra de sangue») é, também ele, equivalente ao ocre
vermelho. Segundo este autor, «o ocre vermelho, considerado como o sangue criador
da Terra-Mãe, é um dos mais brilhantes e mais frequentes simbolismos da
humanidade». E lembra ainda os numerosos usos medicais do ocre e as virtudes
curativas que lhe são atribuídas nas sociedades tradicionais.
Pelo seu lado, em 1980, Ernest Wreschner põe em evidência a importância do ocre
vermelho na evolução da humanidade. De acordo com ele, não é de admirar que o
encarnado tenha sido o primeiro corante utilizado porque, de entre todas as cores, esta
parece ser objecto de uma «preferência» humana quase geral, cuja base é
provavelmente genética. O autor sublinha igualmente a carga simbólica universal do
encarnado, frequentemente associado ao perigo e à morte, ao sangue e à vida e,
muitas vezes também, à procriação, às mães, à Terra-Mãe. A transformação, por via
do fogo, do ocre amarelo em ocre vermelho foi verosimilmente considerada em todos
os tempos como uma operação mágica, reforçando ainda mais os poderes dessa
matéria.
Os corantes não são substâncias banais e a intensificação e diversificação da
utilização dos ocres e de outros pigmentos, ao longo das centenas de milénios que
constituem o passado da humanidade, ilustram provavelmente o desenvolvimento
cognitivo e simbólico dos homens: «A percepção do encarnado e a discriminação das
cores conduzem a acções que acarretam novas experiências e novas aprendizagens.
Um aspecto do processo cognitivo é a atribuição de um sentido a certos objectos, a
certas matérias, e foi o caso do ocre. A criação de um sistema de relações resultou na
elaboração das estruturas socioculturais. Uma dessas relações pode ter sido expressa
pela pintura corporal que, como meio de assinalar, terá contribuído para a coerência
do grupo.» (Ernest Wreschner9).
É possível conceber uma utilização polissémica dos corantes no Paleolítico Médio,
como é ainda o caso em algumas sociedades caçadoras recolectoras da actualidade:
«nas culturas matrilineares da África Central, por exemplo, o encarnado pode
significar “pai”, “mulher”, “homem”, “mediador”, certas “categorias de parentes”, o
“arco-íris”, a “manhã”, o “nascimento”, as “emoções”, o “desejo sexual”, o “poder
místico”, os “ritos de passagem”, etc. , conforme a situação e o contexto em que essa
cor é utilizada.» (Anita Jacobson-Widding10).
Assim se vê a importância de evitar um ponto de vista demasiado simples ou parcial
sobre estas questões difíceis.
O ocre vermelho e o óxido de manganésio negro (ou o carvão de madeira, que não
deixou vestígios materiais) podem ter sido ambos utilizados para pinturas corporais.
O simbolismo do negro devia ser então muito diferente do encarnado.
Tal uso dos corantes, a sua presença intermitente nas sepulturas, isto é, num contexto
ritual, não deve fazer esquecer que estas substâncias, que foram sem dúvida
poderosos símbolos socioculturais, puderam ter outros usos em domínios da vida
quotidiana. Nesses casos, o seu carácter religioso ou mágico é menos aparente mas
não inexistente: utilização como abrasivo, na técnica da gravura, para o curtimento e a
raspagem das peles, protecção contra o frio, etc.
9 Ernest Wreschner, «Red ochre and human evolution: a case for discussion», Current Anthropology, n.º 21, 1980, pp. 631-634. 10 Anita Jacobson-Widding, «Red-white-black as a mode of thought; a study of triadic classification by colours in the ritual symbolism and cognitive thought of the people of the lower Congo», Uppsala Studies in Cultural Anthropology 1, Stockholm, Almqvist och Wiksell, 1979.
A propósito, nos domínios da pré-história e da etnografia, a impossibilidade de
excluir a dimensão simbólica dos actos mais simples da vida quotidiana é bem visível.
Colecta das matérias primas para o fabrico das ferramentas Os mitos dos Aborígenes australianos explicam a formação das rochas utilizáveis para
o fabrico de ferramentas, enquanto outros mitos orientam esse mesmo fabrico. Assim,
na Austrália, o aprovisionamento, a talha e o uso das ferramentas de pedra são
considerados actos sagrados que reactualizam os trabalhos dos heróis do Tempo do
Sonho, sendo frequentemente acompanhados de ritos e cantos tradicionais. Terá sido
certamente assim em todos os períodos da história humana.
A colecta, o transporte e a utilização de rochas exógenas – de origens longínquas e
difíceis de talhar –, mostram que, ao longo de toda a pré-história, imperativos não
utilitários, não funcionais, preocupações propriamente estéticas e associadas a crenças
primaram com frequência sobre o conforto e a eficácia.
O sílex, é certo, bem como outras rochas comuns facilmente disponíveis, constitui o
material de base para o fabrico das ferramentas, mas, desde muito cedo, os homens da
pré-história foram atraídos pela diversidade mineralógica das rochas, pela variedade
dos seus aspectos e cores, pelas suas texturas mais ou menos finas, pela sua maior ou
menor aptidão a serem talhadas – tal como haviam sido, aliás, atraídos pela
diversidade das formas e cores dos fósseis e minerais.
Não só tal rocha estava destinada ao fabrico de tal tipo de ferramenta, como parece
que, ao variarem as cores e as origens das pedras, para lá da sua respectiva vocação
tecnológica, os primeiros artesãos terão desejado diversificar as matérias primas com
que trabalhavam. O conjunto de ferramentas que dispunham oferece frequentemente
uma cintilante paleta com uma variedade infinita de matizes em tons de amarelos,
encarnados, castanhos e negros, aos quais se mesclam, por vezes, o branco, o azul, o
verde; são ainda sílexes manchados com tiras de cores vivas ou tonalidades esbatidas,
rochas polidas ou granulosas. Tal como o terá sido, sem dúvida, o homem pré-
histórico, o pré-historiador é sensível, por exemplo, ao efeito produzido pela presença
de raspadores em jaspe amarelo dourado e em sílex negro de azeviche, originários do
Cretáceo! Que precioso bem poderia constituir uma rocha proveniente de uma terra
ou de uma tribo longínqua? De que poder mágico poderia estar investida?
Nas indústrias de Oldowayen, na Tanzânia, a abundância das ferramentas talhadas em
magníficos blocos de lava verde mostra que, numa data remota, os hominídeos eram
já sensíveis às cores dos materiais que utilizavam.
Jan Jelinek relata que «os australianos e os índios da América têm em conta não só a
qualidade dos materiais, como também o seu aspecto estético11», sendo que os
aborígenes preferem, por exemplo, utilizar pedras de belas cores para o fabrico de
pontas de lança.
Uma outra noção à qual voltaremos, por considerá-la importante e porque releva
igualmente do domínio da estética, é a mestria da talha, a perfeição técnica e formal
das ferramentas bem feitas, que não eram forçosamente mais eficazes do que
ferramentas mal acabadas.
A beleza da maior parte das ferramentas pré-históricas salta logo à vista: é demasiado
evidente para não ter sido desejada pelos seus criadores, uma vez que as ferramentas
são as primeiras criações dos homens. Não esqueçamos que uma atracção pelas belas
ferramentas e belos materiais, característica simultaneamente do coleccionador e do
mestre artesão, contribuiu para fundar a própria ciência e favoreceu o encontro entre o
pré-historiador e o homem da pré-história, do qual não se pode negar a proximidade
de certas disposições.
Insistamos ainda sobre a beleza das ferramentas ao citar as seguintes linhas de
Jacques Tixier sobre a indústria Ateriana de Aïn Fritissma, em Marrocos –
equivalente magrebino de um moustierense final, datando de 40 mil a 30 mil anos,
sensivelmente –: «Variedade e beleza dos materiais utilizados, pureza técnica notória
da maioria das peças e sucesso de talhas excepcionais fazem dela a “série de vitrina”
ideal.12» O autor sublinha «a variedade dos coloridos da matéria prima: sílex em
raspas ou plaquetas, apresentando uma ampla gama de tons: cinzento-malva pálido,
translúcido, caramelo, por vezes muito translúcido, manchado de camurça, cinza
marmoreado, branco tipo “leite coalhado”, púrpura-rosa, negro antracite, branco
marmoreado de rosa, jaspes encarnados e “verde-cinza”, camurça com patina
ferruginosa raiada de azul e amarelo, verde e ferrugem, calcedónia, argilito. Os
artesãos desta série escolheram indiscutivelmente a sua matéria prima, não só
procuraram as rochas boas para talhar como também as mais agradáveis à vista. O
11 Jan Jelinek, Encyclopédie illustrée de l’homme préhistorique, Paris, Grund, 1979. 12 Jacques Tixier, «Les industries lithiques d’Aïn Fritissa (Maroc oriental)», Bulletin d’archéologie marocaine, t. III, 1959, pp. 107-244.
sílex de muito boa qualidade era abundante, o que não os impediu de irem em busca
de rochas menos fáceis de talhar, como os jaspes, os argilitos ou as calcedónias».
É, efectivamente, difícil não considerar estas cintilantes séries como as «paletas» dos
primeiros artistas.
O jaspe
Os jaspes multicolores – ocre-amarelos, salpicados ou raiados de negro, castanhos e
encarnados – dos quais inúmeros seixos cobrem a vertente ocidental do Maciço
Central francês e o leito dos rios que daí partem, foram comummente procurados
pelos moustierenses da margem oriental da região da Bacia da Aquitânia. Foram
particularmente utilizados nos célebres sítios de Corrèze, como Chez-Pourré, Chez-
Comte e La Chapelle-aux-Saints.
Na estação moustierense de tradição acheuliana e na moustierense típica de
Fontmaure (Viena, em França), escavada por Louis Pradel, a grande maioria das
ferramentas é em jaspe opala de origem local. É provável que a jazida de jaspe tenha
fixado o habitat. Esta soberba matéria multicolor, que faz de cada objecto que produz
uma verdadeira jóia, provém da areia sobre a qual se instalaram os moustierenses
numa data relativamente tardia da sua evolução. Mas, como nota Pradel, as
dificuldades de talha são grandes, porque surge frequentemente uma quebra na zona
de passagem de uma cor para a outra. É por isso evidente que os moustierenses de
Fontmaure privilegiaram a beleza em detrimento da solidez da matéria prima.
Todavia, para o fabrico das pontas (armações de lanças que sofriam choques) optaram
pelo sílex de Grand-Pressigny, na região de Indre – uma rocha mais homogénea e
resistente, mas igualmente esplêndida, com a sua cor de mel mais ou menos malhada
que, mais tarde, no início dos tempos proto-históricos, viria a ser objecto de um
comércio em larga escala.
Rochas ainda mais preciosas e raras, difíceis de encontrar, de cores vivas e qualidades
mineralógicas excepcionais, como o cristal de rocha*, a obsidiana, a calcedónia, a
ágata, o topázio ou a opala, atraíram igualmente os talhadores de ferramentas, isto
bem antes do Paleolítico Superior.
O cristal de rocha
O cristal de rocha, também designado «quartzo hyalino*», é extremamente duro.
Límpido como o vidro, apresenta-se sob a forma de cristais de sílica pura cobrindo
geodes e fissuras do soclo cristalino (Maciço Central, Pirenéus, etc.), ou sob a forma
de seixos enrolados nos aluviões dos rios. Apesar de muitas vezes se encontrar
intimamente fissurado, sendo, afinal, pouco propício para a talha, este minério foi
procurado e utilizado de maneira discreta mas quase contínua ao longo de centenas de
milénios.
Em todo o Mundo Antigo, a utilização esporádica do cristal de rocha regista-se
durante uma grande parte do Acheuliano; mas, tal como as matérias corantes e os
fósseis, é frequentemente trazido e conservado no habitat no seu estado natural não
modificado, isto é, sob a forma de cristais poliédricos.
Apesar de excepcional, a utilização do quartzo hyalino, para a talha de uma
ferramenta tão elaborada como um biface cordiforme* de há 700 mil anos, foi
referida por Jacques Tixier a propósito do Acheuliano antigo do erg13 Tihodaïne, em
Marrocos. Um biface foliáceo foi fabricado neste material pelos Micoquianos da gruta
de Külna, na República Checa. A frequência do cristal de rocha na formação das
ferramentas aumenta de seguida nos sítios moustierenses, entre os quais se pode citar,
por exemplo, Solignac, na região francesa de Haute-Loire, Montgaudier, na Charente
e La Baume-Bonne, nos Alpes-de-Haute-Provence. Mas é principalmente no
moustierense da Corrèze que é utilizado para o fabrico de ferramentas particularmente
cuidadas, na Chapelle-aux-Saints e, sobretudo, em Chez-Pourré, Chez-Comte, onde
foram recenseadas umas cinco dezenas de peças, nomeadamente uma belíssima série
de raspadores e pontas, algumas feitas num cristal fumado que produz o mais belo
efeito.
Fora de França, a presença do cristal de rocha surge mencionada por Marcel Otte no
moustierense da gruta Scladina, na Bélgica, e por Jan Jelinek, no Micoquiano da gruta
de Külna – que forneceu, designadamente, uma bela ponta talhada nesse material.
Os Homo erectus coleccionaram ocasionalmente, portanto, os cristais prismáticos de
quartzo hyalino, tendo-os excepcionalmente talhado e transformado em bifaces.
Depois, foram os Neandertais quem utilizou com maior frequência essa matéria prima
no fabrico de certas ferramentas, atribuindo-lhe, provavelmente, um valor mágico ou
simbólico.
O gosto pelo cristal de rocha manteve-se no Paleolítico Superior bem como noutras
épocas e regiões do mundo. Folhas de loureiro solutrenses, de rara beleza, realizadas
13 Termo tuaregue adoptado pela geografia internacional, significa «deserto de dunas» (n. do t.).
num cristal de rocha cintilante, podem ser classificadas entre as obras de arte da pré-
história. Em 1923, foram interpretadas como «objectos rituais», por Givenchy.
Para curar os doentes, tal como os xamãs himalaicos, os medicine men australianos
praticam conjurações com a ajuda de cristais de quartzo hyalino.
A obsidiana e as pedras raras
A obsidiana apresenta-se como uma outra rocha de grande beleza utilizada no
Paleolítico Antigo e Médio e sobretudo, depois, no Neolítico e durante a proto-
história, durante a qual foi objecto de um comércio mediterrâneo de grande extensão.
Este vidro de vulcão de cor escura, muito homogéneo e fino, aliando beleza e
adaptação perfeita para a talha, foi utilizado em diferentes épocas nas regiões
vulcânicas do globo onde era acessível.
A partir de 1,4 milhões de anos, a obsidiana torna-se o material de predilecção dos
Acheulianos e, depois, dos homens do Paleolítico Médio de Melka-Kunturé, na
Etiópia. Leakey concebeu a existência de um sistema de troca na África Oriental
baseado nos bifaces de fina obsidiana de Kariandusi (no Quénia).
Em 1927, Joseph de Morgan sublinhou «a qualidade excepcional da obsidiana da
Arménia. Certos blocos são transparentes e muito pouco fumados, outros são de um
negro azeviche, e outros ainda transparente mas cheios de inclusões pretas. Por fim,
encontra-se uma grande quantidade deste blocos compostos por um vidro negro
raiado de encarnado, ou completamente vermelho.» Este autor refere-se a uma série
de raspadores, pontas e discos moustierenses em obsidiana, provenientes de estações
de superfície nas encostas do vulcão Alagheuz, na Arménia. Mais recentemente, a
gruta de Erevan, na mesma região, forneceu uma rica indústria moustierense típica,
em sete níveis, da qual todas as peças são feitas de obsidiana local.
Pelo contrário, na Europa, e no resto da Ásia, a obsidiana não parece ter sido
empregue no Paleolítico Antigo ou Médio. Não existem jazidas de obsidiana em
França.
Na gruta de Kundaro I, na Geórgia, as escavações levadas a cabo pelo Instituto de
Arqueologia de Leningrado revelaram uma indústria com 700 a 500 mil anos de idade
que continha uma peça excepcional: o carácter raro desta pequena lesma em obsidiana
advém-lhe do facto de essa rocha só se encontrar no estado natural a uma centena de
quilómetros do lugar onde foi encontrada, o que implica um transporte inabitual.
Entre as pedras preciosas e raras mencionadas nalgumas jazidas, citemos um
magnífico topázio encontrado no Moustierense de Sergeac, na região francesa da
Dordonha, e a opala e o jaspe encontrados no sítio Paleolítico Antigo de
Zhoukoudian, na China.
Poder-se-ia somar à lista das curiosidades as pedras-pomes do Acheuliano e do
Moustierense do tipo Quina Combe-Grenal, na Dordonha, que, contrariamente aos
minerais metálicos e aos fósseis, puderam agradar pela sua espantosa ligeireza e
diversas propriedades.
Primeiras formas, primeiras ferramentas: poliedros,
esferóides e bifaces
O fabrico das primeiras ferramentas pelo homo habilis ou Australopitecos, há cerca de
2,7 milhões de anos, na África Oriental (no vale do Awash, na Etiópia), implicava, a
montante, a existência de um projecto intelectual.
Essas ferramentas, lascas e seixos preparados, constituíam os elementos de base da
civilização dos seixos trabalhados, também designada «Pebble Culture» ou
«Oldowayen». As necessidades de aparelhamento de então limitavam a fortuitidade:
era preciso escolher os seixos de dimensão conveniente, de forma geralmente
achatada, provenientes de uma rocha pronta a ser talhada. Isto implicava a projecção
de uma imagem mental do objecto desejado sobre a matéria bruta. Gestos e formas
produzidas foram depois identicamente repetidos durante mais de dois milhões de
anos.
Às simples lascas juntaram-se os «choppers», seixos possuidores de um cortante mais
ou menos sinuoso obtido por via da retracção num único dos lados, e os «chopping
tools» (ou choppers bifaces), cujo cortante é obtido através da retracção em ambos os
lados.
Nesta indústria já estandardizada apareciam, ao lado dos tipos comuns, formas mais
elaboradas: seixos ou nódulos de pedra talhados em toda a sua superfície, chamados
«poliedros», e, mais tarde, «bifaces».
Poliedros e bolas Ao longo do Paleolítico Antigo ou Médio, entre os seixos talhados do Acheuliano e
do Moustierense, e ao lado das lascas, choppers, bifaces e outras variedades de
ferramentas, aparecem bolas de pedra enigmáticas que os pré-historiadores designam
«poliedros», «sub-esferóides», «esferóides» ou «bolas*» (abreviação: PSSB).
Segundo François Bordes, «são objectos em sílex, quartzito, etc., de forma geralmente
poliédrica, tendendo para a forma esferoidal». Encontram-se desde o início do
Paleolítico, do Vilafranquiano de Aïn Hanech, na Argélia, até ao Acheuliano Superior
ou ao Moustierense de tradição acheuliana de Bihorel (na região francesa de Seine
Maritime), estão presentes no Acheuliano de Gafza (Tunísia) e no Moustierense de
Aïn Méterchen (na Tunísia). O seu uso é problemático. Talvez desempenhassem o
papel de bolas?14»; quanto às bolas propriamente ditas, trata-se de poliedros cuja
superfície foi inteiramente piquetada e regularizada por bujardada*.
Os PSSB constituem aquilo a que, hoje, os especialistas da tecnologia da pedra
designam «cadeia operatória»: a bola, que é uma esfera quase perfeita, está de facto
virtualmente contida no poliedro, sendo ele próprio uma esfera aproximativa – ou
uma esfera em devir. A cadeia pode ser parada em qualquer um dos estádios que a
constituem. É por isso que, dependendo das jazidas, encontram-se mais poliedros,
esferóides, bolas, ou uma combinação de vários destes tipos.
Parece, todavia, que a relação entre o número de poliedros e o número de bolas se
inverte ao longo do tempo: só os poliedros se encontram nos sítios mais antigos (Aïn
Hanech, na Argélia, por exemplo); surgem depois acompanhados de bolas, que se vão
tornando progressivamente mais numerosas no decurso do Acheuliano, enquanto a
proporção de poliedros diminui; por fim, as bolas tornam-se quase exclusivamente
presentes no Moustierense recente. Constituem um aperfeiçoamento dos poliedros
que certos acheulianos e os moustierenses realizaram com maior frequência do que os
seus predecessores do Paleolítico arcaico – sendo que estes parecem tê-los ignorado
durante muito tempo.
Voltemos à descrição destas peças espantosas. Os poliedros são esferas grosseiras
com facetas desbastadas (ou seja, cuja parte superficial foi retraída), em grandes
lascas, sobre toda a superfície de um bloco, de um seixo ou de um nódulo de forma
originalmente arredondada. Têm muitas vezes a dimensão de uma laranja e pesam
várias centenas de gramas, chegando mesmo a um quilograma.
Estes objectos, que se encontram em todo o continente africano e numa grande parte
da Eurásia, aparecem há cerca de dois milhões de anos em África, isto é, várias
centenas de milénios antes dos bifaces. Estão nomeadamente presentes no Oldowayen
das gargantas de Oldoway, no conjunto do Magrebe, na África do Sul e em todo o
14 François Bordes, Typologie du Paléolithique ancien et moyen, Paris, ed. CNRS, 2000.
Acheuliano africano. Acompanham as migrações do Homo erectus para o Próximo
Oriente, antes do milhão de anos, para a Europa Oriental, para o conjunto da Europa
e, em particular, para França, onde são contemporâneos da glaciação rissiana...
Como dissemos, no decurso da sua longa história, as bolas facetadas aperfeiçoaram-se
gradualmente para se transformarem, cada vez mais frequentemente, em bolas.
Estas últimas surgem ao lado de poliedros no Acheuliano Antigo de Oldoway,
sensivelmente no mesmo momento que os primeiros bifaces; podem ser consideradas
um aperfeiçoamento introduzido pelo Homo erectus. Abundam no conjunto do
Acheuliano africano e, depois, nos seus prolongamentos do Paleolítico Médio, no
Acheuliano e no Moustierense do Próximo Oriente, na Ásia... Reencontram-se ainda
no Acheuliano europeu, nomeadamente no cascalho do rio Somme, onde foram
assinaladas por Jacques Boucher de Perthes nos socalcos do vale do Aisne e,
finalmente, em grande número em todo o Moustierense Ocidental.
A utilização destas bolas de pedra fez correr muita tinta. A maior parte dos autores
sublinhou que não podiam ser confundidas com os nucleus, nem com os percussores*,
mas que talvez se tratasse de pedras de jogo ou, antes, de pedras de arremesso para a
caça. Para apoiar esta tese foi invocado o facto de uma dessas bolas ter sido
encontrada fendida em dois fragmentos conservados juntos, em Quina (região
francesa de Charente), o que alimentou a hipótese de que um invólucro de pele de
animal cercava a bola, tal como acontece com as bolas dos gaúchos das pampas
argentinas. Mas outros autores espantam-se com o número elevado destes objectos em
certos meios e com as suas dimensões por vezes estranhas: o Acheuliano de Sidi
Abderrhaman (em Marrocos) forneceu bolas de 30 centímetros de diâmetro, com um
peso superior a dez quilogramas. Outras bolas, feitas de argila, não puderam, também
elas, ter sido utilizadas como pedras de arremesso.
A disposição em monte de algumas delas bem como a sua associação com os
depósitos de ferramentas leva a pensar que se trata por vezes de objectos de culto.
Estas enigmáticas bolas (que puderam, é certo, ter tido diversas utilizações das quais a
traceologia* nada revela) convidam os pré-historiadores a pôr freios à sua imaginação
e a considerar modestamente que se encontram tão só na presença de «bolas de
pedra»! Convidam-nos ainda a lembrarem-se do aviso de Jacques Boucher de Perthes,
o pai da pré-história que, desde 1849, considerava as bolas de pedra dos cascalhos
quaternários do rio Somme como «símbolos», porque «algumas exigiam um trabalho
demasiado considerável para meras pedras de arremesso».
A simples existência destes esferóides desde o dealbar da humanidade não constitui
só por si um fenómeno de grande importância?
Poliedros, esferóides e bolas ocupam um lugar à parte na história humana, porque
representam as primeiras criações de formas geométricas. Há mais de 2 milhões de
anos, o homem concebeu a ideia da esfera e tentou concretizá-la através de um duro
labor, num material resistente. A pedra cedeu diante da vontade do espírito e da mão,
e a vitória foi tanto mais bela quanto pode ter sido gratuita! Contrariamente ao que foi
dito muitas vezes, pensamos que, desde o início, o homem foi capaz de criar uma
forma perfeita simplesmente por prazer, tendo podido depois descobrir-lhe possíveis
utilizações.
No seu estudo sobre esquemas conceptuais e cadeias operatórias dos artesãos do
paleolítico (sendo «artesão» um termo vizinho de «artista»), Pierre-Jean Texier
mostrou que os PSSB foram «construídos a partir de conceitos geométricos e
volumétricos», mais precisamente partindo da «busca de um volume regular repartido
em torno de um ponto virtual15». Mostrou ainda que «a aquisição de uma forma
poliédrica a esférica tinha sido obtida por organização da feitura em torno de um
centro de equilíbrio tendendo para um centro de simetria verdadeira».
O fabrico de um poliedro efectuava-se com um percussor de pedra, ao desbastar um
bloco ou um seixo através de retracções superficiais em toda a camada exterior,
evitando ao máximo a perda de matéria e utilizando a cicatriz de uma retracção
anterior como plano de golpe para a retracção seguinte. A experimentação confirmou
o cuidado extremo que o fabricante tinha para simplesmente «pelar» o nódulo,
evitando um encetamento demasiado profundo na matéria. O poliedro é portanto uma
bola com facetas irregulares cujo centro de gravidade (ou «centro de equilíbrio») se
situa no seio do volume que ele constitui.
Quando a feitura se prossegue para além deste estádio, para chegar aos estádios
intermediários dos esferóides e sub-esferóides, e depois à esfera quase perfeita da
bola, outras operações intervêm para esbater as arestas e regularizar a superfície
inteira do objecto: a piquetagem com um percussor e, depois, a bujardada sobre uma
bigorna.
A regularização do poliedro, guiada pelo esquema mental da esfera, conduz a um
deslocamento progressivo do centro de gravidade que vem colocar-se no centro 15 Pierre-Jean Texier, «L’Acheuléen d’Isenya (Quénia)», La Vie préhistorique, Société préhistorique française, Dijon, ed. Faton, 1996, pp. 58-63.
geométrico da bola tornada perfeitamente redonda. Um objecto simétrico
relativamente a um ponto central é assim criado. É a primeira simetria realizada pelo
homem no decurso da sua história.
Ainda segundo Texier: «O que pode, numa primeira abordagem, parecer um objecto
grosseiro, produto de um aparelhamento inorganizado é, na realidade, uma diligência
complexa que faz apelo a noções de simetria e a inovações técnicas.» Uma diligência
tão complexa quanto o fabrico de um biface.
Os bifaces Como o nome indica, os «bifaces» são ferramentas em forma de amêndoa,
trabalhados nas suas duas faces; são munidos de uma ponta afiada e de uma base
geralmente arredondada, por vezes não talhada e conservada, o que permite uma boa
preensão. Esta ferramentas, dotadas de um cortante periférico, podem ser fabricadas a
partir de um nódulo, de um bloco, de um seixo ou de uma grande lasca.
Os primeiros bifaces derivam dos seixos talhados: retracções periféricas em torno dos
seixos produzem choppers discóides; retracções compactas suplementares
transformam-nos progressivamente em bifaces. Pode também conceber-se a origem
dos bifaces em poliedros.
As suas dimensões máximas escalonam-se entre 30 e 5 centímetros e o seu peso
oscila entre dezenas e algumas centenas de gramas – alguns ultrapassam mesmo, por
vezes, o quilograma.
Os bifaces surgem no Acheuliano Antigo da África Oriental, no sítio de Oldoway, há
cerca de 1,4 milhões de anos. No entanto, alguma formas muito rudes, baptizadas
«proto-bifaces», foram assinaladas em indústrias oldowayanas mais antigas; segundo
Bar Yosef, a partir de 1,7 milhões de anos, as populações de Homo erectus produzem
indústrias de bifaces e indústrias de lascas e choppers que reaparecem em momentos e
meios diferentes. Os bifaces somam-se, portanto, às indústrias de lascas e seixos
trabalhados, sem fazê-los desaparecer. A proporção de bifaces varia enormemente de
um sítio para o outro.
Nem por isso o biface deixa de ser uma peça «símbolo do Acheuliano», devendo ser
considerado como uma invenção espectacular do Homo erectus, que o leva consigo na
sua colonização da Eurásia, ao mesmo tempo que as indústrias de lascas e seixos
trabalhados. Os primeiros bifaces surgem assim no Próximo Oriente há mais de um
milhão de anos. A tradição destes artefactos, amplamente desenvolvida na Índia, não
se propagou até à Ásia Oriental; e, na Europa Ocidental, manifesta-se apenas desde há
700 mil anos. Numa forma mais reduzida, o biface persiste até ao final do Paleolítico
Médio, nomeadamente na Europa. A tradição do biface propriamente dito interrompe-
se então, mas diversas pontas foliáceas perpetuam a técnica da talha bifacial que faz
diversas reaparições no decurso do Paleolítico Superior e no início da proto-história.
Na sua forma típica, a par do chopper e do poliedro-bola, o biface é a ferramenta que
teve a mais ampla e longa utilização de toda a história humana.
Apesar do modelo desta ferramenta se ter transmitido através dos milénios e pelos
vários continentes, a sua função exacta permanece incerta. A traceologia não nos dá
mais informação sobre as utilizações dos bifaces. Antepassadas do moderno canivete
suíço, estas ferramentas eram certamente multifuncionais, servindo simultaneamente
para cortar, raspar, perfurar, bater. Os bifaces eram geralmente segurados pela mão. A
sua longevidade, a sua universalidade, o cuidado tido na sua concepção e
transformação por vezes em verdadeiras obras de arte, a quantidade e,
frequentemente, a qualidade da matéria que requeriam para o seu fabrico podem
parecer surpreendentes se os compararmos com a facilidade de obtenção de
ferramentas mais especializadas e com melhor desempenho (lascas, raspadores,
pontas...), cuja produção foi, no mesmo momento, igualmente abundante. Como
muitos autores já o afirmaram, o biface não responde certamente apenas a
necessidades materiais. Imperativos socio-religiosos deverão ter desempenhado um
papel essencial na sua produção e longevidade.
Os primeiros exemplares são peças grosseiras cujo cortante é mais ou menos sinuoso;
são talhadas com um percussor duro (um seixo de quartzo, por exemplo). Depois, a
partir do Acheuliano Médio, as peças afinam-se, a sua silhueta torna-se mais elegante,
os retoques mais ligeiros e os rebordos mais rectilíneos. O uso do percussor macio
(em matéria orgânica, como a madeira ou o osso), que apareceu há uns 500 mil anos,
explica um tal progresso.
Uma espantosa variedade de materiais foi utilizada para o fabrico dos bifaces: toda a
espécie de pedras preciosas, vulcânicas ou até calcárias, de grãos e cores muito
diferentes, foram empregues. Alguns bifaces foram, inclusivamente, talhados em osso
compacto de elefante pelos acheulianos de Itália e pelos paleolíticos antigos e médios
da Alemanha; a utilização dessa matéria difícil de trabalhar, relativamente tenra e que,
de qualquer modo, não oferece uma resistência equivalente à da pedra, leva a pensar
que não era a solidez nem a eficácia da ferramenta que eram procuradas. Talvez se
tratasse de instrumentos votivos ou simbólicos, cujo valor estava ligado ao do animal
que fornecia a matéria prima ou à proeza de que o artesão que trabalhava um material
excepcional devia fazer prova.
Vários pesquisadores elaboraram classificações de bifaces. Uma das mais utilizadas, a
de François Bordes, é muito detalhada, uma vez que inclui mais de uma vintena de
tipos diferentes de bifaces. A listagem é constituída a partir de quatro formas básicas:
oval, discóide, cordiforme e triangular.
Acheulianos e moustierenses não adoptaram indiferentemente todos estes modelos: as
formas que preferiram foram em particular os cordiformes e as ovais, com todas as
variantes e diferentes proporções segundo os lugares, sendo que triângulos e discos
ocorrem mais raramente. A passagem de uma forma a outra é frequentemente
progressiva, sendo as modulações e figuras intermediárias numerosas. Esta é a razão
pela qual Bordes fundou a sua tipologia em medidas precisas e relatos numerados,
fixando limites objectivos entre os diferentes tipos.
A extensão da gama dos bifaces revela o prazer com que os homens pré-históricos
jogaram com as formas; é ainda reveladora das suas proezas técnicas. As variações da
silhueta do biface acompanham as da respectiva espessura: certas peças, maciças, de
secção por vezes triangular (triedros), são obtidas por via do percussor duro, enquanto
o percussor macio permite obter formas ovalares alongadas, como «limandas»,
cordiformes oblongos, «amigdalóides*» – bifaces com rebordos côncavos são
qualificados de «lanceolados micoquianos» e outros, por fim, alongam-se e ganham o
nome de «ficrons*»...
No fabrico dos bifaces , os Homo erectus referem-se, pois, a formas geométricas
ideais que contêm curvas derivadas do círculo e da oval, ou comportando rectas
(como no triângulo), mas nunca têm a forma do quadrilátero: não existem bifaces
rectangulares. Foi, no entanto, encontrado, em Fontmaure, um biface que mostra que
os moustierenses não ignoravam completamente o quadrado.
A simetria perfeita que caracteriza a maior parte destas ferramentas reflectia um
processo ontogenético inerente à natureza do espírito humano. Esta mestria antiga da
simetria revela que o homem actual está provavelmente em gestação desde a mais alta
Antiguidade.
Vários investigadores pensam que o biface terá tido como modelo a mão humana: de
acordo com Kenneth P. Oakley, «com o dealbar do pensamento simbólico, o biface
terá inconscientemente representado uma terceira mão que, ao contrário da original
em carne e sangue, era capaz de cortar e despedaçar as carcaças dos animais
caçados16».
Tal simbolismo é plausível: à parecença morfológica com a mão soma-se uma
semelhança funcional; mas só pode tratar-se de um simbolismo muito geral.
A bem dizer, a semelhança com a mão é imperfeita, porque esta é assimétrica, quando
o biface, por seu lado, é simétrico. Preferimos pensar que, ao criar bifaces, o Homo
erectus procurava antes de mais incarnar os seus esquemas mentais na dura matéria;
antes mesmo de fabricar uma ferramenta, ele criava tão só uma forma. A forma
precedia a função.
Segundo Jean-Marie Le Tensorer, «o homem trabalha a matéria para lhe dar uma
forma satisfatória. Desde o início, essa forma terá tendência para apresentar uma forte
simetria. O Homem passou de artesão a artista; a simetria não é minimamente
necessária para a função da ferramenta, é um complemento estético17».
É claro que a primeira forma procurada e obtida na formação dos poliedros foi a
esfera; e foi, provavelmente, a partir do seu fabrico que o criador de bifaces produziu
o círculo, a oval e o triângulo; estreitando progressivamente a espessura das peças,
afastou-se do espaço a três dimensões do poliedro e tendeu para o espaço a duas
dimensões de uma forma plana imposta por um contorno.
Helène Roche e Pierre-Jean Texier mostraram concludentemente que a construção do
biface assenta no princípio de uma dupla simetria: «Uma morfologia é procurada por
via da adaptação simultânea de duas convexidades, de maneira a que uma seja feita à
imagem da outra, em função de um plano de equilíbrio bifacial. Da intersecção dessas
duas convexidades nasce uma silhueta alisada por via de retoques, que se distribui em
relação a um plano de equilíbrio bilateral.18»
Os dois planos de simetria são perpendiculares. O estreitamento da peça, consecutivo
sobretudo à intervenção do percussor suave, dá prioridade ao plano de equilíbrio 16 Kenneth P. Oakley, «Emergence of Higher thought, 3-0, 2 ma. b.q.», Philosophical Transactions of the Royal Society of London, b 292, 1981, pp. 205-211. 17 Jean-Marie Le Tensorer, «Les prémices de la créativité artistique chez Homo erectus», Mille fiori, Festschrift für Ludwig Berger, 25 de Agosto de 1998, pp. 327-335. 18 Helène Roche e Pierre-Jean Texier, «La notion de complexité dans un ensemble acheuléen, Isernia-Kenya», 25 ans d’études technologiques, bilan et perspectives, CNRS, 1991, pp. 99-108.
bilateral, isto é, ao contorno. Esta prioridade sublinha uma evolução maior: o homem
fabrica uma silhueta que ele domina perfeitamente; com o seu percussor de madeira,
desenha já uma forma abstracta, redonda ou angular, uma oval, uma amêndoa, um
coração ou um triângulo. Escultura que tende para o desenho, o biface testemunha das
capacidades de abstracção do Homo erectus; mostra igualmente que a abstracção está
na origem da arte.
Empenhada há mais de um milhão de anos pelo Homo erectus no fabrico das suas
ferramentas, a dialéctica do volume e do plano reencontra-se ao longo de todo o
Paleolítico, até à arte figurativa do Paleolítico Superior com as suas estatuetas sem
face oculta, as suas decorações sobre o tronco cilíndrico das armas e das ferramentas,
os seus perfis de animais integradores de volumes rochosos sobre as paredes das
cavernas. Este jogo só alcança a proeminência perfeita do plano num número restrito
de obras parietais ou móveis realizadas em perfil absoluto sobre uma superfície
regular, em finas gravuras sobre as faces planas dos ossos (omoplatas). Os «contornos
recortados» magdalenianos e as pinturas e gravuras parietais sugerem o volume em
trompe-l’oeil, ou seja, dão ao plano, através de um artifício gráfico, uma profundidade
que lhe falta.
Sublinhemos aqui um facto importante: as obras planas, os puros desenhos num
suporte anónimo, são minoritárias no conjunto das produções paleolíticas europeias: a
arte dos primeiros artistas, como a da natureza, é uma arte total que se desdobra no
espaço e associa todas as técnicas: traço, escultura, volume, matéria e cor.
Na Austrália, em contrapartida, desde o início da arte rupestre, há cerca de 50 mil
anos (apenas), afirma-se uma arte do plano com tendência geométrica e decorativa
que continua a ser a dos grandes artistas aborígenes australianos actuais. É uma arte
de caçadores habituados a ler as pegadas no solo, radicalmente diferente da arte
ocidental de tendência realista que, desde a sua origem, dá um grande espaço ao
volume e à matéria. A ausência de integração das formas do relevo e de verdadeiras
esculturas sem face oculta na arte pré-histórica australiana sublinha as diferenças
entre os dois mundos artísticos da Europa e da Austrália.
Voltemos aos bifaces. Alguns refinamentos tecnológicos excepcionais e determinados
contextos das descobertas mostram claramente as espantosas capacidades do espírito
humano de há centenas de milénios para cá. Assim, no deserto da Síria, em
Nadaouiyeh, as investigações de Jean-Marie Le Tensorer revelaram mais de dez mil
bifaces em níveis datados de 500 mil anos! Cada uma dessas peças, quase sem
excepção, é uma obra de arte. Tal produção maciça de uma ferramenta particular, que
alia a perfeição formal ao esplendor do material, responde a uma necessidade
espiritual que ultrapassa a função utilitária. Revela a existência de uma tradição
estético-mitológica de «obras-bifaces», numa duração aliás limitada a algumas
centenas de milénios, como bem mostra a estratigrafia do sítio, com a produção de
bifaces comuns, menos numerosos e frequentemente sumários, retomando depois o
seu curso normal.
Quase no mesmo momento, em Espanha, um magnífico biface em quartzito
encarnado foi descoberto entre a trintena de esqueletos do poço da Sima de los
Huesos, em Atapuerca. Esta peça, realizada num material escolhido, é provavelmente
uma oferenda depositada ao lado dos mortos que eram atirados para um poço
funerário; o contexto atesta um comportamento altamente simbólico da parte dos
ante-neandertais, há cerca de 400 mil anos!
Assim, a produção das primeiras ferramentas, que são as primeiras obras de arte,
revela que, sem qualquer incitação exterior, sem referência a qualquer modelo, o
intelecto humano produz por si próprio esquemas abstractos que são a fonte da arte.
Dissimetria e estética funcional A simetria não constituiu uma regra intangível para o artista-artesão das origens: ele
apreciava o jogo! O seu amor pelas gamas formais condu-lo de tempos a tempos para
fora dos caminhos trilhados. Em muitas sítios, no meio de bifaces tradicionais,
surgem algumas peças dissimétricas associando voluntariamente um rebordo convexo
e um rebordo côncavo. Não é por serem destros ou canhotos que os acheulianos
fabricam bifaces dissimétricos: o seu carácter bifacial permitia efectivamente que tais
instrumentos fossem indiferentemente utilizados por um ou outro tipo de manejador.
Estas peças respondem, pois, provavelmente ao simples prazer de criar novas formas
e de efectuar o exercício técnico e plástico que isso supõe. Entre as ferramentas
comuns do Paleolítico arcaico, figuram já lascas dissimétricas em que um rebordo
natural ou embotado se opõe a um cortante: trata-se de raspadores ou de pontas
«desalinhadas», sendo que o eixo do objecto perfaz um ângulo com o eixo da lasca na
qual está moldado, o que resulta por vezes num desequilíbrio de conjunto da peça.
Estamos aqui na presença de um fenómeno cultural, uma vez que os raspadores
desalinhados podem ser muito frequentes localmente, como por exemplo no período
de Yabroud, na Síria, que data de cerca de 200 mil anos. Note-se que a eficácia deste
tipo de ferramenta, sobretudo quando se trata de uma peça de mão, como um
raspador, é igual à de uma ferramenta perfeitamente simétrica.
Raspadores bifaces dissimétricos, designados «prondniks», existem igualmente no
Micoquiano Oriental da Europa Central.
Pelo contrário, a dissimetria das pontas podia impedir a sua utilização como ponta de
dardo ou de lança. Certas pontas, destinadas a armar a extremidade de um dardo,
deviam ser perfeitamente simétricas. Com elas, reencontramos a noção de «estética
funcional», associando a beleza e a eficácia na sua acepção mais actual, «ou seja, a
procura no fabrico das ferramentas das formas belas e mais eficazes, tal como hoje as
formas mais aerodinâmicas» (Leroi-Gourhan19).
Pedras-figuras, estatuetas e máscaras No século XIX, juntamente com sílexes talhados, Boucher de Perthes recolhera nos
aluviões do rio Somme um grande número de pedras curiosas que tinha interpretado
como «os símbolos dos primeiros homens», testemunhando uma «necessidade inata
de religião». Na sequência disto, os pré-historiadores desconfiaram bastante destas
«pedras-figuras» que respondem à projecção de uma imagem mental numa forma
natural – projecção, que pode estar na origem da arte. Em pré-história, para que uma
«pedra-figura» possa ser tida em conta enquanto tal, é preciso que testemunhe, de
uma maneira ou de outra, de uma intervenção humana: deverá ter sido descoberta
num nível arqueológico e deverá possuir-se a prova de que foi objecto de um
transporte intencional ou então terá de comportar os estigmas indiscutíveis de um
retoque ou de um esboço de trabalho humano como prolongamento da obra da
natureza, completando-a com o objectivo de perfazer a sua figuração. É o caso, como
já vimos, da pedra-figura encarnada de Makapansgat (África do Sul), representada na
figura 3 (p. 00), evocando um rosto humano e que um australopiteco transportou e
trouxe de volta para o seu habitat.
19 André Leroi-Gourhan, Les Hommes de la préhistoire, Paris, Bourrelier, 1955.
É também o caso de uma figurinha israelita: no decurso de umas escavações, em
1981, no sítio acheuliano a céu aberto de Berekhat Ram, um pequeno nódulo de tufo
vulcânico de 3,5 centímetros de altura e 2,5 centímetros de largura foi descoberto por
Naama Goren-Inbar. A sua situação em níveis datados por via de métodos
radiométricos permite estimar a sua idade entre os 250 e 280 mil anos. Trata-se de
uma pedra-figura retocado pelo homem para acentuar a sua semelhança natural com
uma silhueta feminina de formas generosas. Apesar do cepticismo de alguns
investigadores, vários especialistas que efectuaram um exame microscópico da peça
estão de acordo para reconhecer a existência de algumas raspagens sobre o peito, os
ombros, o pescoço e os braços da figura representada.
Figura 4:
Proto-figurinha acheuliana de Berekhat Ram (Israel), com, aproximadamente, 280 mil
anos.
Ao tomar conhecimento das imagens e das informações entregues por esses
especialistas experimentados, é impossível não nos espantarmos não só com a
extraordinária datação desta «estatueta» como, sobretudo, com a sua estranha
parecença com as Vénus do Paleolítico Superior – igualmente caracterizadas por um
porte maciço e caracteres sexuais acentuados –, tendo as mais antigas uma idade
compreendida entre 25 e 28 mil anos.
Como explicar esta semelhança geral? Tratar-se-á de uma simples convergência? Ou
será que os homens conseguem encontrar a mesma imagem simbólica da mulher a
centenas de milénios de distância? A tradição das imagens femininas estende-se
efectivamente sobre o conjunto dos tempos pré-históricos e reencontra-se em
civilizações do mundo inteiro; a sua emergência no Paleolítico Antigo não deveria,
por isso, espantar-nos.
Uma outra pequena proto-escultura* do mesmo tipo foi assinalada num nível
acheuliano, datado de 400 mil anos, na jazida de Tan-Tan, em Marrocos. O seu
estudo, ainda em curso, deverá confirmar se o seixo foi ou não também ele retocado.
No dealbar do Paleolítico Superior, um nível proto-aurignacense de Srbsko, na
Boémia, ofereceu uma outra figurinha, esculpida num osso de grande mamífero, que
parece apresentar-se como um marco no caminho conduzindo às figurinhas
antropomórficas estilizadas do Paleolítico Superior Antigo. Trata-se de uma estatueta
muito rudimentar, uma das mais antigas obras de arte da Europa. Parece, com efeito,
apegar-se a uma tradição de estatuetas, muito primitivas, em marfim, do Paleolítico
Superior Antigo e do Aurignacense Ocidental, que terá persistido até às figurinhas em
metacárpico de mamute da Morávia, que são, todavia, mais recentes (27 mil anos).
Entre as primeiras figurinhas animais do mundo, uma cabeça datada de cerca de 34
mil anos, esculpida numa vértebra de rinoceronte lãzudo, foi descoberta na Sibéria. É
contemporânea das figurinhas animais do Aurignacense germânico.
Num habitat de finais do Moustierense, situado na gruta de Achon, em La Roche-
Cottard, na região francesa de Indre-et-Loire, um bloco de sílex triangular, com 10
centímetros de lado e 4 centímetros de espessura, foi encontrado apresentando uma
perfuração natural na qual uma esquírola óssea foi inserida e fortemente bloqueada;
os rebordos da peça foram regularizados por via de retoques e o conjunto faz
irresistivelmente pensar numa face humana, ou antes, uma máscara. Como em
Berekhat Ram, tratar-se-á de uma curiosidade natural trazida de volta a um habitat,
tendo a sua vocação formal sido acentuada por um trabalho humano, de modo a
transformar o objecto numa verdadeira figuração humana.
Assim, no estado actual dos conhecimentos, excepção feita a certas ferramentas –
bifaces, poliedros ou bolas –, as criações humanas a três dimensões anteriores ao
Paleolítico Superior são raras no conjunto do mundo.
As poucas peças recenseadas pertencem ao Acheuliano e ao proto-aurignacense. Em
todos os casos, trata-se unicamente da exploração superficial de formas naturais
minimamente retocadas e completadas, revelando já uma tendência figurativa discreta
que se afirma particularmente na cabeça de urso de Tobalga, esculpida sem face
oculta, e que é a mais recente destas peças.
Marcas e estrias
Desde o nascimento da sua disciplina, os pré-historiadores viram-se confrontados com
o delicado problema da interpretação das marcas observadas nas ossadas de animais.
Esforçaram-se de imediato para distinguir as marcas provocadas por fenómenos
naturais daquelas feitas pelo homem, que podiam trazer a prova da antiguidade deste
último (que, na época, ainda não estava demonstrada) e da sua contemporaneidade
com espécies animais desaparecidas. Estas distinções foram primeiramente muito
incertas e alguns investigadores puderam mesmo defender a existência do homem na
época terciária, hipótese errada e depressa refutada.
Foi o doutor Henri Martin quem, entre 1906 e 1936, no seu longo e rigoroso estudo da
jazida moustierense de Quina, na região francesa de Charente, desenvolveu a primeira
verdadeira aproximação científica ao trabalho do osso realizado pelos homens pré-
históricos.
Ele reconheceu a fragilidade dos limites entre marcas de utilização e marcas
intencionais, quer sejam decorativos, quer respondam a uma qualquer outra
necessidade de ordem intelectual ou espiritual; a posição regular das incisões nem
sempre é, com efeito, significativa, uma vez que pode resultar de um trabalho de
descarnação do osso. Só a comparação e o contexto arqueológico podem esclarecer a
interpretação de cada peça, uma interpretação que, apesar de tudo, permanece
frequentemente conjectural.
Em 1933, na linhagem das investigações de Henri Martin e com o mesmo rigor e o
mesmo espírito crítico, o paleontólogo Pei Wen-Chung, pesquisador nas escavações
da jazida de Zhoukoudian, na China, publicou uma obra abundantemente ilustrada
sobre «o papel dos animais e das causas naturais na quebra dos ossos».
Recorrendo a numerosos exemplos oriundos dessa famosa jazida do Paleolítico
Antigo, que acabava de lhe oferecer o primeiro esqueleto de Sinantropo20, o autor
apresenta uma grande variedade de marcas feitas nas ossadas pré-históricas pelos
carniceiros e roedores contemporâneos dessas ossadas – bem como pela acção das
águas infiltradas nos níveis arqueológicos. Estudou ainda as vermiculações* de
origem microbiana ou vegetal, as marcas de raízes e as dissoluções químicas pela 20 O Sinantropo é um hominídeo da espécie Homo erectus.
água de infiltração, que aumentam os foramens naturais do osso, abrem perfurações e
coloram até por vezes o osso como se se tratasse de pintura. Ele descreve os ossos
rolados, usados, polidos pelos agentes naturais bem como os que se encontram
quebrados ou riscados por efeitos mecânicos no interior dos sedimentos, fenómenos
hoje designados pelo termo «trampling»*. Com humor, apresenta ainda incisões feitas
por dentes de ursos e de hienas, que se assemelham «a inscrições em caracteres
chineses», e vermiculações numa tíbia de lobo, que simulam uma «gravura
representando uma avestruz e o seu ovo»!
São numerosos os paleontólogos e pré-historiadores que, ainda hoje, continuam
certamente a meditar sobre os ensinamentos de Henri Martin e Pei Wen-Chung – os
primeiros a denunciar claramente as armadilhas que as marcas ósseas podiam tecer
aos especialistas em busca das origens da arte e do pensamento simbólico...
Foi, no entanto, numa armadilha deste género que caíram, há apenas um quarto de
século, uma série de investigadores entre os mais célebres.
Em 1969, numa publicação, o professor François Bordes apresentou, ao lado de um
osso perfurado, um fragmento de costela de bovídeo ornado de «gravuras
intencionais» provenientes da jazida de Pech de Azé II, na região francesa de
Dordonha, e que fora descoberto num nível bem anterior ao Moustierense: um nível
acheuliano datando de, sensivelmente, 300 mil anos! O objecto foi regularmente
citado pelos especialistas durante os vinte anos subsequentes. «O osso gravado do
acheuliano de Pech de Azé II» tornava-se assim uma peça de referência, atestando um
nível intelectual inesperado no Homo erectus... Em 1977, o célebre especialista
americano Alexander Marshak publicou um estudo aprofundado e uma interpretação
das gravuras do osso de Pech de Azé II, «nas quais vislumbrava a origem de uma
vasta e longa tradição do meandro» ligada ao simbolismo da água, podendo até alguns
desses traçados representar «rios irreais», «trajectos evocando viagens xamânicas»...
Coube a Francisco d’Errico e Paola Villa, em 1997, pôr termo «às viagens
xamânicas» dos «gravadores acheulianos» ao demonstrar, por via de uma análise
microscópica e anatómica comparativa aprofundada, que essas pretensas gravuras, na
realidade, não passavam de impressões deixadas pelos vasos sanguíneos na superfície
de uma costela de bovídeo!
Útil lição de modéstia para todos, sublinhando que os maiores especialistas também
se enganam: o estudo actual das marcas ósseas reclama uma grande precaução e uma
diligência rigorosa que recorre a várias disciplinas e métodos de observação muitas
vezes sofisticados.
Assim, de acordo com o actual estado do conhecimento, durante várias centenas de
milénios, os Homo erectus, os neandertais e os proto cro-magnóides realizaram estrias
em inúmeras ossadas com finalidades extremamente diversas, entre as quais as mais
comuns foram o despedaçamento e a descarnação dos animais de caça. Dentre estas
estrias – cerca de setenta casos –, algumas, com um aspecto mais complexo e mais
organizado, foram interpretadas como sendo «intencionais e simbólicas», sem que
uma prova formal tivesse sido fornecida a favor de tal hipótese. É o caso, em
particular, do grande sítio acheuliano de Bilzingsleben, na Alemanha, que, no
decorrer de escavações notavelmente levadas a cabo, forneceu um impressionante
conjunto de marcas ósseas, verosimilmente acidentais e nas quais muitos viram
«marcas semânticas», «simbólicas», «vestígios de ritos arcaicos» e até «uma gravura
de felino associada a signos geométricos» – mas estas interpretações subjectivas não
resistem a um exame atento.
Algumas peças excepcionais, cujo número tem vindo a aumentar graças às buscas
modernas, apresentam porém grafismos geométricos, verosimilmente simbólicos.
Trata-se, nomeadamente de: fragmentos ósseos ornados oriundos de La Ferrassie, na
região francesa da Dordonha (Moustierense), cuja figura abaixo representada
reproduz um exemplar, com os seus traços paralelos escalonados; um osso da gruta de
Peyère, na região dos Altos-Pirenéus franceses (Moustierense); um osso de Bacho
Kiro, na Bulgária, que apresenta caibros (Paleolítico Médio); uma falange de
cervídeo, ao que parece, de Turské Mastale, na Boémia, com motivo geométrico
(transição Paleolítico Médio/Superior); e um osso de Blombos, na África do Sul, com
motivo geométrico (Paleolítico Médio). Estes fragmentos atestam que certos
Neandertais e proto cromagnóides estavam próximos do patamar que marca o advento
da grande arte da Idade da Rena, dezenas de milénios antes do surgimento desta.
Figura 5:
Osso com incisão, descoberto no abrigo de La Ferrassie, na Dordonha, datando do
Moustierense (altura: 12 centímetros).
Estrias e incisões sobre pedras Os traços incisos são menos numerosos em pedras do que em ossos. Apenas uma
quinzena de sítios forneceram mais de vinte peças, no total.
Dúvidas idênticas às das marcas ósseas rondam algumas destas incisões. Causas
naturais podem explicá-las: deslizes de terrenos que provocam fricções com outras
rochas, o calcar sobre os solos pré-históricos provocando o fenómeno de trampling, já
descrito, tiveram sobre as pedras o mesmo efeito que sobre os ossos; há que somar-
lhes, por vezes, arranhões de animais; em contrapartida, roeduras e dentadas podem
felizmente ser eliminadas da lista dos fenómenos explicativos destas marcas, bem
como as estrias de descarnação, tão frequentes nos ossos.
Quando as estrias encontradas nos ossos são profundos entalhes dispostos
regularmente, pode ser vislumbrada uma acção humana; mas é então necessário
estabelecer a diferença entre estigmas de uma operação utilitária e traçados efectuados
com uma intenção gráfica, talvez simbólica; com efeito, determinadas pedras podem
ter sido utilizadas para proteger a palma da mão contra o cortante das ferramentas, ou
contra a picada das agulhas durante os trabalhos de recorte e de perfuração das peles
ou de reparação das redes de pesca; tais acções produziram marcas involuntárias
nessas pedras.
Foram, no entanto, observadas estrias em pedras apresentando uma organização de
aspecto intencional nas jazidas do Paleolítico Antigo, nas gargantas de Oldoway, em
África; o sítio acheuliano de Terra-Amata, em Nice, datado de cerca de 380 mil anos,
forneceu vários seixos que parecem ter sido voluntariamente incisos. Foram
descoberto seixos incisos em níveis de finais do Paleolítico Inferior de Baume-Bonne
(na região francesa dos Alpes-de-Haute-Provence), de Markleeberg (Alemanha) e da
Grotta dell Alto (Itália).
No Moustierense, estas marcas parecem tornar-se mais numerosas; pode citar-se
algumas ferramentas cujo córtex ostenta traços aparentemente gravados: um raspador
em sílex de Hermiès, na região francesa de Somme; um raspador em calcário da gruta
do Observatório, no Mónaco; um instrumento biface em quartzito da gruta de Isturitz,
nos Pirenéus Atlânticos. Há também seixos incisos provenientes do sítio moustierense
de Combe-Grenal, na Dordonha, de Chez-Pourré e Chez-Comte, na Corrèze, e da
estação de Erd, na Hungria; mencionemos ainda um fóssil gravado do Paleolítico
Médio de Tata, também na Hungria. O Moustierense do abrigo de Axlor, em Dima,
Espanha, forneceu uma pequena pedra de greda semi-esférica que, no seu lado plano,
apresenta duas cúpulas e uma ranhura mediana que lhe dão o aspecto de uma face
humana grosseira. O Moustierense21 de Qafzeh, em Israel, continha uma ferramenta
de pedra com incisões mais ou menos paralelas.
Deste conjunto, insuficientemente estudado, destacam-se três peças significativas que
se inscrevem na lista das gravuras anteriores ao Paleolítico Superior:
– na Gruta de Temnata, na Bulgária, foi trazido à luz um fragmento de xisto datado de
cerca de 50 mil anos (transição do Paleolítico Médio para o Paleolítico Superior),
ornado com um motivo geométrico gravado – uma das mais antigas manifestações
gráficas sobre pedra na Europa;
– no sítio de Brno-Bohunice, na República Checa, um seixo gravado foi encontrado
num nível de transição datado de 42 mil anos;
– no sítio a céu aberto de Quneitra, em Israel, foi descoberto um córtex de sílex com
traços organizados; a indústria associada é o Moustierense levantino, datado de 53
900 anos (mais ou menos 5 900 anos), período durante o qual os homens de
Neandertal e os homens de tipo moderno coabitaram na região e adoptaram a mesma
cultura – o Moustierense. Esta peça é constituída por uma plaqueta de 7,2 centímetros
de comprimento máximo, ostentando incisões concêntricas em semi-círculo, dispostas
com intervalos regulares; trata-se de um motivo cujo traçado geométrico é
programado e controlado.
21 Moustierense: cultura do Paleolítico Médio da Europa e do Próximo Oriente. Na Europa Ocidental, o Moustierense é a cultura dos homens de Neandertal e, no Próximo Oriente, é a cultura comum aos homens de Neandertal e aos primeiros homens modernos, que são vizinhos e contemporâneos.
A primeira arte rupestre do mundo: as cúpulas
O bloco com cúpulas de La Ferrassie Um grande bloco de calcário macio cobria a sexta sepultura moustierense do abrigo
de La Ferrassie, na Dordonha, escavado em 1921 por Louis Capitain e Denis Peyrony.
Essa sepultura em fossa continha os restos de uma criança neandertalense de três
anos.
Os autores das escavações «retiraram o bloco, voltando-o». Notaram então, «na face
interna do mesmo, uma vintena de cúpulas que só podiam ser o resultado de um
trabalho humano».
Concluíram: «A partir de uma fase do Moustierense, os homens traçavam já na pedra
cúpulas absolutamente idênticas àquela que reencontramos numa época mais recente,
no Aurignacense e, mais tarde, nos meios paleolítico e neolítico. Pela sua execução e,
sobretudo, pela sua disposição, estes furos parecem ter tido um carácter sinalético,
simbólico, talvez até ritual.22»
Esta descoberta capital forneceu o testemunho mais sólido de uma expressão
simbólica, precedendo o Paleolítico Superior – situa-se na origem da arte rupestre
europeia em finais do Paleolítico Médio, há uns 40 mil anos.
As condições da descoberta não permitem qualquer dúvida sobre a posição
estratigráfica do bloco e das suas cúpulas e sobre a sua atribuição ao Moustierense.
Por sorte, o bloco ficou conservado no museu nacional da pré-história, em Eyzies,
França, onde o estudámos para efectuar um relatório. O contexto excepcional e a
carga sagrada desta descoberta merecem ser sublinhados. Associadas a um túmulo,
voltados para a fossa e para o morto, essas cúpulas não podem corresponder a uma
preocupação material; são eminentemente simbólicas e rituais. O carácter do sítio de
La Ferrassie – um abrigo sepulcral que forneceu sete sepulturas no total e
comportando estruturas enigmáticas (fossas e montículos) – confere o mesmo
significado ao osso ornado precedentemente descrito e que está associado à sepultura
n.º 1.
22 Louis Capitan, Denis Peyrony, «Station préhistorique de La Ferrassie, commune de Savignac-du-Bugue (Dordogne)», Revue anthropologique, n.º 22, 1912, pp. 76-99.
A tradição das cúpulas desenvolve-se seguidamente nos níveis aurignacenses do
mesmo abrigo e em outros sítios da região, para reaparecer em diversas épocas na
Europa e na arte rupestre do mundo inteiro.
As cúpulas da Índia e o dealbar da arte rupestre asiática A gruta de Daraki-Chattan, no vale do Chambal (a Oeste de Madhya Pradesh, na
Índia) acaba de ser alvo de um estudo aprofundado realizado por uma equipa de
investigadores indianos e australianos. Este estudo trouxe dados científicos novos
sobre a existência de uma arte rupestre no final do Paleolítico Antigo. As duas
paredes dessa pequena cavidade, aberta num quartzito muito duro de época primária,
estão cobertas de cúpulas. Há alguns anos, Giriaj Kumar elencou mais de quinhentas,
tendo mostrado que a sua repartição parecia geralmente anárquica, excepção feita a
alguns alinhamentos de uma organização local em semi-círculo. Este autor recolheu
igualmente na superfície do solo algumas ferramentas de quartzito atribuíveis ao
período Acheuliano, o que é bastante frequente nesta região da Índia. Em 2004-2005,
foram realizadas escavações na gruta na base das paredes que incluem as cúpulas. Os
resultados foram espectaculares: várias placas carregando cúpulas, provenientes da
esfoliação das paredes, bem como vestígios de traçados parietais formados por
ranhuras profundas foram descobertos em níveis do Acheulinao Superior, contendo
um conjunto de ferramentas características de lascas, nucleus, choppers, bifaces e até
os percussores que serviram para realizar as cúpulas parietais e as ranhuras. Estes
trabalhos, acompanhados por medições de idade sobre os sedimentos, fornecem, ao
que parece, a prova de que o preenchimento acheuliano da gruta não foi perturbado e
que Daraki-Chattan é, sem dúvida, a mais antiga gruta ornada do mundo descoberta
até hoje! De acordo com a indústria associada, datará de finais do Paleolítico Antigo,
certamente à volta de 200 mil anos.
Esta descoberta confirma a existência muito antiga da arte rupestre, que fora já
anunciada com a descoberta do bloco moustierense com cúpulas de La Ferrassie. Na
Índia, as cúpulas são frequentes nos abrigos sob a rocha, mas a sua datação é muito
delicada porque só pode ser estabelecida por via de uma relação indiscutível com um
nível arqueológico.
A arte das cúpulas é abundante em todas as regiões do mundo, em todas as épocas,
mas sabe-se agora que se iniciou certamente há várias centenas de milhares de anos.
Figura 6:
Parede ornada de cúpulas artificiais datando de, aproximadamente, 200 mil anos,
encontradas na gruta de Daraki-Chattan, em Madhya Pradesh, na Índia. O diâmetro
médio das cúpulas é de 4 centímetros.
O adorno
A recolha e, depois, a utilização dos corantes naturais têm, como vimos, uma origem
extremamente antiga. Os dados arqueológicos tais como a escolha das matérias, a
preparação do pó, a cozedura do ocre, as estrias de utilização... permitem conceber a
existência, em diversas regiões do mundo, de pintura sobre pedra, madeira ou peles e,
consequentemente, também de pintura corporal, desde o Acheuliano, há várias
centenas de milhares de anos.
Elementos de adorno, pendentes e pérolas de colares foram igualmente descobertos
em níveis antigos, mas a sua identificação arqueológica é frequentemente delicada;
alguns investigadores sublinharam essa dificuldades. Também neste domínio, as
armadilhas para pré-historiadores são numerosas: a primeira diz respeito aos ossos
perfurados.
Algumas falanges de rena ou de outros cervídeos e alguns fragmentos ósseos
perfurados foram espontaneamente interpretados como pendentes. Um estudo
experimental sobre as marcas de uso das ferramentas demonstrara que os acheulianos
e os moustierenses perfuravam efectivamente a madeira e o osso... até que um
investigador americano descobriu, em 1990, num dejecto de coiote, uma falange de
cervo carregando marcas nítidas de roedura e uma perfuração redonda que era
claramente a marca de uma dentada do animal! Esta descoberta confirmava as
dúvidas levantadas por um certo número de perfurações verificadas em ossadas
acheulianas e moustierenses. Foi assim que, por exemplo, um fémur de urso com
perfurações múltiplas, encontrado numa jazida moustierense de Divje Babe, na
Eslovénia, primeiramente interpretado como uma flauta e como uma prova da
existência da música instrumental no Paleolítico Médio, foi rapidamente relegado
para o conjunto de ossadas mordidas e roídas pelos grandes carnívoros que
abundavam no Paleolítico. As hesitações e a prudência dos pré-historiadores nas suas
análises dos adornos foram ainda acentuadas pelos diversos trabalhos revelando que o
suco gástrico das hienas actuais produz grandes quantidades de perfurações ósseas
aquando da digestão das suas presas, perfurações visíveis nos ossos regurgitados!
Por outro lado, algumas peças foram interpretadas como adornos, quando as
perfurações que apresentavam eram de origem natural! É o caso, por exemplo, de
fósseis contendo furos, oriundos de uma exploração de cascalho de Bedford, em
Inglaterra; conchas perfuradas por vermes, em Boksteinschmiede, na Alemanha;
minúsculos fósseis crinóides com uma estrutura de perfuração central, do Acheuliano
de Gesher Benot Ya’aqov, em Israel... Em todos estes casos, a hipótese do emprego
como adorno de um objecto com perfuração natural é uma especulação sem
verdadeiro fundamento arqueológico.
Os estudos modernos com todas as suas observações experimentais e comparações
resultaram por fim na identificação de um pequeno número de peças que inscrevem o
aparecimento dos adornos pelo menos no Paleolítico Médio, numa época largamente
anterior à chegada dos homens de Cro-Magnon (grandes apreciadores de colares e
pendentes).
Diversas peças mencionadas em publicações recentes, que são verosimilmente
adornos, deveriam no entanto ser analisadas com métodos ainda mais rigorosos: por
exemplo, as pérolas acheulianas de El Greifa, na Líbia, em casca de ovo de avestruz,
fabricadas segundo um método surpreendentemente actual; e ainda os dentes de urso
com ranhuras do Moustierense de La Rochelle, na Dordonha, ou da gruta de Sclayn,
na Bélgica, cuja artificialidade das incisões e a respectiva correspondência com
métodos de suspensão continua ainda por demonstrar.
O pequeno lote de adornos moustierenses, ou mais antigos, podendo ser
indiscutivelmente retidos inclui: dois caninos de raposa perfurados do Moustierense
da la Quina, na região francesa de Charente, e de la Cova Beneito, em Espanha; duas
vértebras caudais de lobo perfuradas do Micoquiano de Bocksteinschmiede, na
Alemanha; um incisivo perfurado, de lobo, do Paleolítico Médio de Repolustöhle, na
Áustria. Os Neandertais do Châtelperroniano continuaram a fabricar alguns adornos
na gruta da Rena de Arcy-sur-Cure, que forneceu vinte e seis objectos perfurados:
dentes de raposa, de bovídeo, de marmota ou de urso. Este tipo de peças expandiu-se
depois, durante o Aurignacense.
Os pré-aurignacenses da Europa de Leste fabricavam regularmente adornos numa
época contemporânea ou até anterior ao Châtelperroniano, há cerca de 45 ou 40 mil
anos. Assim, a gruta de Bacho Kiro, na Bulgária, continha dentes perfurados, de
raposa e de urso; e da gruta de Istallöskö, na Hungria, provêm um pendente
pentagonal e uma imitação de canino de cervo em madeira de cervídeo.
Fora da Europa, uma importante descoberta foi recentemente feita na África do Sul.
Num habitat de protosapiens, na gruta de Blombos, a leste do Cabo, datada de cerca
de 75 mil anos, num nível contemporâneo do Paleolítico Médio Europeu, vários
pequenos amontoados de conchas perfuradas acabam de ser descobertos. São, no
total, quarenta e um exemplares do tamanho de grãos de bico, pertencentes à espécie
Nassarius kraussianus, que vive nos estuários; todas estas conchas são oriundas de
um rio que se situava a uma vintena de quilómetros do habitat. Foram, portanto,
transportados. O estudo microscópico estabeleceu que haviam sido perfurado
intencionalmente: as marcas de utilização revelam que foram usados sobre a pele ou
sobre uma roupa pintada de ocre vermelho. O seu ajuntamento em grupos distintos
indica que estamos na presença de diversos pequenos colares.
Em 2002, o mesmo nível forneceu corantes, uma plaqueta de ocre marcada com
estrias geométricas intencionais e um osso gravado.
O aparecimento dos adereços trabalhados assinala uma etapa importante na evolução
do homem. O adorno tem, com efeito, uma função simbólica e social: representa o
grupo ou o indivíduo, distinguindo-o dos demais. Destinado a ser visto e identificado
por todos, o adorno transmite uma mensagem implicando uma sociedade estruturada.
Exprime ainda um saber-fazer técnico e confirma a entrada do mundo animal
enquanto fornecedor de matéria-prima (ossos, conchas, madeira de cervídeos) no
mundo dos signos.
Na Europa, a produção dos primeiros adornos, em pequeno número, começa há cerca
de 45 mil anos. Foram os últimos Neandertais (moustierenses tardios e
châtelperronianos) a fabricá-los e, depois, sobretudo, os imigrantes Cro-Magnon
portadores da civilização Aurignacense.
Na África do Sul, as descobertas de Blombos confirmam a existência de
comportamentos estéticos, simbólicos e sociais bem antes do aparecimento do homem
de Cro-Magnon stricto sensu.
Figura 7:
Estes dois objectos foram encontrados na gruta de Blombos, na África do Sul. Foram
realizados por Homo sapiens arcaicos da Middle Stone Age, há 75 mil anos.
Em cima: colar de conchas de água doce perfuradas.
Em baixo: pequeno bloco de ocre vermelho decorado com gravuras geométricas.
Conclusão:
um salto qualitativo e não uma ruptura
Desde o início da sua longa história, o homem recolhe e colecciona as criações da
natureza: pedras com formas e propriedades curiosas, fósseis, minerais, matérias
coloridas e corantes... Não sendo exterior à natureza, não copia as criações naturais
que o fascinam mas, de antemão, entra na engrenagem do mecanismo universal e, por
sua vez, cria também. Afirma primeiramente o seu poder criador no fabrico de
ferramentas que, desde logo, ultrapassam as suas funções.
Essencialmente diferentes das ferramentas criadas por certos animais, a ferramenta
humana é antes de mais forma, volume, matéria. Há mais de dois milhões de anos, o
homem afirmava-se como tal, com o seu gosto inato pelas formas perfeitas, ao
inventar a primeira forma geométrica – a esfera –, concretização laboriosa e
verosimilmente inútil de uma ideia carregada de simbolismo.
No decurso das centenas de milénios do Paleolítico, do Homo habilis ao Homo
erectus, do Neandertal ao homem moderno, as ferramentas atestaram uma busca
sistemática de simetria – apresentando-se esta como um dado biológico sem função
utilitária, mas correspondente a um gosto pronunciado pelo equilíbrio e a harmonia.
As ferramentas materializam formas mentais que agradam: a oval, a folha, o círculo, o
triângulo, até mesmo o quadrilátero; e, desde 1,5 milhões de anos, os bifaces
ofereceram a síntese do plano, do volume, da matéria e da cor. No fabrico destas
ferramentas, o artesão pré-histórico não responde apenas a uma necessidade material
imediata: ele joga com as formas, as matérias e as cores, com subtis variantes que
frequentemente fazem da sua realização uma obra de arte única. Esta inclinação para
a estética irrompe por vez com esplendor, por exemplo na escultura dos bifaces de
Nadaouiyeh, na Síria. A vontade do artista é então excessivamente resplandecente e
inegável para não estar ligada a crenças: o biface encarnado de Atapuerca, cuja
matéria e cor são excepcionais, e que se apresenta como uma oferenda feita aos
mortos, sublinha, ela também, a dimensão simbólica da ferramenta, há já 400 mil
anos!
O criador do remoto Paleolítico vislumbra nas pedras-figura como uma vontade da
natureza que ele acompanha ao contribuir por vezes com alguns retoques para fazer
delas um começo de figurinhas, uma «proto-escultura». A «estatueta» de Berekhat
Ram, em Israel, e certamente também a de Tan-Tan, em Marrocos, mostram que uma
figuração foi por vezes reconhecida em formas naturais ou acidentais.
No decurso das eras, quantos achados espontâneos foram sem dúvida inconsequentes?
Os grafismos realizados a golpe de sílex sobre ossos ou pedras ou as estrias deixadas
pela faca do caçador despedaçando os animais de caça não foram mais do que formas
vazias, auto-suficientes, que nunca produziram senão a surpresa maravilhada, o
deleite do acto criador inesperado. Na inocência dos começos, houve, assim, durante
centenas de milénios, uma forma nativa de «arte pela arte»...
No entanto, o símbolo nunca foi muito longe. A dimensão simbólica pode ter
aparecido muito cedo na série de etapas, frequentemente complexas, que comporta o
fabrico da maior parte das ferramentas: escolha do material e da sua origem,
predestinação das formas, modos operatórios. Apesar de acidentais, as estrias de
descarnação deixadas sobre as ossadas na sequência das operações de corte e partição
da carne puderam, também elas, ser portadoras de uma carga simbólica oriunda do
contexto no qual eram produzidas.
Assim, na imensidão do tempo, descobertas de artesãos puderam encontrar um
conteúdo mitológico e sagrado para se elevarem ao nível de símbolos e obras de arte...
Estes acontecimentos foram certamente raros, porque os testemunhos deixados por
essas premissas artísticas são caracterizadas pelo seu isolamento e a sua dispersão
extrema no espaço e no tempo.
Detenhamo-nos, por um breve instante, na raridade destes testemunhos artísticos do
Paleolítico Antigo e Médio, e comparemo-los com a sua abundância no Paleolítico
Superior. Este contraste tem várias causas: a actividade artística intencional e
reflectida, que se constata desde a origem da linhagem humana, ter-se-á certamente
desenvolvido de modo progressivo ao longo do tempo, e a busca dos testemunhos
dessa actividade intensificou-se ela própria ultimamente. Os pré-historiadores estão
agora a tomar consciência da antiguidade dos comportamentos estéticos e simbólicos
e, doravante, os achados multiplicam-se. Mas muitos passaram despercebidos no
passado e continuam a escapar-nos ainda hoje. Numerosos testemunhos estão por
descobrir nas séries antigas de vestígios que deverão ser estudados com os métodos e
o rigor modernos.
Mas as variações climáticas ligadas à alternância das glaciações e dos aquecimentos
fizeram desaparecer muitos vestígios. No interior das grutas, as pinturas do Paleolítico
Superior foram conservadas, mas a arte rupestre ao ar livre, que pode ter existido
centenas de milénios antes, não conseguiu chegar até nós.
Apesar do seu número ainda reduzido – mas em constante aumento –, estes marcos,
que polvilham a longa história do homem, constituem a prova do seu gosto inato pela
beleza e libertam-no do espartilho materialista no qual uma certa pré-história se
esforça por encerrá-lo.
Nos finais do Paleolítico Antigo, em Darakhi-Chattan, na Índia, aquele que era um
sonhador de absoluto empreende já ornar as paredes da caverna em que habita com
miríades de cúpulas, pontuações escavadas, ideais, certamente rituais – assim emerge
a primeira arte parietal e o aparecimento da tradição mundial das cúpulas que se
expandiria ao longo de centenas de milénios. Talvez caia depois na noite do
esquecimento, mas os Neandertais de La Ferrassie, na Dordonha, irão recuperá-la e
transmiti-la aos Cro-Magnons, seus sucessores directos.
A secunda metade do Paleolítico Médio – a última centena de milénios – está
marcada por uma simbolização crescente das produções que se multiplicam nos
protosapiens de África e nos moustierenses europeus. Este período é caracterizado
pelas premissas da arte móvel e do adorno, o desenvolvimento das sepulturas
acompanhadas de oferendas; trata-se, pois, de uma arte sobretudo ligada ao corpo
humano, limitada ao indivíduo e ao seu imediato meio envolvente: o grupo e a
caverna. O biface prolonga a mão, as pinturas corporais e as tatuagens vestem a pele,
o ocre, cujo emprego se intensifica, decora os mortos e os vivos, as estrias e as
cúpulas ornam os ossos, os seixos e as pedras do habitat. Esta arte doméstica, ligada
ao quotidiano, ao corpo e à sua sobrevivência no Além, é também uma arte social,
estimulada por crenças: é o reflexo da mestria da técnica e do avanço espiritual que
permite doravante qualquer tipo de criação. Contém em germe a grande arte rupestre
do mundo.
O adorno, o uso dos corantes naturais e a decoração corporal são «os protótipos das
ates visuais». Na pintura corporal, «o corpo humano serve de pano de fundo sobre o
qual são impostos motivos culturais, a argila humana é trabalhada com um fim
cultural23». Este controlo da cultura sobre a natureza, esta vontade constante do
23 Ellen Dissanayake, Homo aestheticus, Seattle, University of Washington Press, 1995.
homem de concluir, à sua maneira, a obra «iniciada» pela natureza encontrará a sua
expressão magnificada nas figurações rupestres.
Na realidade, a passagem da decoração corporal (pinturas, tatuagens e adornos) para a
arte rupestre instituída não implica um salto intelectual tão grande quanto poderia
parecer, inscrevendo-se antes na continuidade das criações humanas. A arte pré-
histórica que decora o corpo e a pele humana estende-se às paredes das grutas e, ao ar
livre, às rochas da paisagem mas, na sua espectacular extensão, na sua invasão do
mundo subterrâneo na Europa, permanece uma arte total, a três dimensões, que
integra o espaço e realiza a síntese de todas as técnicas: utilização da cor, do volume e
da matéria.
A arte móvel do Paleolítico Superior, principalmente o europeu, iria marcar uma
tímida separação das técnicas – gravura, escultura e pintura, tão frequentemente
associadas anteriormente, tornar-se-iam mais autónomas, mais independentes. Este
era o meio privilegiado para o advento da arte a duas dimensões (o desenho), apesar
do facto de o «suporte» mineral ou animal sobre o qual se exercia nunca ser neutro. É,
aliás, o que distingue a arte paleolítica da arte dos períodos históricos.
Há 45 ou 35 mil anos, conforme as regiões do mundo, a arte rupestre, da qual um
primeiro brilho trazido por umas cúpulas indianas alumiara a noite dos tempos, nasce
ainda do encontro de uma capacidade e de uma necessidade:
– uma capacidade cognitiva resultante das disposições inatas do espírito humano para
produzir imagens mentais e símbolos, resultando também da acumulação das
experiências e das aquisições no decurso dos milhões de anos da sua história;
– uma necessidade nascida de contextos locais particulares (confrontação entre
humanidades diferentes, mudança do meio natural, etc.), suscitando crenças e práticas
rituais que, para serem cumpridas, põem em obra todas as potencialidades do espírito
criador.
Porque o seu advento é o culminar de mais de dois milhões de anos de produção e de
concretização de imagens mentais, a arte rupestre ou parietal não aparece nem como
uma ruptura, nem como um «big bang» cultural, mas antes como um simples salto
qualitativo. Apresenta-se de antemão como um fenómeno «fragmentado» no espaço e
no tempo, extremamente diversificado no plano estético. Não existe um «berço da
arte», tal como não existe um progresso nem uma progressão estilística ao longo do
tempo.
A heterogeneidade dos começos da arte está ligada à diversidade dos contextos do seu
aparecimento. Em situações favoráveis, a sua longa história, as suas experiências
acumuladas permitem-lhe emergir como uma arte consumada, mobilizando todos os
processos de criação, fazendo imediatamente coexistir figuração, abstracção, pintura,
gravura, sentido do espaço e do volume, numa profusão formal que, é claro, não
exclui as convenções estilísticas próprias aos diferentes grupos.
Na concepção das ferramentas, a forma ultrapassa a função: e o mesmo sucede com a
criação artística, ou seja, com a produção das «ferramentas espirituais» que são as
imagens, garantes da comunicação com os poderes sobrenaturais. A sua eficácia
mágica e simbólica implica uma explosão de beleza; o homem caracteriza-se desde
sempre pela vontade de se ultrapassar a si próprio em tudo o que empreende. Não se
contenta com o desenho de bisontes e cavalos: finalmente livre, numa expressão total
que abraça a paisagem, cria, na jubilação da beleza, a sua arte, levando a vida ao
mundo que o rodeia.
A arte figurada dos pintores e gravadores de paredes ilustra uma vontade humana de
empresa sobre o mundo. A apropriação territorial, a identidade cultural e técnica
afirmam-se na arte das paredes que expõe os ídolos e os estilos particulares, nos quais
cada grupo se reconhece como sendo diferente dos outros. Continuam hoje por
estudar, na Europa, os territórios culturais que a arte parietal contribuiu para desenhar.
O impulso da arte rupestre, que investe as sumptuosas construções da natureza –
montanhas, rochedos, vales e grutas –, traduz uma nova maneira de se considerar no
mundo, uma maneira que se atreve a colocar o homem no seio do edifício universal.
As imagens rupestres ofertas ao olhar estão assim ligadas à emergência das primeiras
cosmogonias, dos primeiros sistemas de crenças; assinalam uma nova etapa espiritual
ligada não ao advento de uma religião particular, mas a uma elevação do
comportamento religioso saído dos primeiros ritos, que torna doravante possíveis
todas as religiões. A arte rupestre responde a uma evolução do espírito que tem as
suas próprias leis e que é, em parte, independente da evolução biológica do cérebro.
Figura 8:
No início do Paleolítico Superior, a arte rupestre investe as grutas profundas
europeias, a partir de 50 mil anos, sensivelmente; aqui, o célebre painel de Pech-
Merle, datado de cerca de 25 mil anos, oferece um belo exemplo de pinturas rupestres
numa paisagem subterrânea com a qual desposam as formas naturais.
O próprio conceito de «nascimento» ou «origem» da arte pode, afinal, parecer
inadequado, uma vez que o homem é o artista por natureza e que a história da arte
começa e confunde-se com a do homem.
Nas suas pulsões e realizações artísticas, o homem exprime a sua vitalidade, a sua
capacidade de estabelecer uma relação benéfica e positiva com os seu meio
envolvente: ele humaniza a sua natureza. O seu comportamento de artista constitui um
dos caracteres selectivos favoráveis à evolução da espécie humana. Desde a sua
origem, o homem é, em todos os sentidos do termo, um «homo aestheticus», como o
afirmam igualmente, com convicção, a antropóloga americana Ellen Dissanayake e o
filósofo francês Luc Ferry.
Anexos
Glossário
Amigdalóide:
Em forma de amêndoa; diz-se de certos bifaces.
Arte móvel:
Esta arte é constituída por obras «portáteis», que podem geralmente ser sustidas na
mão; seixos, ossos, plaquetas gravadas ou pintadas, figurinhas esculpidas, etc. Os
blocos ornados mais volumosos constituem um intermediário entre a arte móvel e a
arte rupestre.
Arte rupestre e arte parietal:
«Arte rupestre» é uma expressão geral que define todas as formas de arte em suporte
rochoso, quer se trate de uma parede ornada numa gruta ou de blocos e nivelamentos
rochosos ao ar livre.
A expressão «arte parietal» tem um sentido mais restrito: designa exclusivamente a
arte sobre paredes rochosas e é empregue em particular para designar a arte das grutas
ornadas de pinturas, gravuras ou esculturas.
Bujardada:
Tratamento de superfície, por martelada, nas operações de escultura.
Bola:
Esta arma de arremesso dos gaúchos da Argentina é constituída por uma longa correia
que termina em duas bolas de pedra fechadas em duas bolsas de couro. Atiradas às
patas dos animais, permitem a sua captura.
Por extensão – e sem prejuízo da sua função –, para os pré-historiadores, o termo
«bola» designa uma esfera de pedra, do tamanho de uma bola de bilhar, abundante no
Paleolítico Antigo e Médio.
Xamanismo:
Esta prática religiosa está frequentemente baseada nas actividades do «xamã»,
garantindo, em nome do grupo, a relação com o mundo sobrenatural por via da transe
e das alucinações.
Na realidade, este termo vago cobre práticas muito diversas e espalhadas em
diferentes regiões do mundo. De forma abusiva e superficial, alguns pré-historiadores
tentaram, de maneira repetitiva, explicar alguns conjuntos de arte através de uma
forma de xamanismo; esta hipótese suscitou numerosas críticas científicas.
Cordiforme:
Em forma de coração; os bifaces são frequentemente cordiformes.
Cristal de rocha:
Ver quartzo hyalino.
Cúpula:
Pequena cavidade com alguns centímetros de diâmetro e um a dois centímetros de
profundidade, escavada pela mão do homem em superfícies rochosas. Os
agrupamentos de cúpulas não possuem função utilitária aparente e são provavelmente
produtos simbólicos. Encontram-se no mundo inteiro e foram produzidas durante
centenas de milénios.
Descarnação:
Este termo do vocabulário técnico da pré-história (equivalente a «descarnagem»)
designa a extracção da carne nas operações de matança pré-histórica. Esta operação
deixou frequentemente estrias nas ossadas, designadas por «estrias de descarnação».
Ficron:
Biface alongado e pontiagudo.
Homem moderno ou Homo sapiens:
A expressão «homem moderno» é equivalente a «homem de Cro-Magnon» ou ainda a
«Homo sapiens». Designa a forma última da linhagem humana que sucedeu ao
homem de Neandertal.
Nucleus (plural: «nuclei» ou «nucleus»):
Núcleo de rocha dura a partir do qual o homem pré-histórico talhava as suas
ferramentas.
Percussor:
Ferramenta utilizada para bater nódulos de sílex no fabrico das ferramentas; pode ser
constituído por uma pedra, um osso ou um fragmento de madeira de cervídeo ou
ainda de madeira vegetal.
Pedra-figura:
Pedra cuja forma natural evoca uma forma humana ou animal.
Proto-escultura:
Pedra-figura encontrada num contexto arqueológico e apresentando os estigmas de
um retoque humano que completa e precisa a obra da natureza (exemplo: o nódulo de
Berekhat Ram).
Quartzo hyalino ou cristal de rocha:
Estas duas expressões são sinónimas; designam uma cristalização de silício
transparente como vidro e extremamente duro, prestando-se muito mal à talha, mas
que os homens pré-históricos, porém, procuraram e utilizaram. Por considerá-la uma
«pedra preciosa», atribuindo-lhe sem dúvida poderes sobrenaturais, serviram-se dela
inclusivamente para fabricarem as suas ferramentas.
Quartzito:
Rocha siliciosa compacta e resistente; pode tratar-se, em certos casos, de uma greda
cimentada em silício.
Traceologia:
Estudo microscópico e experimental das marcas de uso das ferramentas pré-históricas,
visando determinar as funções destas.
Trampling:
Termo inglês de uso generalizado que significa «o calcar de um solo» pelo homem ou
por animais (incluindo os de época pré-histórica), tendo deixado marcas
características nos sedimentos e nos seus respectivos vestígios.
Vermiculação:
Resultado de fenómenos de erosão em vestígios ou paredes rochosas semelhantes às
marcas deixadas pelos vermes.
Bibliografia
Paul Bahn, Jean Vertut, Journey through the Ice Age, Berkeley, University of
California Press, 1997.
Brigitte et Gilles Delluc, La Vie des hommes de la préhistoire, Rennes, ed. Ouest-
France, 2003.
Diogène, n.º 214, Naissance de la pensée symbolique et du langage, ed. Paris, PUF,
Abril-Junho de 2006.
Ellen Dissanayake, Homo aestheticus, Seattle, University of Washington Press, 1995.
André Leroi-Gourhan, Le Geste et la Parole, Paris, ed. Albin Michel, 1989.
André Leroi-Gourhan, Les Religions de la préhistoire, Paris, ed. PUF, 2001
Jean-Loïc Le Quellec, Arts rupestres et mythologies en Afrique, Paris, ed.
Flammarion, 2004.
David Lewis-Williams, L’Esprit dans la grotte: la conscience et les origines de l’art,
Mónaco, Éditions du Rocher, 2003.
Michel Lorblanchet, La Naissance de l’art: genèse de l’art préhistorique dans le
monde, Paris, Éditions Errance, 1999.
M. Lorblanchet, J. Le Quellec, P. Bahn, H. P. Francfort, B. e G. Delluc (dir.),
Chamanisme et arts préhistoriques, visions et critiques, Paris, Éditions Errance, 2006.
Desmond, Morris, La Biologie de l’art. Études de la création artistique des grands
singes et de ses relations avec l’art humain, Paris, ed. Stock, 1962.
Pascal Picq, Au commencement était l’homme, Paris, ed. Odile Jacob, 2003.
Dominique Sacchi (dir.), L’Art paléolithique à l’air libre; le paysage modifié par
l’image, Colloque de Tautavel-Campôme, 7-9 de Outubro 1999, Carcassonne, GAEP,
e Paris, GEOPRÉ, 2002
Denis Vialou, L’Art des cavernes, Mónaco, Éditions du Rocher, 1987.
Índice
Prefácio p.
Apresentação p.
1. O ponto de vista clássico sobre a origem da arte
Georges Bataille e o ponto de vista clássico sobre o nascimento da arte p.
As contradições da concepção tradicional do «nascimento da arte» p.
2. Uma outra abordagem sobre a origem da arte
Uma definição de arte p.
Uma arte de primatas? p.
Coleccionador das obras de arte da natureza p.
Primeiras formas, primeiras ferramentas:
poliedros, esferóides e bifaces p.
Marcas e estrias p.
A primeira arte rupestre do mundo:
as cúpulas p.
o adorno p.
Conclusão:
um salto qualitativo e não uma ruptura p.
Anexos
Glossário p.
Bibliografia p.
Contracapa
Os investigadores de hoje entregam-nos, simplesmente, claramente, o estado do seu
saber.
A arte nasce ao mesmo tempo que o homem.
Através da arte rupestre, o homem ousa colocar-se no coração do edifício universal,
oferecendo imagens ligadas à emergência das primeiras cosmogonias, dos primeiros
sistemas de crenças.
Essas criações marcam uma etapa espiritual oriunda da capacidade de estabelecer uma
relação benéfica e positiva com o seu meio envolvente: a capacidade de humanizar a
natureza. O seu comportamento de artista constitui um dos caracteres selectivos
favoráveis à evolução da espécie humana.
Desde a origem, o homem é, em todos os sentidos do termo, um «Homo aestheticus».
Michel Lorblanchet é director de investigação honorário no CNRS. Especialista da
arte pré-histórica, estudou no terreno as grutas ornadas do sul de França, bem como a
arte rupestre na Austrália e na Índia.