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Fontismo: ideologia e política económica
David Justino jdjustino@gmail.com
Departamento de Sociologia
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA
Comunicação apresentada ao XXXI ENCONTRO DA
ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE HISTÓRIA ECONÓMICA E SOCIAL
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra 18 de Novembro de 2011
O texto que se apresenta resulta de um projecto de investigação em curso, pelo que são bem vindos todos os contributos que entendam por bem transmitir.
Não citar sem autorização do autor.
Fontismo: ideologia e política económica
A regeneração de Portugal está na liberdade. A liberdade é o progresso. O progresso é a herança sem limite, que o pretexto devolveu ao presente e o presente há-‐de devolver á posteridade. Cláudio Adriano da Costa1
Regeneração: capitalismo sem ideologia? O destaque dado por Oliveira Martins a Fontes Pereira de Melo, enquanto primeira figura das “gerações novas” que protagonizaram a política da Regeneração, não prima pelo reconhecimento das suas qualidades pessoais e intelectuais. Em comparação com alguns dos seus contemporâneos, Oliveira Martins considerava Fontes uma figura menor e ridícula, sem a “imaginação colorida” de José Estêvão ou o “talento verdadeiro” de Casal Ribeiro, faltava-‐lhe a veio sarcástica de Souto Maior e estaria muito longe da competência e conhecimento de António Serpa ou Andrade Corvo. Considerava-‐o um homem sem “génio” que se limitava a “obedecer às correntes da época”, especialmente a veiculada pelos “economistas ex-‐são-‐simonianos”, com Michel Chevalier à cabeça2. Tudo se resumia a retórica “banal”, “redonda”, dominada por “frases que, sem comentários, soariam ao futuro como excentricidades de um burocrata maníaco”. Só a “habilidade verbosa o distinguia”3. Não obstante as alusões às "correntes da época" e à influência dos economistas como Chevalier, o tom crítico de Oliveira Martins era reforçado pela imagem criada de um homem cujo único pensamento era a obsessão pelo caminho de ferro: "O caminho de ferro é para ele verdadeiramente, não um símbolo, mas a realidade do progresso. Correr a vapor, ganhar, trocar, gozar, que outra coisa é a vida?"4. Ainda que Fontes não tenha produzido obra escrita, a simples consulta dos discursos parlamentares seria suficiente para perceber que a descrição de Oliveira Martins é redutora e tem como único objectivo ridicularizar o líder regenerador. O desdém a que Oliveira Martins votou a imagem política e pessoal de Fontes Pereira de Melo não pode ser dissociada da sua preocupação em distinguir a Regeneração inicial do seu posterior desvio corruptivo identificado com a política do fontismo. Neste aspecto, essa preocupação de Oliveira Martins não teve repercussão. O que as décadas seguintes vieram consagrar foi o da progressiva identificação entre o período regenerador com a "doutrina" e a política do Fontismo, independentemente da presença de Fontes Pereira de Melo dos elencos governativos. 1 Citado por Joseph James Forrester, The Prize-‐Essay on Portugal. London-‐Edimburgh-‐Oporto, John Weale, 1854, p. 134. 2 Portugal Contemporâneo, vol. II, Lisboa, Guimarães Ed., 8ª Edição de 1976, p. 287. 3 Idem, p. 289. 4 Idem, p. 288.
Poucos dias após a morte de Fontes, Ramalho Ortigão lançava uma farpa lisonjeira que, possivelmente pela primeira vez, defendia essa imbricação: "A Regeneração convertera-‐se desde muito tempo em Fontismo. Há anos que na politica monárquica portuguesa não há de facto senão um único princípio de governo. Esse princípio era António Maria Fontes Pereira de Melo"5. O primeiro problema que desejaria formular não se centra na avaliação da solidez e coerência das ideias de Fontes Pereira de Melo, mas antes em saber se existe ou não uma matriz ideológica do que se designou, de forma generalizada, por Fontismo. O segundo problema decorre dessa excessiva identificação do "modelo" e da "doutrina" com as ideias do governante: até que ponto essas ideias são exclusivas de Fontes Pereira de Melo, criadas ou adoptadas por ele, ou resultam de uma reflexão mais alargada que se processou no seio da elite liberal portuguesa? Quer Oliveira Martins, quer mais tarde Anselmo de Andrade, convergem na tese de que Fontes é o iniciador e promotor da "economia política dos melhoramentos materiais"6 inspirada nos economistas franceses: "Ao tempo [1852] estava ao leme o novel estadista Fontes, apaixonado do fomento e entusiasta do capitalismo, que veio para o Governo com a economia política de Michel Chevalier"7. Esta excessiva personalização entre Fontes e o Fontismo, como teremos oportunidade de demonstrar, é enganadora. Terceiro problema, decorrente do anterior, centra-‐se em perceber e explicar qual a génese e a difusão dessas novas concepções entre a elite liberal e até que ponto é que à veia inspiradora e inovadora de Fontes não deveremos contrapor o da prévia maturação e aggiornamento ideológicos do liberalismo português, em grande parte por influência do que se passava na Europa, especialmente em França e na Inglaterra. A confirmar-‐se esta hipótese poderá ter sentido falarmos de um projecto e programa do fontismo anterior à própria Regeneração? Por último, subjacente a estes três problemas, justifica-‐se colocarmos o problema da existência ou não de uma ideologia distinta ou "construída" sobre os princípios do liberalismo português pós-‐guerra civil. Ou seja, estaremos perante uma "nova geração" portadora de um novo conjunto de ideias, valores e princípios que tendem a orientar uma outra acção política, ou, pelo contrário, estaremos perante uma reconfiguração dos pilares ideológicos do liberalismo português. Entre a historiografia da segunda metade do século XX há algumas teses a considerar. A defendida por Manuel Villaverde Cabral identifica a natureza da Regeneração e do Fontismo, como um modelo de desenvolvimento assente na desideologização da acção política, requisito indispensável à pacificação e à convergência entre as diferentes facções e partidos, cuja conflitualidade havia marcado a primeira fase da implantação
5 As Farpas, tomo Tomo III, Lisboa, David Corazzi -‐ Editor, 1887, p. 189. 6 Anselmo de Andrade, Portugal Económico e Outros Escritos Económicos e Financeiros (1911-‐1925), Lisboa, Banco de Portugal, 1997, p. 161. 7 Idem, p. 191.
do liberalismo em Portugal. A "reconciliação política das classes possedentes" em torno de um programa de fomento dos "melhoramentos materiais"8. Vai no mesmo sentido a apreciação feita por José-‐Augusto França quando defende que o Fontismo "nunca teve ideias definíveis em termos ideológicos" susceptíveis que sustentarem um programa político. Fontes era para França um "homem positivo, preso no entusiasmo pragmático do seu sistema, não podia ir mais longe"9. Também para este historiador a ideologia cedia perante a busca de pragmatismo. A ideia generalizada pelo discurso político de que a ideologia divide e que a acção "concreta" dissipa as cisões e o conflito, volta a funcionar como uma armadilha onde caiem os agentes envolvidos da mesma forma que os observadores distanciados no tempo. Miriam Halpern Pereira adopta uma tese substancialmente diferente das anteriores. Na esteira de Oliveira Martins, identifica o Fontismo com as teorias livre-‐cambistas, sua marca fundamental, inspiradas no liberalismo da Escola de Manchester:"Fontes estava profundamente convencido das vantagens de liberalizar o comércio externo. Encantava-‐o o modelo britânico, ainda que tivesse o bom senso de compreender que a situação do país não permitia o decalque”10 . A convicção da autora sobre a adesão de Fontes Pereira de Melo ao ideário liberal e dentro deste às correntes liberais britânicas, onde encontramos os defensores mais radicais do liberalismo económico e do desarmamento pautal, é conhecida e radica no perfil elaborado por Oliveira Martins, aquele que se considerava o seu maior crítico e adversário. A autora refere-‐o num “retrato” rigoroso do ensaísta: “O eixo central da sua crítica à Regeneração é a discordância em relação à teoria livre-‐cambista: o “liberalismo de Manchester” ou a “anglomania”, como lhe chama, utilizando expressões que traduzem bem o seu desdém por esta corrente”11. O capitalismo que a Regeneração viria a iniciar era assim o resultado da convergência entre o livre-‐câmbio enaltecido pela nova elite dirigente, de influência britânica, e a economia política dos "melhoramentos materiais" tendo como fonte de inspiração Michel Chevalier e a escola francesa. A consequência terá sido a da estruturação de um capitalismo dependente assente no sector exportador da agricultura -‐ a "granja" -‐ e no sector financeiro desenvolvido por uma oligarquia -‐ o "banco" -‐ que prosperava à sombra do Estado, da dívida pública e das remessas de emigrantes12. A tese que pretendo defender centra-‐se na identificação do projecto do Fontismo com a ideia de progresso, a qual foi adoptada e adaptada à situação portuguesa, durante os quinze anos que antecederam o pronunciamento liderado pelo Duque de Saldanha que deu início ao período "regenerador". O ponto de partida não é novo. António José Saraiva já o havia sugerido, sem que motivasse outros investigadores: " Este 8 Manuel Villaverde Cabral, O Desenvolvimento do Capitalismo em Portugal no Século XIX, Porto, A regra do Jogo, 1976, pp. 163-‐165. 9 O Romantismo em Portugal. Estudo de Factos Socioculturais, Lisboa, Livros Horizonte, 3ª Edição de 1999, p. 404. 10 Diversidade e Assimetrias: Portugal nos séculos XIX e XX, Lisboa, ICS, 2001, p.68. 11 Idem, p.141. 12 Miriam Halpern Pereira, Livre Câmbio e Desenvolvimento Económico. Portugal na segunda metade do século XIX. Lisboa, Edições Cosmos, 1971.
contramito da Decadência revela sobretudo que o mito europeu e burguês do Progresso não vingou em Portugal a não ser como ideologia particular de certos grupos profissionais e políticos, como o fontismo ..."13. Tem especial acuidade a observação de Saraiva quando fala do "mito europeu e burguês do Progresso" tão evidenciado pelo liberalismo europeu, especialmente o francês. A velha linhagem francesa da ideia de progresso Turgot -‐ Condorcet -‐ Constant era bem mais conhecida no continente europeu que a sua congénere britânica, Smith -‐ Godwin -‐ Mill -‐ Spencer, mas ambas convergentes na associação da ideia de progresso à da liberdade14. Max Weber recusava-‐se a utilizar o conceito de progresso. Percorrendo toda a sua obra, veremos que são escassas as referências ao termo e as explícitas destinam-‐se a alertar para o risco de confusão quando associam o “importante conceito” de progresso aos processos de mudança social. O termo poderia, segundo o sociólogo alemão, ser utilizado quando na acepção de continuidade de um particular processo de mudança ou quando aplicado à evolução técnica. Porém a sua generalização no domínio do senso comum de há muito que se transformara numa categoria com manifesta carga valorativa e ideológica15. Mais do que um conceito ou instrumento, deveria ser entendido como objecto da análise sociológica. Contrariando a tese do processo de “desideologização” -‐ incómoda, esta ideia de um capitalismo emergente, destituído de ideologia -‐ pretendo demonstrar que estamos perante uma nova reconfiguração da ideologia liberal, enquanto conjunto sistematizado e coerente de ideias, valores e crenças, visando a mudança política e social e orientadas para um determinado fim que se pretende atingir. O conceito de ideologia merece uma atenção redobrada. Não é explícito em Manuel Villaverde Cabral quando defende o processo de desideologização, nem nos restantes autores que o tomam como ideário -‐ conjunto de ideias e valores característicos de um indivíduo ou grupo. A primeira formulação da noção de ideologia que irá marcar o pensamento social contemporâneo devemo-‐la a Marx. É na obra conjunta com F. Engels, A Ideologia Alemã, que Marx introduz a noção de ideologia como reflexo das condições socioeconómicas e como um produto de classe, construído e desenvolvido com o fim de dominação e de reprodução dos interesses dos grupos dirigentes. É neste contexto que, para Marx, a ideologia é sempre uma distorção da realidade, uma ilusão, a falsa consciência impregnada nos indivíduos através dos processos de socialização que não dominam. À realidade só se chega pela ciência, a ideologia dissimula-‐a.
13 A Cultura em Portugal: teoria e história. Lisboa, Livraria Bertrand, 1982, p. 123. 14 Robert Nisbet, History of the Idea of Progress. Brunswick-‐London, Transaction Publishers, 1994, especialmente o capítulo 6 (Progress as Freedom), e John Schwarzmantel, The Age of Ideology. Political Ideologies from the American Revolution to Postmodern Times. Houndmills-‐London, Macmillan Press, 1998, capítulo 3. 15 Max Weber, The Methodology of the Social Sciences, . New York: The Free Press, 1949, pp. 27, 39-‐40.
Com algumas variantes, de Gramsci a Althusser, esta tem sido a matriz conceptual entre as correntes marxistas e o efeito de distorção o principal problema que continua por resolver entre os seus seguidores. Quando falamos de ideologia, não teremos de a conceber sempre como instrumento de dominação ou de hegemonia de um grupo sobre outro, os efeitos de posição ou de disposição social não são necessariamente sujeitos a um determinismo de classe nem à unicidade de um pensamento dominante. As ideologias coexistem no seio da mesma sociedade, independentemente da maior ou menor centralidade dos seus valores e instituições. Diria mesmo que as ideologias interagem, confrontam-‐se e influenciam-‐se, moldam-‐se aos novos desafios e problemas sociais, mas todas tendem a reproduzir-‐se com base em dois tipos de processos sociais: integração e legitimação. Num trabalho recente, I. Wallerstein introduz o conceito de ideologia enquanto "metaestratégia política". Recusando as concepções que identificam as ideologias como meras visões do mundo, de pré-‐juízos ou pressuposições, Wallerstein entende a ideologia liberal como instrumento de dominação e resposta ao problema político central do período pós-‐napoleónico europeu: como conciliar a busca de concretização do conceito de soberania popular com a vontade dos notáveis em manterem-‐se no poder, dentro de cada estado e no conjunto do sistema mundial, com vista a assegurar os mecanismos de acumulação de capital? Essas metraestratégias constituem-‐se, assim, como programas que tendem a ajustar-‐se ao facto de os processos de mudança política e social se terem tornado normais, quando até então constituiriam excepções. A concepção de Wallerstein não se distingue das perspectivas marxistas tradicionais: as ideologias são entendidas como instrumentos de dominação, funcionalmente orientadas para assegurar os mecanismos de reprodução social e de acumulação de capital. Tal como lembrava Clifford Geertz, as ideologias funcionam como matrizes para a criação da consciência colectiva16. Enquanto conjuntos ordenados de valores, símbolos culturais, crenças e visões do mundo, as ideologias centram-‐se sobre um reduzido número de princípios que se inscrevem em instituições e que tendem a orientar a acção individual e colectiva, logo, como destaca Louis Dumont, ancorada na realidade17. As ideologias tendem a inscrever-‐se no sistema central de valores, mas distinguem-‐se da actividade científica e religiosa18, ainda que com elas promova pontos de contacto, de sobreposição e, quantas vezes de confronto. Mais do que um sistema de representações, as ideologias tendem a cristalizar-‐se em autênticas axiomáticas que não só orientam a acção, mas pretendem condicionar a 16 Clifford Geertz, “Ideology as a Cultural System”, in Raymond BOUDON e Mohamed CHERKAOUI, Central Currents in Social Theory. Contemporary Sociological Theory, 1920-‐2000, London, Sage Pub, 2000. 17 A partir de Luc Boltansky e Ève Chiapello, Luc Boltansky e Ève Chiapello, Le Nouvel esprit du capitalisme, Paris, Gallimard, 1999, p.3. 18 Edward Shils, “The Concept and function of Ideology”, International Encyclopedia of the Social Sciences, vol. VII.
busca de acção, os programas e as políticas, quando construídas sobre visões sustentadas da realidade e dos problemas e desafios que esta coloca. Nesta perspectiva, secundando a proposta avançada por Michael Freeden19, as ideologias são complexos que resultam de diferentes combinatórias de conceitos, nomeadamente políticos, tais como os de liberdade, progresso ou individualismo, no particular contexto das ideologias liberais. Tendem a ser associadas a grupos sociais, que não necessariamente classes, e reproduzem visões simplificadas da sociedade e do mundo, permitindo assim fornecer orientação à elaboração de programas e planos para a acção, bem como na criação das instituições políticas. Por outro lado, as ideologias tendem a ser o principal recurso para a legitimação da acção ao mesmo tempo que exercem o efeito de integração pela densificação dos processos de adesão e vinculação (mais ou menos racional, mais ou menos emocional) dos indivíduos aos grupos e à sociedade. As ideologias assentam num reduzido conjunto de princípios que tendem a revelar-‐se mais perenes, mas combinam de forma diferenciada os conceitos a que a experiência reflexiva vai conferindo mais densidade e complexidade. O conceito de liberdade inclui as ideias de limitação da coerção, de autonomia ou autodeterminação. O conceito de progresso assenta nas ideias de desenvolvimento científico e tecnológico, na de recursos ilimitados e de afectação racional, na ideia de evolução quando não de determinismo. Não se trata de uma mera visão simplificada do mundo, tal como ele é, mas pretende assumir-‐se como uma convicção do que ele deve ser. Por isso, tende a expressar juízos de valor, ainda que pretenda legitimar-‐se a partir de juízos de facto. As ideologias são, assim, complexos de configuração variável que tendem a ajustar-‐se aos problemas específicos de uma época e de uma sociedade particular. Peter Wagner costuma construir as suas problemáticas da vida social, inerentes a qualquer sociedade humana, sobre a procura e concretização de três objectivos fundamentais: um conjunto de normas que regulem a vida em comum, um conhecimento válido e a vontade de satisfazer as necessidades humanas. À primeira problemática Wagner designa-‐a por política, à segunda por epistémica e a terceira por económica20. Do confronto e equilíbrio destas três problemáticas decorre uma particular configuração social particularmente expressa e inscrita quer no sistema de valores quer no das instituições. No caso particular das sociedades liberais europeias de oitocentos essas três problemáticas traduzem-‐se nos conceitos de liberdade, autonomia e ordem que se inscrevem na problemática política, os conceitos de ciência e racionalidade na problemática epistémica e, por último, a ideia de progresso como conceito central da organização e desenvolvimento das sociedades.
19 Ideologies and Political Theory: A Conceptual Approach, Oxford, Clarendon Press, 1998. 20 Peter Wagner, Modernity as Experienece and Interpretation. A New Sociology of Modernity. Cambridge, Polity Press, 2008, pp. 12-‐13.
Liberdade, ordem e progresso, eis a trilogia que sintetiza os desafios das sociedades liberais e que polariza as concepções ideológicas que pretendem romper com a "velha ordem" das sociedades de Antigo Regime. No presente comunicação não abordaremos a problemática política -‐ que ficará para melhor oportunidade -‐ e centraremos a análise sobre a problemática epistémica e a económica, através das diferentes narrativas em torno da ideia de progresso que integra quer a dimensão económica quer a dimensão moral e do conhecimento. Quem são os seus defensores e mais destacados protagonistas? Quais as suas fontes de inspiração e influência? Como é que a ideia complexa de progresso foi adaptada às circunstâncias e aos problemas da sociedade portuguesa? Eis as questões a que pretendo responder. As primeiras formulações O termo progresso era geralmente utilizado para identificar o estado de adiantamento, aperfeiçoamento ou melhoramento de uma determinada actividade. Falava-‐se, assim, do progresso da indústria ou da agricultura, do estado progressivo dos “conhecimentos humanos” ou do “progresso da cultura da terra”. O termo progresso passa a ter uma acepção diferente quando é associado à ideia de civilização e à sua representação enquanto algo de dinâmico, que, de forma gradual se expressa por um avanço da humanidade. Em 1821, Francisco Soares Franco citava Rosseau numa sessão das Cortes para transmitir a ideia que o “progresso da civilização” tornava os homens melhores21. Alguns anos mais tarde, o deputado Morais Sarmento falava do “progresso da civilização” em África22 e um outro deputado, Araújo e Castro, apresentava à Câmara dos Deputados um “Projecto de providencias administrativas sobre Pontes, Estradas, e comunicações hidráulicas” invocando a relação que destes “melhoramentos, com os progressos da civilização, e com a prosperidade da Agricultura e Comércio interno”23. Alexandre Herculano, numa sessão da Câmara dos Deputados de 1840, utiliza igualmente a expressão “progresso da civilização” para distinguir os novos valores e princípios emergentes na época em comparação com o que ele entendia serem os valores tradicionais:
"O espírito da nossa época visivelmente é o de substituir a força intelectual à força bruta; os combates do raciocínio aos da lança e da espada; a discussão aos peloutos e às baionetas.
21 Francisco Soares Franco, Diário das Cortes Gerais, 23.08.1821. 22 Morais Sarmento, Diário da Câmara dos Deputados, 12.01.1828. 23 Araújo e Castro, Diário da Câmara dos Deputados, 29.01.1828.
É por isso que nós os cartistas preferimos as negociações á guerra; os argumentos às injurias; o pensamento da nossa época ao pensamento da idade media. Nós compreendemos o progresso da civilização"24.
Cada uma das dicotomias enunciadas por Herculano tem uma expressão precisa do que é o seu pensamento, mas também do que ele entende ser o travejamento cultural do “espírito” e “pensamento” desta nova era. À mentalidade tradicional, herdeira dos valores e princípios da “idade média”, associam-‐se a “força bruta”, a guerra e a violência das armas, aquilo que são os instrumentos da opressão por parte dos regimes tirânicos e absolutistas; opõem-‐se os pilares da nova mentalidade: a “força intelectual”, os “combates do raciocínio”, o debate das ideias, a diplomacia. A passagem de uma à outra não é mais do que o processo que designa por “progresso da civilização” e que se traduz por um aperfeiçoamento da organização social e um avanço da humanidade para um outro patamar civilizacional. Não se trata, portanto, de um mero adiantamento ou aumento gradual que as acepções tradicionais do termo progresso poderiam expressar. É uma alteração profunda de ordem cultural e civilizacional que se estava a concretizar. A última frase encerra ainda um significado que importa destacar: “Nós [os cartistas] compreendemos o progresso da civilização”, ou seja, para Herculano não se trata de uma evidência, mas antes de um processo complexo de reflexão e representação de uma visão da história das sociedades e da lógica que lhe está subjacente. Ou seja, o que Herculano parece querer dizer é que ele e os cartistas percebem o “sentido da história” ou, numa expressão que, mais tarde, virá a ser consagrada, compreendem a “marcha da humanidade”, os seus fundamentos e a sua direcção. É interessante como o pensamento de Alexandre Herculano sobre a ideia de progresso se revela, neste excerto de um discurso parlamentar de 1840, bem mais globalizante que um texto, datado de 1837 e que lhe é justificadamente atribuído:
"Os meios de fácil transito no interior de qualquer país são o elemento indispensável para a prosperidade do povo, e para o progresso da indústria. (...) Só o trabalho e a indústria abrem as fontes do verdadeiro progresso: mas para estes dois fundamentos da ventura geral se poderem assentar bem, cumpre animar os homens laboriosos, e industres; para isto o meio mais conveniente é o facilitar-‐lhes o modo de extrair os frutos dos seus trabalhos, transportando-‐os facilmente aos grandes mercados; e para tal resultado se alcançar é absolutamente indispensável a construção de estradas e canais. (...) De futuro, a Europa, cortada em todas as direcções por semelhantes vias de comunicação [caminhos de ferro], constituirá um só país, e os seus habitantes um único povo. Assim se acelerará a grande revolução que fermenta no espírito dos homens, e que tende a estabelecer a máxima parecença de costumes, de
24 Alexandre Herculano, Diário da Câmara dos Deputados, Sessão de 6 de Julho de 1840, p. 66.
crença, de cómodos, e de interesses; a criar em fim a verdadeira fraternidade entre todas as nações"25.
Trata-‐se da primeira formulação da ideia de progresso associada ao desenvolvimento dos meios de comunicação, aos melhoramentos materiais e, especificamente, ao caminho-‐de-‐ferro. A base do “verdadeiro progresso” é a produção de riqueza (o trabalho e a indústria, esta entendida no sentido mais alargado de actividade produtiva), mas se não existir uma rede de comunicações que facilite a mobilidade das mercadorias e o acesso aos grandes mercados essa riqueza é efémera. A convicção de que o caminho-‐de-‐ferro e as vias de comunicação darão um contributo decisivo ao alargamento e integração dos mercados internos é facilmente extrapolável para a crença numa Europa de um só país e um só povo, construída através da progressiva aproximação dos costumes, das crenças, dos cómodos e dos interesses. O caminho-‐de-‐ferro tornava-‐se assim um instrumento não só de “progresso material”, mas também de “progresso moral” traduzido no esbatimento das diferenças culturais entre os vários povos europeus e na construção da “verdadeira fraternidade entre todas as nações”. Esta preocupação de Herculano com o "progresso moral" é central no seu pensamento. Exprime-‐a no texto sobre a extinção da pena de morte -‐ "Felizmente o progresso intelectual e moral não pára" -‐, sobre a instrução pública ou no opúsculo sobre a Escola Politécnica de Lisboa. Nestes textos, por mais de uma vez, Herculano expressa a crença numa marcha imparável da humanidade para a perfeição:
"Quando o género humano, no seu caminhar contínuo para a perfectibilidade de que ainda está tão remoto, e a que nunca chegará porventura, é agitado por uma ideia profundamente progressiva; quando as nações peregrinas na estrada infinita da civilização se lançam rapidamente para o futuro, forçoso é que essa ideia se incarne em todos os modos de existir das sociedades, e que cada um deles sirva para a fazer triunfar".
"Multiplicai os institutos de civilização e de progresso" clama Herculano em defesa da instrução pública assegurada pelo Estado ou na de estabelecimentos científicos como a Escola Politécnica, instituições fundamentais para difundir e generalizar o conhecimento junto das novas gerações: "É a mocidade que lá tem seu lugar, é o futuro que há-‐de saciar-‐se nessa fonte caudal de civilização e de verdadeiro progresso". Tal como o caminho-‐de-‐ferro poderia transformar-‐se num instrumento de progresso material, as instituições de ensino e de criação cultural assegurariam essa marcha para a "perfectibilidade" do género humano que o autor identifica com o progresso moral e intelectual.
25 "Caminho de Ferro", artigo anónimo atribuído a Alexandre Herculano publicado em O Panorama, vol. I, nº 11 de 15 de Julho de 1837, pp. 86-‐7. Cf. Alexandre Herculano, Um Homem e uma Ideologia na Construção de Portugal. Antologia organizada com prefácio e notas de Cândido Beirante e Jorge Custódio. Lisboa, Livraria Bertrand, 1978, p. 333.
Oliveira Marreca, figura destacada do liberalismo moderado entre o cartismo e o setembrismo, co-‐fundador com Herculano de O Panorama e professor de economia política, adopta em 1843 uma posição muito próxima do historiador sobre o papel dos meios de comunicação como instrumentos de integração:
"Andai para diante -‐ progresso, progresso! nos clamam de toda a parte. -‐ Também o queremos; mas como andar para diante, se nós não temos estradas! E como as escusaremos se elas significam tudo isto -‐ na ordem económica, barateza, abundância e comércio -‐ na ordem civil, segurança -‐ na ordem política, nacionalidade -‐ na ordem moral, civilização?26
A associação da ideia de progresso ao desenvolvimento dos meios de comunicação é evidente, não só como infra-‐estrutura de formação do mercado interno à escala nacional, mas também como requisito da acção do Estado na salvaguarda da segurança interna e na afirmação na “nacionalidade”, ou, por outras palavras, na formação de um espaço nacional de cuja coesão o Estado era garante. Existe uma outra concordância entre Marreca e Herculano que importa reter para análise posterior: ambos reconhecem que o “progresso material” das estradas e outros meios de comunicação é indissociável do “progresso moral”, expresso por Herculano na “grande revolução que fermenta no espírito dos homens” e por Marreca na ideia de “civilização”. Essa ideia foi explicitada por Marreca no famoso discurso que preanunciou a formação do grupo dos ordeiros ou doutrinários, epítetos que os setembristas consagraram, ainda que contra a vontade dos visados:
"... a civilização é um facto complexo de que nem só o elemento política que em si envolve todas as formas de Governo pôde alternativamente ser causa e efeito : a civilização é também efeito do elemento ascético que compreende a religião, do elemento do útil que abrange as ciências físicas e matemáticas, a industria e a economia política, e do elemento do belo que abrange as Artes Liberais, as Boas Artes. Estes elementos que constituem as necessidades fundamentais do espírito humano, e o principio regulador da sua energia, entram forçosamente na organização do homem, e sem o seu desenvolvimento simultâneo não se pode conceber nem a existência da sociedade, nem da civilização"27.
Repare-‐se que Marreca ainda não utiliza o termo progresso, mas antes "desenvolvimento simultâneo" para caracterizar a dimensão dinâmica dos elementos constituintes da "civilização". Esta é a visão de uma totalidade complexa e não susceptível de ser reduzida aos elementos "materiais". Para aquele parlamentar o
26 António de Oliveira Marreca, "Economia Politica. Considerações sobre o Curso d' Economia Politica, publicado em Paris em 1842 pelo Sr. Miguel Chevalier", in O Panorama, Vol. 2º -‐ Série 2ª, Lisboa, Typographia da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Uteis, Janeiro a Dezembro de 1843, p. 139. 27 DCD, Sessão 21.02.1839, p. 351.
"alvo de todas as sociedades ... é a felicidade" a qual "não se obtém só por esta ou aquela forma de Governo, abstractamente considerada, mas que supõe também a existência da segurança individual, e de propriedade, da industria, da difusão dos conhecimentos, e da moralidade, ou religião"28. Tomando a felicidade como um "fim" e o "desideratum de todas as associações humanas", Oliveira Marreca considera que as instituições liberais e a própria liberdade não são mais do que "um meio conducente a esse fim". No caso da liberdade, trata-‐se de um meio que "possui a singularidade de contribuir mais poderosamente do que os outros para o fim social, e de influir neles; porque nem só a liberdade civil e política influi sobre o fim social; mas a liberdade do comércio, a liberdade da indústria, a liberdade do ensino, a liberdade da imprensa, a liberdade do culto, a liberdade da terra, a liberdade da urna têm igual influencia; igual digo em qualidade, não em quantidade"29. Mas para que essa liberdade frutificasse era indispensável que pudesse ser exercida no contexto da "ordem, da segurança, da justiça, da prosperidade". É difícil analisar o discurso de Oliveira Marreca sem identificar algumas coincidências com os textos de Guizot e o seu conceito de "civilização", para mais sabendo que entre os dois autores encontramos facilmente Herculano, esse comprovadamente leitor e conhecedor do historiador francês. A ideia de civilização construía-‐se, assim, sobre a velha trilogia liberal da liberdade, ordem e progresso, sem que este último termo fosse então explicitado. Quatro anos mais tarde, as expressões "desenvolvimento simultâneo" e "prosperidade" diluem-‐se na ideia de progresso Por último, um pormenor não despiciendo: o facto de esta adesão de Oliveira Marreca à ideia de progresso – “progresso, progresso! nos clamam de toda a parte” – ser expressa numa obra de comentário ao curso de economia política de Michel Chevalier, publicado em Paris em 1842. É através da obra económica deste discípulo de Saint-‐Simom que Oliveira Marreca enaltece a ideia de progresso, sendo provável que tenha sido a sua acção de divulgação que inspirou alguns dos jovens políticos da Regeneração na adesão ao novo ideário. Progresso: ciência, crença e teleologia Se existe em Herculano uma perspectiva teleológica da ideia de progresso que decorre de uma filosofia da história, noutros actores identificam-‐se concepções menos fundamentadas, entendendo-‐o como algo de inevitável, portador de um processo de mudança irresistível e dificilmente contrariável. Num discurso pronunciado na sessão da Câmara dos Deputados em 1851, o deputado António da Cunha Souto Maior, identificado com o cartismo mais livre-‐cambista, enunciava o que seria o grande destino das sociedades: 28 Idem, p. 352. 29 Idem.
"A civilização caminha inflexível como um grande destino, para agrupar numa só família o género humano, e beneficiar todas as relações da vida"30.
A ideia de progresso para este deputado identificava-‐se com essa marcha “inflexível” da civilização como “um grande destino” que seria a utopia kantiana da “paz universal” expressa através desse “agrupar numa só família o género humano”. Cunha Souto Maior vai mais além que Herculano que imaginava a Europa de um só povo e de um só país. Mas enquanto este antecipava esse sonho pelo desenvolvimento do caminho-‐de-‐ferro e das comunicações, este deputado via na liberdade de comércio o principal instrumento de progresso:
“…a liberdade do comércio é um princípio, é uma aspiração que conta sessenta séculos de vida, que tantos dura o mundo. É o progresso na sua expressão prática mais bela; é o empenho do homem para o libérrimo exercício da sua inteligência, das suas faculdades e da sua acção”31.
A crença numa marcha “inflexível” para um destino imaginado era como uma projecção da história da humanidade feita da superação das fronteiras entre os povos e os países através da livre circulação de pessoas e bens e da plena utilização dos novos meios de transporte e comunicação que aproximariam os povos e os fundiriam “numa só família”. A convicção expressa por Cunha Souto Maior na Câmara dos Deputados não era nova naquela sala. Alguns anos antes, José Estêvão, numa sessão de 1843, dava conta desse novo “facto social” que se difundia de forma irresistível um pouco por todo o lado:
"…, isto a que se chama progresso é um facto social, é uma Lei incontrastável, não há que resistir , une, incorpora, propaga-‐se, e quando a supõe menos, bate-‐lhes á porta: logo, Sr. Presidente, não acreditar no progresso é pirronismo miserável, é não acreditar num axioma. (...) Deixemos erros de homens, erros de coisas; o desenvolvimento do princípio liberal foi tão forte, que se expandiu; depois de entenderem que a expansão era muito longa, e extensa, quiseram resistir, e subverte-‐lo; têm resistido até hoje, Sr. Presidente, e é esta a consequência inevitável do Progresso, que esses pigmeus Estadistas não conhecem, do Progresso que está batendo á porta, que está abalando as cadeiras em que eles estão assentados!!"32.
Contextualizado este excerto na eloquência dramática reconhecida a José Estêvão e na oposição radical que fazia ao governo cartista, importa reter algumas das expressões cujo significado se apresenta relevante. Em primeiro lugar, a imagem de que a ideia de progresso é algo entre a crença e a ciência: “não acreditar no progresso (…) é não acreditar num axioma” do qual se deduz uma “lei” dos factos sociais que não é possível contrariar – “não há que resistir, une, incorpora, propaga-‐se”. A inevitabilidade do 30 Cunha Souto Maior, Diário da Câmara dos Deputados, Sessão de 24 de Março de 1851, pp. 272. 31 Idem, pp. 273. 32 José Estêvão, Diário da Câmara dos Deputados, Sessão de 7 de Janeiro de 1843, pp. 125-‐6.
progresso é, assim, expressa enquanto convicção e crença que não exige demonstração. Já não se trata da fundamentação “providencial” da marcha da humanidade numa perspectiva escatológica, mas antes a associação dessa caminhada “inflexível” como prolongamento da evolução da história humana sustentada numa visão que se presumia científica.
Mais do que uma profissão de fé no progresso e civilização, estes testemunhos assumem a visão teleológica do desenvolvimento humano assente na globalização dos princípios da liberdade e recorrem invariavelmente ao “sentido” da história e ao desenvolvimento da ciência, como forma de afirmar a inevitabilidade e a legitimidade dessa marcha. Poderíamos dizer que à profusão na época das utopias igualitárias e socialistas, responderam as correntes liberais com a utopia progressista e liberal. De comum a convicção (quando não, fé!) na evolução social em direcção a uma sociedade imaginada e ambicionada, de paz e de abundância. Como expressava o deputado L. V. Afonseca, em sessão parlamentar de 24 de Março de 1851, “a guerra hoje entre as nações reduz-‐se à guerra de indústria, a guerra de progresso intelectual e material”33. Era esse o grande debate e a grande inovação no discurso liberal de meados de oitocentos34.
O segundo aspecto a destacar é a invocação corrente da ciência como forma de afirmar as novas ideias políticas e legitimar a acção política. Robert Nisbet35 há muito que destacou esta característica do discurso em torno da ideia de progresso, característica essa que se consolida ao longo do século XIX, tornando-‐se, “cada vez mais em símbolo sagrado dos vocabulários Ocidentais”, quer de origem mais académica quer mais popular36.
Tal como a generalização da ideia de progresso em Portugal se enviesou para a prioridade ao “progresso material” expressa pela identificação das políticas com os “melhoramentos materiais”, também a invocação da ciência, mais do que expressar o primado da tecnologia, acabou por se confinar à “ciência económica” enquanto fundamento da ideia de progresso em geral, e do Estado e da governação, em particular. A “moda” de decidir de acordo com os princípios da ciência e com os escritos dos economistas inicia-‐se claramente com o novo discurso liberal de meados do século XIX.
O recurso indiscriminado a essa forma de legitimação do discurso político levou mesmo Fontes Pereira de Melo a denunciar o abuso: “É notável o relatório deste projecto, porque diz mais de uma vez que o projecto está de acordo com a Ciência, eu tenho notado que esta expressão está hoje muito em voga, porque a tudo quanto se quer aprovar, se diz que está de acordo com a ciência (riso)”37.
33 DCD, 1851, p.255. 34 Cf. Michael Biddiss, “Progress, prosperity, and positivism: cultural trends in mid-‐century”, in Bruce Waller (Ed.), Themes in Modern European History, London-‐N. York, Routledge, 1995, pp. 190-‐212. 35 NISBET, Robert, Ob. Cit., , pp.173-‐177. 36 Idem, pp.173-‐4. 37 DCD, Sessão de 24 de Março de 1849, Discussão do Projecto n.º 103, “Lei das Estradas” e respectivo financiamento, p.266.
Entretanto, é facilmente verificável o facto de ter sido Fontes Pereira de Melo um dos deputados que iniciou de forma sistemática o recurso à fundamentação pela ciência. Fê-‐lo numa das várias intervenções a propósito do seu projecto que criava incentivos à cultura do café em Cabo Verde, em que invoca os princípios da “ciência agronómica”, tal como os princípios estabelecidos pelos “economistas” a propósito da intervenção do Estado:
“Estes princípios que estabelecem os Economistas de que o interesse que os Povos têm nestes melhoramentos, dispensa os Governos de interferirem nestas coisas, são muito justos, quando se aplicam a um País adiantado na escala da civilização; mas nós que vivemos num País tão atrasado nestas matérias, e muito mais quando se trata de uma parte desta Nação ainda muito mais atrasada, é necessário que o Governo procure por todos os modos ilustrar os Povos, a fim de que eles possam seguir os meios mais convenientes para a sua prosperidade”38.
Luís Augusto Rebelo da Silva, então deputado debutante, mas não menos afoito e interventivo que muitos já experimentados, associa-‐se a Fontes para defender os incentivos estatais à cultura do café em Cabo Verde, rebatendo os que criticavam o benefício concedido à revelia das leis do mercado e a discriminação daí decorrente em relação a outras culturas e outras regiões:
“Aparece esta medida, e pergunto eu: aonde está aqui o monopólio? … Aonde está aqui o crime que se acusa da Ciência, que se tem invocado? … Sr. Presidente, os princípios da Ciência ordenam que nós concedamos a isenção de alguns impostos por qualquer cultura feita, onde ela não existe; é uma indemnização que se dá ao homem que vai arrotear os baldios, que vai aditar a riqueza nacional, que vai fazer crescer um ramo de prosperidade no Ultramar! (…) Sr. Presidente, os princípios da Ciência têm uma regra que me parece simples, e que me parece mais governamental; a Ciência diz – Que um Homem de Estado não deve pôr estorvos ao desenvolvimento de uma riqueza, à cultura de uma indústria – (Apoiados) Isto é o que diz a Ciência, isto é o que tem dito a pratica governamental em todos os Países. Mas onde está essa preciosa Ciência, que é dos Livros, onde foi exarada, aonde estão os preceitos dessa Religião?”39
O problema da maior ou menor intervenção do Estado na economia era um dos temas recorrentes, ora a propósito da cultura do café, ora da construção de estradas, ora sobre a forma de tributação, ora da contratação de um vapor inglês para transporte de 20 soldados para a Madeira. Em quase todos esses debates o recurso aos “economistas” e “publicistas” e à “ciência económica” era comum. Jean Baptiste Say, mais do que qualquer outro economista, era o mais invocado e citado, nomeadamente o seu Tratado de Economia Política. Fontes Pereira de Melo 38 DCD, Sessão de 1 de Fevereiro de 1849, p.11. 39 DCD, Sessão de 3 de Fevereiro de 1849, p.27.
era entre todos aqueles deputados que o citavam, o que parecia fazê-‐lo mais frequentemente e de forma mais sólida40.
O destaque dado regularmente ao pensamento de Say é em certos casos posto em causa pela maior actualidade de Michel Chevalier. No debate que temos vindo a citar, o confronto entre Fontes e Castro Ferreri, em que Rebelo da Silva se integrou, chegou ao ponto de uma autêntica avaliação de conhecimentos de economia política:
Castro Ferreri: Disse o nobre Deputado que eu não respondi a um trecho, que aqui apresentou de João Baptista Say; ora eu tenho ouvido dizer aos entendedores que João Baptista Say é o alfabeto de Economia Política; apesar de ser um grande Economista, outros lhe tem levado a barra adiante, e citarei Mr. Chevalier, Blanqui, Droz, Stork, Gantile, Sysmondi, etc. Eu também já li João Baptista Say….
Rebelo da Silva: O ilustre Deputado que acabou de falar, persuadiu-‐se, de que eu, e o meu ilustre Amigo Deputado por Cabo Verde, citando João Baptista Say, duvidávamos dos seus conhecimentos em Economia Politica, e da sua competência na matéria; … (…) E chamarei a atenção do nobre Deputado para ver não só em João Baptista Say (não o Catecismo de Economia Política, que anda na mão de todas as crianças de escola, mas o seu grande Curso de Economia Política) mas em outros Economistas a maneira como eles consideram os negócios coloniais …
Fontes Pereira de Melo: Eu disse que quando se citaram os princípios da Ciência que o meu Projecto contraria, pedi a designação desses princípios, ao que o ilustre Deputado não tinha respondido; e que apresentando eu aqui um trecho de um dos primeiros Economistas, o ilustre Deputado tinha conservado silencio, e não tinha desfeito o meu argumento; mas o ilustre Deputado, permita-‐me que o diga, mimoseou agora as obras de um dos homens mais iminentes na Ciência de que se trata com o titulo de Alfabeto de Economia Política! … (Riso). O ilustre Deputado que diz que o leu, (isto é extraordinário! …) diz que João Baptista Say é o Alfabeto, uma espécie de A. B. C. de Economia Política! … O que o ilustre Deputado creio que leu foi o Catecismo, mas não o Curso em grande, o Tratado, porque João Baptista Say escreveu imenso sobre Economia Politica – há muitas Obras dele. Ora, eu não sou forte em Economia Politica, mas tenho lido mais Economistas sem ser o Autor citado, e já disse outro dia que aduzi a opinião daquele, porque era o único que naquele momento possuía em casa, e não tinha tempo para ir à Biblioteca, nem a casa dos meus Amigos consultar outro; …”41.
As referências a Michel Chevalier não são novas no debate parlamentar, mas é neste período que a sua invocação se faz de forma mais recorrente. Oliveira Martins percebeu essa influência do economista francês sobre Fontes Pereira de Melo42. 40 Cite-‐se a título de exemplo o debate na Sessão de 1 de Fevereiro de 1849, p.10. 41 DCD, Sessão de 3 de Fevereiro de 1849, pp.32-‐33. 42 Portugal Contemporâneo, vol. II, p.287.
Quer no debate sobre a Lei das Estradas (Sessão de 24 de Março de 1849), nos frequentes debates sobre o livre-‐câmbio, quer ainda no da crise monetária de 1851, Chevalier é invocado por Fontes Pereira de Melo, Rebelo da Silva, António Lopes Branco (então Ministro da Fazenda), Agostinho Albano da Silveira Pinto, Lopes Lima, Carlos Bento ou António José de Ávila, entre tantos outros. Entre a minoria que se assumia como livre-‐cambista, com destaque para Cunha Souto Maior e Luís V. de Afonseca, para além de Say os grandes referenciais eram Adam Smith, Richard Cobden, Frédéric Bastiat e Robert Peel. Ambos repetiam com entusiasmo os termos do combate de Richard Cobden pela liberalização das importações de cereais e pela defesa do que viria a designar-‐se por livre-‐câmbio da “Escola de Manchester”, bem como a coragem de Sir Robert Peel pelo marco que representou a revogação das Corn Laws. O deputado eleito pelo Algarve não escondia as suas escolhas:
Declaro, sem a mais pequena hesitação, que sou partidista de Cobden, e que leio sempre com fé e esperança os princípios económicos de Bastiat. Desejo a abolição total, imediata, sem condições, dos monopólios, e dos direitos protectores, porque estou convencido de que essa abolição trará necessariamente consigo o desenvolvimento do trabalho, aumento das permutações, e alívio para o contribuinte sem desfalque na receita do Tesouro. Creio mais na eficácia do direito comum, do que nas excepções do privilegio, que para mim são sempre odiosas.43
Afonseca, frequentemente vítima das insinuações de anglofilia por parte dos deputados mais “proteccionistas”, viu a sua moção de pesar pela morte de Sir Robert Peel ser ostensivamente ignorada pela Câmara: “Sendo declarada urgente, por duas vezes consecutivas [a proposta de moção] não pôde obter votação pró ou contra”44. Tão grande desprezo revelava bem a expressão limitada do que Oliveira Martins designava por “anglomania” e pela influência da Escola de Manchester. O isolamento misturado com alguma arrogância intelectual levaria mesmo Cunha Souto Maior a acusar a Câmara de incompreensão face às novas ideias do livre-‐câmbio e do progresso:
Estas doutrinas que eu estou expendendo são novas aqui, e por tanto mal recebidas, entre nós. Do estudo tenho eu recolhido a observação, e criado a convicção, de que a ideia que contraria os prejuízos, e excede o nível da inteligência local é sempre classificada desdenhosamente como um arrojo de loucura; por isso os sábios do Areópago condenaram Sócrates à cicuta, os juízes do Pretório pregaram Cristo na Cruz, os doutores da Inquisição atiraram com Galileu para o fundo de um calabouço.45
43 DCD, Sessão de 24 de Março de 1851, p.272. 44 DCD, Sessão de 10 de Julho de 1850, p.200. 45 DCD, Sessão de 24 de Março de 1851, p.272.
O papel de “incompreendido” e a invocação de Sócrates, Cristo ou Galileu conferia ao autor do discurso o estatuto de alguém que está “do lado da história”, um “profeta” de um futuro inevitável e “cientificamente” anunciado. Mas é a ideia de ciência a chave gazua para a legitimação do discurso político. Progresso material e progresso moral A relação entre progresso material e progresso moral foi já referenciada nos escritos de Herculano e Marreca que, de forma pioneira, realçaram não só a distinção, mas também a sua indissociabilidade. Como bem assinalou António José Saraiva, “Herculano declarou repetidamente, até ao fim da sua vida professar a religião do progresso”46, mas um dos combates ideológicos mais marcantes da sua intervenção pública foi precisamente em torno da opção entre “progresso material” e “progresso moral”. Tendo sido um dos inspiradores e ideólogos do movimento regenerador encabeçado pelo Duque de Saldanha, acabou por recusar um lugar no novo Governo e, a partir daí, iniciar um ataque sistemático ao Fontismo emergente, especialmente nas pessoas de Fontes Pereira de Melo e de Rodrigo da Fonseca Magalhães. A polémica que desencadeou a partir de um conjunto de artigos publicados no periódico O Português foi a expressão mais violenta da dissensão com a nova elite dirigente e centrou-‐se sobre a excessiva centralidade dos “melhoramentos materiais” na política regeneradora.
“Esta doutrina é ímpia. O progresso material dos povos deve acompanhar e ser a consequência da sua regeneração moral. É nos países da liberdade e das garantias que tem tido sempre lugar a iniciativa das reformas económicas que têm activado a prosperidade social. Caminhos de ferro, melhoramentos materiais, aperfeiçoamentos de toda a indústria, queremo-‐los e devemo-‐los exigir dos governos morais e justos, e não comprá-‐los aos adelos e charlatães políticos, à custa do sacrifício das nossas liberdades e direitos. Desconfiai daqueles que vos dizem: ‘Nada de discussões políticas, que são estéreis; ocupemo-‐nos só dos melhoramentos materiais do país’”47
Para Herculano, a chegada ao poder desta nova elite significava “o triunfo de todas as materialidades”48, o desprezo pelos valores tradicionais, o centralismo de inspiração francófila, a limitação da liberdade de imprensa e o galgar sobre os direitos e liberdades constitucionais só para mais facilmente atingir os fins do progresso material. Esta crítica à "febre" dos melhoramentos materiais não era nova.
46 Herculano e o Liberalismo em Portugal. Os problemas morais e culturais da instauração do regime, Lisboa, Livraria Studium Editora, 1949, p.103. 47 Opúsculos, Tomo I Questões Públicas – Política. Lisboa, Livraria Bertrand, 1983, p. 338. 48 Idem, p. 364.
Almeida Garrett, muito antes da entrada de Fontes na cena política, já se insurgira contra o atropelo dos princípios constitucionais por parte dos cabralistas, quando o governo legislou em domínios da exclusiva competência da Câmara de Deputados. Garrett contesta o argumento das "razões de conveniência" dos governantes: "...' Mas o País não quer saber dessas coisas, o País está farto dessas banalidades, dessas generalidades; o País só quer melhoramentos materiais.' Como assim?"49. A semelhança com a expressão utilizada por Herculano dez anos mais tarde não deixa de ser reveladora da recorrência deste tipo de debate, mesmo quando os actores são distintos. Da parte de Garrett e Herculano expressa-‐se a defesa da inviolabilidade dos preceitos constitucionais, a superioridade dos princípios da liberdade e da lei. Por parte dos governantes, o pragmatismo da acção, a suposta superioridade das "necessidades" do País, a urgência de lhes responder com celeridade e eficácia. Desde meados da década de 40 que os "interesses materiais" faziam parte dos programas dos sucessivos e efémeros governos. No relatório da Secretaria de Estado dos Negócios da Fazenda, apresentado na sessão de 14 de Março de 1845 defendia-‐se que "a estes melhoramentos materiais,..., há de o País dever em breve, o progressivo aumento da sua riqueza"50. Breve foi a existência do Governo Costa Cabral que, demitido após a revolta da Maria da Fonte, viria a ser substituído por um outro liderado pelo Duque de Palmela, "que se colocou à frente dos melhoramentos materiais do País", como mais tarde lembrava Passos Manuel51. Bem próximo dos círculos políticos da capital surge em 1846 um movimento cívico visando a criação da Liga Promotora dos Interesses Materiais52. Liderada por Cláudio Adriano da Costa conseguiu reunir algumas das figuras políticas e empresariais mais em destaque nos diferentes quadrantes. A grande maioria dos protagonistas da futura Regeneração e do Fontismo estão lá presentes. Inspirada na Manchester League criada por Richard Cobden para combater as Corn Laws e promover o comércio livre (1838), a Liga portuguesa teve um início atribulado com a suspensão dos trabalhos devido à Patuleia, mas os seus propósitos iniciais serão recuperados, dois anos mais tarde: Terminada a Patuleia e regressado Costa Cabral ao poder, o tema dos melhoramentos materiais volta aos principais debates parlamentares. Apoiantes e opositores do governo, entre o muito que os afastava, convergiam invariavelmente na necessidade de os promover:
"...houve um tempo em que se esperava pelo maná do Céu, se esperarmos por ele, esperamos muito mal; é necessário seguir outro caminho, e é este o do fomento dos interesses materiais do País sem o que debalde podemos esperar coisa útil"53.
49 Almeida Garrett, DCD, Sessão de 23 de Janeiro de 1843, p. 223. 50 DCD, Sessão de 14 de Março de 1845, p. 1. 51 Passos Manuel, DCD, Sessão de 25 de Junho de 1852, p. 332. 52 António Alves Caetano, "A Liga Promotora dos Interesses Materiais do País (1846-‐1849). O crescimento económico-‐social adiado", in Arquipélago -‐ História, 2ª série, tomo IV -‐ Nº 2 (2000), pp. 585-‐612. 53 Agostinho Albano da Silveira Pinto, DCD, Sessão de 16 de Abril de 1849, p.162.
"A ideia que hoje unicamente move o mundo, aquela que já não acha o coração do homem frio, é a que diz respeito aos melhoramentos materiais"54
Herculano, após a sua dissensão com o movimento regenerador, torna-‐se no mais destacado crítico do novo regime inspirado no seu próprio programa, ao mesmo tempo que elege Fontes Pereira de Melo e Rodrigo da Fonseca Magalhães, como os alvos privilegiados dos seus ataques. Mais do que divergências pessoais -‐ que existiam e não eram disfarçadas -‐ Herculano sempre as quis associar a duas concepções conflituais da ideia de progresso. Aparentemente, o idealismo de Herculano confrontava-‐se com o materialismo de Fontes, tal como o de Garrett quando se opôs ao do Governo de Costa Cabral e dos restantes entusiastas dos “melhoramentos”. O argumento invocado por Herculano a favor da sua “doutrina” rebuscou-‐o nos ensinamentos da história:
“… o progresso material é filho das conquistas da liberdade, do progresso da civilização moral. A máquina a vapor e o caminho de ferro não nasceram entre os povos servos; nasceram nos países onde as garantias individuais, o amplo direito de associação, a franca manifestação do pensamento, a verdade eleitoral, a independência dos poderes, os factos sociais, em suma, em que aparece a fisionomia de um povo livre, era uma realidade”55.
Pode surpreender esta posição de Herculano, quando alguns anos antes passava por ser um dos mais entusiastas do caminho-‐de-‐ferro como instrumento fundamental para acelerar a “grande revolução que fermenta no espírito dos homens”. Surpreendente também pelo facto de Fontes Pereira de Melo, alguns anos antes de assumir responsabilidades governativas, ter sido dos primeiros a defender a indissociabilidade das duas concepções:
"Quero o progresso material do País; quero estradas; e não seria um grande progresso o termos estradas? … Nós que não podemos dar dois passos, sem que pelo mau estado em que estão os caminhos tropecem os cavalos, e nós quebremos a cabeça! …Quem não há de querer o melhoramento das estradas! … Quero canais, e todos os melhoramentos materiais que forem possíveis. Entretanto conheço que muitas destas coisas não está o País ainda no caso de os desfrutar. Quisera porém que desde já se melhorasse a industria e a agricultura, porque realmente carecem de muitos melhoramentos.
Sr. Presidente, eu não quero só o progresso material, quero também o progresso intelectual, quero o progresso da instrução publica, porque estou persuadido que sem ele não pode haver liberdade no (P.47) país, e todos os homens que prezam a liberdade não podem deixar de o querer, porque entendo mesmo que a classe de indivíduos que deve ter maior soma de
54 Conde Samodães, DCD, Sessão de 27 de Maio de 1852, p. 46. 55 Ob. cit., p. 319.
conhecimentos para desempenharem os altos cargos que ocupam, não estão ainda alguns deles bastantemente instruídos para os exercerem.
Quero mais: quero uma reforma de Lei Eleitoral, porque entendo que é uma necessidade pública; quero essa reforma, quero esse progresso, porque não desejo que haja motivo para resistências nem activas nem passivas; quero que haja um Sistema Representativo em que todos os partidos sejam representados no Parlamento.”56.
Este excerto de um discurso proferido em 1849 é a definição mais explícita da ideia de progresso e do que viria a ser o programa político da Regeneração. Trata-‐se da primeira expressão do que seria identificado, mais tarde, por Fontismo, bem antes da sua consagração como modelo de desenvolvimento que marcou a segunda metade de Oitocentos e marca ideológica recorrente que, de forma mais ou menos explícita, trespassa o Portugal Contemporâneo. “Eu sou progressista” clamava Fontes nesse mesmo discurso, mas era evidente no debate político e ideológico que dominou a legislatura iniciada em 1848 que a forma como se entendia o progresso não reunira ainda o consenso generalizado. Ao contrário de Herculano e da posição pretensamente equilibrada de Fontes, vozes havia, como as do Deputado Cunha Souto Maior, que assumiam uma visão mais materialista da ideia de progresso:
“O vapor, os carris de ferro, a telegrafia eléctrica, hão de mudar radicalmente a Legislação e a existência actual da sociedade. A história mostra, por assim dizer, em cada uma das suas páginas que o progresso social é sempre precedido do progresso material. A invenção das máquinas, e especialmente das rodas hidráulicas, precedeu a alforria dos escravos: a Imprensa precedeu a emancipação do pensamento”57.
No ano anterior já a polémica acirrada opunha o jovem António Serpa Pimentel, próximo dos círculos identificados com as teses livre-‐cambistas, a Lopes de Mendonça, o patuleia fundador do Eco dos Operários, colaborador de A Revolução de Setembro, por convite de José Estêvão e forte defensor da protecção da indústria. A crítica de Serpa centrou-‐se precisamente na visão utilitária e materialista que Mendonça tinha da ideia de progresso e de civilização:
O Sr. Mendonça não quer a concorrência. Vai mais adiante: nega os benefícios, que ela tem trazido à humanidade, nega que ela tenha sido a causa do rápido desenvolvimento da riqueza pública. O Sr. Mendonça só vê a civilização e o progresso nas máquinas de vapor e no aperfeiçoamento das ciências físicas. Mas que aproveitariam estes inventos com as peias e os estorvos da antiga opressão industrial? Que figura fariam na idade média Watt e Lavoisier? Parece que as leis providenciais da história tenham esperado, para lançar ao mundo
56 Fontes Pereira de Melo, DCD, Sessão de 15 de Janeiro de 1849, pp. 46-‐47. 57 Cunha Soutomaior, DCD, Sessão de 24 de Março de 1851, pp. 272.
estas maravilhas da ciência, a época própria da sua fecundação, que só pode ser a época da liberdade. Mais fizeram as leis de 1789, do que quantos Watts e Lavoisiers tenham aparecido no mundo. Os destinos da humanidade não dependem assim da existência de um homem, ou da eventualidade de uma descoberta. Citaremos ao Sr. Mendonça o artigo curioso impresso, há dias, num jornal político sobre o progresso da agricultura no Minho. Aí verá o Sr. Mendonça, que esses progressos maravilhosos, executados em dezasseis anos, não são devidos nem às verdades novas da ciência agrícola, nem ao aperfeiçoamento dos processos: tem uma causa única, a abolição dos encargos e embaraços, que pesavam sobre a propriedade territorial, tem por única protecção a sombra benéfica da liberdade58.
Para Serpa, a liberdade não poderia circunscrever-‐se a um direito cívico, ela teria de ser extensível às trocas, ao mercado, pela eliminação das instituições tradicionais que dificultavam a mobilidade dos bens, da propriedade às mercadorias. Ou seja, ma esteira de Cláudio Adriano da Costa, o progresso era indissociável da mais ampla liberdade política e económica. Mais do que o enunciado de uma teoria, o primado do progresso material parecia ser a expressão cultural de uma época em que a aceleração e visibilidade da inovação tecnológica (a máquina a vapor, o comboio, o telégrafo, os canais, a arquitectura do ferro, as grandes obras de engenharia, etc.) foi acompanhada de um avanço nos mais variados domínios das ciências, da química à medicina, da mecânica à agricultura. Em Portugal, à semelhança do que se verificou noutros países da europa periférica, se há uma teorização da ideia de progresso, é, porém, a sua associação às políticas públicas de melhoramentos materiais que vingará como instrumento de mobilização política e social. O Estado e os melhoramentos materiais O problema de base que se colocava às diferentes facções liberais em Portugal centrava-‐se em saber quem e como se poderia promover esse “progresso material e moral”. Desde muito cedo que se tinha consciência que nem a sociedade nem o Estado davam sinais suficientemente encorajadores de que esse progresso fosse verificável a curto prazo. A legislação que Mouzinho da Silveira lançara em plena guerra civil tinha contribuído para o desmantelamento do velho e débil Estado de Antigo Regime, lançara as bases de uma outra administração, mas tardavam as medidas que dessem continuidade e sustentabilidade ao projecto de reconstrução de um novo Estado de acordo com os princípios liberais e dotado dos instrumentos indispensáveis aos novos desafios colocados pela ambição de progresso.
58 O Atheneu, 28.07.1850, p. 236.
A prolongada indefinição entre as opções constitucionais de cartistas e setembristas retardaram as soluções, o clima de conspiração e instabilidade governativa que se manteve durante os quinze anos que se seguiram à vitória liberal na Guerra Civil minava a já débil autoridade do Estado. O problema básico da segurança interna e da “tranquilidade pública” ou o do pagamento aos funcionários públicos e forças armadas, eram uma ameaça recorrente à estabilidade do regime e ao exercício das mais elementares responsabilidades públicas. Os anos de 1838 e 1839 foram marcados por uma manifesta incapacidade de gerar consensos por parte das diferentes facções e da impotência das forças de segurança ao enfrentar grupos de guerrilha que espalhavam o terror na Beira, no Alentejo ou no Algarve59. O desfazer e refazer dos batalhões da Guarda Nacional, os conflitos com o exército que se desmultiplicava para acudir aos diferentes focos de instabilidade, as sublevações anárquicas que amiúde despertavam na capital, davam uma imagem bem precisa da quase inexistência de Estado. O aparecimento de uma facção ordeira e centrista, liderada por Rodrigo da Fonseca Magalhães, Alexandre Herculano, Almeida Garrett e Oliveira Marreca (também rotulados de doutrinários) em nada contribuiu para a superação da grave crise em que o liberalismo emergente se consumia, entre a ameaça absolutista liderada por D. Miguel e os delírios democráticos dos setembristas radicais. Os testemunhos desta quase anarquia eram sintetizados por dois deputados ordeiros na discussão da resposta ao discurso do trono, em Fevereiro de 1839. José Maria Grande, descrevia a situação do Estado da seguinte forma:
"A nossa existência social está ameaçada por uma multidão de causas todas elas desorganizadoras. Não há segurança pessoal e real, não há ordem, não há justiça. Nem as leis, nem as Autoridades têm força: e a não serem as propensões pacíficas do povo Português, e o seu bom senso político era indispensável que existíssemos na mais terrível anarquia"60.
Oliveira Marreca, na sessão de 21 de Fevereiro, repetia o mesmo diagnóstico sobre a falta de segurança individual e da propriedade, a inoperância da justiça, a falta de autoridade do Estado, "onde as leis perderam o império, a autoridade [e] a força". Pôr termo a esta situação era para Marreca condição indispensável para "realizar os melhoramentos materiais e morais de que tanto carecemos"61. Os anos seguintes pouco trouxeram de novo para além das sucessivas tentativas de impor a ordem, sempre abortados por golpes palacianos ou movimentos sediciosos.
59 Cf. FERREIRA, Maria de Fátima Sá e Melo, Rebeldes e Insubmissos. Resistências Populares ao Liberalismo (1834-‐1844). Porto, Ed. Afrontamento, 2002. 60 José Maria Grande, DCD, Sessão de 16 de Fevereiro de 1839, p. 286. 61 Oliveira Marreca, DCD, Sessão de 21 de Fevereiro de 1839, p. 352.
Neste contexto não serão de estranhar as dificuldades crescentes de financiamento da acção do Estado. Deficits sucessivos fizeram duplicar o valor total da dívida pública entre 1828 e 1838 obrigando a recorrentes suspensões de pagamentos (1837, 1840, 1846). Para além das dificuldades orçamentais os deficits de tesouraria alimentavam uma dependência das poucas instituições com capacidade financeira para prover o pagamento das remunerações do pessoal ou do serviço da dívida.Com as receitas limitadas a não mais de 80% da despesa, o Estado Português vivia de um conjunto muito limitado de fontes de financiamento: principalmente das receitas do comércio externo (os direitos aduaneiros representavam ao longo da década de 40, pelos menos 40% do total das receitas fiscais) e dos restantes impostos indirectos que se cobravam internamente. A débil estrutura financeira do Estado liberal era o melhor reflexo da sua, também débil, capacidade de territorializar a administração pública. Os impostos directos, com especial destaque para a décima que pretendia substituir os tributos de Antigo Regime, não chegavam a um quinto do valor total das receitas fiscais, com a desvantagem de o custo e a eficácia da sua cobrança estar dependente de uma administração fiscal que ou não existia, ou estava sujeita à generalizada corrupção e ineficiência dos seus funcionários62. A rigidez da despesa também não ajudava a encontrar um pouco de desafogo. Entre remunerações de pessoal e serviço da dívida consumiam-‐se três quartos do valor do orçamento, ou seja, algo muito próximo do valor médio da receita fiscal. Por isso, o problema do deficit e a falta de autoridade do Estado eram os principais entraves a qualquer programa de investimento em infra-‐estruturas e, simultaneamente, o principal atractivo para a especulação financeira e para a promoção de uma oligarquia que promiscuamente coabitava com a própria elite dirigente. António José D’ Ávila denunciava em 1842 o risco de algo que os anos seguintes revelariam por traços mais vincados: “… enquanto houver deficit há de haver agiotagem, e os capitais hão de procurar com preferência esse desgraçado ramo de comércio”63. Também José Maria Grande, dez anos mais tarde, reforçava aquela crítica, invocando agora os contributos da economia política:
“Esta opinião de que a dívida pública é uma fonte de prosperidade nacional que foi professada em outras épocas por Voltaire, Melon e também por Ganilh acha-‐se hoje completamente debelada pelos melhores Economistas, como Turgot, Say, Ricardo e Flores-‐Strada; porque a dívida pública absorvendo quase improdutivamente grandes capitais, afasta-‐os das empresas úteis e dos grandes melhoramentos materiais em que não podem ir empregar-‐se produtivamente”64.
62 Sobre as finanças públicas no período compreendido entre 1834 e 1852 recorremos aos estudos de REIS, Jaime, O Banco de Portugal das Origens a 1914, I volume (Antecedentes, Fundação e Consolidação, 1821-‐1857), Lisboa, Banco de Portugal, 1996, especialmente o capítulo I; ESTEVES, Rui Pedro, "Finanças Públicas", in LAINS, Pedro e SILVA, Álvaro Ferreira da, História Económica de Portugal 1700-‐2000, vol. II -‐ O Século XIX, Lisboa, ICS, 2005, pp. 305-‐335. 63 António José D’ Ávila, DCD, Sessão de 23 de Agosto de 1842, p. 287. 64 José Maria Grande, DCD, Sessão de 15 de Julho de 1852, p. 185.
Um Estado fraco e endividado, com problemas estruturais de enquadramento do território que o remetem para a dependência das receitas das alfândegas e de alguns impostos indirectos provenientes dos dois grandes centros de consumo (Lisboa e Porto), dificilmente estava em condições de responder aos desafios não só dos "melhoramentos materiais", mas também do que era considerado o mais decisivo "melhoramento moral", a instrução pública. Como refere Rui Pedro Esteves, "para além do possível crowding out de investimento privado por despesas públicas maioritariamente de natureza corrente, o escasso investimento em educação é verdadeiramente paradoxal"65. O que está subjacente a este círculo vicioso do endividamento e do atraso económico é precisamente o do deficit público, num contexto em que os principais actores reconheciam que dificilmente se poderia dotar o país de uma rede de infra-‐estruturas se não fosse o próprio Estado a promovê-‐las. A experiência curta e efémera ao beneficiar da "febre dos caminhos de ferro" que se fazia sentir um pouco por toda a Europa em 1845 e 1846 para avançar com algumas propostas privadas de construção, saldou-‐se num enorme fracasso que serviria de lição para os eventuais promotores de concessões ferroviárias em Portugal. Como bem lembra António Lopes Vieira, "os promotores ... aprenderam bem a lição de 1845-‐1846 e viriam a perceber, mais tarde, que a remuneração ao capital aplicado em infra-‐estruturas num país pobre e com pouco recursos como Portugal, não valia o risco do investimento directo"66. Não só os promotores "aprenderam bem a lição" como uma grande parte da elite política percebeu que só se poderia romper o círculo vicioso em que se encontrava o país através da acção do próprio Estado, liderando o programa de melhoramentos materiais que essa elite tanto preconizava. Fontes Pereira de Melo, foi dos primeiros a perceber essa dura realidade:
"Estes princípios que estabelecem os Economistas de que o interesse que os Povos tem nestes melhoramentos [materiais], dispensa os Governos de interferirem nestas coisas, são muito justos, quando se aplicam a um País adiantado na escala da civilização; mas nós que vivemos num País tão atrasado nestas matérias, e muito mais quando se trata de uma parte desta Nação ainda muito mais atrasada, é necessário que o Governo procure por todos os modos ilustrar os Povos, a fim de que eles possam seguir os meios mais convenientes para a sua prosperidade"67.
65 Ob. cit. p. 334. 66 "Os Caminhos de Ferro Antes dos Caminhos de Ferro -‐ A Especulação Ferroviária em Portugal em 1845-‐1846", in Revista de História Económica e Social, nº 15 (Janeiro -‐ Junho de 1985). Lisboa, Ed. Sá da Costa, 1985, p. 129-‐130. 67 Fontes Pereira de Melo, DCD, Sessão de 1 de Fevereiro de 1849, p. 11.
O atraso económico e social do país era para Fontes Pereira de Melo um factor de bloqueio muito mais preocupante que a incapacidade do Estado em desfazer-‐se dos entraves financeiros e promover o progresso por todos almejado. Os princípios da economia política que todos invocavam para fundamentar as suas posições deveriam ser ponderados pelo atraso do País.
"Pois querem-‐se adaptar os princípios rigorosos da Ciência a Países onde não há senão Senhores de Escravos? ... Países onde a Instrução Pública, por exemplo, está em tão grande atraso, que pode dizer que não nasceu ainda; onde a ilustração está na infância! ... Podem por ventura aplicar-‐se para estes Países os mesmos princípios, que se aplicam para França, Alemanha e outras Nações?"68.
Esta tese será recorrente nos debates parlamentares sobre os projectos de caminhos de ferro e de estradas, especialmente entre os defensores do programa de Fontes Pereira de Melo. Joaquim Lobo d' Ávila sintetiza essa concepção num discurso parlamentar em torno da ligação ferroviária de Lisboa ao Porto:
"Este País não está habilitado para se governar a si, não tem elementos para isso, faltam as vias de comunicação que queremos dar-‐lhe, falta-‐lhe a instrução necessária, que se trabalha em difundir. Nós não estamos no caso da Inglaterra, país clássico do self-‐governement, é preciso não transportar as ideias de um para outro país, sem atender às circunstâncias especiais em que cada um se acha. Nós sem a acção do Governo mal podemos dar um passo na carreira do progresso material.(...) [Michel] Chevalier sustenta o princípio da garantia de um mínimo de juro, dada pelo estado como um mínimo indispensável e eficaz para desenvolver na escala conveniente as empresas de viação pública; e diz que sem o impulso do governo mal poderão fundar-‐se e progredir estas empresas"69.
Restabelecer o crédito, apoiar as empresas que se proponham contratualizar com o Estado o investimento, a construção e a exploração das infra-‐estruturas, eis a solução que o fontismo nascente preconizava para fazer sair o país do estado deplorável em que se encontrava. Ora através de garantias de juro, ora pela atribuição de subsídios por cada quilómetro construído, público e privado voltavam a convergir para concretizar a ideia de progresso material. A mesma solução já não seria possível concretizar no investimento a realizar no que era entendido como o segundo grande desafio do Estado português: o da instrução pública cujo desenvolvimento atirava o país para junto dos mais atrasados. 68 Fontes Pereira de Melo, DCD, Sessão de 3 de Fevereiro de 1849, p.27. 69 Lobo d'Ávila, DCD, Sessão de 25 de Janeiro de 1854, pp. 161.
A Era do Progresso: fontes de inspiração do projecto fontista. Esta concepção da ideia de progresso é tributária da tradição enciclopedista francesa do século XVIII, ela própria influenciada por um dos mais destacados e menos reconhecidos inspiradores, Bernard de Fontenelle, autor da Digression sur les anciens et les modernes (1688). É com Fontenelle que a ideia de progresso é associada ao processo histórico que se desenrola por si próprio, independente da vontade humana. Trata-‐se muito mais de uma crença do que de uma evidência que, segundo Fontenelle, se deve ao progresso do conhecimento e da ciência, tal como virá a ser reflectido, mais tarde, por Turgot, Condorcet ou Saint-‐Simon. É esta linhagem epistemológica que Frank E. Manuel identifica como os “profetas de Paris”70, obreiros de um futuro inventado como desígnio histórico, legitimado por uma “nova ciência” que lhe conferiu a inevitabilidade determinística, mas também a “coerência” que a fez situar entre os limites imperceptíveis da ideologia e da crença religiosa. É a ideia de progresso que sustenta essa nova narrativa sobre a organização das sociedades – a “estática social” – e, com especial relevo, a sua evolução / desenvolvimento – a “dinâmica social” – que Auguste Comte tem presente na designação dessa “nova ciência”, a sociologia. Fá-‐lo, porém, na perspectiva da ordem social, quando Marx, mais tarde, o fará na perspectiva do conflito social.
A abordagem proposta por Habermas71 para se compreender essa associação genética da sociologia com a ideia de progresso é mais complexa na sua formulação e de maior alcance nas suas hipóteses, mas muito mais rica e esclarecedora na tese que lhe está subjacente do que o dualismo epistemológico dos contributos de Comte-‐Marx.
O ponto de partida de Habermas é a abordagem de Max Weber à teoria da racionalização que define a modernidade e as raízes iluministas do tema cuja “pré-‐história” o situa primeiro na “filosofia da história” do iluminismo setecentista e, mais tarde, nas “teorias evolucionistas da sociedade”72. Da primeira fonte destaca a obra do Marquês de Condorcet, o Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain de 1793 que desde muito cedo e em conjunto com as obras de Montesquieu e Turgot marcaram as leituras de Auguste Comte na sua fase inicial de docente da Escola Politécnica. Da segunda fase, a obra de Herbert Spencer e a influência mútua que estabeleceu com Charles Darwin estrutura uma nova ideia de progresso assente na lei natural da selecção e da adaptação dos indivíduos e dos grupos sociais como motor dos processos de mudança social73.
70 The prophets of Paris: Turgot, Condorcet, Saint-Simon, Fourier, and Comte. Cambridge Mss, Harvard UP, 1962. 71 Habermas, Jürgen, The Theory of Communicative Action, Vol. I (Reason and The Rationalization of Society), Cambridge, Polity Press, edição de 2006 da tradução para inglês de Thomas McCarthy, especialmente o capítulo dedicado à teoria da racionalização em Max Weber, pp. 143-‐272. 72 P. 145. 73 Os contributos de Herbert SPENCER foram inicialmente formulados, ainda que de forma superficial na sua obra Social Stastics de 1851 e alguns anos mais tarde, em 1857, no ensaio "Progess: Its Law and Causes", The Westminster Review, Vol 67 (April 1857), pp 445-‐447, 451, 454-‐456, 464-‐65.
Um dos aspectos menos esclarecidos na história das ideias em geral e na história da ideia de progresso em particular é o do aparente “vazio” entre os grandes contributos do iluminismo, de Kant e Turgot a Condorcet, e as primeiras formulações sistematizadas da ideia de progresso que emergem a partir de meados do século XIX. Diríamos que a primeira metade de oitocentos não mereceu a atenção devida dos historiadores e talvez seja nesse período que poderemos encontrar alguns dos contributos mais decisivos para as obras que na segunda metade do século vieram a marcar a modernidade europeia. Voltamos, mais uma vez a Comte e através dele a Saint-‐Simon e ao grupo de discípulos, especialmente os oriundos da Escola Politécnica de Paris onde, para além do próprio Comte se contavam Prosper Enfantin e Michel Chevalier e mais cerca de 130 jovens engenheiros formados naquela escola militar que se tornaram activos militantes ou simpatizantes do que se convencionou chamar de saint-‐simonismo74. Praticamente ignorado até à sua morte em 1825, Claude-‐Henri de Rouvroy, Conde de Saint-‐Simon, tornou-‐se conhecido através dos seus próprios discípulos e do papel que estes vêm a desempenhar na sociedade francesa ao longo do restante século XIX75. O reconhecimento desta nova geração de publicistas e escritores orientados pela busca de uma lei que explique o progresso76 e da procura de um processo de “regeneração social” das sociedades, encontramo-‐lo em contemporâneos como Stuart Mill, Marx ( a crítica do “socialismo utópico” não deixou de o valorizar), Proudhon, ou em historiadores como Guizot ou Michelet. Quando François Guizot volta à Faculdade de Letras de Paris em 1828, inicia as suas lições que serão transcritas para o Cours d’Histoire Modèrne77, embrião do que virá a ser mais tarde a edição da Histoire Générale de la Civilisation en Europe Depuis la Chute de L’Empire Romain Jusqu’a la Révolution Française78. O seu propósito é o de conceber uma história da civilização europeia e do seu progresso como elemento fundamental da sua identidade. Os dois conceitos de civilização e de progresso enuncia-‐os Guizot como pilares da sua construção: “Il me semble que le premier fait qui soit compris dans le mot civilisation (…), c’est le fait de progrès, de développement; il réveille aussitôt l’idée d’un peuple qui marche, non pour changer de place, mais pour changer d’état ; d’un peuple dont la condition s’étend et s’améliore. L’idée de progrès,
74 PICON, Antoine, “Industrie et Regénération Sociale. Les Polytechniciens Saint-‐Simoniens”. Artigo disponível em http://www.gsd.harvard.edu/people/faculty/picon/texts/xsts.html. 75 Entre os muitos estudos sobre a “herança” científica e política de Saint-‐Simon destaque-‐se os de F. A. V. HAYEK, “The Counter-‐Revolution of Science”, Economica, Vol. 8, n.º 30 (Maio de 1941), pp. 119-‐150; Philippe FONTAINE, “The French Economists and Politics, 1750-‐1850: The Science and Art of Political Economy”, in The Canadian Journalof Economics, Vol. 29, n.º 2 (Maio de 1996), pp. 379-‐393; Robert B. CARLISLE, “The Birth of Technocracy: Science, Society, and Saint-‐ Simonians”, in Journal of The History of Ideas, Vol. 35, n.º 3 (Julho-‐Setembro de 1974), pp. 445-‐464; Mary PICKERING, “Auguste Comte and The Saint-‐Simonians”, French Historical Studies, Vol. 18, n.º 1 (Primavera de 1993), pp. 211-‐236. 76 J. B. BURY, The Idea of Progress. An Inquiry Into Its Origin and Growth, Honolulu, University Press of The Pacific, 2004, reimpressão da edição original de 1921, capítulos XV a XVII. 77 Paris, Pichon et Didier Éditeurs, 1828. 78 Utilizamos a edição belga, Bruxelles, N.-‐J. Gregoir, V. Wouters et Cie. Éditeurs, 1840.
du développement, me paraît être l’idée fondamentale contenue sous le mot de civilisation »79. Guizot entende a civilização como um estado de aperfeiçoamento das relações sociais e do que designa por “production croissante de moyens de force et de bien-‐être, où plus la somme du travail sera grande et la répartition des fruits du travail équitable, plus le but sera atteint et le progrès accompli ». Porém a esse progresso social será necessário acrescentar o desenvolvimento moral dos indivíduos: “…le développement de la vie individuelle, de la vie intérieure, le développement de l’homme lui-‐même, de ses facultés, de ses sentiments, de ses idées. Si la société y est plus imparfaite qu’ailleurs, l’humanité y apparaît avec plus de grandeur et de puissance »80. Poucos anos antes, em 1826, Auguste Comte tinha começado a escrever o seu Curso de Filosofia Positiva cuja publicação se inicia em 1830, prolongando-‐se até 1842. Nele se explicita e fundamenta a Lei dos Três Estados e o objectivo central do pensamento de Comte: o de demonstrar historicamente que o espírito humano progrediu através de cada um desses três estados: o teológico, o metafísico e, finalmente o científico. Enquanto lei, ela explicava de forma universal e determinística a marcha inevitável e imparável da humanidade em que, ao contrário do liberal Guizot, a vontade individual pouco contaria para a travar ou influenciar. Como bem salienta Robert Nisbet, a filosofia da história que está subjacente à lei do progresso enunciada por Comte é tributária do seu mestre Saint-‐Simon e de forma mais longínqua dos pioneiros Turgot e Condorcet81. Menos conhecido e de adesão mais tardia ao movimento saint-‐simoniano, Michel Chevalier entra para redactor do Le Globe em 1830 pela mão de Enfantin, precisamente no ano que conclui o curso de engenharia na Escola Politécnica. Preso em 1832, rompe com Enfantin no ano seguinte e quando libertado passa a preparar uma viagem aos Estados-‐Unidos que dará origem a um conjunto de crónicas muito centradas sobre o papel das vias de comunicação e dos “interesses e melhoramentos materiais” no progresso das sociedades. No regresso, a sua actividade e os seus escritos vão centrar-‐se nas políticas de infra-‐estruturação (estradas, canais e caminhos de ferro) e na economia política. A fugaz ligação aos discípulos de Saint-‐Simon não o libertou de ser sempre conhecido como um economista liberal mas de inspiração socialista que acreditava na liberdade de comércio e nos melhoramentos materiais como forma de concretizar o progresso e a paz universal. A “escola” saint-‐simoniana tendo sido precursora da nova ideia de progresso que dominará as décadas seguintes diluiu o seu contributo num vasto movimento que envolverá as mais diversas correntes ideológicas. Quando em 1851 é publicado o livro de Auguste Javary, De l’Idée de Progrès82, o retrato que é feito da generalização da ideia é bem sugestivo da sua aceitação: “S’Il y a quelque idée qui appartienne en propre à notre siècle, au moins par l’importance qu’il lui accorde, quelque idée qui,
79 Idem, p. 21. 80 Idem, pp. 21-‐22. 81 NISBET, Robert. Ob. Cit., pp. 246-‐249. 82 Paris, Librairie Philosophique de Ladrange, 1851.
repoussée ou admisse, ne soit aujourd’hui étrangère à aucun esprit, et dont la plupart fassent usage jusqu’à l’abus, c’est, à ce qu’il me semble, l’idée du Progrès conçu comme loi générale de l’histoire et de l’avenir de l’humanité”. Com o maior ou menor exagero de Javary, o que se reconhece é que o segundo terço do século XIX na Europa, mais do que a liberdade, o laicismo ou os princípios constitucionais da soberania popular, eram os "melhoramentos materiais" que representavam os símbolos de uma nova era de desenvolvimento do capitalismo. Na Inglaterra vitoriana de meados do século XIX os avanços registados nas comunicações, na produção industrial, na ciência e na técnica, inspiravam o mais generalizado optimismo a que Asa Briggs rotulou como o "culto do progresso"83. Este progresso material não passou despercebido a Marx e Engels que o interpretaram de forma inequívoca no próprio Manifesto do Partido Comunista (1848):
"The bourgeoisie, by the rapid improvement of all instruments of production, by the immensely facilitated means of communication, draws all, even the most barbarian, nations into civilisation. (...) Subjection of Nature’s forces to man, machinery, application of chemistry to industry and agriculture, steam-‐navigation, railways, electric telegraphs, clearing of whole continents for cultivation, canalisation of rivers, whole populations conjured out of the ground — what earlier century had even a presentiment that such productive forces slumbered in the lap of social labour?84"
Três anos mais tarde, em 1851, Londres era o palco da primeira e universal exposição dos progressos da humanidade. "The Great Exhibition" que teve lugar no imponente "Crystal Palace" seria, nas palavras do Príncipe Alberto, o derradeiro teste "of the point of development at which the whole of mankind has arrived"85 . Nesse mesmo ano, Saldanha dá a primeira machadada em quase duas décadas de lutas partidárias, tumultos e revoltas, golpes palacianos e um interminável conflito entre as diferentes facções liberais, iniciando um longo período de estabilidade das políticas de fomento, de reforma do Estado e de um aparente progresso económico e social. São estes quase vinte anos que medeiam entre as revoluções de 1830 e o rescaldo da revolução de 1848 que marcam decisivamente a afirmação ideológica não só do pensamento liberal, mas também das diferentes correntes radicais, especialmente as socialistas.
83 The Age of Improvement 1783-‐1867, London, Longman, 1979, pp. 394-‐402. 84 Manifesto of the Communist Party, I Parte, versão inglesa traduzida do alemão por Samuel Moore em cooperação com F. Engels, 1888. http://www.marxists.org/archive/marx/works/1848/communist-‐manifesto/index.htm. 85 The Great Exhibition of 1851, edição fac-similada do catálogo original, New York, Gramercy Books, 1995.
Fontismo enquanto expressão do liberalismo centrista Em Portugal, essas duas décadas são balizadas pela guerra civil entre miguelistas e liberais e o que poderemos considerar a pacificação e fim da conflitualidade interna em 1851, como o pronunciamento militar liderado por Saldanha e o início da Regeneração. O facto de recuarmos ao início das guerras liberais (1828) deve-‐se principalmente à importância que concedemos ao papel desempenha pelos emigrados liberais, em Londres e em Paris, na formação da elite liberal portuguesa. Essa experiência de exílio conferiu aos diferentes grupos de emigrados uma maior familiaridade com as ideias e movimentos sociais e culturais, dos quais merecem destaque os emergentes em França com a Revolução de 1830. Garrett, Herculano, Rodrigo Magalhães, Seabra, Passos, Marreca ou Costa Cabral têm de comum não só o exílio, mas também a Maçonaria, instância privilegiada de socialização política. É de França que provêm as ideias fundamentais. O que Vitorino Magalhães Godinho identifica como fontes de inspiração para o pensamento de Herculano86 -‐ Thierry, Guizot, Tocqueville -‐ podemos tornar extensível a tantos outros actores que vão buscar a Jean Baptiste Say e Michel Chevalier, os fundamentos da nova economia política, e a Benjamin Constant as novas configurações jurídico-‐políticas, especialmente as constitucionais. Quer através das obras fundamentais daqueles autores, quer, mais frequentemente, através de publicações periódicas que são regularmente citadas no Parlamento ou nos escritos dos jornais, a influência do liberalismo francês é evidente: a Révue des Deux Mondes, onde colabora regularmente Michel Chevalier, é frequentemente citada nos debates parlamentares, desde 1844; o Annuaire de l'Économie Politique et de la Statistique, editado por Joseph Garnier e que conta com a colaboração regular de, entre outros, Frédéric Bastiat e Michel Chevalier, é citado nos debates como "Anuário de Economia Política", desde 1849; o Journal des Débats é igualmente referenciado desde 184487. Outros periódicos especializados são pontualmente citados, com maior frequência a partir de 1851. É o caso de Agostinho Albano da Silveira Pinto que naquele ano, a propósito da crise monetária internacional, revela ser "assinante dos dois periódicos, o Jornal dos Economistas, e o Economist, que são dois periódicos que tratam objectos comerciais e monetários, e de transacções comerciais e industriais de toda a espécie"88. A partir de então as referências sucedem-‐se com alguma frequência. Podemos, assim, identificar dois períodos fundamentais em que as influências ideológicas do liberalismo francês se distinguem pelo enfoque dado às diferentes
86 Alexandre Herculano -‐ O Cidadão e o Historiador. Antologia. Lisboa, Imprensa Nacional -‐ Casa da Moeda, 2010, p. 67. 87 Assembleia da República, Debates Parlamentares, Câmara dos Senhores Deputados da Nação Portuguesa. 88 DCD Sessão de 12 de Fevereiro de 1851, p. 129.
temáticas: desde a vitória liberal na guerra civil em 1834 até à consolidação do cartismo sob a égide de Costa Cabral (1842-‐1844) e da primeira formulação da política de "melhoramentos materiais" (1845)89 até ao primeiro governo regenerador (1852). Não se trata de dois períodos de características exclusivas: no primeiro identificam-‐se já problemáticas que vão dominar o segundo e durante este perduram problemáticas do primeiro. Mas o que importa destacar é o facto de entre os dois se ter claramente identificado uma reorientação dessas problemáticas o que, a nosso ver, sustenta um processo de reconfiguração da ideologia liberal. No primeiro período a problemática política é dominante: liberdade e ordem, são os pólos de diferenciação e de confronto entre os extremismos miguelista e setembrista. A busca da alternativa liberal, centrista e moderada, inspira-‐se em Constant e nos orleanistas Guizot e Royer-‐Collard. O programa de Costa Cabral, como muito bem demonstrou Fátima Bonifácio, era a resposta aos extremismos, partindo da convicção "que os homens não estariam condenados à deprimente alternativa entre Governo absoluto ou república; que podia haver monarquia com liberdade e liberdade com ordem, e que atrás da ordem vinha o progresso"90. Os objectivos e as fontes de inspiração não seriam muito diferentes dos enunciados pela "facção ordeira e doutrinária" de Herculano, Garrett, Rodrigo e Marreca, salvo nos meios a utilizar. Novamente, Fátima Bonifácio marca bem a diferença: "A política da moderação era a política do «juste milieu»: requeria mão de ferro e inflexibilidade de princípios. Não admitia intrusos no espaço que ocupava: o espaço do meio termo entre a revolução e a reacção. Este meio termo designava-‐lhe um lugar à direita dentro do espectro partidário do orleanismo (o lugar do liberalismo conservador), mas colocava-‐o no centro geométrico entre o legitimismo e a república, os dois extremos exteriores ao regime e seus inimigos"91. No segundo período a problemática económica ganha maior relevo: a ideia de progresso e a política dos melhoramentos parece surgir como a alternativa possível ao dualismo liberdade -‐ ordem, sem o superar completamente. O novo centrismo ganhava agora outros contornos, já não o da moderação política do "juste milieu", mas o da mobilização dos recursos políticos para o consenso em torno da política de melhoramentos.
89 O Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios da Fazenda, apresentado à sessão de 14 de Março de 1845, enunciava já a opção pelo "estabelecimento de vias de comunicação, entre as diversas povoações – que favoreçam o trabalho dos Povos – facilitem os meios de exportação e consumo aos seus produtos". É na promessa de uma política de fomento que o Governo de Costa Cabral pretendia justificar o aumento dos impostos: "...a estes melhoramentos materiaes, e a outros verdadeiramente interessantes, há de o Paiz dever em breve, o progressivo augmento da sua riqueza, e com elle, a mais ampla compensação dos sacrifícios que para o conseguir, temporariamente houver feito". Idêntico programa é apresentado em 1846 pelos Governos liderados pelo Duque de Palmela, facto que leva Passos Manuel a invocar, seis anos depois, como que a paternidade de uma política em que se revia: "Pelo que toca a outrops actos da Administração entendo, que uma vez adoptada a ideia de regenerar o País era necessário que se entrasse nesse caminho mais amplamente, seguindo o que fez a Ditadura do Sr. Duque de Palmela em 1846, que se colocou à frente dos melhoramentos materiais do País; Governo esse que se não tivesse caído, havia de ser o mais glorioso, e de um grande benefício para a Nação pelas altas concepções que marcaram aquela época" (DCD, Sessão de 25 de Junho de 1852, p. 332). 90 “Costa Cabral no contexto do liberalismo doutrinário”, Análise Social, vol. xxviii (123-‐124) 1993 (4.°-‐5.°), p. 1047. 91 Idem, p. 1067.
A legislatura de 1848-‐1851 foi, a todos os títulos, uma preparação do que viria a ser a política regeneradora. Nela encontramos alguns dos protagonistas do fontismo e as principais formulações da sua política. A derrota dos extremos em que se saldaram os tumultos de 1846 e a guerra civil que lhe sucedeu, criou as condições para a emergência de um novo centrismo em que a ideia de progresso e a problemática económica se impôs à não resolvida problemática política. Para que tal sucedesse foi importante a revelação de novos actores que mais não fizeram que recuperar algumas das ideias dos velhos ordeiros e doutrinários de 1840, uma parte das propostas políticas dos governos de Costa Cabral e dos três ministérios falhados de Palmela (1846) e aproveitar os novos ventos ideológicos do liberalismo francês pós-‐revolução de 1848. Neste particular aspecto, poderemos concluir que o fontismo, nas suas linhas fundamentais, é anterior à Regeneração e consagra em definitivo esse novo centrismo consensualizado em torno da ideia de progresso e contribuindo para a decisiva reconfiguração ideológica do liberalismo português. É na busca desse mesmo centrismo e em consciência do profundo atraso do país que se criou a convergência sobre a conservação, no fundamental, das Pautas de 1837 e 1841. Não foi em nome de uma ideologia que se afastou qualquer tentativa de adopção das políticas livre-‐cambistas conducentes ao rápido desarmamento pautal. Foi por puro pragmatismo e pela compreensão de que a conservação dos elevados "direitos protectores" satisfazia simultaneamente os interesses do Estado altamente dependente das receitas alfandegárias e os das burguesias industriais emergentes, especialmente em Lisboa e no Porto, que, não obstante os protestos isolados, conseguiram garantir uma elevada protecção do limitado e pouco dinâmico mercado interno. O Barão de Forrester, claramente desiludido com os resultados da revisão das pautas realizada em 1852, parecia resignar-‐se ao determinismo do atraso da economia e da sociedade portuguesas:
Great-‐Britain is Protestant, Portugal is Roman Catholic. In ideas, in habits, in religion, in customs, in institutions, in education, the two countries are diametrically opposed to each other; and as Portugal was not prepared for a constitutional government in 1832, so she cannot in the slightest degree in 1852 adopt the principles of free-‐trade now in vogue in Great Britain. (…) Portuguese people would neither be prepared nor disposed to meet us with a more liberal spirit than they do at present, but, on the contrary, that, however absurd might be such a policy, Portugal would become more opposed to free-‐trade than ever92.
92 Joseph James Forrester, The Prize-‐Essay on Portugal. London-‐Edimburgh-‐Oporto, John Weale, 1854, pp. 134-‐5.
O que Forrester explicita é uma tese muito simples em tudo semelhante à enunciada por Fontes Pereira de Melo: o grau de atraso económico e social português era um factor de entrave à liberalização do comércio externo, tanto quanto o era ao desenvolvimento das instituições liberais, não só por incapacidade do Estado – que não explicita, neste excerto da sua obra, mas que nela está presente – mas por insensibilidade ou impreparação da sociedade portuguesa para interiorizar o “espírito liberal”. Ora, o autor coloca implicitamente a contradição entre a expressão liberal das elites ilustradas e as condicionantes colocadas por uma sociedade que continuava a ser nos seus valores, hábitos, ideias e instituições, marcadamente iliberal.