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1713 1[2011 revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo programa de pós-graduação do instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp
Marcus Vinicius Dantas de QueirozArquiteto e Urbanista (CAU/UFPB), mestre (PPGAU IAU/USP), docente do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Campina Grande, Rua Aprígio Veloso, 882, Bloco CM, Bairro Universitário, Campina Grande, PB, CEP 58429-140, (83) 2101-1773, marcusvidanq@gmail.com
artigos e ensaios Construções com ar, luz, água e esgoto: higiene e produção habitacional na Campina Grande (PB) dos 1930-19501
N
Resumo
Estuda como discursos e práticas higienistas guiaram a produção habitacional
e redefiniram o ambiente doméstico na cidade de Campina Grande (PB) das
décadas de 1930 e 1940. Investiga como as exigências dos códigos sanitários
por ar e luz no interior das construções e a inserção do maquinário urbano
de saneamento estabeleceram novas diretrizes para o exercício projetual e
contribuíram para a legitimação das profissões de engenheiro, arquiteto e
urbanista perante a sociedade brasileira dos anos 1930. Através do estudo de
caso do município do interior da Paraíba, busca compreender a abrangência
das políticas sanitárias e habitacionais vigentes no Estado Novo
Palavras-chave: produção habitacional, higiene, Campina Grande (PB).
o início do século passado, os anúncios publicados
nos jornais da cidade de Campina Grande, interior da
Paraíba, nos dão a medida de como os conhecimentos
e as novas sensibilidades acerca da higiene e as
recentes noções de conforto permeavam o seu
cotidiano. O Sabão Hygienico Protector, a Barbearia
Popular e a Valet Auto Strop cuidavam do corpo;
a Confeitaria Petrópolis esterilizava suas louças e
matinha sempre renovado seu sortimento de frutas;
os hotéis ofereciam alimentação cuidadosamente
confeccionada, banheiros higiênicos, aparelhos
sanitários e aposentos magnificamente arejados.
Embora já correntes em cidades brasileiras desde os
oitocentos, o arejamento constante e a iluminação
natural dos ambientes domésticos e de trabalho e
a mecanização das construções eram novidades
para aquela Campina Grande recém apresentada à
modernidade. As heranças dos séculos anteriores não
trouxeram o hábito de abrir janelas para a iluminação
e a ventilação dos dormitórios, o abastecimento
de água e a coleta dos esgotos eram, em grande
parte, ainda manuais e equipamentos como bacias
sanitárias eram pouco acessíveis no começo dos 1930.
O simples aparecimento de questões como aeração
de ambientes e utilização de bacias sanitárias na
publicidade da época como sinônimos de qualidade
e distinção nos dá a medida do quanto eram exceção
naquele contexto.
O movimento sanitarista vigente no início de século
XX agiu no sentido de “convencer e educar o
homem comum para comportamentos individuais
e coletivos fundados no conhecimento da medicina
existente” (HOCHMAN, 1998, p.80). Isto significava
“modificar práticas e hábitos sociais arraigados,
como o consumo de álcool, a prostituição, a não-
utilização de calçados e latrinas, o despejo de lixo
em rios e vias públicas, a manutenção de focos
de moscas, ratos e mosquitos, a fraude no leite e
nos alimentos” (HOCHMAN, 1998, p.80). A busca
pela higiene foi um movimento de reforma da
vida cotidiana, formador do homem moderno do
século XX e promotor de sensações burguesas de
conforto e intimidade, como as do sweet home
inglês (ANDRADE, 1992, p.17). Assim, da mesma
maneira que a busca por uma cidade sanitária
alterou seus usos, formas de organização e infra-
estrutura, as construções passaram por significativas
transformações para se adequarem a um ideal de
salubridade e conforto, promotoras de um cotidiano
1 Este artigo é uma versão re-duzida e revisada de parte do capítulo 2 da dissertação de mestrado intitulada “Quem te vê não te conhece mais: ar-quitetura e cidade de Campi-na Grande em transformação (1930-1950)”, defendida em agosto de 2008 no Progra-ma de Pós-Graduação da EESC-USP, sob a orientação da Prof. Dra. Maria Ângela Bortolucci e com o auxílio da FAPESP (processo Nº. 05/52920-0).
Construções com ar, luz, água e esgoto: higiene e produção habitacional na Campina Grande (PB) dos 1930-1950
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higiênico para usuários e moradores. Era a extensão,
para a esfera privada, de uma série de intervenções
ocorridas nos espaços públicos. Arejar e iluminar os
ambientes, deixá-los longe dos esgotos e abastecê-los
com água potável tornaram-se questões de saúde
pública e também de economia2.
As campanhas sanitaristas da época estabeleciam
diretrizes nesse sentido. Prescreviam diversos cuidados
que as pessoas deveriam ter com os seus corpos e
dejetos que induziam a novos procedimentos de
produção e utilização dos edifícios: “beber agua
fervida ou filtrada e leite sómente fervido”; “não
usar gelo directamente n’agua ou no que quizer
gelar, por que os microbios da febre typhoide e
paratyphoide podem existir no gelo, desde que a
agua com que foi fabricado este não tenha sido
filtrada”; “manter as latrinas sempre bem limpas e
só usar papel hygienico”; “si apparecer um doente
dessas molestias em casa, deve ser ele isolado,
escolhendo-se para isto, na falta de isolamento
publico, um dos melhores commodos na propria
residência, que tenha janellas para fora, a fim de
receber ar e luz directos”; “não esquecer de lavar as
mãos, com água e sabão, antes das refeições”, “as
fézes e urinas devem ser misturadas com qualquer
desinfectante ou cal commum, postas nas latrinas ou
enterradas” (PRECAUÇÕES..., 1935; DIRECTORIA...,
1935).
A busca por um modelo de habitação considerado
sadio e moralizado foi um dos principais eixos de
debate, e de efetiva ação, acerca da reestruturação
da cidade moderna. A preocupação com a casa
salubre, principalmente para as massas pobres,
permeou praticamente todas as ações sanitárias
engendradas por médicos e técnicos desde o século
XIX. Engenheiros, utopias urbanas oitocentistas e
arquitetos modernistas se sucederam na reprodução
de práticas e discursos. Resgatando falas anteriores,
as discussões do IV Congresso Internacional de
Arquitetura Moderna, registradas na versão
corbusiana da Carta de Atenas do início dos 1940,
buscava nas informações médicas subsídios científicos
e legitimados para a condenação dos modelos
correntes de moradias urbanas. Em uma de suas
passagens, concluiu que a tuberculose se instalava
onde não havia incidência solar. Portanto,
[...] o sol deve penetrar em toda a moradia algumas
horas por dia, mesmo durante a estação menos
favorecida. [...] A sociedade não tolerará mais que
famílias inteiras sejam privadas de sol e, assim,
condenadas ao definhamento. [...] É preciso exigir
dos construtores uma planta demonstrando que
no solstício de inverno o sol penetrará em cada
moradia no mínimo 2 horas por dia. Na falta disso
será negada a autorização para construir. Introduzir
o sol é o novo e o mais imperioso dever do arquiteto
(LE CORBUSIER, 1993).
Os Congressos Pan-americanos de Arquitetos,
realizados entre 1920 e 1940, discutiram questões
semelhantes. Os de 1920 e 1923, realizados,
respectivamente, em Montevidéu e Santiago do
Chile, concluíram que os governos e as instituições
particulares deveriam incentivar a construção de
habitações higiênicas e baratas, cujos terrenos
destinados para esse fim teriam que ser “dotados de
serviço sanitário, luz e pavimentação”. Solicitaram
das municipalidades e das repartições de obras
sanitárias das nações e dos Estados a modificação
dos regulamentos de construções vigentes
“adaptando-os ás necessidades economicas
requeridas pelos trabalhos sanitarios, alturas de
habitação e exigencias menos dispendiosas, afim
de obter economia em sua execução, sem infligir
as regras de higiene, segurança e estética dos
edifícios”. Os arquitetos também chamaram a
atenção dos municípios para que fomentassem “a
edificação estimulando em contrario dos interesses
privados, a manutenção de jardins e grandes pateos
que assegurem a bôa aeração e insolamento das
construções”. Para as habitações insalubres já
presentes nas cidades, ordenaram suas reparações
ou, para os casos mais graves, suas demolições.
Por fim, declararam que
[...] para obter um criterio definido nas condições de
nossas vivendas que tanta influencia têm na saude
fisica e moral do povo, para assegurar a beleza,
segurança e higiene de toda a especie de edificios, é
indispensavel regulamentar a profissão de Arquiteto
baseada nesse titulo outorgado e reconhecido pelo
Estado, determinando as atribuições proprias e
privativas dessa profissão que é a unica capaz de
dar solução exata a esses problemas [...] da vida
moderna (CONGRESSO..., 1940, p.13-18).
A Comissão do Aspecto Higiênico do 1º Congresso
Pan-americano de Vivenda Popular, realizado em
Buenos Aires no ano de 1939, cuja comitiva brasileira
2 Cf. Beguin, 1991.
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era formada majoritariamente por engenheiros,
recomendou que
[...] os governos incorporem na sua legislação
disposições que no menor tempo possível, facilitem a
eliminação total dos casebres insalubres existentes nos
perímetros urbanos e que por meio de uma politica
sanitaria proceda a demolição desses “arremedos
de casas”, impondo tributos e limitando as taxas de
alugueis, não permitindo a construção de vivendas,
nem a venda ou subdivisão de lótes, em zonas não
urbanizadas ou não urbanizaveis (CONGRESSO...,
1939, P.67).
Os discursos de arquitetos e engenheiros reproduziam
uma série de diagnósticos e recomendações
largamente conhecidos e praticados desde o século
anterior, com todas as suas descrições médico-
científicas e visões preconceituosas acerca da moradia
do pobre. As críticas eram para as conseqüências
materiais e não as causas sociais do problema. As
falas voltavam-se, em boa parte, contra o mercado
de habitações precárias para locação, produzidas
pela iniciativa privada para atender à demanda das
camadas pobres que acorriam às cidades. A oferta
era de moradias de baixa qualidade construtiva,
implantadas no menor espaço possível, visando o
máximo aproveitamento dos lotes para o maior lucro
do empreendedor. Considerava-se tal implantação,
somada a outros aspectos, como a ausência de
aberturas e os baixos pés-direitos, responsável
pela condição anti-higiênica das construções, pois
dificultava ou impedia que, aí, circulasse ar e incidisse
luz solar. Para os congressistas, só o Estado, com
seu amplo poder de alcance, com a sua função de
prezar pelo interesse público e com sua capacidade
de estabelecer e de fazer cumprir as leis, seria capaz
de atuar incisivamente na solução do problema da
habitação insalubre. Os caminhos possíveis seriam
a elaboração de legislações que arbitrassem sobre a
qualidade e a localização das construções, o incentivo
fiscal à moradia higiênica ou medidas radicais e
autoritárias, como a demolição dos “arremedos
de casa”.
Assim como garantir a aeração, a conquista da luz
solar no interior das construções foi apontada como
a nova preocupação dos arquitetos. Dessa forma,
prever recuos em relação às edificações vizinhas,
inserir pátios, poços, jardins e aberturas em todos
os cômodos, regular a cubagem dos ambientes de
acordo com suas áreas e altura dos pés-direitos e
calcular cientificamente a quantidade de luz solar
recebida diariamente pelas edificações passaram a
ser rotinas obrigatórias para arquitetos e demais
projetistas, devidamente previstas nos códigos de
obra e controladas, com maior ou menor rigor, pelas
repartições de obra e de higiene das municipalidades.
A conformação do ambiente doméstico salubre
também pressupunha que a casa deveria surgir em
via pavimentada, drenada e atendida pelas redes de
saneamento, para as quais o edifício teria que estar
tecnicamente adaptado. Eram preocupações inéditas,
pelo menos na obrigatoriedade e na escala de suas
repercussões, introdutoras de outras variáveis no
exercício da concepção projetual e de rupturas com
os padrões construtivos e urbanísticos de herança
colonial, dominantes no Brasil até boa parte dos
oitocentos.
Para garantir as eficiências técnica e estética de
todas essas transformações nas moradias, e,
conseqüentemente, na cidade, promovendo, assim,
“a saude fisica e moral do povo”, os arquitetos se
colocavam como os únicos profissionais capazes de
dar a solução exata aos problemas da vida moderna.
Para tanto, mobilizavam-se numa campanha pró-
regulamentação do exercício profissional pelo
Estado, o qual deveria determinar as “atribuições
proprias e privadas dessa profissão”. Os arquitetos
faziam coro com os discursos e as reivindicações
dos engenheiros do final do século XIX e começo
do XX, os quais, “assumindo os ideais de uma
ciência pragmaticamente comprometida com o
progresso material e moral do país, orientada
para sua integração na humanidade desenvolvida,
‘positiva’”, mobilizavam-se pelo reconhecimento
social da profissão (KROPF, 1994, p.210). Os
engenheiros, assim como os arquitetos, reivindicavam
“perante as elites dirigentes maiores espaços para
a atuação profissional e o acesso a cargos diretivos
da vida pública”, denunciando “a concorrência
dos chamados práticos ou charlatães, ou seja, dos
mestres-de-obras que desenvolviam atividades que
segundo eles deveriam caber exclusivamente aos
profissionais ‘cientificamente preparados’” (KROPF,
1994, p.219). No Brasil, as campanhas culminaram
com a publicação do Decreto Nº. 23.569 de 11 de
dezembro de 1933, durante o governo Vargas, que
regulamentou as profissões de engenheiro, arquiteto
e agrimensor. Era a legalização das profissões de
um país que se desejava urbano.
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Com maior ou menor intensidade, todas essas
questões afloraram e tiveram repercussões simultâneas
no interior paraibano, nesse momento de formação
da cidade moderna brasileira. As empreitadas para
higienizar a moradia, dotando-a de ar, luz e de todo
um aparato técnico para sua conexão às recentes
redes mecanizadas de saneamento, a reforma ou a
demolição de habitações precárias distribuídas no
perímetro citadino, a elaboração de legislações para
o arbítrio e o controle das maneiras de se construir
e a exigência de projetistas devidamente legalizados
junto aos Conselhos de Engenharia e Arquitetura
para a concepção das edificações foram responsáveis
por alterações significativas nas formas urbanas da
cidade de Campina Grande.
Pretende-se, portanto, discutir nesse artigo as
transformações por que passaram a arquitetura e o
espaço do morar do município paraibano ao longo
das décadas de 1930 e 1940, engendradas por um
corpo técnico-científico de médicos, engenheiros e
arquitetos que problematizaram a cidade a partir
de uma perspectiva higiênica.
Porcaria, nojo, repugnância...
A preocupação com a salubridade das moradias não
era uma novidade da Campina Grande dos 1930.
Em 1890, um artigo publicado no jornal A Gazeta
do Sertão, assinado por França Júnior, dizia que a
alcova deveria receber
ar vivificante em suficiente abundancia e se
desembarace daquelle que, por já ter servido, se
viciou. A parte da casa que deve occupar mais
attenção dos que se interessam pela saude de seu
semelhante é o quarto de dormir. Já pelos progressos
que tem feito nestes últimos tempos, não na nossa
architectura, que infelizmente ainda não temos, mas
o nosso systema de construir, progressos devidos
em grande parte á influencia do elemento italiano
que tão bons fructos vai introduzindo no Brasil, já
por noções exactas da hygiene, a alcova, isto é, o
quarto sem janellas, e por conseguinte sem ar e sem
luz, que figura ao lado da sala de visitas ou de jantar
das antigas construcções, tende a desapparecer.
Felizmente. A alcova, com a lamparina de fetido
azeite em cima da velha commoda de jacarandá,
atravancada de uma quantidade innumera de
objectos cobertos de espessas camadas de pós;
com dois, três leitos, sem contar as esteiras que se
estendiam a noite sobre o assoalho a apodrecer em
contacto immediato com o solo, e onde dormiam
o pai, a mãi [sic] e os filhos, respirando, de envolta
com as exhalações de roupas sujas e dos residuos
da pelle de cada um, o ar viciado pelas excreções
gazosas de todos aquelles pulmões juntos, a alcova
foi o antro escaro onde a nossa raça se abastou.
Dentre os casos de tuberculose pulmonar que
figuram nos obtuarios fluminenses, póde-se dizer
que trinta por cento têm por origem a alcova (apud
AGRA, 2006, p.67-68).
Tais palavras eram ressonâncias de discussões de
maior amplitude, que problematizavam a cidade a
partir de questões de segurança e higiene e que viam
a moradia insalubre das camadas populares como
local “impróprio à saúde e à virtude; como lugar sujo
e desconfortável, propício à geração de doenças e à
transmissão de epidemias ao restante da população
da cidade; como ambiente imoral e promíscuo,
que corrompia seus moradores” (CORREIA, 2004,
p.1-4). Longe do contexto campinense do século
XIX, e até do XX, o texto de França Júnior era, muito
provavelmente, como sinaliza, a reprodução de
algum artigo publicado na então Capital Federal,
mostrando-nos como os discursos da higiene e os
seus vínculos com questões morais circularam e foram
apropriados país afora. Às formas arquitetônicas, do
meio, era imputado o processo do adoecimento. Para
o autor do artigo, a arquitetura deveria progredir
em prol da conquista de um ambiente saudável
para seus moradores, promovendo a evolução das
qualidades construtivas e a inserção de aberturas
para a entrada do ar vivificante e de luz solar nas
edificações. Citava, para tanto, as influências dos
imigrantes italianos na arquitetura brasileira, que
tão “bons fructos vai introduzindo [...] já por noção
exactas da hygiene”.
Na década de 1930, versões do mesmo discurso
ganharam contornos mais adaptados ao contexto
local. Com o acelerado crescimento demográfico
desde o início do século, fruto do dinamismo
econômico proporcionado pela instalação da ferrovia,
as falas se voltavam contra o adensamento das
partes centrais da cidade por habitações precárias,
denunciavam a falta de higiene, de moral e de
estética de tais construções, condenavam seus
aspectos construtivos e chamavam a atenção para
as poucas condições de higiene das moradias
produzidas pela iniciativa privada para locação.
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Pobreza, promiscuidade, feiúra e sujeira foram
características comumente associadas às deficientes
condições de moradia das prostitutas da cidade, numa
reprodução de falas que poderiam ser encontradas
em qualquer outro jornal país afora. Em 1931, por
exemplo, o jornal Brasil Novo publicou artigo contra
as “rameiras” que moravam na região central, mais
precisamente no largo da luz, em
[...] uns casebres que a gíria denominou de “caixas
de fósforos”. O apelido não traduz o que eles
são. Era necessário um cognome que significasse
porcaria, nojo, repugnância, e tudo o quanto o
dicionário possui com essa significação. De fato,
são uns casebres de taipa, pendidos uns sobre os
outros, inclinados para o solo, como pedindo um
empurrão que lhes joguem por terra. E desafiam o
senso estético dos responsáveis pelo embelezamento
da nossa urbe. Há dois anos que se anunciam
a demolição almejada, mas os dias passam e os
casebres ficam. [...] Elas, porém, gargalham pelas suas
portas imundas, contra “poussê”, que lhes mingua
o terreno. Mulheres sórdidas continuam morando
lá, e por ser uma artéria movimentada, exibem
aos transeuntes, a sua miséria e a sua porcaria.
Quase todas meretrizes de baixo calão, de vestes
porcas e imundas, repugnam, pelo exibicionismo de
suas mazelas. Sabemos dos intuitos do sr. Prefeito
[Lafayete Cavalcanti], de embelezar a Travessa da Luz,
demolindo tal “cortiço”. Aplaudimo-lo e lembramo-
lhe que a medida é de emergência. Aquilo se tolera
em subúrbio, não no centro de uma cidade como
a nossa (CAIXAS..., 1931).
Ainda em 1931, o mesmo jornal se engajou
no movimento que a “imprensa livre” vinha
fazendo em todo Brasil, desde que tomou posse
o presidente Getúlio Vargas, “contra alugueres
excessivos, arrancados do povo pelos desabusados
proprietários de casas”. Em Campina Grande, “os
pobres inquilinos que, além de pagarem um aluguel
exorbitante”, eram “obrigados a limparem as casas
ou do contrário velas-ão [sic] transformadas em
verdadeiras pocilgas. Nem ao menos uma vez por
anno se dignam a limpar e retelha-as”.
E quando chove enchem-se de agua causando
vexames e enfermidades aos que tem a desventura
de habital-as. Nessa situação se encontra grande
quantidade de casas de aluguer [sic] nessa cidade.
Existem alguns proprietarios que, por amor a hygiene,
mandam limpar as suas casas de aluguel de anno
em anno, mas em cada limpesa que efectuam
augmentam os alugueres (ALUGUERES..., 1931).
A tensão entre o mercado de locação e setores
da sociedade não foi algo exclusivo aos grandes
centros. Em outra escala e em contexto específico,
a problemática vivida por Campina Grande era a
mesma do que as demais pesquisas descrevem
para as maiores cidades brasileiras, o que não é
de se estranhar, visto que a política habitacional
do país era a mesma. Com o reduzido capital
das classes média e baixa e com a inexistência de
financiamentos governamentais para a aquisição da
casa própria, fruto da política liberal que predominou
ao longo da Primeira República, a demanda por
habitação era atendida pelas construções de aluguel
produzidas pela iniciativa privada, denominadas por
Bonduki (1998) de produção rentista. Tal situação
permaneceu praticamente inalterada até 1942,
quando a promulgação da Lei do Inquilinato, pelo
governo Vargas, congelou o preço dos aluguéis e
arrefeceu a produção rentista, aliada ao novo elemento
da promoção estatal de habitação para as classes
trabalhadoras3 e ao estímulo ao auto-empreendimento
da casa própria para a baixa renda.
As questões que envolvem o mercado locatário
e o financiamento estatal de moradia são mais
abrangentes e complexas do que o leque de discussões
propostas para este artigo. O que nos interessa saber
é que a maioria da população, principalmente a
classe pobre e a nascente classe média, era formada
por inquilinos à mercê de um mercado privado
de locação, que agia livremente, sem qualquer
controle ou regulamentação governamental. A
produção dessas moradias primava pela economia
de materiais e de espaço, levando à utilização de
componentes construtivos de baixa qualidade e ao
máximo aproveitamento dos lotes, características
que quase sempre comprometiam as condições
de higiene das habitações. Casas geminadas, sem
janelas, com paredes e pisos úmidos, baixos pés-
direitos e precárias instalações sanitárias (latrinas,
chafarizes, tanques para lavar roupa) se espalharam
pelas cidades brasileiras em crescimento. Na grande
quantidade de habitações coletivas (cortiços, casas de
cômodo), a situação era agravada pela superlotação
e pelo limitado número de instalações sanitárias
compartilhadas por vários domicílios. O preço dos
aluguéis era ditado pelas regras de mercado, sem
3 Em 10 de dezembro de 1947, a Câmara Municipal de Campina Grande apro-vou o Projeto de Lei Nº.12 para “a construção de casas populares nesta cidade”, [...] “contemplada pela Fundação da Casa Popular”. A FCP foi o “primeiro órgão federal destinado especificamente à produção habitacional no Brasil, instituída em 1946 e extinta com a criação do BNH (Banco Nacional de Habita-ção) em 1964” (MANOEL, 2004).
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qualquer proteção para o inquilino e sempre a favor
dos proprietários, beneficiados por uma demanda
maior do que a oferta, alimentada pelo rápido
crescimento demográfico urbano. O quadro só
começou a ser alterado com a aprovação dos
códigos de higiene (que passaram a exigir instalações
sanitárias compatíveis com o número de moradores e
recuos para a iluminação e ventilação dos ambientes
- em alguns lugares do Brasil, isso aconteceu ainda
no final dos oitocentos), com os incentivos fiscais
concedidos pelos governos para a promoção da dita
habitação higiênica barata e com a atuação incisiva
das repartições de higiene.
Em Campina Grande, a situação não foi diferente.
Até o início dos 1930, a habitação de aluguel
para a classe média era a construção de alvenaria,
sem recuos laterais e frontal, quartos sem janelas
e latrina no fundo do prédio ou do quintal,
implantadas em seus lotes estreitos e compridos.
Para os mais pobres, a modalidade predominante
era a casa de taipa, precária e sem qualquer
instalação sanitária, construídas, muitas vezes,
ao longo de ruas inteiras para a renda de seus
proprietários. Distribuídas por todos os recantos
do perímetro urbano, na década de 1930 elas
desafiaram “o senso estético dos responsáveis
pelo embelezamento da nossa urbe” (CAIXAS...,
1931). Em 1929, o jornal O Século, discorrendo
acerca da remoção das prostitutas que habitavam
casas de taipa erguidas na região central, falou
da impossibilidade da ação em virtude de uma
crise habitacional vivida pela cidade4:
Mas, aonde o Snr. Prefeito, iria accommodar tanta
gente, noutro ponto da cidade, caso desejasse
levar a effeito esse magnifico plano de saneamento
social, dada a crise de habitação de que a cidade
vive sempre a lamentar? Não é fácil a tarefa dessa
mudança por que tanto anseiam, naturalmente, os
moradores que se avisinham do bulicio nocturno do
Roi Couro, e de outras artérias menos roedeiras...
U’a mudança em massa de uma parte de nossa
população, que figura nos computos habitativos da
cidade, em cifras respeitaveis, de uma zona em que
já radicaram os seus habitos e costumes e onde todos
já estão localizados, para outra incerta e que não
reuna quantidade sufficiente de conforto domestico,
sera também um desastre (PARAÍSO..., 1929).
A opinião do jornal era controversa. Ao mesmo
tempo em que tratava a expulsão das prostitutas
da região central, com a demolição das suas
respectivas casas de taipa, como uma questão de
saneamento social, preocupava-se com o desastre
que seria remover as habitantes, de considerável
número, segundo o jornal, de uma área onde já
possuíam seus hábitos e costumes radicados para
regiões inóspitas, sem “quantidade sufficiente de
conforto domestico”, fora do centro e sem infra-
estrutura urbana. A preocupação foi em vão. Em
1931, durante a administração do prefeito Lafaiete
Cavalcanti, o meretrício, com suas casas ditas
inestéticas, nojentas e repugnantes, foi deslocado
para as proximidades dos currais, no bairro das
Piabas (atual região da feira central), longe dos
olhares de moradores e transeuntes do centro.
Pelo próprio uso que faziam da área, currais para
a comercialização de gado, é de se imaginar que
tal local não era dotado de condições mínimas do
tal conforto doméstico reclamado. Habitadas por
prostitutas ou não, a imposição de reformas ou
a demolição autoritária foram os tons utilizados
pela administração municipal para a eliminação das
casas de taipa do perímetro urbano. Essas medidas
quase sempre foram respaldadas pelos diagnósticos
emitidos pelas repartições municipais de higiene
e legalizadas pelas novas imposições dos códigos
urbanísticos locais.
Ar e luz vivificantes
Com alguns órgãos fortalecidos e outros
organizados no final dos 1920, o aparato sanitário
montado em Campina Grande agiu em várias
frentes em prol da conquista de um meio urbano
salubre (vacinação de pessoas e animais, inspeção
de alimentos, eliminação de mosquitos causadores
da febre amarela, limpeza urbana etc.). Coube
à recém criada Inspetoria Municipal de Higiene
(IMH), em parceria com a Diretoria Municipal de
Obras Públicas, a fiscalização sobre as condições
de salubridade das habitações já construídas
e a serem edificadas. No segundo caso, seus
técnicos passaram a deferir ou a indeferir as
solicitações para construção na cidade de acordo
com as qualidades higiênicas exigidas nos códigos
urbanísticos municipais e previstas nos projetos
arquitetônicos apresentados.
4 A publicação do SESC do começo dos anos 1960 (Cam-pina Grande: um centro co-mercial do Nordeste), voltou a falar da crise habitacional da cidade. Disse que “em-bora seja intenso o ritmo de construções, há deficit em casas de aluguel”. Comen-tou que tais habitações eram geralmente construídas por pessoas egressas da atividade comercial ou industrial, “que nisto empregam algum capi-tal e disto vivem”. As casas, de maneira geral, eram de padrão médio ou inferior, e se espalhavam por toda a cidade. Os inquilinos eram “de preferência operários, comerciários e industriários” (SERVIÇO..., 196?, p.37).
Construções com ar, luz, água e esgoto: higiene e produção habitacional na Campina Grande (PB) dos 1930-1950
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Embora existam algumas referências de ações
anteriores, como a obrigatoriedade do uso de fossa
(1924), a expulsão de casas de taipa do centro
(1931) e o aparecimento do inspetor de higiene
aprovando ou não os pedidos para construção
encaminhados à Prefeitura (1932), só foi nas
solicitações de licença para se edificar em Campina
Grande apresentadas a partir de 1933 que o poder
público municipal surgiu arbitrando com maior
rigor sobre os aspectos físicos das construções,
visando controlar suas condições sanitárias. Na
época, o prefeito era o médico Antônio Almeida,
engajado na campanha pró-saneamento da cidade.
No mesmo ano de 1933, surgiu um novo elemento
em relação ao ano anterior no cenário local: o projeto
arquitetônico, formulado segundo preceitos técnicos,
elaborado não só por arquitetos, mas também por
engenheiros e desenhistas devidamente licenciados
pela prefeitura e registrados nos conselhos regionais
de regulamentação profissional. Não por acaso, foi
em 1933 que se instalou, até onde temos notícia,
o primeiro escritório de arquitetura da cidade, do
arquiteto Isaac Soares. Suplantando gradativamente
os esquemas de plantas desenhados por mestres-
de-obras ou pelos próprios proprietários (imagens
1 e 2), a apresentação de projeto arquitetônico se
transformou em uma ferramenta fundamental para
a fiscalização das imposições construtivas, estéticas
e higiênicas previstas nas legislações municipais
e almejadas nessa busca pela modernização da
cidade.
Para efetivar o controle sobre o espaço urbano, e o
seu grau de ação, os códigos municipais dividiram
Campina Grande em zonas urbana (1ª zona),
suburbana (2ª zona) e rural (3ª zona) (figura 3).
Na 1ª zona, era obrigatório apresentar projeto de
arquitetura de acordo com as normas estabelecidas.
5
Figura 1: Pedido para a re-construção da residência de Maria Inez de Freitas Ramos, rua do Poente, 1932. Fonte: Arquivo Público Municipal de Campina Grande (APMCG).
Figura 2: Pedido para a construção da residência de Manoel Borges de Lima, rua Santo Antônio, 1932. Fonte: APMCG.
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Em 1936, Manoel Ferreira de Barros pediu licença
para reconstruir a casa Nº. 634 da rua João Pessoa.
A Prefeitura respondeu que a licença seria concedida
desde que Manoel apresentasse projeto regular,
pois a área estava dentro do perímetro urbano
do município. Já em 1937, José Honorato tentou
construir um alicerce na rua Idelfonso Souto Maior,
mas seu pedido foi indeferido, como tantos outros,
porque sua obra estava na 1ª zona, e “esta zona
obriga a apresentação de projecto, mesmo no caso
de construção de alicerce”5.
Na 2º zona, as exigências eram parecidas, porém
cumpridas com rigor relativo. Um pobre que já
possuísse um pequeno terreno nas áreas de subúrbio
agora enriquecidas (com infra-estrutura de água
esgoto e pavimentação) e valorizadas não podia
mais, ali, construir sua casa simples. O pedido era
indeferido. Nessas áreas, só havia espaço para as
novas residências surgidas recuadas dos limites dos
seus vastos lotes, erguidas de acordo com todos
os requisitos para a boa higiene das construções.
Nos subúrbios mais pobres, a casa até podia ser
de taipa e alinhada com a rua, mas a frente e o
primeiro cômodo tinham que ser de tijolos, com
projeto de fachada e, em alguns casos, obedecendo
a condições mínimas para a aeração e a iluminação
de ambientes. Foram muitos os projetos desse tipo
apresentados à Prefeitura (imagens 4, 5 e 6).
Na zona rural, as construções eram livres de normas,
e, portanto, não havia a necessidade de apresentação
de projeto. A não ser em alguns casos, como o da rua
da Matança, nos quais a Prefeitura exigia obediência
ao “alinhamento geral”6. Foram inúmeros os casos
de pedidos de licença para a construção de casas
de taipa na zona rural do município, nos quais a
Prefeitura a concedia por estar a futura edificação
em área “fora de zoneamento”7.
Quando requisitado, o projeto deveria seguir
os artigos 45 e 46 da Lei 32 de 1927, os quais
determinavam que seu responsável técnico teria que
ser licenciado pela Prefeitura para a exploração do
Figura 3: Mapa de Campina Grande, 1943. Cor de rosa: zona urbana. Verde: zona suburbana. Linhas ocres: estradas em direção às fon-tes d’água e às fazendas do município. Pontos pretos ao longo das linhas ocres: casas de taipa construídas na zona rural. Fonte: Desenhado a partir de mapa elaborado pelo Serviço Geográfico do Exército do Brasil.
5 Solicitação de licença para reconstrução de casa. Rua João Pessoa. Proprietário Manoel Ferreira de Barros. 1936. Fonte: Arquivo Público Municipal de Campina Gran-de (APMCG). Solicitação de licença para construção de alicerce. Rua Idelfonso Souto Maior. Proprietário José Ho-norato. 1937 (APMCG).
6 Solicitação de licença para construção de casa de taipa. Rua da Matança. Proprietário ilegível. 1936 (APMCG).
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exercício profissional na cidade. A partir de 1935,
começa a aparecer nas solicitações de licença de
obra a exigência por profissional habilitado pelo
Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura,
tal como rezava o Decreto Federal Nº. 23.569, de
11 de dezembro de 19338.
Com toda essa lista de imposições, o poder público
municipal criou as ferramentas para o controle
da produção do espaço urbano campinense,
seguidas com certo rigor. O projeto arquitetônico,
como projeção futura do espaço a ser construído,
agiu como documento probatório das intenções
dos construtores, que, uma vez aprovados e
rigorosamente cumpridos, garantiriam as condições
sanitárias mínimas exigidas. Quanto a esse rigor
no cumprimento do projeto, a municipalidade não
deixou de lembrar: em 1936, quando o Sr. João do
Matto pediu licença para construir sua residência
na rua Almeida Barreto, na 2ª zona, o diretor de
obras a concedeu desde que o alinhamento fosse
cumprido e o projeto “rigorosamente respeitado”9.
O mesmo aconteceu com Silva de Mello, também
em 1936, que deveria construir sua casa, na rua
Otacílio de Albuquerque, “no novo alinhamento
dado pela prefeitura”, respeitando “cegamente o
projeto aprovado”10.
Dessa forma, os códigos de postura e de obra, aliados
à fiscalização exercida pelas Inspetoria de Higiene e
Diretoria de Obras municipais, trouxeram uma série
de imposições que transcenderam o controle apenas
Figuras 4, 5 e 6: Casas típicas dos subúrbios mais pobres (2ª. Zona), erguidas nos limites do lote. Alinha-mento com a rua, primeiro cômodo de tijolos, projeto de fachada e condições mí-nimas de higiene eram as exigências para esse tipo de construção. Quando exis-tentes, os pequenos recuos entre as edificações (becos) tinham como função oferecer alguma possibilidade para a iluminação e a aeração dos ambientes. Fontes: Rossi, 1994. Casa para a aveni-da Progressista, projeto do desenhista Antônio Henri-ques, 1936 (APMCG). Casa para o bairro da Prata, 1936 (APMCG).
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dos elementos construtivos que possuíam alguma
relação direta com o espaço público (alinhamento com
a rua, altura das fachadas, proporção de aberturas
e sacadas, continuidade dos telhados), como fora
anteriormente em muitas cidades brasileiras. Atuando
sobre a disposição dos cômodos, mensurando suas
áreas, alturas e aberturas, definindo seus acabamentos
e recuos em relação às construções vizinhas, a busca
pela higiene criou legislações urbanas que foram de
encontro ao direito à inviolabilidade da propriedade
particular e que intervieram significativamente sobre
as formas de se morar nas cidades, alterando não só
os seus espaços privados, mas também as relações
entre o edifício e o urbano.
Em Campina Grande, assim como aconteceu em
outros lugares Brasil afora, além da invasão dos
guardas de higiene (os mata-mosquitos) para a
eliminação dos mosquitos causadores da febre
amarela, a privacidade e o direito de propriedade
das habitações tiveram que se adequar às normas
de salubridade, principalmente quando destinadas à
locação. Para as construções já existentes, a Inspetoria
de Higiene condenou as consideradas insalubres,
expulsando-as dos espaços centrais da cidade ou
exigindo que seus proprietários fizessem os devidos
reparos para se adequarem aos padrões de higiene
exigidos. Percorrendo as solicitações de licença para
edificação na cidade ao longo do nosso período de
estudo, é muito comum encontrar pedidos como
o do proprietário
[...] de um terremno [sic] na Rua 4 de Outubro numeros
198, 202 e 206, onde tem umas cazinhas de taipa
vem perante Vsa. pedir licença para edificar novas
cazas no local, sendo estas de tijollo e obedecendo
as exigencias de higiene da Prefeitura, fazendo-as
com area de luz para a sala de jantar e um quarto
central como mostra a planta junta11.
O abaixo assignado, querendo reconstruir os predios
que foram condennados pela Hygiene Municipal,
à Travessa Lindolpho Montenegro, de propriedade
de Chryatino [?] Montenegro, vem pelo presente
pedir a V.S. se digne conceder para tal fim a devida
licença12.
Diz o Des. Manoel Idelfonso de Oliveira Azevedo
[...] que tendo desapparecido os motivos que
deram logar á interdicção de seis casinhas de sua
propriedade sitas na Travessa da Luz, desta cidade,
visto ter feito os reparos, caiação e pintura das
mesmas, e destinando á habitação apenas a que
tem gabinete sanitário, vem requerer á V.S. que se
digne providenciar no sentido de ser levantada a
aludida interdicção , ouvido o Delegado da Hygiene
Municipal13.
Nos projetos para novas construções, sempre
apareciam recomendações do tipo: “Apresente
o desenho de fachada a tinta e o croquis a lapis
da planta para se examinar as condições de ar e
luz”; “Não alterar o projecto. Fazer clarabóia”;
“Apresente projecto de fachada, e dê luz directa e
ar no predio”; o uso de “veneziana é obrigatorio
porque a zona é urbana”14. Alguns proprietários,
além de apresentar projeto dentro das normas,
enfatizavam no requerimento de licença que a nova
edificação receberia ar e luz, como foi o caso de
Manoel da Silva, que solicitou “licença para construir
nos fundos dos prédios nºs 322 e 326, 12 {doze}
quartos, sendo seis (6) inferiores, e seis superiores
com área descoberta, para efeito de luz direta e
ar, de acordo com a planta que junta [...]15. Assim,
foi essa busca pela incidência direta de ar e luz no
interior das edificações, para iluminar e ventilar
principalmente os dormitórios, a maior responsável
pela ruptura nos padrões construtivos campinenses
na década de 1930, majoritariamente herdeiros, até
então, dos padrões coloniais.
Das áreas de expansão até os espaços de ocupação
mais antiga da cidade, grande parte das construções
novas e reformadas incorporou recuos, jardins,
terraços, varandas, janelas em todos os ambientes,
pátios e poços de iluminação. Por conseqüência,
as plantas ganharam arranjos mais recortados e os
telhados tiveram que se adequar a desenhos mais
complexos. Com as possibilidades abertas por todos
esses elementos, a volumetria e o aspecto geral das
fachadas passaram a ser mais explorados, com a
utilização de telhados desencontrados, platibandas
em níveis diferentes, beirais, marquises, jardineiras,
gradis em aberturas, muros e portões. Os avanços
técnicos e construtivos advindos com a revolução
industrial ganharam maior espaço de recepção.
Com algumas construções surgidas em meados dos
1920, mas em multiplicação acelerada só a partir
de meados dos 1930, as casas erguidas nas zonas
de expansão mais abastadas se caracterizavam
7 Solicitação de licença para construção de casa de taipa. Rua Bella Vista (Bairro da Es-tação). Proprietário ilegível. 1936 (APMCG).
8 Solicitação de licença para construção de casa. Rua An-tenor Navarro. Proprietário Josimar Albuquerque [?]. 1935 (APMCG).
9 Solicitação de licença para construção casa. Rua Almeida Barreto. Proprietário João do Matto. 1936 (APMCG).
10 Solicitação de licença para construção casa. Rua Otacílio de Albuquerque. Proprietário Silva Mello. 1936 (APMCG).
11 Solicitação de licença para construção de residências. Rua 4 de Outubro. Proprietá-rio ilegível. 1933 (APMCG).
12 Solicitação de licença para reconstrução de prédios. Travessa Lindolpho Monte-negro. Propriedade de Chrya-tino [?] Montenegro. 1932 (APMCG).
13 Solicitação de licença para liberação de habitações in-terditadas por inadequações higiênicas. Travessa da Luz. Propriedade de Manoel Idel-fonso de Oliveira Azevedo. 1933 (APMCG).
14 Solicitação de l icença para construção casa. Rua José Carlos. Proprietário Antônio Barboza de Mello. 1936 (APMCG). Solicitação de licença para construção casa. Rua Solon de Lucena. Proprietário Francisco Castro [?]. 1936 (APMCG). Solicita-ção de licença para reforma casa. Rua Vigário Calixto. 1936 (APMCG). Solicitação de licença para construção casa. Logradouro ilegível. Proprietário João Aragão. 1936 (APMCG).
15 Solicitação de licença para construção de quartos. Sem identificação de logradouro. Proprietário Manoel da Silva. 1934 (APMCG).
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pela presença de recuos frontais e/ou laterais. Isso
possibilitou a circulação de ar entre as edificações,
configurando o que Saturnino de Brito (1944, p.123)
chamou de quarteirão salubre. Foi uma ruptura com
a continuidade do quarteirão de herança colonial
dominante no município. Como afirmou Andrade
(1991, p.61) para o urbanismo sanitarista praticado
por Brito, “rompendo o tecido conectivo da cidade
tradicional, o lote planejado e higiênico” introduziu
“a descontinuidade da forma urbana, característica
marcante da cidade moderna”.
Refletindo a riqueza dessa camada da população, os
programas se tornaram mais complexos, burgueses,
com a criação de espaços distintos para cada função:
salas de costura, de música, de almoço e de jantar,
gabinete, copa, despensa, quarto de empregada,
hall, biblioteca, vestiário e mais de um banheiro,
alguns já com acesso pelo interior das residências.
Mesmo com esse avanço, os banheiros ainda se
localizavam nos fundos das construções, colados
às cozinhas ou aos quartos dos empregados. Em
alguns poucos casos, os banheiros já ficavam no
pavimento superior das residências. Com a criação
da Comissão de Saneamento, em 1936, as novas
construções já deveriam ser pensadas de acordo com
as possibilidades abertas por essas redes. A garagem
era o mais novo item das vivendas ricas, construída
nos fundos do lote, utilizando, como acesso, largo
recuo lateral (figura 7). A casa, afastada da via, dos
vizinhos e das misturas das ruas tradicionais, cercada
por jardins e com uma diversidade de espaços para
o descanso, o trabalho e o lazer de seus moradores,
estava imbuída de outra noção de privacidade,
Figura 7: A garagem implan-tada nos fundos do lote era o mais novo item das vivendas abastadas. Como acesso, era utilizado o recuo lateral. Residência para José Branco Ribeiro, rua Desembargador Trindade, projeto do arqui-teto licenciado Isaac Soares, 1935. Fonte: APMCG.
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fechada em si, para o sossego das “boas famílias”
da sociedade campinense, nucleares e burguesas.
Os maiores esforços do poder público em modernizar/
higienizar as partes novas e abastadas de Campina
Grande ficam muito evidentes no relatório de
governo que o prefeito Vergniaud Wanderley
apresentou à Câmara Municipal, referente a sua
gestão do ano de 1936:
Cumpre observado que, com o zelo que temos
desenvolvido em torno das construções, os edifícios
moldados nas plantas previamente exigidas, tomam
aspectos modernos, destacando-se principalmente
nos bairros, e as novas avenidas, tais como João
da Mata, Desembargador Trindade, ruas do Prata,
Miguel Couto, onde as residencias particulares
revelam gosto estético, contrastando com a maior
parte dos casarões pesados, sem luz direta, nem
condições higienicas, existentes na parte central e
primitiva da cidade16.
Em considerável número, as classes médias e baixas
permaneceram como reféns do mercado de locação.
As fileiras de casas construídas pela iniciativa privada
para a renda de seus proprietários continuaram
surgindo em várias áreas da cidade. Contudo,
destinadas ao mercado de locação ou erguidas
para a moradia de seu dono, as mudanças nessas
habitações não foram tão grandes quanto às trazidas
pelas residências mais ricas. Se antes existia um
padrão de distribuição espacial considerado perigoso
para a saúde dos seus moradores (com a presença
das condenadas alcovas e a ausência de latrina),
as exigências por ar e luz não tardaram a criar
novos modelos de planta para essas habitações,
higienicamente corretos (de acordo com os códigos)
e exaustivamente repetidos pelos projetistas.
Tais modelos estiveram vinculados, quase sempre,
ao lote estreito e comprido. A permanência do lote
estreito, ocupado por edificações sem recuos laterais
e às vezes frontal (possibilitando, assim, a redução
do custo de materiais com o compartilhamento de
paredes, instalações hidráulicas e telhados entre
várias edificações), era a solução mais econômica
para o mercado de locação e a mais rentável para os
loteadores. Os problemas de iluminação e ventilação
foram resolvidos com poucas mudanças em relação
às plantas anteriormente dominantes: as salas
frontais perderam um pouco de largura para a
inserção de um pequeno acesso lateral, uma espécie
de terraço, que permitiu a abertura de janelas para o
quarto da frente. Dentro, foram inseridos pequenos
poços, às vezes compartilhados por duas casas, para
a iluminação da sala de jantar e dos quartos dispostos
no miolo da casa, algo não muito distante das
soluções de casas econômicas higiênicas construídas
em outras cidades do país (figura 8).
Antes dos serviços de saneamento, os banheiros,
agora obrigatórios, continuaram predominando
nos fundos dos lotes ou das construções, atrás das
cozinhas, com restrita comunicação com o interior
da residência. Em alguns casos, o cômodo que
abrigava a latrina passou a ser construído separado
do cômodo destinado ao banho. A latrina era algo
sujo, sem a assepsia proporcionada pelas instalações
Figura 8: Novos arranjos de planta para atender às exigências por ar e luz. Re-sidências para a rua Afon-so Campos, 1934. Fonte: APMCG.
16 Relatório da administra-ção Vergniaud Wanderley apresentado à Câmara Mu-nicipal de Campina Grande. Referente ao período de 1 de janeiro a 31 de dezembro de 1936. Disponível no Arquivo Público Municipal de Campi-na Grande.
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mecanizadas de água e esgoto, e, portanto, deveria
ser separada do ambiente de banho, um espaço
para a limpeza do corpo. Nos casos mais elaborados,
essas casas ganharam pequenos recuos laterais,
geralmente um, e frontal, que passou a abrigar
reduzidos jardins.
Não sabemos em qual escala, mas o mercado
privado de locação de Campina Grande também
se beneficiou, assim como em outros lugares do
país, de incentivos fiscais para a promoção da dita
habitação higiênica barata. Em 1935, Sebastião
Raymundo requereu licença para a construção de
dez “pequenas casas na 3ª zona (rural) da avenida
da Prata”, solicitando da municipalidade “a isenção
de tributos, visto ser habitações para operários, e
por ser de justiça”17. Em 1936, a Indústria Têxtil
de Campina Grande (Fábrica Bodocongó) pediu
licença para a construção de sua vila operária
no bairro de mesmo nome, inicialmente com
40 casas. Justificando que se tratava de “um
melhoramento urbano e de uma obra de realce
para esta cidade, ao mesmo tempo que vem
melhorar as condicções de vida do operariado
de sua fabrica”, reclamou a dispensa da taxa de
licença para sua construção18.
Os mais pobres foram expulsos para a zona rural,
onde poderiam construir ou alugar casas de baixo
custo, erguidas em terrenos baratos e sem infra-
estrutura urbana, livres das normas higiênicas e da
exigência por dispendiosos projetos de arquitetura.
Com algumas exceções, continuaram reproduzindo,
aí, as casas de taipa com poucas condições de
salubridade proibidas nas demais regiões da cidade.
No decorrer dos anos, o grande número de casas
desse tipo começou a formar longos caminhos
em direção a reservatórios de água e fazendas do
município, dando origem a muitas das principais
vias de atuais bairros da cidade. O mapa de 1943
(figura3) (e a infinidade de pedidos de licença para
construir casas de taipa nessas áreas) é eloqüente
nesse sentido. Observando-o, percebemos que
a estrutura urbana campinense da década de
1940 era formada por um núcleo mais denso,
correspondente às zonas urbana e suburbana,
do qual saíam várias estradas em direção à zona
rural, formando diversos braços de construções
Figura 9: Mapa de Campina Grande, início dos anos 1960. A cor azul escuro refere-se à área de ocupação da cidade até os anos 1930. Fonte: Ser-viço Social do Comércio.
17 Solicitação de licença para construção de 10 casas. Zona rural da Av. da Prata. Proprie-tário Sebastião Raymundo. 1935 (APMCG).
18 Solicitação de licença para construção de vila operá-ria. Proprietário Indústria Têxtil de Campina Grande. Bairro de Bodocongó. 1936 (APMCG).
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esparsas. Analisando o mapa do começo dos anos
1960, vemos que os espaços entre esses braços
foram completamente preenchidos por iniciativas
individuais ou por loteamentos particulares, abertos
irregularmente19 (figura 9). Assim, na ausência da
efetivação de um plano urbanístico que pensasse o
conjunto da cidade, acreditamos que esse processo
de exclusão e de crescimento desordenado para
a zona rural foi um dos mais fortes definidores
da forma radiocêntrica atual da trama urbana de
Campina Grande. Caminhando, hoje, por qualquer
uma dessas ruas ou bairros, observando suas casas,
lotes e implantações, as heranças desse processo de
expansão urbana nos parecem muito evidentes.
Água e esgoto em domicílio
Além da necessidade de ar, luz e latrina, a instalação
dos serviços de saneamento pelo Escritório Saturnino
de Brito, em 1939, também promoveu alterações
importantes nas construções campinenses atendidas
pela rede. Os espaços domésticos e as interações
estabelecidas entre as pessoas, as suas casas e a
cidade foram redefinidos. A precária infra-estrutura
urbana anterior impossibilitava a multiplicação
e a correta utilização de instalações hidráulicas
mecanizadas em cozinhas, banheiros e demais
espaços dependentes de água e produtores de
esgoto, como notou o engenheiro José Fernal na
sua palestra de 1938 no Rotary Clube da cidade:
Notais o máu cheiro desprendido nos gabinetes
sanitários proveniente das fossas mal feitas, como
referi a pouco. Por isso, elas são quasi sempre no
extremo das casas ou nos quintais. Os defeitos
da construção do proprio gabinete sanitário e a
deficiencia de agua para a lavagem dos W.C., ou
sejam aparelhos improprios, canalisações de barro
de feira com junta vasando, falta quasi absoluta
de tubos ventiladores e muitas vezes insuficiencia
de área de luz diréta, até com ausencia de janela,
são ainda outros perigos á saúde (FERNAL, 1938,
p.6).
Limitação de água, aparelhos (bacias sanitárias)
impróprios, canalização de barro de feira com junta
vazando, falta de tubos ventiladores e ausência de
ar e luz criavam banheiros que eram um “perigo
para à saúde”, colocados, com todos os seus
odores, “no extremo das casas ou dos quintais”.
Contra esse quadro, os serviços de saneamento,
além de resolverem o problema da escassez de
água do município, deveriam agir no sentido de
prover a cidade de instalações técnicas capazes
de proporcionar a difusão não só de gabinetes
higiênicos individualizados para cada habitação, com
a utilização de bacia sanitária com descarga, mas
também a disseminação de pontos de esgoto em
cozinhas e áreas de serviço e de torneiras com água
corrente para a execução das atividades cotidianas,
como lavar a louça, as mãos, preparar os alimentos
ou tomar um banho. Ficaria mais fácil, assim, ser
higiênico, seguir as recomendações das campanhas
sanitaristas para a higiene do corpo e da moradia.
Como publicou o jornal A União de 19 de janeiro
de 1939, a população “imediatamente beneficiada
com a prodigiosa transformação [do saneamento],
sabe, porém, em que proporções ela lhe vem derimir
dificuldades, sinão verdadeiros sofrimentos, modificar
hábitos” (SANEAMENTO..., 1939).
Como aponta Beguin (1991, p.50) para o caso
da Inglaterra, a água e a coleta de esgoto em
domicílio deram uma função prática à arquitetura,
pois facilitaram a realização dos gestos domésticos,
principalmente os da limpeza da casa. Ainda segundo
o autor, a água corrente domiciliar permitiu ganhar
tempo, economizar forças, evitar o caminho que
seria preciso percorrer para buscar água fora.
Seriam essas economias de tempo20, de energia
e de tensões que desenhariam a rampa onde se
poderia fazer escorregar o pobre em direção a
outros comportamentos; não proibindo nada, mas
substituindo o que servia de suporte aos maus
hábitos por um ambiente que consolidasse os bons
hábitos. Mais água, um interior fácil de limpar,
aerar e aquecer; isto abriria caminhos para novas
práticas (BEGUIN, 1991, p.48). “A Idéia Sanitária,
eixo do que se poderia considerar um começo de
política habitacional”, procurou “atingir o íntimo
das pessoas por meio da redefinição do espaço da
casa, organizado de maneira a que seus ocupantes
desenvolvessem hábitos civilizados” (BRESCIANI,
1992, p.16-17).
No caso de Campina Grande, pelo menos para
as construções ligadas ao maquinário urbano de
saneamento, minoritariamente pobres, não seria
mais necessário armazenar a água em cisternas,
comprá-la dos aguadeiros ou transportá-la em baldes
de quintais para cozinhas e banheiros, nem jogar
os esgotos em fossas ou armazená-los em barris,
19 Cf. publicação do Serviço Social do Comércio, 196?.
20 Sobre a reforma do am-biente doméstico e suas re-lações com o gerenciamento do tempo na cidade moder-na, ver também o trabalho de Correia (2000).
20 Sobre a reforma do am-biente doméstico e suas re-lações com o gerenciamento do tempo na cidade moder-na, ver também o trabalho de Correia (2000).
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3113 1[2011 artigos e ensaios
para depois serem despejados nos logradouros
públicos do município. Os serviços de saneamento
tornariam os hábitos higiênicos mais confortáveis,
promoveriam novas sensações de bem-estar, que,
uma vez vivenciados, tornar-se-iam irrecusáveis.
Depois de experimentado, quem abriria mão de
um banho de chuveiro? Como noticiou o jornal Voz
da Borborema, o saneamento traria “o conforto
e a hygiene para assegurarem um novo padrão
de vida aos abastados, e, muito mais aos nossos
habitantes pobres” (ABASTECIMENTO..., 1937).
Para a maioria destes, o conforto e a higiene não
seriam “muito mais”, pois as redes de água e
esgoto não chegariam em seus domicílios. Algum
conforto, é verdade, seria proporcionado pelos
vários chafarizes de água potável distribuídos pelos
bairros da cidade, mas nunca comparado com as
comodidades trazidas pelas instalações domiciliares.
Nas casas mais pobres e marginais, provavelmente
nada mudou21. De qualquer forma, em cada caso
na sua medida, estabelecer-se-ia uma relação de
dependência entre as pessoas e os novos agentes
urbanos da higiene.
Em janeiro de 1939, “várias residências e casas de
trabalho, sobretudo das construções recentes”,
estavam “aparelhadas para o sistêma dagua e
esgôto a estabalecer-se” (SANEAMENTO..., 1939).
Câmara (1947, p.130) fala que 30 construções
possuíam ligação domiciliar nesse momento. Com
o passar dos meses, esse número foi aumentando,
atingindo todo o perímetro atendido inicialmente
pela rede. Para a instalação dos serviços em suas
edificações, os proprietários deveriam apresentar
projeto hidrossanitário para a apreciação e aprovação
da Repartição de Saneamento da cidade. Era uma
forma de orientar e controlar o aparelhamento das
edificações para as redes mecanizadas de água e
esgoto, garantindo a eficácia do funcionamento de
todo o sistema. O projeto teria que ser elaborado pelo
setor técnico da própria repartição ou por profissional
licenciado por esse órgão e habilitado pelos conselhos
regionais de engenharia e arquitetura, conforme
determinava o decreto Nº. 1.372, de 30 de março
de 193922.
Com a conexão dos domicílios e dos demais
estabelecimentos às redes de água e esgotos, foi
introduzido e difundido para maior número de
construções todo um aparato técnico que permitiu
o pleno funcionamento desse maquinário urbano
de saneamento: canalização, lavatórios, torneiras,
chuveiros, bacias sanitárias, sifões, hidrômetros.
Além de banheiros, a mecanização na adução de
água e na eliminação dos esgotos atingiu cozinhas,
áreas de serviço, jardins. Em conseqüência, as
espacializações foram alteradas. O avanço das
instalações hidrossanitárias, com a possibilidade
de uso de bacias sanitárias com descarga e a
conseqüente eliminação imediata dos dejetos de
dentro do edifício, viabilizou a multiplicação dos
banheiros e o seu acesso ao interior do espaço
doméstico. Pias com torneira foram colocadas
em cozinhas23 e áreas de serviço, copas e salas
de jantar ganharam lavatórios. Ao apresentar o
projeto hidrossanitário, muitos proprietários já o
faziam com diversas alterações na espacialização
de suas residências, modificando a localização
de cozinhas e banheiros, para deixá-los mais
integrados com os demais ambientes da casa
(figuras 10 e 11).
As buscas pela circulação de ar, pela incidência de
luz solar, por água corrente e potável e por esgotos
tratados e distantes dos espaços de convívio e de
circulação das pessoas promoveram alterações
significativas nas formas de produção das construções
e do espaço urbano das cidades engajadas no
processo de modernização de suas estruturas.
A edificação afastada do(s) limite(s) do lote, o
rearranjo das plantas para a inserção de aberturas
para o exterior, a introdução de jardins e todas as
transformações sofridas pelas construções diante das
redes de saneamento foram importantes definidores
na ruptura dos padrões urbanísticos de herança
colonial dominantes nos centros urbanos brasileiros
entre os oitocentos e início dos novecentos. Desse
modo, através do caso do município do interior
paraibano, fica evidente o alcance e as conseqüências
dos discursos e das políticas higienistas pelo território
nacional, assim como o seu vínculo à ascensão e
à legitimação de um corpo técnico profissional
formado por engenheiros, médicos, arquitetos e
urbanistas.
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21 O Regulamento de Cons-trução de 1938 da capital paraibana chegou mesmo a dizer que “na zona urbana, contudo, será permitida a construção de taipa e telha em ruas em que não possuam rêde de saneamento” (JOÃO PESSOA, 1958).
22 Ver Decreto Nº. 1.372 no jornal A União de 11 ago. 1939.
23 A mecanização das insta-lações hidrossanitárias das cozinhas foi um processo que ocorreu paralelamente a uma série de outros avan-ços na preparação das re-feições, como o surgimento do fogão a gás e a evolução da indústria alimentícia e de eletrodomésticos. Tudo isso tinha como intuito reduzir o tempo com os afazeres do-mésticos, liberando a mão de obra feminina para o traba-lho externo (CORREIA, 2000, p.26). Para a mecanização do espaço doméstico, ver também Giedion (1978).
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