Post on 18-May-2018
JEAN WYLLYS
29 Março 2014 | 16h 00
Os de Brecht apenas se orgulhavam da própria ignorância; os atuaisentendem até de Marco Civil
O dramaturgo Bertolt Brecht afirmou, num texto memorável, que "o pior
analfabeto é o analfabeto político". Concordo com essa afirmação desde o
momento em que a conheci, já consciente de que eu era um "animal político", para
citar a expressão de Aristóteles. Porém, porque os tempos eram outros (e, naqueles
tempos, o dramaturgo alemão nem sequer sonhava com as transformações sociais,
culturais e tecnológicas de que somos testemunhas, promotores e produtos),
Brecht definia o "analfabeto político" como aquele que "não ouve, não fala, nem
participa dos acontecimentos políticos"; aquele que "é tão burro que se orgulha e
estufa o peito dizendo que odeia a política". Dessa definição brechtiana de
analfabeto político, a única característica que sobrevive nos dias atuais é o
proclamado e contraditório ódio à política. De resto (e por causa das
transformações sociais, culturais e tecnológicas que experimentamos), o analfabeto
político dos dias atuais é bem diferente daquele dos tempos de Brecht.
O analfabeto político da atualidade fala e participa dos acontecimentos políticos;
ou melhor, mesmo sem se aprofundar nos acontecimentos em questão; mesmo
renunciando à tarefa de se informar melhor sobre eles; mesmo partindo de
preconceitos, boatos ou mentiras descaradas sobre os tais acontecimentos, o
analfabeto político da contemporaneidade - ao contrário daquele dos tempos de
Brecht - participa dos acontecimentos políticos "opinando" sobre eles nas redes
sociais digitais. Eu poderia recorrer a muitos exemplos do atual comportamento do
analfabeto político, mas vou me restringir aos que se relacionam com a aprovação
do Marco Civil da Internet, legislação que tem, por objetivo, assegurar a liberdade,
a privacidade e a neutralidade nos acessos a - e compartilhamentos de - dados e
informações digitais, uma vez que essas estão ameaçadas por conflitos de
interesses que envolvem usuários/consumidores, governo e corporações de
telecomunicações. Ora, é mais que óbvio que, sem parâmetros estabelecidos por
lei, conflitos não podem ser arbitrados nem solucionados, logo, uma legislação
para internet era mais que necessária.
A aprovação do Marco Civil levou a minha página no Facebook centenas de
"analfabetos políticos" que fizeram comentários constrangedores sobre esse
acontecimento, dos quais destaco alguns: "O marco servil vai acaba com o facebook
e traze o comunismo vai manda mata todo mundo começando por você seu viado
filhodaputa"; "Intervenção Militar já! O que vivemos no país hoje é a mesma
situação de uma ditadura, se você é contra o governo na internet, derrubam seu
site, seu blog, seu vlog, seu canal no youtube e por ai vai"; "Um dos últimos passos
do Comunismo é retirar a liberdade de expressão. Com o Marco Civil, vão caçar
Analfabetos políticos
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O bicho vaipegar em quem?
qualquer opositor ao governo com extrema facilidade. Nos desarmaram, nos
tiraram o direito de educar os filhos, e agora vão calar nossas vozes. Quem puder ir
embora do Brasil, vá. Porque depois das eleições esse país vai ser um massacre, vão
tingir a bandeira de vermelho. LITERALMENTE!"; "Internet livre e marco
regulatório? Controlar a liberdade? A internet deve estar ofendendo alguém ou
incomodando a liberdade exagerada"; "Governo tem o direito a partir de agora, e
por decreto, de fechar um portal de notícias caso tenha críticas ao governo por
exemplo"; "TNC no mano!! e o meu porno? como e que fica! -.- nunca brinque com
a punheta mano, nunca faça isso!".
Esses comentários são exemplos do analfabetismo político contemporâneo, mas
são também o sintoma de uma ameaça ao debate público pautado na honestidade
intelectual e no respeito ao conhecimento: a maioria dos "analfabetos políticos"
que vociferaram em minha página, principalmente a maioria daqueles que fizeram
menção ao "comunismo" ou ao "socialismo", deixou claro quais as fontes de suas
afirmações acerca do Marco Civil da Internet: revistas reacionárias; o senil que se
diz "filósofo"; e a família de parlamentares (deputado federal, deputado estadual e
vereador) que parasita o poder público para difamar adversários e estimular o
fascismo. É preocupante que uma parcela cada vez mais expressiva da população
seja transformada em analfabeta política por causa desses reacionários!
O Marco Civil da Internet é uma legislação ainda com algumas lacunas, como o
artigo 16, que compromete a privacidade do internauta ao obrigar que empresas
guardem dados de navegação por seis meses ou mais e dá o direito de qualquer
agente do Estado de exigir esses dados mediante mera decisão judicial. Logo, é
passível de críticas, mas críticas honestas (não pode haver dúvida quanto a sua
necessidade, por exemplo). Essas lacunas podem ser preenchidas no Senado, onde
o Marco Civil será agora votado. Nesse sentido e apesar da virulência e arrogância
com que afirma sua ignorância, o analfabeto político é uma vítima daquele que
Brecht considera "o pior de todos os bandidos": o político vigarista, desonesto
intelectualmente, corrupto e lacaio das grandes corporações. Portanto, é preciso
ter compaixão pelo analfabeto político: insistir na luta para que ele tenha acesso a
educação de qualidade e às artes, em especial as artes vivas, com destaque para o
teatro (terreno de Brecht). Só a educação de qualidade e as artes podem construir a
vida com pensamento que erradicará o analfabetismo político (extensão dos
analfabetismos funcional e digital).
JEAN WYLLYS É JORNALISTA E DEPUTADO FEDERAL (PSOL-RJ)
TAGS: Aliás
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