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TERRITÓRIOS INQUIETOS: os processos de subjetivação dos professores da rede pública estadual
Dóris Maria L Fiss1
Resumo: este trabalho decorre de uma pesquisa-assessoria (1996-1998) desenvolvida com a participação de professores de uma escola pública estadual de Porto Alegre, que teve como objetivo analisar os processos de constituição da autoria, suas implicações no engendramento das propostas pedagógicas e inter-relações. O estudo também teve como objetivos a realização de uma análise do discurso pedagógico com a finalidade de discutir sobre os processos de subjetivação das professoras e a constituição heterogênea dos sujeitos e dos sentidos. O campo discursivo de referência compreende o discurso pedagógico.Abstract: this study originates from a research and consulting work (1996/1998) developed with the participation of teachers of a state-owned public school in Porto Alegre. This research aimed at analyzing the processes of constitution of authorship, their implications in the engendering of the pedagogical proposals and interrelations. The study also aimed at an analysis of the pedagogical discourse with the purpose of discussing the subjectivation processes of the teachers and the heterogeneous of the subjects and meanings. The discoursive field of reference comprehends pedagogical discourse.Palavras-chave: processos, discurso, autoria, professoresKey-words: processes, discourse, authorship, teachers
Preâmbulos: o lugar da autoria e do mal-estar na constituição do sujeito-professor
O trabalho que ora se discute surgiu como uma espécie de prolongamento e
ampliação de pesquisa realizada no período entre 1996 e 1998. Na época, voltei minha
atenção sobretudo para o que sentem os educadores da rede pública estadual no que tange à
sua profissão, imagem, relação com alunos e colegas, engajamento na luta por seus direitos,
construção de uma prática pedagógica crítico-reflexiva. Da participação nos Conselhos de
Classe, em aulas, reuniões, encontros informais e outros eventos organizados pela escola
em que se desenvolveu a pesquisa, surgiu o meu interesse por analisar os sentidos
manifestados nas falas das educadoras, relativos a suas posições de autoras nas diferentes
situações vividas no contexto pedagógico. Tomei, portanto, o discurso pedagógico como
campo discursivo de referência, sob a perspectiva do dizer do professor na escola pública
estadual nos dias de hoje.
A partir dos diálogos estabelecidos com as professoras e da análise discursiva
de suas falas, algumas idéias se evidenciaram no que diz respeito à escola e aos modos de
1 Mestre e Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (UFRGS) vinculada à Linha de Pesquisa O sujeito da educação: conhecimento, linguagem e contextos – Área de Estudos em Educação e Análise de Discursos.
funcionamento dos sujeitos. Foi possível perceber que, na instituição-escola, o
compromisso com a abertura de espaços de ação outros, para além daqueles articulados a
um paradigma mais tradicional (racionalista), adquire uma dimensão em que o aprender a
se colocar como professor-autor corresponde ao assumir esse papel social na realidade
possível para a instituição – o que me levou a insistir na possibilidade de ressemantização
do ato pedagógico e do espaço/tempo escolar. Exatamente por existir uma articulação
possível entre a ação docente e movimentos de avanços e recuos, subversões, audácias e
medos, resistências e desistências, percebi a condição de possibilidade de reinterpretações
dos tempos/espaços e dos mais diversos deslocamentos dos sujeitos e dos sentidos nesses
tempos e espaços (Fiss, 1998).
A elaboração teórica desses movimentos flutuantes que conjugavam processos
de autoria e de mal-estar permitiu vários questionamentos. Em decorrência disso, alguns
passos importantes foram dados no sentido de situar, um pouco melhor, o lugar da autoria e
do mal-estar na economia das práticas pedagógicas desenvolvidas na instituição. Apesar de
o professor, às vezes, buscar construir forças unificantes de repúdio a normas pré-
fabricadas, não é possível esquecer que estas mesmas forças estão veiculadas a uma
tradição que pode “enquadrar” sua concepção de mundo. Em outras palavras, não existem
garantias de que a construção de novas dimensões de autoria, de fato, dissipe o mal-estar da
cotidianidade dos educadores. Somado a isso, o trabalho realizado conduziu a uma
reflexão, pelo menos, estarrecedora: em muitas circunstâncias, as professoras, ao tomarem
distância do mal-estar, terminam por representá-lo como uma situação de bem-estar. Elas
tendem a se defender da problematização da prática pela ocultação da mesma, disfarçando
seus procedimentos e mascarando a si mesmas. Tendem a se anular enquanto sujeitos,
muitas vezes, em função do medo de serem descobertas, ou melhor, questionadas em seu
modo de ser professora e em seu fazer pedagógico. Esta conclusão conduziu a outra:
funcionando de maneira diferente, reagindo e respondendo ao mal-estar de formas distintas,
as professoras terminam por constituir lugares diferentes em que se situam – o que
corresponde a também diferentes posições de sujeito assumidas e à produção de modos de
interpretação distintos.
Tais considerações remetem a outro fenômeno tão importante quanto grave:
aquilo que designo como divisão social do trabalho de autoria e cujas marcas é possível
encontrar na escola. Com relação às professoras, parece estar claro que lhes foi delegada a
tarefa de funcionar no campo da proibição da interpretação, portanto, do recalque da
autoria. Da mesma forma, parecem estar claros os níveis de ansiedade e de sofrimento
decorrentes do cumprimento de um papel que está sempre a questionar este mesmo papel,
imprimindo-lhe sentidos de desvalia. Ou seja, está sempre a, contraditoriamente, prometer a
segurança de um lugar garantido, porque institucionalizado, e a abandonar as professoras
no vazio das concepções que sustenta.
Assim, é importante destacar que, tendo remetido a diferentes posições de
sujeito, o mal-estar ocupou grande parte do tempo/espaço de análise. Por mal-estar
compreendi, num primeiro momento, a situação de indigência que atinge o professor em
seus valores, princípios e atitudes, levando-o a exercer atividades que têm por fim a
disciplina dos alunos e a auto-disciplina, a manutenção da ordem social, do status quo e
das relações políticas (Fiss, 1998, p. 20). Ele deve adaptar seus atos e suas finalidades,
reduzindo sua existência aos limites do narcisismo social. Em outras palavras, deve reger
suas ações segundo normas e critérios que lhe são estranhos. Apesar disso, precisa segui-las
para que se torne supostamente “igual” aos outros, constituindo, assim, uma espécie de
comunidade de referência de que permanece ausente o diálogo enquanto processo produtor
de conhecimento. Tal concepção de mal-estar, no entanto, foi ressignificada à medida que
as experiências e convivências com as professoras da escola iam se entrecruzando.
Por conseguinte, constatei que este mesmo mal-estar, lugar onde o sujeito se
descobre “exilado” de si próprio, pode se constituir em dispositivo de transgressão das
limitações impostas pela árida realidade que vem acompanhada por sentimentos de
abandono e desvalia. Daí se falar em mal-estar como um momento de autoria, como
condição de possibilidade de autoria. Apontei, no discurso das professoras, os lugares do
mal-estar em relação ao instituído, os lugares de deslocamento de posição, os lugares de
autoria. A partir das análises discursivas, mostrei constituir-se o mal-estar enquanto lugar
extremamente paradoxal (Fiss, 1998, p. 110) que se manifesta sob a forma de queixas
centradas numa perspectiva corporativista, pelo desconcerto e insatisfação diante dos
problemas reais da prática de ensino e aprendizagem (idem, p. 119) e pelo esgotamento e
desencanto diante das exigências sociais e políticas de qualificação e melhoria e os
escassos (em muitos casos, inexistentes) recursos destinados pelas políticas educacionais
(idem, p. 120). Esse mal-estar é paradoxal na medida em que tanto pode sufocar como
gestar um projeto pedagógico que se vislumbra, no discurso das professoras, enquanto
sentido de responsabilidade e de resistência possível, enquanto instância de autoria
possível.
Com relação à autoria, parto do princípio de que ela se vincula aos modos de
interpretação dos sujeitos. Seria dizer que a condição de autor torna o sujeito responsável
por um dizer/fazer que tenha sentido, que possa ser interpretado. Nós, enquanto sujeitos,
estamos condenados a significar, portanto, a fazer e a ter sentido. Pensar autoria desta
maneira, isto é, enquanto movimento potencial e possível sempre para todo e qualquer
sujeito que, portanto, pode se constituir como autor, conduziu à identificação de três
posições de sujeito apontadas e que estão articuladas a instâncias de autoria distintas e
complementares: a instância de autoria plana, a instância de autoria intermediária e a
instância de autoria redonda. Nessas instâncias, conforme analisei, o sujeito produz
sentidos de maneiras diversas, se inscrevendo também diferentemente no processo.
Reitero, assim, a afirmação de que, muitas vezes, é o próprio mal-estar que
funciona como convite à mudança em função mesmo da positividade que lhe é inerente.
Conclusão que decorreu das análises discursivas construídas e originou propostas de ação
que desafiaram as professoras a construir categorias interpretativas a partir das quais
retornassem e questionassem suas práticas. Isso se constituiu em ação vinculada à própria
constituição do sujeito enquanto sujeito-autor – elemento principal de um estudo sobre a
responsabilidade correspondente ao papel do educador na realidade possível para a escola e
os deslizamentos de sentidos peculiares aos processos de constituição da/do autoria/mal-
estar. Dessa forma, meus instrumentos de pensamento e meus focos de interesse para
análise foram a palavra, o discurso. No plano da materialidade lingüística (intradiscurso),
reconheci tanto o mal-estar quanto a autoria enquanto processos inter-relacionados.
Ademais, como referi acima, identifiquei diferentes modos de funcionamento dos sujeitos-
professores articulados a três instâncias de autoria: plana, intermediária e redonda.
Dessa forma, também é possível afirmar que as professoras produzem sentidos,
nem sempre apresentando mudança de posição, que podem provocar posteriores
desalojamentos na posição que assumiram, flutuando de um estado de mal-estar para outro
estado de mal-estar. O interessante é que esta flutuação termina por abrir condições de
possibilidade de autoria. Talvez seja possível afirmar também o contrário: que a flutuação
da autoria termina por abrir condições de possibilidade de mal-estar – o que estaria
vinculado ao modo heterogêneo de constituição dos processos de autoria em três instâncias
já mencionadas e, a seguir, melhor explicitadas.
Antes, porém, de dar maior visibilidade às instâncias em questão, faz-se
necessário mencionar que, para este trabalho, em um primeiro momento, estabeleci várias
interlocuções com autores que discutem a questão da autoria a partir de princípios
vinculados à Pedagogia Libertadora e à Análise de Discurso. Recorri, pois, a Paulo Freire,
Ernani Maria Fiori e Paula Allman, Michel Foucault, Michel Pêcheux, Eni Orlandi,
Eduardo Guimarães, Eduardo Calil e Solange Gallo. Há que se mencionar, igualmente, Jose
Esteve – autor em que busquei elementos para a problematização do mal-estar-docente. Da
história de leituras assim constituída derivaram as considerações e conclusões apresentadas
nesta primeira parte do artigo. E, em função também de tais leituras, se tornou possível
evidenciar o funcionamento das três instâncias de autoria e do mal-estar em sua
multiplicidade. Ademais, os redimensionamentos das concepções apresentadas pelos
autores possibilitou a caracterização do princípio de autoria e da função-autor, a partir das
instâncias de autoria identificadas, num universo discursivo povoado pelas falas das
professoras da escola pesquisada. Sendo assim, é importante retomar brevemente as
relações estabelecidas entre as instâncias de autoria, o princípio de autoria2 e a função-
autor3.
Na instância de autoria plana ocorre um estado de sujeição maior. Ao mesmo
tempo, esse é o lugar em que o convite ao deslocamento se coloca com maior força –
2 Em Foucault (1996, p. 11), o lugar de autor se relaciona com o princípio de agrupamento do discurso, unidade e origem de suas significações, como base de sua coerência. Portanto, ele surge como sujeito responsável pelo texto que produz (pela organização do sentido e pela unidade do texto). Seria dizer que ele produz ilusoriamente estas unidade e organização materializadas no texto, bem como
um efeito de continuidade e completude no próprio sujeito. Além disso, Foucault estabelece relação entre autor e instauração de discursividade. Eni Orlandi (1993; 1995; 1996) também caracteriza o princípio de autoria como um princípio de agrupamento do discurso, unidade e origem de suas significações. O autor se configura como responsável pelo texto que produz, pela organização do sentido e pela unidade do texto. Um sujeito que produz um lugar de interpretação, inscrevendo o dizer no interdiscurso, ou seja, no repetível histórico. Todavia, não há estabelecimento de relação necessária entre autor e instauração de discursividade (como supõe
Foucault), mas há relação entre autor-produção de um lugar de interpretação. O princípio de autoria, pois, é um lugar onde se produz a coesão e a coerência textuais, lugar onde a dispersão adquire a aparência de unidade. Vale ressaltar que Orlandi tem articulado tais concepções a práticas de textualização. Eu, por outro lado, redimensionei tais concepções ao conjugá-las aos diferentes modos de funcionamento do sujeito-autor articulados a três instâncias de autoria identificadas a partir do trabalho com o discurso oral, ou seja, com as falas e pronunciamentos das professoras em reuniões nas escolas, caracterizadas como sessões de estudos, de assessoramento pedagógico.3 A função-autor remete à função social que esse ‘eu’ assume enquanto produtor de linguagem. [...] e, das dimensões enunciativas do sujeito, é a que mais está determinada pela exterioridade (contexto sócio-histórico) e mais afetada pelas exigências de coerência, não-contradição, responsabilidade etc. (Orlandi e Guimarães, 1993, p. 61). Em outras palavras, a função-autor está relacionada com o exercício social de autoria – o que está historicamente marcado.
embora isto nem sempre esteja muito claro. Essa instância se encontra mais próxima do
princípio de autoria. Em função de o nível de sujeição do sujeito ao instituído ser maior
aqui, o sujeito tenderá a produzir um discurso em que estarão preservadas sua unidade e
coerência. Por outro lado, a possibilidade de ele interpretar o já-dito e lançar o que está por
ser dito é, consideravelmente, reduzida – não ouso dizer que seja inexistente. Todavia, o
próprio modo de funcionamento de um sujeito-autor plano não pressupõe a produção do
novo, mas incentiva a manutenção do existente. Em decorrência disso, aqui, o princípio de
agrupamento coeso e coerente do discurso se traduz, também, como princípio de
manutenção da suposta unidade das normas e das leis.
Se a instância de autoria plana se constitui enquanto um dos pólos, a de autoria
redonda é o outro. Ela vem acompanhada de um desafio: o abandono das certezas diante
das falhas/faltas que surpreendem o sujeito. O processo discursivo surge como jogo com o
imprevisível, com o sentido outro, com o discurso outro (também discurso do outro. Neste
pólo, a constituição do princípio de autoria vem acompanhada do exercício social da
autoria. Por conseguinte, da função-autor – aquela em que o sujeito falante está mais
afetado pelo contato com o social e suas coerções. No discurso pedagógico, ao invés da
sujeição, irrompe a resistência, materializada em sentidos concernentes a práticas diferentes
das cristalizadas no inventário pedagógico tradicional.
Já, na instância de autoria intermediária, em que o dizer e o silenciar andam
juntos (Orlandi, 1995), os limites entre as redes de sentidos diversas se tornam mais nítidos,
porque os sentidos produzidos ocupam as margens das mesmas – o que permite evidenciar
embates entre redes de saberes e de sentidos antagônicas e, também, conflitos entre as redes
de sentidos a que os sujeitos se filiam. Dito de outra forma, a partir das análises discursivas
construídas, concluí que o sujeito-professor percorre o espaço de sedimentação de sentidos
instituídos e o declara como legítimo, e percorre o espaço da ruptura dos sentidos e também
o declara como legítimo. É lícito aventar que, mesmo sem explicitar, o sujeito perceba
alguma positividade nas duas redes de sentidos, não optando por nenhuma delas em
particular, mas por ambas. Essa instância, além de revelar o quanto o mal-estar é ambíguo e
difuso, indica a plasticidade da própria autoria que se constitui a partir de um jogo de
relações de força entre diferentes redes de sentidos.
Dessa forma, destaco, no que concerne a essa posição outra identificada, que o
sujeito-autor intermediário termina por se colocar nas bordas de redes de sentidos distintas
e opostas na tentativa de construir um sítio de bem-estar, revelando a situação-limítrofe em
que se encontra. É como se o sujeito ocupasse as margens de diferentes redes de sentidos,
flexibilizando as relações de antagonismo pelos movimentos de errância/escapância que
constitui e ligando tais redes sem a necessidade de explicitar a dominância de uma sobre a
outra. Dito de outra forma, por estar no entre-lugares (Bhabha, 1998) de redes de sentidos
distintas, este sujeito revela também certa sedução ambígua pela incorporação das mesmas.
Em decorrência de tudo que se expôs até agora, reconheço, no que concerne ao
mal-estar, que dele escoam sentidos vinculados a uma espécie de desorientação, uma
espécie de distúrbio sintomático na escola pública estadual – o que remete à situação de
indigência do sujeito-professor e acentua a negatividade do mal-estar. Admito, igualmente,
que escapam desse mal-estar sentidos relacionados a movimentos exploratórios incessantes
que são articulados pelas professoras, movimentos que escorregam de todos os lados e para
lá e para cá, avançando e recuando – o que estabelece vínculos identitários entre mal-estar,
autoria e instâncias de autoria, apontando para a positividade inerente ao próprio mal-estar.
O que surgiu, pois, como nova interrogação no que se refere ao mal-estar? A novidade
remete a um mal-estar que se constitui enquanto espaço cultural híbrido (Bhabha, 1998)
que surge contingente e disjuntivamente nas práticas das professoras. Na verdade, desta
“novidade” e do estranhamento diante da instância de autoria intermediária, da terceira
posição discursivo-enunciativa identificada, derivaram desdobramentos do trabalho que
provocaram inquietações outras articuladas aos processos de constituição das identidades
pelos sujeitos-professores da rede pública estadual. Além disso, tais inquietações
provocaram o estabelecimento de novos elos teóricos.
Desdobramentos: os modos de constituição dos sujeitos-professores
Pensar sobre o lugar da autoria e do mal-estar na constituição do sujeito-
professor da rede pública estadual possibilitou reconhecer a constituição heterogênea desses
sujeitos e dos sentidos manifestados por eles, evidenciando os modos difusos, ambíguos e
paradoxais de engendramento dos processos de autoria e de mal-estar, bem como suas
implicações na construção das propostas de ação pedagógicas e suas inter-relações
possíveis. Conforme foi referido anteriormente, da identificação de um terceiro elemento –
a instância de autoria intermediária, derivaram dúvidas que se desdobraram em novas
questões e, portanto, reivindicaram o encontro com autores outros. Quanto às dúvidas
surgidas da condição intempestiva que estava a exigir o estabelecimento de novas relações
que incluíssem autoria e mal-estar, mas buscassem também ir além delas, é possível
traduzi-las em questões que passaram a orientar a proposta deste trabalho. Passei a
perguntar-me: De que modo o sujeito-professor, em seus dizeres, evidencia efeitos de
sentidos sobre a condição do ser professor hoje e as diferentes relações estabelecidas com o
sujeito-aluno, com seus pares, com os diversos encargos da docência, com os pais, com a
carreira do magistério, com o ato pedagógico, com a condição de ser mulher-mãe/mulher-
professora/mulher-proletária, com o ser funcionária pública e com a estabilidade no
emprego, entre outros? Como o sujeito-professor, ao acontecer no discurso como sujeito-
autor, manifesta deslizamentos de sentidos enquanto efeitos de autoria?
Com relação aos elos teóricos instituídos, busquei incluir a problematização do
hibridismo cultural e do entre-lugares (Homi K. Bhabha), da heterogeneidade constitutiva e
mostrada (Jacqueline Authier-Revuz), da constelação de poderes sociais (Boaventura de
Souza Santos) e do sujeito dividido (Jacques Lacan) – o que conduziu a uma forma
diferente de compreender autoria e de constituir os dispositivos teórico-analíticos. Tais
filiações e costuras remetem à nossa própria condição híbrida e heterogênea sobre a qual,
de uma forma ou de outra, suspeitei da existência quando me deparei com aquele ponto
intermediário de autoria.
Assim sendo, há que se abrir mão das certezas relacionadas ao estabelecimento
de sentidos fixos (e certos!). E esse abrir mão do suposto garantido é buscar contemplar, em
referência ao professor, o que Santos (2000) designa como constelação de poderes sociais
ou de modos de subjetivação que constituem esse sujeito: o poder cultural, político,
econômico, religioso, profissional, local, translocal, nacional, transnacional, entre outros.
Além disso, abrir mão desse suposto garantido é transitar no limite e entre limites de
sentidos – o que remete à problematização, no interior/exterior do campo de significações,
de uma dialética constitutiva do sujeito-professor: a dialética da
estabilização/desestabilização simbólica dos professores nos limites de diferentes
paradigmas epistemológicos e político-pedagógicos.
A esse respeito, Michel Pêcheux oferece contribuições interessantes,
principalmente, em seus dois últimos trabalhos – O papel da memória e Discurso: estrutura
ou acontecimento, produzidos em 1983, Lembra o autor que, em se tratando de
estabilização/desestabilização dos sentidos,[...] a memória tende a absorver o acontecimento [...], mas o acontecimento discursivo, provocando interrupção, pode desmanchar essa ‘regularização’ e produzir retrospectivamente uma outra série sob a primeira, desmascarar o aparecimento de uma nova série que não estava constituída enquanto tal e que é assim o produto do acontecimento; o acontecimento, no caso, desloca e desregula os implícitos associados ao sistema de regularização anterior (Pêcheux, 1999, p. 52).
Portanto, mesmo sentidos supostamente fixos jogam nesse movimento que
inclui tanto a regularização do pré-existente quanto a desregulação perturbadora da rede de
sentidos. Tais processos remetem, por sua vez, a um real constitutivamente estranho à
univocidade lógica (Pêcheux, 1997, p. 43). Dito de outra forma, ao real da língua, à alíngua
(concepção tomada por empréstimo de Milner) preenchida por processos de equivocação
ligados ao reviramento dos sentidos, a pontos em que a consistência da representação lógica
cessa, ao discurso outro que marca a resistência do outro como lei do espaço social e da
memória histórica (idem, p. 55). Incluir tais elementos à discussão parece possibilitar o
trabalho no interior/exterior dessa constelação de poderes (Santos, 2000) que circulam
socialmente. E tudo isto remete à crescente presença de pessoas, coisas, fenômenos e
lugares que parecem se situar em entre-lugares ou, como pontua Bhabha (1998, p, 20), em
lugares deslizantes, em momentos e processos que são produzidos na articulação de
diferenças culturais.
Abrindo um breve, mas necessário, parágrafo, é preciso destacar que, em se
tratando de diferenças culturais e para além do que nos coloca Bhabha em suas ponderações
a análises, tal categoria despertou meu interesse pela sugestão de outros modos de
interpretação do discurso pedagógico e, por extensão, do profissional do magistério. Para o
autor hindu-britânico, uma série de processos e fenômenos são articulados a este vasto
campo de significação social que atende pelo nome de diferença cultural e que ele
conceitua como processo de identificação através do qual afirmações da cultura ou sobre a
cultura diferenciam, discriminam e autorizam a produção de campos de força, referência,
aplicabilidade e capacidade (Bhabha, 1998, p. 63). Ainda que todo esse contexto teórico
não me passe despercebido, devo enfatizar que um tal interesse só se justifica se estiver
estreitamente vinculado ao discurso pedagógico, pois as diferenças culturais, que
consistiriam numa força capaz de alterar mais substancialmente a escola, costumam
muitas vezes ser apagadas no seio da própria instituição (Mutti, 2000, p. 13). Ao buscar,
no trabalho realizado, a identificação das marcas de heterogeneidade mostrada nos dizeres
das professoras de uma escola pública estadual, de uma maneira ou de outra, busquei
também evidenciar os rastros que as tentativas(?) de apagamento das diferenças culturais
deixam na língua e nos sujeitos.
Nesse sentido, vale referir algumas conclusões que advieram das análises
discursivas construídas em decorrência deste trabalho. Considerando, pois, as concepções
que tomo como pilares teóricos deste trabalho, é chegado o momento de enfocá-las de
modo mais organizado. Para tanto, apresentarei algumas relações depreendidas dos dizeres
de uma das professoras que participou deste trabalho (doravante, designada por P),
buscando articulá-las à constelação de poderes proposta por Santos (2000). Ao longo do
trabalho analítico, anterior a este texto e fundamental para a possibilidade de construção
dele, busquei evidenciar sentidos ligados à constituição heterogênea das identidades do
sujeito-professor e da autoria. Com um objetivo como este, vários enunciados foram
analisados e, de tais análises, decorreu a evidenciação dos múltiplos sentidos que
constituem o sujeito-professor. Foi possível perceber que o sujeito-professor transita por
diferentes pontos na constelação de poderes sociais.
Após a construção das análises, e retornando freqüentemente aos dizeres da
professora quando declara que Eu acho que nós ainda somos heroínas, com tudo isso aí, nós entramos em sala de aula, damos a nossa aula, fazemos tudo o que temos que fazer numa boa, relativamente boa. Deixamos a coisa fluir. [...] não tem alternativa, infelizmente, porque eu acho que nunca vai dar um salário digno para o nosso trabalho, porque eles alegam que são muitos. Hoje, inclusive, está na ZH que são muitos. São 80 não sei quantos professores e não sei quantos aposentados. Inclusive, ele diz que paga dois aposentados para um professor em sala de aula. Então, quer dizer que ele não vai dar nunca uma coisa que a gente vai achar digna. Como é que vai falar em melhoria sem salário? Como é que vai fazer cursos, comprar livros?,
alguns sentidos foram evidenciados para além daqueles que estariam supostamente contidos
nas palavras – se desbanalizou os sentidos, abrindo caminho para uma perspectiva de
interpretação que considera a heterogeneidade enquanto constitutiva dos sentidos e dos
sujeitos (Authier-Revuz, 1982).
Por extensão, foram identificados efeitos de sentidos de doação, busca de
inclusão e inclusão, expropriação de condições mínimas para o exercício da cidadania,
permissão, exposição pública, desmobilização, caridade e incompetência tanto pedagógica
quanto social, todos eles articulados a um núcleo que denominei sentidos de crise do
magistério ou sentidos de crise do trabalho docente. Eram, assim, identificados processos
discursivos a partir dos quais foi possível fazer costuras entre os pontos da constelação de
poderes sociais e os sentidos que deles escoavam. Este trabalho fez com que se passasse a
falar em memória social, profissional, de gênero em decorrência da articulação entre pontos
de sentidos investigados (a condição de mulher mãe-esposa-professora-proletária-
funcionária pública, o ato pedagógico enquanto trabalho intelectual e caminho
investigativo, o sujeito-aluno, as ações do sindicato, o plano de carreira, as políticas
públicas de educação) e pontos de poderes (poder de gênero, profissional, político, social,
econômico). Além disso, conduziu ao reconhecimento de um modo de funcionamento que
permite cogitar sobre o quanto tais pontos de poderes e de sentidos habitam o sujeito-
professor e são por ele habitados, conduzindo a deslocamentos que fazem supor um sujeito
que se constitui nos e pelos processos que protagoniza ou, como diria Bhabha (1998), um
sujeito que se forma nas bordas intervalares da realidade, nos entre-lugares. Dito de outra
forma, um sujeito heterogêneo porque intervalar e intervalar porque heterogêneo.
Falar em entre-lugares, aqui, quer remeter a processos que se constituem a
partir de diferenças culturais as quais, embora muito específicas do universo pedagógico,
são oriundas de diferentes instâncias sociais. O sujeito se forma nos pontos de encontro
entre elementos que são da ordem do político, do econômico, do social, das relações de
gênero, do profissional. Tais elementos se constituem, por conseguinte, numa espécie de
fronteira que dissolve a polarização: ao mesmo tempo em que ela estabelece um sentido em
relação a outro (X em oposição a Y, por exemplo), dá visibilidade a uma espécie de
processo de descascamento dos sentidos pelo qual a linguagem se hibridiza – o sentido
pode ser um, pode ser outro, pode ser nenhum, pode ser todos ao mesmo tempo. Bhabha, de
certa forma, desenvolve tal idéia quando nos fala da linguagem da diferença no mesmo, a
linguagem que desestabiliza, rompe, fura fronteiras dicotômicas pelo apelo à multiplicidade
de sentidos, ao seu descascamento.
Tal proposição de Bhabha permite a pergunta sobre o que produziria a diferença
do mesmo num discurso pedagógico marcado por sentidos de crise do magistério e do
trabalho docente. Uma possível resposta remete àquilo que existe no intervalo entre as
polaridades primordiais que, no caso do discurso em análise, poderiam ser identificadas
pelos pares público/privado e passado/presente. Ou seja, tal resposta parece conduzir à
necessária identificação de movimentos intervalares manifestados pelos sujeitos quando
transitam pelos pontos de sentidos e de poderes supracitados. Ao transitar, vale destacar,
tais sujeitos e sentidos se constituem e se desconstituem de modo permanente. Sendo esta a
condição primeira para a constituição de suas identidades e filiações, por extensão, é
também condição de possibilidade de autoria no momento em que, como pontua Santos
(2000), revela diferentes combinações dos sentidos e das formas de poder que circulam na
sociedade.
Neste momento, é lícito aventar o encontro das perspectivas de Pêcheux,
Bhabha, Authier-Revuz e Lacan. Falar em trânsitos, deslocamentos ou derivas dos sujeitos
e dos sentidos está relacionado aos processos de estabilização/desestabilização dos sentidos
a que faz referência Pêcheux (1997, 1999) - o que se articula, por extensão, ao
desdobramento do dizer ou, para citar Authier-Revuz (1998a, 1998b), às operações de
desdobramento metaenunciativo ou reflexividade opacificante do dizer. De alguma forma,
tudo isto se associa ao problema fundamental do equívoco enquanto próprio do sujeito e à necessidade de acompanhar ou, pelo menos, de o sujeito se incluir/inscrever nesses jogos sobre o quê (aquilo quê) da língua é trabalhado pelo equívoco e pela conseqüente proliferação do significante (liberado e vigiado) que aí se manifesta (Fiss, 2001, p. 15).
De alguma maneira, também se costuram tais considerações aos acenos, mais ou
menos evidentes, de Lacan para a produção de descontinuidades por um real
necessariamente faltoso, em função de o real ser impossível de se escrever enquanto tal,
remetendo a uma dimensão que poderia ser caracterizada como inassimilável e que
acionaria o surgimento de possibilidades de reviramento dos sentidos pela via da
equivocidade e, ao mesmo tempo, de impossibilidades de evocar o dizer em sua totalidade.
Seria como dizer que aquele que utiliza a linguagem não pode manter com ela uma relação
de pura literalidade, buscando negligenciar os movimentos de escapância de sentidos-
outros/Outros que são constitutivos tanto da linguagem quanto dos sujeitos e que, talvez,
possam remeter a estranhos momentos marginais, lapsos de língua, irrupções do
inconsciente que se instituem na perda de controle do falante e se manifestam como que
simulando faíscas crepusculares da linguagem. Conforme lembra Lacan (1983, p. 129), o
que parece harmonioso e compreensível é que encerra alguma opacidade. E é,
inversamente, (...) na dificuldade que encontramos chances de transparência.
Ouso arriscar uma hipótese segundo a qual seria permitido entender dificuldade
como um correlato das marcas de heterogeneidade mostrada que terminam por inscrever o
outro na seqüência discursiva em relação a uma série de noções enunciativas. Estão
articuladas a tais relações e correlações duas noções que aproximam os autores estudados
aqui: a fala fundamentalmente heterogênea e o sujeito dividido. Uma fala que, por ser
heterogênea, se desdobra, se reduplica e se recobre à medida que o sujeito se desloca por
entre polaridades, constituindo outros pontos de visão e outros modos de funcionamento.
Enfim, à medida que P, por exemplo, habita e é habitada por pontos de poderes múltiplos
que tocam o econômico, o social, o profissional, as relações de gênero, o político, e pontos
de sentidos também diversos e incertos a partir dos quais ela fala e é falada em suas
relações com o sujeito-aluno, com a condição de ser mulher-mãe-esposa-professora-
proletária-funcionária pública, com as políticas públicas de educação, com o plano de
carreira, com o ato pedagógico enquanto trabalho intelectual e caminho investigativo e com
as ações do sindicato.
Neste momento, é importante retornar a Santos e, a partir desse retorno,
construir algumas possibilidades de entendimento dos pontos em que tais deslocamentos
dos sujeitos por lugares de poder e de sentidos diversos tocam os processos de constituição
da autoria que estão, por sua vez, diretamente relacionados aos processos de subjetivação
dos sujeitos-professores. Parece-me que é um deslocamento como tal que possibilita
evidenciar os entre-lugares constituídos pelos sujeitos e que também os constituem
enquanto sujeitos – portanto, retornar a Santos significa, da mesma forma, lançar um olhar
outro para o que nos propõe Bhabha e, por extensão, provocar uma aproximação maior
entre as categorias heterogeneidade (Authier-Revuz e Pêcheux) e hibridismo.
Ao longo deste artigo, pontuei sentidos múltiplos que se articulam a formas de
poder as quais circulam na sociedade, destacando sentidos de crise do magistério e do
trabalho docente nos quais foi possível evidenciar ressonâncias de sentidos de mal-estar.
Surgiram das análises discursivas realizadas, enquanto objeto de pesquisa a ser investigado,
inquietações e dúvidas sobre o porquê da permanência dos sujeitos-professores. São mal
pagos, mal reconhecidos, mal considerados, mas permanecem, continuam, entram em sala
de aula, dão suas aulas, fazem tudo o que têm que fazer, deixam a coisa fluir – e isto quem
nos diz é a própria P.
Com relação a estes porquês, parece-me possível especular um pouco a respeito
do assunto, porque a permanência tende a se configurar como um importante entre-lugar a
partir do qual talvez se possa entender os processos de constituição da autoria e das
subjetividades dos sujeitos-professores. Falar em entre-lugar reivindica, por seu lado, que
seja percebida a heterogeneidade constitutiva dos sujeitos e dos processos sociais e, por
conseguinte, os movimentos produzidos por esses sujeitos. Dessa forma, faz-se necessário
pelo menos mencionar contradições próprias da educação.
Como salienta Milton Santos (1996), o processo de educação atual no mundo é
duplamente polarizado: de um lado, ocorre uma divisão exacerbada do trabalho que exige
saberes específicos para fazeres especializados; de outro lado, uma tal exacerbação da
divisão do trabalho (relacionada à pulverização e fragmentação dos saberes) exige uma
atitude oposta que é o conhecimento do mundo, sem o que não há formação do cidadão.
Decorre de tal contradição ainda uma outra: àquela entre o mundo e as visões, os modos de
interpretação do mundo de que dispomos num dado momento histórico – o que remete à
constituição de linhas que, tendo se originado a partir da globalização, tendem a separar o
mundo da ciência e o mundo da técnica. Tais contradições têm se refletido na escola de
maneiras diversas que provocam um desnorteio na construção das práticas pedagógicas e
em sua legitimação pelos professores.
De maneira bastante ampla, é possível identificar na escola uma função histórica
de preservação da identidade nacional, ou seja, dos valores que caracterizam e distinguem
uma sociedade. Todavia, muitas vezes tal trabalho de preservação dos vínculos identitários
não está fundado no interesse mais geral. Daí o professor, em certas situações, não saber ao
certo o que fazer e ter o seu trabalho questionado com excessiva freqüência. Da mesma
forma, tal estado de coisas denuncia a redução do campo das reflexões abrangentes
(Santos, 1996) de que deriva um fazer sem crítica – denúncia que se materializa nas
palavras de P quando ela declara, sobre seu trabalho, as rotinas que o caracterizam: o entrar
em sala de aula, dar a aula, fazer tudo o que tem que fazer, deixar a coisa fluir.
Ainda que se possa evidenciar em tais dizeres aquilo que Santos (2000) designa
como patologia da participação e patologia da representação4, ressoam neles ecos
bastante fortes que se articulam a tentativas de “salvar” o trabalho docente. Seria dizer que
a professora, mesmo que indicando de maneira mecânica a rotineirização de suas
atividades, tem nessas mesmas atividades a compensação do mal-estar. Ela se compensa no
poder de professora pelo qual circula, na certeza de que, apesar das críticas dirigidas à
escola e aos professores, a sociedade considera fundamental o seu papel enquanto sujeito
que participa e alavanca processos a partir dos quais é possibilitada a preservação de
valores sociais que garantem a constituição de uma memória coletiva – o que convida o
sujeito-professor a reconhecer sua história passada e, sem sucumbir no mal-estar de uma
história de desvalorização e críticas, investigar condições outras para se constituir, de forma
criativa e rebelde, nas malhas do tempo presente.
Em função disso, é possível afirmar que, pelo menos, em dois momentos
escapam pelas palavras de P sentidos de permanência no magistério que rompem com a
inexorabilidade de uma suposta desistência da professora movida pela mal-estar. Quando
ela diz que fazemos tudo o que temos que fazer numa boa, relativamente boa, ela busca no
próprio exercício de sua profissão as razões para nela permanecer, demonstrando que,
apesar de tudo, este é um espaço que ela não negligencia, mas assume enquanto espaço a
ser constituído com a participação de outros sujeitos. Pouco depois, quando indaga Como
vai falar em melhoria sem salário? Como vai fazer cursos, comprar livros?, P deixa
escapar sentidos de indignação e de inconformismo. E é na profissão que se compensa de
novo, é da posição de professora-mulher-proletária que questiona sobre o absurdo da
condição do ser professor hoje. Ao fazê-lo, parece-me que ocorre certa abertura para o
heterogêneo que tem caracterizado nossos tempos, portanto, ela termina por se constituir a
partir de um entre-lugar de sentidos e de poderes que dá visibilidade para a conflitualidade
de conhecimentos, enquanto modos diversos de entendimento do mundo e das relações
sociais, que se revela na escola e nas práticas que desenvolve em sociedade. Portanto, P não
4 Formas de conformismo, abstencionismo e apatia política associadas a um esvaziamento dos espaços de representação do sujeito (a escola, o sindicato, as instâncias políticas etc.).
está totalmente imóvel, acomodada, congelada pelo mal-estar e pela queixa; ela também se
rebela e busca legitimar, através de sua prática docente, o lugar social no qual se inscreve e
a partir do qual se constitui como sujeito-autor.
Santos (1996, p. 17) fala sobre a educação para o inconformismo, para um tipo
de subjectividade que submete a uma hermenêutica de suspeita a repetição do presente,
que recusa a trivilialização do sofrimento e da opressão e vê neles o resultado de
indesculpáveis opções. Talvez não seja exagerado entender que os sentidos manifestados
por P permitem evidenciar, mais do que a exigência de recursos materiais para a realização
de cursos e compra de livros, a indignação e o estarrecimento diante de um discurso que
continua pretendendo regular o espaço e o tempo do professor, atestando sua incompetência
e apresentando alternativas ainda pouco acessíveis a ele. Dito de outra forma, ao interrogar
as formas de regulação que acompanham o discurso da melhoria e da incompetência
pedagógica, P suspeita da legitimidade dos argumentos que sustentam tais discursos,
portanto, ela suspeita da legimitidade que supostamente poderia caracterizar os modos
pelos quais os sujeitos-professores têm sido falados, olhados e tratados na sociedade. Ao
suspeitar e por suspeitar, ela se desloca, ela habita as bordas intervalares de uma realidade
que já não pode ser compreendida apenas por meio de paradigmas dicotômicos que
colocam o professor na condição de oprimido, isto é, ela forma e se forma no entre-lugar
da permanência, da suspeita, da indignação. Ao mesmo tempo, ela busca fortalecer sua
condição de professora ao dirigir seus questionamentos a decisões que parece traduzir como
opções indesculpáveis pela marginalização do magistério, alavancando, enquanto
professora-mulher-proletária, formas de poder social, cultural e profissional que, por
contrariarem os sentidos de incompetência, indiciam sentidos de competência articulados a
uma visão moral e política das condições que o presente oferece ao magistério e daquilo
que o magistério pode construir com elas.
Parece-me que, em um tal contexto, o desafio que está posto ao professor é a
construção de processos de autoria para além do mal-estar enquanto degeneração da prática
docente que se sustenta no discurso da incompetência inerente ao discurso pedagógico. Em
decorrência disso, professores e alunos terão de se tornar exímios nas pedagogias das
ausências, ou seja, na imaginação da experiência passada e presente se outras opções
tivessem sido tomadas (Santos, 1996, p. 23). P, como foi evidenciado nas análises
discursivas referidas ao longo deste trabalho, muitas vezes deixa escapar sentidos que
reviram a história do magistério, sua constituição como categoria profissional, seu
enfraquecimento. As indagações com as quais encerra sua fala parecem romper os sentidos
de mal-estar identificados antes na medida que lançam a este passado um olhar inquieto,
buscando, do interior de sua perplexidade, costurar passado e presente, compreender as
marcas da iniciativa humana que estão inscritas nas opções tomadas e naquelas que
poderiam ter sido tomadas e não foram. Tais indagações indiciam, sobretudo, o conflito de
P entre um modelo regulatório e classificatório de sociedade e um modelo emancipatório,
vulnerabilizando e desestabilizando sentidos cristalizados como o de incompetência
pedagógica e social.
Confesso, agora, que não é trabalho tranqüilo a evidenciação de entre-lugares
num espaço tão marcado pelos sentidos de mal-estar quanto o espaço pedagógico, contudo,
é trabalho desafiador que possibilitou surpreender alguns sentidos outros não previstos no
início da pesquisa realizada. Sem dúvida, um destes sentidos foi o de permanência. Os
sentidos de permanência possibilitaram, por sua vez, a evidenciação de um entre-lugar
extremamente significativo porque, através de sua manifestação, foi possível perceber que
o sujeito-professor (neste caso, P) se inscreve em vários lugares de sentidos não
necessariamente opostos.
Fazemos tudo o que temos que fazer numa boa, relativamente boa; Como vai
falar em melhoria sem salário? e Como vai fazer cursos, comprar livros? são formulações
que indiciam sentidos de incompetência pedagógica e social articulados à patologia da
participação e à patologia da representação (Santos, 2000). No entanto, mesmo se
constituindo enquanto sentidos de mal-estar, são estes mesmos sentidos que se colocam
enquanto condição de possibilidade de autoria por remeterem à formação de um entre-lugar
no qual se constitui o sujeito-professor. É possível, pois, falar em entre-lugar, porque o
sentido de permanência rompe os sentidos de desistência ou acomodação do sujeito-
professor que lança um contra-olhar, isto é, um olhar contra o discurso da desistência e da
acomodação na medida em que escapam pelas palavras proferidas por P a sua
desacomodação diante da condição do ser professor hoje. P está indignada, aborrecida,
inconformada, mesmo que assumindo por vezes a perspectiva enunciativa dominante de um
discurso colonial, P se agita, questiona, não se conforma com um encerramento de conversa
do qual possam advir mais mecanismos de enfraquecimento do magistério público estadual.
As redes de sentidos com as quais P se filia passam por reviramentos. P não desistiu – e é
ela mesma que nos diz isto: Eu acho que nós ainda somos heroínas, não está
inexoravelmente acomodada e silenciada em sua capacidade de indignação. Do interior da
contradição senhor/escravo, opressor/oprimido, representante político/magistério público
estadual, ela lança o seu grito de inconformismo e permanece.
Creio que tais deslocamentos de sentidos e de sujeitos é que terminam por
constituir condições de possibilidade de produção de entre-lugares e, por extensão, de
processos de autoria inspirados em imagens desestabilizasdoras do passado e do presente
(que já não são compreendidos de maneira linear e seqüencial), portanto, imagens
suscetíveis de desenvolver nos professores a capacidade de espanto e indignação e a
vontade de inconformismo. Talvez possam derivar das perguntas de P, de suas
perplexidades e mesmo de seu mal-estar, aprendizagens de novos relacionamentos entre
saberes e, assim, entre pessoas, grupos sociais e culturas.
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