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INTRODUO
Quando buscamos entender uma piada aps l-la ou ouvi-la, um dos procedimentos
que adotamos analisar o que nos surpreende; procuramos saber o que faz rir. Mas isso j foi
respondido por pesquisadores conceituados, como Victor Raskin e Srio Possenti. No entanto,
o que revela ou esconde seu discurso? Como ele se constri? E quando se est diante de
piadas que se constituem a partir de relaes intertextuais e interdiscursivas, como elas
significam? Essa uma resposta para ser dada pela Semitica, que estuda a significao.
Por entendermos que a Semitica pode apresentar um ponto de vista diferente sobre
piadas no necessariamente contrrio ao que j foi feito pela Lingstica ou pela Anlise do
Discurso, mas sim complementar o presente trabalho toma como objeto de estudo a
significao em piadas conhecidas como religiosas ou de religio. Mais especificamente,
direcionamos nosso olhar para as piadas que remetem ideologia crist. Nosso propsito ,
pois, descobrir como e o que ocorre com o discurso religioso nesses textos, que ora parecem
verdadeiras passagens bblicas, ora uma grande brincadeira ou uma enorme heresia, para os
mais fervorosos.
De fato, a linguagem humorstica j vem sendo bastante estudada, mas no h uma
lingstica especfica do humor, porque, por exemplo, no h uma lingstica que se ocupe
de decidir se os mecanismos explorados para a funo humorstica tm exclusivamente essa
funo1. Contudo, uma teoria discursiva do mesmo est em curso, pois h diversos trabalhos
que se preocupam com as implicaes do discurso humorstico, nos mais variados mbitos de
realizao da lngua, tais como livros didticos, programas de TV e at sites de humor. Assim,
o que se tem feito explicar o funcionamento de determinados mecanismos em textos
humorsticos diversos, bem como analisar os discursos que esses textos veiculam. So
exemplos os trabalhos desenvolvidos com charges, tira em livros didticos, advinhas e piadas.
No caso das ltimas, j foram realizadas pesquisas que apresentaram desde a sua defesa como
gnero textual2, at a anlise discursiva com vis psicanaltico3. No entanto, a significao dos
discursos nesse gnero tem sido pouco explorada, assim como a sua constituio com base em
outros gneros textual/discursivos que circulam fora do universo humorstico.
1 POSSENTI, Sirio. Os humores da lngua anlise lingstica de piadas. So Paulo: Mercado das Letras, 2001. p. 21. 2 MUNIZ, Kassandra, Piada: conceituao, constituio e prticas um estudo de um gnero. Campinas, 2004. Dissertao (Mestrado) Unicamp. 3 CONDE, Gustavo. Piadas regionais: o caso dos gachos. Campinas, 2005. Dissertao (Mestrado) Unicamp.
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Por outro lado, a Semitica, em suas diferentes vertentes, vem ampliando suas
abordagens e reafirmando seu objeto de anlise. O que nos autoriza dizer isso , por exemplo,
a Sociossemitica, que analisa textos de gneros diversos, como o romance oral4, propagandas
institucionais5 e redaes produzidas por alunos do nvel fundamental em escolas pblicas e
privadas6. J a Semitica das culturas compara culturas de continentes distintos7, valendo-se
da semntica cognitiva para reforar a compreenso de como os sujeitos constroem e
disseminam diversos conceitos em suas culturas. As anlises estruturais de simples palavras,
para analisar mitos em naes diferentes, deram lugar ao exame do espetculo semitico em
discursos polticos e educacionais, assim como na arquitetura de pases dspares quanto ao
nvel de desenvolvimento scio-econmico8.
E os textos humorsticos? E o discurso do humor? No seria possvel conciliar as
teorias sobre os dispositivos de seu funcionamento, esclarecidos por Raskin e Possenti, com
as de A. J. Greimas e Cidmar Pais, sobre a significao dos discursos? isto que buscamos
fazer neste trabalho, que no se contenta em demonstrar como funcionam tais dispositivos nos
textos humorsticos, mas busca a significao de seus discursos. Em nosso caso, voltamo-nos
para aqueles antes sacrossantos, veiculados em passagens bblicas, mas que, em piadas, esto
transformados, passando a fazer parte do universo discursivo do humor.
Neste sentido, o que pretendemos observar a retomada do discurso bblico e sua
alterao na produo do humor. Isto nos tem levado a crer numa ampliao da classificao
realizada por Possenti, a qual se fundamenta nas chaves lingsticas que desencadeiam o riso.
Para esse autor, existem piadas fonolgicas, morfolgicas, sintticas, lexicais, diticas, de
inferncia, pressuposio e conhecimento prvio9. Cremos, porm, que as piadas podem ser
analisadas do ponto de vista de sua constituio intertextual e/ou interdiscursiva. Neste caso, a
4 BATISTA, Maria de Ftima Barbosa de Mesquita. A Narrativizao do romance oral O cego. Acta semitica et lingstica, So Paulo, v. 10, 2004. p. 67 78. 5 PAIS, Cidmar T. Propaganda e publicidade no discurso institucional da educao superior: anlise scio semitica. Revista do GELNE, v.5, n. 1 e 2,. Joo Pessoa: UFPB / GELNE, 2003. p. 29 36. 6 RIBEIRO, Wilma da Silva. Aspectos ideolgicos nas redaes dos alunos das redes pblica e particular do ensino fundamental em Pernambuco: uma abordagem sociossemitica. Joo Pessoa, 2004. Dissertao (Mestrado) - UFPB. 7 PAIS, Cidmar T. Vises de mundo e sistemas de valores em culturas da Amrica Latina e do Caribe: elementos para um estudo contrastivo em semntica cognitiva e semitica das culturas. Revista Uniandrade. v. 01. n. 01, 2003b. p. 47-60. 8 Pais (2003b) mostra que, em determinadas naes desenvolvidas, a arquitetura antiga preservada e tem lugar de destaque. J em certos pases em desenvolvimento, a modernidade atropela as construes antigas, que se no so tombadas (pilhadas), relegam-se ao descaso, ao abandono. 9 Possenti (2001) diferencia as piadas segundo os mecanismos linguisticos de que dispem para promover o efeito de humor. Neste sentido, considera fonolgica, por exemplo, uma piada que precinde de artifcios sonoros peculiares a uma determinada lngua para ocasionar um efeito de humor. Trata-se da ocorrncia de ambiguidade em uma palavra ou sentena por causa da mudana no som da pronncia.
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significao dos discursos nelas veiculados parte de um texto/discurso base, que, na mudana
de um script para outro, transformado.
Este trabalho tem como objeto, portanto, a significao de piadas que se constituem a
partir de relaes intertextuais e interdiscursivas com passagens bblicas. Interessa-nos
verificar como ocorre a transformao do discurso religioso do ponto de vista da
narratividade, das oposies semnticas fundamentais e dos valores veiculados nos discursos
dessas piadas. Uma das hipteses a ser verificada com a nossa pesquisa de que essas
relaes ocasionam o confronto de dois universos discursivos nas piadas, os quais se
superpem, do mesmo modo que ocorre com os scripts contrrios em toda e qualquer piada10 .
Por universo de discurso, entenda-se um conjunto no-finito, ou que tende ad infinitum, de
todos os discursos manifestados que apresentam certas caractersticas comuns e constantes,
certas coeres, suscetveis de configurarem uma norma. 11
Nesse caso, os dois universos de discurso em questo esto estreitamente ligados por
uma relao intertextual decorrente do uso das passagens bblicas. Mais que isso, esto
sobrepostos, devido aos dois scripts que acionam e que se fazem perceber com a quebra de
expectativa proporcionada pelo gatilho lingstico. Com essa sobreposio de universos
discursivos, a apreciao do percurso gerativo de sentido passa a assumir a mesma dualidade
que constituem as piadas, porque a anlise da significao de cada discurso passa a consider-
los sem seus scripts prprios.
Portanto, a passagem que significa na piada e a piada que significa atravs da
passagem que se tornam passveis de anlise. o percurso gerativo dessa significao
ambgua que se pretende investigar, na perspectiva de desvelar que valores so postos em
primeiro plano, atravs das relaes intertextuais e interdiscursivas entre as piadas e as
passagens bblicas a que tais textos humorsticos remetem. Por outro lado, buscamos trazer
tona os valores relegados a segundo plano, devido constituio das piadas, a fim de
explicitar as controvrsias entre o discurso religioso e o humorstico.
Nessa perspectiva, eis a pergunta crucial que procuramos responder, como problema
dessa pesquisa: qual o percurso gerativo do sentido de piadas que, para sua constituio
humorstica, valem-se de passagens bblicas, ao estabelecerem relaes intertextuais e
interdiscursivas? Para isso, tomamos como objetivo geral analisar, em piadas com passagens
bblicas, a transformao do discurso religioso. Nesse sentido, hiptese principal desse 10 RASKIN, Victor. Linguistic heuristic of humor: a script-based semantic approach. In: International Journal of sociology of language. 65. Amsterdam. Mouton de Gruyter, 1987. p. 11 25. 11 PAIS, Cidmar T. Texto, discurso e universo de discurso. Revista Brasileira de Lingstica, vol. 8(1). So Paulo: Pliade, 1995. p. 135 164.
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trabalho a idia de que, em prol do humor, valores concernentes s passagens bblicas so
postos de lado, so relegados ao segundo plano. Assim, temos como objetivos especficos
desvelar os novos valores que o discurso humorstico confere s passagens bblicas,
transformadas em piadas; analisar como os valores investidos pelos sujeitos enunciadores
dessas piadas so figurativizados; e identificar, do ponto de vista semntico, que implicaes
de sentido surgem das alteraes promovidas pelas piadas nas passagens bblicas.
A construo de nosso corpus ocorreu atravs da coleta de piadas religiosas, em sites
de humor que apresentavam, em suas categorias, os termos religiosa ou de religio. Nesse
sentido, escolhemos as piadas de quatro (04) sites nos quais realizamos um trabalho
minucioso de leitura e comparao entre os textos neles apresentados:
www.humortadela.uol.com.br; www.aspiadas.com; www.quatrocantos.com; www.piada.com.
Alm desses, outros trs foram consultados (ver anexo I), mas devido mnima quantidade de
piadas com passagens bblicas, decidimos descart-los. Nesse sentido, realizamos um
levantamento dos recursos disponveis em cada um dos quatro sites supracitados, a fim de
verificar seu funcionamento como sites de humor ou de piadas propriamente ditas, medida
que a pesquisa dos textos ocorria. O objetivo de tal verificao foi alargar o leque de opes
para a coleta do corpus, mas percebemos que os sites que s dispunham de piadas no
apresentavam muitos textos de interesse para essa pesquisa. J os de humor que
apresentavam no s piadas, mas tambm charges, quadrinhos, animaes, questionrios
imbecis, como os prprios sites intitulam, entre outros recursos dispunham de uma
variedade maior de piadas.
Este foi mais um motivo que nos restringiu aos quatro sites indicados: mais de 500
piadas foram encontradas sob a classificao religiosa, ou de religio. Embora grande fosse a
quantidade, muitas se repetiam em mais de um site; quando no, apresentavam-se como uma
variante da outra. Em contato com o webmaster do humortadela.uol.com.br, verificamos que
grande parte das piadas era enviada por internautas e postas em ranking conforme o
maior nmero de acessos e votaes dos leitores do site12. Acreditamos que tais critrios
contribuem para as repeties que detectamos, uma vez que tal procedimento no impede que
o internauta possa enviar a mesma piada a mais de um site. Ou, como ocorre na oralidade,
contar a mesma piada, com algumas alteraes, a diferentes pessoas, neste caso, leitores dos
diferentes sites.
12 No anexo III, o webmaster Adrianete esclarece como feito o ranking de piadas em seu site.
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Entretanto, nem todas interessavam nossa pesquisa, pois nem todas possuam, em
sua constituio, um (suposto) dilogo com alguma passagem bblica. Muitas apenas
apresentavam alguma autoridade eclesistica com condutas inesperadas ou situaes
inusitadas em conventos, igrejas, trnsito. Por isso, reduzimos ainda mais a quantidade de
piadas e as enquadramos em trs categorias que institumos de acordo com a anlise prvia de
cada texto, pouco depois da coleta. Tal categorizao nos serviu como ponto de partida para
organizar a ordem de anlise e foi criada a partir da relao que cada piada mantm com as
passagens bblicas a que remetem. Sendo assim, a distribuio das piadas, segundo cada
categoria, pde ser representada da seguinte forma:
Intertextuais So consideradas neste grupo as piadas que, pela
heterogeneidade mostrada, utilizam o texto
bblico como gatilho para a passagem de um
script a outro.
9 A primeira pedra 9 Quem eu sou? 9 Abrao e Isaac 9 Lzaro 9 Jesus e as criancinhas
Interdiscursivas Consideramos nesta categoria aquelas que,
mesmo no utilizando de forma notria o texto
bblico, compem-se com trechos que remetem
ideologia bblica, pela heterogeneidade
constitutiva, estando o gatilho justamente nesses
trechos.
9 F demais no cheira bem 9 Problemas na terra 9 Professora atia
Transgressivas So consideradas neste grupo as piadas que
operam com criaes a partir das passagens,
transgredindo o discurso que ali se instaura,
apresentando novas situaes, e bem destoantes
das apresentadas na Bblia, quanto ao carter
sacro.
9 Convite imprprio 9 As bodas 9 O caminho das pedras 9 No perdeu, Cabral descobriu...
Por outro lado, o quadro de categorizao que construmos no encerra a classificao
das piadas como uma definio estanque. Pelo contrrio, cremos que algumas piadas possam
pertencer a duas ou mais categorias, de acordo com os recursos de que disponham para
propiciar o humor. Seu enquadramento numa determinada categoria segue, pois, um critrio
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de predominncia de recursos, ou da importncia dos mesmos para promover o efeito de
humor.
guisa de esclarecimento, no tomamos aqui o termo piada religiosa baseando-se
numa classificao cientfica mais precisa. O uso desse termo est alicerado apenas na
categorizao comum aos sites de humor nos quais coletamos as piadas para anlise. So eles
que ora usam o termo religiosa, ora de religio para enquadrar diversas piadas, que versam
sobre cristos, judeus, muulmanos, hindus, budistas e outros. Assim, trazem tona papis
temticos comuns realidade crist, como padres, pastores, freiras, apstolos de Cristo e
Deus, ou quaisquer outros papis e divindades que compem as narrativas de outras religies,
como rabinos, monges, profetas, Buda, Maom ou Al.
Neste cerne, aps a seleo do grupo de piadas relacionado acima para organizar os
dados da pesquisa, passamos a analisar os trs nveis de gerao do sentido, conforme a teoria
semitica greimasiana. Paralelamente, discutimos as relaes intertextuais e interdiscursivas
existentes entre as piadas e as passagens bblicas a que tais textos humorsticos remetem,
realizando consideraes semntico-discursivas sobre os gatilhos lingsticos que
desencadeiam o riso. Alm disso, tecemos comentrios sobre as estratgias do sujeito
enunciador para promover o efeito de humor e discutimos as controvrsias existentes entre
piada e passagem bblica, do ponto de vista do discurso que veiculam.
Da mesma forma, buscamos desvelar os valores obscurecidos pelo humor, vises de
mundo e ideologias subjacentes que se sobrepem a outras nas malhas intertextuais (e
interdiscursivas) constitutivas das piadas com passagens bblicas.
Para o cumprimento de nossos objetivos, apresentamos, no primeiro captulo, a teoria
semitica greimasiana, a qual tomamos como base para nossas anlises. Partimos de seus
pressupostos fundamentais, como a viso de signo de Saussure e Hjelmslev e o percurso
gerativo de sentido. Sobre tal teoria, buscamos discutir o princpio da articulao lingstica
sob as perspectivas duais de significante e significado, expresso e contedo, abstrao e
concretude, ou, como se prefere na semitica discursiva atual, o sensvel e o inteligvel. Em
seguida, esboamos o percurso gerativo do sentido em suas etapas distintas, com base em
autores que desenvolvem trabalhos na linha de Greimas. Alm disso, demonstramos como a
semitica greimasiana dialoga com a semitica das culturas e com as teorias do humor. Nesse
sentido, trabalhos de alguns autores so exemplificados, a fim de que seus pressupostos
tericos sejam aclarados, fundamentando nossas discusses posteriores sobre as piadas com
passagens bblicas.
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Em seguida, passamos para as teorias do humor verbal, de que nos valemos para a
preparao do corpus. Neste segundo captulo, com ateno especial para as piadas, buscamos
esboar conceitos relevantes para o estudo do humor, ao apresentarmos discusses de diversos
autores. Tambm buscamos demonstrar, luz do dialogismo, a constituio das piadas sob o
carter heterogneo, que lhes peculiar. Por fim, reservamos o encerramento desse segundo
captulo para a apreciao do discurso religioso, sobre o qual discorremos conceitos, marcas e
propriedades, alm de apresentarmos um pequeno esboo de estudos sobre sua apropriao
em contextos de uso da linguagem no-religiosos.
No terceiro captulo, principiamos as discusses sobre as piadas com passagens
bblicas a partir do quadro de categorizao que propomos. De incio, analisamos o percurso
gerativo das piadas intertextuais, buscando identificar pontos divergentes e comuns s piadas
que enquadramos em tal categoria, como implicaes ideolgicas e constituio do ponto de
vista das estruturas de superfcie.
J no quarto captulo, com as piadas interdiscursivas, nosso foco demonstrar a
manuteno da ideologia crist. Para tanto, traamos o percurso gerativo de sentido para a
significao do discurso religioso nas piadas com passagens bblicas, ao passo que analisamos
as passagens de que tais piadas se apropriam do ponto de vista ideolgico.
Para concluirmos as anlises, apresentamos, no quinto captulo, um grupo de piadas
que operam com transgresses ao texto bblico. Realizamos a anlise dos trs patamares do
percurso gerativo e comparamos os valores subjacentes s ideologias das piadas. Com isso,
demonstramos o quanto elas destoam das passagens a que remetem do ponto de vista do
discurso veiculado e da narrativa construda.
Por fim, discorremos nossas consideraes finais sobre as anlises realizadas,
comparando os resultados obtidos, a fim de verificar a validade de nossas propostas.
Propomos, no fim, uma ateno maior a discusses sobre o uso do texto/discurso religioso
fora de seu contexto, por acreditarmos que implicaes alm da inteno humorstica de
simplesmente fazer rir possam ocorrer em tais usos, sendo tarefa dos estudiosos da linguagem
desvelar os sentidos que tamanho exerccio lingstico implica.
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1. BASES TERICAS
1.1 A SEMITICA GREIMASIANA
Algirdas Julien Greimas concebeu uma teoria que visa explicar, atravs de um
percurso gerativo do sentido, a gerao dos discursos em qualquer sistema semitico. Em
verdade, o objeto de estudo da semitica a significao, entendida no como um a priori j
constitudo, mas como o resultado de articulaes do sentido13. Ao sentido, Greimas, atribui
um conceito de indefinio, e sobre ele nada se pode dizer antes que se manifeste sob forma
de significao14. J Fontanille (2006) trata o sentido como uma direo a que tendem objetos,
prticas e situaes quaisquer15, pertencentes aos sistemas semiticos.
A compreenso de tais sistemas sob a tica greimasiana vem na esteira de Saussure,
com seus estudos do signo e sua dicotomia entre significado e significante. Para este autor, o
signo seria, ento, uma articulao aleatria entre som e pensamento (ou idias). A lngua,
nessa perspectiva um sistema de valores puros, que so elementos da significao, frutos da
arbitrariedade que une significante e significado. Articulada, pois, de maneira dupla, entre
dois planos amorfos, ela nem pertence ao plano dos sons, nem ao plano das idias. Seu papel,
segundo Saussure (1997), no criar um material fnico para a expresso das idias, mas
servir de intermedirio entre o pensamento e o som16.
Por outro lado, Hjelmslev (1975) reinterpretou tais consideraes, conferindo-lhes
uma ampliao do ponto de vista conceitual. O signo, para ele, existe por meio de uma relao
de solidariedade entre contedo e expresso, segundo a qual uma expresso s expresso
porque expresso de um contedo, e um contedo s contedo porque contedo de uma
expresso17. Estas colocaes dialogam e reforam a metfora com a folha de papel que
Saussure apresenta para exemplificar sua definio de lngua.
[...] o pensamento o anverso e o som verso; no se pode cortar um sem, ao mesmo tempo, o outro; assim, tampouco, na lngua, se poderia isolar o som do pensamento, ou o pensamento do som; s se chegaria a isso por uma abstrao cujo resultado seria fazer Psicologia pura ou Fonologia pura. 18
13 CORTINA, Arnaldo e MARCHEZAN, Renata C. Teoria semitica: a questo do sentido. In: BENTES, Ana Cristina e MUSSALIN, Fernanda. Introduo lingstica: fundamentos epistemolgicos. So Paulo: Cortez, 2007. p. 394. 14 GREIMAS, A. J. e COURTS, Joseph. Dicionrio de Semitica. So Paulo: Cultrix, 1979. p. 417 15 FONTANILLE, Jaccques. Semitica do discurso. So Paulo: Contexto, 2007. p. 31 16 SAUSSURE, Ferdinand. Curso de lingstica geral. So Paulo: Cultrix, 1997. p. 131. 17 HJELMSLEV, Louis. Prolegmenos a uma teoria da linguagem. So Paulo: Perspectiva, 1975. p. 54. 18 SAUSSURE, Ferdinand. Op. Cit. p. 131
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Martinet (1968), em suas discusses sobre a lingstica sincrnica, tambm concebe a
linguagem como uma dupla articulao. Para este autor, na medida em que se fala, faz-se isso
para ser compreendido, estando a expresso a servio do contedo. por esse motivo que ele
afirma haver solidariedade entre os dois planos, mas em um sentido determinado19, o que
ratifica a posio hjelmsleviana de que as lnguas se articulam sob dois planos distintos.
Contudo, tanto Saussure quanto Hjelmslev mantiveram suas discusses sobre a
significao no mbito estritamente lingstico, do ponto de vista das estruturas dos sistemas
semiticos. Neste sentido, completamos o entendimento de signo com os postulados de
Bakhtin, para quem todo signo ideolgico e deve ser entendido como reflexo e refrao de
uma dada realidade social. Sendo todo signo ideolgico, a ideologia emerge do processo de
interao entre uma conscincia individual e outra, numa cadeia20.
Embora Greimas tenha pensado seu projeto semitico tambm voltado para questes
alm do puramente lingstico, do ponto de vista estrutural, sua concepo de ideologia no
a mesma de Bakhtin. A semitica greimasiana entende a ideologia como um conjunto de
valores de uma sociedade, de uma cultura; diferente da concepo bakhtiniana, que mais
poltica. Assim, o signo significa o que a ideologia sustenta, sendo ideolgico porque reflete
um conjunto de valores da sociedade no uso da linguagem.
Dessas discusses, chegamos ao entendimento de que a significao consiste numa
relao de dependncia entre contedo e expresso; num processo de produo, acumulao e
transformao da funo semitica, que pe o signo em discurso; e de que as anlises da
significao pressupem tambm anlises lingstico-ideolgicas, no que tange aos
mecanismos lingsticos acionados e universos discursivos envolvidos.
1.1.1 O percurso gerativo do sentido
Segundo a proposta greimasiana, a gerao dos sentidos parte do patamar mais
simples ao mais complexo, sendo abordado sob trs nveis: o fundamental, em que a
significao surge como uma oposio semntica mnima; o narrativo, no qual a narrativa
organiza-se do ponto de vista de um sujeito; e o discursivo, em que a narrativa assumida
pelo sujeito da enunciao21.
19 MARTINET, Andr. La doble articulacion del lenguaje. In: MARTINET, A. La lingstica sincrnica estudios e investigaciones. Madrid: Gredos, 1968. p. 29 20 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. So Paulo: Hucitec, 1997. 21 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semitica do texto. So Paulo: tica, 2005. p. 09
24
Este tambm o entendimento de Fiorin (2006), que, para ilustrar de maneira
resumida as etapas do percurso gerativo do sentido, apresenta um esquema em que a sucesso
de patamares de tal percurso explicitada. Os nveis se constituem pelas estruturas semio-
narrativas e se completam, na gerao do sentido, com as estruturas discursivas, que, assim
como as anteriores, tambm apresentam componentes sintticos e outros semnticos,
conforme ilustra o quadro seguinte:
Estruturas
semio-
narrativas
Estruturas discursivas
Componente Sinttico
Componente Semntico
Nvel Profundo Sintaxe Fundamental Semntica Fundamental
Nvel de Superfcie Sintaxe Narrativa Semntica Narrativa
Sintaxe Discursiva: Discursivizao, actorializao, temporalizao e espacializao.
Semntica Discursiva: Tematizao e Figurativizao.
Em seguida, o autor passa a esclarecer cada etapa do percurso. Sobre a sintaxe dos
diferentes nveis, Fiorin afirma que ela de ordem relacional, ou seja, um conjunto de regras
que rege o encadeamento das formas de contedo na sucesso do discurso22. Ainda que
relacional, apresenta um componente conceptual, visto que cada combinatria de formas
possa produzir um determinado sentido. Ele acena para os componentes semnticos, em
especial para a semntica fundamental, que abriga as categorias que esto na base da
construo de um texto23. nesse patamar que se deve determinar a oposio ou oposies
semnticas a partir das quais se constri o sentido do texto24. Juntas, a semntica e a sintaxe
do nvel fundamental formam a instncia inicial do percurso gerativo do sentido e buscam a
explicao para os nveis mais abstratos da produo, do funcionamento e da interpretao do
discurso.
J o nvel narrativo componente de qualquer texto representa o segundo patamar
do percurso, e nele as oposies semnticas so assumidas como valores de um sujeito.
Segundo Fiorin (2006), nenhuma objeo quanto a esta etapa faz sentido, caso se tenha a 22 FIORIN, Jos Luiz. Elementos de anlise do discurso. So Paulo: Contexto, 2006. p. 21 23 FIORIN, Jos Luiz. Op. Cit. p. 22 24 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Op. Cit. p. 10
25
compreenso de que narratividade no corresponde narrao. Assim, a anlise semitica de
qualquer piada mesmo as que no apresentam predominantemente o tipo textual narrativo
pode ser realizada neste segundo patamar, uma vez que se trata de um componente da teoria
do discurso. A narratividade, para Fiorin, uma transformao situada entre dois estados
sucessivos e diferentes. Isso significa que ocorre uma narrativa mnima, quando se tem um
estado inicial, uma transformao e um estado final. 25
A sintaxe narrativa organiza toda a complexa relao em que um sujeito se insere no
fazer sobre o mundo. Barros (2005) sustenta que o entendimento da organizao narrativa de
um texto precisa estar atrelado descrio do espetculo que simula o fazer do homem.
Segundo a autora preciso determinar, em um texto, os participantes e papel que
representam na historiazinha simulada 26.
Por outro lado, Greimas e Courts (1979) consideraram a semntica narrativa como a
instncia de atualizao dos valores e o lugar das restries impostas combinatria, em que
decidido em parte o tipo do discurso a ser produzido. J Fiorin apresenta os seguintes
esclarecimentos:
A semntica do nvel narrativo ocupa-se dos valores inscritos nos objetos [...] modais e objetos de valor. Os primeiros so o querer, o dever, o saber e o poder fazer, so aqueles elementos cuja aquisio necessria para realizar a performance principal. Os segundos so os objetos com que se entra em conjuno ou disjuno na performance principal. 27
A terceira e ltima etapa do percurso gerativo do sentido a discursivizao, que
tambm apresenta um componente sinttico e outro semntico. Aqui as formas abstratas do
nvel narrativo so revestidas de termos que lhes do concretude28. uma etapa em que se
opem enunciao e enunciado, verificam-se as escolhas do sujeito da enunciao e as
estruturas que regem a organizao do discurso anteriormente sua manifestao29.
A respeito das escolhas do sujeito da enunciao, Barros (2005) diz que ele faz uma
srie de escolhas de pessoa, de tempo, de espao, de figuras, e conta ou passa a narrativa
transformado-a em discurso. Neste sentido, discurso pode ser entendido como a narrativa
enriquecida por todas as opes desse sujeito, que marcam os diferentes modos pelos quais a
enunciao se relaciona com o discurso enunciado.
25 FIORIN, Jos Luiz. Op. Cit. p. 28 26 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Op. Cit. 27 FIORIN, Jos Luiz. Op. Cit. p. 37 28 FIORIN, Jos Luiz. Op. Cit. p. 41 29 GREIMAS, A. J. e COURTS, Joseph. Op. Cit. p. 124
26
Para a distino entre os componentes sintticos e os semnticos da discursivizao,
preciso entender que a sintaxe discursiva observa a relao entre a enunciao e o discurso,
revelando as unidades discursivas. A semntica discursiva estabelece percursos temticos e
reveste figurativamente os contedos da semntica narrativa. 30
Assim, a diviso entre sintaxe discursiva e semntica discursiva d-se mediante a
observncia de procedimentos peculiares a cada instncia. Na sintaxe discursiva, tem-se
actorializao, temporalizao e espacializao, procedimentos que atestam as projees da
enunciao. Alm desses componentes sintticos, estruturam-se os semnticos, que podem ser
detectados na configurao temtica e figurativa do discurso31.
A actorializao corresponde ao revestimento dos sujeitos da narrativizao. Os
actantes ganham concretude e o que era um simples sujeito semitico passa a ser um apstolo,
no caso de uma piada religiosa, por exemplo. Ou seja, ocorre uma concretizao das
personagens enunciadas na narrativa, podendo haver at um sincretismo actancial, quando um
mesmo actante manifesta-se atravs de dois atores ou mais32.
Na temporalizao, o sujeito enunciador deixa as marcas temporais que situam seu
discurso historicamente. Podem ser produzidos efeitos de realidade, atravs das mudanas em
tempos verbais e efeitos de distanciamento ou aproximao, com as projees agora / ento.
Segundo Greimas e Courts (1979: 455), a temporalizao transforma uma organizao
narrativa em histria, j que segmenta e organiza as sucesses temporais, valendo-se de
procedimentos de debreagem e embreagem.
Do mesmo modo, a espacializao produz efeitos de aproximao (aqui) ou de
distanciamento do sujeito enunciador (alhures). Essas coordenadas deixadas no texto pelo
sujeito enunciador do-lhe o efeito de subjetividade ou objetividade, que a semitica
greimasiana classifica como debreagem e embreagem respectivamente. Tais termos foram,
por Greimas, tomados de emprstimo de Jakobson, quando este tratou dos shifters
(embreantes)33. A respeito do mecanismo de debreagem, Fiorin (2006) faz uma diviso entre
debreagem enunciativa e debreagem enunciva e apresenta o seguinte esclarecimento:
A debreagem enunciativa projeta, pois, no enunciado o eu-aqui-agora da enunciao, ou seja, instala no interior do enunciado os actantes enunciativos, os espaos enunciativos e os tempos enunciativos [...] A debreagem enunciva constri-se com o ele, o alhures e o ento, o que
30 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso: fundamentos semiticos. So Paulo: Atual, 1988. p. 16 31 CORTINA, Arnaldo e MARCHEZAN, Renata C. Op. Cit. p. 408 32 GREIMAS, A. J. Os Atuantes, os Atores e as Figuras. In CHABROL, Claude (Apres.) Semitica narrativa e textual; Trad. Leyla Perrone Moiss et al. So Paulo: Cultrix, 1977. 33 CORTINA, Arnaldo e MARCHEZAN, Renata C. Op. Cit. p. 412
27
significa que, nesse caso, ocultam-se os actantes, os espaos e os tempos da enunciao34.
Quanto aos mecanismos da semntica discursiva, Barros (2005) assinala que cabe ao
sujeito da enunciao disseminar os temas e figurativiz-los, para assegurar a coerncia
semntica do discurso e criar, com a concretizao figurativa do contedo, efeitos de sentido,
sobretudo de realidade35. J Fiorin (2006) faz a seguinte apreciao a respeito de tais
mecanismos:
Podem-se revestir os esquemas narrativos abstratos com temas e produzir um discurso no figurativo ou podem-se, depois de recobrir os elementos narrativos com temas, concretiz-los ainda mais, revestindo-os com figuras36.
Na verdade, isto quer dizer que h textos com predominncia temtica e outros em que
predominam as figuras. Tematizao e figurativizao so nveis de concretizao do sentido,
e sendo independentes, pode haver textos mais temticos que figurativos, ou o contrrio.
Entretanto, comum que apaream figuras nos textos em que domina a tematizao, ou temas
no caso da predominncia da figurativizao. Para Fiorin (2006), figura o termo que remete
a algo existente no mundo natural e tema consiste num investimento semntico, de natureza
conceptual, puramente, que no remete a esse mundo. Em outras palavras, figura todo
contedo de qualquer lngua natural ou de qualquer sistema de representao que tem um
correspondente perceptvel no mundo natural; j temas so categorias que organizam,
categorizam e ordenam os elementos do mundo natural37.
Por fim, importante ressaltar que o percurso gerativo do sentido no pode ser tomado
como um esquema a que os textos tenham que se adaptar. Antes de tudo, trata-se de um
dispositivo de interpretao inerente aos textos, visto que a significao dos mesmos constri-
se, seno com todas as etapas, pelo menos com algumas delas. Ele no descreve a maneira
real de produzir um discurso, pois , na verdade, um simulacro metodolgico, que permite ler
um texto com mais eficcia38.
1.2 SEMITICA E CULTURA
34 FIORIN, Jos Luiz. Op. Cit. p. 58-59 35 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Op. Cit. p. 68 36 FIORIN, Jos Luiz. Op. Cit. p. 90 37 FIORIN, Jos Luiz. Op. Cit. p. 91 38 FIORIN, Jos Luiz. Op. Cit. p. 44
28
O projeto semitico de A. J. Greimas visava construo de uma teoria semntica que
transcendesse a observncia da palavra sob o ponto de vista estrutural e puramente lingstico.
Ao discordar do posicionamento de que sobre o sentido nada poderia ser dito, Greimas (1975)
esclarece que a distino entre semitica e semiologia, por ele respectivamente entendidas
como cincia da natureza e cincia do homem, uma questo de procedimento. Para ele:
[...] ser preciso ressaltar que a distino que se pode estabelecer entre as semiticas e as semiologias entre as cincias da natureza e as cincias do homem ao menos no nvel dos modelos paradigmticos escolhidos, no uma distino de estrutura, mas sim de procedimento39.
Nessa perspectiva, Greimas seguiu em direo a uma semitica do mundo natural,
quando considerou passveis de anlise os signos naturais do mundo visvel, estticos ou em
movimento. Por outro lado, ele acenou para a possibilidade de se abordar, mediados pela
linguagem, tanto a natureza quanto o homem. A respeito dessa questo, Greimas diz que:
A natureza e o homem se manifestam para ns sob a forma de signos que podem, pela mediao lingstica, ser reunidos em conjuntos, recortados e reinterpretados como sistemas de relaes, tornando-se assim objetos cientficos; na mesma medida, as transformaes dos fenmenos da natureza e as mudanas resultantes da atividade humana podem ser igualmente transcodificadas e denominadas, convertendo-se assim em descries baseadas em unidades lingsticas com carter discursivo40.
Tais mudanas promovidas pelo homem correspondem a um fazer do mesmo sobre o
mundo, fazer este que tambm se apresenta como signo(s), em um mundo semioticamente
construdo. nesse sentido que Greimas aponta para uma semitica da cultura, ao considerar
passvel de descrio as aes do homem sobre o mundo, mediadas pelo uso da linguagem.
Segundo Pais (2006), o objeto da semitica das culturas so as culturas humanas e sua
diversidade, sempre numa perspectiva intercultural ou multicultural, atravs de comparaes
entre culturas. A busca pela caracterizao de uma cultural prescinde da comparao com
outra, com o intuito de desvelar seus microssistemas de valores e as vises de mundo deles
decorrentes, estabelecendo uma tenso dialtica entre a especificidade e a diversidade.
Especificidade implica no-diversidade, resultando na identidade cultural. Diversidade
implica no-especificidade, resultando na alteridade. Na tenso dialtica entre especificidade
e diversidade est a interculturalidade. Seu oposto seria a inexistncia semitica resultante dos
termos contrrios no-diversidade e no-especificidade. Pode-se visualizar melhor tal relao
39 GREIMAS, Algirdas Julien. Sobre o sentido: ensaios semiticos. Petrpolis: Vozes, 1975. p. 31 40 GREIMAS, Algirdas Julien. Op. Cit. p. 32
29
no octgono seguinte, evoluo do quadrado semitico que Greimas (1975) apresenta ao
tratar do jogo das restries41:
(PAIS, 2006: 02) 42
Uma das diferenas entre o octgono de Pais e o quadrado de Greimas est na relao
de implicao entre os termos contrrios que so denominados por Pais (2003b) de
metatermos simples a qual apresenta um metatermo complexo, que resulta de tal
implicao. Nesse caso, alteridade rene diversidade e no-especificidade; e/ou identidade
cultural rene especificidade e no-diversidade. Assim, no s a significao S rene S1 e S2,
sendo redefinido como sema complexo, mas tambm os contrrios S1 e S1, assim como S2 e
S2, tem como implicao um metatermo, embora isto no esteja ilustrado no diagrama
abaixo:
41 No captulo intitulado O jogo das restries semiticas, Greimas apresenta a formatao do quadrado semitico, que, com a evoluo das pesquisas em semitica das culturas e sociossemitica, passa a ser apresentado em forma de octgono. 42 PAIS, Cidmar T. Da semitica das culturas a uma cincia da interpretao: valores e saberes compartilhados. 58 Reunio Anual da SBPC. Florianpolis, 2006. p. 1 5
Interculturalidade
Alteridade Identidade
cultural
No-diversidade No-especificidade
Especificidade
Diversidade
Natureza biolgica
30
(GREIMAS, 1975: 127) 43
Na verdade, o octgono j se delineava quando Greimas e Courts discorriam sobre as
modalidades veridictrias. Naquele esquema, todo objeto semitico visto na tenso entre um
ser e um parecer, cujos contraditrios so respectivamente no-ser e no-parecer, como
ilustramos abaixo.
(GREIMAS e COURTS, s.d.: 488)44
43 GREIMAS, Algirdas Julien. Op. Cit. p. 127 44 GREIMAS, A. J. e COURTS, Joseph. Op. Cit. p. 488
S2
S
S S2 S1
S1
Verdade
Mentira Segredo
No-parecer No-ser
Ser Parecer
Falsidade
31
Da implicao entre ser e no-parecer resulta o segredo; j da implicao entre
parecer e no-ser resulta a mentira. Na tenso dialtica entre ser e parecer est a verdade,
ficando a falsidade para a implicao entre no-parecer e no-ser.
Por outro lado, Greimas buscou, nos procedimentos da semntica estrutural, o
caminho para uma semitica da cultura, ao realizar comparaes entre os mitos, mais
precisamente atravs das narrativas mticas escandinavas e indianas. Neste cerne, o autor
discute as concepes de bem e mal que perpassam tais narrativas e finaliza tal estudo
indicando que os mitos apresentam unidades constitutivas nos seus significados que
correspondem s seqncias das narrativas mticas45.
Com a evoluo das teorias semnticas como a semntica cognitiva a semitica da
cultura passa a preocupar-se com os microssistemas de valores das culturas e com as vises de
mundo deles decorrentes. So exemplos os trabalhos de Cidmar Pais, que comparam a cultura
caribenha com a latino-americana e as vises de mundo em Cuba e no Brasil; tambm o so
as comparaes entre Frana, Brasil e Cuba, no que tange s vises sobre o acesso
universidade pblica46.
Nesse ltimo caso, tem-se um bom exemplo a ser esclarecido a respeito das
consideraes realizadas pela semitica das culturas: a questo do privilgio. Numa sociedade
capitalista e excludente, como o Brasil, o privilgio de se alcanar uma universidade pblica
cabe a poucos cidados. No caso, estes poucos representam as camadas mais favorecidas
financeiramente. Privilgio tem, pois, um valor eufrico, traz consigo traos de desigualdade
e discriminao, alm de representar um querer, uma aspirao dos membros de nossa
sociedade47. J na Frana, por exemplo, este mesmo privilgio disfrico, j que existem
polticas que combatem a discriminao e buscam minimizar as desigualdades, inerentes a
ele.
Outro exemplo do que esclarece a semitica das culturas dado por Pais (2003b),
quando trata do discurso poltico eleitoral. Ele esclarece que a seguridade social constitui uma
aquisio definitiva na Frana, que direito educao e sade esto garantidos em Cuba e,
sendo assim, candidato algum ousaria dizer o contrrio, caso quisesse ser eleito. Por outro
lado, os programas e as promessas dos candidatos brasileiros falam de assegurar, se eleitos, o
acesso de todos educao e sade. Isto demonstra que a igualdade dos cidados perante a
Lei ainda no foi assegurada a todos. Ou seja, enquanto as sociedades francesa e cubana tm
45 GREIMAS, A. J. Op. Cit. p. 114, 115 46 PAIS, Cidmar T. Op. Cit. p. 47 60. 47 PAIS, Cidmar T. Op. Cit. p. 54
32
direitos garantidos e seus polticos no negam isso em seus discursos, a brasileira ouve a cada
eleio o mesmo discurso de que, caso eleito, um determinado candidato e vrios se
colocam nessa condio far com que os direitos do brasileiro sejam garantidos, j que
ainda no foram.
Sendo assim, as vises de mundo sobre privilgio e discurso poltico diferem na
cultura brasileira e na francesa, devido aos valores distintos aspirados por cada uma. Tais
consideraes s puderam ser realizadas porque a semitica das culturas pe lado a lado duas
ou mais culturas distintas a fim de compar-las e desvelar seus microssistemas de valores.
1.3 SEMITICA E HUMOR
Os estudos semiticos h muito se tem voltado para a significao em diversos modos
de realizao da linguagem. No toa que se fala em semitica verbal e sincrtica, pois
tanto se pode analisar poemas quanto Histrias em Quadrinhos (HQs). Discini (2005) nos d
um bom exemplo ao realizar uma anlise que demonstra um dilogo entre esses dois gneros.
Em meio s suas discusses, diz que:
[...] as HQs, como gnero, apresentam recorrentemente o sincretismo do verbal com o visual, isto , a expresso verbal e a visual, longe de se manterem discretas, separadas, juntam-se; o verbal colabora com o visual, para que se construam efeitos de sentido; no caso das HQs, o visual no s complementa o verbal, como predomina sobre ele48.
Isto confirma a afirmao de Barros (2005) sobre o que a semitica de hoje procura
determinar: o que o texto diz, como diz e para que o faz. Segundo esta autora, a semitica
analisa
[...] os textos da histria, da literatura, os discursos polticos e religiosos, os filmes e as operetas, os quadrinhos e as conversas de todos os dias, para construir-lhes os sentidos pelo exame acurado de seus procedimentos e recuperar, no jogo da intertextualidade, a trama ou o enredo da sociedade e da histria49.
Nesse sentido, vemos que a anlise de textos humorsticos, assim como a de religiosos,
j vem sendo procedida pelos semioticistas. No caso dos primeiros, a HQ que Discine analisa,
alm de ser observada sob sua constituio sincrtica (verbal e visual), focada sob a relao
48 DISCINI, Norma. HQ e poema: dilogo entre textos. In: LOPES, Iv Carlos e HERNANDES, Nilton (Orgs.) Semitica objetos e prticas. So Paulo: Contexto, 2005. p. 277 49 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Op. Cit. p. 83
33
intertextual que mantm com um poema. O exame acurado da semitica acena para um
dilogo entre textos. Segundo a autora, tal dilogo diz respeito prpria constituio do
sujeito da enunciao, que dialgica por natureza50. Aponta tambm que a reconstruo de
um dilogo, como esse, se faz pela identificao de convergncias e divergncias de pontos de
vista, j que cada texto reproduz a viso de mundo de uma dada formao social.
Contudo, a HQ e o poema analisados pela autora no apresentam discursos marginais,
subterrneos ou proibidos, como o fazem as piadas com passagens bblicas, por exemplo.
Estas se constituem a partir de um texto anterior (o bblico), reconhecido na Histria e na
historinha simulada, para, em seguida, promover o humor, propsito que as passagens a que
remetem as piadas no possui.
Por outro lado, concordamos com a autora quando esta acena para a reconstruo de
um dilogo entre textos atravs da verificao de convergncias e divergncias de formaes
ideolgicas. No caso da HQ e do poema analisados por Discini (2005), convergem as ironias
com relao s prescries do que se deve, ou do que preciso fazer.
Dessa forma, reconhecemos piadas que mantm relaes intertextuais e
interdiscursivas com passagens bblicas ora para neg-las, ora para confirmar seus discursos.
E a entendemos o negar como uma divergncia cuja apropriao da palavra do outro gera a
diminuio de seu valor nesse caso, em prol do riso; j a confirmao vem por um efeito de
humor que no deprecia o discurso bblico, no o pe de lado, mas o fortalece; logo, tem-se
uma convergncia.
Alm disso, a anlise de piadas com passagens bblicas difere daquela realizada entre
HQ e poema porque as piadas de que tratamos necessitam das passagens para significar. o
dilogo que mantm de alguma forma com o texto bblico que as diferencia de outras piadas
ou de outros textos humorsticos.
Uma segunda abordagem semitica sobre texto humorstico a se considerar a
realizada por Farias (2005), quando analisa uma charge. Nesse caso, vemos um discurso
marginal em uma situao formal, que uma Comisso Parlamentar de Inqurito (doravante,
CPI), mas no uma verdadeira. Para o enunciatrio aceit-la como um texto humorstico, deve
saber que ela apenas um simulacro da CPI51. Nesse caso, entendemos que tanto enunciador
quanto enunciatrio sabem que a funo do humor fazer rir, por isso a charge aceita; alm
50 DISCINI, Norma. Op. Cit. p. 280 51 FARIAS, Iara Rosa. Charge: humor e crtica. In: LOPES, Iv Carlos e HERNANDES, Nilton (Orgs.). Semitica objetos e prticas. So Paulo: Contexto, 2005. p. 245 259.
34
disso, o segundo interpreta a mesma como uma mentira, mas ri diante das expectativas
quebradas, pois esta uma situao inerente a todo texto humorstico.
Uma terceira questo relevante a considerar na anlise semitica da linguagem
humorstica a coerncia semntica. Nessa perspectiva, vale salientar as palavras de Barros
(2005) sobre as piadas.
As piadas fornecem, em geral, bons exemplos de coerncia semntica, pois, muitas vezes, a graa do chiste decorre da ruptura dessa coerncia e da proposio de outra leitura. Essa segunda leitura, inesperada, constri-se tambm a partir dos traos semnticos do discurso e liga-se freqentemente primeira, previsvel, por um elemento figurativo52.
Com tais assertivas, a autora acena para um dilogo com o que preceitua Raskin
(1987)53 a respeito do funcionamento das piadas. Para esse autor, uma das condies da a
existncia da piada (ou do chiste) a superposio de scripts contrrios, compatveis com um
mesmo texto. Assim, a outra leitura a que se refere Barros a que decorre do acionamento do
gatilho lingstico, que promove uma quebra de expectativa. Da, o termo inesperada,
utilizado pela autora; da tambm a segunda leitura, ou seja, o script que se superpe ao
outro.
Ainda sobre a questo da coerncia semntica, Fiorin (2006: 117-118) indica que a
reiterao, a redundncia, a repetio a recorrncia de traos semnticos ao longo do discurso;
ou seja, a isotopia que faz do texto uma unidade. Com isso, sua leitura passa a ser limitada s
suas virtualidades significativas; quilo que est inscrito nele, no ao que o leitor queira
entender. a leitura que deve ser feita, no a que se escolhe fazer, nem a que se consegue
fazer; mas a que o texto permite.
Com esse entendimento, o autor reconhece a importncia da isotopia para a
interpretao e verificao dos mecanismos que compem os textos humorsticos, quando
afirma que:
O conceito de isotopia extremamente importante para a anlise do discurso, pois permite determinar o (s) plano (s) de leitura dos textos, controlar a interpretao dos textos pluri-significativos e definir os mecanismos de construo de certos tipos de discurso, como, por exemplo, o humorstico54.
Assim, a semitica, mais uma vez, apresenta-se como teoria que contribui para a
anlise da linguagem do humor. E nesse cerne, dialoga com Possenti (2001), que defende a
52 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Op. Cit. p. 69 53 RASKIN, Victor. Op. Cit. 54 FIORIN, Jos Luiz. Op. Cit. p. 118
35
idia de que o texto o fator mais relevante no processo de leitura. Para ele, a piada demanda
e limita a atividade do leitor, devido aos detalhes lingsticos com que o leitor precisa ser to
atento55. Sendo o fator mais importante a se considerar no trabalho de interpretao, no o
nico, o texto apresenta marcas que direcionam a leitura; por isso que Fiorin considera
essencial a observao dos desencadeadores ou conectores de isotopia, gatilho lingstico para
Possenti. A anlise semitica de um texto humorstico prescinde, portanto, dessa observncia,
para que nenhum plano de leitura seja desprezado.
55 POSSENTI, Srio. Op. Cit. p. 39
36
2. PREPARANDO O CORPUS
2.1 TEORIAS DO HUMOR VERBAL: O CASO DAS PIADAS
Com a afirmativa de que o humor uma faculdade humana, Travaglia (1990) principia
sua Introduo aos estudos do humor pela lingstica, acenando para a hiptese de que sua
funo vai alm de fazer rir. Segundo este autor, o humor serve para realizar denncias,
manter equilbrios sociais e psicolgicos, revelar outras vises de mundo das realidades
naturais ou culturais que nos cercam, demonstrando, assim, falsos equilbrios56.
Na verdade, seu trabalho uma panormica sobre os estudos lingsticos do humor e
tem como fontes principais Raskin e Freud, antes de quem, conforme o primeiro, no se
poderia falar sobre pesquisa do humor. Neste sentido, Travaglia apresenta a seguinte assertiva
a respeito da viso freudiana do humor:
Para Freud o humor permite descobrir fontes de prazer reprimidas pela censura e o prazer vem pelo fato de se enganar o censor. Ao mesmo tempo ele reconhece o humor como um fenmeno social57.
Sem se apegar s funes scio-psicolgicas do humor, mas sim ao seu
funcionamento, ou mais precisamente, voltando-se para o que faz um texto ser humorstico,
Raskin (1987) procura discutir uma teoria lingstica do humor verbal. Para Conde (2005), o
objetivo de sua teoria formular as condies necessrias e suficientes, em termos puramente
semnticos, para que um texto seja engraado 58. Por outro lado, Raskin reconhece o carter
interdisciplinar do humor, ao entend-lo como um fenmeno multifacetado complexo59.
com base nessa afirmativa que Arago (2005) realiza uma anlise da Cartilha do
Lula, proposta pelo jornalista Jos Simo (Macaco Simo), assumindo pressupostos da
dialetologia e da sociolingstica. Para verificar aspectos fontico-lexicais e semnticos que
entram nas composies do referido jornalista, a autora demonstra como possibilidades
estruturais e combinatrias que o sistema permite podem fazer com que surjam novos
signos com conotaes engraadas e humorsticas60.
56 TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Uma introduo aos estudos do humor pela lingstica. In: Delta, 6 , 1990, p. 55 82 57 TRAVAGLIA, Luis Carlos. Op. Cit. p. 60 58 CONDE, Gustavo. Op. Cit. p. 36 59 RASKIN, Victor. Op. Cit. p. 11 60 ARAGO, Maria do Socorro Silva de. Cartilha do Lula uma anlise fono-lxico-semntica. Revista de Letras. Fortaleza, v. , n. 27, 2005. p. 90 - 95
37
Por outro lado, outros autores tm buscado, no humor, verificar aspectos de seu
funcionamento scio-cultural, sem, contudo, relegar a segundo plano os lingsticos. Isso
acontece ora porque vem neles a possibilidade de demonstrar as prticas sociais e realidades
que o discurso humorstico reflete, ora porque deles se valem para esboar a constituio de
um dado gnero textual/discursivo.
Nesse sentido, Conde (2005) busca, alm dos aspectos lingsticos, dar conta de vrios
nveis de inteleco emaranhados numa piada. Para tanto, vale-se da anlise do discurso, da
teoria semntica dos scripts formulada por Raskin e de consideraes freudianas sobre os
chistes. Numa abordagem pragmtica do discurso humorstico, o autor intenta dar corpo a
uma teoria discursiva do humor. Por outro lado, a fim de tambm confirmar que os estudos
humorsticos so empreendimentos interdisciplinares61, Muniz (2004) desenvolve um trabalho
que visa caracterizao do gnero piada, apoiando-se na Lingstica textual, Anlise do
discurso de linha francesa e Pragmtica. A autora tem como objetivo fornecer elementos para
que a piada seja considerada um gnero inerentemente narrativo62.
De fato, um dos pontos em comum apresentados pelos dois pesquisadores supracitados
so os pressupostos da teoria semntica do humor verbal na linha de Raskin. Alm disso,
tomam piadas como corpus, a fim apontar novos rumos de anlise para as mesmas. A base de
tal teoria semntica est alicerada sob cinco pilares, atravs dos quais possvel considerar
um dado texto como humorstico, ou melhor, como uma piada. E Possenti (2001) apresenta-os
assim:
Segundo Raskin (1987: 17), uma caracterizao do chiste, feita em termos semnticos, conteria os seguintes ingredientes: a) uma mudana de comunicao bona-fide para o modo no bona-fide de contar piadas; b) o texto considerado chistoso; c) dois scripts (parcialmente) superpostos compatveis com o texto; d) uma relao de oposio entre os dois scripts; e) um gatilho, bvio ou implcito, que permite passar de um script a outro63.
A questo central, conforme Possenti, que, para a lingstica, o que mais interessa
a descrio dos gatilhos e a verificao da compatibilidade entre os dois scripts, ou seja,
identificao de razes (lingsticas) que fazem com que sejam compatveis. No entanto,
aceitando os preceitos de Raskin, preciso entender que as piadas no se constituem s de
elementos verbais. Em suas palavras,
All the five components of the joke, postulated by the script-based theory of humor, should be present between the text of the joke and its linguistic and
61 RASKIN, Victor. Op. Cit. p. 11 62 MUNIZ, Kassandra. Piada: conceituao, constituio e prticas um estudo de um gnero. Campinas, 2004. Dissertao (Mestrado) Unicamp. 63 POSSENTI, Srio. Op. Cit. p. 22
38
extralinguistic context, or in other words, between the text and the situation in which it is uttered64.
Assim, entendemos que, segundo Raskin (1987), as piadas no dependem apenas do
aspecto lingstico, mas tambm do contexto extralingstico, da situao de uso; logo, no s
dos elementos verbais que entram em jogo, mas das condies de produo. Alm do mais,
todos os cinco pilares (ou ingredientes) precisam estar presentes entre texto e contexto, pois se
qualquer um faltar, no haver piada.
Voltando aos pilares da teoria de Raskin (1987) apresentados por Possenti (2001),
alguns conceitos precisam ser aclarados, como a idia de script e a da mudana de
comunicao bona-fide para no bona-fide. Conde (2005) diz que o script uma espcie de
roteiro de prticas sociais especficas e que, por isso, quando Raskin fala em scripts
sobrepostos, j fala em discurso, se se quiser 65. Esta idia advm da concepo que possui
os analistas de discurso sobre a estreita relao existente entre as prticas sociais e os
discursos. J Raskin (1987) define os scripts como entidades semnticas formais, que
resultam da anlise semntica de um texto 66. Como roteiro de prticas, os scripts so, pois,
reconhecidos (e conhecidos) tanto numa situao de comunicao oral quanto numa anlise
de um dado texto escrito. o reconhecimento de um novo script que se sobrepe a um
primeiro que instaura a mudana de comunicao bona-fide para no bona-fide.
Esses modos de comunicao so explicitados por Garcia (2008), quando diz que
Raskin, ao distinguir tais modos de comunicao, elabora um princpio de cooperao
humorstico, nos moldes dos princpios de cooperao de Grice. Assim sendo, o autor aponta
que a maioria das formas de comunicar-se, desde que no se transgrida o princpio de
cooperao, denominada comunicao bona-fide, ou fidedigna. Ao transgredir tal princpio,
portanto, os interlocutores situam-se no mbito da mentira ou do chiste (humor), que seriam
usos desviados da linguagem67.
Ainda segundo Garcia (2008), se para Raskin o humor implica um desvio no uso da
linguagem, Curc apresenta uma viso diferente, visto que, para ele, no humor, operam os
mecanismos de sempre. Ou seja, os mesmos mecanismos que operam no humor esto
64 RASKIN, Victor. Op. Cit. p. 18 Todos os cinco componentes da piada, postulados pela teoria de humor com base em script, devem estar presentes entre o texto da piada e seu contexto lingstico e extralingstico, ou em outras palavras, entre o texto e a situao em que ele proferido. 65 CONDE, Gustavo. Op. Cit. p. 45 66 RASKIN, Victor. Op. Cit. p. 16 67 GARCIA, Francisco Javier Sanchez. Teorias lingsticas del humor. www.proel.org/articulos/humor.htm acessado em 25/06/2008
39
presentes em outras situaes de uso da linguagem. Neste sentido, h um dilogo com
Possenti, que no v necessidade de uma lingstica do humor, uma vez que
[...] no h uma lingstica que se ocupe de decidir se os mecanismos explorados para a funo humorstica tm exclusivamente esta funo ou se se trata do agenciamento circunstancial de um conjunto de fatores, cada um deles podendo ser responsvel pela produo de outro tipo de efeito em outras circunstancias ou em outros gneros textuais68.
No primeiro caso, o humor poderia ser pensado como uma tcnica prpria do ser
humano para alcanar, pela linguagem, determinados objetivos, seja fazer rir ou, como
apresenta Travaglia, denunciar, manter ou quebrar equilbrios sociais e mesmo revelar novas
vises de mundo. No entanto, se no humor da palavra, como preceitua Possenti, existem
recursos ou mecanismos da linguagem que possam ser to bem observados quanto em outras
situaes de uso ou at melhor , porque os mecanismos lingsticos que operam no
humor no possuem exclusivamente a funo de produzi-lo.
Ele , portanto, mais um campo de manifestao da linguagem, com gneros diversos,
mas com caractersticas que acenam para uma estabilidade. Uma ordem qual subjazem
vrios gneros textual-discursivos, que, pelo menos no que concerne ao gnero piada, parece
estar bem definida. Segundo Conde (2006), com regras e personagens preferenciais,
componentes consagrados, como o simulacro, a estereotipia e a sobreposio de scripts, alm
de possibilitar invariavelmente a descoberta de novos sentidos, as piadas apresentam-se como
um gnero de discurso69. Sendo gnero, de se pensar que podem ser alocadas em grupos ou
ordens cujos gneros integrantes apresentem funes scio-discursivas e construes de
enunciados similares.
A esse respeito, Bakhtin (2003) atesta que os tipos relativamente estveis de
enunciados so denominados gneros do discurso e que estes, para que assim sejam
considerados, devem apresentar certa estabilidade no contedo temtico, no estilo e
construo composicional. Por estilo de linguagem o autor entende a seleo de recursos
lexicais, fraseolgicos e gramaticais da lngua70. nesse sentido, portanto, que as piadas so
consideradas gneros textual-discursivos, visto serem prticas discursivas ou formas de ao
no mundo que apresentam caractersticas de certo modo estveis.
Independentemente da teoria (textual ou discursiva), as piadas no deixam de ser
veculo de um discurso proibido, subterrneo, no oficial; ou seja, de discursos no
68 POSSENTI, Srio. Op. Cit. p. 21 69 CONDE, Gustavo. Op. Cit. p. 63 70 BAKHTIN, Mikhail. Esttica da criao verbal. So Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 261
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explicitados correntemente71. Dado interessante tambm nas piadas que elas no possuem
autor definido, sendo a evidncia de que existem discursos que se dizem que so ditos por
todos dadas certas condies72. Mas a ausncia clara de um autor no implica
impossibilidade de se buscar, nas piadas, um suporte subjetivo, porque, independentemente de
sua condio de encontrada e no feita, seu aparecimento depende de um enunciador,
algum cuja face no nos mostrada, uma instncia sem ponto de vista, mas que articula e
antecipa todos os possveis 73. Assim sendo, tanto na abstrao quanto na sua conseqente
materialidade, as piadas operam com discursos que possuem um enunciador, algum a quem
se pode atribuir uma condio de sujeito da enunciao; logo, responsvel pelo discurso nela
veiculado. Este, certamente clivado por dois mundos scio-culturais; ou melhor, pertencente a
um mundo cujos conhecimentos que compartilhe se entrecruzem em dois scripts, roteiros de
prticas discursivas que se opem, usualmente, em um sentido especial, como sustenta Raskin
(1987).
Quanto definio de script, na viso da lingstica textual, pode-se entend-lo como
um feixe estruturado e formalizado de informao semntica inter-relacionada74. Segundo
Travaglia (1990), com base nesta noo que Raskin, aplicando-a ao humor, cria sua teoria,
cuja sustentao apresenta duas hipteses principais: a) o texto compatvel, em seu todo ou
em parte, com dois scripts diferentes; b) os dois scripts com os quais o texto compatvel so
opostos em um sentido especial75.
Tais hipteses so oriundas de uma questo-problema que Raskin considera central no
estudo do humor: O que engraado?. Para respond-la, ele defende que o humor verbal
deve ser visto como um texto e em que se deve buscar descobrir um conjunto de propriedades
lingsticas tais que qualquer texto que as apresente ser engraado. Travaglia ainda
acrescenta a esta posio o fato de que o texto tenha que ser engraado para algum, mas no
necessariamente para todo mundo. Neste cerne, o texto que for percebido como engraado por
algum, ter tais propriedades76. Ou seja, preciso que o texto apresente os cinco ingredientes
j mencionados acima, quando recorremos a Possenti, para que possamos consider-lo uma
piada. Do contrrio, pode at ser visto por algum como um texto engraado, mas no
necessariamente ele ser considerado uma piada.
71 POSSENTI, Srio. Op. Cit. p. 26 72 POSSENTI, Srio. Op. Cit. p. 37 73 CONDE, Gustavo. Op. Cit. p. 62 74 TRAVAGLIA, Luis Carlos. Op. Cit. p. 76 75 TRAVAGLIA, Luis Carlos. Op. Cit. p. 77 76 TRAVAGLIA, Luis Carlos. Op. Cit. p. 61
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2.1.1 A heterogeneidade no discurso das piadas
Segundo Possenti (2001), as piadas parecem ter sido criadas a propsito, caso se
queira ilustrar a intertextualidade ou a heterogeneidade dos discursos. Para ele, qualquer texto
com mais de um sentido pode servir para este fim, mas h chistes que invocam explicitamente
a intertextualidade77. Por outro lado, como preceitua Barros (2005), no jogo da
intertextualidade que se pode, atravs do exame acurado dos procedimentos da semitica,
construir os sentidos de cada texto e recuperar a trama ou enredo da sociedade e da histria78.
Assim ocorre com os quadrinhos, no mbito do humor e, da mesma forma, com textos da
histria, literatura, ou com discursos polticos ou religiosos, todos heterogneos.
Sobre esta noo, Maingueneau (1997) entende que, quando se fala em
heterogeneidade do discurso, o que se pretende tomar conhecimento de uma relao radical
existente entre seu interior e seu exterior 79. Tal autor distingue a heterogeneidade
mostrada da constitutiva com a seguinte explicao:
[...] a primeira incide sobre as manifestaes explcitas, recuperveis a partir de uma diversidade de fontes de enunciao, enquanto a segunda aborda uma heterogeneidade que no marcada em superfcie [...] 80
Neste sentido, os discursos tm formaes que, se no apresentam duas dimenses,
possuem uma organizao advinda da relao com o que se imagina ser exterior, mas que, na
verdade, faz parte de sua identidade81. por isso que o autor, para tratar dessa questo, aponta
que preciso consider-la em dois planos diversos: um plano de superfcie e outro de ordem
interdiscursiva.
Tambm diferenciando tais planos sob a denominao respectiva de intertexto e
interdiscurso, Orlandi (2003) aponta que, enquanto o primeiro restringe-se relao de um
texto com outros textos, o segundo da ordem do saber discursivo, memria afetada pelo
esquecimento, ao longo do dizer 82. Numa definio mais ampla, a autora sustenta,
inicialmente, que o interdiscurso aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente.
E completa, dizendo:
77 POSSENTI, Srio. Op. Cit. 38 78 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Op. Cit. 83 79 MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendncias em anlise do discurso. Campinas: Pontes, 1997. p. 75 80 MAINGUENEAU, Dominique. Op. Cit. 75 81 MAINGUENEAU, Dominique. Op. Cit. 75 82 ORLANDI, Eni Puccnelli. Anlise de discurso princpios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2003. p. 34
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[...] o que chamamos memria discursiva: o saber discursivo que torna possvel todo dizer e que retorna sob a forma de pr-construdo, o j-dito que est na base do dizvel, sustentando cada tomada de palavra83.
Para Orlandi, portanto, o que dito depende de um j-dito, estando todo dizer
diretamente ligado a um dito, e esquecido. por isso que a autora conceitua o interdiscurso
como conjunto de formulaes feitas e j esquecidas que determinam o que dizemos 84.
Nessa perspectiva, esquecimento entendido como fator ideolgico, pertencente instncia
do inconsciente, por termos a iluso de que dizemos o original, quando, na verdade,
retomamos sentidos pr-existentes. E por isso que Orlandi completa:
Para que minhas palavras tenham sentido, preciso que elas j faam sentido. E isto efeito de interdiscurso; preciso que o que foi dito por um sujeito especfico, em um momento particular, se apague na memria para que, passando para o anonimato, possa fazer sentido em minhas palavras85.
Com tais consideraes a autora acena para um dilogo com o que preceitua Barros
(2003), que, ao tratar de conceitos bakhtinianos, como dialogismo, polifonia e
intertextualidade, diz ser este ltimo a dimenso primeira de que o texto deriva. Ou seja, para
ela instaura-se um primado da intertextualidade (ou interdiscursividade, se se quiser separar),
sobre a textualidade, quando se tem um dilogo entre as vozes internas de um dado texto86,
que se constitui a partir dessa intertextualidade e no o contrrio.
Tambm sobre a heterogeneidade dos discursos, Fiorin (2003) realiza uma
diferenciao relevante. Entendendo que o conceito de intertextualidade concerne ao processo
de construo, reproduo ou transformao do sentido87, o autor diz ser preciso diferenciar
os dois planos da heterogeneidade, caso se distinga a noo de discurso da noo de texto.
Sendo assim, conceitua o plano de superfcie como processo de incorporao de um
texto em outro, seja para reproduzir ou transformar o sentido incorporado, podendo se
manifestar atravs de trs processos: citao, aluso e estilizao88. O primeiro pode
confirmar ou alterar o sentido do texto citado; no segundo, no se citam as palavras, mas se
reproduzem construes sintticas em que certas figuras so substitudas por outras; j o
terceiro processo a reproduo do conjunto dos procedimentos do estilo de outrem.
83 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. p. 31 84 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. p. 34 85 ORLANDI, Eni Puccinelli. OP. Cit. p. 34 86 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Dialogismo, polifonia e enunciao. In: BARROS, Diana Luz Pessoa de e FIORIN, Jos Luiz (orgs.). Dialogismo, polifonia e intertextualidade. So Paulo: Edusp, 2003. p. 04 87 FIORIN, Jos Luiz. Polifonia textual e discursiva. In: BARROS, Diana Luz Pessoa de e FIORIN, Jos Luiz (orgs). Dialogismo, polifonia e intertextualidade. So Paulo: Edusp, 2003. p. 29 88 FIORIN, Jos Luiz. Op. Cit. p. 30
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Por outro lado, a interdiscursividade vista pelo autor como a incorporao dos
percursos temticos e/ou figurativos de um discurso em outro. Os processos interdiscursivos
ocorrem de duas formas: atravs de citao, com a repetio de percursos temticos e/ou
figurativos; e de aluso, ao se incorporarem temas e/ou figuras de um discurso que serve de
contexto para a compreenso do que foi incorporado89.
Desta forma, Fiorin (2003) afirma que a interdiscursividade no implica
intertextualidade, embora o contrrio seja verdadeiro, uma vez que se referir a um texto
implica referir-se ao discurso nele manifestado, mas no obrigatoriamente se chega a um
mesmo texto quando se recorre a um mesmo discurso. Ou seja, segundo ele, a
intertextualidade no um fenmeno necessrio para a constituio de um texto, mas a
interdiscursividade o para um discurso; ou seja, ela inerente sua constituio90.
Voltando, pois, ao que preceitua Possenti, sobre a heterogeneidade discursiva, vale
salientar o exemplo dado com o chiste O futebol o craque do povo. Segundo o autor, h
neste pequeno texto uma aluso conhecida frase, a religio o pio do povo, que foi
incorporada ao mbito do futebol, passando a ser dita o futebol o pio do povo. Possenti
explica que, devido troca da palavra pio por craque, o leitor levado descoberta das
correlaes entre craque do futebol, jogador de qualidades admirveis e diferenciadas, e
crack, droga considerada, na atualidade, entre as mais perigosas no que tange aos efeitos
nocivos ao usurio e dependncia a que este se submete. Alm disso, esta frase certamente
evoca as anteriores (religio o pio do povo / futebol o pio do povo), residindo sua graa
tambm nesta descoberta.
Neste cerne, a imposio do texto sobre o leitor sustenta-se atravs dos dispositivos
de que o primeiro dispe, para apresentar ao segundo diversas possibilidades de leitura, a fim
de que, em seguida, possa impedir-lhes algumas91. Dispositivos estes que fazem com que o
leitor volte-se para outros textos, cados no esquecimento, e que so retomados, para que um
dado texto possa significar. Nesse jogo ambguo da intertextualidade que determinadas
piadas constroem o humor, decorrente da (re) descoberta do conhecido, porm, esquecido, e
que retorna sob outra face, pr-construda, com sentidos reproduzidos e/ou transformados.
Se entendermos, portanto, que atravs de relaes intertextuais os textos impem algo
a algum leitor; isto , que pela relao com outros textos que as piadas tambm podem
significar, quando impem determinados sentidos aos leitores, preciso aceitar o primado do
89 FIORIN, Jos Luiz. OP. Cit. p. 32, 34 90 FIORIN, Jos Luiz. Op. Cit. p. 35 91 POSSENTI, Srio. Op. Cit. p. 62
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intertexto sobre o texto, pelo menos neste caso. preciso que, assim como a
interdiscursividade, a intertextualidade seja entendida como constitutiva e necessria para os
sentidos; logo, para a significao dos discursos veiculados nas piadas.
2.2 O DISCURSO RELIGIOSO
Para tratar das formaes discursivas que dispem de artifcios persuasivos, Citelli
(1993) diz ser o discurso autoritrio persuasivo por excelncia, visto abrigar todas as
condies para que ocorra a dominao pela palavra. Sobre ele, ressalta o autor:
um discurso exclusivista, que no permite mediaes ou ponderaes. O signo se fecha e irrompe a voz da autoridade sobre o assunto, aquele que ir ditar verdades como num ritual entre a glria e a catequese. O discurso autoritrio lembra um circunlquio: como se algum falasse para um auditrio composto por ele mesmo. na forma discursiva que o poder mais escancara suas formas de dominao92.
Visto por este ngulo, a persuaso est diretamente ligada dominao, que neste caso
se d pelos sentidos tomados como nicos; so verdades absolutas, sem possibilidade de
contestao. Nesta perspectiva, o autor acredita que o discurso religioso apresenta as
formaes discursivas mais explicitamente persuasivas, cujo eu enunciador, alm de no
poder ser visto ou analisado, possui voz que engloba todas as outras, inclusive a de quem fala
em seu nome. Assim, o autor o caracteriza como um discurso de autoria sabida, mas no
determinada, pelo fato de seu representante construir sua fala como verdade no sua, mas do
outro, aquele que, por ser considerado determinao de todas as coisas, engloba todas as
falas do rebanho93.
J para Orlandi (1996), tem-se, no discurso autoritrio, uma tendncia monossemia,
pois sua polissemia contida. Para a autora, todo discurso polissmico por definio e o
autoritrio, por conseqncia o religioso, tende a estancar a polissemia94, visto que os sentidos
no podem ser quaisquer sentidos, mas aqueles que a Igreja adota. por isso que ela afirma
que a interpretao da palavra de Deus regulada; e prossegue com as seguintes colocaes
sobre o que regula a palavra divina:
92 CITELLI, Adilson. Linguagem e persuaso. So Paulo: tica, 1993. p. 39 93 CITELLI, Adilson. Op. Cit. p. 48 94 ORLANDI, Eni Puccinelli. O discurso religioso. In: A linguagem e seu funcionamento as formas do discurso. Campinas: Pontes, 1996. p. 240
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No cristianismo, enquanto religio institucional, a interpretao prpria a da Igreja, o texto prprio a Bblia, que a revelao da palavra de Deus, o lugar prprio para a palavra determinado segundo diferentes cerimnias95.
Segundo a autora, como no discurso religioso fala a voz de Deus, existe um
desnivelamento fundamental na relao entre locutor e ouvinte no caso da modalidade oral
sendo o locutor do plano espiritual (Deus) e o ouvinte do temporal (homens). Da se
constitui a assimetria que leva a no-reversibilidade de tais planos: os homens no podem
ocupar o lugar de locutor, pois este o lugar de Deus. esta a relao de interlocuo que
constitui o discurso religioso, dada e fixada pela assimetria96.
O que existe, portanto, um mecanismo de incorporao de vozes, no qual uma voz se
fala na outra da qual representante. Para Orlandi, outros discursos dispem deste
mecanismo, tais como o discurso poltico, em que a voz do povo se fala no poltico,
candidato; ou o pedaggico, no qual a do saber se fala na voz do professor. Desta forma, no
discurso religioso, a voz de Deus se fala na voz do padre e do pastor, se se pensar na
ideologia crist sob suas duas vertentes mais difundidas. Outros discursos apresentam
diferentes graus de autonomia do representante em relao voz que fala nele, mas no
religioso, segundo a autora, nenhuma autonomia se faz perceber, pois de forma alguma o
representante pode modific-la97.
Aps tais consideraes, Orlandi sustenta que se mantm a distncia entre o dito de
Deus e o dizer do homem, havendo uma separao qui diferena entre a significao
divina e a linguagem humana. por isso que ela afirma manter-se obscura tal significao,
que, mesmo desejada, no pode ser acessada pelo homem, por este ser apenas, e to somente,
porta-voz da palavra divina. Da tambm a autora caracterizar o discurso religioso pela no-
reversibilidade dos planos (espiritual e temporal), criando o conceito de iluso da
reversibilidade. Para ela, como no se pode interagir com Deus, o homem tem essa iluso a
partir do momento em que seus representantes falam por ele. Contudo, ela no desconsidera
as diversas frmulas que o ser humano cria para alimentar, tal iluso, conferindo-lhes lugar
de destaque na caracterizao do discurso religioso, quanto s marcas que o constituem. E
explica em que consiste a reversibilidade, sem confundi-la com a crena do cristo, que
acredita poder falar com Deus:
A reversibilidade no est em se poder falar tambm, ou se poder falar diretamente. O eu-cristo pode falar diretamente com Deus, mas isto no
95 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. 246 96 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. 243 97 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. 245
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modifica o seu poder de dizer, o locutor de onde fala. O que, em anlise de linguagem, significa que no se altera o estatuto jurdico do locutor98.
Ou seja, fala-se com Deus, mas no em seu lugar. Mesmo com espontaneidade,
contrariando as frmulas prontas ( meu Deus! Senhor, faa com que...) no se reverte tal
estatuto. Mantm-se, pois, a dissimetria, porque se mantm a relao: de um lado a
onipotncia divina; de outro, a submisso humana99.
Sobre a questo da f, Orlandi afirma que esta mais um constituinte que confirma o
estatuto da interlocuo no discurso religioso, j que a f uma graa divina, dada por Deus
aos homens. Ela no emana deles; logo, mais um fator que comprova a no-reversibilidade
entre os dois planos. Alm disso, distingue os fiis dos no-fiis, os convictos dos no-
convictos; pela f, o discurso religioso uma promessa, mas, para os que no crem, uma
ameaa100.
Outro ingrediente do discurso religioso para confirmar a principal propriedade em
questo isto , a iluso da reversibilidade o milagre. Para Orlandi, interferncia divina
une-se a inexplicabilidade da cincia dos homens, para a constituio do milagre. Neste
sentido, os homens no operam milagres, mas sim Deus. As palavras que proferirem em
qualquer ato dito milagroso so, portanto, decorrentes da concesso divina, dita pelos homens,
mas o efeito resultado da intercesso de Deus.
No entanto, a iluso da reversibilidade, sendo propriedade constituinte do discurso
religioso, implica uma conseqncia ainda mais relevante para quem se prope estudar esse
gnero de discurso (tipo, no dizer de Orlandi): trata-se da relao do homem com o poder.
Assim a autora sustenta que a iluso da reversibilidade toma apoio na vontade de poder que
tm os homens. Sobre isso ela acrescenta:
Essa vontade aponta para a ultrapassagem das determinaes (basicamente de tempo e espao): ir alm do visvel, do determinado, daquilo que aprisionamento, limite. Ter poder ultrapassar. E ter poder divino ultrapassar tudo, no ter limite nenhum, ser completo101.
desta vontade de poder que derivam as transgresses do discurso religioso, visto que
quem o transgride busca assumir o lugar do poder absoluto; ou seja, tomar o lugar de Deus e
ter poder sobre tudo, inclusive com a possibilidade de dizer em seu lugar aquilo que lhe for
conveniente. Caracterizada como blasfmia, no entanto, a transgresso consiste numa quebra
98 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. 247 99 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. 247 100 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. p. 250 101 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. p. 253
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das regras do jogo; uma apropriao do inaproprivel cujo trao principal a gratuidade:
no muda nada, no traz nada, no prejudica nenhum ser humano; um exerccio de liberdade
que se faz por pura malcia102. Ultrajando a palavra de Deus, o blasfemo busca tomar seu
lugar, burlando a dissimetria dos planos, na perspectiva de reverter sua condio. Para
Orlandi, a blasfmia nasce da contradio no interior de uma s e mesma palavra, a qual
decorre do maniquesmo que concebe o mundo de forma dual.
2.2.1 Discurso religioso, mdia e intertextualidade
Segundo Orlandi (1996), o sentimento religioso no est presente apenas no espao
dos templos ou nas formas institucionais da religio. Espalha-se pelo cotidiano, ao adquirir
mltiplas formas e acompanhar o homem em seu dia-a-dia. Neste caso, a iluso da
reversibilidade encontra-se em qualquer fragmento de linguagem, no s nos dizeres
proferidos no espao institucional (a Igreja) atravs dos representantes da palavra divina ou
nos comentrios de quem dela faz uso para ratific-la, como o faz o telogo.
Sendo assim, a autora nos d um bom exemplo de como o homem, com a mdia
escrita, pode apropriar-se do prestgio da palavra divina. Ao tratar do Golpe de 64 e suas
implicaes, um jornalista, para eximir de culpa os pichadores do muro de um museu, diz que
eles no sabem o que fazem. 103 Nessa perspectiva, vemos que relaes intertextuais no s
esto presentes no discurso teolgico, como caracterstica forte que lhe atribuda, mas
tambm em outros discursos que se apropriam (ou se beneficiam) da palavra divina.
No caso do exemplo da mdia jornalstica citado anteriormente, preciso que haja uma
remisso ao texto bblico (LUCAS, 23: 33 34)104, para que aquele signifique, o que
caracteriza a intertextualidade. J com o discurso teolgico, tal relao se d como um
comentrio ao texto de origem. Na verdade, Orlandi prefere no fazer uma distino estanque
entre discurso religioso e teolgico. Diz apenas que o primeiro caracteriza-se pela
espontaneidade, enquanto o segundo, pela formalidade. Em suma, no teolgico tem-se um
comentrio do telogo sobre a palavra divina, j no religioso existe a tomada da palavra pelo
representante, ou mesmo pelo fiel, de maneira espontnea, sem que ela seja modificada.
O fato que, tanto o teolgico quanto o religioso, se se quiser distinguir, so discursos
cuja autonomia do representante, ou telogo, em relao a voz de Deus, praticamente inexiste, 102 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. p. 254 103 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. p. 256 104 Quando chegaram ao lugar do chamado Calvrio, ali o crucificaram, bem como aos malfeitores, um direita, outro esquerda. Contudo Jesus dizia: Pai, perdoa-lhes, porque no sabem o que fazem.
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o que lhes confere um carter fechado. por isso que a autora diz haver um discurso obscuro,
um dizer sempre-j-dito, que se fala para os homens105. E isto um princpio da
intertextualidade, que se define, segundo a prpria autora, pela remisso de um texto a outro
para que o primeiro signifique.
Sobre a relao mdia e religio na atualidade, Burity (2005) diz que o vnculo entre
essas duas instncias do exerccio lingstico aparece de duas formas: com a ocupao do
discurso religioso, em seu prprio nome, nos diversos espaos de que a mdia dispe para
difuso (rdio, tev, internet e outros); ou por meio do discurso comentado, atravs de
documentrios, entrevistas, cobertura de notcias, entre tantas outras formas de se falar do
outro, de que a mdia faz uso. Alm disso, o autor aponta que a presena da religio na mdia
se estende dos produtos oferecidos, nos espaos de que ela dispe, propriedade de veculos e
recursos de produo106. Em suma, Burity condensa essa relao da seguinte maneira:
[...] de um lado, a mdia exibe a religio como notcia, como polmica, como produto para um certo pblico consumidor dos rituais e manifestaes massivas da religio [...] De outro lado, a religio investe na mdia, certa de que a tecnologia da comunicao pode fazer muito para propagar seu discurso muito alm de sua capacidade de difuso pelos meios clssicos da pregao ou da interao face-a-face107.
De qualquer forma, mantm-se o primado da intertextualidade como nos ensinou
Orlandi, com o exemplo do jornalista. Mesmo que as ocorrncias se dem na face teolgica
do discurso religioso, preciso que seu dizer institucional, ou seja, o texto bblico seja alvo de
retomadas para que as reportagens, entrevistas ou discursos gravados (ou ao vivo) faam
sentido. Contudo, tais retomadas da palavra divina nos moldes em que preceitua Burity no
conferem ao discurso religioso nenhum efeito de ressignificao, ambigidade ou malcia,
como no caso das blasfmias de que trata Orlandi. So mais uma forma de reafirmar a palavra
de Deus ou coment-la, expondo os pontos fortes e os obscuros.
105 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. p. 260 106 BURITY, Joanildo A. Mdia e religio: os espectros continuam a rondar... Disponvel em: www.comciencia.br/reportagens/2005/05/14_impr.shtml acessado em 10/07/2008 107 BURITY, Joanildo A. Op. Cit. p. 02
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3. ANLISE SEMITICA DE PIADAS INTERTEXTUAIS
3.1 A PRIMEIRA PEDRA
Maria Madalena estava no meio da praa