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Amor e ironia romântica em Camilo Castelo Branco1
Márcio Ricardo Coelho Muniz - UEFS
A Simone, leitmotiv deste e d’outros textos.
I. Introdução
Camilo Castelo Branco nasceu em Lisboa, em 1825, ano em que
Almeida Garrett (1799-1854) inaugurou o movimento romântico em Portugal,
com a publicação de Camões. Junto com Garrett, Camilo é considerado um dos
expoentes do Romantismo português e um dos grandes mestres da prosa
literária do séc. XIX em língua portuguesa.
Nosso autor teve uma vida tão “romântica” quanto sua obra, isto se
entendermos que o Romantismo caracteriza-se pela exaltação das paixões, pelo
tom revolucionário na expressão de seus ideais, pelo extremado individualismo
e pela paradoxal consciência crítica que tem o artista romântico de sua própria
obra. Entendido desta forma, podemos dizer que a vida de Camilo e o
Romantismo existiram em paralelo íntimo.
Órfão, casado muito cedo e tendo perdido uma filha, Camilo logo
abandona sua primeira esposa por uma amante, a qual havia raptado. Preso por
este rapto, abandona esta amante ao sair da cadeia. Residindo no Porto, dedica-
se ao jornalismo e à literatura. Sua atividade como jornalista traz-lhe muitas
desavenças e inimigos, o que parece ter inspirado uma das partes da novela que
analisaremos.
1 Este texto foi publicado na Revista UNIB, São Paulo, p. 133-172, 1999.
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Em 1850, Camilo conhece Ana Plácido, por quem se apaixona e com
quem vive até sua morte. Encontrada a estabilidade emocional, falta a social,
que o escritor nunca alcança. Ana Plácido era casada quando iniciou o
relacionamento com Camilo. Em 1860 são presos por adultério. Um ano depois
são absolvidos e passam a viver em São Miguel de Seide, casados oficialmente.
A partir daí, no entanto, ele tem de redobrar seus esforços para sustentar a
mulher e os filhos.
Em 1890, acometido por uma cegueira crônica, proveniente de uma
sífilis mal curada, sem condições de trabalho e bastante desiludido, Camilo
suicida-se. Como se vê, a tragédia e as paixões acompanham a vida de nosso
escritor e deixam marcas profundas em sua obra.
A produção literária de Camilo é muito extensa. Além de poesias, teatro
e crítica política e literária, ele escreveu mais de uma centena de romances e
novelas, em aproximadamente 45 anos de atividade.
Sua produção literária em prosa, a que nos interessa aqui, acompanha o
percurso que o Romantismo desenvolveu em Portugal: a novela histórica,
preocupada com a releitura do passado português e com suas origens culturais e
literárias; a novela de mistério, de caráter gótico, bem ao gosto romântico; as
novelas passionais, dentro das quais desenvolveu-se o ultra-romantismo,
comandadas pelas paixões fortes; as novelas satíricas, que anunciam a
consciência crítica do autor para com sua obra e para com sua época; e, por fim,
as novelas de cunho realista, que denunciam um Camilo já influenciado pela
Geração de 70, ou seja, pelos ideais realistas (COELHO: 1993).
Tal produção, no entanto, não se deu de modo linear e cronológico,
como os livros didáticos costumam apresentar a evolução romântica. Ao
contrário, novelas históricas, góticas, passionais e satíricas são produzidas
simultaneamente, de acordo com o gosto do público, as exigências do editor e
as necessidades do autor. Desta forma é que, em 1862, além de produzir um
livro de caráter memorialista, Memórias do cárcere, em 2 vol., e uma novela de
mistério, Coisas espantosas, Camilo escreve sua mais conhecida novela
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passional, Amor de perdição, e a novela satírica de que, a partir de agora, nos
ocuparemos, Coração, cabeça e estômago.
Neste trabalho, pretendemos construir um paralelo entre o título da
novela e algumas características que, tradicionalmente, são apontadas como
comuns ao Romantismo. Ao Coração corresponderia a emoção e com ela todos
os clichês com que o escritor romântico caracterizou as paixões humanas; à
Cabeça corresponderia a razão, porém aqui não a razão crítica, mas a razão
cínica, a razão acomodada, a razão que busca privilégios, distinção, proveitos,
enfim, a razão hipócrita; por último, ao Estômago corresponderia a realidade,
no entanto, aqui também não a realidade empírica, reflexo do real, mas sim uma
realidade interpretativa, filtrada pelo olhar do autor e por uma certa
interpretação do movimento literário a que se filia.
Apesar da crítica camiliana vir apontando tal paralelismo, de modos
distintos, desejamos tão-somente contribuir com uma leitura mais atenta e mais
próxima da obra, o que, cremos, permitirá ao leitor uma visão mais clara de
como se dá aquele paralelismo no nível do texto e na estruturação romanesca.
II. A ironia e a estruturação romanesca da novela
Como trataremos de visão irônica, antes de entrarmos propriamente na
análise da novela, cabe aqui algumas palavras sobre o conceito de ironia.
“De modo genérico, a ironia consiste em dizer o contrário do que se
pensa, mas dando-o a entender” (MOISÉS: 1992: p.295). Esta definição
resume, de forma simples, o conceito que temos sobre ironia e com o qual
normalmente trabalhamos. Assim, como exemplo, quando num dia chuvoso
afirmamos que o dia está ótimo para se ir à praia e se bronzear, entende-se que
estamos sendo irônicos.
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A essa definição de ironia, de caráter generalista, podemos acrescentar
alguns pressupostos para a existência da mesma, indicados por Maria de
Lourdes A. Ferraz em sua obra A ironia romântica:
1º. a ironia pressupõe um ato de comunicação que envolva um emissor,
uma mensagem, um receptor. Ainda quando o emissor é de difícil definição,
reconhecemos sua existência, por exemplo, quando falamos que o “destino” ou
a “vida” ou a “situação” foi irônica com alguém ou com um grupo;
2º. a ironia revela uma visão particular do mundo, a do emissor, e daí o
seu caráter preferencialmente crítico. Em relação ao dia chuvoso, podíamos
apenas lamentá-lo, mas preferimos ser irônico, por isso somos críticos com nós
mesmos ou com o dia;
3º. por pressupor um ato comunicativo e por seu caráter crítico, a ironia
se relaciona com a linguagem de uma forma muito particular, pois exigirá do
emissor irônico uma plena consciência dos recursos da linguagem que utiliza,
isto é, uma consciência lingüística crítica. Do receptor, será exigida a mesma
consciência, assim como um conhecimento amplo dos recursos lingüísticos de
que se utiliza o emissor para a construção da ironia;
4º. da questão anterior, decorre que haverá a necessidade, no discurso
irônico, de que emissor e receptor dominem a convenção da formulação irônica.
Atente-se para o fato de que o receptor poderá ou não ser o objeto da ironia.
Independente disso, para o discurso irônico acontecer e ser reconhecido como
tal é necessário que haja um receptor que o compreenda. Mesmo que o receptor
seja o próprio emissor. Por exemplo, quando falamos que somos irônicos
conosco (FERRAZ: 1987: p.20 ss.)
Do que ficou dito, conclui-se que a consciência do ato comunicativo é
fator primordial para a existência do discurso irônico.
Pois bem, como isto se relaciona com o Romantismo e com Camilo
Castelo Branco? Vejamos.
A ironia, como método persuasivo, como recurso lingüístico que busca
convencer o outro, existe e é praticado desde os gregos. Toda a história literária
e filosófica do Ocidente comprova a utilização da ironia. No entanto, segundo
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Maria de Lourdes Ferraz, somente nos fins do séc. XVIII, a ironia ganha status
literário.
“A autonomia formal da ironia processa-se quando mal se começa a adivinhar a inevitabilidade de a literatura ser linguagem, quando se começa a perceber que a obra literária não é só, ou sobretudo, uma interpretação/representação (mimese) do universo (real ou poético), mas, mais do que isso, um modo peculiar de a linguagem form(ul)ar um universo; a própria linguagem é o mundo” (FERRAZ: 1987: p.19).
No séc. XIX, frente às profundas mudanças sociais, políticas,
econômicas e culturais, os artistas, de modo geral, e particularmente os
escritores, são levados a desenvolver maior consciência em relação à sua obra,
já que exige-se dela um novo papel, novas formas, novas linguagens e uma
nova visão de mundo, a burguesa. Isso faz crescer, da mesma forma, nos
escritores a consciência de seus papéis sociais. Reformulam, assim, o fazer
literário, e iniciam o questionamento do próprio fazer.
É justamente dentro dessa nova consciência que irá ganhar corpo a
ironia romântica. Inserido nessa conjuntura, marcada por mudanças de toda
ordem, o escritor passa a refletir sobre a própria obra e a se valer,
metalingüisticamente, de seus próprios romances para a expressão de suas
reflexões. Este comportamento crítico provocará uma reavaliação, inclusive, de
seus ideais, de suas visões de mundo e de seus gostos estéticos. O recorrer à
ironia tornar-se-á bastante comum.
Assim, o autor (emissor) consciente de que tem uma mensagem
(reavaliação crítica do movimento) para passar ao seu leitor (receptor), sabe
que os códigos com os quais irá trabalhar, ou melhor, sobre os quais irá
construir seu discurso crítico/irônico devem ser/são conhecidos por seu
receptor (leitor do final do séc. XIX). Desse modo, estruturando sua novela
dentro de uma convenção literária, o escritor buscará estratégias e/ou artifícios
para conseguir vazar sua visão crítica, de modo que o leitor o compreenda.
A nosso ver, isto é o que faz Camilo em Coração, cabeça, estômago,
ou seja, torna sua novela uma grande metáfora crítica, porque irônica, do
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movimento romântico, ao qual o autor se filiara. E Camilo faz isso de diversas
maneiras. Como nos informa Jacinto Prado Coelho, “a ironia camiliana pode
ser avaliada tanto ao nível das micro-estruturas (frase-sintagma) como das
macro-estruturas (novela inteira)” (COELHO: 1983: 216). No caso de
Coração, cabeça, estômago, a macro-estrutura predomina. Vejamos como isso
se dá.
III. Um narrador-defunto versus um editor-vivo
Em 1862, como dissemos atrás, Camilo publicou Amor de perdição,
sua mais importante e exemplar novela passional. Nesta, as personagens —
Simão, Teresa e Mariana — vivem tragicamente uma história de amor que
resulta em perdição, na morte dos três. Alçada à condição de paradigma do
modelo passional, a obra desenvolve, contra as expectativas do autor, uma
trajetória de sucesso de público e de crítica, que lhe exaltam a agilidade no
desenrolar da trama, a concisão da linguagem, a perfeita caracterização das
personagens, a economia narrativa e a bela construção dos diálogos. Enfim, em
quinze dias — se dermos crédito ao que diz autor no prefácio da 2ª edição da
obra — Camilo constrói aquela que será a sua mais famosa e lida novela,
modelo perfeito do que se costuma entender por uma “narrativa romântica”.
Neste mesmo ano, vem à luz Coração, cabeça, estômago. Mais uma
novela passional? Não. Uma novela que busca desconstruir, pela via da ironia,
o modelo que Camilo acabava de elevar ao ponto máximo de desenvolvimento
com a publicação de Amor de perdição. Como entender essa desconstrução?
Acreditamos que só através da compreensão da autoconsciência crítica que
caracteriza a literatura romântica, capaz de conviver pacificamente com
tamanho paradoxo.
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M. L. Ferraz relaciona o que denominamos “autoconsciência crítica” à
ironia romântica:
“a ironia romântica abarca dois planos da manifestação literária oitocentista. Um envolvia a reformulação do fazer literário e o
questionar desse fazer (...) O outro pressupõe a reformulação do conceito de ‘inspiração’ tal qual ele tinha atravessado os séculos...” (FERRAZ: 1987: p. 39. Itálico nosso)
A nosso ver, a “reformulação do fazer literário”, de que fala a crítica, diz
respeito àquela desconstrução de que tratávamos. Pelo viés irônico, os
escritores românticos questionam seus ideais e acabam por reformulá-los, pois
tal questionamento revela já, de forma embrionária, as concepções críticas da
geração literária seguinte. Mas, vejamos como se dá essa desconstrução no
nível da narrativa.
Cabeça, coração, estômago possui uma estrutura que revela o percurso
da personagem central, Silvestre da Silva: uma vida guiada pelos paradigmas
românticos da ingenuidade e do sonho; passando depois pela revolta/rebeldia
de uma razão cínica, mas a qual a personagem não consegue controlar e pela
qual acaba por se deixar dominar e vencer; até chegar a uma realidade de
caráter naturalista/determinista, que deixa vazar a influência que os ideais da
nova escola Realista já exercem sobre o autor.
À divisão estrutural do romance corresponde cada um desses estágios,
na ordem em que foram eles apresentados. São três grandes partes (coração,
cabeça, estômago) que nos apresentam os estágios por que passa Silvestre da
Silva. O percurso em si já é de desconstrução, ou seja, o herói (ou será melhor
anti-herói?) sai do estágio “agreste”, “selvagem”, ingênuo e imaturo das
relações amorosas, dentro dos modelos românticos de amor — estágio para o
qual seu nome, Silvestre, remete —, e, passando por uma
pseudoconscientização (ou aculturação) dos códigos dessas relações, retorna
até um estágio novamente “primitivo”, mas já degenerado, já corrompido, por
uma realidade crua, que o leva, da mesma forma, à morte.
No entanto, esta trajetória possui um traço narrativo que, a nosso ver,
acentua o caráter irônico da novela. Aquelas três grandes partes estão
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polarizadas por um capítulo inicial, em forma de Preâmbulo, e outro final, em
forma de Carta do “editor ao respeitável público”. Naquele, presenciamos um
diálogo do autor (?) com um seu amigo, Faustino Xavier de Novais. A este, o
autor dá notícias da morte de nosso herói, Silvestre da Silva, e informa, ainda,
que fora o “herdeiro” de uns “papéis” do falecido. São exatamente esses
papéis, organizados e lapidados pelo, agora, editor-autor, que virão à luz na
forma da novela que leremos. As implicações desse artifício narrativo são
várias.
Comecemos por lembrar que o hábito de o escritor recorrer a
documentos descobertos ou que lhe foram entregues, a histórias que se ouviu
contar, a relatos antigos de que se lembra etc. é um artifício muito em voga na
literatura do século XIX, particularmente na literatura romântica. Buscavam os
autores, com esses recursos, dar maior credibilidade à sua obra, criar um clima
de maior verossimilhança para aquilo que se propunham a contar, e seduzirem
o leitor, por fazê-lo acreditar que leria uma “história verdadeira”, não um
“mero” produto da imaginação dos escritores. Vários foram os autores que se
utilizaram desses recursos, Camilo está entre os mais pródigos. Sobre essa
questão, diz Jacinto Prado Coelho:
“Nos habituais ‘epílogos’ ou ‘conclusões’, atualizados às vezes numa 2ª edição, vêm os destinos das várias personagens (...) Compreende-se deste modo que Camilo se entitulasse ‘cronista’, ‘memorialista’ ou autor de ‘biografias’; a admitirmos o seu ponto de vista, as novelas que fez não passam de relatos, levemente romanceados ou ‘recompostos por motivos de ordem moral de sucessos ocorridos. Camilo seria apenas um ‘repórter’, um autor de novidades...” ( COELHO: 1983: p. 225)
Além de dar um caráter de “verdade” ao que se conta, consegue nosso
escritor, com esse recurso narrativo, uma relativa isenção em relação ao que
relata. Na posição de editor, sua responsabilidade sobre o conteúdo da narrativa
é extremamente diminuta. Ele apenas a organiza e lapida, não a cria. Por outro
lado, como editor-autor, por diversas vezes, penetra na narrativa e tece
comentários, em sua grande maioria, de sentido crítico-irônico. Maria de
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Lourdes Ferraz aponta esse recurso como um dos elementos constituidores da
ironia romântica:
“...a produção romântica quer-se a prática da verdade sentida, mas, vítima desse deslizar, excede-se na convicção de uma pretensão que, por vezes, mais não é do que o banalizar da inspiração-dor na obra-sentimento. A ironia como autocrítica tende a estabelecer no excesso de convicção, é tensão primordial no dizer que afirma negando”. (FERRAZ: 1987: p. 39)
De modo geral, é o que faz nosso editor-autor já no preâmbulo. Ao falar
dos “papéis” herdados, ele afirma que credores do defunto nomeavam os
papéis de “papelada”, num claro recorte irônico e desconstrutivo da narrativa
de Silvestre da Silva. Desconstrução que ele se exime de comentar, mas que
apenas aceita como necessária:
“Aceitei a distinção como necessária e retirei com a papelada, resolvido a dá-la à estampa, e com o produto dela ir resgatando a palavra de nosso defunto amigo...”2(p. 16)
Ao fim do Preâmbulo, entramos na narrativa contida na “papelada”
deixada por Silvestre da Silva. Cabe chamar a atenção para o fato do narrador,
a essa altura, ser um defunto. Se não se está aqui na mesma posição de plena
liberdade do mais famoso narrador-defunto da literatura em língua portuguesa
— Brás Cubas, narrador de suas Memórias —, a condição de defunto de
Silvestre permite ao editor-autor de sua novela intrometer-se com bastante
constância naquilo que o morto deixou narrado em seus papéis. Tal situação
possibilita com que a ironia daquele seja destilada com relativa liberdade por
toda a novela.
Além de tudo, o editor-autor tem plena consciência da liberdade que tal
situação narrativa lhe dá. Ainda do Preâmbulo, ele afirma: “Os manuscritos de
Silvestre careciam de ser adulterados para merecerem a qualificação de
romance”. Apesar disso, ‘’é coisa que eu não faria, se pudesse”. Contudo, “no
2 As citações do texto de Coração, cabeça, estômago tomarão sempre como fonte a edição da Editora Europa-América, de 1988. A partir daqui apenas indicaremos, ao final da citação, a página em que o leitor poderá encontrar o texto. Grifos serão sempre nossos.
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volume denominado Coração encontro algumas poesias, que não translado,
por desmerecerem publicidade, sobre serem imprestáveis ao contexto da obra.
Não designam as pessoas a quem foram dedicadas, nem me parecem coisa de
grande inspiração. Silvestre, em poesia, era vulgar...”(p.19). Como se vê, a
liberdade é grande, a consciência, também, e apesar de num primeiro momento
afirmar que não adulterará a “papelada”, logo em seguida o editor-autor não
tem pudor em afirmar que a adulterou, ao retirar as poesias, e em julgar os
(des)méritos literários de seu amigo defunto. Em relação à constância dessa
intromissão, diz J. Prado Coelho:
“Longe de ser um ‘cronista’ objetivo e frio, o narrador-autor faz sentir a cada passo a sua presença, exprime a cada passo ora as reflexões (não raro irônicas, maliciosas, mordazes) ora as emoções que a matéria da narração lhe provoca (...) A intervenção expressa do narrador vai ainda mais longe: em cada página, por assim dizer, há exclamações, pedidos à Providência de benções ou de maldições para os heróis, considerandos morais, observações psicológicas de caráter superficial, feitas por quem está de fora a presenciar os atos das personagens (...) A persistente ação ideológica do narrador-
autor sobre os leitores, geralmente frontal, às vezes irônica ou mais discreta, encontra um ponto de apoio no narratário, a quem se dirigem os juízos emitidos sobre as personagens, os eventos de classes sociais, costumes e formas de mentalidades, etc.” ( COELHO: 1983: p. 236-238,v. 1. Itálico nosso)
Claro está que, como afirma Prado Coelho, já no Preâmbulo o editor-
autor está dirigindo ideologicamente o olhar do leitor para aquilo que Silvestre
irá narrar. Entramos em seu relato desconfiados de sua capacidade de produção
literária, assim como do valor desta, já classificada de ‘imprestáveis’ e
‘medíocres’. E, de certa forma, é um relato sem grande inspiração que teremos
de Silvestre. A pieguice de suas aventuras amorosas desfilará perante nossos
olhos, não sem as constantes observações avaliativas de seu amigo editor.
Acabamos por olhar para tal relato da mesma forma que o editor-autor, de
maneira crítica, com um olhar irônico.
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IV. A aventura romanesca de Silvestre da Silva
O que nos conta Silvestre? Essencialmente as suas aventuras amorosas.
Presenciamos dezessete anos de sua vida — de 1844 a 1861 —, dos quais
ficamos sabendo apenas de seus amores e desilusões. O percurso nos é
revelado pelo próprio título que o narrador-defunto dá a cada um dos três
volumes de que se compõe sua narrativa: inicia-se pelo Coração, passa-se pela
Cabeça e acaba-se no Estômago.
O primeiro volume divide-se em três partes, cada uma com títulos que
revelam bem o assunto de que tratam. Em “Sete mulheres”, conhecemos os
primeiros amores de Silvestre:
“O meu noviciado de amor passei-o em Lisboa. Amei as primeiras sete mulheres que vi e que me viram” (p.21).
Como se percebe, a seleção de seus amores não era muito rígida, já que bastava
para nosso amante ver, ou ser visto, para amar. Temos, nesse momento, relatos
de aventuras amorosas as mais variadas possíveis: uma vizinha que é disputada
pelo nosso amante e por um algibebe, e que acaba por preferir a segurança
financeira de um padrinho com quem vive; uma quarentona desejosa de casar-
se e que assusta nosso herói com sua intenção; uma mulata brasileira, de nome
exótico, Topinoyoyo, e que ao final, depois do caso amoroso com Silvestre,
casa-se com um ricaço, tornando-se uma “filha dum titular brasileiro e que fora
educada em Londres” (p.36). Enfim, presenciamos pequenas anedotas
sentimentais. E não poderia ser de forma diferente, Silvestre inicia esta parte
dizendo o seguinte sobre Leontina, a primeira das sete mulheres:
“Fiz versos a Leontina, sonetos de rima fácil, e muito errados, como tive ocasião de verificar, quando o quis dedicar a outra, dois anos depois” (p.21).
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São amores, como o trecho citado revela, fugazes e ingênuos, um tanto quanto
hipócritas. Percebemos tudo isso pela insinceridade revelada em versos
amorosos que são reaproveitados em cartas para a amante seguinte. Enfim,
amores de mocidade, mas que deixam algumas doloridas marcas em Silvestre:
“Acabou assim a história das sete mulheres, número cabalístico, de cuja misteriosa influência me ficou a alma um pouco derrancada” (p.43).
Frente a estas palavras de nosso narrador-defunto, ficamos
desconfiados se a observação “ingênua” de que o caráter cabalístico do número
sete é realmente uma ingenuidade de Silvestre ou se é uma adulteração do
editor-autor, marca inegável de ironia para com os amores de seu amigo.
A segunda parte desse primeiro volume inicia-se com nosso amante
dizendo-se desiludido com suas primeiras experiências amorosas, céptico com
o mundo, e decidido de que sua aparência física deveria externar seu estado de
ceticismo:
“Na minha qualidade de céptico, entendi que a desordem dos cabelos devia ser a imagem da minha alma. Comecei, pois, por dar à cabeça um ar fatal...” (p. 45)
Para tanto, Silvestre começa a promover transformações que traduzam
adequadamente o desejado ar fatal:
“Como quer, porém, que a testa fosse menos escampada que o preciso para significar ‘desordem e gênio’, comecei a barbear a testa, fazendo recuar o domínio do cabelo, a pouco a pouco, até que me criei uma fronte dilatada...” (p. 46)
Contudo, ironicamente, sua cara não colabora muito para a criação
desse personagem maldito, desse céptico amaldiçoado pelo mundo:
“A minha cara ajeitava-se pouca à expressão dum vivo tormento de alma, em virtude de ser uma cara sadia, avermelhada e bem- fornida de fibra musculosa (...) A cara mantinha-se na prosa ignóbil do escalarte, mais incendida ainda pelos acessos de tosse, provocados pelo fumo” (p.46).
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Como o prosaico de sua saúde não o permitia a configuração de um ser
amaldiçoado, Silvestre apela para a aparência de suas vestimentas:
“O meu cavalo era negro, negro o meu trajar, tudo em mim e de mim reflectia a negridão da alma” (p.47).
Como se pode observar, pelo cômico dessas pretensões de nosso herói,
a narrativa está promovendo a desconstrução do modelo do herói romântico,
ideal revelado em diversas novelas produzidas nos meados do século XIX3,
ideal, como já dissemos, lapidarmente construído pelo próprio Camilo em
Amor de perdição. Ao desnudar a falsidade daquelas características que
Silvestre busca para si, ao revelar o artificial de sua criação, a narrativa
promove o desmonte daquilo que, aparentemente, está sendo construído
seriamente pelo nosso narrador-defunto.
Silvestre mostra-se indignado por sua aparência não corresponder ao
seu estado anímico, daí recorrer a artifícios. Porém, ao fazê-lo, desperta no
leitor a dúvida sobre a verdade de seus sentimentos. Ficamos, leitores, com a
sensação de que estamos sendo enganados, inclusive pelo próprio Silvestre. Se
já estávamos desconfiados de sua capacidade narrativa, é impossível não
olharmos para tal episódio de forma crítica, vendo descortinar-se, na realidade,
não um amante que sofre com suas desilusões amorosas, mas um protótipo de
amante, o qual nem mesmo o herói consegue mais sê-lo, pois tem de criá-lo
artificialmente.
Herói criado artificialmente acaba por se constituir, na verdade, como
anti-herói. Assim, aquilo que no início de nosso trabalho era um
questionamento, podemos transformar numa afirmação: Silvestre é um anti-
herói romântico, ou melhor, um anti-herói camiliano construído sobre o
modelo de herói romântico.
3 Segundo Cleonice Berardinelli, Eurico, o cavaleiro-negro, é modelo ortodoxo do herói romântico: “O herói da narrativa é caracterizado como o perfeito herói romântico: soldado, amante e poeta. Sua figura, seu mistério, a natureza em que se move, seu amor infeliz estão dentro do código romântico...” (BERARDINELLI: 1976: p. 65) Se considerarmos a perspectiva irônica com que Camilo constrói sua novela, não é difícil perceber que sua crítica extrapola sua própria obra e atinge, na realidade, os modelos de todo uma época/estética.
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Desta forma é que na segunda parte, assim como na terceira — cujo
título, “A mulher que o mundo despreza”, estabelece um diálogo necessário
com a segunda, “A mulher que o mundo respeita” —, vemos nosso amante
viver duas histórias de amor nas quais os clichês românticos dão a tônica.
Numa ele ama uma mulher que, num primeiro momento, surge como “a pomba
da boa nova ao quadragésimo dia do dilúvio” (p. 48), para depois revelar-se
amante de um Conde. Após trair este último com um seu mestre-escola, ela se
casa com um primo, a quem estava prometida, e torna-se a “mulher que o
mundo respeita”.
A outra, obrigada por sua mãe a prostituir-se desde criança, vive uma
vida desgraçada, mas sempre se mostra extremamente bondosa e piedosa para
com a mãe e irmãs. Impelida pela miséria e pela tísica, Silvestre encontra-a no
momento em que ela pensa em se matar. Ele, penalizado com a história trágica
de Marcolina, leva-a para província e tenta resgatá-la. Contudo, ela morre com
a tísica, não sem antes confessar que o amara. Ao final, ele também reconhece
que a havia amado:
“É, pois, certo que amei aquela mulher? Ó meu Deus e minha consciência! Vós bem vedes com que orgulho e saudade eu digo que sim, que amei! Amei-a porque era mais pura, mais virgem e mais santa que a outra respeitada do mundo; e porque, em ódio à sociedade, que a desprezava, não posso vingá-la senão amando-a com eterna saudade” (p.97).
O prosaico dessas duas experiências amorosas vividas por Silvestre
revela bem a forma como ele tomou seus amores. Tais narrativas estão eivadas
de obviedades e clichês românticos, nos quais os amantes são sempre
verdadeiros e injustiçados e, por outro lado, os ímpios vencem na vida por
refletirem uma sociedade hipócrita, má e corrompida, dentro da qual só resta
aos puros de coração se afastar. Tal comportamento está claramente traduzido
tanto pela decisão de Silvestre em levar sua amada Marcolina para a província,
longe de uma Lisboa corrompida — dentro da qual, lembremo-nos, ele vive
seu “noviciado de amor” —, quanto pelo fim dessa, ou seja, a morte, fim
comum à quase toda “verdadeira” heroína romântica.
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Não podemos deixar de observar, contudo, que mesmo o amor de
Silvestre por Marcolina não é plenamente verdadeiro. Ele próprio confessa que
a amou para rebelar-se contra a sociedade, para vingar-se desta, por “ódio à
sociedade” que desprezava aquela que deveria louvar. Temos também aí um
amor artificial, criado dentro dos modelos do amor romântico, rebelde:
“O silvestre dos tempo juvenis não era sincero, não amava com autenticidade, procurava apenas imitar, na vida como na prosa, modelos literários” (COELHO: 1983, p. 331, v. 1)
Como podemos perceber, a imitação do modelo literário, de que fala o crítico
português, naquilo que esse tem de mais óbvio, de mais estereotipado, acaba
por reforçar o olhar desconstrutivo com que vemos o relato de Silvestre, ou
seja, acaba por corroborar a perspectiva irônica do editor-autor de que vimos
falando.
O segundo volume das narrativas de Silvestre, Cabeça, também é
dividido, dessa vez em duas partes: a primeira, denominada “Jornalista”; a
segunda, “Páginas sérias de minha vida”. Antes, porém, de entrar a relatar sua
rápida vida de jornalista no Porto, Silvestre expõe ao seu leitor sete máximas
da razão que compôs a partir de suas experiências — novamente a ironia com o
número cabalístico. Ainda aqui, é impossível não perceber um certo tom
irônico nas máximas que nosso amante criou “depois de ler a antigüidade e
alguns almanaques que tratavam do amor” (p.98). O disparate das fontes
consultadas, por si só, já joga em descrédito a possível seriedade das máximas
criadas. Não bastasse isso, a leitura de algumas delas demonstra a ausência da
seriedade de que resultaram. A que melhor traduz o que vimos observando é a
sétima, espécie de conclusão das experiências amorosas vividas por Silvestre.
Ei-la:
“... a mulher é uma contingência: quem quiser constituí-la essência de sua vida aleija-se na alma e cairá setenta vezes sete vezes das muletas a que se ampare do chão mal gradado o barrancoso do seu falso caminho” (p. 98).
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Como se vê, a aprendizagem de Silvestre resultou num certo tom
amargo em relação ao objeto tão desejado no primeiro momento de sua vida
amorosa. Isto também pode ser comprovado pelo retrato assaz sarcástico que
ele traça das mulheres do Porto influenciadas pela ação “maléfica” dos
romances, especialmente os franceses. Eis como descreve a degeneração
feminina causada pelo romance:
“Liam e morriam (as moças) para a verdade e para a natureza legítima. Invejavam a palidez das pálidas e a espiritualidade das magras. Tal menina houve que bebeu vinagre com pó de telha; e outras, mais suspirosas e avessas ao vinagre, desvelavam as noites emaciando o rosto à claridade doentia da lua. Algumas tossiam constipadas e queriam da sua tosse catarrosa fingir debilidade do peito, que não pode com o coração. Muitas, à força de jejuns, desmedravam a olhos vistos e amolgavam as costelas entre as compressas de aço do colete” (p.102).
Bem se vê que o artificioso desse comportamento em nada difere daquele que o
próprio Silvestre assumia ao raspar a testa e vestir-se de negro para melhor
refletir seu estado anímico. Temos aqui, na realidade, a imagem estereotipada
de modelos de amantes românticos.
Devemos atentar, no entanto, que Silvestre, além de querer convencer
seu leitor de que não percebe que o modelo feminino criticado corresponde ao
almejado na primeira parte de sua narrativa, finaliza sua descrição com uma
exaltação às mulheres em termos que revelam o convencional romântico,
porém num tom de recorte nitidamente irônico:
“Ó mulheres do Porto, ó virgens saudosas da minha mocidade ó santas da natureza como Deus as fizera, que é feito de vós, que
fizeram de vós os romances, e o vinagre, e a Lua, e o pó de telha, e
as barbas do colete, e os jejuns e a ausência completa do boi
cozido, que vossas mães antepuseram às mais legítimas e
respeitáveis inclinações do coração?” (p. 103-104).
Começamos a observar, assim, que a constante irônica que seu relato
passa a ter nesta segunda parte começa a anunciar aquela razão cínica de que
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falamos atrás e que norteará o comportamento de Silvestre. Desta forma é que,
no Porto, ele estabelece metas para alcançar o sucesso:
“...as minhas cogitações eram todas dirigidas por cálculos e raciocínios. O meu alvo mais remoto era ser ministro da coroa. Estavam as minhas faculdades regidas pela cabeça”. (p.104)
Regido pela “cabeça”, Silvestre funda um jornal através do qual
provoca uma série de polêmicas que ele defende como para o bem da
sociedade, mas que sempre revelam o intuito de alcançar um cargo político
importante. Suas críticas a pessoas e causas públicas produzem, na realidade,
diversos processos judiciais, os quais ele perde todos, gastando todo o seu
dinheiro com as várias indenizações e multas pagas, levando-o a empenhar
bens e, por fim, a ter de fechar o jornal.
Depois de voltar à sua aldeia para se recompor financeiramente, com a
venda de algumas colheitas de milho, Silvestre retorna ao Porto, agora com
novos ideais, quais sejam: casar-se rico e sublimar na riqueza seus desejos de
ascensão política. Tal ideal é traduzido com um título, dado à segunda parte do
segundo volume, em que a perspectiva irônica e, por conseqüência, a
desconstrução discursiva, é clara: “Páginas sérias da minha vida”.
Nesta parte, frente às três herdeiras mais ricas do Porto — uma viúva,
porém a mais velha e feia; uma nova, mas sem vitalidade; e uma terceira,
definida como uma verdadeira mulher —, nosso narrador-defunto decide por
consultar a cabeça, que agora regia suas ações. Aquela, racionalmente, aponta
para a viúva, apesar do coração apontar para a terceira, mais trigueira. Assim é
resumida esta batalha entre a cabeça e o coração:
“Consultei a minha cabeça, e a cabeça me disse que requestasse a viúva. Senti que o coração punha embargos; mas a veleidade foi de momentos. Caiu-lhe em cima a cabeça com todo o peso da razão; e o pobrezinho, que já não servia para mais que centro das funções sanguíneas, gemeu, contorceu-se e amuou” (p.107).
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Tendo sido a batalha vencida pela cabeça, Silvestre dirige-se para a
viúva, mas a encontra tão burra que não resiste a uma piada extremamente
descortês que joga ao chão suas pretensões. Volta-se assim para a terceira,
afinal aquela que mais lhe interessou. Descobre, no entanto, que ela está
envolvida numa situação escandalosa junto com outras pessoas importantes da
sociedade portuense. Decidido a defendê-la de tal situação, denuncia o
escândalo. Porém, sem provas da denúncia, é acusado e condenado por
calúnias. Frente a este desenlace de suas pretensões políticas e econômicas no
Porto, enojado com a hipocrisia reinante na sociedade, nosso narrador-defunto
desiste do coração e também da cabeça:
“Entendi que devia corrigir a obra do Criador. A minha primeira operação de reforma foi renunciar para sempre às manifestações da inteligência, e jurei comigo de nunca mais dar na estampa escrito que não abonasse uma conscienciosa parvoíce, talismã de tantos que aí correm, e à conta dos quais muitos meus colegas na imprensa se afortunaram e benquistaram com o mundo. Acabou, pois, aqui, a minha vida intelectual. Nem já coração, nem cabeça. Principia agora o meu auspicioso reinado do estômago” (p.131).
Entrega-se Silvestre, assim, ao estômago, tema e título da terceira parte de sua
narrativa.
Nesta revela-se, por conseguinte, uma opção que retoma um ideal bem
ao gosto romântico: a pureza da vida campestre. Desiludido com as artimanhas
e as armadilhas que enfrenta na cidade, tendo visto darem erradas todas suas
investidas, seja de teor político, econômico, intelectual ou amoroso, decide
Silvestre retornar ao refúgio puro do campo, da província. É para lá que ele se
dirige, certo de que a razão não é garantia de felicidade:
“Viver segundo a razão, alvitre que os filósofos pregoam, é bom de dizer-se e desejar-se; mas enquanto os filósofos não derem uma razão a cada homem, e essa razão igual à de todos os homens, o apostolado é de todo inútil” (p.139).
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O terceiro e último volume de sua narrativa não é dividido como os
outros. Há apenas uma espécie de subtítulo que anuncia a ação básica a ser
tratada: “De como me casei”.
De volta à sua aldeia, Silvestre, através de manobras políticas, consegue
tornar-se regedor da vila. Logo depois, recebe o “Hábito de Cristo”. Como
Cavaleiro de Cristo, conhece o Sargento-Mor, pertencente à mesma Ordem,
que pensava casar sua filha com algum dos companheiros de ordem. Assim,
depois de alguns arranjos, Silvestre casa-se com Tomásia, mulher em tudo
diferente das mulheres que até então ele havia encontrado ou buscado. Vale a
pena observar como ele descreve sua futura esposa:
“Tomásia era mulher de carne e osso mais que o ordinário. Vestia de amazona: mas ficava um pouco aquém, dos limites da elegância, porque era mais larga na cintura que nos ombros — visível defeito do vestido. Tinha uns longes de cara admiráveis: figurava-se uma flor de magnólia entre duas rocas de cerejas”. ............................................................................................................ “Tomásia era uma rapariga desempenada e com olhares derretidos. De entendimento era escura, como quem não sabia ler, nem tivera, alguma hora, desgosto de sua ignorância. Tinha vinte e seis anos e nunca estivera doente. Nunca tomara chá nem café. Almoçava caldo de ovos com talhadas de chouriço. O sol, ao nascer, nunca a surpreendeu em jejum. Trabalhava de portas adentro com as criadas: fazia as barrelas, fabricava o pão, administrava a salgadeira e vendia os cereais e as castanhas (...) Cada palma de mão parecia uma lixa; e elogiar-lhe o cuidado das unhas seria adulação indigna de minha sinceridade...” (p.145-146)
É singular o contraste dessa descrição de Tomásia com a descrição das
mulheres do Porto, tipicamente românticas, traçada no volume dedicado à
Cabeça. Em Tomásia vibra a vida. A rudeza de suas características físicas e de
seu comportamento é em tudo dissemelhante àquelas pálidas mulheres.
Através de seu casamento com Tomásia, temos a impressão de que
nosso narrador-defunto retorna a um estado primitivo, primordial, instintivo.
Claro está que este retorno, mais que impressão, é uma ação real, pois, afinal,
estamos dentro do ‘império” do Estômago. Das três fases por que passa nosso
anti-herói, esta é a mais “animalesca”, a mais próxima de um estado idealizado
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em que as corrupções dos costumes sociais ainda não estragaram uma pureza
inicial, primitiva.
Vemos, neste momento, Silvestre reencontrando-se com uma espécie de
“idade de ouro”, perdida no momento de sua aprendizagem amorosa na cidade.
Significativo para tal reencontro é o fato de que ele não se dá por via do amor.
Ao contrário, o sentimento tão desejado na primeira parte da narrativa é agora
descrito como um dos elementos que traduzem a corrupção do jogo social
urbano. Observemos o que nos diz nosso renovado Silvestre:
“Algumas vezes interrogava a minha consciência, perguntando-lhe se eu amava Tomásia. Não me respondia, por se julgar desautorizada para a resposta. Ao coração é que tocava o discutirmos semelhantes pontos de pouquíssima importância para o complemento da minha felicidade. Eu tinha lido a Bíblia e não vira lá os patriarcas oferecendo ou pedindo amor às mulheres com quem se esposavam (...) Na idade de ouro, a mulher era a fêmea
do homem: casavam para procriarem, segundo suas espécies, e
procriando envelheciam ditosos.
O amor inventou-o depois o estragamento dos bons costumes
gregos e romanos, como coisa necessária e acirrante aos paladares botos dos filhos viciosos das cidades. Ainda agora nas aldeias, afastadas dos focos de corrupção, coisa que eu nunca ouvi dizer é: ‘A Maria ama o Antônio da Capela.’ Lá não se diz ama; é querem-se”. (p.160)
A citação acima é bem clara em revelar a mudança significativa que o
retorno à aldeia provoca no nosso narrador-defunto. Tema central da maioria
das novelas românticas e elemento provocador da narrativa de Silvestre, o
amor é, nesse momento, destronado de sua condição de Senhor dos homens e
passa a ocupar um papel secundário na vida de nosso anti-herói.
Alcançado esse estágio de evolução (ou retrocesso?) em sua
interpretação da vida, Silvestre casa-se com Tomásia.
Neste ponto, finda o terceiro volume de suas narrativas. Temos, em
seguida, a reentrada em cena do editor-autor que nos informa do destino de seu
amigo: Silvestre faz ainda algumas manobras políticas que lhe rendem e aos
seus algum prestígio, porém, extremamente bem alimentado por sua mulher,
gozando de uma vida simples e de poucas atividades, engorda e acaba por
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morrer devido a complicações resultantes da imobilidade e do cansaço das
molas digestivas.
Por último, o editor-autor ainda dá-nos acesso às derradeiras produções
literárias de Silvestre. O último poema, um soneto, é digno de reprodução não
só pelo que tem de resumitivo da trajetória de nosso narrador-defunto, mas
principalmente pelo que revela de ironia de Silvestre em relação à sua própria
história:
“Abri meu coração às mil quimeras; Encheram-me de fel, e tédio, e lama, Tive, em paga do amor, riso que infama... Ai!, pobre coração!, quão tolo eras! Dobrei-me da razão às leis austeras; Quis moldar-me ao viver que o mundo ama O escárnio, a detracção me suja a fama, E a lei me pune as intenções severas. Cabeça e coração senti sem vida, No estômago busquei uma alma nova E encontrá-la pensei... Crença perdida! Mulher aos pés o coração me sova; Foge ao mundo a razão espavorida; E por muito comer eu desço à cova!”
O tom escarninho de sua própria trajetória é flagrante nesta sua última
produção literária. O contraste da forma rígida do soneto com a banalidade
com que avalia sua vida leva seu amigo e editor-autor a um último comentário
bastante irônico:
“Bem se vê que o soneto era o da morte. Um grande merecimento tem ele: é ser o último”. (p.178)
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V- Comentários finais
Para concluir, essa síntese comentada da novela demonstra bem que,
ironicamente, o editor-autor de Coração, cabeça, estômago organiza as
memórias de Silvestre da Silva de modo que o leitor/ouvinte acompanhe o anti-
herói em seu percurso, desde a fase em que se revela inexperiente amante, tão
sonhador, tão idealista, mas, na realidade, tão fútil quanto as mulheres que irá
mais tarde criticar; passando pela fase em que Silvestre acredita ter na razão
uma aliada contra os males que o acometem, no entanto, logo demonstrando
que seu espírito vingativo é também inocente e por isso seu ideal de vingança
malogra já no início. Por fim, chegando à fase do império dos sentidos, ou do
estômago, em que, desiludido com o coração e com a razão, Silvestre aposta na
vida simples, rústica e aldeã como forma de recompensa ao seu desgraçado
destino. Porém, também aqui, suas pretensões malogram, já que, mesmo
casado, rico e com o poder que desejava, a abastança da vida leva-o à cova e
sua avaliação, como se pode inferir pelo soneto final, é negativa, mesmo em
relação à fase do estômago.
Retomando nossa proposta de leitura da novela como uma grande
metáfora irônica do Romantismo, acreditamos ter ficado claro que, através de
um editor-autor que a todo momento interfere na narrativa para fazer
comentários irônicos e de um narrador-defunto — que permite, portanto, que o
editor-autor teça livremente seus comentários depreciativos —, por meio
desses artifícios literários-narrativo, Camilo faz a análise dos ideais românticos
de uma forma muito individual, muito particular. Através de sua visão crítica,
ele desconstrói satiricamente os ideais sociais e literários predominantes,
anunciando já no início da década de 60 aquilo que será o mote principal da
Geração de 70, da geração realista, ou seja, a crítica dos ideais e da literatura
romântica.
Assim, se aceitarmos que tal crítica faz-se pelo viés da ironia e de que
estão pressupostas nesta — conforme expusemos no início deste trabalho —
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uma visão particular e crítica do mundo, assim como uma consciência dos
recursos lingüísticos de que o autor se utiliza, fácil é concluir pela lucidez com
que Camilo constrói sua novela. O artifício narrativo de que lança mão, os
diversos clichês que faz repetir para desconstruir, a consciência meio ingênua,
meio cínica com que veste a personagem central na novela, Silvestre, tudo isso
é prova do propósito irônico de sua narrativa.
Construída como metáfora irônica do Romantismo, Coração, cabeça,
estômago realça o agudo senso crítico que muitos estudiosos teimam em dizer
ausente em Camilo, mas que uma nova geração de leitores de sua obra começa
por apontar (ALVES: 1990). Se tal senso crítico já é nítido nas Advertências,
Introduções e Prefácios que abundam nas diversas edições e reedições de suas
obras, acreditamos poder identificá-lo em suas próprias novelas. Se até mesmo
em Amor de Perdição, paradigma do romance passional romântico, já há quem
aponte elementos dessa autoconsciência crítica em relação aos modelos que
segue e/ou constrói (RABELO: 1977), não nos parece difícil demonstrar que
suas novelas de cunho satírico têm como alvo preferencial esse mesmo modelo.
É isto que esperamos ter alcançado com este trabalho.
BIBLIOGRAFIA:
ALVES, José Édil de Lima. A paródia em novelas-folhetins camilianas. Lisboa:
ICALP, 1990. BRANCO, Camilo Castelo. Amor de perdição. Lisboa: Europa-América, s/d. ________. Anátema. Lisboa: Europa-América, s/d. ________. Coração, cabeça, estômago. 2ed. Lisboa: Europa-América, 1988. BERARDINELLI, Cleonice Serôa da Motta. “Garrett e Camilo — Românticos
heterodoxos?” In.: Convergência. 1 (1), Rio de Janeiro, 1976. COELHO, Jacinto do Prado. Introdução aos estudo da novela camiliana. 2ed. ref. e
aum. Lisboa: INCM, 1983. 2v. FERRAZ, Maria de Lourdes A. A ironia romântica: estudo de um processo
comunicativo. Lisboa: INCM, 1987. IANONNE, Carlos Alberto. A visão do mundo camiliana. In.: Cadernos de literatura.
(16), 1983, s/ed. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1992. MONGELLI, Lênia Márcia de Medeiros. Ironia e ambigüidade: o herói camiliano.
São Paulo: FFLCH/USP, Boletim nº.40, 1983. RABELO, Maria da Glória Martins. Camilo: realismo e contradição. In.: Brotéria. 5-6
(104) maio/junho, 1977.