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ALFABETIZANDO SEM O BÁ-BÉ-BI-BÓ-BU
SUMÁRIO
Prefácio 4
Introdução 8
1. História da alfabetização 11
2. O ensino e a aprendizagem: os dois métodos.. 35
3. Avaliação, promoção, planejamento 61
4. O método das cartilhas 79
5. Panorama do processo de alfabetização 103
6. A decifração da escrita 119
7. Procedimentos para o estudo das letras 133
8. Sugestões de atividades na alfabetização 163
9. A produção de textos espontâneos 197
10. As hipóteses por trás dos erros 241
11. Ditado e cópia 287
12. Leitura e interpretação de texto 311
13. Ortografia da língua portuguesa 341
Apêndice — A categorização gráfica das letras 359
Bibliografia 389
Índice de tópicos por capítulo 397
PREFÁCIO
Alfabetizando sem o bá-bé-bi-bó-bu é, sem dúvida, um livro
pioneiro. O próprio título já evidencia o seu pioneirismo: uma
nova proposta de metodologia da alfabetização, totalmente
liberta do método silábico, cartilhesco ou não.
Ao contrário do que se pode imaginar, não é apenas quando
nos utilizamos da cartilha que o método silábico do bá-bé-bi-bó-
bu se encontra subjacente à prática de ensinar a ler e escrever.
Como bem mostra o autor, mesmo em práticas consideradas
inovadoras e bem distantes da cartilha, a única tábua de
salvação, para muitos professores, é voltar ao antigo bê-a-bá.
Outra grande inovação (diríamos até "evolução") trazida por
este livro é colocar no centro da discussão da aquisição da
leitura e da escrita a noção de ortografia, ausente de qualquer
outra abordagem do assunto já conhecida. Não nos referimos à
ortografia apenas como uma meta a ser atingida no final do
processo, mas como a noção fundamental que sustenta o nosso
sistema de escrita. O autor nos mostra que, ao contrário do que
comumente se pensa, nosso sistema de escrita não é apenas
alfabético (o que o tornaria uma mera transcrição fonética), mas
ortográfico (servindo a ortografia, entre outras coisas, para
anular a variação lingüística no nível da palavra). Assim, a partir
de considerações a respeito da própria natureza do nosso
sistema de escrita, e de como isto interfere no processo de
alfabetização, vemos como a ortografia deve ser considerada
desde o início do processo e não como objetivo final
— como o fazem tanto os métodos tradicionais baseados no bá-
bé-bi-bó-bu, como também os ditos construtivistas, que dividem
a aquisição da linguagem escrita em níveis (pré-silábico, silábico
e alfabético), os quais não encontram correspondência exata em
qualquer sistema de escrita conhecido, menos ainda em um
sistema de escrita ortográfico como o nosso.
Alfabetizando sem o bá-bé-bi-bó-bu é uma obra voltada para a
formação do professor alfabetizador. Discute a teoria da
aquisição da linguagem escrita e fornece subsídios ao professor
que tiver coragem, vontade, ou simplesmente necessidade,
imposta pelo seu cotidiano de alfabetizador, de mudar. É o
resultado de quase vinte anos de dedicação do autor à causa da
alfabetização e de seus mais de trinta anos como lingüista. ~,
<4>
Representa, pois, a visão de um lingüista sobre o processo de
aquisição da leitura e da escrita e a sua contribuição, como
professor, para a educação do país, de um modo mais geral. O
autor afirma que um professor que tenha os conhecimentos
apresentados neste livro consegue conduzir com calma e
segurança o processo de alfabetização e tem chances de
alfabetizar uma criança a partir dos cinco anos ou um adulto em
dois ou três meses — o que significa uma enorme conquista,
dados os alarmantes níveis de analfabetismo no Brasil. Isso
porque os conhecimentos apresentados independem do tempo
histórico e do espaço geográfico, já que dizem respeito
diretamente à natureza, função e usos da linguagem oral e
escrita e não estão subordinados a métodos pedagógicos. As
estratégias de ensino podem variar de professor para professor,
mas o conhecimento da linguagem oral e escrita é uma aquisição
da ciência e, desse modo, depende única e exclusivamente do
progresso da ciência. E nesse sentido, a ciência Lingüística já
tem um conjunto considerável de conhecimentos solidamente
estabelecidos, dos quais uma parte é colocada aqui à disposição
para uma aplicação à educação.
Na sua carreira acadêmica, Luiz Carlos Cagliari tem trabalhado
com três linhas de pesquisa: fonética e fonologia, sistemas de
escrita e alfabetização. Nas três áreas, além de ter produzido
muitas pesquisas, que resultaram em várias publicações, seu
percurso como professor do Instituto de Estudos da Linguagem
da Unicamp inclui cursos na graduação em Letras e Lingüística e
na pós-graduação em Lingüística, além de comunicações em
reuniões científicas importantes, dentro e fora do país. No
entanto, este livro não pode ser considerado apenas o resultado
de uma pesquisa desenvolvida do lado de dentro dos portões da
universidade, desvinculada da realidade de sala de aula dos
professores alfabetizadores do país. O contato e trabalho
conjunto do autor com os professores alfabetizadores vêm já de
longa data.
O ano de 1980 é uma data-chave para a compreensão do seu
envolvimento com os estudos de alfabetização. Nessa ocasião,
uma equipe da CENP o convidou para ministrar um curso de
fonética acústica para professores alfabetizadores, uma vez que,
segundo os especialistas, os erros de troca de letras cometidos
pelos alunos eram devidos ao fato de os professores não
conhecerem o assunto, não tendo, portanto condições de
resolverem o problema quando ele se manifestava. ~,
<5>
Analisando a questão, ele concluiu que os problemas não se
restringiam à fonética acústica, mas envolviam falhas sérias no
processo de alfabetização, devido à falta de conhecimento
lingüístico. Esse curso, realizado com a colaboração de uma de
suas colegas de departamento na Unicamp, a Drª Maria
Bernadete Abaurre, e do Dr. Márcio Silva, foi o início de um longo
caminho de pesquisa e de cooperação com órgãos públicos,
faculdades e, sobretudo, com professores alfabetizadores, que
forneciam ao autor material produzido pelos alunos. Começou a
organizar assim um enorme arquivo de produções infantis.
No ano seguinte, a convite da equipe pedagógica da
Secretaria de Educação de Alagoas, juntamente com Maria
Bernadete, Luiz Carlos Cagliari ministrou um curso para
professores alfabetizadores. Na ocasião, foi possível pôr em
prática as novas orientações propostas no curso da CENP,
sobretudo, convencendo os professores a deixar seus alunos
produzirem textos espontâneos. O que parecia a eles uma
loucura logo se revelou uma grata surpresa. A evidência dos
fatos mostrou a dimensão da capacidade dos alunos e que seus
erros, mais do que "falhas", revelavam hipóteses que os levavam
a fazer opções diante da escrita.
No ano de 1983, destaca-se sua participação no I Seminário
Multidisciplinar: Alfabetização, realizado na Pontifícia
Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Nessa ocasião,
apresentou um trabalho intitulado A formação do professor
alfabetizador, em que já aparece um esboço de suas principais
idéias sobre o processo de alfabetizar.
Neste mesmo ano, outra colega sua do departamento de
Lingüística da Unicamp, a Drª Cláudia Lemos, organizou um
encontro sobre Linguagem, Aprendizagem e Interação. Ela já
conhecia o trabalho do autor na área de alfabetização e achava
que correspondia em grande parte ao que faziam os
construtivistas, sobretudo uma psicóloga que tinha encontrado
na Europa, chamada Emília Ferreiro. Nesse encontro foram
apresentadas as idéias do construtivismo, que, a partir daí,
invadiram os programas de alfabetização. Para esse evento, o
autor levou os textos espontâneos dos alfabetizandos de Alagoas
e de Campinas com os quais ele havia trabalhado, expondo-os
em dois varais que acompanhavam toda a extensão do corredor
do pavilhão dos professores. Todos ficaram impressionados, e os
textos forneceram material para muita discussão.~,
<6>
Em 1984, o autor já, havia juntado grande quantidade de
trabalhos sobre os mais variados tópicos da alfabetização
relacionados com a fala, a escrita e a leitura. Esse material iria
formar, mais tarde, o livro Alfabetização e lingüística, publicado
pela Scipione em 1989. Um dos trabalhos que não entrou
naquele livro foi o "Roteiro de sugestões para professores
alfabetizadores", que serviu de embrião para esta obra que ora
prefaciamos, cuja versão preliminar foi escrita nos dois
primeiros meses de seu estágio de pós-doutoramento em
Londres, em 1987, e depois foi intensamente discutida e levada à
sala de aula por professores alfabetizadores de várias regiões do
país.
Já em 1985, Luiz Carlos Cagliari participou do Projeto Ipê,
coordenado pela CENP Nessa ocasião, publicou o artigo
"Caminhos e descaminhos da fala, da leitura e da escrita na
escola", que teve enorme repercussão. Com o material desse
artigo, foi feito o roteiro para um programa da TV Cultura
relacionado com o Projeto Ipê. Paralelamente a isso, começaram
a ser publicados no Brasil artigos de Emília Ferreiro e suas idéias
apareceram também no Projeto Ipê. A pesquisadora Telma
Weisz, discípula de Ferreiro passou a liderar a divulgação do
construtivismo no estado de São Paulo, com o apoio da CENP e,
sobretudo depois, com a FDE. Nessa época, já era notória a
discordância do autor (ver o artigo "O príncipe que queria ser
sapo") e de outros lingüistas com relação às interpretações de
Emília Ferreiro a respeito do processo de letramento. A opção
pelo construtivismo e, de certo modo, sua imposição às
atividades da rede pública deixaram em um plano secundário as
críticas e outras formas de pensar e de fazer o processo de
alfabetização. Apesar disso, Luiz Carlos Cagliari continuou
pesquisando com empenho e profundamente, até a formação de
um conjunto de idéias sólidas, bem fundamentadas, que
explicam não só como alguém se alfabetiza, mas também como
tirar alguém do "mau caminho" e fazer com que supere seus
obstáculos e consiga se alfabetizar. São estas as idéias
apresentadas no presente livro.
Atualmente, seus olhos voltam-se para um novo horizonte: a
alfabetização de adultos. Continua sua luta incansável contra o
analfabetismo e por rumos melhores para a alfabetização dos
que efetivamente conseguem chegar até a escola.
Gladis Massini-Cagliari. ~,
<7>
INTRODUÇÃO
Em 1981, baseando-me na experiência de alfabetização de
meu filho Daniel na Escócia (1976), disse para muitos
professores (em cursos e palestras) que as crianças podiam
escrever textos já no início da alfabetização, passando da
capacidade de produzir textos orais para a representação
escrita, mesmo sem saber bem a grafia das palavras. Fui então
considerado um maluco, que nunca tinha alfabetizado alguém.
Bastou a coragem de alguns professores, já no ano seguinte,
para que todos descobrissem que isso era possível. Com o
trabalho de colegas como Maria Bernadete Abaurre e João
Wanderley Geraldi e com a divulgação das idéias de Emília
Ferreiro, o que era medo de ensinar tornou-se procedimento
comum com relação à produção de textos espontâneos na
alfabetização e de livrinhos de classe em todas as séries iniciais.
Neste livro, há um outro desafio: ensinar a ler a partir da
reflexão sobre o processo de alfabetização, tornando conscientes
para o professor e o aluno as regras de decifração da escrita. As
crianças gostam de aprender coisas sérias, ensinadas com
seriedade — e é isto o que mais falta hoje na escola. Esse desafio
é fruto de extenso estudo sobre o processo de alfabetização,
ponderando as implicações dos estudos da linguagem no modo
como as crianças usam a fala, a escrita e a leitura. Além disso,
leva-se em consideração uma investigação profunda da história
da escrita, da natureza e usos dos sistemas de escrita. Sem esse
suporte lingüístico e esse conhecimento dos sistemas de escrita,
grande parte da problemática do processo de letramento fica
distorcida, não raramente levando os estudiosos por caminhos
sem saída. A simples aplicação de um método ou de uma teoria
conduz facilmente o processo pedagógico a reproduzir um
modelo. Nesse contexto, os alunos precisam se virar com os
recursos do modelo.
E se não der certo, se o aluno, apesar das repetições a que é
submetido, não conseguir se alfabetizar? Essa preocupação
sempre foi a central de todos os meus estudos. A única saída
para impasses como esse — e, por que não, para conduzir
tranqüilamente um processo de letramento — é o conhecimento
sofisticado e correto das questões lingüísticas relacionadas à
alfabetização, bem como do funcionamento dos sistemas de
escrita. Idéias simples, porém, fundamentais, como a variação
lingüística e o fato de a ortografia ter modificado ~,
<8>
profundamente o sistema alfabético, quando ausentes ou mal
interpretadas na escola, podem criar grandes embaraços para a
aprendizagem do aluno e um quebra-cabeça extremamente
complicado para a ação do professor.
Tenho certeza (pois também já constatei na prática) de que os
professores irão descobrir nos procedimentos sugeridos neste
livro uma forma nova e segura de alfabetizar. Não basta deixar
de lado o livro das cartilhas; é preciso deixar de lado o método
das cartilhas, o ensino centrado na noção de sílaba como
unidade privilegiada da escrita e da leitura. Ensinar as crianças a
tornar conscientes os procedimentos de decifração da escrita é
uma estratégia que as agrada mais do que ficarem repetindo
coisas aparentemente sem sentido, ou ser largadas à própria
sorte, esperando que saiam de dentro de si os conhecimentos
que a escola exige para ler e escrever. A proposta deste livro é
ensinar de maneira clara e com precisão como se faz para
aprender a ler e a escrever — o que corresponde exatamente às
expectativas das crianças.
O fato de ser este livro volumoso, abrangendo um assunto
complicado, não deve ser motivo de receio para os professores,
que sentirão seu trabalho facilitado e valorizado com a adoção
de uma nova postura em sala de aula. As crianças vão se sentir
valorizadas também em suas descobertas, ganhando maior
segurança ao observarem seu próprio progresso. Para o
professor, no começo, talvez esta apresentação do processo de
alfabetização possa parecer muito técnica e fora da realidade
pedagógica e psicológica das crianças. Lembro que o mesmo me
diziam quando afirmava que as crianças eram capazes de
produzir textos espontâneos, passando dos conhecimentos que
tinham da linguagem oral para a forma escrita. Hoje, todos
concordam que produzir textos é algo que as crianças fazem com
facilidade, criatividade e prazer. Com o tempo, mesmo
problemas altamente complexos passam a ser vistos como
desafios comuns quando se familiariza com eles e com as
soluções necessárias. Um bom exemplo disso no mundo
moderno é a maneira como as crianças lidam com os jogos de
vídeo games. Depois de certa prática, aprendendo uma
quantidade enorme de regras, jogam com facilidade, para
espanto de quem não é capaz. Outro exemplo mais próximo de
nosso assunto está no próprio fato de as pessoas que
aprenderam a ler e a escrever (e isso se constata já nas
primeiras séries) tiveram de passar por todas essas regras e por
todos os ~,
<9>
conhecimentos "técnicos" que constituem o objetivo deste livro.
Na verdade, não há outra saída. O que existe são os caminhos
diferentes para se obter um resultado. Como costumo dizer,
alguém pode ir de São Paulo ao Piauí andando a pé, a cavalo ou
de avião. Há muitas escolhas, mas nem todas têm o mesmo
valor.
Para juntar conhecimentos teóricos com metodologias ou
estratégias de ação, foi preciso me alongar no assunto, dado o
volume de informação e a necessidade de clareza na exposição.
O livro está dividido em treze capítulos e um apêndice. Para
auxiliar na pesquisa do professor que está em busca dos
conhecimentos básicos há uma breve história da alfabetização,
uma sucinta apresentação da história da ortografia da língua
portuguesa e o apêndice, no qual as letras são estudadas
individualmente, mostrando as facilidades e dificuldades de seu
ensino e aprendizagem. O método das cartilhas mereceu um
estudo à parte, para contrastar com o que se propõe: deixar de
lado o bá-bé-bi-bó-bu e partir para um trabalho de pesquisa
envolvendo professor e alunos. Algumas questões pedagógicas,
como a avaliação, a promoção e o planejamento escolar, tiveram
de ser abordadas em vista de suas conseqüências para a ação do
professor e do aluno. O que se propõe é que a escola ensine os
alunos a estudar, a trabalhar com os conhecimentos, e não com
o objetivo menor de ganhar nota e passar de ano. A parte
principal do livro concentra-se nos procedimentos para o estudo
das letras, com sugestões de atividades e destaque especial para
a produção de textos espontâneos. Os problemas que o aluno e o
professor encontrarão são analisados e discutidos em detalhes,
mostrando, por um lado, o que é preciso saber para decifrar a
escrita e, conseqüentemente, ler e escrever, e, por outro, quais
as hipóteses que os alunos apresentam quando erram e como
não cair em impasses que impedem o progresso desses alunos.
Outras atividades importantes foram também consideradas,
como o ditado, a cópia e a interpretação de textos.
Este livro pretende ser uma contribuição a mais (há tantas
coisas interessantes e importantes que têm sido apresentadas
aos professores alfabetizadores nas duas últimas décadas...)
para que se entenda melhor o processo de alfabetização. O
objetivo não foi fazer um livro teórico nem um manual do
professor, mas apresentar, discutir e sugerir idéias que o autor
pesquisou, que foram amplamente discutidas com pesquisadores
e, sobretudo, com professores alfabetizadores. ~,
<10>
Gladis Massini-Cagliari é professora assistente doutora de
língua portuguesa do Departamento de Lingüística da Faculdade
de Ciências e Letras da Unesp-Araraquara. É mestre e doutora
em lingüística pelo Departamento de Lingüística da Unicamp e
autora de trabalhos publicados na área de alfabetização,
fonologia, lingüística histórica e lingüística textual. Interlocutora
privilegiada do autor por ser sua mulher e tê-lo conhecido como
professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp,
vem acompanhando seu percurso como lingüista e, a partir de
1991, passou a colaborar ativamente em seus trabalhos na área
de alfabetização.
1
História da alfabetização
Quem inventou a escrita inventou ao mesmo tempo as regras
da alfabetização, ou seja, as regras que
permitem ao leitor decifrar o que está escrito entender como o
sistema de escrita funciona e saber como usá-lo
apropriadamente. A alfabetização é, pois, tão antiga quanto os
sistemas de escrita. De certo modo, é a atividade escolar mais
antiga da humanidade.
Para que os sistemas de escrita continuem a ser usados, é
preciso ensinar às novas gerações como fazê-lo. Quando esse elo
se rompe, por abandono ou porque é trocado por outro modelo, a
escrita antiga passa a ser um sistema sem decifração. Nesses
casos, só com muito estudo, e também com um pouco de sorte
da parte dos decifradores dessas escritas abandonadas, as
regras que envolvem tais sistemas voltam a ser conhecidas,
permitindo assim que os textos antigos sejam lidos e que a
escrita possa ser novamente utilizada.
Na história da escrita, registram-se apenas dois casos de
povos que empregavam um sistema de escrita e que, por alguma
razão estranha e desconhecida, deixaram de fazê-lo, ficando por
um longo tempo sem utilizar qualquer sistema. Isso aconteceu
com os gregos e com os indianos.
A escrita cretense minóica (Linear B) foi usada pela cultura
grega micênica até 1250 a.C., quando Micenas foi destruída. Os
gregos voltaram a escrever somente 500 anos mais tarde,
usando o alfabeto semítico. No vale do rio Indo, houve um
sistema de escrita ainda não decifrado que só foi empregado por
volta de 2500 a.C. Naquela região, a escrita só ressurgiria muito
tempo depois, no século III a.C., com a escrita brãmane.
Curiosamente, esses dois tipos de escrita, ao que tudo parece,
tiveram um uso muito popular, ou seja, não ficaram restritos a
atividades religiosas ou científicas. Mesmo guerras muito
violentas nunca interromperam o conhecimento da escrita, razão
pela qual esses dois casos são considerados hoje misteriosos. ~,
<12>
Estudando atentamente os sistemas de escrita, percebe-se
que quem os inventou sempre teve a preocupação de fornecer a
chave da decifração juntamente com o próprio sistema. Os
sistemas de escrita nunca tiveram nada de muito estranho ou
misterioso em si, pelo contrário, sempre foram simples e
práticos. Por essa razão, ensinar as novas gerações a usar o
sistema de escrita sempre foi uma tarefa fácil e de certa forma
banal.
< CAGLIARI, 1996b,p. 106-24.
A antiga civilização da ilha de Creta usou dois sistemas de
escrita que os estudiosos chamaram de Linear A e B. O primeiro
representara uma língua desconhecida e foi decifrado somente
em parte. O segundo representava a língua grega arcaica e foi
decifrado.
A LEITURA E A ESCRITA
NA ANTIGUIDADE
HAMURABI, da Babilônia entre os anos de 1792 e 1750 a.c.,
fundador do Império Babilônico. Seu código é o mais extenso
conjunto de leis conhecido da Antiguidade.
Os sistemas de escrita estabelecidos na história dos povos
nunca foram privilégio de ninguém. É falsa a idéia de que na
Antiguidade somente os sacerdotes, os reis ou pessoas de
grande poder dominassem a escrita e a usassem como um
segredo de Estado. Essa é uma idéia errada e estranha, que não
faz sentido algum, bastando lembrar como argumento que a
escrita é um fato social, é uma convenção que não consegue
sobreviver à custa de um punhado de pessoas. Os fatos
históricos também mostram o contrário. Quando um faraó enche
todas as paredes e até colunas com escrita e exibe isso
publicamente, não pensa, certamente, que essa seja a melhor
maneira de guardar um segredo de Estado. Ao ler o que ele
mandou escrever, ficamos sabendo que, às vezes, o texto tem
como interlocutor o próprio povo, súdito do monarca. Na
Mesopotâmia, Hamurabi mandou publicar em praça pública um
código de leis para que o povo soubesse sob quais leis vivia e
como deveria se portar em sociedade.
O que tem perturbado aqueles que acreditam ser a escrita um
privilégio das pessoas poderosas é o fato de terem chegado até
nós grandes obras da Antiguidade. Certamente essas obras
foram feitas por especialistas, assim como, hoje em dia, um livro
de engenharia é escrito por um engenheiro, um livro de medicina
por um médico, um livro de religião por um teólogo e assim por
diante. Isso não significa que somente engenheiros, médicos e
teólogos conheçam a escrita no mundo moderno.
Costumo dizer que quem inventou a escrita foi a leitura: um
dia, numa caverna, o homem começou a desenhar e encheu as
paredes com figuras, representando ~,
<13>
animais, pessoas, objetos e cenas do cotidiano. Certo dia
recebeu a visita de alguns amigos que moravam próximo e foi
interrogado a respeito dos desenhos. Queriam saber o que
representavam aquelas figuras e por que ele as tinha pintado
nas paredes. Naquele momento, o artista começou a explicar os
nomes das figuras e a relatar os fatos que os desenhos
representavam. Depois, à noite, ficou pensando no que tinha
acontecido e acabou descobrindo que podia "ler" os desenhos
que tinha feito. Ou seja, os desenhos, além de representar
objetos da vida real, podiam servir também para representar
palavras que, por sua vez, se referiam a esses mesmos objetos e
fatos na linguagem oral. A humanidade descobria assim que,
quando uma forma gráfica representa o mundo, é apenas um
desenho; mas, quando representa uma palavra, passa a ser uma
forma de escrita. A partir dessa descoberta, criar um sistema de
formas gráficas, figurativas ou não, para representar palavras ou
frases ou mesmo histórias, era um passo fácil de ser dado.
A história contada acima é obviamente fantasiosa e não
corresponde aos fatos reais, mas revela algo importante, que
não pode ser captado pelos documentos materiais da história,
porque pertence ao reino do pensamento. Provavelmente, a
necessidade de um sistema de escrita veio de situações vividas.
De acordo com fatos comprovados historicamente, a escrita
surgiu do sistema de contagem feito com marcas em cajados ou
ossos, e usado provavelmente para contar o gado, numa época
em que o homem já possuía rebanhos e domesticava os animais.
Esses registros passaram a ser usados nas trocas e vendas,
representando a quantidade de animais ou de produtos
negociados. Para isso, além dos números, era preciso inventar
símbolos para os produtos e para os nomes dos proprietários.
Nessa época de escrita primitiva, ser alfabetizado significava
saber ler o que aqueles símbolos significavam e ser capaz de
escrevê-los, repetindo um modelo mais ou menos padronizado,
mesmo porque o que se escrevia era apenas um tipo de
documento ou texto. Com a expansão do sistema de escrita, a
quantidade de informações necessárias para que alguém
soubesse ler e escrever aumentou consideravelmente, o que
obrigou as pessoas a abandonar o sistema de símbolos para
representar coisas e a usar cada vez mais símbolos que
representassem sons da fala, como, por exemplo, as sílabas.
Como há cerca de 60 tipos de sílabas diferentes ~,
<14>
por língua, em média, o sistema de símbolos necessários para
representar as palavras através das sílabas ficou
muito reduzido, fácil de ser memorizado e conveniente para a
difusão da escrita na sociedade.
O longo processo de invenção da escrita também incluiu a
invenção de regras de alfabetização, ou seja, as regras que
permitem ao leitor decifrar o que está escrito e saber como o
sistema de escrita funciona para usá-lo apropriadamente.
A escrita, pelo que se sabe hoje, começou de maneira
autônoma e independente, na Suméria, por volta de 3300 a.C. É
muito provável que no Egito, por volta de
3000 a.C., e na China, por volta de 1500 a.C., esse processo
autônomo tenha se repetido. Os maias da América Central
também inventaram um sistema de escrita independentemente
de um conhecimento prévio de outro sistema de escrita, num
tempo indeterminado ainda pela ciência, que talvez se situe por
volta do início da era cristã. Todos os demais sistemas de escrita
foram inventados por pessoas que tiveram, de uma maneira ou
de outra, contato com algum sistema de escrita.
Na Antiguidade, os alunos alfabetizavam-se aprendendo a ler
algo já escrito e depois copiando. Começavam com palavras e
depois passavam para textos famosos, que eram estudados
exaustivamente. Finalmente, passavam a escrever seus próprios
textos. O trabalho de leitura e cópia era o segredo da
alfabetização. Note que essa atividade está diretamente ligada
ao trabalho futuro que esses alunos irão desempenhar,
escrevendo para a sociedade e a cultura da época.
Muitas pessoas aprendiam a ler sem ir para a escola, já que
não pretendiam tornar-se escribas. A curiosidade, certamente,
levava muita gente a aprender a ler para lidar com negócios,
comércio e até mesmo para ler obras religiosas ou obter
informações culturais da época. A alfabetização, nesses casos,
dava-se com a transmissão de conhecimentos relativos à escrita
de quem os possuía para quem queria aprender. Aprender a
decifrar a escrita, ou seja, a ler, relacionando os caracteres às
palavras da linguagem oral, devia ser o procedimento comum.
Aqui, não era preciso fazer cópias nem escrever: bastava saber
ler. Para quem sabe ler, escrever é algo que vem como
conseqüência.
Com a escrita semítica aconteceu algo muito curioso e que,
sem dúvida alguma, foi proposital para facilitar o uso do sistema
de escrita e sobretudo o seu aprendizado, ou seja, o processo de
alfabetização.
<15>
Ao formar seu sistema de escrita, os semitas escolheram um
conjunto de palavras cujo primeiro som fosse diferente dos
demais. Como nenhuma palavra naquelas línguas começasse por
vogal, a lista ficou apenas com consoantes. Essa escolha foi urna
decisão muito importante porque reduziu os modelos de
silabários da época, da escrita cuneiforme, por exemplo, de cerca
de 60 elementos para apenas 21 consoantes. Para representá-las
graficamente, foram escolhidos hieróglifos egípcios cujo aspecto
figurativo lembrava o significado das palavras daquela lista. Por
exemplo, a primeira palavra da lista era 'alef, que significava
"boi", e o hieróglifo escolhido foi o que representava a cabeça de
um boi. Dessa maneira, a figura da cabeça do boi passou a
representar o som inicial da palavra 'alef, que era oclusiva glotal.
E assim com as demais palavras e suas respectivas consoantes.
Uma outra novidade decorreu desse fato: as palavras da lista
passaram a ser os nomes das letras que representavam a
consoante inicial dessas palavras. Além disso, esse nome passou
a ser a chave para se saber que som a letra representava: aief
representava a oclusiva glotal, por exemplo. A escolha de uma
lista de palavras como essa constitui o que se chama de princípio
acrofônico, ou seja, o som inicial do nome das letras é o som que
a letra representa: o desenho da cabeça de boi representa o som
da oclusiva glotal, porque o nome dessa letra é 'alef A segunda
letra era Beth, representada por um hieróglifo que retratava a
figura de uma casa; era usada para o som de B e significava
"casa". A terceira letra era o Daieth, que significava "porta" e
representava o som de D; tinha a forma gráfica da figura de uma
porta, tirada também de um hieróglifo egípcio, e assim por
diante.
O princípio acrofônico foi uma das melhores idéias que
apareceram nos sistemas de escrita: além de permitir uma
grande simplificação no número de letras, trazia de forma óbvia
como se devia proceder para ler e escrever. Uma vez identificada
a letra pelo nome, já se tinha um som para ela. Juntando os sons
das letras das palavras em seqüência, tinha-se a pronúncia de
uma dada palavra — o que, feitos os devidos ajustes, dava o
resultado final de sua pronúncia; e, pronunciando, o significado
vinha automaticamente.
Para se alfabetizar nesse sistema de escrita, bastava a pessoa
decorar a lista dos nomes das letras, observar a ocorrência de
consoantes nas palavras e transcrever esses sons consonantais,
usando o princípio acrofônico. Para escrever David, por exemplo,
bastava identificar as consoantes DVD, procurar, na lista de
letras, aquelas que começam com sons de D e V e escrevê-las.
Já os gregos, como precisassem fazer alguns ajustes nas
próprias consoantes, uma vez que, em grego, o conjunto de
consoantes era diferente daquele das línguas semíticas,
resolveram escrever não apenas as consoantes, mas também as
vogais, mantendo o mesmo princípio acrofônico. Assim, por
exemplo, a letra egípcia que representava pictograficamente a
cabeça de um boi foi usada, como vimos, pelos semitas para
representar uma consoante oclusiva glotal, e a letra recebeu o
nome da palavra que significava boi, ou seja, 'alef. Como em
grego não houvesse consoante oclusiva glotal, a letra 'alef
passou a representar a vogal A, agora denominada alfa.
Apesar de manter o princípio acrofônico, os gregos adaptaram
os nomes das letras semíticas para a sua língua. Para eles, a
alfabetização acontecia de maneira semelhante à dos semitas,
com a única diferença de que os gregos tinham de detectar na
fala não apenas as consoantes, mas também as vogais, para
escreverem alfabeticamente. Como sempre, a ortografia fixou a
forma de escrita das palavras, para evitar que falantes de
dialetos diferentes escrevessem as mesmas palavras de
maneiras diferentes, seguindo apenas a observação da própria
fala e o valor fonético das letras.
Quando os gregos passaram a usar o alfabeto, aprender a ler e
a escrever tomou-se urna tarefa de grande alcance popular. De
fato, pode-se mesmo dizer que na Grécia antiga havia as escolas
do alfabeto.
Os romanos assimilaram tudo o que puderam da cultura
grega, inclusive o alfabeto. Práticos como sempre, acharam
interessante o princípio acrofônico do alfabeto grego, mas
perceberam que não precisavam ter nomes especiais para as
letras: era mais simples ter como nome da letra apenas o próprio
som dela. Dessa forma, mantinha-se o princípio acrofônico e
ficava ainda mais fácil usar o alfabeto e se alfabetizar. Foi assim
que alfa, beta, gama, delta, épsilon, etc. transformaram-se em a,
bê, cê, dê, e, etc.
Os semitas, os gregos e os romanos nos deixaram alguns
"alfabetos": tabuinhas ou pequenas pedras ou chapas de metal
onde se encontravam todas as letras, na ordem tradicional dos
alfabetos. Na verdade, serviam ~,
<17>
de guia para as pessoas aprenderem a ler e a escrever, ou
mesmo quando fossem escrever. Tais documentos foram, por
assim dizer, as mais antigas "cartilhas" da humanidade: uma
cartilha que continha apenas o inventário das letras do alfabeto.
A alfabetização, na Idade Média, em geral ocorria menos nas
escolas do que na vida privada das pessoas: quem sabia ler
ensinava a quem não sabia, mostrando o valor fonético das
letras do alfabeto em determinada língua, a forma ortográfica
das palavras e a interpretação da forma gráfica das letras e suas
variações. Aprender a ler e a escrever não era uma atividade
escolar, como na Suméria ou mesmo na Grécia antiga. Nessa
época, como as crianças já não iam mais à escola, as que podiam
eram educadas em casa pelos pais, por alguém da família ou até
mesmo por um preceptor contratado para essa tarefa. Isso se
estende desde a época clássica latina até o século XVI d.c.
Como o alfabeto tinha no nome das letras o princípio
acrofônico, que é a chave de sua decifração, bastava o aprendiz
decorar o nome das letras para ter condições de iniciar a
decifração da escrita, a qual se completava quando, somando-se
os valores das letras, descobria-se que palavra estava escrita.
Isso era altamente facilitado pelo fato de os aprendizes serem
falantes da língua que estavam decifrando, o que ajuda em
muito as tentativas para descobrir, entre as várias
possibilidades, a leitura correta. O contexto lingüístico e as
ilustrações sempre ajudaram com informações complementares,
facilitadoras do processo de decifração. Vê-se, pois, que a
alfabetização pode perfeitamente acontecer fora da escola e do
processo escolar, podendo ser feita em casa se a isso as pessoas
se dedicarem. Ainda hoje, muitas pessoas aprendem a ler em
casa: algumas porque decidiram não esperar a escola chegar,
outras porque foram expulsas da escola e resolveram aprender
fora da tradição escolar. Um exemplo famoso desse último caso
é Thomas Edison.
Com o uso cada vez maior da escrita na sociedade e com a
produção crescente de livros escritos à mão (e depois
impressos), o alfabeto passou a ter um problema a mais: foram
surgindo formas variantes de representação gráfica das letras
(sem modificar o inventário do alfabeto). Isso fez com que uma
letra passasse a ser apenas um valor abstrato do alfabeto, que
podia ser representado por muitas formas gráficas, as quais,
agora, o usuário do sistema de escrita tinha de conhecer.
<18>
A primeira manifestação desse fato aconteceu quando das
letras capitais (as maiúsculas — que eram as únicas do sistema
de escrita latina) surgiram as letras minúsculas com forma
gráfica diferente das antigas, que passaram a chamar-se
maiúsculas. Isso aconteceu sem que as letras perdessem seu
valor fonético e sem que a ortografia das palavras mudasse.
Agora, o usuário da escrita precisava saber que 'A" e "a" são a
mesma letra e, portanto, "CASA' equivale a "casa". Isso trouxe
um problema novo e complicado para a alfabetização e para os
leitores, em geral. Não bastava saber o alfabeto, seu princípio
acrofônico e a ortografia: era preciso, ainda, saber fazer a
categorização correta das formas gráficas, reconhecendo a que
categoria pertence cada letra encontrada nas diferentes
manifestações gráficas da escrita. Nesse caso, a ortografia
mostrou uma vantagem a mais: além de servir para neutralizar a
variação lingüística na escrita, do ponto de vista fonético, passou
a ser o guia interpretativo do valor da variação gráfica das
próprias letras. Este último aspecto pode ser observado ainda
hoje, quando descobrimos (ou desconfiamos) que letra está
escrita, ao analisar o todo. Como sabemos, ainda através da
ortografia, quais letras devem compor aquela palavra, acabamos
nos convencendo de que determinada forma gráfica está
representando uma letra e não outra. Na escrita cursiva, esse
princípio é posto em prática a todo instante.
Notas
Thomas Alva Edison (1931), considerado um dos maiores
inventores do milênio, era americano de Milan Obio. Patenteou
1093 inventos, inclusive a lâmpada elétrica o gravador o
microfone e o projetor de cinema. Freqüentou a escola por
apenas três meses, sendo dispensado por ser "confuso de cabeça
e não conseguir aprender". Nunca mais voltou para a escola
tornando-se um autodidata com a ajuda da mãe, uma es-
professora.
O APARECIMENTO DAS CARTILHAS
Com o Renascimento (séculos XV e XVI) e, sobretudo, com o
uso da imprensa na Europa, a preocupação com os leitores
aumentou, uma vez que agora se faziam livros para um público
maior, e a leitura de obras famosas deixou de ser coletiva para
se tornar cada vez mais individual. Por isso, a preocupação com
a alfabetização passou a ter uma importância muito grande. A
primeira conseqüência disso foi o aparecimento das primeiras
"cartilhas". Nessa época, surgem as primeiras gramáticas das
línguas neolatinas, e esse foi outro motivo que levou os
gramáticos a se dedicarem também à alfabetização: era preciso
estabelecer uma ortografia e ensinar o povo a escrever nas
línguas vernáculas, deixando de lado cada vez mais o latim.
<19>
A seguir apresentamos um breve apanhado das primeiras obras de alfabetização
que surgiram na Europa entre os séculos XV e XVIII.
Jan Hus (1374-14 15) propôs uma ortografia padrão para a língua tcheca e,
juntamente com este trabalho, apresentou o ABC de Hus: um conjunto de frases de
cunho religioso, cada qual iniciando com uma letra diferente, na ordem do alfabeto.
Essa obra era voltada para a alfabetização do povo.
Em 1525, foi publicada na cidade de Wittenberg uma cartilha do ABC intitulada
Bokeschen vor leven ond kind, que continha o alfabeto, os dez mandamentos, orações
e os algarismos. Em 1527, Valentim Ickelsamer incluiu, numa obra semelhante, listas
de sílabas simples. Esse tipo de obra permanece com esquema semelhante até o século
XVII. Somente no século XVIII, apareceram as primeiras gravuras das letras iniciais,
por exemplo, a letra S com o desenho de uma cobra, a letra A com a figura de uma
escada, etc.
O educador tcheco Jan Amos Komensky, mais conhecido como Comênius (1592-
1670), fez de sua obra Orbis sensualispictus ("O mundo sensível em gravuras"),
publicada em 1658, um livro de alfabetização em que as lições vinham acompanhadas
de gravuras para ajudar e motivar as crianças para os estudos.
São João Batista de la Salle escreveu, em 1702, um regulamento para as escolas que
fundara, chamado "Conduite des é coles chrétiennes" ("Conduta das escolas cristãs"),
publicado em 1720. Com essa obra, pode-se ter uma idéia bem detalhada de como
eram as aulas naquela época, inclusive as de alfabetização. O ensino era dividido em
"lições", cada uma tendo três partes, uma destinada aos alunos principiantes, outra
aos médios e a terceira aos avançados. A primeira lição era a "tábua do alfabeto"; a
segunda, a "tábua das sílabas"; a terceira, o silabário; a quarta, o segundo livro, para
aprender a soletrar e a silabar; a quinta (ainda no segundo livro) cuidava da leitura
para quem já sabia silabar perfeitamente, etc. No terceiro livro, os alunos aprendiam
a ler com pausas.
Para ensinar ortografia, o professor mandava os alunos copiarem cartas-modelo e
documentos comerciais para aprenderem, ao mesmo tempo, coisas úteis para a vida.
Nesse modelo de ensino, aparece uma distinção clara entre ler e escrever. A leitura era
dirigida para as coisas religiosas; a escrita, para o trabalho na
<20>
sociedade. Esse modelo de escola partiu da França e teve
grande repercussão nas escolas dirigidas por religiosos em
outros países.
Após a Revolução Francesa, surgiu o Ensino Mútuo, que se
espalhou sobretudo entre povos anglogermânicos. O pedagogo
alemão José Hamel, em sua obra Ensino Mútuo, descreve o
método de alfabetização em detalhes. Os alunos aprendem em
aulas de 15 minutos, estudando exercícios fáceis e em coro ao
redor de lousas colocadas nas paredes da sala. O ensino é
nitidamente coletivo, sendo dado para classes e não mais com
atenção individual.
O ensino com muitos alunos numa classe acabou criando um
tipo de escola para as crianças, as escolas infantis, jardins de
infância ou escola maternal, iniciadas por Robert Owen (1771-
1858) em 1816 para os filhos dos operários de sua fábrica têxtil
de New Lanark, na Escócia. Essas escolas logo se espalharam e
passaram a cuidar da alfabetização das crianças. O pedagogo
alemão Friedrich Froebel (1782- 185 2) fundou o primeiro jardim
de infância (Kindergarten) em 1837.
A Revolução Francesa trouxe grandes novidades para a escola:
uma delas foi a responsabilidade com a educação das crianças,
introduzindo a alfabetização como matéria escolar. Alfabetização
popular nessa época significava a educação dos ricos que não
tinham ligação com a nobreza, ou seja, membros da burguesia.
Diante dessa nova realidade, as antigas cartilhas sofreram
uma modificação notável. Com a escolarização, o processo
educativo da alfabetização tinha de acompanhar o calendário
escolar. Como as antigas cartilhas fossem simples esquemas,
passaram a ser mais desenvolvidas. O estudo foi dividido em
lições, cada uma enfatizando um fato. O ensino silábico passou a
dominar o alfabético. O método do bá-bé-bi-bó-bu começava a
aparecer. Com poucas modificações superficiais, esse tipo de
cartilha iria ser o modelo dos livros de alfabetização.
A moda das escolas que ensinavam as crianças a ler e a
escrever espalhou-se pelo mundo. Apesar de a escola se
encarregar da alfabetização, os alunos que freqüentavam essas
escolas pertenciam a famílias com certo status na sociedade. O
povo simples e pobre continuava fora da escola. No Brasil, até as
primeiras décadas deste século, a escolarização da maioria das
<21>
pessoas que iam à escola pública não passava do segundo ou do
terceiro ano. Alguns documentos do final do Império mostram
que as Escolas Normais não
tinham alunos e o governo era obrigado a dar vantagens extras
àquelas pessoas que trabalhavam com alfabetização.
Naquela época, os professores das escolas
públicas eram em geral eleitos pela comunidade e tinham um
mandato determinado. Muitos professores
queixavam-se dos baixos salários, razão pela qual as poucas
escolas públicas lutavam para conseguir quem desse aulas.
CARTILHAS DA LÍNGUA PORTUGUESA
João de Barros (1496-1571) escreveu a gramática portuguesa
mais antiga, publicada em 1540. junto com
a gramática, publicou a Cartinha, que é um outro diminutivo
de "carta", ao lado de "cartilha". O nome
"cartinha" ou "cartilha" tem a ver com "carta", no sentido
de esquema, mapa de orientação.
A Cartinha de João de Barros trazia o alfabeto (em
letras góticas, que eram as da imprensa da época); depois,
vinham as "taboas" ou "tabelas", com todas
as combinações de letras, que eram usadas para escrever todas
as sílabas das palavras da língua portuguesa. Em seguida, havia
uma lista de palavras, cada
uma começando com urna letra diferente do alfabeto e ilustrada
com desenhos (como: nau, tesoira, etc.). Por último, vinham os
mandamentos de Deus e da Igreja
e algumas orações. João de Barros incluiu também um gráfico
que permitia fazer todas as combinações de letras das "taboas".
A Cartinha de João de Barros não era um livro para ser usado
na escola, uma vez que a escola naquela época não alfabetizava.
O livro servia igualmente para adultos e crianças. Para se
alfabetizar, a pessoa decorava
o alfabeto, tendo o nome das letras como guia
para sua decifração, decorava as palavras-chave, para pôr em
prática o princípio acrofônico, próprio do alfabeto, e depois
punha-se a escrever e a ler, interpretando,
nas "taboas" (ou tabuadas), as sílabas da fala
com a correspondente forma de escrita. Notem que a ortografia
não tinha vez, O método estava mais voltado
para a decifração da escrita do que escrever corretamente.
<22>
A cartilha do ABC, que há poucos anos se podia comprar até
em alguns supermercados ou em certas lojas de estações de
trem e rodoviárias, segue o mesmo esquema da cartinha de João
de Barros. Muitas pessoas que não podem ir à escola, ou que
saíram dela porque foram consideradas "burras" demais para
aprender, acabam aprendendo a ler através de livrinhos como
esse.
Uma cartilha famosa foi a de Antonio Feliciano de Castilho,
chamada Método portuguez para o ensino do ler e do escrever,
publicada em 1850. Essa obra merece um estudo detalhado. Uma
de suas características mais importantes é o emprego dos
chamados "alfabetos picturais ou icônicos", já usados na Grécia
antiga e muito em voga durante o Renascimento — na verdade,
até hoje aparecem nas cartilhas modernas.
Castilho apresentava também "textos narrativos" para ensinar
o uso das letras, fazendo urna lição para cada uma delas e para
os dígrafos. A segunda edição, de 1853, intitula-se Método
Castilho para o ensino rápido e aprazível do ler impresso,
manuscrito, e numeração e do escrever Obra tão própria para as
escolas como para uso das famílias.
<23>
Além do método de Castilho, outra cartilha portuguesa que
ficou muito famosa inclusive no Brasil foi a de João de Deus
(1830-1896), chamada Cartilha maternal ou arte de leitura.
Utilizava um modo de escrever letras com destaque dentro das
palavras, desenhando-as com hachuras; dessa forma, o aprendiz
se concentrava no que de novo era apresentado.
A cartilha de João de Deus apresentava já uma forte tendência
para o privilégio da escrita sobre a leitura, embora, no título da
obra, haja um destaque à leitura. Essa cartilha foi, sem dúvida, o
modelo para muitas outras que vieram depois e que chegaram
até os nossos dias.
Entre os livros que pertenceram a D. Pedro II, encontra-se, na
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, uma cartilha intitulada:
Manual explicativo do método de leitura denominado escola
brasileira, organizada por Francisco Alves da Silva Castilho (e
dedicada à classe dos professores de primeiras letras), publicada
no Rio de Janeiro em 1859. Já pelo título pode-se notar que essa
cartilha opõe o método do Castilho brasileiro ao do Castilho
português. O autor foi professor em Campo Grande e
alfabetizava as crianças pobres, passando depois a se dedicar à
alfabetização de adultos.
Ele chama a atenção para o fato de que se devem ler palavras
inteiras e não letras ou sílabas. Seu método começa sempre com
urna leitura coletiva, depois individual e, então, vêm os
exercícios de escrita, seguindo o método que ele denomina
"sintético/analítico".
<24>
No Brasil, depois da grande influência da Cartilha maternal
(1870), de João de Deus, apareceram inúmeras outras. Entre
elas há quatro tipos bem marcantes, com métodos e estratégias
diferentes de conduzir o processo de alfabetização.
O mais antigo (até a Cartilha maternal) foi chamado de
método sintético. Partia-se do alfabeto para a soletração e
silabação, seguindo uma ordem hierárquica crescente de
dificuldades, desde a letra até o texto. Com a Cartilha maternal,
começa o método analitico, que vai assumir importância maior
na década de 30, quando a psicologia passa a fazer testes de
maturidade psicológica e a condicionar o processo a resultados
obtidos nesses estudos. Um exemplo típico desse caso é a
Cartilha do povo (1928), de Lourenço Filho, e o famoso Teste
ABC (1934), do mesmo autor.
Com o passar do tempo, apareceram mais obras que seguiam
o método misto, ou seja, cartilhas que misturavam estratégias
do método sintético e do analítico. A cartilha Caminho suave
(1948), de Branca Alves de Lima, com o período preparatório, é
um bom exemplo. No final dos anos 90, têm surgido obras que se
classificam como construtivistas e que se propõem a aplicar os
ensinamentos da psicogênese da língua escrita de Emília Ferreiro
e Ana Teberosky ao processo de alfabetização programada
através de livro didático.
Um livro como Primeira leitura para crianças, de A. Joviano, é
um tipo de cartilha. Na introdução, o autor traz muitas
considerações a respeito da forma de alfabetizar.
Nota
Primeira leitura para crianças, de A. Joviano
João de barro leva no bico uma bola de barro para fazer o ninho
João leva uma bola de barro leva uma bola para seu ninho uma
bola vai no seu bico fazer bola de barro com o bico vai uma bola
no bico de João de barro
Leva João, o barro para fazer bola!
<25>
AS CARTILHAS E A ALFABETIZAÇÃO
As primeiras cartilhas escolares até cerca de 1950 ainda davam
ênfase à leitura. Achavam importante ensinar o abecedário. A
leitura era feita através de exercícios de decifração e de
identificação de palavras, por meio dos quais os alunos
aprendiam as relações entre letras e sons, seguindo a ortografia
da época. Havia um cuidado com a fala (e sobretudo com a
pronúncia), voltado para o padrão social, trazido para a escola a
partir de textos de autores famosos. Copiava-se muito, e os
modelos eram sempre os bons autores, ou seja, autores famosos
da literatura. Como acontecia com as gramáticas, a norma de
bem escrever era a imitação dos bons escritores.
A cartilha dá ênfase à escrita
A cartilha baseada na leitura passou, em seguida, por uma
modificação radical, já na década de 50, quando a escola
começou a se dedicar à alfabetização dos alunos pobres,
carentes de recursos materiais e culturais na vida familiar, que
empregavam dialetos diferentes da fala culta. A ênfase passou a
ser dada à produção escrita pelo aluno e não mais à leitura. O
importante, agora, era aprender a escrever palavras. A atividade
escolar deixou de privilegiar a aprendizagem e passou a cuidar
quase que exclusivamente do ensino — aquilo que o professor
deveria fazer em sala de aula. Em lugar do alfabeto, apareceram
as palavras-chave, as sílabas geradoras e os textos elaborados
apenas com as palavras já estudadas. As famílias de letras
passaram a ser estudadas numa ordem crescente de dificuldade.
Completadas todas as letras, o aluno começava seu livro de
leitura, agora também programado de maneira a ter dificuldades
crescentes, libertando aos poucos o aluno da cartilha e levando-
o a ler autores de textos infantis. Essa cartilha já trazia em si o
esquema de todas as outras cartilhas que apareceram depois,
até recentemente, caracterizando a alfabetização pelo estudo da
escrita e usando como técnica o monta-e-desmonta do método
do bá-bé-bi-bó-bu.
Parecia que ia dar certo, mas não foi bem assim. A cartilha
parecia um caminho suave, mas não era. E a escola percebeu
logo de início que muitos alunos tinham dificuldade em seguir o
processo escolar de alfabetização. E as reprovações na primeira
série tornaram-se freqüentes.
<26>
Até o advento do ciclo básico na década de 80, a média de
reprovação na primeira série era de cerca de cinqüenta por
cento. Apesar de todos os esforços para superar essa situação, a
média de reprovação sempre se manteve por volta de cinqüenta
por cento. Diante dessa realidade, muitos alunos abandonavam a
escola, não conseguindo superar essa barreira inicial; outros
desistiam logo depois, e apenas uns poucos, cerca de dez por
cento, conseguiam concluir a última série do ginásio (na época, o
correspondente à oitava série do primeiro grau, ou seja, do ciclo
II do ensino fundamental).
O manual do professor
Pode-se dizer que a experiência escolar da alfabetização com
cartilhas foi desastrosa. Os dados estatísticos mostram que a
escola não consegue alfabetizar mais de cinqüenta por cento de
seus alunos. A repetência e a evasão escolar foram sempre um
monstruoso fantasma para as crianças, pais e professores.
Diante de um quadro desolador e perturbador, a escola
começou a investigar mais uma vez o que estava errado com a
alfabetização escolar. A primeira coisa que saltava aos olhos era
o fato de as cartilhas serem livros esquemáticos demais, o que
podia dificultar a sua aplicação. Alguns professores podiam não
saber exatamente como usar aquele tipo de livro,
comprometendo assim o processo educativo. Era necessário,
pois, dar uma ajuda especial aos professores, uma orientação
mais pormenorizada, subsídios mais práticos para uso em sala
de aula. Foi assim que a cartilha ganhou um companheiro: o
manual do professor. As cartilhas que sobreviveram passaram a
ter seu manual do professor, com raríssimas exceções, como a
Cartilha Sodré.
Mesmo assim, o índice de repetência continuou assustador. Onde
será que residia o segredo de tanta reprovação na primeira
série? A cartilha era "logicamente" perfeita, o professor tinha
todos os subsídios necessários e prontos para aplicar o método
das cartilhas; então, a dificuldade deveria residir nas crianças.
Devia haver "algo" em certos alunos que não permitia que
aprendessem adequadamente.
Os manuais do professor apostam na ignorância deste e por
isso não passam de verdadeiros scrzpts para serem
representados nas salas de aula. Em vez de ensinar os conteúdos
básicos do trabalho do professor, partem ~,
<27>
de considerações muito vagas a respeito do valor da educação, e
vão, em seguida, dizendo o que o professor e o aluno devem
fazer, passo a passo. Num certo manual encontra-se até um
diálogo que o professor deve promover com seus alunos, sendo
determinada a fala de cada um. Se o aluno responder diferente,
o professor precisa ensiná-lo a responder o que está no manual,
senão a lição não funciona. Nenhum diálogo. porém, ensina o
que o professor deve fazer se não der certo. A única saída que se
pode imaginar é repetir tudo de novo, para ver se o aluno
aprende, o que é, obviamente, uma estultícia. Como o manual do
professor não resolveu o problema da repetência e a evasão de
grande parte dos alunos, a escola foi buscar socorro nas
universidades.
O período preparatório
A partir dos anos 50, a psicologia começou a fazer um enorme
sucesso nas universidades do Brasil. Muitos alunos pesquisavam
para teses, aplicando teorias que, muitas vezes, nem eles
próprios tinham entendido muito bem. E a escola tornou-se um
bom laboratório para esses pesquisadores. Sem formação
pedagógica, sem formação lingüística, os psicólogos começaram
a aplicar uma variedade de testes e chegaram à conclusão de
que a grande dificuldade de aprendizagem das crianças na
alfabetização devia-se ao fato de essas crianças repetentes
serem pessoas carentes. Carentes de alimentação na infância,
carentes de estímulos ambientais, necessários para que
pudessem desenvolver o conhecimento, carentes de emoções
que as motivassem para aquisição de cultura, enfim, carentes de
praticamente tudo. Assim, não podiam aprender. Para resolver o
problema, já que não era conveniente deixar essas crianças fora
da escola, foi inventado um período que precedesse a
alfabetização, o chamado período preparatório, no qual as
crianças seriam treinadas nas habilidades básicas até ficarem
"prontas" para se alfabetizarem. Sem "prontidão" não se podia
realizar um processo de alfabetização eficiente.
Os psicólogos inventaram, então, uma série de coisas
estranhas para as crianças fazerem antes da alfabetização: fazer
curvinhas para cá e para lá, completar figuras, fazer bolinhas,
dizer se uma caixa de sapato é maior do que uma caixa de
fósforos ou não, localizar o gatinho à direita e à esquerda da
menina numa figura cm que ela aparece de frente e de costas,
fazer o ~,
<28>
coelhinho ir da esquerda para a direita numa linha curva até
chegar à toca, etc. Além da cartilha e do manual do professor,
surgiu agora o livro de "exercícios de prontidão".
CAGLIARI, 1997c, p. 193224. > Num artigo intitulado "O
príncipe que virou sapo", discuti alguns aspectos mais
importantes da teoria do "déficit" das crianças ou, como alguns
chamam, "a síndrome da dificuldade de aprendizagem". A
discussão é longa, mas as conclusões são muito evidentes. A
universidade foi responsável pelo mal que causou à educação
com o período preparatório e os exercícios de prontidão,
convencendo os professores de algo que a academia achava
cientificamente correto, mas que era um grande equívoco. Os
testes aplicados às crianças foram mal elaborados, envolvendo
questões de linguagem, sem levar em conta o conhecimento dos
conceitos lingüísticos envolvidos, sobretudo da noção de
variação lingüística. O que aqueles psicólogos pensavam da
linguagem era algo muito diferente do que os lingüistas dizem a
respeito da linguagem.
Em meio a tantos equívocos, os resultados só podiam ser
igualmente equivocados. Por trás de tudo, o que se nota é um
grande preconceito contra a pobreza e as crianças menos
favorecidas. Os assim chamados "pré-requisitos lógico-formais"
da teoria da prontidão são semelhantes aos argumentos de
preconceito racial, baseados na teoria da carência sociocultural e
na teoria da superioridade racial. Mais antigamente, as mulheres
tinham sido discriminadas de maneira semelhante, com mil
teorias acadêmicas, que pretendiam provar que a mulher era um
ser inferior porque tinha um volume de massa cerebral menor do
que o homem.
As crianças pobres têm mais coisas para aprender, ao entrar
na escola, do que as crianças ricas, por causa da história de vida
de cada uma e da natureza das nossas escolas. Isso, no entanto,
não deve ser confundido com falta de capacidade mental,
perceptiva, motora, psicológica, ou seja lá o que for. As crianças
pobres passaram a ser tachadas de deficientes, excepcionais e
carentes, simplesmente porque falavam ou escreviam errado,
segundo a opinião desses acadêmicos. A questão central desse
problema é essencialmente lingüística. Ao analisar com os
devidos cuidados lingüísticos os fatos de linguagem que a escola
diz que atrapalham o progresso dos alunos na alfabetização,
logo se verifica que esses alunos "incapazes" são, na verdade,
falantes de variedades lingüísticas estigmatizadas pela
sociedade.
<29>
Como a escola não aceita isso e não pode dizer que tem
preconceito contra a pobreza, começou a achar razões mais sutis
para disfarçar seus preconceitos.
Fazendo curvinhas, ninguém aprende a escrever nem a ler.
Para não escrever espelhado, de nada adianta ficar fazendo
exercício sobre coordenação motora direita e esquerda. Aliás,
algumas pessoas se confundiram com relação a isso, justamente
por causa dos exercícios de prontidão, uma vez que nunca
sabiam se direita e esquerda era para ser respondido em função
de quem vê ou do objeto visto: a direita de quem vê é a esquerda
do objeto visto, e vice-versa. Perguntar a uma criança se uma
caixa de sapato é maior ou menor do que uma caixa de fósforos
é uma ofensa. As crianças respondem a perguntas dessa
natureza porque, apesar de acharem a brincadeira de mau gosto,
são sempre muito dóceis e condescendentes. Perguntar a uma
criança: "O que é dentro?" é uma maldade, porque o próprio
professor não sabe responder e, quando responde, simplesmente
exemplifica, o que, sem dúvida alguma, não é uma resposta à
pergunta que fez à criança. Se um professor disser a uma
criança: "Dentro da cozinha que fica dentro da escola tem uma
geladeira e dentro do congelador tem um sorvete dentro de uma
caixa amarela... você pode pegar que é todo seu" e deixar, de
fato, a criança fazer o que lhe foi dito, não há criança que não
saiba o que quer dizer "dentro de". Por coisas como essas (e
tantas outras...) é que o período preparatório não passa de um
grande equívoco pedagógico e psicológico. Está tudo tão errado,
que a melhor solução é abandona-lo por completo.
Apesar do enorme esforço em aperfeiçoar a "prontidão" nos
mínimos detalhes, o índice de cinqüenta por cento de reprovação
na primeira série manteve-se mais ou menos inalterado. Aquela
imensa parafernália não servia para resolver o mais importante,
que era a aprendizagem da leitura e da escrita pelas crianças.
Em vez do período preparatório e dos tradicionais exercícios
de prontidão, o professor pode fazer inúmeras outras atividades
mais inteligentes, que contribuam de fato para o processo de
alfabetização. Uma delas, de valor inestimável, é propor aos
alunos que façam muitos desenhos livres. A sofisticação e a
riqueza dessa atividade são tantas que por si só valem tudo o
que se pensava alcançar com o tradicional período preparatório.
<30>
Nota
De acordo com a nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da
Educação (1997), cabe aos estados decidir pela forma de
promoção dos alunos: com ou sem reprovação. Os estados de
Minas Gerais e São Paulo pretendem abolir a reprovação e
introduzir a promoção automática no ensino fundamental.
Algumas idéias, mesmo plenamente justificáveis, demoram a ser
absorvidas pelos órgãos oficiais, por causa muitas vezes de uma
discussão mal conduzida. No Brasil é evidente a confusão que se
costuma fazer entre avaliação (necessária sempre) e promoção
(que deveria ser automática). Veja a respeito as entrevistas A
escola não deve reprovar ninguém" (CAGLIARI, 1988b) e
Avaliação e promoção" (CAGLIARI, 1 996e).
ALFABETIZAÇÃO HOJE
Apesar de todas as interferências recentes no processo de
alfabetização, a prática escolar mais comum em nossas escolas
ainda se apóia na cartilha tradicional (a cada ano com nova
roupa e maquiagem). Quando o professor diz que não adota a
cartilha, continua usando o método da cartilha, fazendo ele
próprio o que antes vinha nos livros didáticos. Contudo, há cada
vez mais um número crescente de professores que estão
conduzindo um processo de alfabetização diferente do método
das cartilhas, procurando equilibrar o processo de ensino com o
de aprendizagem, apostando na capacidade de todos os alunos
para aprender a ler e a escrever no primeiro ano escolar e
desejando que essa habilidade se desenvolva nas séries
seguintes, até chegar ao amadurecimento esperado pela escola.
Cada vez mais professores estão se dedicando seriamente ao
próprio objeto de estudo e ensino, que é a linguagem. Velhas
idéias, porém básicas, como ensinar o alfabeto, as relações entre
letras e sons, os diferentes sistemas de escrita que temos no
mundo em que vivemos, a ortografia, estão voltando a ter
importância na alfabetização.
Por outro lado, o "entulho" que se acumulou com o tempo,
enchendo a alfabetização de ridículos exercícios de prontidão e
coisas semelhantes, está sendo eliminado aos poucos da prática
escolar. Mesmo o "entulho gramatical" que se cristalizou na
primeira série, como o estudo de categorias gramaticais,
número, gênero, grau, etc, tem sido removido, trazendo para o
trabalho de alfabetização um esforço concentrado na
aprendizagem da escrita e da leitura como decifração da escrita
e do mundo através da linguagem.
Num esforço de muitas pessoas, a começar pelo estado de
São Paulo, conseguiu-se introduzir na escola o "ciclo básico",
juntando a primeira e a segunda série. A idéia inicial era ter mais
dois ciclos posteriores, um incorporando a terceira, a quarta e a
quinta série, e outro, a sexta, a sétima e a oitava série. Desse
modo, o aluno seria submetido a uma avaliação de promoção ao
final de cada ciclo. Infelizmente, só foi posto em prática o cicio
básico, o que deu a entender a muita gente que o objetivo era
apenas mudar as estatísticas de reprovação dos alunos da
primeira série, uma vez que agora a promoção era automática.
Muitos outros equívocos apareceram juntamente com o ciclo
básico, alguns ~,
<31 >
motivados pelos próprios órgãos oficiais da educação. Apesar
disso tudo, com ele foi possível realizar uma grande discussão
sobre a situação da alfabetização em nossas escolas e introduzir
novos estudos e novos modos de trabalho, com grandes
vantagens para a educação como um todo. Além disso, foi
possível tratar a alfabetização sem o medo da reprovação, levar
adiante um trabalho de ensino e de aprendizagem que não tinha
mais a nota como objetivo a ser alcançado, mas a formação, a
instrução, enfim, a educação.
ALFABETIZAÇÃO E ESCOLA
A história da alfabetização e das cartilhas fala por si. Aqui,
como em outros campos, vemos como a escola veio para
complicar tudo. A alfabetização que poderia (e deveria) ser um
processo de construção de conhecimentos que se faz com certa
facilidade, tornou-se um pesadelo na escola. A razão principal é
a atitude autoritária da instituição escolar. A autoridade escolar
funciona melhor depois que os alunos estão "domados". Porém,
nas primeiras séries, as crianças resistem mais porque ainda não
aprenderam a se submeter a tudo o que ouvem e vêem. A
individualidade ainda é uma marca forte da personalidade das
crianças, mas, infelizmente, já não se pode dizer o mesmo dos
alunos das últimas séries e sobretudo de níveis mais altos de
escolaridade.
Enquanto a alfabetização escolar ficou presa à autoridade de
mestres, métodos e livros, que tinham todo o processo
preparado de antemão, constatou-se que muitos alunos que não
trabalhavam segundo as expectativas dos mestres, métodos e
livros eram considerados incapazes e acabavam de fato não
conseguindo se alfabetizar.
Por outro lado, as propostas de alfabetização que começaram
a valorizar a criança e seu trabalho criaram um clima mais calmo
e tranqüilo em sala de aula, uma melhor interação entre
professor e aluno, proporcionando condições mais saudáveis
para que o processo de alfabetização se realizasse.
Os órgãos da administração pública encarregados da educação
interferiram muito no trabalho escolar, quer ditando as regras da
burocracia, quer, sobretudo, ditando ~,
<32>
as normas pedagógicas. Este é o país onde tudo é feito por meio
de leis e decretos e, desse modo, todo o mundo tem uma escusa
para o próprio fracasso, achando que tudo está bem e correto
quando a burocracia está em dia. Como as escolas de formação
de professores para o magistério, guiadas por estranhas idéias
oriundas das faculdades de educação, não conseguem dar a
formação necessária para os professores, os órgãos públicos
encarregados da educação passaram a dar periodicamente
"pacotes educacionais", de acordo com os modismos da época; é
o método sintético, analítico, fônico, global, lúdico,
psicopedagógico, freinet, semiótico, construtivista, lingüístico,
etc. Os professores, atormentados com tantas mudanças, vítimas
da própria incompetência, foram experimentando todos os
"pacotes". Essa loucura serviu mais para criar nos professores
uma aversão a tudo o que é novo, mesmo que traga
contribuições realmente importantes para seu trabalho. Houve
tantos "pacotes" e tantas decepções em tão curto prazo, que
hoje muitos professores já não sabem mais distinguir o que vale
e o que não vale, o que é certo e o que é duvidoso, o que é
verdade e o que é engodo. Se sua competência já era muito
limitada, agora além de tudo ficou confusa, diante de tantas
"experiências educacionais". Alguns, novatos no trabalho ou
ingênuos por natureza, ainda acham que a última moda é a
panacéia para todos os males do passado e a esperança do
futuro.
CAGLIARI, 1992c, MAGNANI, 1993. e O que de fato está por
trás de toda essa história é a
presença de um grande número de professores alfabetizadores
que nem sequer são capazes de avaliar o que
vêem diante de seus olhos, quer se trate de um "pacote
educacional, quer se trate de um aluno que não aprende o que
eles ensinam. Um professor que não sabe avaliar com precisão
se um método é bom ou não,
dando as razões de sua conclusão, é um professor mal-
preparado, incompetente. A culpa em grande parte vem das
escolas de formação e dos "pacotes" educacionais mas em parte
vem também da atitude comodista do próprio professor, que não
se interessou pessoalmente em estudar o que não lhe foi
ensinado.
Essa competência está ligada ao conhecimento de muitos
aspectos da sua atuação como educador e como
professor alfabetizador. Estudar pedagogia, metodologia
psicologia é importante. Mas ninguém se forma um bom
alfabetizador só com essas disciplinas. O fundamental é saber
como a linguagem oral e escrita são e
<33>
os usos que têm. Resumindo, a competência técnica do
professor alfabetizador se apóia em sólidos e profundos
conhecimentos de lingüística e dos sistemas de escrita (de
matemática e de ciências inclusive...). Esses conhecimentos,
aliados aos de pedagogia e psicologia, fazem dele um
profissional que sabe exatamente o que faz e por que faz de um
jeito e não de outro. Se formássemos de maneira correta nossos
professores alfabetizadores, teríamos, neste país, em pouco
tempo uma outra realidade em termos de analfabetismo. Hoje,
não só existem milhões de pessoas analfabetas, como também
pessoas que foram, de fato, mal alfabetizadas. Nenhum método
educacional garante bons resultados sempre e em qualquer
lugar; isso só se obtém com a competência do professor.
O Brasil precisa de uma modificação profunda na educação e,
em especial, na alfabetização. Para isso necessita de professores
com melhor formação técnica. As escolas de formação dedicam
muito tempo às matérias pedagógicas, metodológicas e
psicológicas e não ensinam o que devem a respeito da
linguagem; nem sequer têm cursos de lingüística (ou de
aritmética). Como um professor pode lidar corretamente com o
fenômeno lingüístico, se ele nunca estudou lingüística? Ninguém
alfabetiza só com metodologia e psicologia, como também não
alfabetiza somente com lingüística. A escola precisa saber dosar
todos esses conhecimentos para poder atuar de maneira correta.
Nada substitui a competência do professor e, enquanto nossas
escolas continuarem a formar mal nossos professores, a
alfabetização e o processo escolar como um todo continuarão
seriamente comprometidos.
Nota
Não se pode encerrar mesmo um sucinto relato da história da
alfabetização sem mencionar a importância da figura de Paulo
Freire. O chamado Método Paulo Freire dirigido sobretudo para a
alfabetização de adultos — foi aplicado em larga escala em
outros países, além do Brasil como outros grandes educadores
que se dedicaram à alfabetização. Paulo Freire trabalhou mais
com a intuição o bom senso e menos com rigor científico ao
tratar de fatos da linguagem. Sua obra mais importante está
voltada principalmente para questões ligadas à política
educacional e à pedagogia em geral.
<34>
2
O ensino e a aprendizagem: os dois métodos
A questão metodológica não é a essência da educação, apenas
uma ferramenta. Por isso, é preciso ter idéias claras a respeito
do que significa assumir um ou outro comportamento
metodológico no processo escolar. É fundamental saber tirar
todas as vantagens dos métodos, bem como conhecer as
limitações de cada um.
Como o assunto é muito vasto e complexo, e sobre ele já
existe considerável literatura, apresentaremos apenas um
esboço geral dos pontos mais importantes para a discussão que
faremos em seguida. Existe, no mercado, uma quantidade
enorme de livros e publicações
a respeito de métodos de ensino (raramente
de métodos de aprendizagem) que, num esforço para defender
ou atacar certos procedimentos adotados pelas escolas, acaba
confundindo seus leitores, os quais, em meio a tantas posições
diferentes, ou mesmo contraditórias, já não sabem mais no que
acreditar. Daí o descrédito de alguns professores na educação,
fruto da indignação metodológica, oriunda dos pacotes
educacionais e das contradições metodológicas a que são
submetidos.
Às vezes, é preciso voltar às origens, aos princípios básicos, às
coisas mais simples e claras, rever a história,
retomando uma visão correta do fenômeno. Para isso, é preciso
rever alguns pontos gerais a respeito de ensino, aprendizagem e
métodos.
Por incrível que pareça, existe uma confusão muito grande
entre ensino e aprendizagem em meio às pessoas
que lidam com educação. O mais comum é se levar em
consideração apenas o ensino, supondo que a aprendizagem
ocorre automaticamente, como fruto inevitável
do ensino, o que é um erro grosseiro. Muitos
aceitariam a diferença sem problemas, na teoria, mas a prática
mostra que a confusão é visível e está presente a cada passo.
CAGLIARI, 1990; PATTO, 1990; PATTO 1997
O QUE É ENSINAR, O QUE É APRENDER
Ensinar é um ato coletivo: pode-se ensinar a um grande
número de pessoas presentes numa aula ou numa conferência,
etc. Quem ensina procura transmitir informações
que julga relevantes, organizadas do modo
que lhe parece mais razoável, para que seus ouvintes aprendam
algo que deseja transmitir.
<36>
Aprender é um ato individual: cada um aprende segundo seu
próprio metabolismo intelectual. A aprendizagem não se
processa paralelamente ao ensino. O que é importante para
quem ensina, pode não parecer tão importante para quem
aprende. A ordem da aprendizagem é criada pelo indivíduo, de
acordo com sua história de vida e, raramente, acompanha passo
a passo a ordem do ensino.
No ensino, é muito importante o que se diz; na aprendizagem,
o que se faz, mesmo quando o fazer significa dizer. Aprender não
é repetir algo que foi ensinado, mas criar algo semelhante, a
partir da iniciativa individual de quem aprende. Quando
simplesmente se repete um modelo, não ocorre exatamente uma
aprendizagem. Ela vai aparecer somente quando a pessoa, por
ação própria, conseguir realizar algo de acordo com as
expectativas alheias.
A aprendizagem é sempre um processo construtivo na mente e
nas ações do indivíduo. O ensino não constrói nada: nenhum
professor pode aprender por seus alunos, mas cada aluno deverá
aprender por si, seguindo seu próprio caminho e chegando onde
sua individualidade o levar. Por isso, a aprendizagem será
sempre um processo heterogêneo, ao contrário do ensino, que
costuma ser tipicamente muito homogêneo.
Escolas que se apegam demais ao processo de ensino, em
detrimento do processo de aprendizagem, gostam de manter
classes homogêneas, fazendo remanejamentos, sempre que
oportuno e possível, para facilitar o processo de ensino,
desconsiderando totalmente a natureza do processo de
aprendizagem, entre outros fatores pedagógicos.
Não é porque o professor ensina, que um aluno
automaticamente aprende. Aprender depende muito da história
de cada aprendiz, de seus interesses, de seu metabolismo
intelectual. A maneira como aquilo que é ensinado passa a ser
algo aprendido é do foro íntimo de cada indivíduo. Obrigá-lo a
agir diferentemente é uma violência contra sua liberdade e
racionalidade. Obrigar alguém a aprender alguma coisa é
"lavagem cerebral". A aprendizagem precisa partir de uma
opção individual. O fato de se ter um professor, uma classe, uma
turma de alunos não significa que se tem uma escola. É essencial
saber o que faz o professor e o que fazem os alunos, o que
compete a cada um, o que cada um espera do outro. Sem uma
visão clara e correta da atividade escolar, corre-se o risco
<37>
de se colocar em prática um processo de educação totalmente
equivocado como, aliás, vem acontecendo muito freqüentemente
neste país.
Por outro lado, não é porque um professor não ensina algo,
que um aluno necessariamente não aprende tal ponto. Há muitas
maneiras de aprender: ir à escola é uma forma prática e
organizada (pelo menos deveria ser) de aprender "as coisas da
escola". Nada impede, todavia, que se aprenda com os pais, com
um colega, por iniciativa própria, olhando os livros ou mesmo
refletindo sobre o mundo. Afinal, antes da escola, as pessoas
aprendiam como? Nossa cultura ocidental atual criou urna
dependência exagerada das instituições escolares e seus
métodos. As atividades de sala de aula estão voltadas para o que
o professor faz ou deixa de fazer e deixam pouco espaço para
que os alunos aprendam de outra maneira que não por
intermédio do professor. Um aluno pode ensinar ao outro, os
alunos podem usar sua criatividade para procurar explicações e
soluções para os problemas escolares, refletir, pensar, tentar
fazer, refazer, etc. São coisas que os alunos são capazes de fazer
por iniciativa própria, se a escola criar condições de estudo que
facilitem esse tipo de atividade. Infelizmente, nossas escolas
reduziram-se cada vez mais à sala de aula e ao processo de
ensino dirigido pelo professor.
O PROFESSOR COMO EDUCADOR
Alguns professores têm muita dificuldade em olhar para seus
alunos e enxergar o que se passa com eles. Na maioria das
vezes, sabem apenas aplicar o que aprenderam nas escolas de
formação ou em livros, sem levar em conta se aquele é o
momento adequado para o que pretendem fazer e se aqueles
alunos se enquadram ou não no caso que querem aplicar. A
insensibilidade dos professores, da escola e dos órgãos públicos
com relação ao processo de aprendizagem é patente e
geralmente catastrófica para o ensino.
O que mais falta na educação deste país é a figura do
educador. Há muitos professores e profissionais da educação,
mas poucos educadores. Falta o professor educador que em
primeiro lugar se preocupa em conhecer seus alunos e só depois
diz a eles, de maneira clara, honesta e adequada, aquilo que os
educa, de fato, para
<38>
a vida. A educação não se conhece a si mesma: quantas vezes
se vê um órgão público tomar decisões obrigando todos os
professores a agir de determinada maneira, sem respeitar a
individualidade de cada um, seu modo de ser e de trabalhar.
Exigir competência e honestidade profissional dos professores é
algo de que nunca se vai abrir mão, mas isso não significa que se
deva fazer com os professores o que alguns professores fazem
com seus alunos: dizem e nem querem saber o que o outro
pensa, como se toda ordem que vem de cima fosse sempre
perfeita e inquestionável.
Está na hora de devolver a educação aos educadores, está na
hora de exigir daquelas pessoas que lidam com educação uma
competência maior. A educação, no Brasil, é tão ineficaz que
nem consegue gerenciar adequadamente a si própria, O que falta
não é dinheiro: falta competência em todos os níveis para
melhorar a educação.
Infelizmente, não é raro encontrar nas nossas escolas
professores analfabetos por opção, ou seja, professores que,
depois de formados, pararam seus estudos. Não compram mais
nenhum livro e raramente escrevem algo que não seja sua
obrigação diária de sala de aula. Há muitos professores que
passam anos e anos lendo e escrevendo as mesmas coisas,
porque acham que aprenderam assim e assim devem ensinar.
São professores que sabem ler e escrever, mas não usam esse
conhecimento. a não ser para repetir todos os anos as mesmas
práticas educativas.
A evidência maior da incompetência da educação neste país
encontra-se na falta de um projeto de educação. Muito se fala
sobre o assunto, mas, em vez de um projeto de educação
estruturado e de valor, tem-se um amontoado de leis e
regulamentos, juntamente com pacotes metodológicos que
alguém ou um grupo de pessoas decide impor a todos os demais.
O grande trabalho educativo deve voltar às mãos do
professor. Ele precisa ter liberdade de ação para que se possa
exigir dele competência e desempenho profissional à altura dos
ideais da verdadeira educação. Sem o professor, não há escola,
e, sem escola, não há educação de massa, de que o Brasil tanto
precisa. A educação vive mergulhada numa burocracia
sufocante. Ninguém parece confiar mais no professor. Todo
mundo quer dizer o que um professor deve ou não fazer. Em vez
disso, dever-se-ia dar mais liberdade e exigir mais
responsabilidade.
<39>
DOIS MÉTODOS
A educação não pode viver só do ensino, caso em que o
professor vem para a sala de aula e despeja em seus alunos um
longo discurso a respeito de um determinado ponto, como
também não pode viver só da aprendizagem, deixando os alunos
descobrirem tudo por si mesmos e livres para fazer o que bem
entenderem. Deve haver um equilíbrio entre os dois tipos de
atividade: o professor deve ensinar, caso contrário, as escolas
não precisariam existir, pois cada um aprenderia por iniciativa
própria. Por outro lado, o professor não pode ser o dono da
educação, aquele que tem tudo sob seu comando. É preciso que
haja também uma grande participação do aprendiz, porque afinal
de contas é ele quem precisa aprender e mostrar que aprendeu
e, sobretudo, saber que aprendeu. O aluno só pode ter certeza
de que de fato aprendeu algo, quando, por iniciativa própria,
conseguir utilizar adequadamente os conhecimentos que são
objeto do seu processo de aprendizagem.
Por essas razões, entre outras, pode-se dizer que a educação,
na sua essência, tem dois métodos apenas, com muitas
variantes: um baseado no ensino e outro na aprendizagem. A
verdadeira prática educativa serve-se de ambos, na medida
adequada. A exclusão pura e simples de um ou de outro torna o
processo falho, às vezes com conseqüências sérias.
Nos estudos pedagógicos, a metodologia do ensino ocupa um
lugar muito importante e em conseqüência disso tem-se
produzido uma vasta literatura a respeito. Talvez por isso
mesmo, algumas pessoas tenham certa dificuldade de perceber o
essencial em meio à complexidade dos detalhes. Por essa razão,
apresenta-se, a seguir, um esboço geral e muito simplificado do
que vem a ser um método de ensino. O objetivo aqui vai além da
sala de aula e pretende mostrar que toda atividade de ensino e
de aprendizagem, no seu extremo, tem as características básicas
apresentadas abaixo.
Em primeiro lugar, podemos dizer que todos os métodos, no
fundo, baseiam-se em um dos dois métodos básicos, que vou
chamar de método de ensino (método 1) e método de
aprendizagem (método 2).
Há uma tipologia de métodos que, considerando os seus
processos de argumentação, costuma classifica-los de uma
maneira ou de outra, como, por exemplo, método dedutivo,
método indutivo, método mecanicista,
<40>
método construtivista, método global, método fônico, etc.
Toda essa discussão pode, de certo modo, ser derivada das
características daquilo que chamamos aqui de método 1 e
método 2. São as variantes das duas vertentes principais.
Como o enfoque neste livro é a alfabetização, o que se dirá a
respeito desses dois métodos estará voltado para o processo
escolar de alfabetização. No entanto, o método 1 e o 2 servem
para qualquer atividade de ensino e de aprendizagem.
DUAS CONCEPÇÕES DE UNGUAGEM
É importante levar em conta ainda o fato de que, na prática,
esses métodos dependem muito da concepção de linguagem que
as pessoas têm: professor e aluno, quem ensina e quem
aprende. A linguagem exerce, na alfabetização, uma importância
fundamental. Na verdade, nesse momento, tudo gira em torno
dela. Por isso, dependendo da maneira como uma pessoa
interpreta o que a linguagem é, como funciona, que usos tem,
pode-se ter um determinado comportamento pedagógico e
métodos diferentes na prática escolar. Inversamente, pode-se
ver com clareza na prática em sala de aula, nos métodos que a
escola usa, qual é a concepção de linguagem subjacente.
Por exemplo, toda cartilha (independentemente do método
que lhe seja atribuído pelo autor ou pelos entendidos) baseia-se
exclusivamente no método do ensino. Mesmo atividades que
devem ser feitas pelos alunos, devem seguir um modelo prévio,
transmitido como ensino. Não conheço, em nenhuma cartilha,
um espaço real dedicado ao processo de aprendizagem. O aluno
procura sempre responder, com o que faz, de acordo com as
expectativas do autor da cartilha ou do professor "que passa a
lição". Essa atitude revela uma concepção de linguagem na qual
o falante se vê diante de um impasse, tendo de decidir entre o
certo e o errado. A linguagem apresenta-se como algo "que
precisa ser corrigido". Ora, na vida real, quando as pessoas
usam a linguagem, não têm esse tipo de preocupação: elas,
simplesmente, pensam e falam o que quiserem, do jeito que
acharem mais conveniente. Nenhum falante acha que fala
errado, a não ser na escola, ou por influência da educação
escolar.
<41>
Outro exemplo: o método fônico considera que uma criança,
aprendendo a reconhecer e a analisar os sons da fala, passa a
usar o sistema alfabético de escrita de maneira melhor. Essa
idéia revela uma concepção de linguagem segundo a qual uma
pessoa "fala melhor" quando monitoriza os sons que pronuncia,
o que é falso. Quem fala "tchia" em vez de "tia" e aprende a
escrever "tia", continua falando "tchia" e nem se dá conta da
diferença, porque, quando falamos, nos preocupamos mais com
as idéias que queremos transmitir do que com os sons das
palavras que irão revelar nossos pensamentos. Há, ainda, o
problema da ortografia, que não atrapalha quem fala "tchia" e
tem de escrever "tia", mas que irá atrapalhar, e muito, quem fala
"drento" e tem de escrever "dentro"; trata-se de regras
lingüísticas diferentes.
Outra concepção de linguagem muito facilmente detectada
através da prática escolar é aquela que considera que a função
mais importante da linguagem, senão a única, é a comunicação.
A linguagem também serve para comunicar, mas os lingüistas
estão cada vez mais convencidos de que a comunicação não é a
função mais importante da linguagem, nem talvez a mais usada.
Atrás de notícias encontram-se censuras, ocorrem tomadas de
posição, transmite-se uma cosmovisão, além de outros
pressupostos e de conotações que tornam o literal da
comunicação algo secundário, quando não um pretexto para a
manipulação das idéias do ouvinte. Quanto de enganação, de
mentira e de outras coisas pouco louváveis existe numa simples
enunciação ou numas poucas palavras escritas que encontramos
pelo mundo e pela vida... Basta refletir um pouco, que essas
verdades logo se revelam. Ora, a escola não pode ser ingênua e
pensar que a linguagem é essencialmente comunicação. Juntar
idéias e sons — formando a linguagem — não é a mesma coisa
que "comunicar". A comunicação é uma função importante da
linguagem, porém, esta não se reduz apenas a comunicar.
O MÉTODO 1- VOLTADO PARA O ENSINO
A situação inicial
O método 1 volta-se exclusivamente para o processo de
ensino. Nesse caso, a situação inicial do aprendiz
é interpretada como um começo absoluto de tudo,
<42>
o marco zero de uma caminhada, uma página em branco onde
se vai começar a escrever sua vida escolar. No começo do ano, o
professor programa o que vai ensinar, sem sequer conhecer seus
alunos, porque o que vai ensinar é um começo absoluto que não
precisa de pré-requisito, é um ponto de partida considerado ideal
para todos os alunos, independentemente da maneira de ser e de
saber de cada um.
Essa atitude é até mais comum nas outras séries do que na
alfabetização, porque os alfabetizadores já aprenderam, na
prática, que não podem ser tão cegos assim. Nas séries mais
adiantadas da escola, essa é a regra geral. Alguns professores
acham mesmo que a atitude mais adequada é "nem querer
saber" o que os espera, que alunos vão ter. Os alunos que se
virem, dizem.
Nesse quadro, os envolvidos acham que ninguém pode
reclamar do professor, porque ele começou do começo e de
maneira igual para todos, dando chances iguais para todos.
Obviamente, isso é muito conveniente para quem ensina, mas é
má pedagogia.
A técnica
A técnica do método 1, na alfabetização, consiste na atividade
do desmonta-e-monta da linguagem, em todos os seus níveis, de
todas as formas possíveis. O método 1 considera que a melhor
maneira de ensinar alguém é desmontando e remontando, ou
montando coisas novas a partir de pedaços. Nesse caso, parte-se
sempre de um modelo exemplar, por exemplo, uma palavra-
chave. Depois, desmonta-se a palavra em "pedaços" (ou
sílabas). Em seguida, desmontam-se as sílabas em letras (ou
sons). Feito isso, a palavra é remontada. Assim, o professor
espera que o aluno aprenda como funciona a escrita e que
relações tem com a linguagem oral. Com alguns pedaços de
palavras, pode-se descobrir que é possível formar palavras
novas, diferentes das palavras-chave. Por exemplo,
desmontando BATATA, tem-se BA, TA, TA. Com esses pedaços,
pode-se formar as palavras "Tatá", "bata" e "taba". As sílabas
geradoras (o bá-bé-bi-bó-bu) nada mais são do que a
organização dos pedaços das palavras, extraídos das palavras-
chave, para os alunos construírem palavras conhecidas e
palavras novas.
Alguns alunos vão seguindo as pegadas do professor e acabam
fazendo tudo direitinho. Outros pensam que pegaram o "espírito
da coisa" e passam a inventar formas
<43>
estranhas de escrever, segundo o professor. Por exemplo,
escrevem "cavalolalelilolu" ou "tapabapa", mostrando que
aprenderam as sílabas geradoras, no primeiro exemplo, e que
sabem juntar os pedaços de palavras, formando "palavras
novas", no segundo caso. Aprendem o jogo da escola, mas não
sabem de seus limites e usos reais, porque o método não ensina
isso. Alguns alunos unem palavras aparentemente sem sentido,
porque seguem apenas as regras do jogo, que diz que, juntando
dois pedaços de palavras, forma-se uma palavra nova. Como não
conhecem todas as palavras da língua (todos nós aprendemos
palavras novas todos os dias...), as crianças ligam os
pedacinhos, achando que o professor, que sabe tudo, saberá
qual o significado de uma palavra como "tapabapa", como sabia
antes o que significava "taba", que a criança nunca tinha ouvido.
Por mais estranho que pareça, alguns professores, diante de
fatos como esse, vão direto ao aluno e perguntam "O que
significa tapabapa?" O aluno fica assustado com a pergunta:
afinal de contas, quem deve saber essas coisas é o professor,
não ele. Ele apenas faz a lição, isto é, liga os pedacinhos de
letras para formar palavras. A pergunta do professor faz com
que o aluno sinta-se mais perplexo ainda, porque além de tudo
aquilo que não entendeu, o professor ainda quer que ele se sinta
culpado por um erro que ele não sabe onde está nem por que
aconteceu. E, se aconteceu, foi mais por culpa do professor do
que dele.
Desmontar e montar as palavras da língua não é um uso
natural nem da linguagem oral nem da linguagem escrita,
apenas uma estratégia de ensino escolar. Na linguagem oral,
falamos tudo junto, fazendo pausas apenas em alguns lugares.
Não falamos fazendo pausa após cada palavra. Na escrita,
separamos as palavras com um espaço em branco por razões
ortográficas, não porque falamos desse modo.
Na verdade o método pretende associar os pedacinhos das
palavras aos sons, para que os alunos aprendam a ler. Ora, como
a ortografia esconde todas as variações dialetais, logo se
percebe que essa técnica causará confusão na cabeça das
crianças. Ninguém pode esperar das crianças (na verdade de
nenhum falante) que saibam se o que estão remontando com o
bá-bé-bi-bó-bu forma uma palavra aceitável ou não na língua.
Por outro lado, muito raramente um professor abre o jogo com
os alunos e diz que não basta ligar os pedacinhos, mas que é
preciso ir além e checar se a palavra que foi
<44>
formada existe, de fato, na língua e se sua forma de escrita
está de acordo com as normas ortográficas.
A base: o já dominado
Com o método 1, parte-se do zero e vão-se acrescentando
informações, uma após a outra, as quais o aprendiz precisa
dominar. Dominado ou aprendido algo, passa-se ao conteúdo
seguinte, que deve ser aprendido. Aprender é dominar, ou seja,
devolver a quem ensinou o conteúdo ensinado. A base desse
método é, pois, o conhecimento já dominado. Para isso, decorar
é fundamental, sobretudo decorar de modo a repetir um modelo
dado e que será cobrado como expectativa de resposta. A
repetição é a prática mais comum para se dominar qualquer
conhecimento. Portanto, o aprendiz é levado a repetir a lição até
dominá-la, e, enquanto não provar que já o faz, repetindo-a
corretamente, irá fazer tantas tentativas quantas forem
necessárias.
Não é raro encontrar professor que vive se queixando dos
alunos, dizendo que sempre ensina as mesmas coisas e os
alunos não aprendem. Esses professores mostram que usam o
método 1. Nesses casos, nunca se questiona o ensino, mas tão-
somente o comportamento do aprendiz. O método 1 não é capaz
de aceitar que o mais importante não é dominar, mas saber
aplicar um conhecimento para realizar uma tarefa. Nem sempre
reproduzir um modelo garante a aprendizagem, embora garanta,
sim, uma réplica de algo que o aprendiz pode fazer sem saber
exatamente o que está acontecendo.
Na alfabetização, alguns alunos são exímios repetidores de
lições que dominam sem saber o que significam.
Conseqüentemente, quando precisam aplicar o conhecimento de
maneira criativa e individual, acabam revelando sua ignorância,
produzindo escritas absurdas. Por exemplo, alguns alunos
copiam corretamente o que lhes é solicitado, fazem sem erros os
ditados das palavras já dominadas, escrevem pequenas frases
em que só aparecem palavras "já dominadas", mas, quando se
vêem diante de palavras cuja escrita lhes é desconhecida, ou não
fazem nada, ou escrevem simplesmente amontoados de letras ou
de sílabas geradoras. Esses alunos foram ensinados pelo método
1.
Alunos que fazem isso raramente chegam a descobrir como o
sistema de escrita funciona, como se decifra algo escrito para ler
e, conseqüentemente, não chegam
<45>
a se alfabetizar. Como a escola não pode viver só do que é
considerado dominado, logo chega o dia em que o professor se
esquece disso e leva os alunos a aplicarem o que ele achava que
tinha ensinado e que o aluno tinha aprendido (fazia tudo tão
direitinho), e o resultado é uma enorme decepção para ele e,
principalmente, para o aluno.
O uso da memória
O uso da memória, nas atividades escolares, é muito
importante e não deve ser confundido com a prática de promover
o ensino baseando-se no já dominado. A memorização é
fundamental no processo de aprendizagem, mas não pode ser
um truque, como acontece no método 1. Neste, o já dominado
apenas revela um modelo repetido. No processo de
aprendizagem, a memorização faz parte do processo de reflexão,
trazendo para a prática do aprendiz todos aqueles
conhecimentos necessários para que ele tome as decisões
corretas.
Às vezes, alguns professores, querendo fugir desse esquema,
acabam desterrando a memorização do processo pedagógico
escolar. Outras vezes, convencem-se, graças a argumentos
falaciosos que ouvem em congressos, palestras ou lêem em
livros, de que a memória não tem vez na aprendizagem, e de que
aprender é entender e não decorar. São frases feitas de grande
efeito e de pouco sentido. É preciso não confundir o memorizar
que vem da reflexão de um simples repetir que vem de um
exercício vazio de repetição controlada, como acontece com a
prática pedagógica do método 1. São duas realidades muito
diferentes. Memorizar é fundamental; repetir padrões do já
dominado não é uma prática escolar saudável.
A hierarquia: do fácil ao difícil
O método 1 tem uma concepção de ensino/aprendizagem
segundo a qual tudo deve ser hierarquizado, isto é, disposto
numa ordem necessária, para que o ensino e a aprendizagem
caminhem suavemente. Obviamente, essa hierarquia precisa ir
dos elementos mais fáceis para os mais difíceis, como se
esperaria de alguém que tem bom senso. Por essa razão, o
método 1 gosta de atribuir valores às diferentes tarefas que a
escola realiza: o professor precisa saber o que deve ensinar
<46>
primeiro, caso contrário poderá pôr a carroça na frente dos
burros.
Será que as coisas são mesmo assim, quando se trata do
processo de ensino e de aprendizagem? Na verdade, para o
processo de ensino, até certo ponto, a organização hierarquizada
é uma atitude esperada, e caberá ao professor seguir uma certa
ordem quando for ensinar. No entanto, essa ordem depende
muito mais do jeito de cada professor trabalhar do que da
verdade das coisas que ensina. E difícil, e talvez seja mesmo
impossível, estabelecer uma hierarquia dos elementos que
constituem um saber, mesmo em sua forma sistematizada,
utilizada pela educação nos currículos escolares. É claro que
alguém precisa aprender a ler, para poder ler um livro ou
escrever uma carta sem a ajuda de outra pessoa; é claro que
alguém precisa aprender aritmética para poder fazer cálculos
corretamente. No entanto, tais afirmações são tão gerais, que
não se aplicam ao que se quis dizer acima.
A questão verdadeira reside no fato de a maioria dos
professores e a totalidade das cartilhas considerarem, por
exemplo, que a letra X é intrinsecamente mais difícil do que a
letra A. Isso acontece porque partem do pressuposto que
escrever palavras em que ocorre a letra X é mais difícil do que
escrever palavras em que ocorre a letra A. Ledo engano. Na
verdade, esses professores estão levando para a prática
pedagógica algo que é muito peculiar a eles, e não ao processo
de alfabetização.
Para uma criança que não sabe ler nem escrever, qualquer
palavra é igualmente difícil, não há nenhuma palavra fácil. Para
quem duvidar disso, aconselho estudar árabe, por exemplo.
Como a escrita dessa língua é muito diferente da nossa, achamos
difícil escrever, no começo, qualquer palavra. Somente depois
que aprendemos algumas tantas coisas é que vamos descobrir
que certas palavras (por serem mais familiares a nós) são mais
fáceis de escrever do que outras. Do mesmo modo vamos achar
mais fácil escrever certas letras do que outras, porque erramos
menos a ortografia com elas. A letra X só é difícil para quem já
sabe escrever e tem uma certa prática, mas ainda se confunde
com a grafia de certas palavras.
A dificuldade do alfabetizando é de outra natureza. Para ele,
tudo é difícil. Escrever "casa" é tão difícil quanto para o adulto
alfabetizado escrever "ojeriza", "estender" ou "extensão".
<47>
As dificuldades dos alunos vão mais longe do que em geral
imaginam os professores. O aluno que fala "drentu", "bardi",
"andano" ("dentro", "balde", "andando") tem uma dificuldade
muito séria para acertar a forma ortográfica dessas palavras, e
essa dificuldade jamais é suspeitada pelos autores de cartilhas e
pelos professores.
Alguns professores acham que a letra X é mais difícil porque
pode referir-se a vários sons, como o som de S ("externo") e o
de SS ("próximo"), o que é um absurdo, uma vez que há o
mesmo som S em palavras como "externo" e "próximo". O que
há de diferente é o uso das letras na escrita. De acordo com as
regras de nossa ortografia, poderíamos escrever "esterno", mas,
se escrevêssemos "prósimo", o som da letra S, nesse caso, seria
o de Z, por estar entre duas vogais. É preciso, pois, separar fatos
da fala dos da escrita ortográfica. Além do som de S, a letra X
pode ter ainda os sons de KS ("táxi"), de CH ("lixo") e de Z
("exame").
Essas mesmas pessoas que reclamam das dificuldades do X
esquecem-se de que uma letra como A pode apresentar muito
mais casos de sons diferentes do que a letra X, dependendo do
dialeto e de outros fatores lingüísticos. Por exemplo, um aluno
fala "fizeru", "acharu", e esse som de U precisará ser escrito
com as letras A e M: "fizeram", "acharam". Falamos "todamiga"
e temos de saber que há um A que não foi pronunciado, mas que
deve ser escrito: "toda amiga". Dizemos "rapais" ou "rapaich",
mas, na hora de escrever, suprimimos o I: "rapaz". Por outro
lado, em palavras como "caixa", é comum não se pronunciar o I
que vem junto com o A, mas não se pode deixar de escrevê-lo. E
a lista é longa. Esses casos, que realmente são armadilhas para
os alunos, jamais entram nas considerações daqueles que acham
que precisam ensinar primeiro A e bem depois X, porque A é
mais fácil do que X, tanto para quem ensina, quanto para quem
aprende.
Na verdade, em todos os ramos do saber, é praticamente
impossível dizer o que é mais fácil ou mais difícil: é fácil aquilo
que se sabe e é difícil o que não se sabe; o resto não faz sentido.
Muitas pessoas contam que descobriram como realmente
funcionavam noções básicas de geometria e de álgebra somente
quando aprenderam a fazer cálculos avançados. Isso não quer
dizer que fossem maus alunos antes, mas precisaram ir além,
estudar coisas que aparentemente são consideradas complexas
para aprenderem coisas aparentemente
<48>
mais simples e mais fáceis. Fáceis e difíceis "aparentemente",
mas não de fato.
Controle rígido e avaliação
O método 1 necessita de um controle rígido e absoluto sobre
tudo o que é feito, cobrando a mais rigorosa e constante
avaliação. Como o ensino é completamente hierarquizado,
desenvolvendo-se passo a passo, do mais fácil para o mais difícil,
e exigindo que o aprendiz progrida dominando o que foi
ensinado, é preciso verificar a todo instante se realmente o
aprendiz dominou o que deveria dominar, para que o ensino
possa dar um passo adiante. A avaliação, aqui, contempla
apenas o que foi ensinado e constitui-se do que o aluno precisa
dominar e repetir. Se não houver uma avaliação rigorosa e
constante, o aluno pode revelar dificuldade mais adiante,
atrapalhando a programação do professor e a ordem natural das
coisas, prevista pelo método 1.
Se o aluno revelar que não dominou algum ponto, o método 1
manda que se volte atrás e obrigue o aluno a repetir tudo de
novo, até demonstrar que já dominou, mesmo que tenha, no
final do ano, de repetir o ano todo, voltando àquele zero inicial,
àquele ponto de partida em que o aluno é encarado como uma
folha de papel em branco.
Na avaliação, o que conta são os erros e não os acertos. Como
o acerto é considerado previsível dentro da perspectiva do já
dominado, são os erros que irão mostrar que o aluno precisa
parar e recuperar o que ainda não dominou. O problema desse
método de ensino é o erro do aluno, não o que ele aprende. Isso
é tão ridículo, sobretudo para as crianças na alfabetização, que
elas não conseguem entender como a escola pode ser tão
injusta. O aluno escreve urna história de dez linhas e, só porque
cometeu dez errinhos, ganha nota cinco. E as outras coisas que
escreveu certo, as outras trezentas e oitenta letras que foram
escritas corretamente, e o resto que fez e fez bem, não conta? Já
que errou uma palavra com J ou G, precisa fazer cópias para
dominar a lição estudada, desconsiderando-se todas as demais
ocorrências de J e de G que o aluno escreveu corretamente?
O método 1 é implacável com a avaliação: errou, tem de voltar
atrás e repetir a lição. É pela importância exagerada e
equivocada dada a esse tipo de avaliação, que os ditados, na
alfabetização, passaram a ser uma das
<49>
atividades mais importantes e freqüentes. Ditado só serve
mesmo para avaliar o processo de ensino, fazendo aparecerem
erros, e em nada contribui para a aprendizagem. O aluno não
aprende fazendo ditados. Não é pensando que ele vai descobrir,
naquele momento, como se escreve uma palavra. O ditado, na
verdade, visa a detectar apenas se o aluno já dominou ou não o
que se pede nas lições.
A fixação da aprendizagem
Uma vez constatado que o aluno sabe algo, que já dominou
um certo conteúdo programático, o método 1 manda que se faça
imediatamente a fixação da aprendizagem. A fixação da
aprendizagem é um reforço na atividade de ensino, cujo objetivo
é fazer com que o já dominado fique sempre consciente na
mente do aprendiz, como naquele momento da avaliação.
Nesse caso, em geral, a cópia é a maneira mais comum com
que o método 1 trabalha a fixação da aprendizagem, dando-se
preferência àquele tipo de cópia repetitiva e longa. Mais
raramente, acontece uma revisão geral para que o conteúdo
novo seja avaliado e fixado dentro do conjunto geral de
conhecimentos a que pertence. Repetir e repetir é o que manda o
método 1.
O que fazer com o erro
No método 1, o erro serve para indicar que o aluno não
dominou algum conhecimento nas avaliações. Fora isso, o erro é
um problema que o método não sabe resolver. Por isso, a
solução que adota é ignorá-lo. Não se discute e muito menos se
analisa o que está errado na tarefa do aluno. Simplesmente
ensina-se o certo. Há, na tradição pedagógica de nossas escolas,
sobretudo nas classes de alfabetização, a estranhíssima idéia de
que não se pode mostrar o erro ao aluno, discutir o erro, porque
isso levaria o aluno a aprender o errado, tendo maiores
dificuldades futuras para fixar o certo.
Não deixa de ser curioso ouvir uma afirmação muitíssimo
comum segundo a qual a professora não pode deixar o aluno
diante de uma escrita errada, porque assim ele fixa o erro e
depois não consegue mais corrigir. Por que as crianças fixariam
apenas o que está errado, não fazendo o mesmo com o que está
certo? Não há aí uma certa discriminação? Alguns professores
apagam o que os alunos escrevem errado e colocam o certo,
<50>
na santa e ingênua crença de que escondendo o erro e
mostrando apenas o certo, seus alunos aprenderão melhor.
Aprender pelos efeitos
O método 1 faz com que o aluno aprenda pelos efeitos, não
pelas causas. Se o aprendiz precisa reproduzir o modelo e
corresponder às expectativas do professor que ensina, não
precisa saber por que acertou ou errou: basta acertar e está tudo
em ordem. O método garante a certeza ao aluno de que seguindo
as instruções, passo a passo, irá chegar ao resultado esperado.
Se acontecer qualquer imprevisto, o aluno não contará com
nenhuma ajuda específica que o faça sair do impasse, porque o
método não prevê nada fora daquilo que foi efetivamente
ensinado e copiado pelo aprendiz. O aluno não pensa no que faz,
simplesmente se deixa guiar por um processo de tentativa-e-
erro. Obviamente, a escola não tem sido tão rígida assim, na
prática, mas infelizmente também não tem estado muito longe
dessa realidade.
Um bom método de adestramento
Como se pôde observar no quadro descrito anteriormente com
tintas um pouco carregadas, o método 1 é fortemente
mecanicista, dando tudo pronto para o aluno, esperando que ele
siga sempre o modelo proposto. Se tentar inovar, corre o risco
de errar e não saber mais retomar o caminho suave e tranqüilo
das coisas já dominadas. O método 1 é, na verdade, um
excelente meio de adestramento e em geral funciona bem com
animais que precisam dominar certas habilidades para
desempenhar certas tarefas, agindo sempre de um único e
mesmo modo. Porém, as crianças são racionais, e pensam o
tempo todo, mesmo quando a escola se esquece de que são
seres humanos e, portanto, escravos da própria racionalidade.
Tudo o que o ser humano faz precisa de um comando de seu
pensamento: isso é sublime e, ao mesmo tempo, terrível. O
método 1 não é bom para os seres humanos porque somos
dotados da racionalidade e refletimos a todo instante. Quando
fazemos isso, temos toda a liberdade do mundo de acharmos o
que quisermos, seja lá a respeito do que for, com que idade for,
na rua, na sala de aula, na igreja ou em qualquer lugar.
<51>
Refletir pode desviar o esperado pelo método 1, conduzindo
os alunos por outros caminhos não previstos e atrapalhando a
vida do professor e da escola. Os alunos que usam mais de sua
própria reflexão se dão pior quando são submetidos a um
processo de ensino baseado no método 1. Eles se dão melhor
com o método 2, que será comentado logo a seguir.
O MÉTODO 2— VOLTADO PARA A
APRENDIZAGEM
A base: a reflexão na aprendizagem
O método 2 é o oposto do método 1 em tudo e caracteriza-se
por estar voltado para o processo de aprendizagem. Leva em
conta o fato essencial de que o aprendiz como um ser racional,
vai juntando conhecimentos adquiridos pela vida toda, a partir
do momento em que nasce. Para isso, usa sua capacidade de
refletir sobre todas as coisas. O método 2 é, portanto, centrado
na reflexão, oposto ao método de condicionamento.
O método 2 concebe a linguagem como expressão do
pensamento; o falante a usa de maneira intencional para
interagir com os outros. Assim a comunicação é apenas um
aspecto desse processo.
A situação inicial
Num método baseado na aprendizagem e na reflexão, a
situação inicial de cada aprendiz é diferente, porque cada um
tem a sua própria história de vida e de conhecimentos. Como diz
uma velha recomendação da metodologia, deve-se partir sempre
da realidade da criança. Mas o que significa, na prática, partir da
realidade da criança? A escola, nesse aspecto, tem trilhado
caminhos muito estranhos, não raramente achando que a
realidade dos alunos é a "tábula rasa". Conhecer a realidade e a
história do aluno é fundamental para uma prática educativa que
respeite o aprendiz como um ser humano em sua plenitude.
As classes de alfabetização formam-se necessariamente com
um conjunto de alunos com histórias de vida diferentes, sendo,
pelas contingências práticas, classes heterogêneas. Uns sabem
algumas coisas, outros sabem outras; alguns já aprenderam
algumas coisas
<52>
próprias da escola, outros não. Algumas crianças tiveram pré-
escola e aprenderam os rudimentos da leitura e da escrita,
outras nunca estudaram nada. Algumas crianças aprendem
coisas em casa, têm lápis, papel, livros, outros nunca tiveram
nada disso. Cada aluno tem urna história, e o método 2 vai levar
isso em consideração.
Como ficar sabendo qual é a realidade de cada um? Em vez de
fazer avaliações coletivas — ditado, prova, etc. —, o professor
precisará interagir com seus alunos, conversar com eles, deixar
que cada um expresse o que sabe, à sua maneira, ou que se cale,
porque ficar quieto também é um comportamento revelador. O
professor precisará conversar sobre todos os assuntos, inclusive
a respeito dos conhecimentos que a escola se propõe a ensinar
aos alunos, para que a aprendizagem e o ensino sejam tarefas
compartilhadas entre professor e alunos, através dos mais
variados modos de interação. Entre outras coisas, o alfabetizador
conversará com os alunos, logo no início, a respeito da história
de cada um, da comunidade onde vivem, dos ideais de vida, da
escola, da família e até a respeito do que os alunos acham que a
escrita e a leitura são nas suas mais variadas formas. Ouvir os
alunos é necessário para conhecer a realidade de cada indivíduo,
ponto de partida do processo de aprendizagem de cada um.
O professor pode ainda pedir para os alunos fazerem desenhos
ou rabiscos numa folha de papel para ver como usam o lápis e o
papel. Se alguém quiser, poderá escrever. Se alguém quiser
copiar algo, também poderá fazê-lo, mostrando suas habilidades.
Em suma, desde o começo do ano, o professor precisa incentivar
os alunos a falar e trabalhar com lápis e papel. Isso permitirá a
ele fazer uma análise dos conhecimentos e habilidades dos
alunos, de seu comportamento lingüístico oral e escrito, porque
essa é a melhor maneira de ficar logo conhecendo a realidade de
cada um.
O processo de ensino, segundo o método 2, levará em conta o
fato de que cada aluno é diferente do outro, e que, portanto, o
ensino não poderá ser somente coletivo, mas deverá em grande
parte estar voltado para as peculiaridades de cada aluno ou de
grupos de alunos que necessitem do mesmo tipo de assistência
por parte do professor. Isso não significa que haverá somente
aulas particulares. A aula é coletiva, mas numa sala de aula
podem acontecer concomitantemente coisas
<53>
diferentes, sobretudo em relação às atividades realizadas pelos
alunos. O professor deverá dizer coisas de interesse comum,
voltando-se para toda a classe, e outras de interesse particular,
nos momentos adequados, ensinando uma questão ou outra a
um ou mais alunos, de maneira especial.
Nota
Tábula rasa: expressão de origem latina que era usada para
significar que deixar limpa a tábula revestida de cera em que se
escreviam mensagens breves que não deveriam permanecer
escritas durante muito tempo. Hoje, a expressão refere-se à falta
absoluta de conhecimento sobre determinado assunto.
A técnica: explicações adequadas
Como a base do método 2 é a reflexão, a técnica a ser usada
se apóia nas explicações adequadas, transmitidas ao aprendiz
nos momentos oportunos. A aprendizagem depende
crucialmente de entender o que se quer saber, e quanto melhor e
mais abrangente for esse entendimento, maior e melhor será o
processo de aprendizagem.
Entender é ter um conjunto de informações que expliquem a
natureza, a função e os usos do conhecimento. Isso não se
adquire linear nem automaticamente, pelo simples fato de se ter
ouvido alguém falar dessas coisas, mesmo que as palavras sejam
familiares e o texto, claro e correto. Cada um reage de uma
maneira individual à construção do conhecimento, cada um tem
um caminho próprio, cada um atribui valores próprios, muito
individuais, aos elementos do conhecimento que constrói no
processo de aprendizagem. Tudo isso precisa ser levado em
conta, porque faz parte intrínseca da natureza humana e,
portanto, de cada indivíduo.
Dar explicações adequadas requer do professor um trabalho
preliminar de descobrir a necessidade de esclarecimento de cada
aluno e da classe como um todo. Para isso, o professor precisa
ter um preparo profissional de alta qualidade: competência para
analisar todas as situações de trabalho escolar que enfrenta na
sala de aula, e para tomar decisões corretas como educador e
como professor, dizendo aos alunos o que é necessário, da
maneira adequada.
Infelizmente, muitos professores são, na realidade, mal
formados e, conseqüentemente, incompetentes, a ponto de
preferirem usar o método 1, que vem com toda a programação
curricular já pronta nos livros didáticos. No método 1, a
competência do professor pode ficar camuflada pela aplicação da
lição, retirada de um manual qualquer. No método 2, a
competência do professor é posta em xeque a cada momento.
Dependendo de sua atitude, fica logo muito claro a todos
(inclusive às crianças) o fato de um professor ser um
profissional
<54>
competente ou não. O professor tem de procurar saber a razão
de tudo o que seus alunos fazem ou deixam de fazer, caso
contrário não saberá o que dizer.
O professor não pode ter medo de dizer a verdade aos seus
alunos. As crianças também gostam de saber as coisas como elas
são, também gostam de ser tratadas seriamente. E fazer isso não
é tratá-las como adulto; porém, o respeito sem preconceitos é
fundamental. Alguns professores, por razões muito equivocadas,
acham que precisam explicar tudo metaforicamente para os
alunos. Essa é uma atitude preconceituosa para com a
capacidade mental das crianças.
O professor como mediador
Costuma-se dizer que o professor é um mediador entre o
saber e o aluno. Ser um mediador, aqui, é ajudar o aprendiz a
construir seu conhecimento, passando a ele as informações
adequadas, explicando o que tem de ser explicado. Essas
explicações não devem referir-se apenas ao conteúdo
programático organizado pelo professor, de acordo com um
currículo, o que na prática representa a atividade de ensino.
Devem, sobretudo, estar voltadas para os trabalhos que os
alunos realizam por iniciativa própria, como atividade específica
de aprendizagem. É dessa maneira que o processo de ensino,
através da mediação do professor, interfere no processo de
aprendizagem levado adiante pelo aluno. Quando o aluno erra
alguma coisa, ou não sabe realizar uma tarefa, precisa ouvir do
professor uma análise do caso e receber uma explicação
adequada para entender o que fez ou deixou de fazer, a fim de
agir corretamente nesses casos e fazer progredirem seus
conhecimentos.
O que fazer com o erro
No método 1, quando um aluno erra, o professor volta atrás e
repete tudo de novo. No método 2, quando uma explicação não
serviu para levar um aluno a corrigir um erro ou a fazer
determinada tarefa, o professor precisa procurar uma outra
maneira de explicar. Não há burrice maior do que a daqueles
professores que dizem que ensinam sempre as mesmas coisas e
os alunos não aprendem.
Procurar explicações adequadas requer saber abordar um
problema de muitas maneiras, de ângulos diferentes, seguir
caminhos alternativos. Se, apesar de todo
<55>
o esforço e competência do professor, ele ainda constatar que
determinado ponto não está sendo devidamente entendido por
um aluno (ou por uma classe), o que ele deve fazer é passar para
o ponto seguinte, sem remorso, sem sentimento de culpa, sem
preconceito contra a capacidade de aprendizagem dos alunos.
Muitas vezes, para se entender algo aparentemente simples é
necessário ter informações complementares, que o professor
obviamente tem, mas o aluno não. Freqüentemente, é preciso ter
conhecimentos pressupostos ou até mesmo saber relacionar
coisas já conhecidas de uma forma determinada para que o novo
conhecimento possa ser assimilado e aplicado.
Se o professor marcar passo diante das dificuldades, o
impasse pode se estabelecer, com sérias conseqüências para o
processo escolar. Nessas circunstâncias, o melhor que ele tem a
fazer é partir para outra, porque um dia, com ou sem as
explicações do professor, os alunos acabarão aprendendo aquela
questão deixada incompleta ou mal entendida.
Quando os adultos discutem coisas sérias, é muito comum que
fatos semelhantes aconteçam: tem-se a nítida impressão de que
o interlocutor entendeu tudo errado, e, no debate, a questão é
tratada de todas as maneiras possíveis; o resultado acaba sendo
o mesmo: cada um sai pensando exatamente o que pensava
antes, mesmo diante da evidência estrondosa de uma bela
argumentação. Sem dúvida alguma, as pessoas não se
convencem apenas graças a uma bela argumentação. Por que, na
escola, as coisas deveriam ser diferentes?
A concepção de aprendizagem
A concepção de aprendizagem do método 2 baseia-se nas
decisões que o aprendiz toma, levando em conta as explicações
adequadas que recebeu. Isso faz com que ele se aventure no
mundo do saber e procure a maneira correta de dar o passo
seguinte, como conseqüência de tudo o que aprendeu até o
momento. Aqui está o grande segredo da aprendizagem: o
aprendiz não só aprende o ponto, mas aprende a aprender. A
verdadeira aprendizagem proporciona ao aluno generalizar o
processo de tal maneira que a intermediação do professor vai,
aos poucos, cedendo lugar à sua própria independência e
competência para buscar as explicações adequadas por si
mesmo e a construir seu
<56>
próprio saber. Quanto mais cedo o aprendiz chegar a essa
autonomia, melhor será para ele: aprenderá melhor, mais
rapidamente, mais dados. O método 1 fixa o aprendiz à lição sob
estudo, ao currículo, ao programa, ao que o professor manda
fazer. Isso segura o ritmo de muitos alunos os quais, apesar de
submetidos ao método 1, na prática agem por conta própria,
seguindo o método 2.
Para que o aprendiz possa tomar suas decisões, é preciso que
a escola tenha um espaço especial em sua programação
destinado a esse tipo de atividade. Na alfabetização, é
fundamental que os alunos produzam trabalhos espontâneos,
façam atividades a partir de sua iniciativa, do jeito que acharem
melhor. Mesmo um trabalho com objetivos definidos, como fazer
um cartaz ou escrever uma carta reclamando da destruição das
florestas ou da poluição das cidades, pode ser realizado de
maneira a permitir que a expressão individual de cada aluno
encontre liberdade de realização.
Avaliação: tudo serve
No método 2, qualquer coisa que o aprendiz faça ou deixe de
fazer serve como material para avaliação da aprendizagem.
Avaliação, aqui, não significa dar nota ou conceito, como no
método 1, mas realizar um estudo interpretativo daquilo que foi
feito, para verificar o que está correto e o que está errado e por
que está certo e por que está errado.
A avaliação no método 2 tem como objetivo analisar as
decisões tomadas pelo aluno ao fazer o que fez, do jeito que fez,
para que o professor possa dar as explicações adequadas e para
que o aluno corrija seus erros, melhore e dê um passo adiante na
formação de seus conhecimentos. No método 1, a avaliação é
sempre circunstancial, localizada, e pondera fato por fato
isoladamente. No método 2, a avaliação leva em conta o
processo de aprendizagem, a história de cada um dentro desse
processo; é sempre cumulativa, exigindo uma comparação com o
que já foi realizado. No método 1, basta constatar o erro,
quantificar, dar a nota ou conceito e ponto final. No método 2, é
preciso fazer um dossiê com os trabalhos dos alunos para
estudar o caminho que o aluno está seguindo ao construir seus
conhecimentos e saber que tipo de hipóteses ele faz a respeito
das questões que está estudando. Não basta
<57>
constatar os erros e deficiências, é preciso interpreta-los e
discutir o assunto com o aluno. Nenhuma tarefa é um trabalho
isolado: faz parte de um conjunto de outros trabalhos que o
aluno vem fazendo, e a avaliação precisa estudar cada caso
dentro deste contexto maior. A nota é algo que não faz sentido
no método 2. Em vez de nota, o método 2 responde com
explicações. Esse tipo de avaliação do processo de aprendizagem
em andamento, associado à intermediação do professor,
incentiva o aluno a dar o passo seguinte, tentando generalizar os
conhecimentos que já tem ou fazendo novas hipóteses sobre a
nova questão com que se defronta.
Caos e caminhos tortos
Um método que privilegie a aprendizagem sobre o ensino
nunca será um caminho linear, bem-definido, será antes um
modo de progredir circular. Muitas questões serão tratadas em
diferentes ocasiões, dependendo da maneira como o aluno reage
e trabalha. O professor não precisa preocupar-se em levar um
programa à frente, item por item. No final, se o processo de
ensino e aprendizagem for bem equilibrado, os alunos acabarão
aprendendo tudo aquilo que constitui a expectativa da escola
para determinada fase do processo educativo. Na alfabetização,
os alunos acabarão aprendendo a ler, a escrever, enfim, a fazer
tudo certo e bonito. Esse resultado, no entanto, só começará a
aparecer depois de certo tempo.
No método 1, como tudo fica sob o controle do ensino, desde
o início os alunos apresentam cadernos muito bonitos, com tudo
certinho e no devido lugar, dando a impressão de que estão
aprendendo às mil maravilhas. Depois de certo tempo, começam
a aparecer os problemas, e o caos instaura-se na cabeça de
alguns alunos, para desespero do professor, da escola e dos pais.
No método 2, tem-se a impressão, no início, de que se está em
meio a um caos, por causa do tipo de trabalho que os alunos
fazem. Porém, à medida que o tempo passa, a rotina de trabalho
leva os alunos a se organizarem melhor, a classe torna-se mais
homogênea e, no final do ano, o que parecia um caos acaba
revelando ao professor que valeu a pena. Por caminhos diversos,
os alunos acabaram chegando aonde o professor queria que eles
chegassem. E ninguém fica perdido no meio do caminho, como
acontece com o método 1.
<58>
Como fixar a aprendizagem
Como ficou claro pelo exposto acima, o método 2 faz com que
o aluno aprenda pelas causas, não pelos efeitos. Nesse caso, o
que vale são as hipóteses levantadas nos trabalhos, revelando as
decisões que os alunos tomaram, seguindo um processo de
reflexão.
A fixação da aprendizagem, no método 2, é o outro lado da
moeda da reflexão. Quando uma pessoa entende algo, ela
automaticamente sabe e, portanto, não precisa "fixar". Isso não
quer dizer que tudo o que entendemos (e sabemos) permanece
ao nível da consciência o tempo todo, a vida toda. Mas quem
sabe verdadeiramente sabe de cor, caso contrário, não sabe. Em
muitos casos, sabemos como operar com certos conhecimentos,
mas precisamos de auxílio externo para realizar determinadas
tarefas. Isso também é saber, e o fato de memorizar todas as
etapas intermediárias e procedimentos operacionais é
simplesmente um exercício de tornar consciente fatos já
entendidos e memorizados.
Existe uma memorização que é intrínseca ao próprio ato de
entender e aprender, e existe outra memorização que é
simplesmente um ato de tornar consciente uma série de fatos do
conhecimento. Os dois tipos de memorização são importantes no
processo escolar. O que não faz sentido é a memorização como
repetição de algo, sem conhecimento nem entendimento do que
está sendo feito a não ser do próprio ato de repetir.
OS DOIS MÉTODOS NA
ALFABETIZAÇÃO
No caso do método 1, os cadernos dos alunos mostram que
eles logo aprendem a escrever usando apenas as formas já
dominadas, mesmo que, para isso, tenham de abrir mão da
habilidade que têm para produzir textos. As caricaturas de
textos desse método tornam-se pretextos para o uso das
palavras já dominadas. Salva-se a ortografia nos cadernos, mas
sacrifica-se a produção de textos reais, o uso real da linguagem.
No caso do método 2, o aluno aprende primeiro a ler, depois a
escrever e somente então passa a se preocupar com a ortografia.
No início, escreve a partir das hipóteses que tem sobre a
ortografia. Nessa fase, costumam
<59>
aparecer as formas mais estranhas de escrita quando
comparadas com a forma ortográfica estabelecida. Porém, essa
prática permite que o aluno passe da habilidade que tem como
falante nativo, de produzir textos orais, para a habilidade de
produtor de textos escritos. No começo, será uma simples
transferência do oral para o escrito. Aos poucos, no entanto, as
regras do estilo escrito também começam a marcar presença.
Tem-se a impressão, no início, de que o aluno nunca
aprenderá ortografia. Com a produção de textos desde o início da
alfabetização, salva-se o uso real da linguagem, quer na sua
forma oral, quer na sua manifestação escrita. A ortografia é algo
que se recupera facilmente com o tempo, com a ajuda dos
dicionários e, principalmente, de muita leitura. Porém, quando
um aluno entende que fazer um texto é simplesmente utilizar as
palavras que sabe escrever, isso significa que ele está muito
enganado com relação ao significado real da linguagem. Escrever
assim é um erro que a própria escola mais tarde não irá perdoar.
Não demorará muito para esse aluno encontrar um professor que
diga que ele escreve mal e não sabe organizar um texto de forma
correta. O aluno, que acreditava que bastava não errar a
ortografia para obter um texto bem escrito, ficará perplexo e não
saberá, de imediato, o que há de errado. A culpa será atribuída
ao professor de português, e este, por sua vez, continuará
dizendo que o aluno não foi bem alfabetizado. Uma boa nota nas
avaliações nem sempre garante uma boa educação.
Um método não é uma panacéia que resolve todos os
problemas educacionais. Todavia, como se pode notar pelas
observações anteriores, o processo educativo depende do
método adotado. Os dois métodos podem alfabetizar, mas o
método 1 o fará de uma maneira indesejável, embora
aparentemente adequada. O método 2 exige experiência e
competência do professor, paciência dos pais e uma escola
preparada para ser uma oficina de trabalho, não apenas uma
sala de aula onde o professor ensina e o aluno tem de se virar
para aprender.
<60>
3
Avaliação, promoção, planejamento
A avaliação e a promoção são duas atividades pedagógicas
sem as quais a escola não sobrevive, mas nem por isso as pratica
de maneira exemplar.
O primeiro ponto a ser levantado é a confusão que se
estabeleceu nas nossas escolas (e em muitas outras
no mundo moderno) entre avaliação e promoção. Nas nossas
escolas a avaliação tem como única meta a promoção, ou seja,
os alunos recebem notas pelos trabalhos que fazem para passar
ou não de ano. Isso parece óbvio e natural para muitos
professores, acostumados com essa prática. No entanto, é muito
importante que essas duas atividades sejam feitas
independentemente. A avaliação deve contemplar um
julgamento sobre o que os alunos fazem para aprender e sobre o
que o professor faz para ensinar, para que o ensino e a
aprendizagem aconteçam da melhor maneira possível. A
promoção julga da conveniência ou não de um aluno passar para
as atividades escolares do ano seguinte.
CAGLIARI, 1996e,
NOTAS E CONCEITOS
A prática de dar notas ou conceitos é o centro da confusão
entre avaliação e promoção. Na verdade, esse hábito desvirtuou
até mesmo o modo de avaliar. Algumas pessoas apresentam mil
argumentos para dizer que conceitos são melhores do que notas,
uma vez que os conceitos englobam menos categorias,
facilitando, portanto, um julgamento mais amplo e com menos
risco de erros. Certamente esse argumento é um contra-senso,
porque se poderia contra-argumentar, entre outras razões, que
as notas de O a 10 permitem avaliar com mais justiça do que o
uso de apenas 5 conceitos. Na verdade, a questão central não é
essa, mas o próprio fato de atribuir notas ou conceitos. Nem a
avaliação nem a promoção precisam de notas ou conceitos.
O surgimento de notas e especialmente dos conceitos deveu-
se não só ao fato de se avaliar o certo e o errado no trabalho do
aluno, como também ao fato de se premiar com um elogio o
aluno aplicado aos estudos e castigar expondo ao vexame o
aluno preguiçoso. Este último argumento é o mais comum para
justificar o uso de notas e conceitos, Os professores dizem que,
sem as notas, os alunos não estudam e não existe uma
<62>
competição que os estimule. Alguns acham que as notas são
essenciais até para manter a disciplina. Ainda existem
professores que reprovam por indisciplina.
A necessidade de dar e receber nota tomou-se, com o tempo,
compulsória nas atividades escolares e estendeu-se por todos os
níveis, abrangendo todas as atividades. Como a escola educa
para a sociedade, vemos que nossa sociedade passou a ter a
mesma obsessão. Mesmo atividades que não precisam de
julgamento de valor passam a ganhar notas, como um jogo
social. Tudo pode ser traduzido em valores de O a 10, de acordo
com qualquer parâmetro. Por ocasião da última Assembléia
Constituinte, até os deputados e senadores passaram a ganhar
notas de acordo com o seu desempenho. Uma bela mulher passa
a ser conhecida como "mulher nota dez", a exemplo da tradução
do título de um filme.
Curiosamente, mas não sem razão, as notas são menos
encontradas justamente nos esportes e jogos. Como o objetivo é
muito claro, ganha quem consegue atingir tal meta: não adianta
o time de futebol ter um excelente desempenho, se no último
minuto o adversário, que jogava mal, faz o gol da vitória. No
boxe, contam-se pontos, mas um nocaute basta para qualquer
lutador vencer. Na patinação sobre o gelo e em muitas formas de
ginástica olímpica, o júri dá notas baseado na realização de
determinadas tarefas e na perfeição com que elas são realizadas.
Neste último caso, as notas servem para classificar e indicam o
nível do desempenho de cada um na competição, uma vez que o
objetivo dessa atividade é apontar o campeão, ou seja, o melhor
de todos.
Nos concursos de seleção, a situação é semelhante: é preciso
classificar para admitir um certo número de pessoas e excluir as
demais. Em algumas escolas, as notas servem também para
indicar o campeão da turma, da série, da escola.
Como se vê, as notas estão por toda a parte.
As notas, refletindo um julgamento de valor, funcionam bem
quando se trata de classificação e, sobretudo, quando se
pretende fazer uma seleção a partir dessa classificação. Isso é
muito útil num concurso ou numa competição esportiva. Nesse
sentido, vê-se claramente a relação entre notas e
competitividade.
Nosso problema, porém, é outro: será que os alunos, quando
estudam, estão participando de uma competição, de uma seleção
para ver quem fica e quem é excluído ou, simplesmente, quem é
o campeão? Será esse o objetivo da escola, da educação, dos
estudos?
<63>
Na prática, o uso de notas nas atividades escolares parece
deixar bem claro que a escola optou por esses objetivos. Será
que estudar é uma competição em que é preciso ganhar, senão
se acabam as chances de continuar? Será que não se pode
estudar por ideais mais nobres? Será que a escola não pode ter
objetivos voltados mais para a formação e menos para a
competição?
Em qualquer ambiente escolar, é comum haver competição,
pela própria natureza das atividades da escola. Quando se
reúnem muitas pessoas, fazendo determinadas tarefas, a partir
da capacidade de cada um, logo fica evidente que algumas fazem
melhor, com mais arte e perfeição do que outras. E a
comparação mostra quem é melhor e quem é pior nisso ou
naquilo. Na vida, cada um se especializa naquilo que se julga
melhor. O fato de que alguém é melhor em determinada tarefa
não significa que é preciso desprezar todas as demais pessoas
que não sabem fazer com a mesma perfeição. Uma análise das
ocupações de trabalho em sociedade ilustra bem o que se disse
acima. Cada um cumpre o seu dever da melhor maneira possível
e a existência de diferenças é uma característica da própria
sociedade.
Pode haver promoção escolar sem competição através de
notas? A promoção depende de como se faz a programação
escolar e dos objetivos que se pretende alcançar. Nas escolas da
Antiguidade não fazia sentido reprovar alguém: as pessoas iam
para discutir idéias e muitas vezes cada um defendia seu ponto
de vista contra o do mestre.
A nota só entrou na escola quando a prática pedagógica tirou
a aprendizagem como alvo e colocou o ensino em seu lugar. Ou
seja, as notas surgiram quando os alunos começaram a ter de
reproduzir o que o mestre ensinava, do jeito que era ensinado,
deixando de lado as opiniões individuais. É por essa razão que as
notas não avaliam o processo de aprendizagem do aluno ou sua
esperteza intelectual, mas simplesmente sua capacidade de
reproduzir ou aplicar um modelo dado pelo professor ou pelo
livro didático. Basta fazer uma análise de provas, testes e
exames, para descobrir que essas avaliações nada mais são do
que um exercício de "faça segundo o modelo". Essas formas de
avaliação exigem que os alunos repitam para o professor o que
este lhes disse. Mesmo quando um aluno faz uma redação livre,
a nota é fruto do que o professor ensinou e que acha que o aluno
precisa reproduzir em seu trabalho, principalmente no que se
refere à ortografia, à concordância e a uma
<64>
certa lógica no desenvolvimento do argumento. Essa prática de
aplicar provas determinou o sentido que a avaliação e a
promoção passaram a ter na escola.
PROMOÇÃO AUTOMÁTICA
A promoção é feita a partir dos resultados das notas, o que
significa que, no fundo, depende da avaliação. É muito
confortável saber que o artigo da Constituição brasileira que diz
que toda criança dos 7 aos 14 anos tem direito à escolarização
não faz nenhuma menção a notas nem avaliações. Certamente,
também não se pensou que uma pessoa pudesse ficar durante 7
anos na primeira série simplesmente porque tem o direito de
escolarização garantido pela Constituição. Intui-se que uma lei
como essa existe para não ser cumprida, servindo apenas para
mostrar para os demais países que o Brasil também se preocupa
com a educação. Não só não há escolas para abrigar toda a
população necessitada, como a própria escola encarrega-se de
marginalizar grande parte das crianças de 7 a 14 anos, julgadas
inaptas para o trabalho escolar. No caso, é um desrespeito não
só à criança como também à Constituição.
Uma pedagogia sadia e lúcida recomenda que a promoção seja
automática. Aliás, a promoção não deveria sequer ser objeto de
preocupação da escola, a não ser em casos muito excepcionais.
Assim, seria candidato à repetição de ano o aluno que não
tivesse assistido, por exemplo, a pelo menos metade das aulas,
talvez por motivo de saúde ou de trabalho, desde que não
tivesse compensado essa falta com conhecimentos escolares
adquiridos fora da escola.
AVALIAÇÃO E RENDIMENTO ESCOLAR
O rendimento escolar não é razão suficiente para reprovar
ninguém. Pessoas que apresentam patologias deveriam ter uma
escola especial para receberem uma formação adequada. Nesse
caso, faz menos sentido ainda falar em reprovação.
<65>
Alguns professores ficam chocados quando ouvem dizer que o
rendimento escolar, expresso por notas ou conceitos, não é
razão suficiente para reprovar alguém. Algumas considerações
bastam para esclarecer esse ponto, embora haja muito mais a
ser dito.
Em primeiro lugar, a nota serve para que o interesse em
passar de ano (ganhar diploma) se torne o objetivo maior da
educação, deixando a idéia de formação, no sentido pleno da
palavra, num plano secundário e mesmo dispensável. O aluno
estuda não porque é importante para a vida, mas para livrar-se
de mais uma competição intelectual.
Uma análise honesta do que de fato acontece com o atual
sistema de avaliação mostra que um aluno pode ter nota, passar
de ano com louvor e não saber o conteúdo da matéria. Acertar
nas provas nem sempre significa que o aluno aprendeu, assim
como errar nem sempre significa que ele não estudou ou não
aprendeu. Quantas vezes um aluno lembra logo depois da prova
como se resolve uma questão? Mas, então, já não há mais
tempo. O tempo da avaliação é irreversível, como irremediável é
a nota. De nada adianta o aluno dizer para o professor no dia
seguinte que ele sabe a lição na ponta da língua. A avaliação não
volta atrás.
Por outro lado, quantos alunos chegam mesmo a dizer, depois
de terminada uma prova, que fazem questão de se esquecer de
tudo, porque agora já conseguiram nota necessária para serem
aprovados? Quantos estudantes esperam as férias para rasgar os
apontamentos, queimar livros e tratar de esquecer a escola,
porque a nota já garantiu a promoção e, talvez, até o diploma?
Essa atitude é um alarme para a educação e significa, entre
outras coisas, que esses alunos estudam apenas para ganhar
nota e passar de ano. Esse será o típico cidadão que jamais se
interessará pelos estudos depois de diplomado. Estudar não é
uma atividade que se faça apenas na escola, mas ao longo da
vida, como aprimoramento pessoal e profissional. A educação
precisa modificar sua visão de si própria. E preciso educar para a
vida, não para a nota.
Qualidade de ensino e motivação
A falta de nota não é responsável pela baixa qualidade do
ensino. Num país como o Brasil, dizer isso é uma piada, uma vez
que piorar o ensino é impossível. A qualidade do ensino se
consegue com um trabalho
<66>
competente, quer com relação ao conteúdo técnico das
matérias, quer na ação do professor como educador. E nada
disso tem a ver com notas.
Outro argumento, também inconcebível do ponto de vista
pedagógico, é dizer que as notas servem de motivação para o
aluno. Se o professor nunca passar uma prova, os alunos não
estudam. Pelo menos com medo das provas, eles estudam um
pouco.
Os alunos acabam tendo esse comportamento porque a escola
não deu a eles, desde cedo, uma outra perspectiva de trabalho
escolar. Os alunos são vítimas desse processo, não culpados.
Ainda nessa linha de raciocínio, alguns professores pensam que
seu trabalho (ou o do colega) perde a seriedade, fica sem
controle, se não houver provas exigentes e notas baixas. Alguns
diretores até consideram que professor bom é aquele que passa
muita prova e dá muita nota baixa. Professor que não faz isso,
passa a ser avaliado como alguém irresponsável, que gosta de
matar o tempo. Como pode ser diretor de escola urna pessoa
com essa mentalidade?
Avaliação e castigo escolar
Se alguém quisesse fazer um livro sobre a vida na escola,
encontraria, nas provas e notas, um tesouro em comportamentos
patológicos e um sem-número de casos trágicos daí decorrentes.
Já ocorreram até casos de suicídio devido a notas e reprovação
escolar. O drama que pais e filhos passam a ter nas famílias por
causa das notas é algo de que a escola nunca quis tomar
conhecimento, embora seja ela a principal causadora dessas
tragédias.
Por fim, cria-se na escola aquele famoso clima de vingança
mútua: professor faz prova para os alunos ganharem notas
baixas, se sentirem humilhados e castigados. Em troca, os
alunos revidam com uma enorme bagunça nas aulas e nas
dependências da escola. Com o aumento das irregularidades de
comportamento, o professor se volta de novo contra os alunos,
usando sua arma terrível que é a nota. Surpreende-os com
provas relâmpagos para complicar ainda mais a relação entre
ensino e aprendizagem, comprometendo traiçoeiramente a
promoção de alguns alunos e instalando um ambiente de guerra.
Alguns professores elaboram provas já sabendo quais os
resultados que irão obter: duas questões são escolhidas a dedo
para que ninguém acerte; três questões são mal formuladas para
enganar de certo modo e confundir
<67>
o aluno menos esperto; três questões são tão longas que
exigem dos alunos um tempo que eles não vão ter para
responder direito e de maneira completa; por fim, duas questões
de resposta fácil, mas com pequenas armadilhas na escolha das
palavras. Esses professores se gabam quando seus alunos erram
ao responder as coisas mais banais da matéria. Acreditam que,
dessa forma, estão ensinando seus alunos a estudarem direito, a
não se deixarem enganar pelas aparências...
Um professor que acompanha de perto o trabalho de seus
alunos na sala de aula acaba percebendo o que eles sabem e o
que não sabem, aluno por aluno. Este acompanhamento é a
melhor forma de avaliação, e a mais honesta. A convivência
mostra ao professor quem são de fato seus alunos. Essas
informações são cruciais para o professor planejar
adequadamente suas aulas e dirigir os trabalhos do aluno para
que ele progrida. Uma prática semelhante realmente dispensa
qualquer tipo de prova e nota.
Filosofar sobre a justiça ou não das notas e conceitos é uma
discussão bizantina, uma perda de tempo, e
equivale a discutir se existe uma avaliação justa.
Gostaria, não obstante, de dizer que o problema não está em
haver ou não um teste objetivo ou um critério bem-definido para
se atribuir uma nota justa. Como vimos, existem muito mais
coisas por trás dos testes e critérios utilizados na avaliação, cujo
envolvimento com as notas mostra que não é a maneira como a
nota é dada que faz justiça ou não, mas o próprio fato de dar
notas.
O valor dos cálculos na avaliação
Algumas vezes ouvi professores alfabetizadores dizerem que
um aluno que acertasse mais de 70% da ortografia das palavras
teria condições de passar de ano. Analisando, porém, a produção
de crianças que tinham sido reprovadas e contando
minuciosamente os acertos e os erros, constatei que quase
sempre os alunos tinham um índice de acerto maior do que o
mínimo exigido.
Na verdade, a reprovação não vinha do cálculo de acertos e
erros, mas da qualidade dos erros. O professor dizia que não
podia aprovar o aluno que tinha escrito "mecadio" em vez de
"mercadinho", ou "piçoa" em vez de "pessoa". Numa frase como:
"Ze piriri fio uomino
<68>
mecadio" ("Zé Piriri viu um homem no mercadinho"), o
professor achava que estava tudo errado, dizendo que havia
apenas uma palavra certa. Obrigado a contar os erros de
ortografia pelas letras — o que é mais justo — achou 8 erros e 18
acertos. (Uma contagem mais rigorosa mostraria que há 12 erros
e 26 acertos, o que dá uma porcentagem de 3 1,57% de erros
contra 68,43% de acertos nesta frase, uma das mais
problemáticas do texto.)
Se os professores tivessem olhos para ver também o que os
alunos acertam, começariam a ver as notas com outros olhos. O
erro é sempre muito chocante, mas os acertos não costumam
despertar entusiasmo nos professores.
AVALIAÇÃO SEM NOTA
Tirar as notas da escola não significa acabar com o
processo de avaliação. Assim como a promoção não precisa de
notas, também a avaliação não precisa delas.
A avaliação é uma atividade importante, que deve estar
sempre presente na escola e na vida em geral. Na escola, a
avaliação deve ser uma análise e interpretação do progresso do
aluno. O professor também deve se auto-avaliar.
A avaliação é sempre uma atividade voltada para cada
indivíduo de maneira específica, porque cada um é diferente dos
demais, cada um tem uma história de vida diferente e apresenta
uma realidade escolar peculiar. O progresso de um aluno não
precisa ser igual ao de outro. O importante é que todos cresçam,
trabalhando e fazendo o que tem de ser feito.
Passar a mesma prova para todos os alunos de uma classe,
sobretudo nas primeiras séries, é desconhecer a realidade de
cada aluno. Somente aquele tipo de ensino massilicante,
uniformizante, em que o professor manda e os alunos obedecem,
leva um professor a aplicar a mesma prova para toda a classe.
Não é porque o professor ensinou algo, que todos os alunos
aprendem do mesmo jeito. Não é porque o professor ensinou,
que já tem o direito de cobrar de seus alunos, na forma de
provas ou chamadas, uma reprodução do modelo apresentado,
como conteúdo específico ou como conhecimento derivado,
aplicado à solução de algum problema.
<69>
O trabalho substitui a nota
Uma escola sem nota precisa, em primeiro lugar, mudar seus
objetivos e adotar um processo de educação para a vida, não
para passar de ano. Nesse clima pedagógico, o que conta é o
trabalho sério do professor e do aluno. A escola precisa trocar as
provas, os testes, enfim as notas, por trabalhos que os alunos
irão fazer, alguns sob orientação direta do professor, outros por
iniciativa própria sob a supervisão dele.
Se a escola incentivar os alunos a produzir trabalhos, e se
esses trabalhos forem guardados, fica muito fácil para o
professor provar, para quem quiser ver, como um aluno começou
sem saber muito e, depois de uns tantos meses de aula,
aprendeu e fez inúmeras coisas interessantes. Em vez de boletim
de notas, OS professores deveriam ter arquivos para guardar os
trabalhos que os alunos realizaram ao longo do ano. No final do
ano letivo, o próprio aluno poderia ver, nesse arquivo, a história
da sua educação naquela série e constatar o quanto progrediu.
Através de uma prática intensa de realização de trabalhos, o
professor tem condições de estudar o processo de aprendizagem
de cada um de seus alunos e orientá-los melhor. Esse tipo de
avaliação, porém, exige que o professor conheça profundamente
o assunto que ensina para poder analisar e interpretar os
resultados encontrados nos trabalhos e propor soluções e
melhorias. Somente quem possui um conhecimento técnico
sofisticado é capaz de conduzir um processo de avaliação
contínuo durante o ano todo, levando em conta tudo o que o
aluno fez ou deixou de fazer.
Auto-avaliação e autocorreção
Uma avaliação que acompanha o processo de alfabetização de
cada aluno, além de ajudá-lo, servirá para o professor organizar
melhor suas aulas futuras e adaptar seu programa de trabalho à
realidade do dia-a-dia, durante o ano escolar.
Com isso, o professor ensina ao aluno que avaliação é um ato
contínuo, paralelo a tudo o que se faz, e o treina a se auto-
avaliar e a refletir criticamente sobre o
próprio trabalho. Alguns alunos nem sequer chegam a desconfiar
de que podem errar por falta de um trabalho de avaliação
acompanhada pelo professor, quando
<70>
realizam suas tarefas. A escola deve formar pessoas
competentes não só para dizer e fazer, como também para julgar
o que os outros e o que elas próprias fazem.
O aluno na série seguinte
Se todos os professores, incluindo não só os da alfabetização,
mas também os demais, partirem da realidade de seus alunos,
no começo do ano, para ensinar o que acham que deve ser
ensinado, tem-se um argumento a mais para a promoção
automática na escola. Uma programação geral deve distribuir
conteúdos básicos para serem ensinados ao longo dos oito anos
do primeiro grau. Se um aluno não aprendeu direito um ponto
num ano, o professor do ano seguinte, em vez de reclamar do
colega, tem de assumir seu papel e ensinar a esse aluno o que
ele precisa saber.
Portanto, a promoção automática não precisa se preocupar
com a hipótese de um aluno não conseguir acompanhar a
matéria no ano seguinte. Mesmo hoje, apesar das provas e das
notas, quando um aluno é promovido, não se tem garantias de
que ele aprendeu de fato o que estudou no ano anterior.
Analisando friamente, constata-se que alguns alunos foram
reprovados porque cometeram certos erros em suas provas.
Quais serão esses erros, que conhecimentos tão importantes
eles envolvem para que um aluno repita de ano? Encontramos,
por exemplo, que o aluno errou o sujeito da oração, confundiu o
predicativo do objeto direto com outra função sintática ou,
mesmo, não soube resolver um binômio de segundo grau. Na
alfabetização, os erros de ortografia prevalecem
como causas de reprovação. Como avaliar essa avaliação, senão
dizendo que é fruto de uma ingenuidade e uma ignorância que só
poderia vir de uma escola tão desorientada como a nossa?
< CAGLIARI, 1993c. >
Será que vale a pena criar tantos problemas por tão pouco? O
mundo não vai cair se o aluno não aprendeu o que é predicativo
do objeto direto ou como resolver um problema de álgebra, ou
qualquer dessas coisas que se tomam objeto de perguntas
fatídicas nas provas e testes.
Por causa de um predicativo do objeto direto, um erro de
ortografia ou o binômio de segundo grau mal resolvido numa
prova, muitos alunos já foram reprovados. A escola não sabe
dimensionar esses fatos nem mede as conseqüências do que faz.
Tal reprovação, além de causar danos emocionais nos alunos,
ocasiona danos financeiros às famílias e ao governo.
<71>
O círculo vicioso de quem não aprende
A avaliação por meio de testes e provas muito freqüentemente
cria um problema sério para os professores: eles acabam
acreditando que aquela forma de avaliação é de fato um espelho
do processo de aprendizagem. E se o aluno vai mal na prova, o
professor pensa que ele não aprendeu e repete tudo de novo,
esperando que um dia o aluno devolva o que foi ensinado do
mesmo jeito como foi passado.
O processo de aprendizagem não funciona assim. Por isso,
alguns professores dizem que ensinam sempre as mesmas coisas
e os alunos nunca aprendem: isso mostra que esses mestres não
são muito espertos. Por que não ensinar algo diferente? Talvez
assim os alunos aprendam. Muitas vezes, para aprender
adequadamente um ponto é preciso avançar bastante na
matéria. Ora, se o aluno fica marcando passo em algumas idéias
e não tem a chance de ver outras, pode ficar condenado a não
aprender nada.
UMA NOVA VISÃO DA AVAHAÇÃO
E DA PROMOÇÃO
Como vimos, a escola não sabe avaliar para corrigir e ensinar,
mas somente para promover ou não o aluno. A formação de
arquivos com os trabalhos realizados pelos alunos é o material
de que o professor precisa para poder avaliar o progresso dos
alunos. Agir assim requer uma mudança de atitude. Não
acontece simplesmente porque alguém decretou uma lei ou uma
norma. Deve fazer parte das convicções pedagógicas mais
profundas do educador.
A implantação do ciclo básico teve mais a pretensão de
começar uma discussão sobre o estado da educação do que
estabelecer a idéia, que muita gente passou a ter, de que haveria
apenas o aumento do período de alfabetização de um ano para
dois. A idéia mais elaborada contemplaria a promoção
automática para todo o ensino fundamental e médio (primeiro e
segundo graus).
Muitos professores gostariam de mudar radicalmente sua
prática pedagógica, mas encontram obstáculos nas normas e até
mesmo no comportamento de diretores
<72>
supervisores e orientadores pedagógicos, sem mencionar a
tradicional queixa dos pais.
Se o patrão exige que o professor dê notas a seus alunos, ele
pode até agir assim, mas certamente isso será feito com base
numa avaliação do progresso de cada aluno e de seus trabalhos,
e não através de provas e testes padronizados. Um professor que
incentiva seus alunos a trabalhar nas aulas, pesquisando,
fazendo todo tipo de atividade escolar, não pode dar outra nota
senão 10 ou A. Ninguém pode reclamar disso, porque afinal de
contas essa nota é mais do que justa: cada um fez o que devia,
dentro de suas possibilidades, e isso é altamente educativo e
uma excelente maneira de o aluno e o professor conduzirem o
processo escolar.
Os alunos podem ter notas sem ligar para isso, considerando
uma tarefa do professor, uma obrigação profissional sem
conseqüências educacionais. Estudar é outra coisa. É algo sério,
que precisa ser feito com responsabilidade, como uma forma de
respeito que cada pessoa precisa ter consigo própria.
Outra questão que perturba muitos professores é o que fazer
com quem não aprende. Na alfabetização, esse é um ponto muito
grave: se o aluno não aprendeu a ler, o que vai fazer depois?
Em primeiro lugar, se um aluno não aprendeu a ler, é porque o
professor fracassou: não é possível que um ser humano não
aprenda a ler durante um ano de escola. Infelizmente, isso
acontece porque os professores não sabem lidar com esses
casos: ficam repetindo sempre as mesmas coisas, em vez de
fazer uma análise das dificuldades do aluno e orientá-lo de
maneira específica. Quando o professor ensina com competência
e seriedade, os alunos aprendem. Todos eles aprendem alguma
coisa. Talvez não saibam reproduzir o modelo de maneira exata
e completa, mas alguma coisa eles aprendem, e isso basta.
< CAGLIARI, 1998a. >
Fazer recuperação é uma tarefa desnecessária se na atividade
do professor a recuperação estiver presente todos os dias, como
deve estar. A necessidade de um período de recuperação surge
somente quando o professor ensina seguindo seu programa, sem
ligar para o que acontece com seus alunos. Então, de vez em
quando, faz uma prova e recomenda uma recuperação para
aqueles que tiraram nota baixa. Para os piores, recomenda
<73>
uma mudança para a classe especial. Para os repetentes
incorrigíveis, a única solução que visualiza é a evasão escolar.
O PLANEJAMENTO ESCOLAR
A questão das notas e da promoção exige uma visão além da
série em que o professor atua, especialmente se for na primeira
série. As escolas costumam fazer seu planejamento, e os
professores deveriam aproveitar essa ocasião para deixar bem
claro o caminho que a instituição espera oferecer aos seus
alunos nos anos de sua escolaridade. Apresentamos adiante uma
sugestão de como o ensino deve ser abrangente, levando em
conta as principais áreas da lingüística moderna.
Um planejamento do ensino de português (deixando de lado
os estudos literários...) deveria abandonar completamente a
gramática normativa e desenvolver um trabalho epilingüístico,
principalmente no ensino fundamental (primeiro grau), no qual
as questões básicas da linguagem fossem tratadas através de
um processo de reflexão sobre elas.
Por causa da variação lingüística, sabemos que uma língua
não dispõe de normas (gramática normativa) que controlam o
certo da norma culta e o errado das variações dialetais, e sim
regras (gramática descritiva) que mostram como todos os
falantes, cada um do seu jeito, no seu dialeto, usam a
linguagem. Uma gramática descritiva apóia-se em teorias
específicas, como têm demonstrado os lingüistas modernos.
Entretanto, para se chegar a essas teorias e a uma descrição
adequada dos fenômenos lingüísticos é preciso refletir sobre a
língua, num primeiro momento, usando apenas a intuição do
sujeito falante e conhecimentos básicos sobre a linguagem.
Depois o resultado dessa reflexão tornar-se-á uma interpretação
exata dentro dos domínios de uma teoria.
Ao processo de reflexão sobre os fatos da linguagem sem
"compromissos" preestabelecidos por determinada teoria,
chama-se epilingüismo. As aulas de português deveriam ensinar
os alunos a refletir sobre a linguagem, deduzindo explicações e
regras a partir de conhecimentos que vão sendo adquiridos na
escola e da intuição que qualquer falante nativo tem de sua
língua.
74
CAGLIARI, 1991a.
Um planejamento mais detalhado para o ensino fundamental
poderia ser, por exemplo, o seguinte:
1º ano
Alfabetização: ensinar a criança a lei; explicar como funcionam
os sistemas de escrita, sobretudo a ortografia. História da
escrita. treinar o aluno na produção de textos espontâneos.
Desenvolver o gosto pela leitura individual e a participação em
atividades que envolvam o uso da fala no dialeto padrão. Visão
geral da aquisição da linguagem oral. Primeiras noções de
variação lingüística.
2º ano
Continuação do trabalho de alfabetização. Treino de leitura em
voz alta com pronúncia no dialeto padrão. Produção de narrativa
orais e escritas - Atividades de pesquisa envolvendo leitura
individual. Produção de textos de natureza diferente, como
cartas
notícias, etc. Introdução de noções básica de fonética e de
fonologia.
3° ano
Estudo mais sistemático de fonética e da variação lingüística.
Estudo das relações entre linguagem oral e linguagem escrita.
Autocorreção da ortografia. Produção de
textos orais e escritos. Leitura de lazer e de pesquisa.
Exploração de textos literários, sobretudo poesia.
4° ano
Estudo mais sistemático de fonologia. Estudo das funções
básicas da linguagem e da pragmática, ou seja, dos usos da
linguagem oral e escrita. Produção de textos orais e escritos.
Leitura de lazer e de pesquisa. lJabaibo com contos e pequenos
romances.
5º ano
Estudo de morfologia. Noções básicas de sociolingüística, ou
seja, dos vínculos entre os usos da linguagem e a realidade
socioeconômica e cultural das pessoas (dialetos, por exemplo).
Produção de textos oriundos de pesquisas. Leitura de lazer e de
pesquisa. Cuidado especial na produção de textos orais. Leitura
de romances.
6º ano
Estudo de sintaxe, regência e concordância. Introdução à teoria
da literatura. Leitura literária orientada. Produção de textos mais
sofisticados. Apresentação das línguas indígenas brasileiras.
7° ano
Estudo de semântica lexical e argumentativa. Introdução à
análise literária. Leitura de obras importantes da literatura
nacional e internacional. Estudo da história da língua
portuguesa. Produção de textos de pesquisa e de obras de
modelo literário.
8º ano
Estudo de lingüística textual (estudo da estrutura textual, tipos
de texto e de fenômenos como coerência e coesão) e de
psicolingüística (aquisição da linguagem, interação lingüística,
linguagem e pensamento). Relatos de pesquisas desenvolvidas
pelo aluno. Produção de textos literários e científicos. Leitura de
textos científicos, artísticos e de autores famosos da literatura
universal. História da ortografia. História da literatura.
Diante de um quadro como esse, percebe-se logo que um
aluno precisa apenas participar das atividades escolares normais
para ter o direito de passar de ano. Como verá coisas diferentes
a cada ano, a única exigência para sua promoção é saber ler e
escrever, o que deverá aprender no primeiro ano.
No ensino médio (segundo grau), podem-se introduzir teorias
lingüísticas adaptadas, num trabalho metalingüístico, estudando
a formalização das regras descobertas
<75>
no primeiro grau, interpretadas agora segundo uma teoria e
formando uma gramática moderna descritiva da língua.
No terceiro grau (graduação), haveria um aprofundamento no
estudo da linguagem, através da reflexão epilingüística e da
formalização metalingüística, com vistas a um estudo crítico de
teorias.
Na pós-graduação, além do aprofundamento de conteúdos
teóricos e da especialização de conhecimentos em determinada
área da lingüística, os alunos deveriam tornar-se pesquisadores.
AVALIAÇÃO NA ALFABETIZAÇÃO
Aprender a ler e a escrever no primeiro ano não significa saber
tudo sobre a produção da leitura e da escrita, tampouco saber de
cor a forma ortográfica de todas as palavras. Também não
significa que o aluno possa escrever sem se preocupar com a
ortografia. O professor deve deixar o aluno começar escrevendo
como ele acha que as palavras são. Depois, deve ensinar o aluno,
desde o primeiro ano, a corrigir a ortografia e a passar a limpo
as suas lições.
Em termos mais específicos, a expectativa dos professores
alfabetizadores com relação a seus alunos no final do primeiro
ano poderia ser a seguinte:
• Saber ler algo novo que lhe é apresentado.
• Produzir textos espontâneos, não importando os erros de
ortografia.
• Ser capaz de corrigir individualmente um texto, de modo a
eliminar os erros de ortografia, com o auxílio de um dicionário
ou fichário de palavras.
• Participar das atividades escolares.
• Reproduzir oralmente textos que lê (com total liberdade para
fazê-lo a seu modo).
• Preparar e ler um texto no dialeto padrão.
• Escrever com letras de fôrma e com letras cursivas.
Como se vê, a escola não pode fugir à sua missão. Basta fazer
um trabalho sério, competente e constante, que não precisará de
provas, testes, notas nem terá dúvida de que assim todos os
alunos serão legítimos merecedores de aprovação final. Por
outro lado, isso
<76>
não significa que todos os alunos terminarão o ano iguaizinhos.
A escola precisa saber lidar com as diferenças. É justamente nas
diferenças individuais que a sociedade se enriquece e a vida se
torna mais interessante.
A LIÇÃO DE CASA
Uma última observação a respeito de atividades escolares
relacionadas à avaliação diz respeito às lições de casa. Alguns
pais pensam que uma escola que não pede lição todos os dias é
fraca e ruim. Isso é um absurdo, principalmente nas primeiras
séries. Lugar de estudar é na escola, onde os alunos encontram
os professores e os materiais à disposição.
Em casa, podem eventualmente fazer uma tarefa ou outra,
mas normalmente farão outras coisas, sobretudo brincar e se
divertir. Criança precisa se divertir e, se não fizer isso em casa,
fará na escola. A criança precisa aprender desde cedo que há
hora de brincar e hora de estudar, lugar para brincar e lugar
para estudar. Se a escola não deixar os alunos brincarem em
casa, obrigando-os a fazer longas e difíceis tarefas, as crianças
acabarão passando a infância e a adolescência mal vividas e com
raiva justa e imperdoável desses professores irresponsáveis, que
infelizmente proliferam em nossas escolas. Um bom
planejamento escolar deve necessariamente abrir um espaço
durante o período de aulas para os alunos fazerem as tarefas
que o professor acha que eles devem fazer.
Essa carga de lição de casa já seria uma aberração em escolas
particulares, em que estudam as crianças mais favorecidas social
e economicamente. Nas escolas públicas, onde os alunos pobres
estudam, elas tornam-se um absurdo. Esses alunos não têm
condições de estudar em casa: não há lugar, não há livros, e
seus pais, em geral, pouco sabem para ensinar (alguns são até
analfabetos) e quase nunca têm tempo para essa tarefa, depois
de um dia de trabalho.
Mesmo em séries avançadas, é inconcebível que um pai ou
uma mãe tenha de colaborar com a escola, ensinando aos seus
filhos matemática, geografia, história ou coisas como predicativo
do objeto ou sujeito oculto. Isso é tarefa exclusiva da escola.
<77>
Muitos pedagogos equivocadamente insistem em querer que a
família seja uma extensão da escola, e em pretender que os pais
ajudem seus filhos a fazer suas tarefas escolares e a estudar as
lições, sobretudo para provas e exames.
Por outro lado, já desde as primeiras séries a escola deve
incentivar os alunos a criar o hábito de estudar em casa por
iniciativa própria, gastando nessa atividade uma pequena
parcela de tempo. A medida que vão crescendo, o tempo
dedicado aos estudos em casa deve ir aumentando e o tempo da
brincadeira e do lazer, diminuindo. É mais importante a
constância na atividade de estudo individual em casa, do que
gastar muito tempo de vez em quando. E, mais importante, é
preciso mostrar ao aluno que ele deve estudar sem envolver
seus familiares. Mas, para que isso aconteça, o professor não
pode passar tarefas todos os dias, nem que absorvam grande
parcela do tempo que o aluno dispõe fora do período escolar. Se
a criança tem de fazer enormes e complicadas lições, como
achará tempo para estudar, para ler? O hábito de estudar em
casa não deve prever somente assuntos escolares do momento.
Pelo contrário, deveria satisfazer uma certa curiosidade
científica e artística do gosto pessoal. Quando se ensina a
pesquisar e a trabalhar em sala de aula, o aluno poderá fazer o
mesmo em casa, não para dar satisfação ao professor, mas para
estudar o que ele, aluno, escolheu para si. Muitos cientistas e
artistas famosos desenvolveram grandes trabalhos por iniciativa
própria, estudando e trabalhando fora da escola, pelo gosto da
pesquisa e da arte e para realização pessoal, sem prova, sem
nota, sem professor, sem diploma. A escola que conseguir
formar alunos assim é a verdadeira escola.
<78>
4
O método das cartilhas
A CARTILHA NA ESCOLA E NA VIDA
Já comentamos que a cartilha era antigamente apenas um
abecedário; depois tornou-se uma tabela de letras, que
representava as escritas dos padrões silábicos da fala;
reestruturando-se em seguida em palavras-chave e sílabas
geradoras, deixando assim de ser apenas um livro para ensinar a
ler e tornando-se um livro para fazer exercícios de escrita. Então
começou a apresentar textos com palavras já estudadas pelos
alunos, numa ordem crescente de dificuldades, e foram
incorporados exercícios gramaticais e estruturais para o aluno
desmontar e montar palavras. Tempos depois, recebeu a
companhia do manual do professor e uma seção especial,
dedicada ao período preparatório, cuidando da prontidão dos
alunos para a alfabetização. As tabelas de letras sumiram e até o
alfabeto não fazia mais parte da cartilha.
Adota-se esse tipo de livro didático até hoje amplamente.
Mesmo quando, por alguma razão, baseada em conhecimentos
adquiridos em treinamentos, ou através de simples
acompanhamento dos modismos da educação, alguns
professores deixam de usar as cartilhas, constata-se que o
método das cartilhas tem resistido muito mais às críticas e
encontra-se em praticamente todas as salas de aula de nossas
escolas.
Muitos professores fizeram sua própria cartilha, com material de
preparação de aulas elaborado em anos de trabalho. Alguns
chegaram até a publicar esse material, fazendo ver aos demais
colegas como conseguiram uma boa receita para a alfabetização.
Os próprios órgãos encarregados da educação, atendendo a
pedidos de professores, compram, todos os anos, uma
quantidade enorme de cartilhas para uso nas escolas públicas.
Há ainda aqueles professores (e Secretarias de Educação),
que, não querendo adotar uma cartilha, compram, em
substituição, livrinhos de histórias, os quais, além de reduzir o
trabalho de alfabetização a interpretações subjetivas dos textos
e transformar a sala de aula em palco de fantasia sem fim, ainda
são usados por alguns professores para extrair o que antes eles
faziam com as cartilhas, agora de maneira muito mais confusa e
difícil.
A opção por um trabalho alternativo, sem cartilhas, exige,
antes de tudo, que se conheça como elas são, o que propõem,
como propõem, o que pretendem e,
<80>
principalmente, o que deixam de fazer. Por essa razão,
apresentaremos a seguir alguns comentários para explicar
melhor o que representam as cartilhas no processo de
alfabetização. O que muitas vezes salva o trabalho escolar
nesses casos é a competência, a habilidade e o bom senso de
alguns professores, que conseguem obter resultados
surpreendentes mesmo usando uma ferramenta muito ruim.
Uma análise mais cuidadosa mostra que esses livros têm em
comum o fato de alfabetizarem através de palavras-chave e de
sílabas geradoras, ou seja, aplicando o bá-bé-bi-bó-bu. A única
coisa que varia é a maneira como esse "produto" vem
apresentado.
Como é constituído de letras, nosso sistema de escrita tem
como chave de decifração o princípio acrofônico associado aos
nomes das próprias letras. Partir daí para palavras-chave é um
pequeno pulo. Como as letras representam consoantes e vogais,
nada mais natural do que estudar o processo de alfabetização
através das sílabas. Foi assim que surgiu o interesse pelo bá-bé-
bi-bó-bu. É por isso que muitos professores não vêem outra
saída para ensinar a ler e a escrever, a não ser com o bá-bé-bi-
bó-bu. Na verdade, esse é o aspecto mais interessante das
cartilhas, em que se emprega o princípio acrofônico. No entanto,
essa vantagem é prejudicada pela maneira como essas idéias
são organizadas em lições e passadas para os alunos.
Um exemplo típico de cartilha é apresentado a seguir. Cada
lição trata apenas de uma unidade silábica. Os conteúdos das
lições são organizados de forma hierárquica, do mais fácil ao
mais difícil, segundo algum critério escolhido pelo autor. No fim,
apresenta-se um resumo, em que o alfabeto pode estar ou não
presente. Geralmente, a cartilha acaba num texto, considerado
teste final de leitura e modelo de escrita para introduzir o aluno
na etapa seguinte, que é o uso de textos que o aluno deverá
saber escrever e ler por conta própria.
Todas as lições têm a mesma estrutura: partem de uma
palavra-chave, ilustrada com um desenho, e destacam a sílaba
geradora, que é quase sempre a primeira sílaba da palavra. Em
seguida, apresenta-se a família silábica daquela sílaba
destacada. Vêm abaixo algumas palavras novas, escritas com
elementos já dominados, mais elementos novos introduzidos na
lição. Depois, aparecem os exercícios estruturais em que
palavras
<81>
principalmente, o que deixam de fazer. Por essa razão,
apresentaremos a seguir alguns comentários para explicar
melhor o que representam as cartilhas no processo de
alfabetização. O que muitas vezes salva o trabalho escolar
nesses casos é a competência, a habilidade e o bom senso de
alguns professores, que conseguem obter resultados
surpreendentes mesmo usando uma ferramenta muito ruim.
Uma análise mais cuidadosa mostra que esses livros têm em
comum o fato de alfabetizarem através de palavras-chave e de
sílabas geradoras, ou seja, aplicando o bá-bé-bi-bó-bu. A única
coisa que varia é a maneira como esse "produto" vem
apresentado.
Como é constituído de letras, nosso sistema de escrita tem
como chave de decifração o princípio acrofônico associado aos
nomes das próprias letras. Partir daí para palavras-chave é um
pequeno pulo. Como as letras representam consoantes e vogais,
nada mais natural do que estudar o processo de alfabetização
através das sílabas. Foi assim que surgiu o interesse pelo bá-bé-
bi-bó-bu. E por isso que muitos professores não vêem outra
saída para ensinar a ler e a escrever, a não ser com o bá-bé-bi-
bó-bu. Na verdade, esse é o aspecto mais interessante das
cartilhas, em que se emprega o princípio acrofônico. No entanto,
essa vantagem é prejudicada pela maneira como essas idéias
são organizadas em lições e passadas para os alunos.
Um exemplo típico de cartilha é apresentado a seguir. Cada
lição trata apenas de uma unidade silábica. Os conteúdos das
lições são organizados de forma hierárquica, do mais fácil ao
mais difícil, segundo algum critério escolhido pelo autor. No fim,
apresenta-se um resumo, em que o alfabeto pode estar ou não
presente. Geralmente, a cartilha acaba num texto, considerado
teste final de leitura e modelo de escrita para introduzir o aluno
na etapa seguinte, que é o uso de textos que o aluno deverá
saber escrever e ler por conta própria.
Todas as lições têm a mesma estrutura: partem de uma
palavra-chave, ilustrada com um desenho, e destacam a sílaba
geradora, que é quase sempre a primeira sílaba da palavra. Em
seguida, apresenta-se a família silábica daquela sílaba
destacada. Vêm abaixo algumas palavras novas, escritas com
elementos já dominados, mais elementos novos introduzidos na
lição. Depois, aparecem os exercícios estruturais em que
palavras
<81>
são desmontadas e remontadas com elementos feitos de sílabas
geradoras ou de pedaços de palavras. Ou, então, aparecem os
exercícios de "faça segundo o modelo". Há, ainda, um pequeno
"texto" para leitura, cópia e ditado, e que pode servir também
para exercícios de interpretação de texto. Nas lições mais
adiantadas, além das tradicionais cópias, aparecem os exercícios
de escrita: "minhas primeiras frases" e "minhas primeiras
histórias". Recheando esse esqueleto, uma quantidade enorme
de atividades, que vão desde a colagem de letras e palavras
recortadas de jornais e revistas, até propostas de
representações teatrais pelos alunos. Em geral, essas atividades
dão a falsa impressão de que uma cartilha é diferente da outra.
Como se disse antes, elas são diferentes apenas na maneira
como aplicam o bá-bé-bi-bó-bu.
As cartilhas partem de uma concepção de linguagem segundo
a qual uma palavra é feita de sílabas, uma sílaba, de letras, uma
frase é um conjunto de palavras e um texto é um conjunto de
frases. Isso está evidente nas atividades de "desmonte" das
palavras e reagrupamento das unidades geradoras. Ora, a
linguagem tem esses aspectos, mas ficar apenas nisso produz
uma imagem distorcida. A linguagem é basicamente a união de
sons e de significados, tudo muito bem ligado, através das
diferentes estruturas gramaticais que exercem funções próprias
e que têm usos específicos nos diferentes contextos em que
ocorrem.
A maneira como as cartilhas lidam com a fala e a escrita
confunde as crianças, uma vez que passa a idéia de que a
linguagem é uma "soma de tijolinhos", representados pelas
sílabas e unidades geradoras. Ora, as crianças aprenderam a
falar de outra maneira e, portanto, para elas, a linguagem
apresenta-se como um todo organizado de maneira muito
diversa daquela que a escola lhes mostra. No fundo, as cartilhas
deixam de lado toda a trama da linguagem, ficando apenas com
o que há de mais superficial. Isso faz com que os alunos passem
a fazer apenas um uso superficial da fala e da escrita nas suas
atividades escolares futuras.
A alfabetização gira em torno de três aspectos importantes da
linguagem: a fala, a escrita e a leitura. Analisando esses três
pontos, tem-se uma compreensão melhor de como são as
cartilhas ou qualquer outro método de alfabetização.
<82>
A CARTILHA E A FALA
A variação lingüística
A variação lingüística mostra como uma língua é composta de
inúmeros dialetos, que apresentam semelhanças e diferenças. As
semelhanças constituem a base comum que permite agrupar os
dialetos em torno de uma mesma língua. Com relação às
diferenças, algumas não causam estranheza, pois são aceitas
socialmente, como o fato de algumas pessoas falarem "tia" e
outras "tchia". Há, porém, diferenças que representam a fala de
pessoas pobres, que não usam a norma culta da língua, e que
são, pois, interpretadas de maneira preconceituosa pela
sociedade como um modo errado de falar. Exemplos: "drento",
"drobar", em vez de "dentro", "dobrar", etc.
A cartilha simplesmente ignora tal realidade lingüística da
sociedade. O aluno vai seguir as lições da cartilha usando, desde
o começo, uma fala espelhada no modelo apresentado pelo
professor. Como a cartilha é um livro que se propõe a tratar dos
assuntos de maneira gradual, quase sempre lidando com
questões muito fáceis, pressupõe-se que os alunos acompanhem
sem dificuldade o uso da fala padrão, mesmo que em casa sejam
falantes de dialetos que apresentam enormes diferenças com
relação ao dialeto da escola.
A dificuldade do aluno surge quando ele se vê obrigado a
responder a perguntas formuladas pelo professor. Como não
domina a norma culta, fala seguindo seu próprio dialeto,
recebendo dos professores inúmeras correções, acompanhadas
ou não da zombaria dos colegas.
O idioleto do professor
Através da prática dos professores em sala de aula, percebe-
se que o que se entende por dialeto padrão é na verdade um
idioleto do professor. Ou seja, usa-se como modelo de fala uma
maneira especial de pronunciar certas letras, de modo a facilitar
a compreensão pelo aluno das relações entre letras e sons em
função das formas ortográficas das palavras. Obviamente, esse
modo de falar inventado pelo professor é usado de modo
especial em certas atividades do processo de alfabetização,
como nos ditados ou nas explicações básicas da introdução de
uma lição nova.
<83>
Por ser um dialeto artificial, sem vida na sociedade, nenhum
professor conseguirá manter esse modo de falar o tempo todo,
porque ele também é um falante nativo de uma variedade
lingüística (dialeto). Quando o professor se esquece de que está
passando matéria, fala como se estivesse usando seu modo de
falar coloquial de fora da sala de aula. Alguns professores
convencem-se de tal maneira que aquela fala que inventaram
para ensinar os sons das letras é, de fato, a ideal, que acabam
tornando-se pessoas pedantes fora da escola, levando para o
dia-a-dia uma pronúncia estranha de professor de alfabetização.
Para ilustrar o que ficou dito acima, seguem alguns exemplos.
Um professor, para explicar aos seus alunos a diferença entre a
escrita de L e U, pronuncia todas as letras L com o som de L,
incluindo aquelas que já passaram a ter o som de U (mesmo na
norma culta, pronunciando "balde" em vez de "baudi"; "alto" em
vez de "autu", etc. Outro exemplo: o professor faia "ta-té-tchi-
tó-tu", "da-dé-dji-dó-du" (sem perceber que palataliza os "tis" e
"dis"), mas ensina que se deve dizer "balde" e não "baudji";
"póte" e não "pótchi", etc. Do mesmo modo, exige que o aluno
leia "tudo" e não "tudu", etc.
Esses professores acham que, procedendo assim, farão com
que os alunos errem menos quando forem escrever. Esquecem-
se, porém, de que eles mesmos dizem "balde" porque conhecem
a forma escrita da palavra. O aluno, por sua vez, não sabe como
se escrevem as palavras e, conseqüentemente, não pode saber
quando se usa L ou U: é "falta" ou "fauta"? é "flauta" ou é
"flalta"? Somente quem sabe escrever saberá responder
corretamente a perguntas como essa.
O método das cartilhas não leva em conta, no entanto, que a
maior dificuldade dos alunos, sobretudo daqueles que não são
falantes da norma culta em uso na sociedade, é aprender que
nem tudo o que eles falam fora da escola está de acordo com a
norma culta. Para esses alunos, falar palavras como "casa",
"batata", tem o mesmo valor de palavras como "drentu",
"drobar", "uzómitrabaia", "pranta", etc. E verdade que esses
alunos terão mais facilidade para escrever corretamente as
palavras depois que aprenderem a norma culta, mas pressupor
tal conhecimento como estratégia para aprender ortografia é
algo descabido. Ortografia se aprende de outra maneira.
Nota
Idioleto: variedade lingüística típica de um indivíduo: não
pertence a um dialeto (variedade lingüística comum a muitas
pessoas). XAVIER & MATEUS, 1990.
<84>
A silabação
Outro problema sério que o método das cartilhas (o bá-bé-bi-
bó-bu) traz é o uso da silabação a todo instante. Tudo gira em
torno da silabação. Isso faz com que o aluno passe a pensar que,
para ler, é preciso silabar (silabar para decifrar a escrita e
silabar para ter uma pronúncia bonita, bem-articulada). Alguns
levam até para a própria fala essa pronúncia silabada. Ao fazer
isso, o ritmo e a entoação (para não falar de outros elementos
prosódicos da fala) ficam totalmente modificados,
descaracterizando a fala natural, com conseqüências como
pedantismo e preciosismo, de quem fala assim, e, sobretudo,
com dificuldades de expressão do falante e de compreensão
geral dos textos.
A cartilha ensina os alunos a silabarem e depois quer que eles
leiam com fluência: isso é contraditório! As crianças aprendem a
falar e dizem tudo de maneira adequada nas mais diferentes
circunstâncias da vida, justamente porque, como falantes
nativos, aprenderam a agir assim e nisso são perfeitas. Poderiam
aprender a ler usando esse mesmo comportamento fonético.
Porém, a escola destrói essa habilidade já conquistada, porque
acha que falando naturalmente os alunos não irão aprender a
grafar corretamente as palavras nem a ler no dialeto padrão. Há
um equívoco educacional nessa atitude escolar.
Observando a fala para escrever
Quando vão aprender a ler e a escrever, as crianças têm, como
única referência de conhecimento já adquirido, a própria fala.
Elas observam demais a própria fala, nesse momento. A cartilha,
porém, ignora esse fato e, aos poucos, induz os alunos a
interpretarem os fenômenos fonéticos da fala, tendo como
modelo a forma escrita das palavras e não a realidade fonética.
Depois de certo tempo, os alunos já não conseguem sequer
analisar a própria fala ou a de outras pessoas, a não ser através
da escrita ortográfica. E uma pena.
<CAGLIARI, 1989b. >
A escola deveria aproveitar essa habilidade de percepção da
fala que as crianças têm para explorar a linguagem oral cada vez
mais e fazer com que essas análises se tornem conhecimentos
solidamente estabelecidos. Isso é importante e servirá como um
recurso significativo para se entender muitos outros aspectos da
natureza da linguagem. Até para aprender ortografia é uma
excelente estratégia, porque o aluno não ficará mais tentando
achar a forma ortográfica, falando possíveis pronúncias de
professores alfabetizadores, mas saberá que a fala funciona
diferentemente da ortografia. É muito importante passar da
habilidade de falar naturalmente uma língua para a de ler textos
com fluência: para tanto, a cartilha precisa mudar radicalmente
sua postura diante da linguagem oral.
Confusão entre fala e escrita
As cartilhas apresentam praticamente a cada passo erros
grosseiros de fonética, porque confundem fatos da fala com
fatos da escrita. Um exemplo clássico encontra-se na
interpretação dos valores fonéticos da letra X, em que se
distinguem o que alguns professores chamam os sons S e SS
quando, na verdade, eles representam um único som, como se
pode comprovar, observando a pronúncia de palavras como
"próximo" e "extra" (para os que falam "éstra" e não "échtra").
Outro fato notório é que a cartilha considera a mesma coisa o BA
de "banho" e o de "batata".
Como a cartilha está completamente equivocada a respeito do
funcionamento da fala e como a maioria dos professores não
recebe uma formação lingüística adequada, em particular com
relação à fonética, muitas explicações relacionadas a certos
erros da fala ou da escrita que alguns alunos cometem na
alfabetização chegam às raias do ridículo, como aquelas relativas
às famosas trocas de letras.
Dificilmente se encontra um professor que faça uma análise
correta desses erros. Eles acham que os alunos têm problemas
auditivos (há sempre uma deficiência qualquer quando aparece
um erro na alfabetização), que os alunos falam errado porque
vivem constantemente distraídos, que não sabem observar
corretamente as letras, que não são capazes de memorizar
diferenças elementares, como as pronúncias de "vaca" e "faca",
etc.
A incompetência desses professores fica evidente quando se
pede para que analisem (ou escrevam) palavras inventadas (sem
ortografia definida), como, por exemplo, "vixrrabzó" (com a
letra X representando o som de CH). Em primeiro lugar, eles não
são capazes de ouvir direito e têm dificuldade em memorizar,
exigindo que o enunciado seja repetido inúmeras vezes. Não
sabem se existe ou não um I depois do X, estranham se lhes é
perguntado se o RR é surdo ou sonoro,
<86>
trocam V por F, B por P, Z por 5, exatamente como fazem seus
alunos, de quem eles tanto reclamam. O pior de tudo é que esses
professores nem sequer são capazes de entender os erros que
eles próprios cometem.
Haverá sempre aquelas pessoas que acabam concluindo que,
apesar de todos esses problemas, os professores alfabetizam e
os alunos aprendem (pelo menos alguns). E isso, é necessário
admitir, é verdade. Acontece, porém, que a escola não pode
adotar essa postura: ela não faz sentido. Se podemos ter um
ensino decente, por que nos contentarmos com um ensino
indecente?
< CAGLIARI, 1984b. >
Veja "Ditados e ditadores"
(CAGLIARL 1990, p. 94-117, no qual se relata uma pesquisa
realizada a partir de um ditado especial feito para professores
alfabetizadores e os resultados obtidos.
A CARTILHA E A ESCRITA
A cartilha moderna apresenta um método de alfabetização
baseado na aprendizagem da escrita (e não da leitura, como
antigamente). Tudo na cartilha gira em torno da escrita. Até a
fala dos professores que seguem a cartilha imita a escrita e não
a linguagem oral dos falantes nativos da língua. Essa visão
centrada na escrita será levada pelos alunos até o dia em que
puderem estudar seriamente lingüística e aprenderem que a
escrita é apenas uma forma de representação gráfica de alguns
elementos fonéticos da linguagem e esta, na sua essência, é
oral.
A escrita prevalece sobre a fala
Depois que a cartilha passou a fazer parte da escola, os
estudos sobre a oralidade ficaram praticamente excluídos: tudo
é feito por escrito. A escrita, então, passou a ser considerada
algo nobre, perfeito, portador do pensamento lógico e literário,
ao passo que a fala começou a ser considerada algo vulgar, uma
linguagem cheia de erros e falhas, deselegante, incapaz de
traduzir o pensamento mais sofisticado da cultura.
Infelizmente esses são grandes preconceitos de nossa cultura.
As pessoas esquecem-se de que sem a linguagem oral sequer
poderia haver linguagem escrita. A escrita requer decifração
para ser entendida, e decifrar é devolver o texto escrito à forma
oral de realização da linguagem. É uma ilusão pensar que se
pode passar diretamente da decifração da escrita para o
pensamento puro, sem passar pela organização da linguagem
humana,
<87>
a qual, na sua essência mais profunda, nada mais é do que a
união de significados com sons da fala.
Embora a cartilha tenha em tão alta estima a escrita e faça com
que tudo, no processo de alfabetização, gire em torno dela,
constata-se que ela não sabe quase nada a respeito dos sistemas
de escrita e, pior ainda, divulga muitas idéias estranhas e
erradas a respeito desse assunto.
A palavra
Sem dúvida alguma, a palavra é a unidade principal de todos
os sistemas de escrita. A cartilha foi além: não só assumiu isso,
como passou a trabalhar como se a palavra escrita fosse a
unidade mais importante da linguagem, o que é falso. Na
verdade, a palavra, como unidade lingüística, é algo muito
confuso e de difícil definição e manipulação. A grande prova
disso pode ser encontrada na própria alfabetização, observando-
se a dificuldade que os alunos têm no começo para segmentar a
própria fala em palavras, seguindo os padrões da escrita.
Todavia, a palavra é o centro das atenções da cartilha. Pode-
se até ter uma frase ou um pequeno texto, junto com as lições,
porém o que vale não é o texto em si, mas o fato de ele conter
apenas palavras já estudadas. Uma frase é pura e simplesmente
uma seqüência de palavras. Do significado de cada palavra, tira-
se o significado total do texto. Essa é uma visão muito
reducionista da linguagem humana, a qual, no entanto, fica tão
marcada na formação dos alunos, que eles podem continuar com
essa idéia pelo resto da vida. Desse modo, a linguagem como
expressão do pensamento e como ação sobre o mundo fica
destruída. Essa é uma das razões pelas quais muitos alunos têm
dificuldades em lidar com a linguagem na escola e fora dela,
escrevem sempre coisas estranhíssimas nos seus textos e têm
enorme dificuldade para entender as sutilezas (e às vezes até as
coisas mais óbvias) da linguagem.
O que a cartilha faz diante da palavra escrita que ela considera
a essência da linguagem? Começa um jogo de desmonte e
remontagem, pressupondo-se agora que as palavras são feitas
de pedacinhos que se juntam. Esses pedacinhos, é claro, serão
organizados em famílias, compostas de uma consoante mais uma
das cinco vogais da escrita. Assim, a família do B é constituída de
ba-bé-bi-bo-bu. Como resquício do princípio acrofônico,
<88>
tradicionalmente ligado ao alfabeto, cada família recebe uma
palavra-chave, que servirá de recurso mnemônico. Por exemplo:
BARRIGA será a palavra-chave para a família do bá-bé-bi-bó-bu.
Como um dos objetivos do monta-e-desmonta é associar letras
às sílabas da linguagem oral, estudam-se primeiro as famílias
mais simples, constituídas de uma consoante mais uma vogal
(usando apenas as letras disponíveis na escrita, não os fonemas
que cada letra apresenta na fala), e depois as famílias em que
aparecem grupos de consoantes, como a família do chá-ché-chi-
chó-chu, do prá-pré-pri-pró-pru, etc. Finalmente, são estudados
os casos em que ocorre uma consoante no final de sílaba, como
nas palavras an-jo, cam-po, etc.
As cartilhas apresentam os piores textos, elaborados por
"razões pedagógicas", para gerar as unidades das lições com os
elementos já dominados. Basta comparar os textos das cartilhas
com os textos espontâneos das crianças para perceber
imediatamente como os primeiros são ridículos e idiotas. Os
textos das cartilhas não lidam adequadamente com os elementos
coesivos e, às vezes, nem com a coerência discursiva, o que faz
deles péssimos exemplos para os alunos.
<MASSINI-CAGLIARI, 1997a. >
Elementos coesivos dizem respeito àquelas palavras que fazem
referência a outras mencionadas antes num texto, com os
pronomes substituindo nomes, advérbios, etc. A coerência
discursiva refere-se ao fato de se manter uma lógica nas
afirmações que o texto traz, um compromisso com a verdade do
texto, e ao fato de se passar de um assunto a outro mantendo
uma relação harmônica entre as partes.
Muitos alfabetos
Mas há outros aspectos da escrita a serem considerados.
Nenhuma cartilha explica a seus usuários que usamos
"diferentes alfabetos", como ABCÇDEFG... e abcçdefg...
Certamente, o professor dirá que temos letras maiúsculas e
minúsculas (além das letras de fôrma ou imprensa e das letras
cursivas ou manuscritas). No entanto, o essencial, que é o fato
de existirem alfabetos diferentes, nesses casos, passa
despercebido. Uma letra maiúscula pode ser escrita em tamanho
menor do que uma letra minúscula, porque não é o tamanho que
conta, mas a forma gráfica. Alguns alunos têm grandes
dificuldades para perceber que letra é um valor abstrato ao qual
podemos associar uma variedade de alfabetos diferentes. E a
cartilha não explica isso. Os alunos acabam constatando por si,
depois de certo tempo, mas isso pode ser um processo longo e
difícil.
A escrita cursiva
O método das cartilhas tem uma preferência declarada pela
escrita cursiva, embora isso não fique evidente ao analisarmos
os próprios livros, nos quais se utiliza
<89>
também a letra de imprensa. Para se ter uma idéia da
importância da escrita cursiva na alfabetização, é preciso
analisar o que acontece nas salas de aula e nos cadernos dos
alunos — e não apenas nas cartilhas. Essa atitude de valorizar a
escrita cursiva revela um preconceito da escola e um equívoco
sério. Ninguém nega que a escrita cursiva seja importante, que é
mais fácil escrever rapidamente na forma cursiva do que usando
letras de fôrma. Também é verdade, porém, que a letra cursiva
representa essas vantagens apenas para as pessoas que já estão
muito familiarizadas com a escrita e com a leitura, ou seja,
pessoas já alfabetizadas. Para quem está aprendendo, a letra de
fôrma — especialmente a maiúscula — proporciona um material
gráfico melhor para a leitura e até para as primeiras escritas.
Tanto isso é verdade que as crianças quando estão passando dos
rabiscos para as primeiras formas gráficas utilizam
espontaneamente a letra de fôrma, mesmo estando habituadas a
ver as duas formas de escrita no seu cotidiano.
A escrita cursiva é uma maneira de adaptar o grafismo das
letras aos maneirismos pessoais: por isso, freqüentemente se
constata que é difícil ler a letra do outro. A escrita cursiva
apresenta um traçado de letras ligadas, facilitando uma escrita
rápida, que, por outro lado, dificulta o trabalho de leitura. Como
exige uma ação mais complexa do usuário pela sua natureza
gráfica, a escrita cursiva torna-se mais difícil para quem não tem
prática. Os alfabetizadores gostam dela também por essa razão,
uma vez que, sendo mais difícil de elaborar, permite avaliar
melhor se um aluno está aprendendo ou não a traçar as letras.
A escrita cursiva tem um uso quase exclusivamente pessoal.
Com o grande desenvolvimento tecnológico das máquinas de
escrever (chegando até os computadores), a escrita deixou de
ser feita à mão, ficando essa atividade restrita a pequenas notas
pessoais. Isso fez a escrita cursiva perder um pouco da sua
importância no mundo moderno. Apesar disso, o método das
cartilhas e a escola continuam insistindo na escrita cursiva.
Alguns professores acham que, se os alunos começarem a
escrever com letras de fôrma, não vão aprender a escrever com
letras cursivas, e no processo de alfabetização o alvo a ser
atingido é a bela escrita cursiva, redondinha, igual para todos.
Padronizar a escrita cursiva desse modo é ir contra a sua própria
natureza, cuja característica fundamental é ser uma expressão
gráfica individualizada.
<90>
Equívocos a partir da escrita cursiva
Um certo número de erros encontrados nas tarefas escolares
dos alunos deve-se a confusões causadas pelo uso da escrita
cursiva. Como ela deforma certas letras quando agrupadas, fica
difícil saber exatamente onde começam e onde terminam
algumas letras e até mesmo quais os elementos gráficos que as
constituem. É por isso que um aluno pode pensar que, na escrita
cursiva a letra "b" é formada por traços que se assemelham às
formas da letra "I", seguida dos de uma letra
— A. "v"; ou que a letra "h" é uma combinação de "I" e "s";
que a letra "A" é formada de um "C" e "e". Ou, ainda,
P — O que a letra "a" e a letra "d" são a mesma coisa,
distinguindo-se apenas pelo som que têm nas palavras (assim
como o "t" e o "tch", em palavras como TV e TIA,
— etc.). O aluno pode até constatar que há uma diferença na
altura da "perninha", que também varia, de caso para caso.
Afinal, esse tipo de variação acontece a todo instante e nunca foi
considerado relevante, por que seria então no caso de "a" e "d"?
Dificuldades como essas em geral passam despercebidas pela
maioria dos professores, os quais se contentam em apagar o erro
do aluno e mostrar a forma certa.
Há outros problemas da escrita com os quais a cartilha não
lida adequadamente. Por exemplo, há uma série de exercícios e
orientações que vem desde o período preparatório, esclarecendo
à criança que se escreve da esquerda para a direita. Quando diz
isso ao
aluno, o professor está pensando na ordem das letras nas
palavras. Porém, o aluno pode pensar de outra maneira seguindo
a instrução recebida e entendida dentro do quadro de suas
dificuldades particulares, alguns alunos acabam escrevendo de
forma espelhada letras
esquerda como S, C, etc., em início de palavras. Uma letra puxa
outra e de repente o aluno está escrevendo a palavra e
até a frase inteira de forma espelhada. E o professor
(mal-informado) pode achar que essa criança tem problema de
lateralidade cerebral, um caso sério para a
medicina resolver.
Escrita sem sistema
Como a cartilha não apresenta nem discute, em momento
algum, a natureza, a função e os usos dos sistemas de escrita,
alguns alunos acabam enveredando por caminhos complicados,
em geral becos sem saída para si e para o professor. É o caso
daquele aluno que faz
<91>
uns rabiscos e diz que escreveu seu próprio nome. O professor
pensa que ele está "doido", sobretudo porque, ao ser indagado,
o aluno mostra que sabe ler o que escreveu. Esse mesmo
professor, que concluiu que seu aluno era "doido", horas depois
vai ao banco, assina um cheque fazendo exatamente o que fez
seu discípulo e não acha nada estranho; pelo contrário, orgulha-
se de ter uma assinatura exótica, cheia de rabiscos.
O aluno provavelmente levou para a sala de aula algo que
constatara na vida: as pessoas assinam o próprio nome — isto é,
escrevem — fazendo rabiscos.
Cópias e ditados
Através de cópias e ditados, o trabalho prossegue, até que o
aluno passe por todas as lições, podendo, então, ganhar seu
famoso diploma de alfabetização. O aluno, nesse meio tempo, vai
desmontando e remontando palavras para ver o que acontece:
não tem liberdade nem lhe é facultado ter qualquer iniciativa
para escrever o que gostaria. Pelo contrário, toda aventura
individual pode levar ao erro, e o erro pode ser irremediável. Por
isso, ninguém pode escrever nada, a não ser o que já tenha
estudado com o professor.
Os alunos copiam palavras muitas vezes para fixar sua forma
ortográfica; depois, copiam as primeiras frases e, finalmente, os
primeiros textos. Somente depois de terminada a cartilha,
podem começar a escrever frases por iniciativa própria e, mais
adiante, os primeiros textos. Antes de chegar a este ponto, tudo
é feito de maneira coletiva: todos realizam a mesma tarefa, da
mesma maneira, no mesmo momento.
A cartilha pensa que ensina a ler, por meio de cópias e ditados
e desmontando e montando as palavras em famílias de letras. A
cartilha jamais discute a leitura em si, a decifração. Somente em
dois momentos (e de maneira equivocada) trata das relações
entre letras e sons:
quando apresenta os dois sons do E e do O, e os cinco sons do X.
O que falta no estudo da escrita
Infelizmente, a cartilha não apenas trata a escrita de maneira
inacreditavelmente equivocada, como deixa de tratar de muitos
aspectos da escrita que são interessantes e importantes e que,
por essa razão, deveriam começar a ser estudados desde a
alfabetização.
<92>
A história da escrita deveria fazer parte das preocupações da
escola e dos livros didáticos desde a alfabetização. As crianças
adoram ouvir histórias e a da escrita é verdadeira e fascinante.
Em particular, deverse-ia contar a história das letras do alfabeto,
os diferentes tipos de letras (ou estilos) que o alfabeto latino
produziu ao longo da história do Ocidente. Seria interessante
apresentar ainda, mesmo que sumariamente, um relato sobre a
ortografia da língua portuguesa, para mostrar aos alunos de um
modo muito interessante como a ortografia funciona numa
sociedade.
O mundo em que vivemos está cheio de escrita ideográfica,
feita com pictogramas ou com caracteres convencionais. Esse é
um aspecto interessantíssimo para ser explorado pela escola e,
conseqüentemente, pelas cartilhas, na alfabetização. Os alunos
podem inventar sistemas de escrita seguindo modelos
conhecidos. Podem experimentar escrever o que quiserem com
eles e testar se as demais pessoas conseguem ler ou não,
conferindo, assim, os limites e a importância da
convencionalidade na escrita. Uma atividade como essa permite
ao aluno ler e escrever logo
no primeiro dia de aula, o que pedagogicamente é motivo de
grande alegria e de entusiasmo para os alunos e grande
motivação para continuarem explorando novas formas de escrita
até chegar à escrita
com as letras do alfabeto.
A escola precisa explicar como funciona o sistema de escrita, o
que são letras, como se decifra uma escrita com letras, o que é
escrever à moda de uma transcrição fonética — com a qual os
lingüistas registram
os sons da fala de acordo com a pronúncia de cada um — e
comparar esses modos de escrever com a escrita ortográfica. A
escola precisa explicar o que é ortografia, como funciona, como
os alunos fazem para
escrever respeitando a ortografia, para corrigir os textos que
produzem, para tirar dúvidas. A escola precisa não incutir nas
pessoas o medo de escrever errado alguma palavra de
conhecimento comum. Para isso, ela precisa ensinar os alunos,
primeiro, a aprender a escrever e, depois, a escrever de acordo
com as regras ortográficas, sem medo de ter dúvidas, de
perguntar, de buscar informações nos dicionários ou com as
pessoas que sabem, porque ninguém passa pela vida sem ter
dúvidas de ortografia. Às vezes, temos uma imensa dúvida
ortográfica com uma palavra que parecia conhecida, familiar,
que sempre escrevemos. Se a sociedade
<93>
fosse melhor preparada pela escola, não se escandalizaria
diante dessas dúvidas. Mas do jeito que a cartilha trata o
assunto, parece burrice não ter certeza sobre a ortografia das
palavras. É óbvio que a escola vai cobrar dos alunos que
memorizem a ortografia das palavras de uso comum, de acordo
com o nível de escolaridade, mas poderia ser muito mais
benevolente com os erros. E quando não se sabe como se
escreve uma palavra, não adianta pensar, refletir, especular: é
preciso perguntar a quem sabe ou olhar no dicionário.
A pior conseqüência da maneira como a cartilha trata a escrita
na alfabetização decorre inegavelmente da sua concepção de
texto. Mas esse ponto terá um tratamento especial, mais
adiante.
A CARTILHA E A LEITURA
Como a cartilha ensina a ler
Existe uma leitura que é a decifração da escrita, que a cartilha
pensa ensinar aos alunos quando mostra as famílias de letras e
propõe exercícios de desmonte e remontagem de palavras. E é
só o que os livros apresentam. Como a cartilha tem uma maneira
equivocada de tratar a escrita, a leitura também fica
prejudicada, pois depende crucialmente da escrita. Alguns
alunos chegam mesmo a explicitar o processo de decifração que
aprenderam, dizendo, por exemplo, "le-a-la, te-a-ta" ao tentar
ler "la-ta". Quando chega o momento da leitura, alguns
professores obrigam seus alunos a acompanhar com os olhos
letra por letra, uma depois da outra, decifran do-as
individualmente e falando o que estão lendo. Os mais espertos
acabam realizando uma leitura silabada que, com o tempo, pode
até adquirir velocidade suficiente para dar a impressão de
fluência. Todavia, não raramente ocorre que, mesmo esses
alunos fluentes e rápidos na leitura, quando acabam de ler um
texto, não são capazes de lembrar o que leram, a não ser uma ou
outra palavra (geralmente aquelas que apresentaram dificuldade
de leitura, em que o aluno gaguejou, parou para pensar...).
Do modo como a cartilha trata a escrita e a fala, é quase
impossível que um aluno, na alfabetização, leia
<94>
com o devido ritmo e a desejada entoação. As cartilhas
preferem leituras coletivas às silenciosas, sem cobranças. Os
alunos são solicitados freqüentemente a ler de surpresa um
texto novo (é claro, composto só de palavras já estudadas, ou de
palavras com sílabas das famílias de letras já dominadas).
Preparar uma leitura com antecedência vai contra os costumes
das cartilhas. A leitura de improviso é mais uma atividade para
testar se o aluno aprendeu ou não a lição, se já dominou um
determinado conteúdo ou não. Para um aprendiz ler em voz alta,
como deveria ser a leitura, ele precisa decifrar a escrita com
facilidade, o que, nos primeiros meses de alfabetização, não está
ao alcance da maioria dos alunos.
A cartilha usa, ainda, a leitura como forma de ensinar e fixar a
pronúncia da norma culta, freqüentemente exigindo dos alunos
uma leitura com uma pronúncia artificial.
A interpretação de textos segundo a cartilha
O método das cartilhas introduziu uma nova atividade quando
percebeu que alguns alunos, bons leito res, não eram capazes de
dizer com as próprias palavras o que tinham lido. Essa atividade
é a interpretação de textos.
Qualquer texto passou a ser um pretexto para colocar em
prática aquela atividade. Mais uma vez, a cartilha meteu as mãos
pelos pés. Fazer interpretação de texto passou a ser preencher
os vazios de perguntas feitas com trechos do texto. Por exemplo,
se o texto diz: "Maria foi visitar a vovó", pergunta-se: "Quem foi
visitar a vovó?" "Maria foi fazer o que na casa da vovó?" "Maria
foi visitar a..." Ora, achar que um falante nativo de português
não é capaz de ouvir (ou ler) uma frase banal como essa e não a
entender é um insulto à racionalidade da pessoa.
Alguns professores, que preferiram trocar os textos das
cartilhas por "livros paradidáticos", passaram a dar importância
exagerada à interpretação de textos, reduzindo suas aulas a
essa atividade. Nesses casos o professor costuma propor um
longo exercício de perguntas e respostas, em um momento
inoportuno para esse tipo de atividade, já que o aluno mal sabe
ler. O que os alunos gostariam mesmo de fazer era aprender a
ler e a escrever, para ler por si e escrever suas historinhas como
bem quisessem.
<95>
OUTROS PROBLEMAS DAS CARTILHAS
O método das cartilhas tem outros problemas que não são
menos graves do que aqueles relativos à fala, escrita e leitura.
Alguns deles merecerão aqui um destaque.
Aprender em ordem
O princípio da progressão controlada, baseado na idéia dos
elementos já dominados, ordenando as dificuldades
progressivamente com cronogramas minuciosos, estabelecendo
o que vem antes e o que vem depois no ensino e na
aprendizagem, amarra de tal forma o processo de alfabetização
que os alunos passam a fazer apenas o que o professor manda.
Por outro lado, esse princípio serve de base para a avaliação que
permite ao professor passar para a lição seguinte ou não. Como
tudo vem rigidamente em seu lugar, quando o aluno erra, deve
voltar atrás e repetir a lição. O princípio da progressão
controlada pressupõe que apenas o elemento novo introduzido
na lição constitui dificuldade para o aluno, uma vez que o resto
"já foi dominado". Acontece, porém, que à medida que os alunos
avançam, acabam se esquecendo de coisas já vistas, e isso gera
uma enorme confusão na aplicação do método. A única saída
para esses casos é separar os alunos atrasados em classes
especiais, onde começarão tudo de novo. Para alguns alunos,
esse processo irá se repetir até que ele abandone a escola,
julgando-se incapaz nos estudos.
O entulho gramatical
As cartilhas costumam trazer exercícios de gramática que são
verdadeiros entulhos jogados nas lições para preencher o tempo
dos alunos com atividades de linguagem. Esses exercícios
tratam, sobretudo, de gênero, de número e de graus das
palavras. Há, ainda, exercícios de identificação de categorias
gramaticais. Querer ensinar essas coisas na alfabetização é um
desastre. Como não há explicações sérias, apenas exercícios
como "faça segundo o modelo", nota-se que muitos alunos
erram, nesses exercícios, coisas que, de fato, conhecem
perfeitamente, como falantes nativos da língua. Assim, um aluno
ao ser perguntado sobre o feminino de "o pai" escreve "o paioa";
de "tio", escreve "tioa".
<96>
Nenhum falante confunde "pai" com "mãe" ou "tio" com "tia", a
não ser fazendo exercícios gramaticais como esse. Resumindo,
esses exercícios não só não ensinam nada, como ainda induzem
os alunos a errar. Para muitos alunos, parece mais natural que o
aumentativo de "macaco" seja "grande macaco" ou "gorila" ou
talvez até "cigecougue" (King-kong), mas não "macacão". Para
elas, definitivamente, "macacão" é um tipo de roupa.
Metáfora e fantasia
Faz parte da praxe das cartilhas conduzir um processo de
ensino em que se diz quase tudo de maneira metafórica,
indireta, evitando um tratamento sério, objetivo, preciso e direto
das verdades que se devem ensinar. Por se tratar de crianças,
alguns professores falam com seus alunos como se todos
vivessem num mundo de fantasia. Supõem que as crianças não
conseguem acompanhar uma explicação correta e objetiva,
precisando sempre aprender através de subterfúgios
pedagógicos. Então, sílaba virou "pedacinho", as palavras-chave
precisam ser apresentadas através de uma história fantasiosa e
representar uma idéia importante no texto básico da lição. Para
tudo, deve haver uma história e, se possível, uma musiquinha
para cantar, cuja letra repita inúmeras vezes os elementos da
lição. Tudo precisa vir acompanhado de gravuras, figuras, com
muito colorido e enfeites.
Ninguém contesta o fato de que as crianças gostam de
histórias e se divertem em meio a esse clima de sala preparada
para festa de aniversário; porém, quando vão para a escola,
sabem que não estão indo a uma festa, mas a um lugar sério,
onde se aprendem coisas sérias, úteis para a vida e, portanto,
importantes. Elas têm essa consciência da seriedade. A escola,
não obstante, às vezes torna-as levianas e comodistas.
O excesso de histórias, na maioria das vezes sem nenhuma
graça, apresentadas apenas como pretexto pedagógico, acaba
levando a um ensino absurdamente metafórico. Evita-se a todo
custo falar de como as coisas são na realidade. Na prática
tradicional das cartilhas não se podem usar termos técnicos. As
letras não têm nomes: em vez de U, os alunos dizem "a letra do
chifre"; a letra o é "a letra da boca", porque foi com o desenho
dos chifres do boi que aprenderam a escrever a letra U, e com o
desenho de uma boca aberta que aprenderam a letra Q
<97>
Remanejamento para evitar problemas
A cartilha equivocadamente confunde ensino com
aprendizagem, avaliação com promoção, favorecendo uma
atitude de segregação dentro da escola e da própria sala de aula,
com os remanejamentos de alunos para classes especiais. Tudo
precisa ser avaliado e receber uma nota, e o que saiu errado
precisa ser refeito, até acertar. O método das cartilhas procura
uma homogeneização que destrói a iniciativa individual, partindo
do princípio de que educar é fazer com que todo o mundo saia da
escola exatamente com a mesma cara. O diferente é combatido e
não pode existir na escola. As diferenças individuais não são
permitidas porque não podem ser avaliadas através de testes
coletivos, iguais para todos.
As cartilhas representam a prática de métodos mecanicistas,
bons para adestramento, para condicionamento, mas muito ruins
para quem quiser usar a reflexão para construir o conhecimento.
Na cartilha, tudo vem pronto para o aluno, basta digerir: não há
lugar para uma reflexão autônoma, para uma livre iniciativa,
para a criatividade, para continuar com as características
próprias. A uniformização é um imperativo.
O erro não tem vez
Como as cartilhas não sabem lidar com as diferenças no
processo de aprendizagem e como prevêem somente o certo,
nenhum erro será objeto de estudo. Por essa razão, não
encontramos nas cartilhas, nem nos manuais de professores,
formas de proceder quando um aluno não aprende algo que o
professor explicou direitinho, segundo manda o figurino. Os
professores sabem, por experiência própria, que é difícil ensinar
a ler e a escrever, mas quem analisa uma cartilha fica com a
impressão de que tudo é tão simples e perfeito, que ninguém
nunca erra nem tem dúvidas.
As cartilhas são implacáveis com relação a quem não entra no
esquema e, por isso, não têm nenhuma sugestão para o
professor aproveitar quando a evidência dos fatos da vida
mostra claramente que o método não funcionou. A única saída é
repetir tudo de novo, da mesma maneira, remanejar a criança
para uma classe de alunos com dificuldades de aprendizagem, os
chamados "alunos carentes". E se não se corrigirem, a saída da
escola é a solução para o problema.
< CAGLIAR!, 1985b e 1986b.
<98>
O fascínio pelo já pronto
A maioria dos professores que usam o método das cartilhas foi
informada de que essa ou aquela cartilha é, de fato, um grande
livro didático, com métodos excelentes de alfabetização,
comprovados desta e daquela maneira. Ouviram dizer que tal
colega usa tal cartilha e seus alunos são alfabetizados da melhor
maneira possível. Por falta de espírito crítico, por falta de
competência necessária para discutir a questão a fundo e
seriamente, muitos professores continuam achando que a
melhor maneira de alfabetizar é pelo método das cartilhas, se
possível, seguindo o próprio livro didático.
Outros (poucos?) preferem as cartilhas pela comodidade de
aplicar em sala de aula um método já pronto, escolhendo, de
preferência, aquelas que vêm com toda a parafernália didática
preparada para o ano letivo.
Há ainda o interesse econômico, que tem feito das cartilhas
um negócio muito lucrativo, sobretudo junto aos órgãos públicos
encarregados da educação. Para um bom trabalho de
alfabetização, sobretudo nas es colas públicas, é mais
importante ter lápis e papel do que cartilhas. Apesar de tudo, o
governo insiste em distribuir cartilhas, esquecendo-se do lápis e
do papel. Em algumas escolas, os alunos recebem um belo livro e
fazem as lições com tocos de lápis e sucata de papel de
escritório.
SUBSTITUTOS DAS CARTILHAS
As considerações acima mostram como é problemático o uso
do método das cartilhas na alfabetização. Mas, se a cartilha é tão
ruim assim, o que fazer para alfabetizar sem a cartilha e,
sobretudo, sem o método das cartilhas? Qual é a saída, ou
melhor, quais são as alternativas?
Depois desse longo caminho, analisando a história e os
métodos de alfabetização, podem-se tirar algumas conclusões
interessantes que nos levarão a entender por que proceder de
um jeito e não de outro, na escola, a fim de conduzir um
processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita de
maneira mais correta e proveitosa.
Em primeiro lugar, é preciso entender que o segredo da
alfabetização está na aprendizagem da leitura. Aprender a ler,
aqui, significa aprender a decifrar a escrita. <99>
Para saber decifrar a escrita, é preciso saber corno os sistemas
de escrita funcionam e quais os seus usos. Como a escrita é uma
forma gráfica de representação da linguagem oral, é necessário
estudar os mecanismos da produção da linguagem oral, quais os
seus usos e, ainda, como a linguagem oral se relaciona com a
forma escrita que a representa, num contexto culturalmente
específico da sociedade moderna.
Infelizmente, constata-se que não basta jogar o livro fora ou
dizer que não se quer mais seguir o método do bá-bé-bi-bó-bu,
para levar adiante um bom trabalho de alfabetização. Há coisas
erradas demais no sistema educacional do Brasil, que tornam
qualquer iniciativa de boa vontade fadada ao fracasso, por falta
de infra-estrutura, pela presença constante e sufocadora de uma
máquina burocrática anacrônica e, principalmente, pela
incompetência de alguns professores. Estes recebem das escolas
de formação todos os equívocos, preconceitos e barbaridades
que depois levam para a sala de aula. Alguns autores de livros
didáticos, por sua vez, são tão despreparados quanto os
malformados professores. Acrescente-se a isso a exigência
ridícula de pais e avós que fazem questão de que seus filhos
sejam educados exatamente da maneira como eles o foram.
Apesar desse quadro pouco animador, aos poucos, os
professores interessados podem ir deixando de lado a velha
prática de alfabetização e iniciar um trabalho novo, com
dedicação ao estudo para suprir as lacunas e deficiências e muito
bom senso. A própria prática - mestra da vida - ajuda muito.
O professor não pode ter medo de levar seus alunos a sério,
de ir direto ao assunto, conduzindo um processo equilibrado de
ensino e aprendizagem. Afinal de contas, o professor sabe ler e
escrever. Com um pouco de reflexão mais cientificamente
controlada, ele é capaz de realizar um excelente trabalho, sem
precisar gastar muito tempo, refazendo desde o início sua
formação. O professor também aprende ensinando. Se seus
alunos forem instigados a construir um processo de
alfabetização baseado na reflexão, na pesquisa, no trabalho
compartilhado, o próprio professor verá, para sua surpresa, que
ele também está aprendendo. Mais do que isso, ele começará a
deixar de lado a idéia de que seu trabalho é maçante, acabando
por descobrir o mundo fascinante da construção do
conhecimento pelos alunos, como uma mãe deslumbrada
<100>
diante do crescimento de seu filho, num processo de
aprendizagem verdadeiro, como deveria existir sempre nas
escolas.
A CARTILHA E OS PROFESSORES
CAGLIARI, 1997c.
Apesar de todos esses problemas, o método das cartilhas é
considerado em geral muito conveniente pelos professores. Se o
aluno não aprender, a responsabilidade não é dele, nem do
método, mas da incapacidade do aluno. Como o método
considera que todos os alunos partem do zero e vão estudando
ponto por ponto, do mais fácil para o mais difícil, isso dá uma
falsa aparência de ordem e organização. Todos os alunos devem
fazer a mesma coisa, do mesmo modo, no mesmo tempo. Para o
professor, fica fácil avaliar quem está acompanhando e quem
está ficando para trás. Como o trabalho é igual para todos e
avança aos poucos em complexidade, os professores conseguem
fazer com que seus alunos apresentem cadernos muito bonitos,
em que tudo está perfeito, em ordem, sendo muitas vezes uma
cópia exata do próprio caderno do professor, que ele usa como
modelo. Se o aluno errar alguma coisa, o professor apaga e
coloca o certo. Os pais e diretores olham os cadernos desses
alunos e acham que tudo vai às mil maravilhas. Ledo engano,
que não irá durar muito.
Por trás de toda aquela aparente ordem, esconde-se muita
coisa mal compreendida, que irá produzir péssimos frutos nas
séries posteriores. No esforço para salvar a ortografia e a
aparência correta da escrita, o método da cartilha destrói a
habilidade do aluno de lidar com a linguagem na sua forma plena
e natural, como fazia antes, quando apenas falava. O método da
cartilha produz cadernos belos, sem erros, porque os alunos só
reproduzem o já dominado, e o professor só permite que ali fique
registrado o que está certo. Depois, quando os alunos tiverem de
escrever espontaneamente, cometerão toda sorte de erros,
mostrando uma "desaprendizagem" perigosa.
Aos professores que dizem que também se aprende pela
cartilha, que muita gente fez isso e aprendeu bem, deve-se
rebater, lembrando todos aqueles que não aprenderam e que
tiveram de abandonar a escola por causa de um método que
privilegia um planejamento
<101>
escolar rigoroso e detalhado, inocentando os professores e os
livros de sua incompetência. Os professores que adotam as
cartilhas nem sequer param para analisar cuidadosamente o que
fazem, ou para investigar por que alguns alunos aprendem e
outros não, ou ainda para ponderar a que preço seus alunos
aprendem.
Finalmente, convém ressaltar que, em séries posteriores, já
não aparecem mais cartilhas. Alguns professores, no entanto,
são tão obcecados por elas, que continuam aplicando esse
método nas séries posteriores. Livros de matemática tendem
fortemente a seguir o método de ensino das cartilhas. O que
salva, em parte, as aulas de português é a produção de textos, a
leitura e a literatura. Como a matemática não tem dessas coisas,
o ensino torna-se insuportável para grande parte dos alunos,
que se vêm obrigados a ter um estudo cujo único objetivo é o de
reproduzir um modelo. Afinal, para que servem os exercícios de
matemática, da maneira como aparecem em certos livros? A
atividade parece que se esgota em si mesma, e o aluno faz a
tarefa para ver se acerta e não tem a sensação de estar
aprendendo algo que poderá ser útil e aplicável na vida real. Um
fato semelhante acontece com certos professores de português
que passam um ano inteiro fazendo exercícios de análise
sintática.
O uso do método das cartilhas (com livro ou sem livro) é
largamente difundido entre os professores alfabetizadores
porque é um programa de trabalho já pronto, do começo ao fim,
que se escolhe no início do ano e que será aplicado ao longo dos
dias escolares.
Algumas pessoas partilham da opinião de que não se pode
estudar sem um livro didático, só que, em vez de escolher livros
mais interessantes, preferem as cartilhas, porque são mais
"práticas". Na verdade, há uma longa tradição escolar que tem
produzido cartilha atrás de cartilha, sem propor nada de
diferente. Se um professor achar no mercado editorial atual uma
obra que ensine a alfabetizar sem o bá-bé-bi-bó-bu, será um fato
surpreendente. Os livros didáticos são feitos, em geral, por
professores, e como eles não têm outra visão do processo de
alfabetização, repetem sempre o velho esquema. O círculo
vicioso se fecha quando, por falta de material adequado e de
uma sólida formação lingüística crítica, os professores justificam
a própria incompetência apegando-se à única tábua da salvação
que conhecem, o próprio método das cartilhas.
<102>
5
Panorama do processo de alfabetização
VALORIZAR O QUE É PRIORITÁRIO
O trabalho escolar de primeira série tem vários objetivos, mas
o principal deles é alfabetizar as
crianças. A alfabetização é uma das coisas mais importantes que
as pessoas fazem na escola e na vida. Os esforços devem estar
voltados para isso, embora a escola não deva se esquecer dos
outros objetivos que tem como instituição.
Para realizar um trabalho de ensino e de aprendizagem da
leitura e da escrita sem o método do bá-bé-bi-bó-bu, é preciso
ter em mente alguns pontos fundamentais.
Em primeiro lugar, é necessário saber exatamente o que se
quer fazer e o que se entende por alfabetização. Muitos
problemas surgiram na história da alfabetização realizada na
escola porque os objetivos a serem alcançados não eram muito
claros. Por exemplo, todo o período preparatório veio como uma
concepção de alfabetização baseada numa teoria discriminatória
contra a capacidade intelectual das crianças, criando nelas uma
auto-avaliação de incapacidade para aprender os conhecimentos
que se adquirem nas escolas. A alfabetização passou a se
resumir, então, em grande parte, a exercícios que preparavam o
aluno para o estudo, enquanto o mais importante era deixado de
lado, ou seja, o conteúdo específico que torna uma pessoa
alfabetizada. Não é raro ouvir histórias de crianças que não
queriam mais ir à escola porque não aprendiam a ler nem a
escrever, mas apenas a rabiscar e a fazer joguinhos.
Alfabetizar é ensinar a ler e a escrever. Como já dissemos, o
segredo da alfabetização é a leitura (decifração). Escrever é uma
decorrência do conhecimento que se tem para ler. Portanto, o
ponto principal do trabalho é ensinar o aluno a decifrar a escrita
e, em seguida, a aplicar esse conhecimento para produzir sua
própria escrita.
Conhecendo a rotina nas escolas, a primeira coisa a ser feita é
uma faxina: jogar fora uma série de atividades que nada têm a
ver com os objetivos, tornando o trabalho mais simples e mais
tranqüilo tanto para o professor como para o aluno.
Brincar, cantar, contar histórias, recortar, colar, desenhar, etc.
sem dúvida são atividades escolares. Mas isso não é ensinar a ler
nem a escrever. Aprende-se a ler e a
escrever, lendo e escrevendo, e não pulando corda e fazendo
festa.
<104>
Tem hora para aprender a ler e escrever e tem hora para
brincar. Juntar essas duas coisas o tempo todo é uma loucura
pedagógica: tira a seriedade da formação escolar e introduz uma
leviandade nos trabalhos. Brincar é imprescindível, mas deve ter
seu valor claramente estabelecido para todos.
OS ALUNOS SÃO FALANTES NATIVOS
Rigorosamente falando, na alfabetização não é preciso ensinar
ninguém a falar: nossos alunos já aprenderam isso quando
tinham de um a três anos. São todos falantes nativos do
português, cada qual usufruindo o dialeto da região em que
nasceu e viveu e que é partilhado pelas pessoas com quem
convive. Ensinar a norma culta também vai ser uma preocupação
da escola, e deve começar desde a alfabetização. Porém, essa
deverá ser uma atividade secundária, tecnicamente falando, com
relação à aprendizagem da leitura e da escrita. Qualquer aluno
pode alfabetizar-se perfeitamente sem precisar mudar o modo
de falar de seu dialeto.
Vendo essa questão por outro ângulo, percebe-se claramente
que o professor não precisa preocupar-se com o fato de seus
alunos falarem errado no início. Não é necessário que os alunos
aprendam a pronunciar bem as palavras, sílabas ou outros
elementos fonéticos para aprenderem a escrever as palavras.
Uma coisa não é condição para a outra.
Tampouco quando um aluno é falante de um dialeto não
aceito como norma culta pela escola, não precisa abandonar seu
dialeto para aprender a norma padrão. Quando alguém estuda
uma língua estrangeira, por exemplo, inglês ou francês, não
deixa de ser falante de português. Aprende-se uma língua, sem
esquecer a outra. Do mesmo modo, quando alguém está
aprendendo um dialeto diferente, não precisa se desvencilhar
daquele que conhece. Na sociedade, a variedade lingüística deve
adaptar-se ao contexto, às exigências do momento, do lugar e
das pessoas com quem se fala. Numa sociedade tão heterogênea
como a nossa, as pessoas acabam falando mais de um dialeto:
um em casa e
outro na vida formal em sociedade. Variações de pronúncia (do
R; das fricativas CH e TCH; variações como
"déis" ou "dés", etc.), de concordância (por exemplo,
<105>
"chegou os homens" em vez de "chegaram os homens"), de
regência (por exemplo, "eu preciso dinheiro" em vez de "eu
preciso de dinheiro") fazem parte da vida dos falantes em geral,
marcando um uso informal e outro formal da língua.
MASSINI-CAGLIARI, 1997b
A IDADE PARA SE ALFABETIZAR
Por razões ideológicas, interesses políticos e econômicos,
somados a uma postura tradicionalista de pessoas que
trabalham nos órgãos públicos da educação. corroborada por
alguns psicólogos e outros que se acham entendidos no assunto,
ficou estabelecido que a alfabetização, no Brasil, começaria aos
sete anos e que o primeiro grau (atual ensino fundamental) se
encerraria aos quatorze anos.
Durante muitos anos venho fazendo uma campanha pessoal
para convencer as pessoas de que seria muito melhor que a
alfabetização começasse aos cinco anos (como, aliás, acontece
na grande maioria dos países do mundo) e que o primeiro grau
se estendesse até os doze anos. Com quatorze anos, muitos
jovens já são arrimo de família, têm de trabalhar duro para
sobreviver e sustentar irmãos, pais, avós, etc. Além disso,
começando a alfabetização aos cinco anos, todas as crianças
passariam a gozar de um beneficio que hoje está restrito àqueles
que freqüentam a pré-escola. Dos cinco aos sete anos, a pré-
escola é importante como escola e não como creche. Muda-se a
Constituição do país, mas não se muda a mentalidade dos
governantes, e os problemas sérios continuam sem solução.
Aos cinco anos uma criança está mais do que pronta para ser
alfabetizada, basta o professor desenvolver um trabalho correto
de ensino e de aprendizagem na sala de aula. Nessa idade, ela já
conheceu e aprendeu muita coisa da vida, do mundo e até da
história, já testou sua participação na sociedade, seu
relacionamento com pessoas diferentes. Aprender a ler e a
escrever, dentro desse contexto, é algo simples e banal,
considerando-se a capacidade e a experiência de vida de
qualquer criança com cinco anos. Duvidar da capacidade de
aprender das crianças de cinco anos é um grande equívoco,
mesmo quando anunciado em teses e livros publicados por
intelectuais com muitos títulos acadêmicos.
<106>
QUERER SER ALFABETIZADO
Se com cinco anos uma criança pode ser alfabetizada, isso
não significa que ela queira ser alfabetizada. Dependendo do
modo de vida, algumas pessoas não acham que a alfabetização
seja algo de muita importância. As vezes, ganhar dinheiro é o
que realmente conta. Algumas pessoas chegam à idade adulta
sem se interessar pela alfabetização. Para elas, ler e escrever
não é algo tão fundamental como nós comumente achamos que
seja.
Essas considerações mostram que, mais importante do que a
idade é a vontade do aluno de se alfabetizar. Estar na escola é
um fato que cria expectativas. Mas alguns alunos podem ter uma
visão muito restrita do que os espera. Por isso, é necessário que
o professor, no início do ano, converse com seus alunos para
saber de suas expectativas com relação ao trabalho escolar de
alfabetização que terão pela frente.
É preciso conversar a respeito do que significa aprender a ler e
a escrever, o que se faz com esses conhecimentos, em que
sentido a vida das pessoas se modifica depois que aprendem a
ler e a escrever, quais as previsões de uso desses conhecimentos
pelo resto da vida, fora da escola. Não é raro haver alunos,
provenientes de classes pobres, que achem que vão aprender a
ler e a escrever como uma espécie de obrigação da escola. Como
em casa ninguém lê nem escreve e não há livros (nem caneta ou
papel), essas crianças acham que aprender a ler e a escrever é
simplesmente fazer a lição da escola.
A escrita e a leitura têm muitos usos, que precisam ser
discutidos ao longo do processo de alfabetização, e uma boa
conversa deve acontecer antes mesmo do início das atividades
de ensino e aprendizagem. Os autores das cartilhas nunca
pensam que esse tipo de troca de informações entre o professor
e o aluno e dos alunos entre si seja algo importante. Mas é
imprescindível.
A questão exposta acima está relacionada com o próprio
conteúdo que vai ser ensinado. A escola sempre parte do
princípio de que o professor é quem decide o que é bom e o que
deve ser excluído do processo educacional. Mas é bom também
perguntar aos alunos quais são seus anseios. O que eles
pretendem ler? O que eles pretendem escrever? O que
pretendem fazer no começo da alfabetização? O que pretendem
fazer depois, quando já souberem ler e escrever fluentemente? O
que pretendem fazer depois, quando saírem da escola já
formados?
<107>
Muitos professores ficam surpresos com as exigências
dos alunos. É muito comum, por outro lado, a escola
subestimar a vontade das crianças. Às vezes, elas estão ansiosas
para copiar coisas que lhes interessam,
mas um professor que ouviu dizer que cópia é algo que deve ser
abolido da escola causa grande frustração
nos alunos. É melhor, na maioria das vezes, deixar os alunos
fazerem coisas por iniciativa própria, mesmo
que seja uma missão quase impossível, do que obriga-los
a fazer somente aquilo que o professor decide que deve ser feito.
Quando as crianças fazem trabalhos por decisão própria, o
processo de aprendizagem voa, mesmo quando os resultados
aparentemente não são
tão organizados e muito bem apresentados quanto os feitos sob
o controle direto do professor.
Para muitos alunos, o professor deverá explicar o que significa
aprender a ler e a escrever, segundo as expectativas da escola e
da sociedade. Deve fazer ver a
todos os alunos a importância do trabalho escolar que
irão começar.
UM MÉTODO SEM MÉTODOS
O melhor método de trabalho para um professor deve vir de
sua experiência, baseada em conhecimentos sólidos e profundos
da matéria que leciona. O fato de não ter um método
preestabelecido não significa que o ensino seguirá navegando à
deriva, O professor
terá sempre as rédeas nas mãos, porque, afinal de contas,
ele é um educador e não um simples observador. O fato de não
se ter um método rígido para alfabetizar
não significa, tampouco, que o trabalho escolar será
feito sem método algum.
Quando o professor é um bom conhecedor da matéria que
leciona, ele tem um jeito particular de ensinar, assim como os
alunos têm seus jeitos de aprender. Essa
heterogeneidade, em vez de atrapalhar, é fundamental em todo
processo educativo.
Alguns órgãos públicos que respondem pela educação partem
do princípio de que todos os professores
de determinado nível e matéria precisam fazer as mesmas
coisas, do mesmo modo, porque senão — dizem eles — como se
poderá transferir alunos de uma escola para outra? O que essas
pessoas não percebem é que,
<108>
em nome de uma burocracia idiota, preferem comprometer o
mais importante, que é o trabalho verdadeiro que deve ser feito
pelos professores nas salas de aula. Se um aluno sai de uma
escola onde aprendeu alguma coisa e vai para outra escola onde
se está estudando outra coisa, deverá adaptar-se à nova
realidade e, com o tempo, isso acontecerá inevitavelmente,
assim como quem muda de país vai ter que adaptar sua vida à do
novo ambiente.
O bonito da verdadeira educação é ser um caleidoscópio: a
diferença a todo instante é seu charme e beleza; cada momento
revela algo novo e surpreendente. A educação deve formar
pessoas diferentes, não clones, réplicas intelectuais.
O professor que domina a matéria não precisa preocupar-se
com métodos: ele saberá entender e resolver tudo o que
encontrar pela frente na sala de aula. Além do mais, dentro do
processo de ensino, ele organizará suas atividades de um modo
geral: o que vai passar para os alunos, quando e como.
Associado ao modo de trabalhar de cada professor, isso acaba se
traduzindo, na prática escolar, num método de trabalho. Depois
de terminado o ano, o caminho percorrido mostra que nada
aconteceu por acaso, mas que houve uma intenção de realização,
houve decisões importantes, houve opções de escolha, enfim,
houve, na prática, um método de trabalho. Entretanto, o que
aconteceu num ano não precisa ser repetido no ano seguinte,
mesmo porque os alunos serão diferentes e surgirão fatos novos.
Quando se adota um modelo de trabalho escolar como método
para ser aplicado ano após ano, incorre-se no erro de supor que
o que conduz o ensino e a aprendizagem é a estrutura
programática de um método, e não a interação entre o processo
de ensino e de aprendizagem, mediado pelo professor, levando
em conta a realidade de seus alunos, a cada dia de aula.
EM QUANTO TEMPO SE ALFABETIZA?
Outra questão que precisa ser comentada é o tempo
necessário para alguém se alfabetizar. Se a escola eliminar o
entulho do período preparatório, se for clara e objetiva,
priorizando a decifração da escrita como segredo da
alfabetização e dedicando uma hora por dia
<109>
às atividades específicas, todos os alunos aprenderão a ler (com
mais ou menos dificuldade) em dois ou três meses de trabalho.
Esse é o tempo suficiente para que os alunos aprendam a
decifrar o que está escrito. Quem sabe fazer isso está,
tecnicamente falando, alfabetizado, O resto é o desenvolvimento
dessa habilidade e a complementação com conhecimentos que
serão aprendidos depois.
Ao longo dos últimos anos, o processo de alfabetização foi
confundido com tantas coisas estranhas e ficou amarrado a
tantas atividades inúteis, que o tempo necessário para um aluno
aprender a ler (e a escrever) se espichou demais. O que podia
ser feito num semestre passou a ser feito em um ano. Com o
ciclo básico, alguns professores passaram a entender que agora
o aluno tem dois anos para se alfabetizar, o que é falso. Em
alguns casos, contando com a pré-escola e o segundo ano, o
aluno leva três anos para se alfabetizar, o que é um absurdo.
O professor precisa ter idéias bem claras a respeito do que
espera de seus alunos em todos os períodos escolares. A falta de
uma perspectiva como essa desorienta o professor e confunde os
alunos. Em todo o processo educacional, há coisas importantes
que receberão uma atenção especial, e coisas secundárias, que
são em geral irrelevantes. Por exemplo, é de importância
fundamental que o aluno tenha em mãos a chave da decifração
da escrita — o segredo da alfabetização. Sem isso, tudo o mais
fica prejudicado. Uma vez adquirida a chave da decifração da
escrita, o aluno tem condições de desenvolver, até por si só, o
resto do processo de alfabetização, explorando a extensão e a
profundidade da matéria. O professor que sabe disso trabalha
mais satisfeito, porque consegue acompanhar o progresso de
seus alunos, valorizando o que cada um faz, inclusive o seu
próprio trabalho.
Por outro lado, alguns professores vivem em meio a muitas
frustrações porque exigem demais do processo de alfabetização
e têm pressa de resolver todos os problemas de fala, leitura e
escrita dos alunos em apenas um ano. É preciso aliviar um pouco
essas tensões na escola, acalmar a ansiedade e ter perspectivas
mais realistas, O tempo é o melhor remédio, e a paciência, uma
virtude do educador. O importante é o professor e os alunos
trabalharem séria e constantemente, com perseverança e calma,
porque a aprendizagem não tem dia marcado para acontecer.
< CAGLIARI 1992a.
<110>
QUEM COMANDA É O PROFESSOR
O professor deve assumir o comando de seu trabalho e não
abrir mão disso. Não é o Ministério da Educação, nem a
Secretaria Estadual ou Municipal de Educação, nem o diretor da
escola, nem a coordenadora, nem a monitora de alfabetização,
nem a associação de pais e mestres, nem a comunidade, nem os
pais, nem os avós ou os tios, nem as teorias acadêmicas, nem as
cartilhas ou os livros que devem impor ao professor o que fazer.
Antes de mais nada, é preciso salvar o direito sagrado de
cátedra. Na educação se propõe, e não se impõe. Quando a
autoridade — seja de quem for — se impõe à razão do professor,
significa que a educação perdeu seu Sentido e tornou-se uma
máquina de produzir resultados intelectuais. A educação vive da
criatividade de todos.
A tarefa escolar de sala de aula precisa ser devolvida aos
professores. Eles precisam ter liberdade para poder se
responsabilizar pelo que fazem. Se todo o mundo dá palpite, a
educação vai de mal a pior, e ninguém se responsabiliza pela
situação. Discutir é uma coisa, impor um comportamento
profissional ao professor é outra, muito diferente e intolerável.
De um professor deve-se cobrar competência e
responsabilidade e não métodos ou adesão aos modismos
acadêmicos. Algumas pessoas acham que atualizar-se significa
falar de acordo com a última palestra que ouviu ou livro que leu.
A busca de conhecimentos novos é tão importante para a
sobrevivência do sistema quanto a alimentação para os seres
vivos. Mas tais conhecimentos precisam ser digeridos,
ponderados, avaliados, para depois entrarem na corrente
sanguínea do sistema educacional.
REMANEJAMENTOS SÃO AVILTANTES
O professor que realiza um trabalho sério em sala de aula não
pode permitir que ocorra remanejamento de alunos. As classes
formam turmas de amigos, que é preciso respeitar. A
discriminação é sempre aviltante.
Não é raro casos de professores incompetentes que adoram
remanejamentos, porque, assim, podem ficar sempre com os
melhores alunos. Isso alivia o trabalho e esconde sua
incompetência. O trabalho duro acaba sobrando para uns poucos
professores que têm de aceitar
<111>
qualquer coisa, uma vez que nem sequer são considerados
professores de uma escola, mas apenas tapa- buracos do
sistema.
CONDIÇÕES MATERIAIS
Um bom trabalho de alfabetização não pode ser desenvolvido
sem as condições materiais adequadas. Criança odeia ficar
sentada, mas a maioria das salas de aula reservadas aos
alfabetizandos é exatamente igual às das demais séries. Criança
gosta de escrever em pé, às vezes até deitada. As salas de
alfabetização precisam ser mais espaçosas para permitir maior
trânsito de alunos.
É impossível desenvolver um trabalho adequado com uma
classe que tem um número exagerado de alunos. Mais de vinte
alunos por professor cria dificuldades muito sérias para um bom
trabalho. Infelizmente, por causa de uma noção errada de
humanidade e dó, alguns educadores acabaram engolindo dos
governantes classes superlotadas. Preferiram optar pela má
educação a decepcionar as promessas eleitoreiras dos
governantes, que prometem um lugar na escola para todas as
crianças, sem saber o que isso representa em termos de
educação nas situações atuais. Cuidar das escolas é algo que
eles não querem. Escolas em condições precárias de
funcionamento, superlotadas e com pessoal mal pago fazem o
perfil da educação neste país. Depois de algumas semanas de
aula, professores e alunos passam a viver num clima de guerra,
numa irritação geral, causada por esses fatores. Para consertar a
alfabetização não basta abolir a cartilha e o bá-bé-bí-bó-bu; é
preciso muito mais.
Tudo o que foi exposto aqui deixa claro que cada professor
terá de traçar seu caminho de trabalho e não deverá esperar
soluções prontas. Assim como a aprendizagem, o ensino também
é um processo que deve ser construído pelo professor à medida
que acontece e, a cada vez que ocorre, terá um jeito próprio de
ser.
Isso, porém, não impede que se ilustre um trabalho de
alfabetização sem a cartilha e sem o bá-bé-bi-bó-bu sem,
contudo, fazer, desse exemplo, o modelo ideal que deva ser
seguido por todos e sempre. Exemplos são exemplos: são
elucidativos, mas não impositivos. E claro que uma boa idéia
sempre acha um seguidor, e adota-la não significa
necessariamente escravizar-se a ela.
<112>
É dentro desse espírito que propomos seguir idéias, sugestões e
apresentamos exemplos. E sempre bom discutir certos assuntos
na teoria e constatar que de fato funcionam na prática.
LEITURA E ESCRITA
Ao contrário do que muita gente pensa, inclusive professores
de alfabetização, para alguém ser alfabetizado, não precisa
aprender a escrever, mas sim aprender a ler. Ou seja, no
processo de alfabetização, o professor poderia prescindir do
ensino da escrita, mas não da leitura. Em outras palavras, a
alfabetização realiza-se quando o aprendiz descobre como o
sistema de escrita funciona, isto é, quando aprende a ler, a
decifrar a escrita. De posse desses conhecimentos, escrever
nada mais é do que colocar no papel esses conhecimentos
fornecidos pela leitura. Quem escreve deve guiar-se
necessariamente pelos conhecimentos da decifração da escrita.
Deve escrever pensando em como seu leitor fará para descobrir
(decifrar) o que escreveu. Se cometer erros, poderá deixar seu
leitor confuso ou mesmo impossibilitado de entender o que foi
escrito. Se fizer tudo de acordo com as convenções e as regras
do sistema de escrita, seu leitor poderá decifrar com facilidade.
Portanto, o segredo da alfabetização, como se disse várias
vezes, é a leitura, ou seja, a decifração da escrita.
Em sentido mais amplo, a alfabetização tem outros objetivos,
além de ensinar a decifrar a escrita, sobretudo na escola. Saber
escrever corretamente é um deles. A escrita não deve ser vista
apenas como uma tarefa escolar ou um ato individual, mas
precisará estar engajada nos usos sociais que envolve,
principalmente como forma especial de expressão de uma
cultura. Sem dúvida alguma, um bom professor terá sempre essa
preocupação em mente, em todos os momentos da vida escolar.
Porém, como essa questão está mais ligada aos usos especiais
que se faz da escrita do que à aquisição propriamente dita da
habilidade de escrever, o alfabetizador dará mais atenção a esse
último item do que ao anterior. Em séries mais adiantadas,
quando os alunos já souberem escrever com facilidade e tiverem
um estilo próprio, a perfeição do texto será objeto de trabalho
específico.
<113>
A reprodução de modelos
O método das cartilhas — o bá-bé-bi-bó-bu — ensina o aluno a
escrever reproduzindo um modelo. Em seguida, o aluno aprende
a ler o que escreveu. Esse método vai no sentido oposto ao
sugerido neste livro. Para a cartilha, o importante é aprender a
escrever juntando pedacinhos (as sílabas geradoras), sempre
supondo que esses pedacinhos, por serem conhecidos,
permitirão a leitura. Essa abordagem envolve muitos equívocos e
erros, como ficou claro no capítulo anterior.
A progressão, no método do bá-bé-bi-bó-bu, é rigorosa, e o
aluno só faz algo segundo um modelo preestabelecido, até
dominar o exercício, passando então à lição seguinte. Se o aluno
cometer algum engano, o erro é logo apagado e substituído pela
forma correta. Isso faz com que os alunos apresentem lindos
cadernos.
Um fato comum na história de alguns alunos é que eles foram
excelentes estudantes nas duas primeiras séries, mas
apresentaram seriíssimas dificuldades na terceira. Na
alfabetização, o aluno escrevia tudo muito bonito, sem erros de
ortografia, como mostram seus cadernos. Na terceira série,
apareceram dificuldades insuperáveis porque a tarefa não
consiste mais em reproduzir o modelo dado pelo professor, mas
exige que o aluno tome a iniciativa de fazer um texto, uma
redação ou o que for preciso nas diversas atividades escolares.
Até sua letra piorou. Não é mais capaz de escrever sem cometer
inúmeros e estranhíssimos erros de ortografia. O aluno tinha
aprendido a escrever tão bem... Por que, agora, não sabe mais?
A explicação para esses casos é simples e, ao mesmo tempo,
trágica. O aluno não aprendeu, de fato, como o sistema de
escrita funciona, como se lida com o texto oral e o escrito, como
funciona a ortografia e como se resolvem dúvidas. Simplesmente
fazia o que o professor mandava, seguindo o modelo das coisas
já dominadas. Na terceira série, não existe mais modelo
(semelhante àquele a que estava acostumado) e não faz mais
sentido escrever somente palavras já dominadas. Nesse
momento, começa a refletir sobre seu trabalho, sobre como
funciona a escrita, como funciona a cabeça de quem vai ler o que
ele escreve, achando, talvez, que vai encontrar em todos os
leitores que achar pela frente uma espécie de professor que
apaga o errado e coloca o certo quando necessário. Em vez
disso, encontra a constatação do seu fracasso, do erro
incorrigível, levando-o ao desespero. E, junto com ele,
desesperam-se professores, pais, amigos, etc.
<114>
Esse aluno deveria ter tido a oportunidade de errar antes.
Deveria ter tido antes a oportunidade de refletir sobre o sistema
de escrita. Não deveria ter ficado repetindo um modelo e
construindo a escrita apenas com elementos já dominados. A
terceira série foi a primeira viagem fora da cartilha. Somente
então foi solicitado a refletir sobre como funciona o sistema de
escrita e a elaborar suas próprias hipóteses a respeito dela. Só
na terceira série, esse aluno começou a produzir escrita como se
fosse um iniciante no processo de alfabetização, e o resultado do
que faz se assemelha muito aos resultados obtidos pelas
crianças quando começam a escrever errado no início da
alfabetização. Conseqüentemente, as pessoas passam a
considerá-lo um aluno mal-alfabetizado.
Se essa criança tivesse sido alfabetizada de outra maneira, se
tivesse tido a chance de mostrar ao professor o que pensava a
respeito da fala, da escrita e da leitura, apresentando um
trabalho de escrita feito por iniciativa própria e não apenas
seguindo um modelo de coisas já dominadas, teria resolvido
seus problemas logo no início.
O professor deve ter em mente que nem sempre um aluno que
escreve corretamente está sabendo o que está fazendo e como
funciona a escrita. Por outro lado, não é porque um aluno erra,
ao tentar escrever uma palavra, que ele não esteja aprendendo a
escrever.
É preciso distinguir bem o ato de escrever do resultado que
uma escrita produz. O método das cartilhas preocupa-se apenas
com o gesto, com o ato de escrever em si, uma vez que o
resultado é controlado rigidamente pelo professor e passa a ser
então totalmente previsível. Por outro lado, um aluno que tem
seu espaço de aprendizagem aberto pelo professor para
construir seu conhecimento, sabe que o ato de escrever é uma
tentativa que pode levar a um resultado correto ou não. Sabedor
disso, deverá fazer um juízo de valor sobre sua ação e verificar
se, de fato, obteve êxito. Nesse caso, o professor sabe
perfeitamente bem que, primeiro, precisa deixar o aluno
aprender a escrever, para depois cobrar dele o resultado
esperado, em termos de correção ortográfica e perfeição gráfica.
A descoberta do mundo da escrita
A descoberta do mundo da escrita é mais fácil para alguns
alunos do que para outros. As crianças que vivem em casas onde
há livros, revistas, jornais, onde as
<115>
pessoas lêem e escrevem, começam logo cedo a se interessar
por essas atividades e a saber coisas a respeito da escrita e seu
funcionamento. Por outro lado, crianças que vivem em casas
onde não se lê e não se escreve crescem tendo um outro tipo de
comportamento e de conhecimentos a respeito da escrita e da
leitura.
Fora de casa, no mundo, a escrita está em toda a parte, e
tanto ricos como pobres sabem que ela existe e podem até dizer
que num jornal, na embalagem de um produto, nas placas
comerciais há coisas escritas. Isso não quer dizer que todos
sejam capazes de distinguir qualquer material de escrita do que
não é escrita. Mas, de modo geral, as pessoas sabem que
desenhos figurativos não constituem escrita. Sabem que a
escrita pode ser feita de inúmeras maneiras, o que torna muito
difícil ter uma idéia clara sobre ela. Por exemplo, não é fácil
distinguir rabiscos de escrita cursiva.
Ao contrário do que algumas pessoas pensam uma leitura
incidental não representa um reconhecimento de uma escrita
como desenho. Por exemplo, uma criança pode reconhecer que
se trata de Coca-Cola porque está vendo uma garrafa desse
produto ou uma propaganda ou, mais especificamente, um rótulo
onde aparece escrito, de maneira típica, o nome da marca. O
reconhecimento do rótulo (leitura incidental, nesse caso) é de
fato uma leitura. Como a criança não conhece as relações entre
letras e sons, não pode identificar como o sistema de escrita
funciona de maneira específica. Porém, nosso sistema de escrita
não se presta a ser lido e escrito apenas através das relações
entre letras e sons, uma por uma. Embora não seja a maneira
mais comum e própria de se ler e escrever, urna pessoa poderia
em princípio tratar todas as palavras escritas como se fossem
ideogramas, e escrevê-las e lê-las como se estivesse diante de
um sistema ideográfico de escrita. Parece que a primeira
tentativa que as crianças fazem para penetrar no mundo da
escrita tem como estratégia considerar toda escrita como sendo
ideográfica. Muitas crianças abordam a escrita dessa maneira
quando ainda são muito novas e estão explorando o mundo. Mas
algumas chegam a levar essas idéias para a sala de aula e, se o
professor não perceber, durante um certo tempo elas tratarão a
escrita escolar como se fosse um puro sistema ideográfico.
Essa idéia é reforçada muitas vezes quando uma criança (ou
um analfabeto) pergunta a um adulto (ou a quem sabe ler) o que
está escrito. A resposta não é
uma explicação de como a escrita funciona, mas a
<116>
identificação de uma ou mais palavras. Isso a leva a imaginar
que um conjunto de sinais gráficos (misteriosamente
elaborados) refere-se a uma palavra. No início, raramente acha
que existe um sinal para cada som da fala. Essa é uma idéia
muito elaborada, que exige uma explicação particular e
detalhada. Ninguém chega a ela sem a ajuda de alguém que já
conhece como nosso sistema de escrita funciona. E por isso que
ainda hoje há sistemas de escrita que não foram decifrados,
apesar de todas as tentativas: falta alguém para dizer como se
relacionam os caracteres com a linguagem oral.
Na sociedade, existem pessoas que lêem ou interpretam a
escrita, respondendo à pergunta mencionada acima, dizendo que
em tal lugar está escrita tal palavra; mas também, não é raro as
pessoas virarem decifradores tentando ler. Ao fazer isso,
algumas características do sistema começam a emergir e podem
servir de informações a quem não sabe ler. Por exemplo, é
comum alguém soletrar ou fazer sua tentativa de decifração
pronunciando possíveis sílabas. Seria muito estranho alguém
que pronunciasse apenas segmentos fonéticos, como se
estivesse interpretando uma transcrição fonética. Ora, aquele
esforço de decifração transmite a quem não sabe ler a idéia de
que se lê por sílabas, ou seja, que a escrita vem associada a
sílabas, antes de estar associada a palavras, e muito dificilmente
deixa claro que existem unidades menores do que a sílaba.
Outro fato comum ocorre quando alguém vai escrever e tem
dúvidas sobre a ortografia de uma palavra. Nesse caso, pode
perguntar diretamente por uma letra: "teste" se escreve com X
ou com S? Diante disso, uma pessoa analfabeta intui que a
escrita tem um conjunto de nomes especiais para analisar as
palavras, antes de descobrir o que ela representa. Mas o que
fazer com esses nomes? O que significa "xis" ou "esse"? Num
primeiro momento, essas palavras não têm um significado para o
ouvinte analfabeto ou significam apenas nome de letra, e a
palavra "letra" significa apenas "escrita" e não unidade de um
sistema.
Outro procedimento é responder às dúvidas ortográficas de
alguém usando o princípio acrofônico, típico do método das
cartilhas; isto é, comportando-se na vida real como um professor
alfabetizador. Quando alguém está tendo dificuldades para
escrever um nome, a resposta vem da seguinte forma: L de lata,
E de escola, S de sapo, C de cebola, A de árvore, U de urubu e X
de xarope, e acento agudo no E: LÉSCAUX.
<117>
Diante disso, uma pessoa analfabeta poderá fazer uma idéia de
que a escrita é algo surrealista e um jogo no qual cada um diz o
que bem quiser. Aquele procedimento de decifração, sem uma
explicação muito detalhada e convincente, não é transparente
para o analfabeto. Só mostra as relações entre letras e sons para
quem conhece as regras do jogo. No máximo, um analfabeto
pode perceber que um certo padrão frasal se repete, como em "u
de urubu", "a — de árvore", o que já exige um enorme esforço de
análise. No mais, em geral, as relações entre letras e sons não
são nem um pouco transparentes.
Algumas crianças interessam-se pela escrita logo cedo e
começam a reconhecer certas palavras que vêem
freqüentemente. Depois, querem saber como se escreve o
próprio nome e acabam decorando que determinada letra é a
letra do seu nome. Aqui também funciona o princípio acrofônico:
A de Antônio, R de Regina, T de Tomás, etc. Esse tipo de
explicação é muito precioso para a criança porque ensina duas
coisas importantes: o nome das letras e seu valor fonético
através do princípio acrofônico.
Quando o professor começar a falar de escrita para as
crianças, precisa lembrar-se de que a maioria delas já tem
informações a respeito. Se ele fizer com que elas explicitem
essas informações, conversando a respeito do que já sabem, terá
um bom motivo e um caminho interessante para ensinar a ler e a
escrever.
Algumas classes, com crianças que já passaram por escolas
maternais ou pré-escolas, têm alunos que sabem muito mais a
respeito da escrita. Por isso, o professor deve fazer esse
levantamento antes de organizar o trabalho de ensino.
Reconhecer e respeitar esses conhecimentos das crianças
motiva-as a aprender mais rápido, uma vez que elas constatam
que já sabem muita coisa. Por outro lado, esse estudo prévio é
crucial no caso daqueles alunos que sabem muito pouco ou
quase nada a respeito do sistema de escrita. Com esses alunos, o
professor deverá tomar cuidados especiais, devendo ensinar
noções que parecem óbvias a todo o mundo, mas que não foram
sequer percebidas por algumas crianças. Se esses alunos não
receberem uma boa explicação, por exemplo a respeito da
distinção entre desenho e escrita ou, ainda, que escrevemos com
letras representando os sons das palavras, dificilmente
acompanharão explicações mais específicas a respeito do
funcionamento da escrita, da leitura e da fala.
<118>
6
A decifração da escrita
REGRAS PARA A DECIFRAÇÃO
DA ESCRITA
Neste capítulo, começaremos a analisar que conhecimentos
uma pessoa precisa ter para decifrar
e ler algo escrito no nosso sistema de escrita. Em outras
palavras, vamos ver quais são as regras que guiam uma pessoa
nessa tarefa. Para quem já sabe ler, a decifração é algo
mecânico, assim como o controle fonético dá-se naturalmente
para quem já aprendeu a falar. Mas se quisermos explicitar esses
conhecimentos, vamos encontrar uma série de normas, mesmo
porque, se elas não existissem, não haveria a convenção social
que torna a escrita algo compartilhado pelos usuários. O
conhecimento dessas regras constitui o segredo da decifração da
escrita, que, por sua vez, é o segredo do processo de
alfabetização.
Há uma tradição equivocada segundo a qual não se deve
ensinar os alunos a decifrar a escrita, mas a ler "com
naturalidade"... Como alguém consegue ler um texto se não sabe
decifrá-lo? Constata-se em geral que os professores não sabem
dizer quais são os conhecimentos que uma pessoa precisa ter
para saber ler e, por isso, recusam-se a adotar o estudo da
decifração como matéria em suas aulas. A questão, com efeito, é
muito complexa, e os livros não costumam tratar desse assunto
correta e seriamente.
Apresentaremos a seguir os principais pontos que
urna pessoa precisa conhecer para saber ler.
1. Conhecer a língua na qual foram escritas as palavras
Diante de uma escrita chinesa, se eu não souber chinês,
posso ficar tentando descobrir o que está escrito, mas jamais
conseguirei ler. A história das decifrações tem mostrado isso.
Conhecer a língua é o primeiro requisito para se ler.
Por outro lado, conhecendo uma língua, posso usar
esse conhecimento para tentar "ler" algo escrito em outra
língua.
O fato de uma criança saber que está escrito uma determinada
palavra, e não outra, ajuda muito a refletir sobre seus
conhecimentos da escrita e da leitura e a ousar um processo de
decifração. Se dissermos a uma criança que a palavra está
escrita numa língua que ela
<120>
não conhece, isso certamente não irá animá-la a usar seus
conhecimentos para ler o texto.
2. Conhecer o sistema de escrita
É preciso saber distinguir um desenho (figurativo ou abstrato)
de uma manifestação de escrita. O desenho representa algo do
mundo (ou relativo a ele), e a escrita representa a linguagem
oral (uma palavra). A linguagem oral, por sua vez, representa o
mundo. Uma mesma forma gráfica, portanto, pode ser apenas
um desenho ou uma escrita.
3. Conhecer o alfabeto
O alfabeto que usamos é uma das possíveis formas do alfabeto
latino e segue um conjunto de normas atuais. É composto de
letras, formando um conjunto, tendo cada letra um nome, que
lhe foi dado para indicar um dos sons possíveis que a letra
apresenta na língua, através do uso de um princípio acrofônico.
Contar um pouco da história do alfabeto é, talvez, a
melhor maneira de apresentá-lo para as crianças.
4. Conhecer as letras
As letras são unidades do alfabeto que representam os sons
vocálicos ou consonantais que constituem as palavras. Variam na
forma gráfica e no valor funcional. As variações gráficas seguem
padrões estéticos, mas são também controladas pelo valor
funcional que as letras têm.
É importante aprender a distinguir as letras entre si e com
relação a outros sinais e marcas da escrita. Saber dizer que
letras aparecem em seqüência numa palavra é mais fácil com
alguns tipos de letras (por exemplo, letras de fôrma) do que com
outros (escrita cursiva). Saber os nomes das letras é importante
para poder conversar a respeito de quais rabiscos são letras e
quais, não.
5. Conhecer a categorização gráfica das letras
As letras podem ter muitas formas gráficas, gerando
diferentes alfabetos, como podemos ver na história dos sistemas
de escrita. Apesar da diferença gráfica entre
essas formas, uma mesma letra permanece a mesma porque
exerce a mesma função no sistema de escrita, ou seja, é usada
exatamente da maneira exigida pela ortografia das palavras.
<121>
As letras são categorias abstratas que desempenham uma
determinada função no sistema, que é preencher um
determinado lugar na escrita das palavras. Assim, no caso da
palavra CASA, de acordo com a ortografia da língua portuguesa,
é escrita com as seguintes letras:
1ª letra: letra cê; 2ª letra: letra a; 3ª letra: letra esse; 4ª letra:
letra a, novamente. A forma gráfica pode variar até os limites
das convenções que permitem ao leitor, vendo um rabisco,
reconhecer a letra cê, a, esse e a. Ou seja, é preciso saber a
categorização das letras, quer no seu aspecto gráfico
(equivalência das letras nos diferentes alfabetos), quer no seu
aspecto funcional (quais letras devem ser usadas para escrever
determinada palavra e em que ordem).
6. Conhecer a categorização funcional das letras
Apesar de variarem graficamente, as letras — como unidades
abstratas do alfabeto — têm valores funcionais fixados pela
história das letras, pelo processo de adaptação a uma
determinada língua e, principalmente, pela ortografia das
palavras. Portanto, não se pode escrever qualquer letra em
qualquer posição numa palavra. Se as letras não tivessem esses
valores, poderíamos, por exemplo, escrever CASA com as letras
APXP (onde A C, P = A, X = S), ou mesmo MRIT, desde que
houvesse uma convenção que permitisse isso.
Além disso, seguindo as possibilidades geradas pela
ortografia, a palavra pronunciada "casa", em princípio, poderia
ser escrita das seguintes formas (apesar de apenas a primeira
forma ter sido escolhida pela ortografia):
CAZA
QAZA
KAZA
CASA
QASA
KASA
CAG
CAXA
QAXA
KAXA
Nota
O desenho das letras está muito diferente dos modelos
tradicionais, mas podemos lê-la porque distinguimos "letras"
nesse rabisco, e, para tanto, nos servimos dos conhecimentos
ortográficos da palavra CASA, ajudados pelo contexto em que
aparece essa escrita.
A alfabetização depende crucialmente do conhecimento da
categorização gráfica e funcional. Aí se localiza um divisor de
águas: quem consegue entender isso, pula a barreira do
analfabetismo e aprende a ler; quem não consegue, fica
tentando em vão outras maneiras de aprender. Grande parte do
trabalho de alfabetização deverá voltar-se, portanto, para o
estudo desses dois aspectos.
<122>
7. Conhecer a ortografia
A ortografia é mais importante do que a simples idéia de um
alfabeto no nosso sistema de escrita, porque ela controla a
categorização gráfica e funcional, muito mais do que o princípio
alfabético.
A dificuldade de ler começa com o problema da identificação
das letras. No início da alfabetização, uma criança tem tantas
dificuldades em reconhecer as letras em uma escrita cursiva
quanto um adulto experiente em ler "a letra do outro" como no
nome do remetente de uma carta.
CAGLIARI, 1986b e 1994b.
Saber que a ortografia congelou o modo de escrever as palavras
ajuda muito os alunos a não tentar fazer do alfabeto um sistema
de transcrição fonética e a perceber que a fala segue as
variações dialetais, neutralizadas na escrita pela ortografia.
Conhecer a natureza, a função e os usos da ortografia é
importante ainda para entender as relações entre letras e sons e
entre fala e escrita. A ortografia comanda a função das letras no
sistema de escrita, estabelecendo a ordem dos caracteres nas
palavras e o valor fonético de cada um deles, de acordo com a
linguagem oral (dialetos de todos os usuários). Além disso,
estabelece como a linguagem oral deve ser segmentada para
formar as unidades da escrita, que chamamos de palavras.
Por outro lado, a ortografia fez com que a escrita tivesse como
função permitir a leitura, ou seja, permitir que os usuários de
diferentes dialetos pudessem
<123>
reconhecer uma determinada palavra e, assim, entender o que
está escrito. Uma vez identificada a palavra, através do estudo
dos sons e dos significados, o usuário está livre para dizer o que
está escrito, usando seu dialeto ou outro qualquer, porque as
marcas dialetais ficaram neutralizadas pela ortografia na escrita.
Dentro desse quadro constatamos que é mais fácil partir da
escrita ortográfica para a decifração da linguagem, atribuindo
valores fonéticos às letras, do que analisar a fala e chegar à
forma ortográfica que a palavra tem. Em outras palavras, as
relações entre letras e sons são mais simples e fáceis do que as
entre sons e letras. Ou ainda, é mais fácil decifrar e ler do que
escrever. Juntando os segmentos da fala de todos os dialetos e
as letras, segundo o estabelecido pela ortografia das palavras,
temos o quadro completo das relações entre letras e sons.
Tem sido dada pouca importância ao estudo da ortografia,
quer nos sistemas de escrita quer nas atividades escolares. A
única coisa que alguns professores sabem fazer é corrigir erros
de grafia. O importante, contudo, está em compreender bem
como é a ortografia e como ela atua na linguagem escrita e na
leitura. Desse conhecimento, como vimos, dependem muitas
noções básicas, necessárias e indispensáveis para que uma
pessoa possa ler.
8. Conhecer o princípio acrofônico
O princípio acrofônico existe desde a formação do primeiro
alfabeto. O nome das letras traz, em seu início, o som mais
característico que a letra representa no sistema de escrita.
Assim, no nome "bê", da letra B, encontramos o som "b", que é o
som mais comum que essa letra assume. E isso acontece com
praticamente todas as letras.
O princípio acrofônico na verdade é um conjunto de regras que
usamos para decifrar os valores sonoros das letras. Num
primeiro momento, atribuímos a cada letra o som que é dado
pelo seu nome. Depois, somamos os sons para descobrir que
palavra está escrita. Nesse momento, são feitos os arranjos
necessários a respeito dos valores sonoros das letras em função
da história das palavras, da ortografia e do dialeto que o leitor
conhece.
Alguns professores acreditavam que as cartilhas tinham algo
de especial e inexplicável, que fazia os alunos aprenderem. Esse
algo especial encontrava-se na
<124>
prática escolar que aplicava o princípio acrofônico de uma forma
ou de outra para ensinar as crianças a ler. Na verdade, o
princípio acrofônico é uma das ferramentas mais importantes
que o leitor tem para realizar sua tarefa de decifração e leitura.
9. Conhecer os nomes das letras
Os nomes das letras são: a, bê, cê, cê-cedilha, dê, é, efe, gê,
agá, i, jota, cá, ele, eme, ene, ô, pê, quê, erre, esse, tê, u, vê,
dáblio, xis, ípsilon, zê. Notar que o nome da letra H não se
escreve com H, o nome da letra K é com C (porque não se
escrevem palavras comuns com K na nossa língua), no nome da
letra W não aparece o som correspondente, nem no nome da
letra Y. Isso mostra que no nosso sistema o princípio acrofônico
não está mais presente em todas as letras. Mas isso acontece
principalmente com letras de pouco uso, como K, W e Y; a letra H
é exceção.
Em Portugal, em vez de "dáblio" diz-se "duplo vê". Em inglês o
nome significa "duplo u". Alguns dialetos (por exemplo, do
Nordeste) têm outros nomes para algumas letras, para facilitar o
uso do princípio acrofônico. Eles dizem, por exemplo, fê, lê, mê,
nê, rê. Muitos professores de alfabetização adotam os dois
nomes para as letras, e isso facilita o trabalho.
10. Conhecer as relações entre letras e sons (princípios de
leitura)
Para saber que som uma letra tem, é preciso relacioná-la com
seu nome (som básico) e em seguida estudar o contexto em que
ocorre (letras que vêm antes e depois), para saber se existe
alguma regra especial que modifica o som básico em função do
contexto - por exemplo, S entre duas vogais tem o som de "zê";
C diante de A, O, U tem o som de "ka" e não de "cê", etc. Por
outro lado, é preciso levar em conta o dialeto do leitor. Por
exemplo, para alguns falantes, a letra T tem os sons de "tche" e
"tê", mas para outros tem apenas o som de "tê". Alguns falantes
dizem "catano" em vez de "catando" e, para esses, a letra D não
tem som, nesses contextos verbais.
As considerações acima mostram que existem regras que
controlam os valores fonéticos que as letras podem ter numa
língua. Conhecer essas relações é indispensável para decifrar e
ler. Essas regras podem transformar-se em exercícios em sala de
aula. Os alunos adoram
<125>
descobrir as regras a partir de um conjunto de dados que lhes é
apresentado. Os professores devem aproveitar esse interesse —
para os alunos, um desafio ou jogo — e deixar que eles
construam, a partir da análise dos dados, o conhecimento de
como o sistema de escrita funciona e como se faz para ler.
11. Conhecer as relações entre sons e letras (princípios de
escrita)
Como vimos anteriormente, se alguém quisesse escrever
"kaza", teria diante de si muitas alternativas, mas deveria
acabar escolhendo apenas a forma estabelecida pela ortografia.
Para quem toma por base a ortografia para chegar à fala de
acordo com a norma culta ou com a pronúncia de seu dialeto, o
caminho partindo das letras para chegar aos sons é
relativamente fácil. Por exemplo, o aluno pode ver escrito
DENTRO e ler "drentu", aplicando seus conhecimentos básicos
das relações entre letras e sons, e depois adaptar o resultado
final à pronúncia do seu dialeto. Ao ler a palavra XA, dará à letra
X o som de CH, porque de acordo com as normas da nossa língua
em início de palavra todo X apresenta apenas o som de CH. Por
outro lado, partindo da fala (que é sempre dialetal) para a
escrita, ou seja, indo dos sons para as letras, o caminho é outro.
Não basta, por exemplo, saber que X no início de palavras
representa o som de CH, uma vez que esse som pode ser
representado também por CH. Ao ouvir e tentar escrever "chá"
ou "cheque", o aluno deverá decidir se essas pronúncias serão
representadas por X ou por
CH: XÁ, XEQUE/CHA, CHEQUE. Quando se diz "andano" e
"drentu", dificilmente se descobre a forma ortográfica dessas
palavras: ANDANDO e DENTRO. Mas, no caminho inverso, quando
se conhece a norma padrão é mais fácil deduzir que a forma
ANDANDO é equivalente a "andano" e DENTRO, a "drentu".
12. Conhecer a ordem das letras na escrita
Para ler, é preciso ainda saber em que direção a escrita vai.
Quando dizemos que escrevemos da esquerda para a direita,
significa que a seqüência das letras nas palavras obedece a essa
ordem. Algumas crianças, muito preocupadas com o traçado das
letras, interpretam mal essa afirmação sobre a direção da escrita
e acabam escrevendo (sobretudo as letras arredondadas) de
forma espelhada, uma vez que o movimento
<126>
da mão, nesse modo de escrever, vai da esquerda para a direita
e, na forma correta, da direita para a esquerda:
Podemos escrever seguindo outras direções. O importante é
permitir uma leitura clara, o que se obtém através da
identificação da linha de base sobre a qual as letras das palavras
se apóiam.
13. Conhecer a linearidade da fala e da escrita
A questão anterior está ligada à característica linear da fala e
da escrita. Quando falamos, pronunciamos os elementos
segmentais (vogais e consoantes) e os elementos prosódicos
(entoação, ritmo, volume, velocidade, duração e ainda a
nasalidade, o acento, a qualidade de voz, etc.) todos ao mesmo
tempo e variando a cada momento. Mas, na escrita, fazemos
algumas separações.
Representamos as vogais e as consoantes sem outras
especificações. Depois, colocamos alguns sinais de pontuação no
final das frases, embora se deva modular a frase de maneira
apropriada desde o início. Escrevemos uma vogal e depois a
modificamos colocando um til ou um acento. As pausas da fala
nem sempre têm correspondência fixa com as pausas ou sinais
de pausa vírgulas, pontos) da escrita. A segmentação de
palavras na escrita, indicada pelo espaço em branco,
corresponde menos ainda a pausas ou segmentações na fala.
Isso tudo mostra que a fala e a escrita têm muitas diferenças e
que não há uma correspondência direta entre o que se escreve e
o que a escrita representa da fala. A escrita simplesmente dá
indicações que permitem a leitura. Cabe ao leitor, como
conhecedor da língua, tirar do texto as informações necessárias
para
<127>
reconstruir a linguagem oral na leitura, como se o que ele fosse
ler fosse o que ele estivesse dizendo por iniciativa pessoal.
14. Reconhecer uma palavra
Definir uma palavra na linguagem oral é uma tarefa difícil,
mas é fácil na escrita. De acordo com as normas ortográficas,
todo conjunto de letras separado por um espaço em branco
constitui uma palavra. O critério semântico ajuda muito, mas não
resolve todas as dúvidas.
No esforço para ler, a decifração começa a fazer sentido no
momento em que o leitor descobre uma palavra. Para chegar lá,
o fato de a escrita separar as palavras por espaços em branco
ajuda enormemente.
O professor deve mostrar ao aluno que uma primeira tarefa é
começar a identificar as segmentações das palavras. Para tal,
deve ater-se apenas à escrita.
15. Nem tudo o que se escreve são letras
Além de letras, a escrita usa sinais de pontuação, acentos e
outras marcas, que é preciso conhecer. A letra A com um til
representa um som diferente, ou seja, um A nasalizado. Porém,
nem todo A nasalizado será escrito com A mais til. A escrita usa
de acentos para marcar variações da qualidade das vogais,
mostrando se são abertas ou fechadas. Os sinais de pontuação
são diacríticos que servem para orientar a entoação e a prosódia,
embora façam isso de maneira muito precária. As vírgulas
servem, às vezes, para indicar pausas ou elementos
parentéticos. O ponto final representa uma pausa longa possível,
mas nem sempre necessária. Outras marcas como ponto de
interrogação, exclamação, reticências, etc. representam também
elementos prosódicos, sobretudo relacionados com a entoação.
O desconhecimento dessas marcas às vezes confunde o leitor
iniciante, que julga tratar-se de uma letra que ele desconhece, o
que bloqueia o processo de decifração.
16. Nem tudo que aparece na fala tem representação gráfica na
escrita
Como o leitor raciocina não só como alguém que está
tentando desvendar os segredos da escrita, mas também como
um falante que pode refletir sobre sua
<128>
fala, é preciso controlar as expectativas com relação ao que se
vai ou não encontrar na escrita, comparada com a fala. No fundo,
essa é uma questão complexa.
Nem todas as características sonoras da linguagem oral têm
representação gráfica no sistema de escrita. No sistema
alfabético, as letras representam apenas os segmentos
fonéticos, isto é, aquelas unidades chamadas vogais e
consoantes, que são definidas como unidades constitutivas das
sílabas das palavras. Na prática, as vogais são mais facilmente
reconhecíveis através do prolongamento das sílabas: caaaa-
vaaaa-loooo, aaaan tiiii-gooo; e as consoantes pela observação
dos movimentos articulatórios da boca: ca-ca-ca-ca va-va-va-va
lo lo-lo-lo, an-an-an-an ti-ti-ti-ti go-go-go-go.
Como vimos, elementos prosódicos também têm pouca ou
nenhuma representação na escrita. Esses elementos ficaram de
fora porque o sistema de escrita segmentou a fala em palavras
sem levar em conta unidades maiores. Essas unidades formadas
da soma de palavras, como o grupo tonal por exemplo, precisam
ser recuperadas através dos conhecimentos que o leitor tem da
língua. Dado que nossos leitores são falantes do português,
saberão concatenar as palavras devidamente, como se o texto
fosse falado por iniciativa pessoal.
Apesar dessa limitação do sistema de escrita, na alfabetização
basta o professor falar, por exemplo, que o aluno precisa ler com
ritmo e entoação e explicar o que isso significa.
Nota
Neste livro optamos pelo uso das letras do alfabeto com seu
valor sonoro baseado no princípio aerofônico e não na forma de
transcrição fonética usual dos lingüistas (alfabeto próprio e
escrita entre colchetes) Assim o som da fricativa alveolar surda
será representado aqui por "çê" e não por (s). Essa opção foi
feita para mostrar ao professor que ele também pode fazer boas
transcrições fonéticas, usando apenas os conhecimentos do
alfabeto e uma boa observação de como as pessoas falam. Por
outro lado, mostra ao professor como a escrita parece estranha
quando se sai da ortografia, revelando um pouco da sensação
que o aluno tem ao se alfabetizar.
17. O alfabeto não é usado para fazer transcrições fonéticas
CAGLIARI, 1992c. >
Se deixarmos de lado a ortografia, podemos usar nossos
conhecimentos do sistema de escrita alfabético para fazer
transcrições fonéticas. Como os valores das letras foram
estabelecidos em função da ortografia da língua e da fala dos
dialetos, e não a partir das possibilidades articulatórias do
homem, tendo em vista todas as línguas e dialetos do mundo, o
uso do alfabeto para se fazer transcrição fonética é precário —
há melhores sistemas para isso. Não obstante, esse uso especial
do alfabeto apresenta uma certa eficiência que pode ser
aproveitada pela escola. Dessa forma, pode-se transcrever
foneticamente a variação lingüística que encontramos nos
dialetos. Pode-se transcrever, por exemplo, as maneiras
diferentes que as crianças têm de pronunciar as palavras e
registrá-las sob a forma escrita. Esse tipo de prática ajuda
<129>
da enormemente a contrastar a escrita que respeita a ortografia
com a transcrição fonética da fala, com a qual os alunos
começam a escrever.
Alguns alunos acabam pensando que o alfabeto serve apenas
para escrever os sons à moda das transcrições fonéticas, e isso
causa algumas dificuldades não só na escrita, como também no
processo de aprendiza gem da leitura. Mostrar as duas
possibilidades de uso do alfabeto é indispensável para os alunos
poderem trabalhar tranqüilamente.
A COMPETÊNCIA TÉCNICA DO PROFESSOR
Saber decifrar a escrita é o segredo da alfabetização. E muito
importante que o professor tenha isso sempre em mente. Ele
deverá fazer muitas coisas como professor e principalmente
como educador. Mas ensinar a ler é sua tarefa principal. Para
tanto, é preciso ter, em primeiro lugar, os conhecimentos
necessários para que alguém possa ler o que vê diante de si. Os
< CAGLIARJ, 1992c e 1 99 6h. cursos de formação de professor
têm se preocupado muito com outros aspectos da escola, dando
muitas vezes um valor indevido aos aspectos pedagógicos,
metodológicos e psicológicos. Como educador, o professor
precisa ter uma formação geral, e esses conhe cimentos são
básicos. Como professor alfabetizador, precisa ter
conhecimentos técnicos sólidos e completos. Para ensinar língua
portuguesa, é preciso saber o mais possível sobre a linguagem
em geral e sobre a língua portuguesa em particular. Para ensinar
alguém a ler e a escrever, é preciso conhecer profundamente o
funcionamento da escrita e da decifração e corno a escrita e a
fala se relacionam.
<130>
Um professor bem-preparado, com competência técnica, sabe
exatamente o que fazer em qualquer situação de seu trabalho.
Sabe o que o espera pela frente, quais os problemas que
costuma enfrentar e como resolvê-los. Se acontecer algum
imprevisto, saberá como se comportar. Esse tipo de discurso
encontra-se em qualquer livro de pedagogia: é o óbvio. A
aplicação dessas palavras à vida das pessoas, porém, é uma
questão não tão óbvia, e menos fácil e comum ainda entre os
professores.
Se se perguntar a um professor alfabetizador tradicional como
ele faz para ler uma simples palavra como POTE, ele responde
que a gente verifica quais são os sons das letras e diz "pote". E
se quiser escrever a mesma palavra, basta observar que sons a
palavra tem, ver as letras correspondentes a esses sons e
escrever: POTE. E como alguém sabe quais são os sons das
letras? A sua resposta será que se aprende isso com o bá-bé-bi-
bó bu. O conhecimento de como a escrita, a leitura e a fala
funcionam está restrito a essas noções. Com apenas esses
conhecimentos, no entanto, ninguém é capaz de ensinar uma
pessoa a ler e a escrever como se deve. Nessas circunstâncias,
um aluno precisará descobrir, por conta própria — porque é
falante da língua portuguesa, capaz de refletir sobre o funciona
mento de sua fala e da fala alheia e de decifrar a escrita —,
muitas informações, sem as quais não poderá tornar-se um
leitor.
A AUTONOMIA DO PROFESSOR
A explanação acima é oportuna para que o professor reflita
sobre seu trabalho, vendo as questões não do ponto de vista
metodológico, mas da sua competência. Ele não precisa de
"pacotes" educacionais. Os métodos e técnicas não passam de
ferramentas que ajudam em alguns casos e atrapalham em
outros. Um professor competente saberá avaliar quais livros
didáticos são úteis e interessantes e se trazem erros e omissões
de questões importantes ao ensino. O professor precisa libertar-
se das pessoas que apresentam soluções miraculosas num livro
ou método. Mas, para isso, para que esta autonomia possa se
sustentar, deverá ser realmente compe tente e um especialista
em sua área.
<131>
Um professor que pergunta numa palestra o que ele deve
fazer para ensinar a um aluno como ler sem soletrar, como
ensinar os grupos consonantais, como ele pode explicar ao aluno
o emprego das consoantes nasais em final de sílaba, etc, mostra
quão despreparado está para o desempenho de seu trabalho.
Como um professor como esse pode alfabetizar alguém? Se nem
ele sabe resolver essas questões, de que forma seus alunos
poderão saber?
Por outro lado, um professor que passou vários anos em sala
de aula tem uma experiência de vida muito rica, que pode e deve
ser aproveitada, para tirar daí o que a escola de formação não
lhe deu. Existe uma idéia muito preconceituosa em nossa
sociedade com relação aos autodidatas. No entanto, essa talvez
seja a maneira mais usual e eficiente de corrigir os defeitos de
um sistema educacional falho.
Aos poucos, o professor pode ir lendo livros de lingüística
geral ou de áreas particulares (fonologia, sociolingüística,
semântica, etc.) e verificando onde esses conhecimentos entram
na sua prática de sala de aula e quais as conseqüências que eles
trazem. Deve estudar os sistemas de escrita e decidir como levar
esses conhecimentos para suas aulas. Deve, sobretudo, refletir
como usuário da língua portuguesa a respeito dos mecanismos
da fala, escrita e leitura e quais os seus usos. Deve procurar
explicitar, através de pequenas regras, o que faz quando ouve,
fala e escreve. Se o professor sabe ler, pode refletir sobre todos
os conhecimentos necessários para realizar essa tarefa e
traduzir essa reflexão em regras, que serão passadas
oportunamente para os alunos. Deve refletir sobre as próprias
dificuldades e tentar descobrir formas de superá-las, porque
assim saberá voltar-se às dificuldades particulares dos alunos e
procurar urna solução para elas.
Muitas das coisas que se ensina neste livro poderiam
perfeitamente sair de um trabalho pessoal de qualquer professor
alfabetizador, já que na vida profissional lidamos com todas
essas questões. Simplesmente não estamos acostumados a
refletir sobre elas e menos ainda a explicitá-las na forma de um
estudo. Mas é justamente essa explicitação que traz à
consciência do professor sua competência.
<132>
Procedimentos para o estudo das letras
Como já dissemos várias vezes, aprender a ler é o segredo da
alfabetização. Para alguém conseguir ler algo, precisa saber
como esse sistema de escrita funciona, isto é, precisa saber
decifrar a escrita. De acor do com o sistema de escrita, o
processo de decifração ocorre de uma determinada maneira.
Para decifrar uma escrita feita com letras de um alfabeto, a
questão mais importante é saber quais sons estão associados a
quais letras. Por essa razão, apresenta-se, logo adiante, a título
de sugestão, o modo como um professor pode trabalhar esse
aspecto na alfabetização. Antes disso, porém, é bom lembrar
alguns fatos que servem de guia para que o processo de
alfabetização seja mais eficiente.
1. Fornecer as explicações básicas ao aluno
Do ponto de vista funcional, a escrita escolar que usamos
baseia-se num alfabeto de 26 letras (incluindo o "ç"), em alguns
diacríticos, como os acentos e o til, e em marcas, como os sinais
de pontuação. Cada letra representa um valor abstrato, que pode
ter inúmeras formas gráficas. Esse valor é dado pela expectativa
de ocorrência em palavras, de acordo com as normas
ortográficas. Por exemplo, "E" representa o mesmo valor de "e",
e, embora graficamente esses dois caracteres sejam muito
diferentes, é possível escrever a mesma palavra, variando esses
caracteres: "SELO" e "selo". A escrita representa sons da fala. O
próprio nome das letras traz em si um dos sons (em geral o
principal) que a letra representa. Ler não é o mesmo que
escrever. Quando se lê, o que vale é a decifração que conduz ao
reconhecimento da palavra, indo da análise de letra por letra e
de combinações de letras, até compor o resultado final. Feita a
decifração, o contexto em que aparece escrita a palavra em geral
é suficiente para mostrar para o aluno que ele está no caminho
certo. Quando se trata da palavra isolada, é preciso verificar as
alternativas possíveis, que o aluno pode checar, levando em
conta os conhecimentos que tem da linguagem oral, como
falante nativo. Depois, ele vai aprender que pode encontrar
escrita uma palavra que não conhece. Precisará, então, consultar
um dicionário.
Entretanto, o procedimento é diferente quando se escreve. Em
primeiro lugar, observam-se os sons que a palavra apresenta na
linguagem oral. Em seguida, faz-se uma hipótese a respeito de
quais letras podem ser usadas para transcrever os sons
detectados. Finalmente, leva-se em conta a ortografia. Se o
aluno já souber como é a forma ortográfica da palavra, escreve
com facilidade. Se não
<134>
souber ou tiver dúvidas, deverá resolvê-las antes, perguntando
ou procurando no dicionário.
É sempre bom lembrar que não é preciso ter uma ilustração
para se escrever ou ler: um texto basta, ou seja, algo falado
(quando se vai escrever) ou algo que se pode falar (quando se
vai ler). É interessante recordar também que a escrita não
representa a fala de um dialeto em particular. Qualquer falante,
de qualquer dialeto, pode ler decifrando as letras e compondo as
palavras segundo a fala de seu dialeto. Ao escrever, pensa nos
sons das palavras em seu dialeto, procura a forma padroniza da
pela ortografia e escreve.
É preciso estar atento para o fato de que se pode fazer "leitura
incidental" e até escrever palavras com letras, como se fossem
glifos, ou seja, caracteres ideográficos. Como, porém, o sistema
também é fonográfico e usa letras, o segredo da escrita das
palavras é a combinação de letras. Isso simplifica enormemente
a tarefa de escrever uma palavra, seja ela familiar ou não. O
mesmo vale para a leitura: pode-se ler uma palavra como se
fosse um ideograma, mas essa não é uma leitura produtiva.
Quem sabe combinar os valores fonéticos das letras para deci
frar as palavras escritas tem muito mais vantagens e facilidades
para ler. E é assim que os alunos devem aprender.
Essas noções básicas devem ser discutidas com os alunos
desde o início dos trabalhos e sempre que o professor tiver
oportunidade. Se perceber que algum aluno está fazendo
confusão com alguma dessas idéias, precisará esclarecê-lo. O
professor precisa explicar cada uma dessas noções, e não ficar
camuflando com histórias ou exercícios que indiretamente
propiciem o aluno a chegar às conclusões desejadas. É preciso ir
direto ao assunto, sem rodeios.
2. Explicar o que é uma letra
O aluno deve saber ainda que as letras são dispostas em
linhas (em geral horizontais e mais raramente de cima para
baixo), e que uma letra sucede a outra, da esquerda para a
direita, linha por linha. As letras têm tamanhos e formas
definidas nos alfabetos. Letras maiúscula e minúscula indicam
alfabetos diferentes (conjuntos diferentes de caracteres), e não
letras em tamanho grande ou pequeno. Toda letra tem uma
forma básica, que serve para distinguir um caractere de outro,
mas pode variar e ter "enfeites" sem interferir nas suas
características distintivas, como as serifas das letras de fôrma
maiúsculas. Corno as letras são dispostas no espaço,
<135>
em linhas, apoiadas na linha-base horizontal, e a seqüência é da
esquerda para a direita, elas têm uma direção fixada por esse
espaço, de tal modo que não se pode virá-la de cabeça para
baixo, da direita para a esquerda. A letra deverá estar disposta
na escrita das palavras, tal qual aparece no alfabeto. Aliás, a
disposição das letras no próprio alfabeto já mostra esse fato. As
letras são escritas separadamente, no alfabeto de letras de
fôrma, mas são interligadas na escrita cursiva.
Com relação aos usos da escrita, o aluno deve saber onde se
pode encontrar exemplos de escrita, através do reconhecimento
do que é letra e do que não é. Letras podem vir acompanhadas
de figuras ou rabiscos: é preciso saber distinguir um de outro. É
necessário saber por onde começar a ler ou a escrever, e onde
terminar, o que são palavras isoladas e o que é um texto. As
vezes, juntamente com o aspecto gráfico e funcional de urna
letra, o autor tira proveito artístico ou qual quer outro efeito,
para "enriquecer" a escrita com mais idéias. É preciso distinguir
um uso lingüístico da escrita de outros usos possíveis.
Como vivemos num mundo onde coexistem muitos sistemas
de escrita, o aluno precisa saber isolar a escrita alfabética,
composta de letras e seguindo uma ortografia, de outras formas
de escrita, tais como numérica, simb&lica, as que utilizam sinais
e marcas. É preciso, ainda, distinguir uma escrita linear de certas
formas "abrevia das" ou "compostas", em que as letras são
simples pretexto para urna escrita do tipo ideográfica e não-
linear.
Enfim, antes de se ensinar as relações entre letras e sons, o
aluno deve saber o que é uma letra e corno reconhecê-la quando
a encontrar pela frente. Reconhecer o material da escrita e suas
características básicas é im prescindível para começar um
trabalho de decifração, descobrindo quais sons as letras
apresentam em deter minada palavra. Aprender a ler significa
aprender todas essas coisas. Alguns alunos se perdem em
detalhes (segundo o professor), mas sem superar essas
"pequenas" dificuldades, tudo o mais fica comprometido. E se o
aluno não for capaz de decifrar uma palavra, ele não saberá ler e
não poderá ser considerado alfabetizado, mesmo que consiga
dizer coisas que vê escritas, ou reproduzir graficamente o
traçado de palavras.
3. Explicar como segmentar a fala em palavras
Uma palavra separa-se de outra na escrita por um espaço em
branco. Para saber como segmentar uma
<136>
palavra, observando a linguagem oral, há duas estratégias
importantes: a primeira, é separar por significado — cada
significado corresponde a uma palavra possível; a segunda, é
tentar colocar outra palavra no local que se quer segmentar — se
isso for viável, a segmentação é possível. Tudo isso é muito mais
complicado na prática do que esse comentário revela. Mas essas
idéias representam um primeiro passo para os alunos poderem
segmentar a fala oral em palavras, que deverão escrever, sem
muitas dificuldades. A palavra final será sempre dada pela
ortografia. E, nesse caso, quem sabe sabe; quem não sabe tem
de perguntar. Por exemplo, embora represente uma idéia só, é
possível separar em palavras escritas a expressão "assistir à
televisão", porque podemos reconhecer um significado em
"assistir" e outro em "televisão", o que nos permite variar parte
da expressão: "assistir ao jogo", "assistir ao filme", "ver
televisão" "consertar televisão", etc. Pode-se colocar uma
palavra intercalada entre uma e outra: "assistir sempre à
televisão". Porém, no caso de "macarrão", se houver
segmentação, pode-se ter "maca", mas o que sobrou fica sem
sentido: "-rrão"; tampouco pode-se intercalar algo entre uma
palavra e outra: "maca-gostoso-rrão"... Compare as formas
"casa pequena" e "casinha" e faça os testes.
Os alunos não devem se preocupar em cortar palavras no final
de linha, porque esse é um procedimento encontrado em livros,
mas não na escrita comum do dia-a-dia.
Nota
E aconselhável pendurar uma faixa sobre a lousa em que
apareçam primeiro as letras de fôrma maiúsculas e depois as
letras de fôrma minúsculas e minúsculas lado a lado.
4. Explicar como descobrir as regras de decifração
Deve haver um cartaz bem grande (ou uma faixa) com as
letras do alfabeto em sala de aula, para que os alunos possam
consultar sempre que desejarem. Quando o professor for ensinar
as relações entre letras e sons, começará pelo nome das letras.
Em geral, a classe como um todo conhece todas as letras do
alfabeto, porque as crianças costumam ir aprendendo, mesmo
antes de entrar na escola, pelo menos as letras iniciais do
próprio nome. Decorar os nomes das letras é importante, mas o
professor não irá exigir isso, através de exercícios de memória,
nos quais os alunos recitam o alfabeto. Isso se aprende e se
decora com o próprio estudo das letras.
O professor poderá pedir para os alunos ditarem palavras para
verem como são escritas e para proceder à análise de uma ou de
outra letra do interesse deles.
<137>
Poderá, se quiser, proceder a uma análise geral da palavra,
dizendo o nome de cada uma das letras que a compõem.
Seguindo a ordem da esquerda para a direita (ordem correta),
pode-se ler a palavra corretamente, mas se a leitura for feita da
direita para a esquerda, tem-se um amontoado de sons sem
sentido (raramente dá certo ler da direita para a esquerda.
Entretanto, pode-se ter palavras diferentes, ou até mesmo a
mesma palavra, como AMOR e ROMA; ASA, etc.).
Descobrir regras de decifração (relação letra/som) e de
escrita (relação som/letra) é uma estratégia para se alfabetizar
com rapidez e segurança, deixando de lado o método das
cartilhas, o famoso bá-bé-bi-bó-bu. Nessa atividade, o professor
pode programar aulas e material, fazendo o levantamento dos
sons que as letras têm. Por outro lado, pode fazer um
levantamento das letras que são usadas para representar um
mesmo som. Escrever listas de palavras para mostrar as funções
das letras será um procedimento cotidiano. Os exemplos das
listas servirão para uma discussão reflexiva sobre as relações
entre letras e sons e demais fatos lingüísticos, como a variação
dialetal e a ortografia. Como resumo e conclusão das reflexões, o
professor ajudará os alunos a formularem regras que expliquem
os fatos considerados.
As cartilhas jamais pensaram nessas coisas, porque nunca se
preocuparam em ensinar como decifrar a escrita, deixando que o
aluno descobrisse isso por conta própria, de tanto escrever
palavras com "pedacinhos". É incrível que alguns professores
alfabetizadores nunca tenham pensado nesses fatos e, quando
se pede a eles para organizar um material nesse sentido,
sentem-se embaraçados e confusos.
JUNTANDO E GENERALIZANDO
Um estudo detalhado de letra por letra é apresentado no
Apêndice no final deste livro. Recomenda-se que o professor
consulte-o sempre que necessário. Levando em consideração
esse estudo em anexo, pode-se ver a questão das relações entre
letras e sons por outro ângulo. Como algumas letras têm um
comportamento muito semelhante entre si (paralelismo), ou se
comportam de uma maneira semelhante sempre que se
encontram em determinadas circunstâncias, isso permite
<138>
juntar o que for igual e generalizar os casos comuns a mais de
uma letra. Desse modo, em vez de uma série de regras
parecidas, para letras diferentes, pode-se ter a mesma regra
para todos os casos que se enquadram dentro das regras
propostas. Refletir sobre tais questões é uma maneira um pouco
mais sofisticada de conduzir a análise dos conhecimentos
necessários para que alguém consiga ler e escrever. Uma
incursão por esse território será feita a seguir.
Em primeiro lugar, é preciso distinguir fatos de leitura
(decifração) de fatos de escrita (produção de escrita). Um fato
pode ser fácil para o aluno quando ele tem de decifrar e ler, mas
pode ser muito complicado quando, observando esse fato na
fala, ele tem de decidir como escrever. As facilidades e as
dificuldades de ler não são as mesmas quando se trata de
escrever. Esse é um ponto que as cartilhas nunca levaram em
conta porque tratam apenas da escrita, mesmo quando estão
pensando na leitura.
Além de distinguir fatos da leitura de fatos da escrita,
procuraremos avaliar o que é mais "fácil" e o que é mais "difícil",
partindo da complexidade que as letras têm nas suas relações
com os sons da fala, e vice-versa. A própria natureza das letras,
suas funções e empregos serão a medida usada para definir se
uma letra é mais difícil ou mais fácil do que outra, na decifração
ou na escrita. Essa é uma ordem de análise científica, não uma
ordem pedagógica. Para um aluno principiante, escrever ou ler
qualquer coisa é sempre muito difícil. Somente quem conhece o
funcionamento de todo o sistema pode hierarquizar o que, para
si, é mais fácil ou não. O mito de que a letra x é a mais difícil
deve-se ao fato de as pessoas já alfabetizadas encontrarem
dificuldades ortográficas quando estão diante dessa letra. Para o
principiante, ler ou escrever CASA ou EXTRA pode apresentar o
mesmo grau de dificuldade e, nessas circunstâncias, é difícil
hierarquizar qualquer tópico com segurança.
OQUE É MAIS FÁCIL DE DECIFRAR
Antes de mais nada, é bom relembrar o que se disse
acima a respeito das noções de "fácil" e "difícil" aplicadas ao
estudo das letras. Trata-se de uma dificuldade
<139>
medida de acordo com a complexidade dos fatos de nossos
sistemas de escrita (decifração e ortografia) e de fala (variação
lingüística). Essas dificuldades aparecem cada vez mais à
medida que o aluno progride nos estudos. No início, tudo é
igualmente muito difícil. Entretanto, sabendo das dificuldades
futuras, o professor poderá entender melhor o percurso que os
alunos farão.
Quando se fala em decifração, subentende-se leitura. Vamos
separar os comentários a respeito das letras que representam
vogais (A, E, I, O, U) das demais que representam consoantes.
As vogais mais fáceis de decifrar são o I e o U. Sempre que se
encontrar uma delas lê-se "i" ou "u". Igualmente fáceis são
essas mesmas vogais quando são ou podem ser nasalizadas.
Exemplos: JUNTO, TINTA.
Em seguida, tratemos da vogal oral A. Essa vogal muda de
qualidade vocálica quando se junta a ela a nasalização (note a
diferença entre LÁ e LÃ). A letra A, quando nasalizada, pode
gerar a formação de ditongos, juntamente com o M, ou o NH,
como em ACHARAM, BANHA. Pode ainda ser nasalizada ou não
quando ocorrer um M ou N ou NH no início da sílaba seguinte,
como
em: CAMADA, BANANA, BANHA.
As vogais mais difíceis são o E e o O. Ambas apresentam
regras semelhantes (mudando apenas os valores fonéticos em
jogo). A letra E pode ser lida como "é" ou como "é" em sílabas
tônicas (o valor fonético "é" ocorre raramente em sílabas
átonas, e somente em palavras derivadas, como CAFEZINHO, ou
na pronúncia especial de certos dialetos do Norte e do
Nordeste). Exemplos: DELE, DELA, BELO, BELEZA. Em sílabas
átonas, a letra E pode, ainda, ser lida com o som de "i". Veja os
exemplos: FERE, "féri", EMPRESTADO, "imprêstadu".
A letra O pode ter o som de "ô" ou de "ó" quando ocorre em
sílaba tônica (em sílaba átona, o som de "ó" ocorre somente em
palavras derivadas e na pronúncia de certos dialetos,
semelhantemente à letra E). Em sílabas átonas, é comum a letra
O ter o som de "u". Confira os seguintes exemplos: FOCA, FOGO,
COMIDA, COZINHA.
Todas as vogais juntas apresentam regras semelhantes
quanto à nasalização, embora somente a vogal A mude sua
qualidade vocálica básica ao se nasalizar. Assim, quando uma
vogal se encontra diante de um M ou de um N, que por sua vez
ocorre diante de outra comsoante,
<140>
a vogal precisa ser nasalizada: CAMPO, CANTO, ENTRE, EMBORA,
VINDA, LIMPO, ONDA, OMBRO, JUNTO, TUMBA. Quando a vogal
vem diante de uma consoante nasal (M, N, NH), a qual, por sua
vez, ocorre diante de outra vogal, a vogal precedente pode
nasalizar-se ou não. Se ocorrer diante de NH pode ditongar-se ou
não: CAMA, CANA, BANHA, PENA, LENHA, LEME, VIME, CINEMA,
VINHO, ZONA, COMA, SONHA, UNA, UMA, UNHA.
Em final de palavra, as vogais E e I, quando seguidas de M,
podem ditongar-se com "i", e a consoante nasal pode ser um
"nh" na fala. Por outro lado, as vogais O, U e A, quando seguidas
de M, em final de palavra, podem ditongar-se com "u", e a
consoante nasal pode ser uma velar, como nos seguintes
exemplos: VEM, VIM, ALGUM, BOM, ACHARAM.
Finalmente, toda vogal com til representa um som nasalizado.
Porém, na escrita o til só pode ocorrer sobre A e O, como em: LÃ,
MÃE, CIDADÃOS, LEÕES, PÕEM, etc.
Com relação às consoantes que são mais fáceis de
decifrar, podem-se ter três grupos. Primeiro grupo: H e
os dígrafos CH, LH, NH, mais Ç e J. Segundo grupo: P
B, T, D, F e V. Terceiro grupo: L e Z.
Com relação ao primeiro grupo, a letra H só ocorre em início
de palavra e aí não tem som algum (é preciso começar a
decifração pela vogal que vem logo depois). Exemplos: HORA,
HINO, HÁBITO, HERÓI. Como parte de um dígrafo, modifica o
som da letra que a precede, mas resulta num valor fonético de
fácil controle pelo falante ("chê", "lhê" e "nhê"). Exemplos:
CHINA, PALHA, VENHA. A letra Ç tem sempre o som de "çê", e a
letra J tem sempre o som de jê". Exemplos: MAÇÃ, POÇO, JOVEM,
AJUDAR.
As letras do segundo grupo representam valores fonéticos
fáceis quando ocorrem em início de sílaba. Em final de sílaba,
são pronunciadas com um "i" optativo. Apresentam maior
dificuldade quando são a primeira letra de grupos consonantais
terminados em R ou L (ou mais raramente S). Exemplos: POTE,
BOLA, TATU, DADO, FACA, VACA, OBJETO, RITMO, ADVOGADO,
TRABALHO, BROTAR, LIVRO, FRANGO, etc.
No terceiro grupo, estão as letras L e Z em início de sílaba.
Nesse contexto, a letra L tem sempre o som de "lê", e a letra Z
tem sempre o som de "zê". Em final de sílaba, a letra L tem o
som de "u", e a letra Z, de "çê". A
<141>
letra L apresenta certa dificuldade quando ocorre formando
grupos consonantais, ou seja, entre uma consoante e uma vogal,
na mesma sílaba.
O QUE É MAIS DIFÍCIL DE DECIFRAR
Podemos agrupar as maiores dificuldades de decifração das
consoantes em seis grupos. Primeiro grupo: letra C e grupos
consonantais SC, XC; segundo grupo:
S; terceiro grupo: G e os dígrafos GU e QU; quarto grupo: R (o
dígrafo RR é de fácil leitura); quinto grupo: os casos de juntura
intervocabular envolvendo R, S, Z e M; e sexto grupo: X e os
dígrafos XC e XÇ.
Com relação ao primeiro grupo, a letra C tem o valor fonético
de "çê" diante de E, I ou de outra consoante, como no caso dos
dígrafos SC, SÇ ou XC. Nos demais casos, tem o som de "kê"
(diante de A, O, U ou de outra consoante). Exemplos: CEBOLA,
CIDADE, NASCIMENTO, NASÇA, EXCEÇÃO, CABANA, COR, CRISE,
CLARO, TÉCNICA.
Quanto ao segundo grupo, a letra S tem o som de "çê" no
início de palavra, depois de consoante e no dígrafo SS, como em
SAPO, SELVA, PSICOLOGIA, PASSO Entre duas vogais, tem o som
de "zê". Exemplo: MESA. A letra S não representa som nos
dígrafos SC, SÇ e na forma de plural de certas palavras, em
certos contextos, em alguns dialetos (cf. "as casas amarelas
foram vendidas"). Em alguns dialetos, a letra S, em final de
sílaba, tem o som de "çê", mas, em outros, tem o som de "chê".
Nesse caso, se houver uma consoante sonora no início da sílaba
seguinte, no meio da palavra, a letra S pode ter os valores
sonoros correspondentes nos dialetos mencionados acima, ou
seja: "zê" e "jê". Confira os exemplos:
BESTA, COSTA, DESDE, MESMO, SATANÁS, TOMÁS.
Com relação ao terceiro grupo, a letra G é semelhante à letra
C: diante de E e de I tem um tipo de som ("jê") e, diante de
outras letras, tem outro tipo de som ("guê"). Os grupos de letras
GU e QU podem ser dígrafos ou não. Só são dígrafos diante de E
e de 1 e nunca diante de outra vogal (A, O e U. No entanto, em
algumas palavras, os grupos GIJ e QU não são dígrafos, uma vez
que o U é pronunciado. Somente o falante nativo sabe se o u é
pronunciado ou não numa determinada palavra. Não há regras.
Exemplos: GENTE, GIRAFA, GARRAFA, GULOSO, GOTA, GLÓRIA,
GRAÇA, IGNORAR;
<142>
dígrafos: GUERRA, GUIMARÃES, QUENTE, ANIQUILAR, AQUI,
AQUELE; não-dígrafos: AGÜENTAR, SAGÜI, LÍQÜIDO,
FREQÜENTE.
O quarto grupo é o formado pela letra R (o RR é de fácil
decifração — tem como única dificuldade a variedade de sons em
diferentes dialetos). O R representa o som do tepe (vibrante
simples) quando está entre duas vogais, e representa o som da
fricativa velar (ou da vibrante múltipla) quando está em início de
palavra. Acontece que esse segundo valor fonético é típico do RR
em posição intervocálica, motivo da confusão que alguns alunos
fazem com as duas formas de escrita. Nos outros contextos, a
variação é menos problemática (final de sílaba, por exemplo). É
preciso levar em conta, ainda, o fato de o R em final de verbos
não ser pronunciado em certos dialetos ou em certos registros
de fala (fala informal). Em todos os casos, soma-se ainda a
grande variedade de sons foneticamente possíveis nos vários
dialetos, sem contar a ocorrência ora de uma pronúncia vozeada
(sonora), ora desvozeada (surda). Exemplos: CARO, CARRO,
MURO, MURRO, RATO, RIO, RUA, BRASIL, POBRE, CRAVO,
PORTA, CERTO, MAR, PLANTAR, FERIR.
O quinto grupo refere-se aos casos de juntura intervocabular
envolvendo R, S, Z e M. Juntura significa ligar uma palavra com
outra na fala. Quando escrevemos, separamos as palavras com
um espaço em branco, mas, quando falamos, não é isso o que
acontece. Não há uma pequena pausa entre uma palavra e outra;
pelo contrário, o que ocorre mais freqüentemente é a ligação de
uma palavra com outra como se ambas fossem uma coisa só. Em
português, além disso, costumam ocorrer algumas modificações
quando certas palavras se juntam.
Vamos ver uma série de exemplos, mostrando qual a
pronúncia quando duas palavras se juntam:
Palavras isoladas Palavras
concatenadas
casa amarela (1) casamarela
está aqui (2) estáqui
fala alto (3) falaálto
está alto (4) estáalto
parte azul (5) parteazul
carro azul (6) carroazul
todo ódio (7) todoódio
está infeliz (8) estáinfeliz
compre ovo (9) compreôvo
<143>
No primeiro exemplo, quando se juntam dois "as", um deles
cai, o mesmo acontecendo com o exemplo número dois. Porém,
nos exemplos 3 e 4, houve o encontro de dois "as" mas nenhum
deles caiu. Será que existe alguma regrinha para esses casos?
Vamos ver que tipo de sílaba ocorre nesses contextos. No
exemplo 1, têm-se uma sílaba átona final e uma sílaba átona
inicial. No exemplo 2, ocorre uma sílaba tônica final, seguida de
uma sílaba átona inicial. No exemplo 3, tem-se uma sílaba átona
final, seguida de uma sílaba tônica inicial. No exemplo 4,
ocorrem duas sílabas tônicas.
Considerando apenas o exemplo 1, não se sabe qual vogal
deixou de ser pronunciada. O exemplo 2 é de difícil análise.
Porém, nos exemplos 3 e 4, nota-se que a vogal tônica
permanece sempre, e que a vogal átona mantém-se apenas
quando é final da palavra e a seguinte começa com vogal tônica,
como no exemplo 3. Podemos formular agora uma regra: em
juntura intervocabular, a segunda vogal cai se for idêntica à
primeira em sua qualidade, e se for, além disso, átona. Essa
regra inclui todos os exemplos estudados.
O que acontece, porém, quando se juntam duas vogais de
qualidades diferentes? Vejamos os exemplos de 5 a 9. Nota-se
que, no contexto de juntura, formam-se ditongos crescentes (o
final do ditongo é mais saliente do que o inicio). E isso ocorre
independentemente da qualidade das vogais e da tonicidade que
elas apresentam, como mostram esses exemplos.
Fez-se uma análise mais completa do fenômeno para
evidenciar, mais uma vez, como refletir sobre as relações entre
fala e escrita. Do ponto de vista da decifração e da escrita, a
dificuldade dos alunos é maior no caso da juntura que provoca a
queda de alguma vogal. Envolve também algumas dificuldades
com a segmentação, nos demais casos, uma vez que as sílabas
se fundem, com a formação dos ditongos. A dificuldade mais
comum que os alunos enfrentam, encarando o problema por
outro ângulo, é saber se devem ou não escrever o artigo "a", em
contextos de juntura com outra vogal precedente (ou, mais
raramente, subseqüente). Por exemplo, é comum alguns alunos
omitirem o artigo em expressões como "toda a família". Confere,
ainda, "toda a amizade", em que caem dois "as" na fala, mas não
na escrita.
Em alguns casos, a presença do artigo não é obrigatória, mas
muda levemente o significado da frase, como em: "comprava a
cebola por quilo e a banana a dúzia" em confronto com
"comprava cebola por quilo
<144>
e banana a dúzia". No primeiro caso, o falante quer marcar uma
oposição, no segundo caso, apenas enumera fatos.
Com relação à decifração, a maior dificuldade dos fenômenos
de juntura intervocabular acontece quando, em final de palavra,
há uma consoante e, no início da palavra seguinte, uma vogal.
Nesses casos, a consoante final junta-se à vogal inicial,
formando uma sílaba única e dificultando, assim, o trabalho de
segmentação da fala.
Pior ainda é o fato de haver mudanças muito significativas na
qualidade fônica dos elementos envolvidos. Por exemplo, uma
letra R em final de palavra tem o som de RR (cujo valor fonético
varia de dialeto para dialeto, como já se viu antes). Porém,
quando se encontra em juntura intervocabular, o R tem o som da
vibrante simples (tepe) e não da vibrante múltipla (RR).
Concluindo, troca-se o som de RR por R, como se pode ver nos
exemplos a seguir: MAR ALTO, VIR AQUI, POR ALI, CARÁTER
AGRESSIVO, etc.
Quando o aluno analisa sua fala contínua, encontra um tipo de
som, mas, depois que a segmenta, depara-se com outro,
pronunciando a palavra isoladamente. Isso costuma causar
dificuldades sérias para alguns alunos, no início. O professor
precisa explicar ao aluno que a fala funciona de um jeito e a
escrita, de outro. A escrita funciona como se as palavras
ocorressem sempre isoladas.
Fato semelhante é o caso do S ou Z em final de palavra e vogal
no início da palavra seguinte, em juntura. As letras S ou Z,
nesses casos, têm sempre o som de "zê", independentemente do
dialeto. Porém, quando o aluno segmenta e vai analisar a palavra
isoladamente, descobre que o som mudou de "zê" para "çê" ou
"chê". Veja os exemplos: CASAS AMARELAS, TRÊS AMIGOS, DEZ
AMIGAS, RAPAZ INFELIZ, etc.
Em final de palavra, quando ocorre M e a palavra seguinte
começa por vogal, a nasal pode formar a sílaba independente
com a vogal seguinte. Nesse caso, se a nasal for precedida por I
ou E, ocorre uma consoante nasal palatal ("nhê"); se o M for
precedido por outra vogal, ocorre uma consoante nasal velar.
Veja os exemplos: VEM AQUI, VIM AQUI, HOMEM AMARELO,
VIERAM AQUI, RUM AMARGO, BOM AMIGO, etc. A mesma regra
aplica-se quando, mesmo não havendo a letra M na escrita,
ocorre uma vogal nasal no final de palavra, em juntura
intervocabular. Observe os seguintes
<145>
exemplos: MÃE INFELIZ ("mãi-nhi-fe-liç"), IRMÃ INFELIZ ("ir-
mã-rji-fe-liç"), PÕE AQUI ("põi-nha-ki"), etc.
Como se disse, essa regra, diferentemente da regra
estabelecida para o R e o S, o Z é opcional. Isso significa que, em
vez da consoante nasal indicada para a fala, pode não ocorrer
nenhuma consoante nasal, permanecendo apenas sílabas
diferentes, de acordo com a forma de cada palavra. Assim, os
exemplos acima, poderiam ser ditos da seguinte maneira: "véi-a-
ki", "vi-é-rãua-ki", "bõu-a-mi-gu", "ir-mã-i-fe-liç", "põi-a-ki",
etc.
Aqui também a variação entre escrita e fala traz dificuldades
para o aprendiz, sobretudo quando ele se depara com esses
fatos pela primeira vez. Uma simples explicação, contudo, é
quase sempre suficiente para que o aluno perceba como deve
agir perante a fala e a escrita. A falta de explicação, no entanto,
pode deixar algumas crianças num impasse ou em sérias
dificuldades, não entendendo por que as palavras variam tanto e
quais são as regras que regem as variações. Mesmo que o aluno
não as aprenda, o simples fato de ouvir uma explicação significa
para ele que se trata de uma questão difícil, que ele aprenderá
mais tarde. Sem nenhuma explicação, o aluno procurará uma e
acabará confuso, julgando-se incapaz de aprender.
O último grupo de dificuldades de decifração da escrita
proposto anteriormente é aquele que se refere ao X e aos
dígrafos XC e XÇ. A letra X tem o som de "chê" no início de
palavra, o que torna sua leitura fácil, nesse contexto. Em final de
palavra, tem o som de "kç" ou "kch", dependendo do dialeto:
TÓRAX, PIREX, LATEX, etc. Quando ocorre em final de sílaba, no
meio da palavra, a letra X tem o som dc "çê" ou de "chê",
dependendo do dialeto: EXTRA, EXPLICAR, etc. Aqui, pode haver
uma ditongação da vogal anterior quando se trata do som de "ê",
como cm: "eichplicarr" (EXPLICAR). O mesmo acontece com os
dígrafos XC e XÇ: EXCEÇÃO ("eçeçãu", "eichçeçãu"). Porém, não
ocorre uma pronúncia como "echçeçãu".
A maior dificuldade com a decifração da letra X ocorre quando
ela representa uma consoante em início de sílaba e ocorre em
contexto intervocálico, como nos seguintes exemplos: VEXAME,
EXAME, PROXIMO, FIXO, etc. Como temos dito várias vezes,
quando o leitor se encontra diante de casos assim, saber as
relações entre letras e sons resolve o problema da decifração só
em parte. Para chegar à conclusão final, deverá lançar mão de
outro expediente, que consiste
<146>
em decifrar o que for possível e checar se o resultado obtido
produz uma palavra da língua portuguesa. Se não produz,
ocorreu algum equívoco nas relações entre letras e sons. Se
produz, ainda assim é preciso checar o contexto em que a
palavra se insere para saber se ela está correta. Por exemplo,
alguém vai tentar ler a palavra FIXA na frase "a etiqueta estava
fixa no caderno". Como o X entre vogais pode ter o som de
"chê", uma leitura possível seria "ficha". Porém, confrontando
com o contexto, o aluno percebe que a palavra que ele descobriu
não faz sentido ali. Deverá procurar então uma outra alternativa.
Sabe-se que entre vogais a letra X pode ter ainda o som de "kç".
Portanto, a leitura é "fikça" e o texto adquire seu sentido
correto.
Finalmente, deve-se destacar que as dificuldades de
decifração apresentadas acima levam em consideração o fato de
se usar a leitura como uma forma de aprendizagem e o emprego
da norma culta em sala de aula. Porém, na realidade individual
de cada aluno, sobretudo quando ele está lendo sozinho, a
passagem da escrita para a leitura o conduz de maneira natural
à fala do seu dialeto. Nesse caso, as diferenças entre escrita e
fala aumentam, dependendo da variedade lingüística em uso,
podendo trazer dificuldades sérias para alguns alunos.
OQUE É MAIS FÁCIL DE ESCREVER
Existe uma diferença notável entre a decifração da escrita e a
produção de escrita com relação ao que é mais fácil ou difícil.
Alguns casos são de fácil decifração, mas apresentam
dificuldades sérias na escrita. As dificuldades referem-se ao fato
de haver mais de uma possibilidade de escrita, em princípio, ou
de a forma lexical de uma palavra, na fala, ser diferente da
forma escrita, em geral, por causa da variedade lingüística do
aluno.
Para o professor e para o aluno, é interessante e útil fazer um
levantamento desses casos, já que essa também é uma maneira
de ensiná-lo a decifrar a escrita e a escrever sem o bá-bé-bi-bó-
bu. Vamos começar fazendo um levantamento do que é mais fácil
de escrever. Esse é um estudo das relações entre sons e letras
(da fala para a escrita) e não entre letras e sons (da escrita para
a fala).
<147>
De modo geral, é fácil escrever quando ocorrem os casos de:
P/B, T/D, F/V É curioso, pois os professores dizem que é
justamente nesses casos que ocorrem as famosas trocas de
letras, ou seja, quando os alunos escrevem P em vez de B, F em
vez de V e T em vez de D. A explicação mais comum é que as
crianças cometem essas trocas de letras porque têm dificuldades
auditivas para distinguir sons sonoros de surdos. Essa afirmação
não faz sentido, porque analisando tudo o que as crianças fazem,
logo se percebe que elas usam sons surdos e sonoros, em outras
situações, sem a menor dificuldade (lembrar que as vogais são
sonoras, assim como as laterais; as vibrantes podem ser sonoras
ou surdas, assim como as fricativas...).
Um aluno pode trocar letras pelo simples fato de sussurrar os
sons das palavras que escreve e, assim, produzir uma fala sem
sons sonoros, razão pela qual acaba concluindo que precisa
escrever as letras "surdas" e não as "sonoras".
Mais complicado é o caso de pessoas que não fazem essa
distinção na fala (por exemplo, os imigrantes poloneses). Nesses
casos, o aluno precisa se guiar pelo significado para escrever
uma letra ou outra. Então, sempre que achar que precisa
escrever F, deverá levantar a hipótese de ter de escrever
também V. A decisão final será tomada em função do significado
e da ortografia. Assim, se ele pretende escrever "vaca" e pensa
em F para a primeira letra, deve comparar as duas formas:
FACA e VACA. Em seguida, começa a aprender que a escrita com
F refere-se à ferramenta e a escrita com V refere-se ao animal.
Será mais dificil quando não houver um par mínimo. Por
exemplo, se o aluno for escrever "livro", irá comparar as duas
possibilidades: LIFRO e LIVRO. Nesse caso, como a troca de V
por F não muda o significado, a única solução é o aluno decorar a
ortografia.
Passando a outros casos, constata-se que é mais fácil escrever
o som de "zê" no início de palavra, porque a única letra que
representa este som nesse contexto é o Z.
É claro que o aluno principiante está pensando em geral nas
relações entre letras e sons fora dos contextos. Por isso, esse
exercício complementa as informações de que ele precisa para
aprender. Em outras palavras, ele pode achar que o som de "zê"
também pode ser escrito com X (EXAME) ou com S (CASA). Pode,
então, chegar à conclusão de que ZEBRA é escrita como
<148>
XEBRA ou SEBRA. Porém, ao estudar a distribuição dos sons e
das letras no contexto da palavra, o aluno vai aprender algumas
regrinhas: neste caso, que o som de "zê" em início de palavra só
pode ser escrito com a letra Z. Essa regra então resolve uma
dificuldade e ajuda o aluno.
Outros casos: o som de "lê" em início de sílaba é fácil de
transpor para a escrita: LATA, LADO, LIVRO, etc. Quando faz
parte de grupos consonantais, pode ser fácil se, na fala do aluno,
ocorrer a consoante lateral e não a vibrante, como em: PLANTA,
GLÓRIA, CLARO, etc.
O mesmo vale para os sons "mê", "nê" e "nhê", em início de
sílaba: MAPA, CAMA, NATA, CANA, TENHO, BANHO, etc.
O som de "jê" só pode ser escrito com J quando a vogal seguinte
for A, O ou U: JACA, JOVEM, JUNIOR, CORRIJO, CORUJA, HAJA,
VIAJA, etc.
O som de "guê" só pode ser escrito com a letra G quando a
vogal seguinte for A, O ou U (não seguida de outra vogal): GOLA,
GULA, GARRAFA, etc. Se for preciso escrever o som de "guê"
seguido das vogais "ê" ou
"i", o aluno deverá escrever a letra U entre o G e a vogal E ou I:
GUERRA, GUIMARÃES, etc.
O som de "kê" é um pouquinho mais difícil. Há uma tendência
para escrevê-lo com C quando o som "kê" vem antes de A, O ou
U (não seguido de outra vogal):
CADA, COLAR, etc. Por outro lado, há uma tendência para
escrevê-lo com QU quando o som de "kê" vem seguido do som
de "u" e do som de outra vogal, como em: QUATRO, FREQÜENTE,
INÍQUO, etc. O som de "kê" seguido de E ou de I só pode ser
escrito com QU: QUENTE, QUINTO, etc.
Há outros modos de ver o problema. Por exemplo, pode-se
ensinar aos alunos que, no início de palavra, só se escreve um R,
nunca dois: RATO, RIO, etc. Nenhuma palavra começa com Ç,
nem com NH ou LH (exceto LHE e algumas palavras estrangeiras
como LHAMA, NHOQUE, NHEENGATU, etc.). Do mesmo modo, não
se escrevem palavras com certas seqüências de letras, como por
exemplo, numa mesma sílaba, HR, TH, etc. (a não ser em
palavras estrangeiras ou grafadas com ortografia antiga).
Outro tipo de regra que se pode ensinar é a seguinte: as
terminações verbais de verbos derivados escrevem-se com -IZAR
(e não com -ISAR), como: FERTILIZAR (de fértil), UTILIZAR (de
útil). Porém: ALISAR (de liso — se fosse "alisizar" seria com -
IZAR). Outra regra:
palavras derivadas que não terminam em S no singular
<149>
que recebem a terminação com o som de "eza" são escritas com
-EZA. As que terminam em - s são escritas com -ESA. Exemplos:
BELEZA (de belo), INTEIREZA (de inteiro), porém: MARQUESA
(de marquês), INGLESA (de inglês), etc.
Mais uma regra: os finais paroxítonos dos verbos que
terminam com o ditongo nasal "ãu" são escritos com -AM, e os
finais oxítonos, com - ÃO. Exemplos: FIZERAM, ESTAVAM, IAM;
porém: ESTÃO, FARÃO, SÃO, ACHARÃO, etc.
É relativamente fácil mostrar aos alunos que, ao encontrarem
uma vogal nasalizada seguida de uma consoante, no meio de
palavra, se essa consoante for P ou B (M é muito raro), a
ortografia obriga o uso da letra M, entre a vogal e a consoante.
Nos demais casos (consoantes diferentes de P e B), a ortografia
obriga o uso da letra N, entre a vogal nasalizada e a consoante.
Exemplos: CAMPO, BOMBA, CANTO, BANCO, ONÇA, INFELIZ,
ENVIAR, ENLATADO, etc.
Com relação às vogais, é mais fácil escrever os sons "é", "é",
"ó", "ô", os quais, quando identificados na fala, passam a
corresponder às letras E ou O (desconsiderando a acentuação
gráfica). Os sons de "a" e de "â" serão escritos com a letra A
(desconsiderando o til). Também é fácil escrever os sons de "i" e
"ii" quando ocorrem em sílabas tônicas, porém nas sílabas
átonas é muito difícil.
Nesse campo, também é possível estabelecer certas regrinhas
úteis. Por exemplo: pode-se dizer aos alunos que, ao
encontrarem o som de "à" em final de palavra, ele será escrito
sempre com til: LÃ, IRMÃ, ÍMÃ, TALISMÃ, etc. Se tiverem de
escrever o ditongo "ãu" em palavras que não são verbos, usarão
as letras -ÃO (e não -AM): IRMÃO, ÓRGÃO, ALEMÃO, etc.
O professor não deve se preocupar se, por acaso, houver
exceções às suas regras. Fatos novos ajudam a melhorar as
regras ou a indicar seus limites. Por exemplo, é muito raro
encontrar palavras em português que se escrevem com I + s +
consoante. Em geral, quando se tem os sons de "is + consoante"
(ou "ich + consoante", em alguns dialetos), a palavra escrita
começa com a vogal E: ESCOLA, ESPADA, ESQUADRA, etc. Como
exceção temos ISQUEIRO, ISTMO, ISCA... e alguns nomes de
origem estrangeira: ISRAEL, ISLAMITA, ISLANDÊS.
Algumas regras requerem conhecimentos gramaticais mais
sofisticados e, por essa razão, são menos interessantes na
alfabetização. E o caso de regras que envolvem conceitos como
"verbo", "adjetivo", "palavras primitivas
<150>
e derivadas", "sílabas tônicas e átonas", "paroxítonas e
oxítonas", etc. Às vezes, uma pequena explicação a respeito
desses conceitos pode ajudar. Não custa o professor tentar uma
vez para ver a reação da classe. Poderá se surpreender com o
interesse de alguns alunos.
OQUE É MAIS DIFÍCIL DE ESCREVER
A grande dificuldade que os alunos têm para passar da
observação da fala para a escrita reside no fato de esta não ser
uma espécie de transcrição fonética (como, às vezes, o sistema
alfabético nos leva a crer). Igualmente complicado é o fato de
alguns alunos falarem dialetos, cujas palavras têm uma forma
muito diferente da forma das palavras da norma culta, usada
como referência mais próxima da escrita que respeita a
ortografia.
Essas dificuldades somente se resolvem com o tempo.
Entretanto, o conhecimento do funcionamento da escrita, da fala
e da leitura pode ajudar muito a se obter um bom resultado com
esses alunos. Dentro desse quadro de preocupações, deve-se
lembrar que uma discussão a respeito da variação lingüística
(dialetos) e que papel a ortografia desempenha no nosso
sistema de escrita é imprescindível e deve ser freqüentemente
recordada pelo professor.
A passagem da fala para a escrita apresenta algumas
dificuldades especiais no caso de algumas letras, justamente
pelo fato de o aluno ter de optar por uma única forma entre
várias possibilidades. Vejam-se, a seguir, alguns casos.
O som de "chê" pode ser escrito com CH ou com X,
e só a ortografia pode dizer onde vai uma letra e onde
vai outra. Os professores costumam dizer que essa é
uma dificuldade inerente à letra X, mas na verdade é
inerente ao X e ao CH, quando se consideram os fatos
a partir da fala, e não da escrita.
Notar que o som de "chê" (ou "jê") que ocorre no final de
sílaba, em certos dialetos, será representado por S, Z ou X (X
somente no meio da palavra), como em CASAS, RAPAZ, EXTRA,
DESDE, etc.
Outro exemplo tradicional é o caso da escrita da letra L,
representando o som de "u", como parte final de alguns
ditongos. As vezes, esse "u" é escrito com L e, às vezes, é escrito
com U, como se pode ver nos
<151>
exemplos: "baudi" BALDE, "méu" — MEL, "çóu" — SOL, porém:
"çaudadi" — SAUDADE, "mêu" — MEU, "çôu" — SOU, etc. Em
alguns casos, é possível distinguir a forma ortográfica pelo
significado, como em ALTO e AUTO, mas esses casos são raros e
ajudam pouco.
Mais um caso dificil é o som de "çê", que pode ser escrito com
S, Ç, C (somente diante de I e E), Z (somente em final de sílaba)
e X. Aqui também dizer que apenas a letra x é complicada
significa ver o problema apenas pela ótica de uma letra. Um caso
mais simples é o do som "zê", que pode ser escrito com Z, S ou
X. Porém, em início de palavras, só se emprega a letra Z. A letra
S tem o som de "zê" apenas entre vogais ou diante de uma
consoante sonora.
O som de 'jê" se confunde na escrita apenas quando está
diante de I ou de E — quando pode ser escrito com G ou com J.
Nos demais casos, será usado apenas o J.
O som de "kê" apresenta dificuldade apenas diante de A, O ou
U, quando pode ser representado por C ou por QU. Diante dos
SONS "j" ou "e", só se escreve QU, nunca C.
A dificuldade de escrever R ou RR não é grande. Só se usa RR,
por oposição a R, quando o som estiver entre duas vogais.
Nesses casos, a distinção se faz pelos valores fonéticos
diferentes. Nos demais casos, o aluno escreverá sempre um R só.
A dificuldade maior que o professor encontra comumente se
relaciona com a variação lingüística e com a forma lexical de
algumas palavras, em alguns dialetos.
Notar que algumas diferenças de fala, na verdade, não trazem
dificuldades para a escrita. Por exemplo, há pessoas que falam
"tchia", "djia" e há pessoas que falam "tia" e "dia", mas esse
tipo de variação não atrapalha a escrita (casos de distribuição
complementar de sons no sistema fonológico). Isso significa que
uma pessoa que fala "drentu", "ãdãnu" pode aprender
facilmente a escrever DENTRO e ANDANDO, mesmo sem eliminar
sua pronúncia original.
Como se disse anteriormente, aqui também é possível fazer
algumas regrinhas que mostram que certas dificuldades são
mais aparentes do que reais. Por exemplo, o som de "ksi" pode
ser escrito com X ou com -QUE-SE. Porém, só serão escritos com
-QUE-SE se forem verbos, cujo infinitivo apresenta o som de
na última sílaba, como COLOCAR, SOCAR, FICAR, etc. Portanto,
nos demais casos, a escrita será provavelmente com X.
<152>
Com relação às vogais, a grande dificuldade está na escrita
dos sons "i" e "u" átonos e de alguns casos de
vogais nasalizadas.
Os sons de "i" e "u" átonos podem ser escritos com as letras I,
U ou E, Q Aqui, não há regras para facilitar o aprendizado, a
única saída é recorrer à ortografia. Deixar de lado a dúvida e
imediatamente procurar ver com que letras determinada palavra
é escrita.
Apesar do que foi dito acima, o professor poderá mostrar a
seus alunos que em certos casos é muito mais comum o uso das
letras E e O do que I e U Considerações a respeito de "inícios de
palavra", "prefixos", "finais de palavra" e "sufixos" podem
revelar tais tendências. Já se falou antes, por exemplo, que
palavras que se iniciam com o som de "chk" ou "çk",
dependendo do dialeto, são escritas com ESC, e não de outra
forma: ESCADA, ESPADA, ESCORREGADOR, ESCOLHER,
ESPÍRITO, etc.
Se o aluno conseguir perceber que certas palavras têm um
"mesmo sufixo", e se souber como se escreve esse sufixo,
poderá generalizar a regra e ter menos dificuldades na escrita.
Por exemplo, vendo as seguintes palavras, constata-se que todas
acabam com os mesmos sons (porque têm o mesmo sufixo):
AMAVEL, TERRÍVEL, INCRÍVEL, HORRIVEL, POTÁVEL, etc.
Exemplos semelhantes ensinam os alunos a escrever o sufixo -
VEL. Outros exemplos, como HORROROSO, BONDOSO, FORMOSO,
DANOSO, CURIOSO (e as respectivas formas do feminino),
podem ajudar o aluno a escrever o sufixo -OSO, -OSA. Outro
sufixo comum é -MENTE: INFELIZMENTE, ALEGREMENTE,
TRISTEMENTE, PREGUIÇOSAMENTE, etc.
É fácil explicar aos alunos que a terminação -ÃO (tônico), ou
melhor ainda, o ditongo nasal que tem o som de "ãu" tônico se
escreve com O e não com U. Do mesmo modo o ditongo nasal
que tem o som de "õi" se escreve com ÕE e não com ÕI.
Conferir: PÃO, MELÃO, FARÃO, TÃO, SIMÃO, ou PÕE, PÕEM,
SIMÕES, LIMÕES, FERRÕES, LEÕES, etc.
Alguns alunos falam o gerúndio, usando a terminação -NO e
não -NDO. O professor pode aproveitar a oportunidade e explicar
que a norma culta admite que se fale "-ndu" e se escreva -NDO.
Portanto, em vez de escrever: ANDANO, FAZENO, FALANO,
CORRENO, FUGINO, o aluno, ao aprender o sufixo do gerúndio,
aprenderá a escrever também ANDANDO, FAZENDO, FALANDO,
CORRENDO, FUGINDO, etc.
<153 >
Fazer um levantamento de sufixos e de rimas pode ser uma
boa estratégia para o professor ensinar a escrever certos
pedaços de palavras. Isso acelera o domínio da ortografia. O
professor deve mostrar o que há de igual e o que há de diferente
e, se possível, até mesmo a extensão dessas considerações. Esse
procedimento tem a vantagem de ensinar não só a escrever, mas
também a refletir sobre a linguagem em geral e a escrita em
particular.
Outra dificuldade séria que os alunos encontram é quanto à
escrita da nasalidade vocálica. Escrever M, N e NH em início de
sílaba é fácil. Porém, escrever M e N em final de sílaba traz
muitas dificuldades para certos alunos, porque, em seus
dialetos, eles não pronunciam essas consoantes nasais, apenas
nasalizam a vogal precedente. Mesmo nos dialetos (em geral do
Sul do país) em que se falam comumente essas consoantes
nasais, é freqüente ouvir pessoas que não as falam, sobretudo
numa fala mais rápida, menos formal. Como a norma culta não
exige que essas consoantes nasais sejam pronunciadas, fica
mais difícil para o professor ensinar ao aluno quando se deve
escrevê-las. A tendência geral dos alunos é escrever as palavras
sem nenhuma marca de nasalidade, seguindo o exemplo da
palavra MUITO, que não leva til nem tem consoante nasal entre o
I e o T Mas o ditongo Ul é um ditongo nasalizado.
Com relação ao problema da nasalidade, a melhor estratégia é
fazer uma análise da fala, escolhendo exemplos apropriados,
propostos pelo professor e pelos alunos, para esclarecer, em
primeiro lugar, a diferença entre ocorrências orais e nasalizadas
de vogais e ditongos, anotando em colunas, palavras como:
CAMA CAMPO PENTE ONÇA
CANA BOMBA CANTA ENLUARADA
BANHA LIMPO VINDA ENVIAR
CATA BOBA VIDA JUTA
CANTA BOMBA VINDA JUNTA
OUÇA MATA A IDA CEDO
ONÇA MANTA AINDA SENDO
O uso de pares mínimos é sempre uma boa maneira de
mostrar os contrastes e de ajudar o aluno a passar da fala para a
escrita com mais informações.
<154>
Logo no início, alguns alunos apresentam alguns problemas na
ordem das letras de algumas palavras. As inversões de letras
representam os casos mais comuns. O professor não precisa
preocupar-se com esse fato. Trata-se apenas de uma dificuldade
inicial que os alunos resolvem por si mesmos. E o caso de quem
escreve ON em vez de NO, ou mesmo TAMA em vez de MATA, ou
ainda CESUSU em vez de SUCESSO.
Mais complicado do que a ordem é a dificuldade que os alunos
têm para segmentar. Aqui também a melhor estratégia é deixar
que eles escrevam como pensam e esperar que descubram por si
mesmos como fazer. Algumas expressões levam mais tempo
para os alunos segmentarem corretamente. Se o professor
perceber que alguns alunos estão demorando muito para
segmentar expressões mais fáceis, poderá organizar algumas
aulas com o objetivo de ensinar a segmentação. Nesse caso,
basta usar exemplos dos próprios alunos e analisá-los com eles.
A regra de identificação semântica (uma idéia, uma palavra) não
ajuda muito nesse momento. Na verdade, essa regra pressupõe
muitos outros conhecimentos, inclusive de como a escrita
funciona. O fato de os alunos virem palavras escritas separadas
por espaços em branco é a melhor indicação de que dispõem. Em
último caso, dizer sempre que se deve escrever junto ou
separado isso ou aquilo porque é assim que a ortografia
estabeleceu. Portanto, quem tiver dúvidas, não adianta ficar
pensando sozinho: é preciso perguntar a quem sabe ou procurar
no dicionário.
A DIFÍCIL ARTE DE LER
E DE ESCREVER
Como se pôde ver nos estudos das letras, as relações entre
letras e sons são muito complexas. Isso explica por que decifrar
e escrever o nosso sistema de escrita é uma tarefa que exige
muito conhecimento. Ficou claro também que as relações entre
letras e sons não são exatamente as mesmas das relações entre
sons e letras. Resumindo, para ler, são necessários alguns
conhecimentos e, para escrever, além dos relacionados à leitura,
são necessários conhecimentos complementares. Isso mostra,
ainda, que é melhor
<155>
começar o processo de alfabetização ensinando o aluno a
decifrar a escrita e a ler, do que a escrever, como faz
tradicionalmente o método das cartilhas. Depois que o aluno
aprendeu um pouco a ler, pode ir tentando escrever, mas, se
misturar as duas coisas, acabará com sérios problemas de leitura
e, pior ainda, de escrita.
Uma decorrência das reflexões acima expostas é a consciência
que o professor deve ter de que para ler e para escrever são
necessários inúmeros conhecimentos, alguns complexos. Muitas
vezes, a cartilha e o professor ensinam muito pouco ao aluno e
cobram dele um resultado injusto.
Um aluno aprende umas poucas palavras-chave, umas poucas
famílias de sílabas geradoras, e a regra insistente de que ele
deve observar a própria fala (ou a do professor) para escrever.
Soma-se a isso a expectativa de que aprendendo a escrever
aprenderá automaticamente a ler. Além de essa ser uma forma
muito complicada de ensinar a ler e a escrever, é incompleta e,
por essa razão, pode não ser suficiente para dar os subsídios
necessários para os alunos resolverem seus problemas.
Alguns alunos resolvem suas dificuldades por conta própria,
não levando muito a sério algumas coisas que ouvem na sala de
aula, e procurando as informações complementares que nem a
cartilha nem o professor forneceram. Outros tentam aplicar ao
pé da letra e à risca as regras que são apresentadas, e mais nada
(porque o aluno só faz o que o professor manda, senão aprende
errado...), e acabam sem saída. Então, vêem seus colegas que já
encontraram uma saída, que fazem coisas certas, enquanto eles
fazem tudo errado. Esses alunos acabam entrando em pânico e
causando muitos problemas para si, para o professor, para a
escola, para o governo e para os pais.
Nessa situação, encontramos alunos que, seguindo a cartilha e
a regra de observar a própria fala a fim de escrever, fazem o
seguinte: ao tentar escrever uma palavra simples como PAI, a
primeira coisa que fazem é falar e observar. Dizem "pai-paaaaa"
e escrevem o A porque detectaram o som de "a". Depois, falam:
"paiaaaa-iiii" e reconhecem o ditongo e escrevem AI. Voltando à
fala, repetem: "pa-pa-pa-ii" e escrevem PA, que é da família do
pá-pé-pi-pó-pu, e sempre se deve escrever essas coisas, como se
aprende com as palavras-chave. O resultado final é: AAIPA.
<156>
CAGLIARI, 1997c. >
Muitas pessoas, vendo as crianças escreverem coisas assim,
em vez de estudar por que isso acontece, analisam a questão
apenas superficialmente, dizendo que elas não sabem escrever,
que escrevem de qualquer jeito, que não têm direção certa para
colocar as letras e não aprendem porque escreveram "aaipa" e
dizem que escreveram "pai", numa clara evidência de que têm
problemas de aprendizagem, certamente de fundo psicológico ou
neurológico.
A incompetência desses profissionais é um crime contra as
crianças. A criança simplesmente fez o que o professor mandou.
Ela simplesmente ainda não dispunha das informações
necessárias para escrever de outro modo. Para o professor,
parecia claro e evidente que "pai" se diz "pai" e se escreve PAI,
porque ele, professor, já sabe muito mais do que a simples
regrinha de "escreva observando a fala". O pior disso tudo é a
preocupação do professor com o aluno que escreve AAIPA. Para
que um aluno que escreve assim possa superar sua dificuldade,
tem de deixar de lado algumas das explicações mais comuns e
enfáticas que o professor dá. Nem todos os alunos conseguem
superar essa barreira, porque acreditam demais nos professores.
Mas tudo tem limite. Depois de um certo tempo sem obter
resultados, alguns alunos começam a duvidar de si, do professor,
da escola e transformam a própria vida num dilema. Muito
freqüentemente, antes que isso aconteça, o aluno já deve ter
passado por outra experiência traumatizante, ao ser colocado
numa classe especial, com colegas que também não conseguem
aprender. Essas classes são portas fáceis para os alunos
abandonarem a escola e os estudos, principalmente numa escola
pública.
A AÇÃO DO PROFESSOR
O professor deverá explicitar aos seus alunos como se faz para
ler e, ao realizar essa tarefa, deverá tratar das relações entre
letras e sons na leitura e na escrita.
O professor não deverá explicar tudo o que consta no estudo
das relações entre letras e sons (Apêndice). Para o aluno
começar a ler e a escrever, alguns conhecimentos são
prioritários e outros vão ser adquiridos com o tempo. A respeito
das relações entre letras e sons, é mais importante ensinar ao
aluno como aprender,
<157>
do que ficar analisando detalhadamente letra por letra, caso por
caso. Ao estudar uma determinada letra, por exemplo A ou G, o
professor irá abordar alguns aspectos, deixando outros para
depois. Ele voltará muitas vezes a falar no assunto, e algumas
observações serão feitas somente quando houver razão para
isso, ou porque um aluno perguntou ou porque se tornou
necessário para corrigir um erro, ou até mesmo por curiosidade.
Mantendo uma prática regular de análise do processo de
decifração com os alunos, os conhecimentos vão se sofisticando
à medida que os alunos aprendem mais a respeito da leitura e da
escrita. E importante deixar os alunos tomarem a iniciativa de
refletir sobre os fenômenos que estudam, porque sozinhos
também chegam a resultados interessantes e até
surpreendentes. Os conhecimentos passados já adquiridos
servem de apoio para o desenvolvimento de novos
conhecimentos. Assim funciona o processo de aprendizagem. O
ensino nada mais é do que a criação das condições adequadas
para que a aprendizagem aconteça.
Em geral, não vale a pena o professor ficar explicando
questões que são muito complexas. Essas explicações servem
para uma análise lingüística, mas já não são tão interessantes
para a alfabetização. As crianças acabam aprendendo a decifrar
e a escrever muito mais tranqüilamente através de umas poucas
regrinhas e praticando a leitura e a escrita, do que através de
explicações muito complicadas. O professor precisa ter bom
senso para avaliar a situação. Se os alunos quiserem saber algo
que exige uma explicação técnica muito sofisticada, o professor
pode dar uma explicação mais elaborada, mesmo que os alunos
não compreendam bem o alcance e a profundidade do que ele
diz. É melhor ouvir uma explicação correta, mesmo que difícil, do
que uma mentira, um erro ou uma explicação que deverá ser
abandonada logo adiante.
Um roteiro de idéias gerais para começar uma discussão pode
levar em conta os tópicos:
Quando se vai ler.
1. Usamos o nome das letras para saber que som a letra tem: a
letra A tem o nome de a e o som de "a". A
letra C tem o nome de cê e o som de "çê".
2. Uma letra pode ter mais de um som, representando sons
diferentes. A classe vai aprender isso aos poucos. Por enquanto,
é só não estranhar se isso acontecer.
<158>
3. A letra A também tem o som de "ã".
4. A letra C tem o som de "çê" somente quando vier antes das
letras I e E. Nos demais casos (diante de A, O, U, R, L ou de
qualquer outra consoante), terá o som de "kê".
Quando se vai escrever:
1. Em primeiro lugar, é preciso descobrir a palavra, isolando-a
da frase.
2. Depois, é preciso saber a ordem das sílabas na palavra.
3. É preciso descobrir as vogais e consoantes que formam as
sílabas e em que ordem.
4. Para cada segmento (vogal/consoante), é necessário
escrever uma letra, partindo dos conhecimentos adquiridos, no
caso da leitura.
5. Ficar atento aos problemas causados pela variação
lingüística: quem é falante do dialeto padrão tem um tipo de
dificuldade e quem é falante de outros dialetos tem outro tipo de
dificuldade.
6. Checar o que se escreveu com a forma gráfica das palavras de
acordo com o estabelecido pela ortografia, ou seja, aprender a
ter dúvidas ortográficas inteligentes.
7. Resolver as dúvidas ortográficas, perguntando a quem sabe
ou olhando no dicionário.
Com esse conjunto de informações específicas sobre as
relações entre letras e sons, mais o estudo de uma meia dúzia de
outras letras e noções básicas sobre a escrita, vistas
anteriormente, o professor terá um aluno que já sabe bastante e
que até pode se arriscar a escrever algumas palavras e pequenas
frases. Este é o segredo da alfabetização. Um trabalho como esse
não leva mais de dois meses e, após esse tempo, o professor
constata que seus alunos já sabem ler e escrever, certamente
com muita dificuldade, mas já sabem o que devem fazer para
progredir, porque o segredo já foi aprendido. A perfeição virá
com o tempo e com muito trabalho tanto por parte do professor
como do aluno.
Existe uma grande diferença na prática de ensino que
distingue a competência do professor do conteúdo da matéria
que ele ensina. Todos esses conhecimentos detalhados e
explícitos a respeito da fala, escrita e leitura fazem parte da
competência técnica do professor. Será daí que ele irá tirar os
conteúdos daquelas
<159>
matérias que ensina, O que ele vai tirar, como vai apresentar e
quando ensinar são coisas que ele deve julgar e resolver,
levando em conta as circunstâncias. É por isso que se disse que,
quando o professor é de fato competente, ele sabe o que
ensinar, como ensinar e quando ensinar. Se ele não tem essa
competência técnica, a única saída é usar um método
preestabelecido como o bá-bé-bi-bó-bu, ou um livro guia como a
cartilha, levando para sua prática, juntamente com os problemas
que esses métodos têm, sua incompetência de modo velado ou
aberto.
APRENDENDO A ESTUDAR
O esforço dispendido na análise das letras do alfabeto é um
bom exercício de reflexão sobre o funcionamento do nosso
sistema de escrita com relação ao seu aspecto alfabético,
ortográfico e sobre as características fonéticas mais importantes
que essas letras representam. Somente de posse desses
elementos uma pessoa pode decifrar algo escrito e ler um texto.
Todos nós, como usuários familiarizados com o sistema de
escrita, sabemos como proceder para decifrar a escrita, mas
comumente lemos e escrevemos sem explicitar, a cada instante,
as regras que permitem que façamos isso. Agimos
automaticamente, guiando-nos, como convém, pelo fluir do
texto, acompanhando as idéias que queremos expressar ou que
vamos descobrindo à medida que a leitura prossegue. Ou seja,
acontece com as atividades de leitura e de escrita algo
semelhante ao que acontece quando falamos: precisamos de
toda a gramática, de todo o vocabulário disponível, de todos os
mecanismos articulatórios de produção de fala, mas não ficamos
pensando nessas coisas. Quando falamos, simplesmente usamos
esses conhecimentos interiorizados para guiar a expressão
lingüística do pensamento.
Assim como um lingüista precisa saber explicitar as regras da
linguagem para poder entendê-la, analisá-la e formar a ciência
da linguagem, assim também o professor de alfabetização
precisa saber explicitar todos os conhecimentos necessários
para que alguém possa ler e escrever e se alfabetizar. O grande
problema dos nossos professores, acostumados com a cartilha,
está
< CAGLÍAR1, 1996h.
<160>
em confiarem demais nos métodos e em seus procedimentos.
Desse modo, acabaram deixando de lado a própria reflexão
sobre a matéria que lecionam. É fundamental e imprescindível
que o professor alfabetizador saiba analisar qualquer fato que
aconteça no processo de aprendizagem da leitura ou da escrita e
saiba interpretar o valor correto dos acertos e erros. Assim,
saberá também conduzir com tranqüilidade e competência o
processo de ensino (que depende do professor) e o processo de
aprendizagem (que depende do aluno, mas que necessita do
professor como mediador e guia).
O esforço de pensar e explicitar as regras necessárias para
alguém ler em nosso sistema de escrita é um exercício que não
se esgota no estudo das letras feito neste capítulo e no
Apêndice. Uma tarefa como essa tem como objetivo apenas
ensinar o professor a refletir sobre essa matéria e a desenvolver
a sua argumentação diante dos fatos observados, chegando a
regrinhas que possam orientar o aluno. Se o professor
desenvolver esse hábito, com tudo aquilo que encontra pela
frente no seu trabalho (e nos seus estudos), após pouco tempo
terá uma poderosa ferramenta de trabalho:
sua competência técnica. Quanto mais se imbuir disso, menos
precisará de conselhos, recomendações, subsídios, métodos e
livros didáticos do tipo cartilhas ou similares. Ele começará seu
trabalho e aconteça o que acontecer em termos de leitura e de
escrita, será um bom motivo para discutir com seus alunos, levá-
los a descobertas, motivá-los a tentar produzir leitura e escrita,
enfim, a se alfabetizarem, O tempo, o programa predeterminado,
o tipo de aluno (a escola, o diretor, a coordenadora
pedagógica...), tudo isso torna-se irrelevante: o que conta é seu
trabalho. Com a competência técnica de que dispõe, o professor
irá pouco a pouco realizando um trabalho sério, cujos frutos
estarão no fato de ele ensinar a todos os alunos a ler e a
escrever.
Esse esforço de reflexão do professor pode aprofundar-se e
expandir-se e, quanto mais longe for, melhores condições trará a
tarefa de educar e alfabetizar. Quando o professor incentiva os
alunos a analisar fatos, a refletir, a tirar conclusões, a formular
regras, a melhorar as regras já existentes, tornando-as mais
detalhadas e abrangentes, não estará ensinando aos seus alunos
apenas o conteúdo da matéria. Mais do que isso e
principalmente, estará ensinando-lhes os bons hábitos de
<161>
em confiarem demais nos métodos e em seus procedimentos.
Desse modo, acabaram deixando de lado a própria reflexão
sobre a matéría que lecionam. É fundamental e imprescindível
que o professor alfabetizador saiba analisar qualquer fato que
aconteça no processo de aprendizagem da leitura ou da escrita e
saiba interpretar o valor correto dos acertos e erros. Assim,
saberá também conduzir com tranqüilidade e competência o
processo de ensino (que depende do professor) e o processo de
aprendizagem (que depende do aluno, mas que necessita do
professor como mediador e guia).
O esforço de pensar e explicitar as regras necessárias para
alguém ler em nosso sistema de escrita é um exercício que não
se esgota no estudo das letras feito neste capítulo e no
Apêndice. Uma tarefa como essa tem como objetivo apenas
ensinar o professor a refletir sobre essa matéria e a desenvolver
a sua argumentação diante dos fatos observados, chegando a
regrinhas que possam orientar o aluno. Se o professor
desenvolver esse hábito, com tudo aquilo que encontra pela
frente no seu trabalho (e nos seus estudos), após pouco tempo
terá uma poderosa ferramenta de trabalho:
sua competência técnica. Quanto mais se imbuir disso, menos
precisará de conselhos, recomendações, subsídios, métodos e
livros didáticos do tipo cartilhas ou similares. Ele começará seu
trabalho e aconteça o que acontecer em termos de leitura e de
escrita, será um bom motivo para discutir com seus alunos, levá-
los a descobertas, motivá-los a tentar produzir leitura e escrita,
enfim, a se alfabetizarem. O tempo, o programa predeterminado,
o tipo de aluno (a escola, o diretor, a coordenadora
pedagógica...), tudo isso torna-se irrelevante: o que conta é seu
trabalho. Com a competência técnica de que dispõe, o professor
irá pouco a pouco realizando um trabalho sério, cujos frutos
estarão no fato de ele ensinar a todos os alunos a ler e a
escrever.
Esse esforço de reflexão do professor pode aprofundar-se e
expandir-se e, quanto mais longe for, melhores condições trará à
tarefa de educar e alfabetizar. Quando o professor incentiva os
alunos a analisar fatos, a refletir, a tirar conclusões, a formular
regras, a melhorar as regras já existentes, tornando-as mais
detalhadas e abrangentes, não estará ensinando aos seus alunos
apenas o conteúdo da matéria. Mais do que isso e
principalmente, estará ensinando-lhes os bons hábitos de
<161>
estudar, de investigar. Os resultados deverão ser considerados
muito importantes (e imprescindíveis). Para o educador, durante
a formação de seus alunos, mais importante do que os
resultados é a formação de bons hábitos de estudo. A cartilha
tira a iniciativa do aluno de pensar, refletir, pesquisar e chegar a
conclusões. Se o professor, abandonando o método do bá-bé-bi-
bó-bu, conduzir um processo de ensino e de aprendizagem,
refletindo junto com seus alunos, depois de certo tempo, seu
trabalho de mediador torna-se muito reduzido, uma vez que seus
alunos saberão como estudar o que não sabem. Muitas vezes, os
professores preocupam- se tanto com notas, com resultados
positivos em testes e provas, que acabam se esquecendo de que
é muito mais importante saber como estudar do que dominar o
conteúdo de uma determinada matéria.
Infelizmente, alguns professores jamais pensam nisso.
Passam anos ditando pontos, lendo livros didáticos, resolvendo
exercícios, aplicando provas, passando testes, atribuindo notas,
e a educação fica reduzida a esse ritual de reproduzir um
modelo, fazer segundo o que foi visto, etc. Tudo gira em torno do
ensino do professor, e o aluno não tem nenhum espaço para
desenvolver seu processo de aprendizagem. Ele não aprende de
fato, apenas repete o modelo segundo as expectativas do
professor. O problema de nossas escolas não está somente na
alfabetização, no ensino da leitura e da escrita; talvez o
problema mais grave seja não ensinar a estudar.
<162>
8
Sugestões de atividades
na alfabetização
O TRABALHO COM A LEITURA
Como se tem insistido tanto até aqui, o segredo da
alfabetização é a leitura, é ensinar ao aluno como
decifrar a escrita. Outras interpretações sobre a leitura
só fazem sentido depois que o leitor tiver acesso à decifração.
Por outro lado, outras práticas escolares não se comparam em
importância à decifração da escrita. Há muitas maneiras de se
chegar ao conhecimento que
permita ler um texto, algumas muito confusas e demoradas,
como a prática que proporciona o aluno a
descobrir por si — tendo o professor como simples
espectador —; outras estão mais voltadas para um trabalho
conjunto de ensino e aprendizagem, envolvendo
professor e aluno numa mesma tarefa.
Além de uma atitude sadia diante do processo de
alfabetização, há muitas coisas práticas que ajudam
pouco ou mesmo atrapalham o trabalho em sala de
aula. A seguir, serão feitos alguns comentários a respeito
disso.
Primeiras leituras
Em vez de começar o trabalho com letras e palavras
escritas ortograficamente, pode-se mostrar aos alunos
que eles conseguem ler outros sistemas de escrita, por
exemplo, os pictogramas usados de modo geral na sociedade
moderna, como as indicações de toalete masculino e feminino,
os logotipos de marcas famosas, etiquetas, símbolos, etc.,
explicando que a essas formas
gráficas se pode associar uma palavra, e que isso é ler,
no sentido mais técnico do termo. Aqui há um mundo
inteiro a ser explorado.
O professor pode mostrar para os alunos que se ele
fizer um tracinho, pode representar o número 1; se for
acrescentando outros tracinhos, pode representar os
demais números, estabelecendo uma contagem. Isso é
urna estratégia aritmética: para saber que número representa
um conjunto de tracinhos, basta contar. Esse
é um processo de decifração de um sistema de escrita.
Depois, com as letras faz-se a mesma coisa, só que, em
vez de contar, será preciso descobrir que som a letra
tem e ir somando esses sons até descobrir a palavra,
como se descobre um número. Um número é a soma
de unidades aritméticas e uma palavra é a soma de unidades
sonoras na fala e de letras na escrita.
<164>
MASSINJ-cAGLIAR1, 1993c. >
Pode-se mostrar a diferença entre desenho e escrita. Uma
figura é um desenho quando é usada para representar um objeto
do mundo. E uma escrita quando é usada para representar uma
palavra da linguagem oral. O professor pode fazer o desenho de
uma casa (ou mostrar uma foto), fazer o desenho de um
caminho, ou de alguém andando, e fazer o desenho de uma
pessoa (ou uma foto de si próprio). Cada figura ou foto está
representando coisas do mundo, não constituindo, portanto,
linguagem escrita. Porém, juntando a foto do professor com o
desenho de um caminho ou de alguém andando, mais o desenho
da casa, nessa seqüência, posso representar uma frase como:
"Vou para casa". Nesse momento, as figuras deixam de ser
apenas desenhos e passam a representar palavras. As figuras
transformam-se em escrita. Ler o que está escrito significa saber
que palavras as figuras representam. Escrevendo desse modo,
pode-se ter leituras variadas: "Fui para casa", "Irei para casa",
"Ele vai para casa", etc.
Essa demonstração deixa claro para os alunos que eles podem
usar figuras para representar as palavras que querem escrever.
Podem testar a leitura, isto é, o processo de decifração e de
interpretação da escrita, pedindo aos colegas que leiam o que
escreveram. O professor pode explorar esse tipo de atividade,
escrevendo palavras, frases, pequenas mensagens e até
pequenas histórias.
Recortando material de jornais e revistas, o professor pode
mostrar aos alunos como esse tipo de escrita (pictográfica, com
desenhos) é usada na vida real. Pode exemplificar como, além de
desenhos que representam figuras de objetos, esse tipo de
escrita inventa desenhos para representar palavras, como os
logotipos, as grifes, os escudos, as bandeiras, etc.
Inventando um código
Os alunos podem inventar seus sistemas de escrita servindo-
se de pictogramas. Podem tentar escrever histórias e fazer
bilhetes. O professor deve acompanhar o trabalho dos alunos,
mostrando-lhes como o sistema que estão inventando funciona:
coisas iguais são escritas da mesma maneira, coisas diferentes
precisam de formas diferentes ou de marcas diferenciadoras,
tendo o cuidado de permitir que as outras pessoas possam
interpretar o código e ler. Para isso, ou se usa uma figura
evidente num pictograma ou se ensina aos possíveis leitores
como interpretar e ler os caracteres.
<165>
Os alunos podem inventar desenhos convencionados por eles
para representar palavras. Podem, por exemplo, recortar figuras
de objetos, animais, pessoas, e colocá-las em colunas, fazendo
ao lado os símbolos ou desenhos que representarão as palavras
que essas fotos mostram. Depois, podem tentar escrever usando
o sistema de escrita que inventaram. Um aluno vai mostrar e
explicar aos outros o que fez, enfim, vai ensinar os demais a
lerem seu sistema de escrita. O professor irá discutir as
vantagens e as desvantagens da tarefa. Irá pedir para que
escrevam sem a chave da decifração, ou seja, usando apenas os
símbolos inventados, sem mostrar as figuras a que eles se
referem. Em seguida, o aluno pedirá para os colegas descobrirem
o que ele escreveu. Como fica muito difícil guardar na
memória todos os símbolos e seus significados inventados na
sala de aula, essa tarefa será resolvida apenas em parte. Exceto
quem inventou o símbolo, os outros terão muita dificuldade para
ler o que foi escrito.
Com isso, o professor mostra aos alunos que seria bom todos
usarem apenas um sistema de escrita porque, uma vez
estabelecido, todos se comunicariam apenas através dele. Isso
seria muito mais útil e fácil de ser usado na sociedade, onde
vivem milhões de pessoas. Essa imitação do que aconteceu
historicamente, há muito tempo, ajuda os alunos a
desenvolverem conhecimentos a respeito do funcionamento da
natureza da escrita. Além disso, motiva-os a progredir, pois eles
começam a ver que, de certo modo, não só já entraram no
mundo da escrita e da leitura, como também já conseguiram ler
e escrever.
É sempre possível escrever coisas enigmáticas ou códigos
secretos. A criptografia é algo que fascina as crianças: por que
não deixá-las usar isso, neste momento inicial de descoberta da
escrita? Podem fazer dicionários em que apareçam dois sistemas
de escrita: um pictográfico de fácil reconhecimento, e outro
constituído de caracteres arbitrários, como os de um código
secreto. Esses jogos de escrita e leitura servem para mostrar à
criança que escrever e ler é algo fácil ou difícil, dependendo da
forma como o sistema se apresenta.
As letras já foram um sistema de escrita muito mais fácil do
que são hoje. E isso pode servir de motivo para se introduzir um
pouco da história da escrita e das letras do alfabeto, mostrando
seu caráter pictográfico antigo e a época em que havia pouca
variação na forma gráfica das letras.
<166>
A palavra como unidade de escrita
A história da escrita servirá também para mostrar aos alunos
que ela gira em torno de palavras, e não apenas de letras. Isso
irá facilitar, futuramente, a tarefa que os alunos terão pela
frente de segmentar a fala para escrever palavras, bem como a
de lidar com letras isoladas em sílabas e em palavras.
Unidades de fala menores do que a palavra podem ser
tratadas, nesse momento, através do uso de rébus, como se
explica com o exemplo a seguir. Pode-se escrever a palavra
"irmão" desenhando um menino ao lado de outro, o que
consistiria num pictograma e não num rébus para a palavra
"irmão". Por outro lado, pode-se também escrever essa mesma
palavra, fazendo o desenho das pernas de uma pessoa andando
("ir") ao lado do desenho de uma mão. Os dois desenhos
representam agora uma única palavra "irmão". Esse modo de
escrever tem o nome técnico de rébus. Através dessa estratégia
de escrita, é fácil mostrar aos alunos que se pode escrever
baseando-se no significado das palavras ou nos sons que elas
têm. Temos, assim, um sistema ideográfico e um sistema
fonográfico.
Nota
IR MÃO
O rébus é um jogo mental muito antigo e comum, consiste em
exprimir palavras ou frases através de desenhos ou de sinais
cuja leitura e interpretação oferecem uma analogia com o que se
quer fazer entender Exemplos: 20V — "vim te ver"; D+ =
"demais"
Letras e sons
Para chegar aos segmentos fônicos que correspondem às
letras, a questão é muito mais complexa. Vão ser necessárias
três etapas: primeiro, será preciso reinventar as letras, o que se
pode fazer a partir dos próprios pictogramas que deram origem
às nossas letras; segundo, aplicar o princípio acrofônico para
atribuir a cada letra um som especial, particular e distintivo no
sistema; terceiro, aprender a analisar os sons que a palavra que
se quer escrever tem na fala, achar as letras correspondentes,
na ordem correspondente e, então, escrever a palavra, segmento
por segmento, com as letras convencionadas. Esse pode ser um
longo caminho, mas basta percorrê-lo uma vez, passo a passo.
Isso não significa que com essa atividade os alunos já
aprenderam a escrever facilmente palavras com letras. O que se
pretende nesse momento é simplesmente mostrar ao aluno como
diferentes sistemas de escrita funcionam e o que os espera pela
frente.
Para o professor mostrar aos alunos como observar
os sons da fala, há duas maneiras principais, ou seja,
duas estratégias de observação. A primeira consiste em
<167>
silabar uma palavra, prolongando o som das vogais (mais
raramente de algumas consoantes, como as fricativas). Por
exemplo, a palavra BATATA: "baaaa-taaaataaaa". Note que
existe uma parte diferente ("ba') e duas iguais ("ta-ta"). Note
ainda que o som de "a" é o mais longo nas três sílabas. Desse
modo, pode-se perceber a recorrência prolongada de um mesmo
som, a vogal "a". Outro exemplo: FESTA: "féééés-taaaa" (ou
"fééééchtaaaa"). Agora, destacamos um som na primeira sílaba,
que é o "ééé", e outro diferente na segunda, "aaa". Por outro
lado, na segunda sílaba da palavra FES-TA, tem-se o mesmo som
observado na palavra BA-TA-TA.
Seguindo esse procedimento de análise, acompanhado dos
devidos comentários, o professor pode mostrar aos alunos como
observar os sons da fala de uma maneira muito interessante
para a alfabetização.
A outra estratégia para analisar os sons da fala consiste em
silabar as palavras, repetindo as articulações das consoantes nos
inícios das sílabas. Por exemplo: BATATA: "babababa-tatatata-
tatatata"; ou FESTA:
"fésfésfésfés-tatatata"; ou CADERNO: kakakakaderderderder-
nunununu". O professor pode fazer vários exercícios desse tipo,
analisando com os alunos o que há de igual e o que há de
diferente.
Na primeira abordagem, o professor ajuda os alunos a
destacar as vogais das sílabas e, na segunda, a consoante inicial
das sílabas. Há outras maneiras de mostrar como analisar a fala.
Uma delas, de uso muito comum, é fazer levantamento das
rimas. Toma-se uma palavra e procuram-se outras que terminem
nos mesmos sons (em geral, as rimas são dadas não por sílabas
completas, mas somente pelas vogais das sílabas finais das
palavras). Por exemplo: encontrar palavras que rimem com
AVIÃO:
CORAÇÃO, IRMÃO, DEDÃO, ACHARÃO, etc. Outra maneira é
identificar palavras que comecem com os mesmos sons (aqui é
preciso levar em conta a sílaba como um todo). Por exemplo,
palavras que comecem com o som de "çi": CIDADE, SINO,
CINEMA, SITIO, CIGARRO, SINAL, etc. Outro exemplo são
palavras que comecem com o som de "dis": DESCOBERTA,
DESCASCAR, DESCARREGAR, DESMONTAR, DISTRIBUIR,
DISTINTO, DISPUTAR, etc. O professor irá fazer todos esses
exercícios sem escrever nenhuma palavra: todos acompanharão
a análise somente através da fala e da audição.
Além disso, o professor pode inventar mil situações
para explicar fatos importantes da escrita e da leitura.
Por exemplo, pode começar escrevendo a palavra "camelo",
<168>
recortando uma foto ou um desenho de camelo e mostrando a
associação entre a palavra "camelo" e sua representação.
Pode decompor a palavra através da análise dos sons e
atribuir a cada segmento uma forma de representação gráfica.
Essa representação pode ser feita com desenhos de objetos
cujos nomes permitam, através do princípio da acrofonia,
associar o desenho à fala. Nesse segundo modo de escrita, um
desenho não representa mais uma palavra inteira, mas apenas
um pedaço, de preferência apenas um som, o som inicial do
nome do desenho. Procedendo assim para cada som da palavra
"camelo", acaba-se tendo um tipo de escrita com letras
figurativas. Por exemplo, como um dos resultados possíveis, a
palavra "camelo" poderia ser escrita com "letras" na forma de
desenhos (pictogramas) representando, por ordem, um cabide
("e"), um avião ("a"), o mar ("m"), um elefante ("e"), uma lata
("L") e um ovo ("o"). Ensinar o truque para ler essa escrita é
ensinar o aluno a ler letras. Se há algo de bom e eficiente nas
cartilhas é a aplicação do princípio acrofônico através do bá-bé-
bi-bó-bu. Os alunos aprendiam a ler com a cartilha por essa
razão.
Se um aluno preferir usar um cacho de uva, representando o
som "u" no final da palavra "camelo", está perfeito, e o
professor pode mostrar aos alunos que podemos falar "camelu"
ou "camelo", razão pela qual ele optou pelo som de "o", e o
aluno, pelo som de "u". A solução encontrada pelo aluno pode
criar uma boa oportunidade para o professor falar um pouco
sobre ortografia e variação lingüística. Como se vê, um assunto
puxa outro. O professor sabe de onde vai partir quando começa
seu trabalho de ensino, mas quase nunca sabe de antemão onde
vai parar. E é assim que deve ser.
Quando os alunos inventaram um sistema de escrita,
basearam-se no significado das palavras: as fotos e os desenhos
correspondiam às idéias que as palavras
<169>
representavam. Os sons vinham depois de identificados os
significados e produziam palavras da língua portuguesa porque
os alunos estavam representando, na escrita, a língua que falam.
Assim, vendo a foto de uma casa, atribuímos a ela a palavra que
tem esse significado e que se pronuncia, em português, com os
sons "kaza". A escrita revelou uma idéia, através da atribuição
de uma palavra aos sinais gráficos. Ao fazermos isso,
descobrimos também os sons dessa palavra que representa a
idéia que falamos. Portanto, as palavras sempre se compõem de
idéias e sons. Podemos dividir o significado de uma palavra em
partes, gerando novas idéias (significados), que fazem parte da
idéia mais geral. Por exemplo, podemos dividir a idéia de "casa"
nos componentes que constituem uma casa, como telhado,
paredes, chão, janela, porta, etc. Ao fazer isso, descobrimos que
essas idéias formam novas palavras. As idéias não conseguem
sobreviver sem os sons das palavras. E sons sem significado não
formam palavras, são apenas ruídos.
Por outro lado, quando segmentamos os sons da palavra
"casa", temos "ka-za". No todo, existe um significado. Porém,
considerando cada pedaço (sílaba) em separado, perde-se o
significado original, podendo ou não resultar outro significado.
Assim, "ka" significa, isoladamente, "aqui", "cá estou eu"; mas
"za" não significa nada (talvez um apelido...).
Mexer com o significado para saber o que faz parte de uma
idéia ou não é muito complicado e, na prática, é uma tarefa
impossível de ser feita até o fim... Sempre se descobre algo
novo. Porém, com os sons das palavras tudo é bem mais simples
e fácil.
O alfabeto
Aos poucos, passa-se da escrita ideográfica para a
fonográfica, do aspecto figurativo dos caracteres para o
convencional, dos grifos para as letras e, assim, chega-se ao
alfabeto das letras de fôrma maiúsculas. Essas letras serão
usadas por um bom tempo e com elas os alunos aprenderão a
decifrar nossa escrita tradicional e a escrever seus primeiros
textos.
Quando se chega às letras, o melhor é falar logo do alfabeto e
apresentar todas as letras de uma vez. Para isso, seria bom que
houvesse na sala uma faixa com o alfabeto das letras de fôrma
maiúsculas, que pudesse ficar bem visível, talvez acima da lousa
(ou quadro-negro), para que os alunos tenham esse modelo
constantemente
<170>
diante dos olhos. Esse alfabeto deve conter todas as letras do
dicionário, seguindo a ordem alfabética, ou seja:
A B C Ç D E F G H IJ K L M N O P Q R S T U V W X Y Z.
Apresentado o alfabeto, ensina-se o nome das letras, não só
para que os alunos o aprendam, mas também para terem um
referencial dos sons que as letras têm. É claro que a questão na
verdade é bem mais complicada, mas nesse momento basta o
professor alertar para a dificuldade futura, esclarecendo que um
dos sons possíveis que as letras têm pode ser encontrado no
próprio nome das letras. Portanto, sabendo o nome das letras,
pode-se decifrar a escrita de uma palavra, sem grandes
dificuldades. O professor pode, por exemplo, apresentar uma
palavra na forma escrita, sem dizer do que se trata, e pedir aos
alunos para decifrá-la. Descobre-se que a tentativa não deu
certo, quando não se chega a nenhuma palavra (conhecida).
Então, pode-se deixar de lado algumas letras e tentar recuperar
a palavra (descobrir seu significado). Desconfiar e tentar são
tarefas comuns nesse momento. É sempre muito importante
estar atento para o fato de o resultado da decifração ter de
revelar uma palavra conhecida, cujo significado é evidente, e não
apenas sons. Na vida às vezes nos deparamos com palavras
desconhecidas, mas isso não acontece na alfabetização ou, se
acontecer, será algo extremamente raro. Portanto, se o
resultado final é uma palavra desconhecida, o aluno deve
desconfiar que a decifração apresentou alguma interpretação
errada dos valores fonéticos de uma ou mais letras. O que vale
sempre é o resultado final, ou seja, a palavra, que o aluno
deverá reconhecer facilmente, como falante nativo.
Para ilustrar o que foi dito, suponhamos que o professor
escreveu CASA e pediu para os alunos identificarem primeiro os
nomes das letras: c, a, esse, a. Com os nomes das letras, os
alunos tentam juntar os sons relevantes e descobrir de que
palavra se trata. Um aluno pode dizer que está escrito "saça".
Então o professor o faz ver que não existe a palavra SAÇA (não
se conhece um significado para essa seqüência de sons) e volta-
se atrás e se procura um som diferente e possível para as letras.
A letra C pode ter o som de "kê" e a letra S pode ter o som de
"zê". O resultado, agora, é "kaza". Está descoberta uma palavra
conhecida.
Com essa técnica, o professor pode escolher palavras, fazer
com os alunos o reconhecimento das letras escritas, identificar
cada letra com seu respectivo nome,
<171>
dizer que palavra está escrita, analisar os sons e fazer a
correspondência das letras com os sons, para verificar naquela
palavra que sons as letras têm. Isso não só ensina os alunos a
identificarem as letras, como também ensina-os a ler palavras
simples. Não é tudo, mas já é um grande avanço.
Primeiros problemas com a decifração
Com o progresso obtido, logo começam a aparecer problemas
que deverão ser tratados cuidadosamente. Alguns deles exigem
explicações um tanto complicadas. E sempre preferível dar uma
boa explicação, mesmo que complicada, a ter de camuflar o
problema, disfarçar, usar de subterfúgios com explicações
metafóricas. Se os alunos não entenderem direito (ou nada), não
faz mal. Algumas explicações precisam ser dadas por causa das
circunstâncias, mas como os problemas voltarão a aparecer em
outras ocasiões, os alunos terão outras chances de aprender.
Quando o professor prefere uma explicação aparentemente fácil,
metafórica, incompleta e meio deturpada, corre o risco de ter de
se desculpar mais tarde. Alguns alunos se sentirão enganados
quando descobrirem que a verdade tem outra cara.
Ao iniciar a decifração da escrita, os alunos irão encontrar
algumas dificuldades causadas pela falta de informação a
respeito de alguns aspectos da linguagem oral e escrita. O
professor não pode ensinar tudo de uma vez. Portanto, é preciso
reconhecer a falta de informações preliminares e procurar
resolver isso à medida que for conveniente e importante.
Somente depois que os alunos tiverem ouvido explicações a
respeito de muitos fatos básicos da linguagem oral e escrita,
poderão entender verdadeiramente os mecanismos da
decifração. Mas começar tentando decifrar a escrita é a melhor
prática para discutir e aprender.
Entre esses problemas estão os seguintes: a variação
lingüística; a aquisição da linguagem oral e da escrita; as noções
básicas de fonética e fonologia; o modo como a fala, a escrita e a
leitura funcionam e quais os seus usos; o que é decifrar uma
escrita e como fazer; o que é a ortografia e como resolver
dúvidas ortográficas; como é um texto na linguagem oral e como
é um texto na linguagem escrita; como analisar e interpretar os
erros; como avaliar a importância de atividades pedagógicas
relacionadas com os conteúdos programáticos e outros menos
importantes.
<172>
O professor não poderá tratar cada um desses assuntos de
maneira isolada e completa, numa ordem predeterminada. As
explicações devem acontecer quando for o momento e de
maneira dosada às necessidades. Em geral, é preciso abordar
vários aspectos de muitos tópicos numa única ocasião. Somente
em séries mais adiantadas, quando os alunos já tiverem certas
noções básicas, será o momento oportuno de fazer um estudo
mais detalhado e organizado desses pontos.
Pares mínimos
Voltando ao trabalho específico de decifração da escrita e de
técnicas para aprender a ler, há um tipo de exercício, muito
usado pelos lingüistas, que ajuda a explicar aos alunos como
detectar os segmentos fonéticos da fala, para relacioná-los
depois às letras do alfabeto. São os pares mínimos. Obtém-se um
par mínimo quando se juntam duas palavras de significados
diferentes, cuja forma fonética varia apenas com relação a um
som. Por exemplo: "bato/mato" (a única diferença fonética é B,
que se opõe a M no início das palavras do par), "casa/caça",
"mar/mas", etc.
Do ponto de vista da fala, "concerto" e "conserto" são
palavras ambíguas (como "manga", por exemplo, que significa
uma fruta e uma parte de roupa), mas do ponto de vista da
escrita, formariam uma espécie de "par mínimo", porque
representam palavras de significados diferentes. O professor
pode explorar essas duas possibilidades: pares mínimos
considerando a fala ou a escrita, relacionados entre si ou não.
Com o par mínimo falado, destacam-se os sons que distinguem
uma palavra de outra; com o par mínimo escrito, destacam- se
as letras diferentes que representam um mesmo som. Perceber
diferenças em meio a igualdades é um requisito muito
importante em todo trabalho lingüístico.
Feito isso, basta mostrar quais letras serão usadas para
representar os sons distintivos, explicando que no próprio nome
da letra, já se tem uma dica de que som ela representa, ou de
que letra terá de ser usada para escrever, quando já se sabe o
som, observando a fala.
Rimas
Outra atividade muito útil para ensinar o reconhecimento de
segmentos fonéticos de palavras é o uso de
rimas: palavras terminadas em sons semelhantes, como,
<173>
por exemplo, em "ão": "avião", "coração", "habitação", "irmão",
etc. O professor pode escrever na lousa as palavras rimadas,
ditadas pelos alunos, fazendo colunas, de tal modo que se
perceba na escrita que todas essas palavras terminam com um
mesmo conjunto de letras e sons (no caso, "ão").
Fazer exercícios que levem o aluno a aprender a relacionar as
letras com os sons das palavras é fundamental.
Categorização gráfica das letras
Outro aspecto importante dos sistemas de escrita é a
categorização das letras do alfabeto. Como usamos muitos
alfabetos, é preciso saber que uma mesma letra pode ser escrita
com formas gráficas diferentes.
Depois que os alunos já avançaram bem no trabalho de
decifração, usando apenas as letras de fôrma maiúsculas, o
professor pode apresentar escritas de palavras com alfabetos
diferentes, em colunas, para que os alunos percebam que, para
cada lugar de escrita na palavra, há uma letra, e que as letras,
nas colunas verticais, pertencem a alfabetos diferentes (colunas
horizontais), e têm, portanto, o mesmo valor alfabético.
Primeiras leituras de textos
Depois que os alunos conseguirem decifrar por si palavras
isoladas, o professor os levará a ler pequenos textos. Aqui, há
alguns pontos importantes a serem considerados. Em primeiro
lugar, é preciso que o professor convença-se de que é mais
importante que o aluno leia e não que exiba para ele ou para a
classe que já sabe ler. Assim, o professor estimulará seus alunos
a lerem em particular, para si, até que adquiram habilidade e
velocidade de leitura para ler em voz alta para a classe, sem
grandes dificuldades
Ler textos de uma ou duas frases, no início, exige um grande
esforço de decifração (são muitas letras...). Porém, esses textos
oferecem a vantagem de poderem ser facilmente decorados.
Portanto, o professor deixará que cada aluno descubra o que
está escrito. Feito isso, poderá, então, dizer o que foi que leu.
Aqui, o fato de reproduzir literal e exatamente o que está escrito
não é importante. O que conta é o fato de o aluno descobrir o
que está escrito porque, para isso, ele precisará ter decifrado
pelo menos as palavras mais importantes para a compreensão do
texto. Uma leitura mais rigorosa, mais fiel ao texto, será cobrada
mais adiante.
< MASSINI-CAGLIARI, 1998a.
<174>
Com o tempo, vai-se passando de textos curtos para textos
cada vez mais longos, deixando sempre os alunos lerem
individualmente. Se algum aluno quiser ler para os colegas, será
preciso que prepare muito bem sua leitura com antecedência. Se
o professor perceber que o aluno está lendo mal (gaguejando,
silabando, sem ritmo, sem a correta entoação, etc.), deverá
solicitar do aluno que prepare melhor sua leitura, mostrando
como ela deve ser feita.
Interpretar ou discutir o que leu
Convém relembrar que é desnecessário, e mesmo ridículo,
querer fazer interpretação de texto nas primeiras séries. Análise
literária ou análise de discurso de textos deverão ser feitas em
séries avançadas. Portanto, o professor não deverá ficar
preocupado se seus alunos estão entendendo ou não o que estão
lendo, pois é claro que estão entendendo, uma vez que os textos
são, em geral, histórias de fácil compreensão. Trabalhar as
sutilezas dos textos é de menor importância na alfabetização.
Isso não quer dizer que o professor não possa discutir certos
assuntos com seus alunos, servindo-se da leitura de textos.
Nesse tipo de atividade, o que vale é a discussão das idéias
pessoais, incluindo as expressas pelo autor do texto. O que não
faz sentido é querer discutir o texto como fato lingüístico ou
literário. Discussões podem ser feitas mesmo sem o pretexto de
um texto. Fazer discussões em sala de aula é uma atividade de
grande importância. Interpretar textos com perguntas e
respostas é uma idiotice.
O que ler
Os alunos precisam ser incentivados a ler todo tipo de
material, quer com relação à forma gráfica, quer com relação aos
variados tipos de textos. Devem ler coisas impressas e coisas
manuscritas, devem ler propagandas ou outro material
semelhante. O professor precisa mostrar aos alunos material
escrito com os mais variados tipos de letras. Usos artísticos da
escrita merecem um destaque. Usos especiais em propagandas
também são interessantes, como palavras decoradas com
desenhos que ilustram seu significado. Por exemplo, a palavra
"incêndio" escrita com letras pegando fogo.
É preciso ler histórias (muitas), notícias, reportagens que
falem de assuntos científicos, técnicos, curiosos, da vida de
pessoas famosas, etc. É preciso ler jornal,
<175>
revistas, receitas culinárias, instruções de uso de equipamento,
de montagem ou de conserto, enfim, ler de
tudo. E ler nunca é demais.
O TRABALHO COM A ESCRITA
Quando se falou da leitura, incluíram-se muitos fatos
relativos à escrita, porque um processo necessariamente
implica outro. Aos poucos a escrita vai tornando-se
familiar quando se estuda como se deve ler. O
próprio sistema de escrita revela-se com a descoberta
da decifração. Em outras palavras, as noções básicas
de um sistema de escrita, do ponto de vista gráfico e
funcional, são aprendidas no processo de aprendizagem
da leitura. Por essa razão, insistimos no fato de
que o segredo da alfabetização está em saber ler, ou
seja, em decifrar o sistema de escrita que temos.
As considerações que seguem estão voltadas para os
conhecimentos dos sistemas de escrita que os alunos
adquirem ao lidar com a leitura. Interessa mais a produção
de material escrito pelas crianças do que teorizar
a respeito desse fato. Tal qual foi feito em seções anteriores,
serão apresentadas sugestões numa ordem que
não precisa ser necessariamente aquela que vai ser
transmitida.
Primeiras descobertas sobre a escrita
No começo, os alunos podem colecionar letras, fazendo
álbuns de recortes: uma folha para cada letra.
Depois, dispõem-se as folhas em ordem alfabética e tem-
se um pequeno dicionário de letras.
Os alunos conseguem fazer leituras incidentais, isto
é, reconhecem que certas coisas estão escritas em certos
lugares. Por exemplo, sabem que numa garrafa de
Coca-Cola está escrito Coca-Cola com o design feito
de uma determinada maneira. E interessante que eles
colecionem rótulos de produtos para terem consigo
esses materiais que sabem ler. Podem, ainda, colecionar
pictogramas, sinais de trânsito, símbolos, grifes, logomarcas,
logotipos, etc. Esse material já impresso, que é recortado, pode
servir para os alunos montarem suas mensagens escritas,
bolarem suas propagandas ou fazerem cartazes. Essa já é uma
maneira de escrever sem
precisar usar o lápis.
<176>
Paralelamente ao estudo da leitura, os alunos irão produzir
textos escrevendo com os pictogramas que inventarem, podendo
chegar a escrever textos relativamente longos, como histórias e
cartas. Brincar de escrever, inventando sistemas de escrita, é
altamente instrutivo e auxilia muito na alfabetização. Explorar
caminhos novos é sempre um desafio, e as crianças gostam
muito de enfrentar essas aventuras educativas. Até para o
professor, o trabalho toma-se mais atraente e menos pesado.
Descobrindo que a escrita representa a fala
À medida que os alunos forem trabalhando, o professor irá
orientando-os a relacionar os símbolos com os textos (a pomba
da paz com o ramo de oliveira... lembrando o dilúvio...), sinais de
trânsito com frases (é proibido estacionar), pictogramas com
suas mensagens (é proibido fumar, frágil...), pictogramas que
representam palavras (banheiro masculino, natação...), formas
de rébus que indicam sílabas ou pedaços de palavras, cartas
enigmáticas, etc. É importante que esse caminho desemboque
sempre nas letras e na representação de sons da fala associados
às letras.
A exploração desse material, aliada ao processo de leitura,
permite que os alunos já realizem muitas atividades de escrita. O
professor deve ajudar os alunos a percorrerem esses caminhos
todos, mas deve, sempre que possível, andar um passo atrás e
não à frente dos alunos. E fundamental deixar que eles escrevam
o que acharem importante, mesmo não sabendo quase nada
sobre a escrita. Eles vão se sentindo cada vez mais confiantes no
processo de aprendizagem e no desempenho das tarefas
escolares. Assim, para a criança, escrever logo deixa de ser um
mistério e torna-se, sem que eles percebam, algo familiar e
banal.
Sistema ideográfico e fonográfico
Depois de muito fazer, o professor pode ensinar aos alunos
que os sistemas de escrita são basicamente dois:
ideográfico ou fonográfico. No primeiro caso, escreve-se a partir
do significado, procurando encontrar depois os sons que esses
significados têm. Quando fazemos um pictograma figurativo e
depois dizemos a palavra que aquela escrita representa, ou
quando escrevemos um número e sabemos que aquele caractere
representa uma certa quantidade, que se traduz numa palavra,
estamos diante de uma escrita ideográfica.
<177>
No segundo caso, o fonográfico, escreve-se a partir
dos sons que as palavras têm na linguagem oral. A relação
entre letras e sons pode ser estabelecida de várias
formas, através de rébus, sílabas, vogais e consoantes e
até de outras propriedades fonéticas (por exemplo, o til
indicativo da nasalidade — LÃ —, o acento indicativo
de tonicidade ou de mudança de qualidade vocálica —
AVÔ, AVÓ). É importante saber relacionar os elementos
da fala com os da escrita. Tratando-se da escrita alfabética,
a cada letra será associado um som, com exceção
da letra h, que depois deverá compor os sons da
palavra.
Existem estratégias diferentes para ler e para escrever,
usando-se o sistema fonográfico. Para escrever é preciso
relacionar cada som da fala a uma letra, seguir uma ordem de
escrita e verificar a ortografia. Para ler,
é necessário associar a cada letra um som, somar os
sons na ordem e descobrir que palavra está escrita. Se
não der certo, será preciso rever o processo e usar
outras alternativas, até que o significado apareça.
Contar a história da escrita
O professor deverá contar para os alunos a história
da escrita, privilegiando as letras e os números. Explorar
esse assunto ao máximo, como recurso para ensinar
fatos importantes a respeito da leitura e da escrita.
Contar a história do alfabeto, sua evolução, a história
dos estilos de letras, da caligrafia, dos livros. Os recursos
visuais aqui são úteis.
Outro tipo de material interessante é encontrado na
maneira como as línguas adaptaram o alfabeto latino
para escrever as mais diferentes línguas do mundo. As
vezes, uns poucos exemplos são suficientes para mostrar
coisas curiosas e altamente pertinentes para o processo
de alfabetização. Uma lista de palavras de línguas
diferentes pode esclarecer como uma letra, por exemplo,
A, tem sons diferentes.
Nota
Português Inglês Francês;
banho "bãnhu" table "teibl" (mesa) nouveau "nuvô" (novo)
caixa "kacha" cat "két" (gato) maitre "métr"
(professor)
rapaz "rrapaiç" battle "btl" (batalha) mâle "mal" (macho)
é símbolo da IPA — International Phonetical Association
(Associação Fonética Internacional,).
<178>
Traçar as letras com gabaritos
Quando os alunos já estiverem sabendo os nomes das letras e
os principais sons que elas têm, está na hora de começar a usar
esses conhecimentos para escrever.
Com relação à parte gráfica, um modo interessante de ensinar
os alunos a traçarem correta e facilmente as letras (no começo
apenas as letras de fôrma maiúsculas), pode ser através do uso
de gabaritos, como fazem os letristas. Para as letras de fôrma
maiúsculas, um gabarito de três linhas é o suficiente. Um
gabarito mais completo tem oito quadradinhos para cada letra,
em duas fileiras verticais de quatro quadradinhos, por quatro
fileiras horizontais de dois quadradinhos.
ABCDEMPQRX
ABCDMPQR
O professor deverá ainda dar instruções precisas sobre como
fazer o traçado das letras, dizendo, por exemplo, que nas de
fôrma maiúsculas, o traçado é feito sempre de cima para baixo e
da esquerda para a direita, quando houver mais de um traço, ou
da direita para a esquerda, quando houver só curvas, etc.
Cada tipo de alfabeto exige um traçado gráfico próprio. As
letras, em geral, sobretudo as de fôrma maiúsculas, são escritas
iniciando-se o traçado na linha de cima e riscando para baixo. As
curvas presas a hastes verticais começam nas hastes, na parte
mais alta, e vão para a direita, descendo. Traços horizontais vão
da esquerda para a direita e são feitos depois dos traços
verticais (que são os primeiros) e das curvas. Letras que
apresentam apenas curvas, sem hastes, são traçadas da direita
para a esquerda, e de cima para baixo. Essas técnicas também
devem ser ensinadas pelo professor. Elas ajudam os alunos a
escrever uniforme e caligraficamente. Ajudam também a
reconhecer os traços distintivos que compõem as letras
graficamente.
<179>
Explicações como essa são de grande ajuda, mas o professor
não deve exigir que os alunos façam somente como ele indicou.
As crianças podem inventar alguns traços. Todavia, é bom não
deixar que escrevam de qualquer jeito, segurando o lápis
displicentemente. O professor deve avaliar, usando o bom senso,
o que está acontecendo e intervir quando julgar necessário. Por
outro lado, é bom lembrar que escrever tem uma tradição gráfica
no feitio e no resultado que é conveniente preservar; a escola
tem o dever de zelar para que essa tradição não desapareça.
Localização da escrita no espaço
Olhando fotografias de casas comerciais nas ruas das cidades,
logo percebemos que também é possível escrever uma letra
debaixo de outra, isto é, podemos escrever na vertical. Nesse
caso, a seqüência das letras de uma palavra deve respeitar a
ordem que vai de cima para baixo e nunca de baixo para cima.
Isso também tem de ser discutido com os alunos.
O professor pode ir além e mostrar como se escreve formando
um círculo, exemplificando com moedas e medalhas. Nesse caso,
a linha de base fica sendo a do círculo interno e a linha de cima,
a do círculo externo. Esse princípio aplica-se também quando se
quer escrever fazendo curvas para cima e para baixo. Aplica-se
ainda quando se considera que o material sobre o qual se
escreve será usado de maneira variada, estando ora com uma
parte voltada para cima, ora para baixo ou para os lados. Quando
a escrita em círculo se atém a um material fixo, que o leitor verá
sempre numa única posição, há várias formas de dispor as letras
em curvas. Pode-se até escrever como se fosse uma reta que foi
cortada ao meio e dobrada: metade para cima e metade para
baixo. Uma investigação desses fatos no mundo real revela as
regras para dispor as letras em curvas.
O alfabeto das letras de fôrma maiúsculas apresenta todas
elas bem distintas graficamente, o que não acontece com as
letras de fôrma minúsculas e, menos ainda, com a escrita
cursiva. Por exemplo, há uma notável distinção gráfica entre D,
B, Q e l porém o que distingue as letras minúsculas
correspondentes d, b, q e p é apenas a sua localização espacial.
Uma pessoa só sabe se se trata de uma letra ou de outra, se
souber qual é o lado de cima e o lado de baixo. Se a folha estiver
de cabeça para baixo (posição que ocorre freqüentemente), o
valor
<180>
dessas letras altera-se: o d transforma-se em p, o bem q, o q em
b e o p em d. Se o professor não tiver uma boa conversa com
seus alunos a respeito da localização das letras no espaço, eles
podem se confundir.
Para ensinar isso, o professor não precisa disfarçar que existe
uma dificuldade de interpretação, dependendo do modo como se
observam as letras, e, em contrapartida, passar exercícios de
"prontidão". Pelo contrário, deve mostrar ao aluno o que
acontece quando vemos as letras de um lado ou de outro, com o
papel certo ou virado de cabeça para baixo. Além disso, deve
dizer que, para se saber o valor das letras, é preciso estabelecer
primeiro o lado certo do papel, o que se consegue, analisando
em que sentido estão dispostas as letras: se da esquerda para a
direita (ou vice-versa), se há letras facilmente reconhecíveis
como estando de cabeça para baixo (ou não), como a letra A, e
outras pistas que o aluno pode encontrar para se orientar.
É mais difícil escrever as letras sem confundir sua localização
espacial do que reconhecê-las. Quando algum aluno apresenta
dificuldades nesse sentido, deve-se mostrar a ele a importância
da relação espacial que as letras apresentam com relação ao
leitor. Cartazes com diferentes alfabetos ajudam os alunos a
entender melhor o que se pretende ensinar.
Copiar para aprender
Fazer cópias, principalmente de alguns exemplos que o
professor explica na lousa, é algo que os alunos apreciam. Faz
muito bem a eles. Copiar para aprender sempre foi uma prática
muito usada e eficaz de estudar e se alfabetizar. Um dos
segredos da alfabetização tradicional é a cópia. Enquanto os
alunos copiam, pensam naquilo que as letras representam.
Porém, se o aluno encarar a cópia como uma simples
reprodução, caso das cartilhas, essa atividade pode não só não
ajudar o aluno, como lhe passar a idéia de que escrever é apenas
copiar. Daí a importância da cópia de textos significativos para o
aluno, como aquilo que o professor explica e escreve na lousa ou
outros textos sugeridos pelos próprios alunos.
Escrita espelhada
O professor não pode simplesmente dizer para os alunos
escreverem da esquerda para a direita, supondo que assim eles
não irão escrever de forma espelhada. Quando o professor diz
isso, está pensando na seqüência
<181>
de letras na palavra: que letra antecede qual. Porém,
muitos alunos estão, nesse momento, mais preocupados em
como se traçam as letras. Lembrando das
orientações do professor, eles tentam escrever as letras
indo com o lápis da esquerda para a direita e acabam
fazendo, por exemplo, o S e o C de forma espelhada. Seguindo
essa direção, compõem todas as
demais no mesmo padrão, e a palavra inteira muitas vezes
apresenta-se da forma espelhada.
O professor pode apresentar palavras escritas em
vidros ou plásticos transparentes para mostrar como vemos as
letras do lado certo e na forma espelhada.
Portas de casas comerciais costumam mostrar a escrita
dessas duas maneiras. Carros de bombeiros, de polícia
e ambulâncias apresentam palavras escritas de forma
espelhada na dianteira. Isso acontece para que o motorista
do carro que estiver à frente possa ler direito, pelo
retrovisor, o que está escrito nesses carros oficiais. O
professor pode arrumar um espelho grande e mostrar como as
letras ficam invertidas (espelhadas) quando
refletidas no espelho. Essa também é uma forma de
analisar com alunos como a escrita funciona.
Explicar o que é ortografia
Muito mais importante do que a cópia é incentivar
os alunos a produzirem escritas espontâneas, visando
sempre à redação de um texto, seja ele curto ou longo.
Quando isso começar a acontecer, inevitavelmente vão aparecer
os famosos e inúmeros problemas de ortografia, que a escola
costuma chamar de troca de letras.
Então, está na hora de explicar o que é ortografia, como
funciona e quais os seus usos.
A explicação ficará mais atraente e será mais bem
assimilada nos seus pontos principais se vier associada à história
da ortografia da língua portuguesa, ilustrada com exemplos do
passado.
Muitos alunos vão se sentir menos frustrados quando
souberem que antigamente havia pessoas que escreviam
(em documentos e em livros) palavras como eles
fazem atualmente, porque a ortografia naquela época
permitia. Mas hoje é diferente. Como exemplo, escrever "onrras"
(honras), "deru" (deram), "çinquo" (cinco),
"homes" (homens), "filia" (filhas), "doçe" (doce), "vaquas"
(vacas), "milhor" (melhor, "dici" (disse), etc.
Ficarão mais consolados ainda quando, ao explicar a
ortografia, o professor mostrar que os próprios dicionaristas, em
alguns casos, não sabem qual é a forma
<182>
ortográfica preferida das palavras e, portanto, admitem mais de
uma maneira de grafá-las como, por exemplo, "flecha" e
"frecha", "caminhão" e "camião", "aluguel" e "aluguer",
"assobiar" e "assoviar", "louro" e "loiro", etc. Não são só os
alfabetizandos que têm dúvidas ortográficas. Com essas
explicações, os alunos sentir-se-ão mais confiantes na aventura
de escrever os seus textos e o professor receberá com mais
tranqüilidade o resultado obtido pelas crianças.
Como atividade de escrita, é essencial que os alunos
aprendam (e pratiquem) primeiro a escrita e ponham-se a
escrever como eles acham que deve ser. Somente depois, já mais
familiarizados com o ato de escrever, serão levados a
reconsiderar o que fizeram, em função das normas ortográficas.
À medida que os alunos forem escrevendo e forem sendo
instruídos a respeito da ortografia, de seus usos e de como tirar
dúvidas ortográficas, procurarão escrever cada vez mais
corretamente, chegando em pouco tempo a ter poucos erros de
grafia, mesmo na primeira versão dos textos que escreverem.
Texto não é só ortografia
Juntamente com a habilidade de escrever graficamente, o
professor precisa ir ensinando aos alunos que os textos escritos
têm peculiaridades próprias e que os escritores precisam
respeitá-las, porque isso faz parte da nossa cultura.
Quando se fala, tem-se o interlocutor diante de si e, por essa
razão, podem-se fazer gestos, usar recursos não-lingüísticos
para tornar o texto oral eficaz e ser entendido plenamente. A
escrita é muito pobre em recursos dessa natureza e, quando se
escreve, o interlocutor não está vendo o autor nem interagindo
com ele, perguntando o que não entendeu, pedindo explicações,
etc. Portanto, o autor do texto escrito precisa de certo modo
adivinhar as possíveis dificuldades de seu interlocutor (o leitor)
e facilitar a compreensão do texto, revelando através de
palavras todas as informações contextuais necessárias para que
seu texto tenha a eficácia esperada.
Fazer isso requer prática. Adquire-se essa habilidade através
de um trabalho escolar bem desenvolvido, desde a alfabetização.
Escrever, como qualquer arte, é algo que também se aprende
com o estudo das técnicas, embora o gênio, como se diz, já
nasça com a arte
<183>
no sangue. A escola, todavia, não espera que todos os alunos
sejam grandes escritores. Espera apenas que todos aprendam a
escrever o que for necessário, de acordo com a tradição da
cultura da sociedade em que vivem.
A correção da escrita
Tão importante quanto aprender a escrever é aprender a
corrigir o que se escreve. A correção feita pelo professor deve
ser sempre acidental e ocasional. O importante é a correção que
o próprio aluno faz dos seus trabalhos. Como diz um velho ditado
chinês, não basta dar um peixe a quem tem fome; é preciso
ensinar a pescar. Não basta dizer ao aluno que ele errou, que seu
texto está todo desarticulado ou coisa semelhante. É preciso
ensinar a ele como resolver essas dificuldades, como se
autocorrigir, sem precisar do professor. Essa é uma tarefa que
vai sendo aprimorada aos poucos e, sem dúvida, leva anos para
atingir um nível satisfatório. Mas é preciso que comece a se
desenvolver desde as primeiras manifestações de escrita.
Nos primeiros textos, como o objetivo é simplesmente fazer
com que o aluno passe da habilidade que tem de produzir textos
orais para a habilidade de traduzi-los para textos escritos, o
professor não deve nem sequer mencionar o fato de que o aluno
precisa corrigir o que escreveu, que precisa fazer primeiro um
rascunho ou versão preliminar, corrigir, melhorar e, depois,
passar a limpo. No começo, vale o que o aluno faz, do jeito que
ele fez. Nenhum professor tem condições nem tempo para
corrigir todos os erros dos alunos no começo da alfabetização e,
pedagogicamente, nem é preciso.
Com o tempo, quando os alunos já estiverem mais à vontade
com a escrita e a leitura, produzindo textos espontâneos, o
professor começa a explicar-lhes que é preciso melhorar os
textos, não só no aspecto visual-gráfico, como também levando
em conta a ortografia e, acima de tudo, a estruturação do
conteúdo do discurso.
Esse é o momento das explicações técnicas adequadas e das
cobranças. A partir daí, os alunos farão dois tipos de texto:
aqueles para uso pessoal, que não precisam ser corrigidos e têm
apenas uma única versão, e outros, que serão lidos por outras
pessoas, que irão formar livrinhos, os quais deverão atender às
exigências da escola, e serão feitos em pelo menos duas versões,
permitindo a correção e o aprimoramento da versão inicial.
<184>
Esses cuidados significam formas de respeito ao leitor e,
portanto, uma prática pedagógica muito importante, a que a
escola precisa dedicar-se. Não há nada mais desagradável do
que receber uma carta, um bilhete ou um trabalho mal escrito,
mal organizado, ininteligível com relação às idéias e à grafia,
sujo, mal planejado. Fazem parte da boa educação esses
cuidados com a escrita.
Diacríticos, marcas e arte na escrita
A escrita não é feita só de letras. Há uma série de
marcas e diacríticos que fazem parte do sistema de escrita como
um todo e que precisam ser estudados com os alunos,
juntamente com o alfabeto. No início, os acentos e os sinais de
pontuação, como o ponto final, a vírgula, o ponto de
interrogação, os dois-pontos e o travessão são os diacríticos
mais importantes.
As crianças gostam de escrever palavras com letras artísticas,
enfeitadas. Esse é um bom motivo para fazer cartazes sobre os
mais variados assuntos. Os alunos se entusiasmam com essas
atividades e, ao mesmo tempo, vão aprendendo e produzindo
novos materiais escritos.
A arte de escrever prevê uma programação gráfica, um layout,
ou seja, uma maneira elegante de distribuir o material gráfico
sobre a folha de papel, além da caligrafia bonita. Essas sutilezas
da cultura também precisam ser cultivadas na escola, desde a
alfabetização. Esses temas serão tratados a seguir.
Letras cursivas
As letras cursivas representam modos individuais de traçar as
letras. Tradicionalmente, por causa do método das cartilhas, a
escola passou a exigir dos alunos um certo tipo de letra cursiva
(manuscrita, script...), com ou sem as adaptações que os
professores poderiam fazer.
O ensino à prática da escrita cursiva começa quando os alunos
já aprenderam a ler (decifrar) e já escreveram os primeiros
textos com as letras de fôrma maiúsculas e minúsculas. Em
geral, a escrita cursiva é dada no início do segundo semestre.
Quando os alunos estiverem na terceira série, ou forem mais
adiantados, seria bom que o professor analisasse com eles como
funciona a escrita cursiva que eles apresentam naquele
momento. Além das formas pessoais de amalgamar letras,
<185>
deformando características gráficas das letras (isoladas), os
usuários costumam abreviar palavras e usar outros tipos de
anotação ideográfica.
De acordo com sua natureza, a escrita cursiva serve para
escrever com rapidez ou para fazer anotações pessoais. Por essa
razão, ela contempla todas as idiossincrasias dos usuários.
Porém, como as pessoas se acostumaram a escreverem textos
com letra cursiva também para que outras pessoas lessem, é
preciso que se escreva de maneira clara e elegante. É por essa
razão que muitos professores ensinam um certo tipo de letra
cursiva e exigem-no de seus alunos.
O professor precisa explicar esses usos da escrita cursiva para
que seus alunos compreendam que podem escrever com a letra
que quiserem quando fizerem anotações pessoais, porém
deverão usar uma letra clara e bonita quando forem escrever
para outras pessoas.
Caligrafia
A caligrafia sempre foi uma arte. Os próprios computadores
modernos não se esqueceram disso. Parece, no entanto, que
muitos professores, por razões estranhas, abandonaram o
ensino da caligrafia. Os alunos passam anos na escola e
escrevem cada vez mais garranchos, sem saber escrever de uma
maneira elegante, quando necessário. Caligrafia não deve ser
confundida com aquele tipo de letra que em geral as cartilhas
exigem dos alunos (letra cursiva), nem com o tipo de traçado
atribuído tradicionalmente a Petrarca. Caligrafia é simplesmente
escrever bonito. Cada um pode desenvolver a sua caligrafia
desde que obtenha uma escrita bonita, elegante, charmosa,
sofisticada. Caligrafia é uma arte típica da escola. No Brasil, essa
manifestação de arte, à semelhança de outras, não tem tido a
menor chance nas salas de aula. É uma pena.
O traçado caligráfico atribuído a Petrarca, usado
tradicionalmente nos cursos de caligrafia, pode ser ensinado em
séries mais adiantadas, complementando os estudos sobre a
escrita iniciados na alfabetização. O segredo desse tipo de
escrita consiste em usar uma caneta que permita a variação da
espessura dos traços; desse modo, quando se escreve a linha
descendente, força-se o traçado com a caneta, e, quando se
escreve a linha ascendente, suaviza-se.
Na alfabetização, o professor pode mostrar catálogos de
letras, no qual os alunos poderão encontrar uma variedade
enorme de estilos, cujas peculiaridades divergem da forma
original de letras de fôrma maiúsculas e minúsculas. Encontrarão
letras enfeitadas para fazerem cartazes, letras sugerindo fogo,
vento, alegria, tristeza, etc. Usar letras desse tipo para enfeitar
trabalhos, títulos, cartazes, etc. é uma forma de ensinar não só a
escrever, como também a escrever segundo uma cultura. No
mundo em que vivemos, essas formas escritas são muito
comuns, e a escola não pode deixá-las de lado. As crianças
divertem-se com essa atividade e, enquanto se preocupam com
os enfeites, vão aperfeiçoando os conhecimentos sobre a escrita
e a leitura.
Os professores deveriam dispor de uma coleção de material de
escrita diversificado para ilustrar o que vem a ser escrever
bonito. Há inúmeras maneiras de fazer caligrafia e enfeitar um
texto escrito. Apresentar esse material aos alunos é altamente
educativo e incentivá-los a fazer uso desse aspecto artístico
também é uma obrigação da escola.
Os alunos também podem recortar de jornais e revistas tipos
diferentes de letra, classificá-las do ponto de vista das
características gráficas e organizar álbuns. A classe pode fazer
um álbum coletivo, com as contribuições dos alunos. Esse tipo de
atividade educa o bom gosto e o senso crítico do aluno, além de
contribuir para que avance em seus conhecimentos a respeito da
natureza e usos da escrita, no mundo em que vivemos.
Layout e pontuação
O layout ou o modo como se distribui o material escrito sobre
o papel, também merece a atenção de professores e alunos.
Quando estes estiverem escrevendo textos, o professor
precisará explicar como se cuida do layout. Muitas informações a
respeito desse aspecto só serão acessíveis aos alunos em séries
mais adiantadas, quando souberem, por exemplo, como dividir
um texto em parágrafos. O professor, porém, pode introduzir
algumas idéias gerais. Um texto fala de um assunto, seguindo
algumas idéias básicas. Essas idéias básicas constituem os
parágrafos. Quando alguém disser alguma coisa, usa-se o espaço
de parágrafo, a marca do travessão e escreve-se a fala. Quando
se acaba
<187>
de falar sobre uma idéia (período), coloca-se ponto final. A
vírgula traz algumas dificuldades, mas, em certos casos, como
nas enumerações, é fácil mostrar o emprego da vírgula. No início
de períodos usam-se letras maiúsculas e, em seguida, as letras
minúsculas do alfabeto adotado. Poesias têm um modo especial
de dispor as palavras.
Embora as explicações não sejam rigorosas, os alunos vão
aprendendo que precisam cuidar não só da ortografia, da clareza
e da beleza gráfica das letras, mas também da maneira como as
palavras são colocadas no papel, dos sinais de pontuação e das
demais marcas da escrita.
No começo, os alunos escrevem palavras isoladas, e o
professor não precisa se preocupar com o lugar onde essas
palavras estão escritas. Porém, quando os alunos estiverem
escrevendo histórias, vão ter de tomar alguns cuidados
especiais.
Nos livros, por razões estéticas, as palavras são cortadas no
final de linhas, quando isso é necessário. (Existem regras para
isso...) Porém, quando as pessoas escrevem à mão, não é
costume cortar palavras, porque não há necessidade de manter o
padrão estético dos livros. Muitas pessoas fazem isso porque
aprenderam assim na escola e levam esse costume escolar para
a vida, O professor de alfabetização deveria mostrar aos alunos
que eles deveriam calcular se uma palavra vai caber ou não no
final da linha, e se acharem que não vai caber, simplesmente a
escrevem na outra linha.
Deve haver uma preocupação com a margem esquerda,
mesmo na escrita à mão, mas não é preciso fazer margem
direita. No entanto, faz parte da boa estética da arte de escrever
deixar sempre um espaço em branco em toda a volta do texto
(nas quatro margens). Os alunos devem aprender isso desde o
começo da alfabetização.
No primeiro semestre de aulas, provavelmente, o professor só
tocará nesse assunto se algum aluno perguntar algo a respeito
ou para dar alguma instrução muito especial e particular. Porém,
no segundo semestre, esses aspectos precisam ser esclarecidos.
O acabamento correto do texto, quanto à sua apresentação
gráfica, também faz parte daquele conjunto de elementos
culturais associados ao uso da escrita na nossa sociedade que a
escola precisa cultivar.
<188>
As primeiras escritas da criança
Quando o professor começar a ensinar as relações entre letras
e sons, deve escrever palavras no quadro-negro para
exemplificar os fatos que comenta. Nessa hora, as crianças
gostam de copiar. O professor pode deixá-las fazer isso, mas
deve chamar a atenção para o fato de que elas vão aprender a
escrever um pouco mais adiante, quando forem passadas as
informações básicas sobre como traçar as letras.
Essas escritas que as crianças procuram copiar do quadro-
negro servem para o professor perceber como elas estão se
virando: alguns alunos copiarão direitinho, outros, não, O
professor ficará atento a todos os detalhes, porque essas
informações o ajudarão a saber quais conhecimentos os alunos
têm a respeito dos aspectos da escrita.
Depois de treinado o traçado das letras com os gabaritos, o
professor irá sugerir aos alunos que escrevam o que quiserem:
palavras isoladas, pequenos textos, frases, expressões, nomes,
etc. Nesse momento, fazer pequenas cópias de versos,
provérbios, letra de música ou coisa semelhante é um bom
exercício. Os alunos têm um certo medo de escrever errado
quando são solicitados a escrever uma palavra a partir dos
conhecimentos que têm, mas se sentem mais tranqüilos ao
copiar algo já escrito. A cópia ajuda, então, a aliviar um pouco a
tensão. Como sempre, o professor procurará dar como cópia
algum material interessante e não qualquer coisa. Um bom texto
dispensa qualquer motivação para a escrita.
O material escrito pode ser ilustrado pelos alunos, quer
colando recortes, quer desenhando o que quiserem. É sempre
uma boa estratégia pedir para o aluno escrever primeiro e
ilustrar depois, e não o contrário. Quando parte de um desenho
ou de uma figura colada, o aluno pode ir simplesmente
ajuntando palavras e frases, cada uma relativa a algo que vê nas
figuras. Isso desarticula o texto. Quando o aluno faz o texto
primeiro, o conhecimento da linguagem o guia a compor um
texto mais bem planejado.
É muito importante que os alunos produzam textos
espontâneos. Esses textos devem ser feitos com total liberdade.
Portanto, os alunos vão escrever o que quiserem, do jeito que
quiserem. As crianças gostam de contar histórias verdadeiras ou
inventadas. Algumas até se arriscam a fazer poesias. Produzir
textos
<189>
deve ser a principal atividade de escrita, depois que os alunos
souberem os rudimentos da escrita. Os textos espontâneos
podem começar quando a criança se interessar por escrever, ou,
por sugestão do professor, quando o aluno já tiver escrito e feito
cópias com letras de fôrma maiúsculas. Isso não significa que
esse tipo de texto pode ser sugerido já na metade do primeiro
semestre.
Ao iniciar esse tipo de atividade, o professor pode deixar os
alunos redigirem, por exemplo, dia sim, dia não. Os alunos farão
o texto e o ilustrarão. O professor não deve interferir de modo
algum no trabalho dos alunos, a não ser que alguém pergunte
alguma coisa. Como alguns alunos (inseguros) gostam de
perguntar tudo para o professor, este deve perceber qual é a
intenção do aluno e, se for o caso, dizer que se deve escrever
como a criança achar melhor, porque, assim, o professor saberá
como ensiná-la se houver algum erro. O professor não corrige
nada que for entregue pelos alunos. Simplesmente analisa o que
eles fizeram e faz suas anotações para poder preparar melhor
suas aulas futuras, ensinando aqueles pontos que descobrir que
os alunos erram mais, ou com relação aos quais cometem erros
mais graves. No próximo capítulo, trataremos de modo
detalhado da produção de textos na alfabetização.
Aprender fazendo
Como se pôde observar nos comentários a respeito da
produção da escrita na alfabetização, o mais importante é os
alunos produzirem os mais variados tipos de material escrito,
desde textos curtos e simples, até textos longos e pequenos
livros. Aprende-se a escrever, escrevendo, e quanto mais os
alunos escreverem, mais e melhor aprenderão.
O professor não precisa ter a lição preparada: o ideal é que as
crianças decidam o que querem escrever e como realizar o que
pretendem. O professor simplesmente orienta para facilitar os
trabalhos ou dar condições reais de realização. Isso mostra que
o mais comum numa sala de aula de alfabetização é a ocorrência
de atividades diferentes, realizadas por diferentes alunos, em
grupos ou individualmente, todos escrevendo, mas cada um a
sua tarefa. Essa produção de trabalho é a atividade pedagógica
que se espera, e não que os alunos façam segundo um modelo,
como pretendem a cartilha e o método do bá-bé-bi-bó-bu.
<190>
ENTENDENDO COMO SE FALA
Os alunos são falantes nativos
O professor de alfabetização não precisa se preocupar em
ensinar português aos seus alunos, porque todos são falantes
nativos e ninguém mais do que o falante nativo é dono da língua
que fala. Isso, na verdade, é um grande alívio. Quando se trata
de decifrar um sistema de escrita, se a pessoa não conhece a
língua, a tarefa é praticamente impossível. Uma das condições
básicas para aprender a ler é saber a língua em que o texto foi
escrito. Como todos os alunos são falantes de português, pode-
se conversar com eles, discutir, ouvi-los e, quando eles forem
ler, decodificarão as mensagens da escrita de maneira
semelhante à que usam para entender uma conversa ou alguém
falando.
Quando as pessoas adquirem a linguagem, aprendem não só a
falar, como também a entender o que as outras pessoas dizem.
Compreender bem esse fato é fundamental para lingüistas e
professores.
A variação lingüística
Todo falante nativo fala de acordo com a variedade lingüística
estabelecida na comunidade em que cresceu e viveu. Porém,
como a língua portuguesa, como um todo, é falada em muitos
lugares, apresenta variedades, firmando-se assim os dialetos. Na
verdade, todo falante é falante de um dialeto. Uma vez que as
pessoas compartilham uma vida social e política no âmbito da
nação, os falantes de dialetos diferentes ouvem uns aos outros,
comunicam-se, conversam entre si e, depois de certo tempo e
costume, as diferenças dialetais passam quase despercebidas ou
são simplesmente consideradas irrelevantes.
O resultado dessa situação torna o falante nativo ouvinte e
entendedor de muitos dialetos. Em resumo, um falante nativo é
geralmente monolíngüe de um dialeto: fala de determinada
maneira; mas é ouvinte poliglota de todos os dialetos de sua
língua: participa, como ouvinte, de todos os dialetos. Mais ainda,
o falante nativo usa um sistema lingüístico específico quando
fala (a gramática do seu dialeto), mas usa todos os demais
sistemas que integram a língua, relativos aos dialetos, quando
ouve. Para entender o que ouve, é preciso que esse falante
nativo tenha interiorizado todas as gramáticas de todos os
dialetos da língua.
<191>
Como se vê, o problema da escola não é ensinar a falar ou a
entender português: isso todos os falantes nativos sabem fazer e
muito bem. O problema escolar coloca-se quando se pretende
que uma pessoa, que não é falante de um determinado dialeto,
passe a falá-lo ou adquira a habilidade de substituir seu dialeto
por outro em certas ocasiões, quando necessário. Nesse caso,
falar um dialeto diferente do próprio exige um esforço
semelhante àquele necessário para aprender uma língua
estrangeira. Falar uma outra língua ou um outro dialeto, por
mais semelhante que seja do próprio, é uma tarefa árdua, que
requer tempo e muita prática.
Na verdade, aprender uma língua estrangeira é mais difícil do
que aprender a falar um dialeto diferente, dentro de uma mesma
língua, porque, no caso do dialeto, o falante entende, embora
não fale, o mesmo não acontecendo no caso de uma língua
estrangeira.
O dialeto padrão na escola
As crianças que entram na escola já falando o dialeto padrão
ou norma culta têm uma enorme vantagem sobre aquelas que
são falantes de outros dialetos. No começo, o professor não deve
se preocupar muito com os diferentes dialetos. Esse fato em si
não atrapalha o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita.
Apenas exige uma compreensão correta do fenômeno, por parte
do professor, para explicar adequadamente o que deve ser feito
e, por parte do aluno, para saber o que a escola espera dele.
Como o objetivo da escrita é a leitura, uma pessoa pode ler um
texto em seu próprio dialeto sem problema algum. Assim como
alguém vê escrito "pote", "dia" e pode ler "póti", "dia", outra
pessoa pode ler "pótchi", "djia", e assim por diante. Do mesmo
modo, um falante do dialeto caipira pode ver escrito "planta",
"milho", "dentro", e ler, seguindo seu dialeto, "pranta", "miiu",
"drentu", etc. Para escrever, há menos problemas ainda, porque,
embora usemos um alfabeto, somos obrigados a escrever
seguindo uma ortografia preestabelecida, e não fazendo
transcrições fonéticas da pronúncia que cada pessoa usa. Basta
conferir "pote" e "dia", que automaticamente se entende
"dentro" e "milho".
Os professores que trabalham com as cartilhas têm uma visão
tão errada de como a fala, a escrita e a leitura
funcionam, que acabam ficando desesperados quando
<192>
encontram um aluno que é falante de um dialeto muito diferente
do dialeto padrão. Entendem que o aluno precisa, sempre,
aprender a falar primeiro para então aprender a ler e, sobretudo,
a escrever.
A aquisição do dialeto padrão ou norma culta é uma tarefa que
deve ser realizada não só na sala de aula e não só através de
lições planejadas. A melhor e mais segura maneira de aprender
uma língua (ou um dialeto) é usando-a na vida real. Na escola, é
preciso que haja muito recreio, muita festa, muito entrosamento
entre alunos e professores, para que os alunos se sintam
pressionados a usar o dialeto padrão. As zombarias dos colegas,
muitas vezes, são um argumento decisivo para os medrosos ou
acomodados. Nessas ocasiões de interação social, a criança vai
passando da habilidade de ouvir e entender o dialeto padrão
para a habilidade de expressar-se nele.
Na sala de aula, o professor irá orientando aos poucos seus
alunos para empregar, na escola, só o dialeto padrão. Mas não se
deve ficar cobrando dos alunos, chamando a atenção a todo
instante para seu modo diferente de falar. Certamente, a
maneira mais eficaz de os alunos aprenderem a falar o dialeto
padrão está na aprendizagem da escrita e principalmente na
prática da leitura. Mas às vezes isso requer muito tempo.
Falar sobre como se fala
Para que os alunos não se desesperem, quando perceberem
que terão de aprender a falar um dialeto diferente do habitual, é
preciso que o professor, nos momentos oportunos, converse com
eles a respeito dos vários problemas de fala, explicando-lhes
como a fala funciona e quais os seus usos. Algumas dessas
questões serão comentadas brevemente neste capítulo e mais
detalhadamente em outra parte do livro.
CAGLIARI, 1997a. c
Para que o professor desempenhe adequadamente esse papel
de conversar sobre a fala dos alunos, ele precisa conhecer bem
fonética e fonologia geral e, principalmente, o português do
Brasil. Há muitos trabalhos de lingüistas que o podem ajudar.
A aquisição da linguagem oral
É sempre importante contar para os alunos como uma pessoa
adquire a linguagem oral. Qualquer um, em qualquer lugar do
mundo, aprende a falar entre o primeiro e o terceiro ano de vida,
aproximadamente. Nesse
<193>
espaço de tempo, aprende uma gramática, um vocabulário
e uma série de regras que permitem usar a linguagem
nas mais diferentes circunstâncias. Como já dissemos antes, as
pessoas usam mais esses conhecimentos
para entender o que ouvem do que para falar. Na fala,
empregam uma parte menor desse conhecimento
geral. Por exemplo, as crianças entendem frases na voz passiva,
porém não costumam usar essa construção quando falam.
Nessa ocasião, os conhecimentos gramaticais são adquiridos
na sua quase totalidade, e a pessoa aprenderá poucas novidades
nessa área, pelo resto da vida. O vocabulário, por outro lado, é
uma lista aberta de palavras
que irá se enriquecendo à medida que a pessoa for
vivendo
Aprender a falar significa seguir regras. Ninguém consegue
falar, seja que dialeto for, sem seguir regras muito
precisas. Se alguém diz que "mesa" é "copo", "cavalo" é
"árvore", etc., não está seguindo as regras da língua
portuguesa, mas cometendo um verdadeiro "erro" do
ponto de vista lingüístico. Porém, esse tipo de "erro", os
falantes nativos não cometem.
A linguagem não é feita só de palavras isoladas; ela é
fundamentalmente um conjunto de palavras organizadas
num discurso ou texto, com regras de combinação muito
específicas. Por exemplo, num dialeto, algumas
palavras precisam concordar, ficando todas no singular ou no
plural, conforme o caso. Deve-se dizer, por exemplo:
"As meninas loiras brincam nos jardins". Já num outro dialeto, a
gramática tem regras diferentes, e o falante dirá: "as menina
loira brinca nos jardim". No segundo
caso, não há falta de regras ou de lógica, mas a aplicação de
regras de gramáticas diferentes, cada uma
específica de um dialeto. Note que o resultado semântico é igual
nos dois dialetos.
Todas as línguas do mundo — ou, mais especificamente, todos
os dialetos de todas as línguas — precisam de regras. As línguas
nada mais são do que um
conjunto de regras de um determinado tipo. Em razão
disso, um mesmo pensamento, dito no dialeto padrão de uma
língua ou num dialeto estigmatizado pela sociedade, tem o
mesmo valor semântico. Isso pode acontecer até com línguas
diferentes. O exemplo acima, se vertido para o inglês, apresenta
outras regras gramaticais:
"The blond girls play in the gardens". Traduzida literalmente
para o português, a frase inglesa corresponde ao seguinte
esquema sintático: "A loira meninas
<194>
brinca no jardins". Aí, encontra-se um terceiro tipo de regra de
concordância, diferente das apresentadas pelos dialetos do
português.
Ser diferente não é um problema lingüístico; pelo contrário,
são as diferenças que permitem que as línguas existam. A
linguagem exige tão-somente que as regras sejam observadas.
Essa é a razão profunda pela qual um falante nativo comumente
se recusa a modificar sua fala. Para ele, seu jeito de falar é a
maneira exigida pela gramática do seu dialeto. Falar diferente,
para ele, seria deixar de ser falante de seu dialeto, o que nem
sempre é uma idéia muito atraente, sobretudo para uma criança.
Essa concepção de linguagem era encontrada comumente em
gramáticas do século passado.
Linguagem e lógica
Não existe verdade na afirmação de que o dialeto padrão
representa a expressão do pensamento lógico, bem-estruturado,
ao passo que os dialetos populares revelam mentes
desorganizadas, desarticuladas e sem capacidade para exprimir
idéias mais sofisticadas. Todo dialeto serve para exprimir
qualquer idéia, basta o usuário se dispor a isso. Como, na nossa
sociedade, os bens culturais são escritos no dialeto padrão e não
em outro, alguém pode ter a impressão de que é a gramática do
dialeto padrão que controla o pensamento. Na verdade, ocorre o
contrário.
GNERRE, 1985.
A discriminação pela linguagem
O homem vive em sociedade e, por isso mesmo, rodeado de
preconceitos. Sempre alguém quer prevalecer sobre os demais,
levar vantagem, destruindo, como pode, seus concorrentes. Por
essas razões, formam-se as classes sociais. Esses grupos passam
a ter um modo de vida diferente e, depois de muito tempo, um
dialeto próprio. As diferenças lingüísticas passam, então, a fazer
parte daqueles elementos marcadores das diferenças sociais e,
conseqüentemente, da manifestação dos preconceitos. Na
prática, a linguagem acaba sendo apenas uma maneira
conveniente de a sociedade disfarçar sua intolerância para com
os menos favorecidos econômica e culturalmente. Desse modo,
passa-se a crer que a fala dos pobres é errada, ilógica e sem
elegância.
A escola precisa analisar esses fatos com os alunos,
explicando o que significam, e não ser uma mera reprodutora
desses preconceitos. A escola deve respeitar todos os dialetos e
inculcar nos alunos o respeito ao indivíduo.
<195>
Respeitar um dialeto não significa não dar chance ao aluno de
aprender outro. Aprender o dialeto padrão é indispensável, não
para justificar os preconceitos associados a ele, mas como forma
de garantir uma vida melhor aos que estudam.
O aluno pode aprender o dialeto padrão sem precisar esquecer
o dialeto com que adquiriu a linguagem oral. Todos os dialetos
representam bens culturais. Essa é uma questão que deve abrir
muitos debates na escola, desde a alfabetização.
SOBRE O TRABALHO ALTERNATWO
As considerações apresentadas neste capítulo mostram como
é possível desenvolver um trabalho de alfabetização sem usar a
cartilha e o método do bá-bé-bi-bó-bu. A proposta é simples e
não tem um caminho predeterminado. Existe uma sugestão de
trabalho direta e muito produtiva em tarefas específicas de
leitura e de escrita.
A proposta deste capítulo não é apenas tirar a cartilha como
livro didático, mas, sobretudo eliminar a idéia de que o professor
precisa de uma receita que o oriente passo a passo na sua
atividade. Se ele souber tudo o que necessita a respeito da
leitura, da escrita e da fala, tem o segredo pedagógico para
desenvolver um trabalho correto. Na verdade, ele não precisa ser
um grande lingüista: o conteúdo necessário para fazer um bom
trabalho não é tão grande, nem tão complicado, quanto as
pesquisas lingüísticas modernas. Nem tudo o que a lingüística
estuda e descobre serve para a atividade de alfabetização. Além
disso, muita coisa o professor já aprendeu na sua prática de
trabalho, ao longo de anos de observação.
<196>
9.
A produção de textos
espontâneos
UM TEXTO NÃO É UM AMONTOADO
DE PALAVRAS
Na vida real, as pessoas não pronunciam palavras
isoladas. Quando alguém se põe a falar, sua intenção é dar uma
informação completa, e isso acontece através de um texto.
Somente em circunstâncias especiais, num contexto específico,
as pessoas dizem palavras isoladas, mas sempre elas estão
inseridas num texto maior ou são esperadas como resultado de
ações ocorridas. Assim, se alguém fizer uma pergunta, posso
responder dizendo apenas "Sim" ou "Não". Esse tipo de resposta
faz parte de um texto maior, que motivou a resposta. Na
verdade, o texto continua na resposta do interlocutor. Houve
apenas mudança de falante. Em outro contexto, se alguém grita
por socorro, ou dá uma ordem, tendo em vista a necessidade do
momento, dizer apenas uma palavra é o que basta, dada a
situação.
Normalmente, o que acontece é um uso da linguagem que
obriga o locutor e o ouvinte a produzirem um texto e não
palavras isoladas. O tamanho do texto varia. As pessoas falam o
que acham que precisam falar, organizando o conteúdo e o estilo
do texto de acordo com sua vontade.
Na vida real, quando as pessoas usam a linguagem oral, estão
mais preocupadas com o que vão fazer com ela, como vão
despertar idéias e reações no seu interlocutor, do que em falar
certo ou errado. Essa preocupação só surge quando as
circunstâncias sociais de uso da linguagem trazem à consciência
do falante o peso que a sociedade atribui ao falar, seus
preconceitos e suas manias. Por isso, o aluno fala sem se
preocupar com juízos dessa natureza quando está no seu
ambiente familiar, mas começa a se apavorar quando entra na
escola e, sobretudo, quando o professor lhe dirige a palavra
pessoalmente. Nesse momento, esquece-se de que é falante
nativo e de que é senhor da sua língua, e passa-se a ser um
escravo daquilo que pensa que representam as expectativas
culturais da sociedade, da escola e, principalmente, do professor.
A escola (mais especificamente nas aulas de linguagem) é o
único lugar onde se ouve e também se fala de outra maneira. O
professor desmonta e monta textos, frases, palavras e até
sílabas para explicar os mecanismos da linguagem. Desse
processo resultam
<198>
segmentos que remetem ora para o significado, ora apenas para
os sons da linguagem, e até mesmo para as letras. Todo corte
implica, de certo modo, modificações do texto. Mesmo quando se
procura explicar um texto, palavra por palavra, como os
elementos prosódicos se modificam, os comentários semânticos
perdem de vista as atitudes do falante e, às vezes, até
informações gramaticais importantes, como as carreadas pela
entoação e o ritmo. As segmentações da fala feitas nas aulas de
linguagem pretendem justamente isolar partes para melhor
analisá-las, uma vez que a fala como um todo é sempre
extremamente complexa. No entanto, nem tudo num texto pode
ser segmentado para análise, porque em certas situações o
significado depende do contexto.
Depois de muitos anos de estudo sobre a linguagem, as
pessoas acham muito fácil e familiar fazer todos os tipos de
segmentação da fala. Com o uso dos sistemas de escrita, isso se
torna ainda mais corriqueiro. A escrita segmenta a fala em
palavras e em letras, e isso parece ser a essência da linguagem
para as pessoas que estudaram. No entanto, na sua essência, a
linguagem é uma realidade oral falada e existe como a soma de
inúmeros parâmetros que controlam o significado e os sons do
que se diz.
As pessoas que não conhecem o sistema de escrita são
levadas a ver a linguagem oral como unidades de outro tipo:
para elas, o que vale, em primeiro lugar, é o significado e, em
segundo lugar, a maneira como esse significado é dito. Quando
as pessoas pensam e falam, guiam-se quase exclusivamente pelo
significado, permanecendo no nível do inconsciente todos os
conhecimentos requeridos para um completo e necessário
controle da linguagem. A gramática de uma língua nada mais é
do que a explicitação desses conhecimentos. Somente quando
acontece algo estranho com o significado ou com os sons é que
os usuários de uma língua começam a transpor do subconsciente
para o consciente as regras que regem o uso da linguagem. Caso
contrário, tudo vem normalmente, e a gramática é o que menos
interessa numa conversa.
Essa maneira de conduzir a fala e usar a linguagem também
pode ser claramente constatada pelas pessoas que usam a
escrita com muita facilidade. Depois que alguém passa a
escrever com velocidade e fluência, começa a deixar para o
domínio do subconsciente as regras que regem o sistema de
escrita que usa, passando
<199>
a escrever (quase) automaticamente, guiando-se apenas pelo
significado. As palavras são escritas tão naturalmente quanto
são ditas numa conversa. Para falar, é preciso articular os sons
de maneira precisa e, para escrever, é preciso traçar as letras.
Essas atividades são feitas automaticamente. Se tivéssemos de
relembrar todas as regras para falar ou escrever, a todo
instante, ficaríamos perdidos e confusos em meio a uma enorme
complexidade de dados.
Quando se interrompe a fala ou a escrita, procura-se em geral
uma forma melhor de expressar o pensamento. A dificuldade
reside mais em juntar as idéias do que em falar ou escrever o
que se gostaria de dizer. É claro que alguém pode não se lembrar
de uma palavra específica, ou ter dúvidas quanto à pronúncia ou
à ortografia. Mas esses são casos especiais e raros.
TEXTOS OU PALAVRAS ISOLADAS?
As considerações anteriores mostram que usar a linguagem
como um material que se pode dissecar, analisar e comparar é
uma atividade escolar típica e não um uso comum. Quando
entram na escola, as crianças lidam com a linguagem como
qualquer falante nativo. Para elas, a linguagem é um texto que
se diz ou que se ouve, um texto dito por uma pessoa ou
elaborado com a participação de várias pessoas. Pensar a
linguagem como sendo composta de unidades bem-delimitadas e
com valores bem-definidos é algo que se consegue somente
depois de muitos anos de estudo.
Isso tudo mostra que, para uma criança que entra na escola
para se alfabetizar, é muito mais natural e fácil lidar com textos
do que com palavras isoladas, sílabas ou outros segmentos. O
mundo da linguagem é o mundo dos textos. Por essa razão, o
professor deve tentar, sobretudo no início, criar situações em
sala de aula em que predominem o texto. Por outro lado,
principalmente no começo, o professor deve tomar cuidado
quando exemplifica com pedaços de fala. Obviamente, será
necessário segmentar a fala não só para ensinar a escrever, mas
também para analisar a linguagem oral.
Sempre que possível, o professor precisa estar atento para as
prováveis dificuldades oriundas dessa atividade. Engana-se
redondamente o professor que pensa
<200>
que é banal e fácil dizer que a palavra-chave BEBE tem dois
pedacinhos "bê" + "bê", os quais, por sua vez, pertencem à
família dos "bês", ou seja, do bá-bé-bi-bó-bu. Isso parece óbvio
para o professor que está mais do que acostumado a lidar com a
linguagem. Para os alunos, trata-se de algo fantástico. Eles
jamais pensaram a linguagem oral dessa maneira. É
surpreendente que se possa falar sobre a linguagem fazendo as
palavras perderem seu significado próprio e ficando sujeitas a
novas regras e valores semânticos, restando sobretudo valores
semânticos que só existem quando fazemos esse exercício de
análise da linguagem.
TEXTOS ORAIS E ESCRITOS
Quando se fala em texto (ou discurso como dizem os
lingüistas), algumas pessoas se confundem, concluindo que nem
toda produção oral é um texto, mas somente aquelas que
revelam traços literários. Essa atitude nega uma das realidades
lingüísticas mais notáveis, uma vez que as línguas só existem
porque as pessoas produzem textos quando falam. No fundo,
tudo o que se diz, mais o contexto em que é dito, forma um
discurso ou texto. Outra coisa é o modo como esse discurso ou
texto é apresentado e a finalidade para a qual ele é feito.
A literatura nada mais é do que um dos possíveis usos da
linguagem ou uma das possíveis finalidades para esse uso. Um
texto literário precisa ter um toque de arte, um texto científico
precisa ter uma apresentação especial, uma carta é escrita com
outro estilo. Resumindo, os textos têm estilos diferentes. Há
diferenças notáveis entre o modo como produzimos nossos
textos orais e nossos textos escritos, dentro das exigências
escolares ou em determinadas circunstâncias culturais.
Alguns professores consideram que as crianças que iniciam
sua alfabetização não conseguem lidar bem com textos e, por
isso, eles dão em sala de aula apenas palavras e frases isoladas.
Acham que as crianças não são capazes de produzir textos
literários, científicos ou mesmo de uso escolar mais comum. Em
outras palavras, essas pessoas estão preocupadas com os estilos
culturalmente exigidos pela escola, e não
<201>
com o fato de as crianças saberem ou não produzir textos, no
seu sentido mais amplo. Pior ainda, esses professores supõem
que na fala comum não existe um texto ou um estilo que valha a
pena. Por causa de idéias preconceituosas dessa natureza,
desprezam em geral os textos dos alunos quando estes não
apresentam traços culturais bem marcantes (ou estereótipos
baseados numa expectativa literária que têm).
Como se disse, a fala é diferente da escrita, e nisso não há
nada de novo nem de ruim. A criança vem para a escola sabendo
lidar bem com os estilos de sua linguagem oral e espera que lhe
ensinem os demais estilos, especialmente os da linguagem
escrita. Para tanto, a escola não precisa destruir o que o aluno já
sabe nem negar o valor dos conhecimentos da criança. Precisa,
ao contrário, discutir o assunto com os alunos.
O TEXTO NA VIDA E NA ESCOLA
Uma criança deve levar a sua habilidade de produzir textos
orais para a sala de alfabetização e usar isso como ponte para
aprender a produzir os textos escritos nos estilos esperados pela
escola e pela cultura.
Porém, se em vez de fazer isso, a escola começar negando
essa habilidade e substituindo-a por atividades pedagógicas
equivocadas, como os exercícios de monta/desmonta a
linguagem, acabará passando ao aluno a idéia de que o texto que
ele fala (a língua que conhece) não tem nada a ver com o texto
que a escola exige dele (um uso um tanto misterioso de sua
própria língua).
O emprego de atividades que atomizam demais a linguagem,
como o uso dos "tijolinhos" das famílias de sílabas para
construir o "muro" chamado texto, acabam destruindo o texto na
sua essência, porque não se trata simplesmente de uma fileira
de palavras. Há regras muito rígidas de coerência e coesão que
estabelecem relações entre as palavras. Essas regras não estão
em palavras isoladas, mas nas pontes que ligam as palavras num
texto. Essas relações ou pontes jamais aparecerão num bá-bé-bi-
bó-bu.
Falar a linguagem da criança não significa ser confuso e
ensinar errado. O excesso de metáforas pode levar o ensino ao
caos. Algumas atividades são apresentadas como uma espécie
de jogo de adivinhação, o que
<202>
acaba insinuando a alguns alunos que a linguagem nada mais é
do que um jogo de azar. Há momentos em que a escola tem de
ser clara, objetiva, precisa, mesmo que alguns alunos não
compreendam bem o que se diz num primeiro momento.
Apesar do que ouve e faz na escola, a criança continua usando
a linguagem oral normalmente no seu dia-a-dia. Trazer para a
sala de aula essa atuação é muito importante para que o aluno
perceba que está lidando com o mesmo objeto e não com coisas
muito diferentes.
Uma criança pode lidar bem com seus textos orais na
alfabetização, quer falando, quer escrevendo. A partir deles,
pode aprender como a linguagem funciona, comparar sua fala
com outros tipos de texto, de estilos diferentes, e ir aprendendo
a produção de textos orais e escritos dentro das expectativas da
escola.
Além disso, pode lidar com conceitos e regras que se utilizam
de segmentos da fala sem perder de vista "o contexto maior". O
método do bá-bé-bi-bó-bu procura tirar da mira do aluno todas
as palavras não estudadas para não confundi-lo, quando na
verdade esse uso da linguagem sem um contexto maior torna
muito mais difícil o próprio estudo de unidades menores, que
precisam, às vezes, ser isoladas.
Para aprender a falar, as crianças não precisam estudar os
sons da fala isoladamente e depois agrupá-los, formando
seqüências que começam por padrões mais simples e vão até os
mais difíceis. As crianças aprendem a falar usando a linguagem
no seu contexto natural e na sua forma mais plena e abrangente
possível.
O mesmo pode-se aplicar à aprendizagem da escrita. Temos o
alfabeto com letras, mas escrevemos palavras e não apenas
letras, uma depois da outra. O método que propicia o aluno a
aprender letra por letra ou sílaba por sílaba, cria um contexto no
qual a linguagem não faz mais sentido. Fora desse âmbito, as
regras perdem seu poder explicativo. Esse procedimento de lidar
com a linguagem é sem dúvida uma das grandes causas da
dificuldade que algumas crianças apresentam para se
alfabetizar. O professor acha, às vezes, que está facilitando o
trabalho do aluno, quando na verdade o está complicando, a
ponto de impedir a aprendizagem.
Há muita diferença entre uma palavra-chave, geradora de
uma análise em sílabas, letras e sons, e um uso de palavras num
outro contexto, em que elas encontram
<203>
vida própria. As palavras-chave ocorrem de maneira arbitrária e
são pretextos com fundamento equivocado, quer do ponto de
vista lingüístico, quer do ponto de vista da motivação do ensino.
A escolha da palavra-chave gera um esvaziamento semântico, no
qual o próprio sentido literal soa estranho, como é o caso do
professor que diz "bebê" ou mesmo "cachorro". Os métodos
aconselham a narrativa de uma história em que a palavra-chave
representa o personagem central. Essas histórias em geral não
têm graça e soam ridículas. Esse uso da linguagem é típico da
escola.
Na vida real, entretanto, algumas palavras isoladas podem ter
um uso perfeito. Quando alguém escreve o nome de um
estabelecimento comercial, uma indicação, o rótulo de um
produto, podem-se encontrar palavras isoladas e usadas com
propriedade. Muitos professores já descobriram isso e fazem
seus alunos pesquisarem o mundo da escrita nas situações
cotidianas. Alguns professores inicialmente trabalham com os
nomes dos alunos, etiquetando cabides, material escolar,
carteiras, etc. Obviamente, o professor não vai ficar fazendo só
isso. Não há muito jeito de explicar os mecanismos da
linguagem, sobretudo a escrita, sem levar em conta o uso de
palavras isoladas.
Trabalhar só com palavras isoladas é tão errado quanto
trabalhar somente com textos. As duas coisas são
indispensáveis.
O PROFESSOR E O TEXTO DO ALUNO
O professor precisa tomar alguns cuidados. Em primeiro lugar,
deve incentivar seus alunos a ler e escrever textos, e não apenas
palavras isoladas. Sempre que possível, é melhor usar textos do
que palavras soltas. Em segundo lugar, o professor precisa dar
explicações, dizendo o que está fazendo e o que pretende fazer e
mostrando o funcionamento da linguagem basicamente através
de discursos orais. Mas, para tanto, é necessário fazer uns cortes
e pensar a linguagem de outro jeito, através de regras que
consideram uma questão por vez, de maneira isolada. Com
relação à escrita, essa abordagem é mais evidente. Desse modo,
o aluno fica sabendo que o estudo gramatical faz um uso
especial da linguagem.
<204>
O professor deverá mostrar ainda que seus alunos conhecem
muitas coisas sobre a linguagem, mas que não estão
acostumados a refletir sobre seu funciona mento. Para isso
deverão usar a capacidade de refletir e examinar o que
conhecem da linguagem através da simples introspecção da
própria fala. Nesse caso, a segmentação da fala em partes
arbitrárias ou motiva das mais por regras sintáticas do que pela
semântica é o que eles precisam levar em conta. Esses
conhecimentos estão implícitos na cabeça do professor, mas
precisam ser explicitados aos alunos. Aqueles que recebem esse
tipo de explicação antes das atividades lidam melhor com os
estudos depois.
Quando aprendem a falar e a ouvir a linguagem diante de
textos, as crianças passam a dominar não só os sons da fala e os
significados literais das palavras, mas também as formas de
argumentar, de construção da coerência e da coesão dos textos
e o uso literal e metafórico da linguagem. Num texto, esses
elementos são tão importantes quanto as palavras e os sons da
fala. Isso tudo é adquirido com a aquisição da linguagem oral.
Uma discussão entre os tais chamados "meninos de rua" mostra
como conseguem manipular a linguagem muito bem, mesmo
nunca tendo ido à escola.
Se a escola encarar o ensino da alfabetização dessa forma, irá
fazer com que os alunos não percam essas habilidades orais
quando forem aprender a ler e a escrever, pelo contrário, irão
enriquecê-las. Porém, se a escola reduzir a linguagem a
conjuntos de palavras isoladas, pedaços de palavras, esses
elementos básicos do discurso lingüístico desaparecem, e o
aluno começa a produzir textos que não passam de amontoados
de palavras e frases. A escola destrói algo que os alunos já
tinham e depois irá cobrar caro pela incapacidade de certos
alunos de produzirem textos aceitáveis, porque nesses textos
faltam justamente os elementos que foram negligenciados. Uma
metodologia inadequada pode fazer alguns alunos desmontarem
a linguagem e não saberem remontá-la corretamente, como
atividade escolar de produção de textos.
Para facilitar e se adequar aos métodos usados, os autores
das cartilhas e muitos professores inventam textos que
representam o pior exemplo que os alunos podiam ter do que
vem a ser um texto. Fazem isso por que pensam que os textos
dos escritores famosos são muito difíceis ou inapropriados para
os objetivos da lição, segundo as expectativas do método. Essa é
uma
<205>
visão equivocada. Primeiro, porque o método das cartilhas é um
grande equívoco em todos os sentidos. Depois, porque o texto de
um escritor famoso, que escreve para crianças, de fato envolve
os leitores, caso contrário, esses escritores não seriam famosos.
Escrever textos como esses é muito difícil e poucos conseguem
tal proeza. Mas os bons autores representam o que há de melhor
também para as crianças. Ouvir, ler e entender esses textos é
bem diferente de produzi-los. Se é difícil escrever um texto
desse tipo, isso não significa que seja igualmente difícil lê-lo ou
ouvi-lo. Os escritores famosos conseguem envolver seus leitores
de tal modo que eles nem se dão conta da forma do texto, muitas
vezes deixando-se levar apenas pela mensagem transmitida.
Um ensino baseado em palavras-chave e no bá-bé-bi bó-bu
exige uma repetição excessiva de elementos semelhantes para a
fixação da aprendizagem, ou simples mente para chamar a
atenção para uma determinada estrutura. Porém, um ensino que
está profundamente comprometido com a reflexão e com a
construção do conhecimento pela criança encontra nos textos de
escritores famosos o que há de melhor.
O PLANEJAMENTO DOS TEXTOS
Há muitas coisas que se podem dizer a respeito de textos. Os
estudos literários têm uma tradição milenar. A filosofia e, mais
recentemente, a lingüística moderna têm contribuído
enormemente para esse tipo de estudo. Tudo é muito importante
e muito interessante. As considerações que estamos fazendo, no
entanto, estão selecionando alguns aspectos tendo em vista o
trabalho de alfabetização nas primeiras séries escolares. Dentro
dessa perspectiva, um texto tem dois aspectos: um interno e
outro externo.
O aspecto interno é o planejamento textual, ou seja, juntar o
que se quer dizer com o modo com que isso vai ser dito,
seguindo uma determinada ordem. Todo texto pronto revela
essas noções. O aluno que vai escrever um texto precisa
aprender a fazer o planejamento textual. A idéia em si não é
novidade. Porém, a maneira como muitos livros e professores
tratam desse assunto revela problemas sérios.
<206>
Quando uma pessoa conversa, organiza o que diz em função
das idéias que tem e da reação das pessoas a seu redor, à
medida que vai falando. Quando escreve, não conta com a reação
de pessoas presentes como interlocutores. Por isso, é preciso
prever as reações possíveis dos leitores que são os
interlocutores ausentes na hora da produção do texto, mas que
entrarão na história desse texto mais tarde. Os textos não têm
apenas palavras e personagens da história; contêm também os
personagens da produção e da leitura do mesmo.
Além disso, quando se fala, não se volta atrás, a não ser em
continuação do que já foi dito. Quando se escreve, porém, pode-
se apagar e fazer tudo de novo, como se nada tivesse
acontecido. Assim, ao escrever, é possível fazer um
planejamento melhor daquilo que vai ser dito.
Esse planejamento realiza-se em duas etapas. Na primeira, o
escritor pensa e anota algumas idéias a respeito das quais vai
dissertar. Na segunda, o escritor faz seus comentários sobre o
que tinha assinalado, completando seu discurso. Terminada uma
versão, procede-se a uma correção e revisão, para melhorar o
que for possível. Cada texto acaba saindo de uma determinada
forma, dentre as inúmeras possibilidades de realização.
A prática tradicional de montar um roteiro para os alunos
escreverem textos ou simplesmente mandarem fazer, por
exemplo, cinco frases usando uma determinada palavra ou idéia
é uma concepção errada de planejamento de texto. Quando as
pessoas falam, não precisam disso e, quando vão escrever,
também não. A reflexão do indivíduo é que deve guiar o texto.
Na produção dos primeiros textos pelas crianças, não vale a
pena ficar tratando de planejamento de texto. Basta o professor
dizer para os alunos escreverem o que quiserem, do jeito que
quiserem, sobre o que quiserem ou sobre um determinado
assunto. O planejamento do texto deve ser ensinado depois que
os alunos já estiverem produzindo textos com certa facilidade e
estiverem familiarizados com textos que eles próprios leiam.
Quando for a hora, o professor deve cuidar para que os alunos
aprendam a escrever textos como um arquiteto que planeja a
casa que vai construir, acostumando-os a ter na mente uma
visão de qual vai ser o resultado final. Alunos que escrevem sem
planejamento freqüentemente fazem textos que são difíceis de
corrigir, tendo como única saída refazer tudo.
<207>
Faz parte da bagagem de conhecimentos educativos relativos
à linguagem, o treinamento para planejar o que se pretende
escrever. Além disso, a escrita, dependendo de quem é o
destinatário, exige do escritor a tomada de certas providências,
por exemplo, com relação à escolha do vocabulário, da
organização das idéias, do modo de argumentar ou conduzir as
idéias, e até mesmo do capricho e elegância da apresentação
gráfica. A cultura e a sociedade em que vivemos têm exigências
com relação aos textos que as pessoas escrevem, e a escola tem
a obrigação de discutir essa questão e mostrar aos alunos como
proceder, de maneira muito semelhante à discussão a respeito
da variação lingüística e da norma culta.
Os aspectos externos à estrutura dos textos referem-se à
forma de apresentação, quer do ponto de vista do modo como o
discurso é estruturado, quer do ponto de vista do modo como
esse discurso é transmitido. Podemos ver essa arquitetura do
texto de outro jeito. Quanto à forma, um texto pode ser uma
poesia, uma prosa, um esquema, etc. Do ponto de vista do estilo,
pode ter uma linguagem formal ou informal, mais arcaica ou
mais cheia de gíria, mais típica de uma região ou de outra, de
uma categoria social ou de outra, etc. Sob outra ótica, pode ser
do tipo dissertativo, narrativo, como pode ser uma carta, uma
descrição, uma propaganda, um informativo com instruções, etc.
Outro aspecto externo aos textos é a forma como são
transmitidos. Um texto oral pode ser apresentado em diferentes
dialetos e com interpretações mais teatrais ou mais próximas de
uma fala comum. Um texto escrito tem características próprias
de organização espacial sobre o papel ou o material sobre o qual
se escreve, além das letras empregadas. Aprender a apresentar
trabalhos acabados com a sofisticação necessária também deve
ser uma preocupação da escola, desde as atividades de
alfabetização. Desde cedo, os alunos precisam aprender os bons
hábitos, e os professores das séries posteriores também
deveriam continuar exigindo uma boa apresentação para os
textos produzidos pelos alunos. Essa não é uma tarefa exclusiva
da alfabetização.
É muito importante que o professor peça aos seus alunos para
tomarem a iniciativa e escolherem por si o que desejam fazer, o
que acham que podem fazer, produzindo textos livres ou
espontâneos. O professor deve também apresentar textos de
tipos diferentes, compara-los,
<208>
mostrar o que caracteriza um tipo e o que o diferencia dos
demais, e incentivar seus alunos a produzirem todos os tipos de
texto.
A PRODUÇÃO DE TEXTOS NA ALFABETIZAÇÃO
MÁSSINI-CAGLIARI, 1996a. e 1997a; CAGLIARI, 1985b.
Se o professor alfabetizador deve trabalhar, sempre que
possível, com textos, os alunos também devem estar sempre
envolvidos com a problemática da linguagem, analisando-a
dentro de um contexto real de uso, ou dentro da própria
linguagem, como é o caso do estudo das relações entre letras e
sons. Isso faz com que os alunos passem da habilidade de
produzir textos orais para a habilidade de produzir textos
escritos; da habilidade de produzir textos no estilo da fala do
dia-a-dia para a habilidade de produzir textos segundo as
exigências escolares e culturais. Essa liberdade de usar uma
língua que o aluno já domina para estudar permite que
ele escreva sem medo de dizer o que pensa e sem medo de errar.
O que os alunos fazem produzindo textos serve, ainda, para
mostrar para o professor o que eles já sabem e o que precisam
aprender no processo de aquisição da leitura e da escrita. Desse
modo, acompanhando o desenvolvimento de cada um e da classe
nas suas necessidades gerais, o professor pode programar
melhor suas aulas e conduzir adequadamente o processo de
ensino e de aprendizagem.
Para um bom professor deve ser tão importante o que o aluno
acerta quanto o que ele erra. Se o ensino for muito dirigido, se o
aluno só fizer segundo o modelo, só trabalhar com os elementos
já dominados, o professor recebe apenas a reprodução de algo
que ele passou para os alunos. O que de fato eles pensam não
tem chance de aparecer. Os textos livres feitos espontaneamente
pelos alunos revelam o que realmente sabem e como operam
com esses conhecimentos. Analisando o que os alunos elaboram,
o professor acaba descobrindo, como os lingüistas, quais as
hipóteses que regem o comportamento lingüístico das crianças e
quais as regras que utilizaram na sua produção. O erro é mais
revelador do que o acerto. O acerto pode ser fruto do
acaso, mas o erro sempre é fruto de uma reflexão, de um uso
indevido de algum conhecimento.
<209>
Dentro dessa visão da produção de textos na alfabetização,
logo se vê que os alunos farão apenas pequenos textos no
começo, com uma ou duas frases. Depois, irão tentando escrever
mais, à medida que ficarem mais fluentes na escrita.
Certamente, os primeiros textos vêm sobrecarregados de erros
de todos os tipos, O que vale é o trabalho, não o resultado em si.
Por isso, o professor não irá corrigir esses primeiros textos. Irá
simplesmente analisá-los, discuti-los com os alunos, mostrando
algumas coisas interessantes e guarda-los no dossiê de material
de cada aluno. Algumas anotações serão feitas tendo em vista a
programação de aulas futuras.
A CORREÇÃO DE TEXTOS
Depois que os alunos começarem a ficar mais hábeis e a
produzir textos mais longos e com mais facilidade, o professor
começará a exigir o planejamento textual e, sobretudo a
autocorreção. Essa autocorreção pode ser feita em duplas,
individualmente ou até mesmo coletivamente. Nem todo texto
precisa ser corrigido, alguns são feitos simplesmente para que o
aluno desenvolva mais fluência ao escrever. De modo geral, todo
texto que deverá ser lido por outra pessoa e quando for
divulgado, precisará ter passado por rigorosa correção.
Feito o texto, o professor pede para os alunos corrigirem e
melhorarem tudo o que quiserem. Em seguida, discutem o texto
em duplas e chegam a uma versão definitiva. Finalmente, o texto
será revisado pelo professor. Somente então, o aluno o passa a
limpo, produzindo o texto definitivo.
O professor precisa ensinar aos alunos como fazer a
autocorreção. Problemas de coesão, coerência ou uso de
determinadas estruturas sintáticas precisam ser tratados
diretamente com o professor. Na alfabetização, o mais
importante é cuidar da ortografia.
O professor precisa ensinar os alunos a terem dúvidas, a
desconfiar se algo está certo ou errado. Aprender a ter dúvidas
ortográficas é tão importante quanto aprender a escrever, O
aluno deve saber, a partir de uma análise pessoal de seus
conhecimentos, se, ao escrever uma palavra, todas as letras
estão corretas ou não.
<210>
Um aluno pode não apresentar nenhuma dúvida ortográfica ao
escrever a palavra PATO. Ele a escreve e vai adiante. A próxima
palavra pode ser GIRAFA. Aqui, se não tiver certeza absoluta de
que GIRAFA se escreve com G, ele precisará olhar no dicionário
ou perguntar a quem sabe. Depois, poderá escrever a palavra
GENTE e não ter dúvida ortográfica, embora o caso seja
semelhante ao da GIRAFA. O professor deveria reservar algumas
aulas, de vez em quando, para ensinar os alunos o que pode
suscitar uma dúvida ortográfica e o que não. Não adianta pedir
para os alunos fazerem autocorreção, se eles não souberem o
que corrigir.
Do ponto de vista do aluno, não existe professor mais
desagradável do que aquele que não sabe ler o texto de um
aluno, principalmente quando o texto apresenta dificuldades.
Não basta o professor dizer que o texto está ruim. É preciso
fazer uma análise e mostrar por que está ruim e, especialmente,
o que fazer para que o texto fique bom. Alguns professores lêem
os textos de seus alunos (ou simplesmente o que os alunos
escrevem em ditados, cópias, etc.), como se a escrita fosse uma
transcrição fonética da fala. Essa é uma forma desrespeitosa de
tratar o trabalho da criança. O professor não faz isso com os
textos dos livros. O professor pode escrever TIA e falar "tchia",
pode escrever BALDE e falar "baudji", mas se o aluno pensa que
se escreve PRANTA, o professor não lê "planta", achando que a
única forma possível de leitura, nesse caso, é "pranta".
Quando erra na grafia, o aluno não está querendo escrever
conforme a sua própria pronúncia. Isso acontece porque ele
ainda não domina o sistema de escrita e, sobretudo, a ortografia
das palavras. O professor pode perfeitamente ler um texto de um
aluno em que aparecem muitos erros, em conformidade com a
norma culta. Ao fazer isso, nota-se quase sempre que os textos
espontâneos são muito mais interessantes do que parecem,
muitas vezes, a alguns professores.
Resultado semelhante surge quando o professor pede para o
aluno ler o que escreveu, e ele faz uma leitura fluente. O texto,
então, torna-se outro, mais interessante. Um professor jamais
pode dizer para o aluno que ele leu errado, porque escreveu uma
coisa e leu outra. Afinal, a escrita existe para representar a fala e
usamos um sistema ortográfico para neutralizar a variação
dialetal. O que o aluno escreveu representa a sua fala e, se leu
daquele jeito, é porque ele quer que seja lido daquele jeito. Seus
erros são de ortografia e não de transcrição
<211>
fonética. Se quisermos que o aluno respeite o que ensinamos,
precisamos respeitar o que o aluno sabe, o que aprende e,
sobretudo, seu esforço para melhorar.
Um bom professor também está atento ao que acontece com
seus alunos nas diferentes atividades que eles realizam,
observando o que os ajuda e o que os atrapalha. Por exemplo, é
muito evidente que os alunos que fazem um desenho antes (ou
colam uma ilustração) e depois escrevem um texto são mais
inclinados a produzir textos menos interessantes, em que
predominam descrições de personagens e ações, resultando
quase sempre num conjunto de frases soltas. O ideal é pedir
para o aluno fazer o texto e depois ilustrá-lo. Nesse caso, há
menos problemas de coesão, e os textos são em geral mais bem
estruturados e desenvolvidos. Alguns alunos gostam de
sugestões, outros não. Alguns temas trazem mais motivação
para os alunos, outros menos ou, até mesmo, são do desagrado
de certas crianças. É necessário habilidade para lidar com cada
caso.
TEXTOS SIGNIFICATIVOS PARA OS ALUNOS
A prática de produção de textos, que é uma das atividades
mais importantes das aulas de português, não deve restringir-se
ao trabalho do aluno, unicamente porque o professor assim
ordenou, sob pena de baixar a nota.
Na alfabetização, a prática da produção de textos tem como
objetivo ensinar os alunos a passar seus conhecimentos sobre a
linguagem oral para a forma escrita. Numa segunda etapa, se
cuidará para que o aluno aprenda a produzir textos de todos os
tipos, conforme as exigências culturais e escolares.
Há ainda outro aspecto importante. Ninguém fala para si
próprio e, por razão semelhante, ninguém escreve apenas para
si. A fala e a escrita precisam de interlocutores ou de leitores. É
lamentável o que fazem alguns professores que passam
redações simplesmente para ocupar o tempo de seus alunos ou
dar notas. O aluno acaba tendo como interlocutor apenas o
professor, que corrige o que ele faz, ou apenas a nota que
recebe.
<212>
Desde a alfabetização, o professor deve desenvolver
atividades de produção de textos dentro de um contexto no qual
o aluno tenha um interlocutor e um leitor,real para o que produz,
além do professor que corrige. No início da alfabetização, os
alunos irão compor textos com o objetivo de aprender a
escrever. Esses textos são mais um pretexto para a escrita do
que uma produção para ser lida pelos outros. Muitas vezes, os
alunos irão escrever anotações em sala de aula. Esses textos são
pessoais e não precisam interessar a outras pessoas.
As atividades de produção de texto propriamente ditas devem
ser feitas sempre com possíveis leitores em mente. Isso se
consegue redigindo textos para finalidades específicas. Desde a
alfabetização, os alunos podem fazer textos que irão ser
reunidos num livrinho de histórias, de poesias, de pesquisas da
classe, etc. A redação de cada aluno irá seguir instruções no que
se refere aos aspectos externos do texto. Os alunos sabem que
esses livrinhos vão ser reproduzidos em xérox, por exemplo, e
cada qual terá um exemplar para poder mostrar em casa aos
pais, parentes e amigos. Antes disso, os colegas da classe já
terão lido os textos. Nesse tipo de atividade, já aparecem alguns
leitores em potencial, além do professor. Isso dá uma nova
dimensão ao trabalho do aluno. Ele passa a se interessar mais
pela atividade e se esforça cada vez mais para apresentar um
bom trabalho. Os trabalhos que não forem aproveitados para
formar o livrinho da classe serão usados para formar livrinhos
individuais de cada aluno, no final de cada semestre.
Além dos livrinhos, os alunos podem fazer textos para um
jornal da classe. Alguns professores gostam mesmo que ele seja
semelhante a um jornal de verdade que se compra em bancas de
revista. Pega-se uma folha de papel grande e divide-se o espaço
em partes, como nos jornais comuns. Cada espaço será
reservado para um tipo de texto e de ilustração. Cada aluno ou
grupo de alunos ficará encarregado de um espaço. Completada a
tarefa, cola-se cada trabalho no respectivo espaço e tem-se uma
folha de jornal. Os assuntos podem ser notícias internacionais,
do país, da cidade, da escola, bem como esportes, moda,
ocorrências policiais, cultura, televisão, fofocas, etc.
Os alunos podem fazer também revistas à moda dos jornais,
imitando algum modelo. Podem ser revistas em quadrinhos,
propaganda para televisão, noticiários que
<213>
depois serão lidos em aula, etc. Uma outra idéia é escrever
pequenas peças de teatro para serem encenadas ou quadros do
tipo que se vê na televisão. Podem fazer documentários que
serão apresentados ou até mesmo pequenas novelas.
Concluindo, a escola deve imitar a vida, e o professor lança mão
de inúmeras manifestações que requerem a produção de textos,
as quais propiciam uma prática mais significativa e interessante
para os alunos.
Certa ocasião, fui a uma escola que não sabia o que ensinar
aos alunos nas aulas de Problemas Brasileiros de segunda série.
Sugeri, como atividade, que os alunos fizessem pesquisas sobre
determinados assuntos e escrevessem um livrinho com suas
anotações, O tema escolhido, então, foi o trânsito. Cada aluno
entrevistou motoristas e pessoas para saber o que elas achavam
do trânsito, o que havia de ruim, o que podia ser melhorado. Eles
próprios deram sua opinião. De repente, todos passaram a se
interessar pela atividade até a conclusão do livrinho.
Atividades de produção de texto podem estar ligadas a muitas
matérias e a uma infinidade de conteúdos, não só na
alfabetização. Se os alunos de matemática, em vez de ficarem só
fazendo problemas de matemática, pesquisassem, por exemplo,
a história da matemática e elaborassem livrinhos relatando suas
descobertas, a matéria passaria a ter um gosto especial para
muitos alunos, e o ensino se tornaria muito mais fácil e eficiente.
Há professores que desenvolvem um belo trabalho de
produção de poesias ou de letras de músicas com seus alunos. O
que não se pode fazer na escola é simplesmente mandar o aluno
fazer uma redação. Essa atividade precisa ser feita dentro de um
outro contexto, que não seja apenas o de ganhar uma nota.
A CARTILHA E A PRODUÇÃO DE TEXTOS
O método das cartilhas, em geral, não propõe a produção de
textos, menos ainda textos espontâneos e livres. Os alunos só
escrevem frases, empregando as palavras já dominadas,
juntando-as do jeito que acharem melhor. A própria cartilha dá
exemplos de textos assim.
<214>
Além disso, o método das cartilhas gosta muito de controlar
tudo o que os alunos produzem, fazendo com que todos os
alunos façam suas tarefas do mesmo modo, seguindo o mesmo
caminho.
De acordo com o método das cartilhas, alguns professores
usam uma estratégia indesejável para induzir os alunos a
produzir o que eles chamam de "texto". Para tanto, dão roteiros.
Após a indicação do título, vem uma série de perguntas a que o
aluno deverá responder: o quê, quem, quando, onde, como, por
quê, não se esquecendo de que o texto deve ter começo, meio e
um fim com uma lição de moral para qualquer tipo de história...
As respostas a esse esquema produzem o texto esperado.
Quando falam, as crianças não precisam desses esquemas ou
roteiros. Não precisam se preocupar com começo, meio e fim. O
texto sai espontaneamente, de acordo com as idéias que têm na
cabeça. Quando elas forem escrever seus textos, devem agir do
mesmo modo. A marca da individualidade faz de um simples
texto um trabalho original, e se seu estilo agradar a uma
comunidade, torna-se um texto literário.
Se a escola insiste em fazer com que os alunos escrevam,
guiando-se por esquemas como os mencionados acima, eles
acabarão produzindo textos estereotipados, que serão
severamente criticados, depois, nas séries mais adiantadas, pela
própria escola. Aqui, como em outras ocasiões, a escola ensina
os alunos a fazerem suas tarefas de um jeito e, depois, cobra
deles justamente o contrário. O método das cartilhas quer que os
alunos escrevam textos seguindo uma forma inadequada e
depois a escola vai exigir que eles escrevam bem, com
criatividade e arte.
Outra forma de uso de uma camisa-de-força para a produção
de textos são os exercícios com lacunas para completar. Alguns
livros antigos faziam esse tipo de exercício, de tal modo que
numa lição o aluno completava as frases com nomes
(substantivos), noutra com adjetivos, noutra com verbos e assim
por diante.
Tais exercícios podem ser feitos esporadicamente. O
professor, no entanto, cuidará para que os alunos não pensem
que eles estão produzindo textos, mas que estão apenas fazendo
os exercícios de busca de palavras apropriadas para certos
contextos. A atividade de produção de textos Será feita de outra
maneira e não se confundirá com isso.
<215>
Outra atividade que não pode ser confundida com a produção
de textos é a formação de frases a partir de uma palavra dada.
Por exemplo, o professor escreve no quadro-negro uma lista de
palavras: pedreira, água, alto, mexer — e os alunos deverão
formar frases usando essas palavras. No final, terão cinco frases.
O professor deverá estar atento para distinguir esse tipo de
trabalho — que serve apenas para mostrar aos alunos que se
podem inventar inúmeras frases a partir de uma mesma palavra
— da produção d textos.
Essas atividades sem a produção concomitante de textos
espontâneos (e distinguindo-se uma coisa de outra) podem
induzir o aluno a uma dependência nefasta dos famosos
esquemas de produção de frases, destruindo sua criatividade e
inibindo sua capacidade de produção de textos, alcançada
juntamente com a aquisição da linguagem oral quando ainda era
bem pequeno.
Tenho diante de mim o livro da 2ª série, de Antônio Pedro
Wolff, intitulado Composições escolares, 7ª ed., 1950. Esse livro
traz as atividades com que o professor ensinava a prestar
atenção à elaboração de frases e textos, seguindo o velho
esquema de responder a perguntas. Para se ter uma idéia mais
completa, seguem os títulos dos capítulos:
— completar sentenças. — Descrição de objetos por meio de
— Formação de sentenças interrogativas, perguntas.
— Formação de sentenças exclamativas. — Descrição de
animais por meio de
— Responder a perguntas. perguntas.
— Responder a questionários referentes a — Descrição de
gravuras com assuntos de outras disciplinas. questionário.
— Reprodução de contos com — Descrição de gravuras sem
questiona questionários. — Redação de envelopes.
— Reprodução de contos sem questionário. — Redação de
cartões de visita.
— Passar quadrinhos para prosa. — Redação de bilhetes.
Esse programa mostra como os alunos aprendiam a redigir
antigamente. O objetivo de trazê-lo aqui não foi matar as
saudades. Ainda hoje se ouve com freqüência professores
dizerem que antigamente as pessoas aprendiam muito bem com
as cartilhas. Essa argumentação leva em conta apenas os alunos
que aprenderam, esquecendo-se dos que não aprenderam,
aprenderam mal e tiveram de interromper os estudos. Esse tipo
de argumento saudosista é uma forma de justificar o mal do
presente com uma utopia do passado.
<216>
Outra prática consiste em pedir para os alunos escreverem
uma história depois de ouvirem um texto várias vezes. Contar
com as próprias palavras uma história que o professor leu para a
classe ou que eles leram em algum livro às vezes ajuda a
escrever com mais tranqüilidade, com a segurança de que será
um bom trabalho. A verdade não é bem essa, mas a expectativa
dos alunos de que assim farão um bom trabalho ajuda, em geral,
a conseguir melhores resultados.
O excesso dessas atividades, porém, pode criar preguiça
intelectual e favorecer a idéia de que se pode fazer um texto
desde que haja um modelo prévio. Esse tipo de atividade
facilmente descamba na idéia de que a produção do aluno
depende de um modelo, como ensina o método das cartilhas. E
isso, como já vimos, é desastroso.
A OPÇÃO PELOS TEXTOS ESPONTÂNEOS
Recentemente, muitos professores acabaram se convencendo,
pelas evidências encontradas no próprio trabalho, de que vale a
pena fazer com que os alunos produzam textos espontâneos
variados. Surpreenderam-se com os resultados. Pensavam que
seus alunos, por serem pobres e oriundos de famílias
problemáticas e carentes, não seriam capazes de escrever belas
históri as, como os alunos bem-nutridos e bem-vestidos das
ricas escolas particulares.
Entretanto, certos professores têm medo de entrar nesse mundo
porque o acham muito caótico, uma vez que sempre trabalharam
sob rígido controle das atividades produzidas pelos alunos, para
que eles não errassem e, conseqüentemente, não fixassem o
erro. Com muito bom senso e um pouco de coragem, talvez
começando como atividade paralela às demais atividades
tradicionais, o professor pode propor a redação de textos
espontâneos a título de experiência para checar os resultados.
É preciso tomar certos cuidados, nesses casos, já que os
alunos, acostumados a trabalhar sob um rígido controle por
parte do professor e do método, sentem-se inibidos, no início, a
fazer, por exemplo, textos espontâneos. Lamentam, dizendo que
assim não dá para fazer
<247>
nada (e com razão, pelo que aprenderam até então). O
professor deve conversar sobre esse tipo de atividade, mostrar
suas vantagens e deixar que os alunos encontrem aos poucos um
novo caminho para produzir seus textos. O tempo como sempre
é um fator importante, e o professor não deve desanimar com as
dificuldades iniciais.
Um outro tipo de comentário comum, quando se discutem
questões como a produção de textos espontâneos, encontra-se
na seguinte afirmação: "Eu sempre fiz assim e não deu certo...
não é bem assim... os bons alunos aprendem de qualquer jeito e
os maus alunos não aprendem nunca". Em primeiro lugar,
gostaria de dizer a esses professores que é muito estranho o
comportamento relatado: se eles chegavam sempre à conclusão
de que não adiantava ensinar desse modo, porque repetiam
sempre as mesmas estratégias? Em segundo lugar, se algum
aluno não aprendia, por que o professor não foi estudar as
razões mais profundas e verdadeiras do fracasso? Em terceiro
lugar, tenho sérias dúvidas com relação à afirmação de que eles
"faziam sempre assim", querendo dizer que, de fato, não
seguiam o método do bá-bé-bi-bó-bu e sempre trabalharam com
a produção de textos, tal qual sugerida por nós.
Um comentário diferente, mas que ainda demonstra certa
relutância em levar para a prática escolar da alfabetização a
produção de textos espontâneos, vem daquele professor que
declara que pediu para seus alunos produzirem textos
espontâneos e eles escreveram textos à moda das cartilhas, com
todos os problemas que já tinham antes, usando o método das
cartilhas. Em outras palavras, o professor quer dizer que, mesmo
deixando seus alunos produzirem textos espontâneos, eles
acabam reproduzindo os erros e tendo dificuldades semelhantes
às que ele encontra com aqueles alunos com os quais não
costuma aplicar esse tipo de atividade. Portanto, tanto faz agir
de um jeito ou de outro.
Na verdade, não é bem assim. A produção de textos
espontâneos variados aparece aqui dentro de um contexto, no
qual os alunos são alfabetizados sem o método do bá-bé-bi-bó-
bu. E isso faz muita diferença. Um aluno que produz textos
espontâneos dentro do contexto de ensino das cartilhas não
escapará dos malefícios do ba- bé-bi-bó-bu, pelo menos em
parte e em certas ocasiões.
O fato de redigir textos espontâneos é uma janela para um
mundo novo, mas o acesso a ele ainda depende de cortar certas
amarras. Se o professor analisar o
<218>
que seus alunos fazem seguindo as instruções dos exercícios
estruturais, dos ditados, e comparar com o que fazem nos textos
espontâneos vai começar também a ver as diferenças entre
esses dois tipos de abordagem do ensino da escrita. A grande
incidência de erros nos textos espontâneos mostra mais
claramente como o aluno pensa, como faz para escrever, que
tipo de solução dá para suas dúvidas. Conseqüentemente,
permite ao professor conhecer melhor seus alunos e ensinar o
que for preciso de maneira objetiva.
Por outro lado, certos erros vão evidenciar que, apesar de o
aluno acertar tudo no ditado, ele erra ao escrever
espontaneamente, o que denuncia que o ditado não é uma boa
forma de avaliação (e pior ainda de ensino), O professor pode
constatar que o aluno levou para o texto espontâneo frases ou
expressões estereotipadas, que aprendeu na cartilha. Começou
escrevendo um texto interessante e foi até certo ponto. Depois,
escreveu frases soltas para completar o texto. Como se vê, uma
simples abertura no método das cartilhas já é muito interessante
para fazer uma crítica dessa prática educativa e possibilitar uma
melhor compreensão do processo de aprendizagem do aluno, de
como ele está construindo os conhecimentos a respeito da
escrita, da leitura e da fala.
Para ilustrar os comentários expostos acima, será
apresentada, a seguir, uma série de textos dos mais variados
tipos e origens. Será feito um comentário geral sobre cada texto
e, depois, os erros serão analisados, em busca de uma
explicação. Haverá também sugestões de como ensinar o aluno a
melhorar, errando cada vez menos no futuro, até dominar a
produção de textos escritos.
EXEMPLOS DE TEXTOS DE
CARTILHAS E OUTROS
As cartilhas antigas em geral dispunham abaixo da lição das
letras algumas frases para serem lidas, estudadas e copiadas.
Essas frases não pretendiam formar um texto, eram apenas
exemplos para leitura, cópia e ditado. Os textos vinham ao final
da cartilha, quando o aluno já sabia ler e podia fazê-lo sem se
apegar apenas às palavras já dominadas de cada lição (todas de
uma só vez).
<219>
Vejamos o que acompanha o estudo de uma letra e um texto da
Cartilha do povo: para ensinar a ler rapidamente, de Manuel B.
Lourenço Filho.
LOURENÇO FILHO, 1951.
33ª lição — A zebra
1. O rapaz estudou a lição do exame.
2. Devemos seguir os bons exemplos.
3. O besouro zumbe; o sapo coaxa; o burro zurra.
4. Ponha o vidro de xarope debaixo da luz.
5. Tio Xerxes comprou uma caixa de charutos.
6. Zezé não zela de suas coisas.
A-le-xan-dre A-ta-xer-xes Zu-lei-ca
Nota-se que o autor está preocupado não só com as relações
entre letras e sons, mas também com as relações entre sons e
letras, ou seja, não só com a leitura que as letras têm, mas com
o trabalho que a criança tem de passar da fala para a escrita. Por
isso, aparecem exemplos de palavras com a letra Z e exemplos
em que há o som de "zê", porém, escritos com outras letras,
como o X e o S.
Não há excesso de palavras que têm o mesmo som, como em
outras cartilhas, em que se encontram exemplos como "Ivo viu a
uva". Para o autor, uma ou duas ocorrências de um fato sob
estudo numa frase bastam.
Da lição 37 em diante, aparecem cinco textos no final da
cartilha: "Já sei ler", "A galinha esperta" (fábula), "A nossa
bandeira", "Minha Terra" (com os nomes dos estados) e a letra
do Hino Nacional. O primeiro texto é este:
1. Já sei ler!
2. Já sei ler nos livros, nas cartas e nos jornais.
3. Que bom! Posso agora aprender lindas histórias.
4. Posso conhecer minha terra, o meu querido Brasil lendo
histórias de viagens.
5. Posso saber o que outros homens fizeram e pensaram há
muito tempo.
6. Posso escrever cartas aos meus amigos e parentes.
7. Como é bom saber ler!
8. Todos os brasileiros precisam saber ler.
9. O brasileiro que não sabe ler não é bom brasileiro.
10. Devemos ensinar a ler aos que não sabem.
Como é bom saber ler!
O grande problema desses textos dados como exemplos nas
cartilhas é que o aluno acaba concluindo que é desse modo que
se produz um bom texto.
<220>
Nota-se que o autor escreveu algumas frases a res peito de
um assunto, mas não redigiu um texto. Até mesmo a disposição
das frases, com números e paragrafação, denota isso. Como o
texto vem ao final da cartilha, o autor tomou a liberdade de
escrever sem se preocupar com o ensino de determinada letra,
nem com as noções já dominadas, uma vez que ele supõe que o
aluno, nessa altura, seja capaz de ler qualquer coisa. Apesar
disso, achou conveniente, por bom senso, escrever um texto
"fácil". Na verdade, nada prova que esse tipo de texto seja "mais
fácil" do que uma poesia do livro Ou isso ou aquilo, de Cecília
Meireles. Como falantes nativos de uma língua, os alunos são
capazes de enfrentar uma variedade enorme de textos. A
restrição com relação à escrita reside apenas nos casos em que
os alunos não sabem decifrar determinadas letras ou conjuntos
de letras, dificultando ou impossibilitando a leitura. Depois que
eles decifraram a escrita, o texto pode ser qualquer um desde
que a criança tenha condições de entender. Ou se tem um texto
incompreensível para a criança (como um texto científico
especializado) ou se tem um texto que elas podem entender
(como qualquer texto destinado às crianças). Não é possível,
cientificamente falando, dizer se o texto da cartilha, apresentado
acima, é mais fácil ou mais difícil do que o poema de Cecília
Meireles citado a seguir:
O Menino azul
O menino quer um [burrinho] para passear. Um burrinho manso,
que não corra nem pule, mas que saiba conversar.
O menino quer um [burrinho]
que saiba dizer o nome dos rios, das montanhas, das flores
— de tudo o que aparecer.
O menino quer um [burrinho]
que saiba inventar histórias bonitas com pessoas e bichos
e com barquinhos no mar.
E os dois irão pelo mundo
que é como um jardim
apenas mais largoe talvez mais comprido e que não tenha fim.
(Quem souber de um [ burrinho desses, pode escrever para a
Rua das Casas, Número das Portas, ao Menino Azul que não
[sabe ler.)
Intencionalmente, a poetisa faz versos de poucas palavras
para facilitar a leitura e, assim, não precisou escrever números
antes das frases. Esse poema é um
<221>
dos que não se prendem, de maneira típica, ao ensino de
determinada letra ou som, como ocorre com outros poemas do
livro. Por exemplo, o poema a seguir salienta o uso da letra C
com o som de "kê":
Colar de Carolina
Com seu colar de coral, Carolina corre por entre as colunas da
colina.
O calor de Carolina cobre o colo de cal, torna corada a menina. E
o sol, vendo aquela cor do colar de Carolina, põe coroas de coral
nas colunas da colina.
O poema de Cecília Meireles assemelha-se à idéia das cartilhas
de ficar repetindo um determinado som ou letra, mas sua arte
acaba produzindo um texto bem-acabado e sugestivo, bem
diferente dos exemplos da cartilha, como se pode ver,
comparando o texto anterior com este outro:
< BRAZ 1967, p. 10.
A casa é de Lalá.
É uma casa bonita.
A casa tem copa.
A copa tem caco.
O texto acima é típico das cartilhas modernas: o autor escreve
frases soltas, utilizando-se apenas de palavras já estudadas ou
formadas com sílabas geradoras já dominadas. É óbvio que o
autor da cartilha sabe que seu objetivo é apenas ensinar o aluno
a usar os conhecimentos já estudados para ler e escrever e,
como o método está organizado de modo hierárquico,
rigorosamente estabelecido e controlado na sua progressão, o
autor intui que fazendo textos apenas juntando sílabas
geradoras para formar palavras, e juntando palavras para formar
frases, acabará tendo uma "espécie" de texto ao escrever
algumas frases.
Diante desse material apresentado pelas cartilhas e ouvindo o
professor propor atividades de escrita com essa história, ou esse
conjunto de frases, o aluno passa a entender que, para as
finalidades da escola, é assim que se faz um texto. E assim
continuará fazendo, até que encontre um professor que chame
sua atenção, dizendo que ele não pode escrever desse modo ou
simplesmente
<222>
dando-lhe uma nota baixa. Como se vê, é desastroso apresentar
esse tipo de material aos alunos, justamente quando eles estão
querendo saber como a escola lida com a linguagem oral e
escrita. Atividades iguais a essa significam a transmissão de uma
concepção errônea do que seja um texto e até mesmo do que
seja a linguagem oral e escrita. Como o método obriga o aluno a
não sair do esquema e a repetir o modelo, ele acaba entendendo
que, além de se alfabetizar, precisa produzir textos como os da
cartilha e lidar com a linguagem à semelhança dos exercícios a
que está habituado a fazer dentro da escola.
Para poder comparar os textos dos alunos com os textos das
cartilhas, começaremos apresentando alguns outros textos
típicos, produzidos dentro do método do bá-bé-bi-bó-bu,
extraídos da cartilha Coração infantil. cartilha de alfabetização
rápida, de Vicente Peixoto.
(Passamos a numerar os textos para facilitar os comentários.)
PEIXOTO, 1950,p. 8. >
Texto 1 — 1ª Lição
1. O boi bebe.
2. O boi baba.
3. O boi bebe e baba.
4. O boi bebeu e babou.
PEIXOTO, 1950,p. 14. >
Texto 2 — 4ª Lição
1. O boi de Fábio fugiu.
2. Fábio foi cedo à cidade.
3. A geada "caiu" cedo.
4. Fábio fugiu da geada.
PEIXOTO, 1950, p. 30. >
Texto 3 — 1ºª Lição
1. O sapo pula na rua.
2. A rua é de subida.
3. O sapo sobe a rua.
4. Romeu ri do sapo.
PEIXOTO, 1950, p. 46. >
Texto 4— 4ª Lição da Segunda Parte
1. Oh! que bonita blusa!
2. É a blusa de Carlos.
3. A blusa de Carlos não é de brim.
4. A blusa de Carlos é de seda.
5. É de seda branca.
6. Como cai bem no ombro!
7. Que bom alfaiate é o pai de Joel!
PEIXOTO, 1950, p. 70. >
Texto 5— 14ª Lição da Segunda Parte (última lição)
1. Os exames estão próximos.
2. Xerxes estuda dia e noite.
<223>
3. Ele fixa a atenção nas lições.
4. Por isso explica bem o que estuda.
5. No último exame fez provas exatas.
Não adianta alguém dizer que o autor não queria fazer textos,
apenas frases para treinar os alunos. Quando se analisam esses
textos, percebe-se logo que o autor quis, na verdade, escrever
frases, mas procurou uma ligação semântica entre elas,
discorrendo sobre um certo tema e, por isso, o aluno acaba
entendendo que se trata de um texto, e não simplesmente de
frases soltas. Esse é um mau exemplo que o livro didático dá ao
aluno. Se as frases fossem totalmente desligadas
semanticamente, seria mais inofensivo.
No texto 4, o autor usa uma informação dada anteriormente —
de que o pai de Joel é alfaiate — para tirar a conclusão do texto.
Para quem lê esse texto sem ter lido os anteriores, a frase 7,
QUE BOM ALFAIATE E O PAI DE JOEL!, é interpretada como algo
que não faz sentido no texto, uma vez que se falava da blusa e
acabou-se tirando uma conclusão a respeito do pai de joel. Aqui,
como no método do bá-bé-bi-bó-bu, só se trabalha com coisas já
vistas e já dominadas, mesmo que de maneira desconexa (falta
de coerência). O autor pressupõe que o aluno esteja a todo
instante remetendo suas idéias a tudo o que já foi visto antes.
Esse conjunto de informações das coisas já vistas é, na verdade,
um contexto lingüístico que cresce à medida que o estudo
progride, e com referência ao qual tudo é construído, devendo
todo significado ser entendido a partir desse quadro semântico e
discursivo compartilhado pelo livro e pelos alunos. Quem lê o
texto sem saber dessas informações, fica surpreso com a falta de
coerência entre as idéias.
Alguns autores têm uma preocupação excessiva em usar a
linguagem escrita de maneira lógica, do ponto de vista
semântico. É por essa razão que o autor usa aspas na palavra
CAIU, no texto 2, uma vez que a geada não cai, por exemplo,
como a neve, mas se forma com a umidade. Entretanto, a
linguagem é freqüentemente usada de maneira metafórica, e não
lógica (veja, por exemplo, a expressão "pé de mesa"). Dentro
das preocupações subjacentes do autor, ele também deveria
colocar entre aspas a expressão FUGIR DA GEADA, logo abaixo,
porque ninguém, logicamente, foge de geada. Esse texto tem,
ainda, outro problema de lógica: se Fá bio foi cedo à cidade, e se
a geada caiu cedo, como foi possível Fábio fugir da geada? No
texto 4, frase 6, o
<224>
autor usa o verbo cair na expressão "cai bem", sem colocar
aspas. Por que num caso foi preciso o uso das aspas e no outro
não?
Finalmente, lendo esses textos, percebe-se logo o mau gosto
literário, a falta de originalidade, a chatice com que é tratado
qualquer tema, e a falta de imaginação para lidar com as
palavras. São textos sem graça, insípidos e, até certo ponto,
idiotas, quando apresentados por um livro didático ou por um
professor, de quem o aluno esperaria coisa bem melhor.
TEXTOS ESPONTÂNEOS
DE CRIANÇAS
Quando as crianças se põem a redigir textos espontâneos,
mesmo que não saibam quase nada sobre o funcionamento do
sistema da escrita, e, menos ainda, a respeito da ortografia das
palavras, nota-se que escrevem com uma grafia muito
idiossincrática (individual). Apesar disso, os textos têm um certo
sabor interessante e, do ponto de vista do valor, são no mínimo
razoáveis. Compare os textos da cartilha com alguns textos
espontâneos produzidos por alunos de primeira série,
apresentados a seguir.
Texto 6—Alvaro L. E
estálio = história.
Estálio umdia Eu fui nacazada minha Vovó.
Os meus dio nadaro debecireta.
Eu imeoto dio su Bimo eicima da arvore
Texto 7—José Roberto
(a) Eu fui no cinema
Oca chorro mimodeu a celina
Eu edeucaeixada no caxorro
Eu viu aminina no são
(b) O coelho e do juão
brite = presente da. o rerudo = orelhudo.
O coelho resebeu o brite na abelha
O coelho é o rerudo
O coelho foe no boque
O coelho é bonida
(c) O cavalo coremotobe
O cavalo moreo
O cavalo coria
O cavalo e tavacofomi
<225>
Os textos 6 e 7 são de alunos de uma professora que
costumava alfabetizar pela cartilha e nunca tinha pedido para
seus alunos tentarem escrever uma história. Depois de uma
discussão sobre o assunto, ela resolveu experimentar. O
resultado foi surpreendente: embora escrevendo com
dificuldade, as crianças fizeram textos e não frases
desconectadas. Esse resultado abriu os olhos da professora para
esse tipo de abordagem de ensino e, daí para a frente, ela não
parou mais de trabalhar com textos espontâneos. No final do
ano, seus alunos não só estavam escrevendo com facilidade, mas
passaram a se interessar muito por leitura, o que veio a ajudar
no domínio das formas ortográficas na escrita.
Texto 8 — Ronaldo
Oleão andando comumta presa derepete eli caiu numa almadilia
e pasou dois coelio naalmadilia e falaro asin nãovamo s sauva o
leao pogue sinos sauvavoce, coando voce tivé a aiinsima voce vai
comenois
O texto 8 é de um aluno que tinha sido reprovado duas vezes na
1ª série. Segundo a professora, ele confundia todas as coisas,
não fazendo direito as lições da cartilha. Apesar do esforço da
professora, ele não dominava o que era ensinado. Em outras
palavras, segundo a expectativa da escola, ele não escrevia de
acordo com a ortografia das palavras. Quando a professora
passava um trabalho de cópia ou de produção de frases (minhas
primeiras frases), o aluno escrevia páginas, no tempo em que os
demais apenas completavam a lição. Quando a professora
começou a passar textos espontâneos, percebeu que o aluno era
pior ainda, inventando um modo estranho de grafar as palavras,
embora escrevesse histórias interessantes.
Foi aí que a professora percebeu que o problema do aluno, a
causa de sua reprovação na 1ª série (numa época antes do GB)
era o fato de ele não saber como lidar com a ortografia.
Seguindo a cartilha, a professora supunha que o aluno tinha um
caminho seguro para escrever corretamente as palavras.
Todavia, este aluno não seguia as regras da cartilha de fazer
somente o já dominado, seguindo o modelo. Ele queria
<226>
escrever com liberdade e não entendia por que nunca dava
certo.
Com a produção dos textos espontâneos, professora e aluno
puderam perceber claramente que era preciso ensinar como lidar
com a ortografia, ou seja, que a ortografia não vinha
automaticamente com as lições já dominadas da cartilha, nem
podia ser obtida com a simples observação da fala para escrever.
Ortografia não era questão de sorte, como uma loteria. Era
preciso tomar consciência de que todas as palavras têm apenas
uma forma de escrita, e que essa forma deve ser usada por
todos. Quem não souber ou tiver dúvidas precisa perguntar a
quem sabe ou olhar no dicionário.
Texto 9— Elizângela
Era uma vez uma bela adormecida tava ormindo na calçada é o
princepe chegou e deu um beijo na boca e ela acordou.
Texto 10— Gislaine
(a) Era uma vez um macaco caiu no lago e gritou para a macaca
socorro macaca meu amor, a macaca escutou e foi la na onde ele
caiu e falou: meu querido voce esta vendo voce voi fica de molho
na basia até tirar estê fedo teu
(b) O menino que chama carlos ele estava na rua ele tava
bricando de bola ai apareu a menina que ele queria
(c) Era uma vez a galinha estava na Rua e falou para o galo oi
qui vida margurada o galo falou é memo eu já to velho e voce ta
nova, esta noiva.
(d) Era uma vez minha professora tia é boa e ela chega atrasada
e a jente escomde im baixo da cartera e o menino fala que a
gente não feio
Texto 11 — Edilson
Era num dia Lulú esta bricano comdo 2 minino desconensido
aparesero (desenho) chamaro o Lulú e levou o Lulú para longe.
Lulú des confiou que Ele érão trãobadinha aí Lulú dis cubriu que
estava virano trãobadinha.
<227>
Ai condo deu um dia Eles alsaltaro banco deu no radio
mamãe e papai (desenho) ficarão sabeno que Lulú estava preso
mamãe e papai ficarão triste.
Epa a policea vemvino.
duca o trãobadinha vemos elboraduca o chefe falou vemos afalta
um banco vemos
foram alsantar
Entrarão no banco pegemo grana e ia saino na porte e a bulicia
parou e viu a grana
E predemo o duca e Lulú e dodu.
Texto 12— Dirceu L.
Eu gosto de niais Dedeus e domeu Papai e da minha mãe e
doquisto e da nosasinhora e de santo daminhavída mamai
e de mais comer coiza de mais Ede a leguia dema daconta.
Condo eu fico alegui eu fico alegui tamen demais daconta
Texto 13— Zilda
Estória
Um dia uma mulher falava capeta. ai Ela falou tiabo Otro dia
Ela falou inferno Ela ficou falano espalavão ai Ela encrotou uma
valinha na arvores e Ela falou purque aciora está xorrado vocé
não xamou o capeta e inferno e tiabo fim
O texto 9 enquadra-se no mesmo caso dos textos 6 e 7. O
texto 10 é também de uma aluna repetente. Enquanto os colegas
fizeram apenas um texto, ela fez quatro.
Os textos de 11 a 13 pertencem ao mesmo caso dos
textos 6 e 7.
Texto 14 — Regiane
texto espontâeo
A casa é da macaca
A macaca é a tata.
<228>
A macaca é baoneta
A macaca pita a casa
A macaca gota de nada
A macaca gota da casa
A macaca upa a casa
Uma forte influência das cartilhas aparece no texto 14. Ao
solicitar que a aluna fizesse um texto espontâneo, o resultado foi
um amontoado de palavras, numa tentativa de compor frases
soltas. A aluna escreve sobre a casa e a macaca ao estilo dos
textos das cartilhas. Comete erros causados pelo não-domínio de
certas palavras que viu na lição da cartilha e que ainda não
conseguiu fixar. Assim, ao invés de BONITA escreve "baoneta",
GOSTA DE NADAR fica "gota de nada", PINTA E LIMPA são
escritos sem a nasal: "pita" e "lipa". Além disso, em vez de dizer
que A MACACA SE CHAMA TATA, escreve, a seu modo: "A macaca
é a tata".
Como se vê, mesmo com todo o esforço das cartilhas, do
professor e do aluno, produzir textos com esse método nem
sequer ajuda a não errar a grafia das palavras. Basta o aluno ter
alguma dúvida ortográfica para perceber que não sabe como
resolver a sua dúvida, arriscando, então, qualquer forma de
escrita. Como seu referencial não é a busca da forma ortográfica
através da consulta, mas o esforço para descobrir como se
escrevem as palavras apenas pensando, observando a fala, essa
aluna tem grandes chances de errar. Pior de tudo é a estrutura
do texto. Os outros alunos, pelo menos tentaram passar para a
escrita um texto que qualquer falante nativo poderia dizer
normalmente. Mas o texto 14 é algo que uma criança jamais diria
para outra, sendo apenas um jogo de palavras, produto do
método do bá-bé-bi-bó-bu.
Texto 15— Samuel
(a) A cachorra é o dono da casa.
A dona da casa e o pai e a mãe.
O menino é de bagunsa drento da casa
A menina e de rua.
O giigante gebrevu daliom. (?)
Amanha é dia pascua.
Vôvo foi na cidade compra um gato
A menina que um cachorro de pele.
O pelo da duensa nas criansas.
O bone e da menina.
O feio e o leão (?)
A menina e a jogadora.
O dia comeu nublado.
<229>
(b) O chapeu.
Era uma vez um chapeu que nao pode sair de casa
[porque Ele que chamar casa que Eu não poso brincar de pega-
pega
— É bom isso e brincadeira de criansa. logo apos que Eu chegar
do cerviso meu filho.
— É como Eu vou sair de casa sem minha mae assim eles viveram
feliz para sempre. fim
Altor Samuel J. M.
(c) O aniversario.
Era uma vez uma titia que ia vazer anivesario
Ninguem lebrou que hoje ia ser o anivesario da titia.
Mas a titia não estava legal por que estava com dor
[ de dente.
Então Ela foi para o médico
Chegando no medico a dor passou e foi para casa.
E disse:
— Eu acho que vou dormir?
e Ela dormiu.
A titia chamou a sua visinha para fazer o bolo.
A visinha fez o bolo e a titia ficou muito contente.
quando a titia ia chamar suas visinhas a subrinha veio e
cantaram parabens.
FIM
(d) Reelaborasão da Estoria O aniversario
Era uma vez uma titia que ia fazer aniversario. Ninguem
lembrou que era o aniversario da titia. Mas a titia não estava
legal por que ela estava com dor de dente. Então ela foi ate o
medico.
Chegando aõ medico a dor passou e foi para sua casa e falou:
— "Acho que vou dormir!" E dormiu.
quando ela acordou ela foi chamar sua amiga pa ra fazer o bolo.
a amiga fez o bolo e a titia ficou muito contem te.
E a titia foi chamar suas amigas e sua sobrinha chegou e todos
cantaram parabens.
Texto 16— Graziela P S.
Um dia a mulher maravilha foi ver se tinha algum
[vigiante.
Uma menina estava chorando a mulher maravilha falou:
<230>
porque você está chorando? porque um ladrão pegou o meu
cachorro.
Como ele se chama Buberman eu prometo que eu vou encontra-
lo.
O esconderijo é ali.
Vou aproveitar que ele saiu. Ali está o cachorro.
Bom já estou chegando pronto menina o seu cachorro obrigada
Mulher maravilha ali está ele tenho um prano.
Agora vou lassar meu laço mágico proto já peguei.
Os textos 15 e 16 são de alunos que foram alfabetizados sem
a cartilha e sem o bá-bé-bi-bó-bu. O primeiro aluno (texto 15 —
a, b, e, d) demonstra dificuldade inicial para acertar a ortografia,
mas aos poucos foi aprendendo, chegando ao ponto de fazer
autocorreção ou reelaboração de um de seus textos (texto d), no
segundo semestre.
Apesar das dificuldades ortográficas, nota-se claramente que
o aluno já tem uma preocupação séria com a ortografia e busca
acertar. Por outro lado, sabe que as dificuldades vão ser
resolvidas na atividade de reelaboração, o que lhe dá
tranqüilidade para passar da oralidade para a escrita, de maneira
integral, o texto que produz. Convém ainda notar que os textos
de alunos que são alfabetizados dessa maneira são mais ricos
em detalhes, mais semelhantes à espontaneidade com que os
falantes dizem o que querem dizer e, justamente por essas
razões, geralmente mais longos.
O texto 16 mostra como um aluno pode escrever certo (ou
quase tudo certo), sem precisar passar pelo processo de
aprendizagem das cartilhas. Em pouco tempo e beneficiado pela
leitura assídua, o aluno passa a escrever com naturalidade, sem
medo, com precisão mesmo com relação à ortografia das
palavras. Note que o aluno, nesse caso, escreve qualquer
história, qualquer palavra que deseja, porque não tem de se
preocupar com o já dominado, já estudado. Ele sabe como
buscar a informação correta em caso de dúvida. Tem consciência
de que deve resolver todas as suas dúvidas ortográficas e não
ficar simplesmente tentando acertar.
Quando os alunos aprendem a ler primeiro e a escrever como
uma decorrência disso, interessam-se muito pela leitura. Esse
interesse ajuda enormemente a resolver os problemas de
escrita. Além disso, os alunos vão aprendendo a distinguir o
estilo falado do estilo escrito.
<231>
Eles observam nos livros que às vezes apare cem construções
sintáticas ou certas palavras que eles não ouvem nas conversas
do dia-a-dia, mas que aparecem na escrita, como uma forma
sofisticada de uso da linguagem. É por isso que um aluno acaba
transportando para seus textos expressões como "eu vou
encontra-lo", vide texto 16 (repare que essa aluna é daquelas
que falam "prano" em vez de "plano", como também se vê no
mesmo texto).
Outra coisa que se nota no texto 16 é o fato de a aluna não
ficar repetindo o mesmo tipo de frase nem certas palavras. Na
fala, raramente usamos um mesmo esquema de frase repetidas
vezes, a saber: "O menino foi no cinema. O menino assistiu um
belo filme. O filme era de mocinho. O mocinho matou o bandido.
O bandido roubou o banco". A elisão do sujeito da oração é outra
característica do estilo de textos escritos, mais do que orais, que
a aluna já percebeu, ao ler, e está tentando empregar na
redação. Já aparecem frases como VOU APROVEITAR QUE ELE
SAIU; BOM; JÁ ESTOU CHEGANDO; TENHO UM PRANO; AGORA
VOU LASSAR; JÁ PEGUEI.
É preciso dizer, ainda, que num enunciado como COMO ELE SE
CHAMA BUBERMAN EU PROMETO QUE EU VOU ENCONTRALO,
exceto o último "eu", os outros pronomes sujeitos são usados
para dar uma ênfase exigida pelo contexto semântico do texto.
Os pronomes ELE e EU, nesses casos, prosodicamente marcam a
sílaba tônica saliente do grupo tonal e sinalizam um foco, isto é,
um elemento semântico que precisa ser realçado.
Texto 17- Reinaldo C. Extraído de Relatos de Experiências
premiados 1989, II Concurso, MEC, p. 32.
a samanta e o escube
quando eu venho pra escola
meu cachorro está souto
ele vem comigo ele fica olhando pra ela ela olha pra ele não sei
quiqui vai dar isso
Texto 18 — Wagner S. S. Extraído de Relatos de Experiências
Premiados 1989, II Concurso, MEC, p. 45.
Responder: O que é melhor, ser criança ou ser adulto?)
Eu não gosto de ser criança porque a criança não trabalha para
ajudar em casa mas posso estudar na escola E.E.PG. Professora
Aurea de Godoi. O adulto não tem paciência comigo porque eu
sou arteiro e maligno.
Fim
<232>
Os textos 17 e 18 são exemplos de como uma professora
trabalha com seus alunos a produção de textos espontâneos,
indicando um tema para que cada aluno escreva o que quiser a
respeito. Como se pode observar, as dificuldades ortográficas
dos alunos são muito menores do que alguns professores
imaginam. O que choca, às vezes, não é a quantidade de erros
que as crianças cometem, mas certos tipos de erros, como
analisaremos, em detalhe, mais adiante. Veja, por exemplo, no
texto 17: NAO SEI QUIQUI VAI DAR ISSO: onde foi que o aluno
descobriu uma palavra como QUIQUI em português? Essa é uma
das tantas "palavras" que se diz na linguagem oral de um jeito,
mas que se escreve de outro. As pessoas falam "eu num fui", "eu
sinto ni mim", mas têm de escrever EU NÃO FUI, EU SINTO EM
MIM, etc.
Há muitas outras palavras com as quais acontece a mesma
coisa. Quando escrevem textos espontâneos, os alfabetizandos
são peritos em descobrir essas coisas. Um professor esperto
aproveita a oportunidade e faz uma discussão com seus alunos,
organizando um levantamento de casos semelhantes e
explicando por que isso ocorre.
Cartas escritas pelas crianças
na atividade de correio, extraídas de Relatos de Experiências
Premiados 1989, II Concurso, MEC, p. 108-9.
Texto 19
(a) VOCE
E O MEU
MELHOR
AMIGO
MUITO
OBRIGADO
POR
ISSO
AMIGÃO
(b)OI
AMIGUINHO
ATÉ QUE
VOSE É
BONITINHO
QUÉ UM
BEIJO
(c) oi marila
eu ciria
coece a sua
caza
FIM
Os textos a, b, c do número 19 são cartas escritas por
crianças da pré-escola, que estão começando a aprender a ler e a
escrever. As crianças se saem bastante bem,
<233>
procurando descobrir como escrever o que querem: olham,
perguntam ou mesmo tentam escrever por si para ver o que
resulta. Note que os erros ortográficos que ocorrem nessa fase
São diferentes dos que ocorrem em fases mais adiantadas.
Nesse primeiro momento, freqüentemente ocorrem erros que
demonstram um desconhecimento do uso das letras nas suas
relações com a fala, levando-se em conta o contexto de escrita.
Mais para a frente, ocorrem mais erros de ortografia
propriamente ditos. Veja no texto 19c, como o aluno escreveu
QUERIA (ciria) e CONHECER (coece). Ele ainda não aprendeu que
a letra C diante de I e de E tem o som de "çê" e nunca de "kê".
Para se obter o som de "kê", a única saída, neste caso, é usar as
letras QU. Por outro lado, COECE é uma excelente transcrição
fonética, sem a marca da nasalidade.
Texto 20— Fábio E G. (2ª série)
"Balão"
Eu sou um balão, Um balão de São João. E vim dizer para você:
Eu fui feito pra subir pelo céu e me perder. Agora, se eu cair,
veja o que faço:
Incêndios provocar e pessoas machucar. Muitas pessoas ainda
me soltam Isso me entristece tanto! Vou pedir um favor: por
favor, não me solte mais!
Texto 21 — Marina E E (2ª série)
"A BORBOLETA"
Já está de manhã.
E o galo diz có-có-ri-có!
E a borboleta se levanta e sai para passear
Lá no meio do caminho ela encontra a abelha e diz:
— Dona abelha, se eu fosse você eu não conseguiria fazer tudo
isso.
E lá mais adiante ela encontrou as formigas.
Só que elas estão andando e a borboleta estava voando. Então
ela pôde falar — bom dia!
Mas ela ficou pensando:
— Cada trabalho difícil que elas têm! Só que estava na hora de
comer.
Então ela foi para casa e comeu.
<234>
Só que ela comeu muita comida e não pode sair. Então ela ficou
na cama.
Os textos 20 e 21 são da 2ª série, de uma classe que trabalha
muito com textos espontâneos, desde a 1ª série. Note como os
textos amadureceram. Não só
sumiram quase todos os erros de ortografia como, sobretudo, os
alunos passaram a produzir textos com certo estilo literário. Se
esses alunos continuarem a produzir textos espontâneos nas
demais séries e se continuarem lendo assiduamente, jamais
terão problemas de redação. Podem se ver diante de qualquer
desafio de escrita, que, certamente, resolverão muito bem todos
os seus problemas de redação pelo resto da vida.
Texto 22 —Jurandyr V
(a) Descrição do cão
O cão e um animal inteligente
O cão sempre persegue o
patrão quando ve alguem
homem que não é da casa
ele começa a latir
Quando e noite que tudo
estão dormindo ele esta guardando a casa. Quando o patrão bate
nele elle sai e depois vem outra vez perto do patrão.
Quando o patrão perde alquoma cousa elle fica hai até
que não vem buscar elle
não sahi dahi
(b) Descrição — A colheita de café
Aproxima-se o mez de maio. Todos estão se preparão para a
colheita de cafe Arruumando
todo os objectos nessesarios
para apanha e depois de colher
O cafe esta pronto para
se lavar no tanque. Depois
de lavado vae para enxugar se
no terreiro Se over broca antes
de ir para o tanque vae para a
estufa depois para matar os bixinhos vae ao benficio Quando
esta limpo tora-o bem e com o pó obtem-se uma bebida
deliciosa.
<235>
Os textos 22a e b são de um aluno da 4ª série de 1937.
Naquela época, a ortografia adotada pela escola era diferente.
Vê-se que o aluno tinha algumas dificuldades, como traçar
corretamente a letra "g", distinguindo-a do "q". Escreve TUDO
em lugar de TODOS. Escreve sem segmentar OUTRAVEZ,
acrescenta um "o" (sem corrigir) ao escrever ALQUOMA. O uso
dos sinais de pontuação é praticamente ignorado. O texto tenta
reproduzir aquelas histórias de cunho moral típicas dos livros
didáticos da época. O aluno não produz um texto espontâneo,
mas induzido pelo método de ensino usado na escola e nos livros
didáticos. Além disso, tem de fazer um texto do tipo padrão,
ensinado pelo professor, ou seja, que segue um modelo.
Começou com palavras; agora, escreve textos seguindo o
modelo.
No texto b, apesar de ter cometido mais erros de ortografia (e
mais graves), sua nota foi maior. Certamente, o professor achou
que o aluno, no texto a, não descreveu exatamente o cão, mas
falou de seus hábitos... Já no texto b, ele achou que a descrição
era melhor. O que interessa, na verdade, é constatar que o
professor dava menos importância à ortografia. No texto b,
ocorrem os seguintes erros de ortografia: PREPARÃO, ou seja,
PREPARANDO; ARRUUMANDO, ou seja ARRUMANDO; TODO, ou
seja, TODOS; NESSESARIOS, ou seja, NECESSÁRIOS; APANHA, ou
seja, APANHAR; OVER, ou seja, HOUVER; BIXINHOS, ou seja,
BICHINHOS; TORA O, ou seja, TORRA-O. Há de se notar, ainda, a
construção: QUANDO ESTÁ LIMPO TORA-O BEM.
Ao comparar esses textos da 4ª série (de 1937) com os da 2ª
série (de 1989), percebemos que os alunos da 2ª série não só
lidam melhor com a ortografia, como produzem textos mais
interessantes, do ponto de vista literário. Ambos mostram que o
estilo da linguagem escrita é tido como modelo e ideal, mas
antigamente os alunos estavam muito mais presos a modelos,
fazendo textos menos criativos, nos quais a marca da
individualidade era de certo modo negada.
Muitas pessoas costumam dizer que antigamente OS alunos
aprendiam melhor. Como se vê, as coisas não eram bem assim.
Na 4ª série, havia aluno escrevendo OVER (HOUVER BIXINHOS
(BICHINHOS), etc. Convém lembrar que um aluno que chegava à
4ª série em 1937 era um privilegiado em termos de chance de
estudo, pois a maioria estudava até a 2ª série.
Apesar de seguir a cartilha (era uma cartilha diferente das
atuais), o professor daquela época valorizava mais
<236>
o esforço do aluno em obter um texto mais bem redigido do que
sem erros de grafia. A meta a ser atingida era outra. Hoje,
muitos professores só sabem avaliar em função dos erros de
grafia. Certamente, as notas das duas redações de 1937
estariam invertidas para esses professores de hoje. Não só
mudaram as cartilhas como mudou também a atitude dos
professores ao longo dos anos. A escola tornou-se muito mais
rígida e até mesmo intransigente com relação à ortografia.
QUESTÕES PERTURBADORAS
Ao discutir a produção de textos espontâneos com professores
que usam o método do bá-bé-bi-bó-bu, tem-se notado que eles
ficam muito chocados com os erros de ortografia. Consideram
que tudo deve ser feito sob seu absoluto controle, para que o
aluno aprenda em ordem, indo do mais fácil para o mais difícil,
reproduzindo o modelo do já dominado.
Essa crença relaciona-se a uma outra (mais equivocada
ainda), segundo a qual o aluno só deve visualizar o que é certo.
O que está errado deve ser evitado. Se ocorrer, deve ser
eliminado o mais rápido possível, para que o aluno não fixe o
erro e depois não consiga mais se livrar dele. Por essas razões,
esses professores acham que não devem deixar seus alunos
escreverem errado, o que é comum, principalmente no início da
alfabetização. Produção de textos livres será feita como última
atividade, depois que o aluno aprendeu a ler e a escrever com
perfeição.
Os efeitos nefastos dessa atitude já foram comentados
anteriormente e não é preciso voltar a falar do mesmo assunto.
Porém, como esse tipo de argumentação é freqüente, inclusive
para impedir que as crianças façam textos espontâneos, é bom
lembrar aqui, especialmente para comparar o que significa,
através de exemplos, escrever segundo o modelo das cartilhas e
o que representa escrever produzindo textos espontâneos. Os
resultados imediatos são mascarados pela metodologia, mas,
com o tempo, são claramente reveladores, mostrando que o
aluno que nunca fez textos espontâneos irá encontrar
dificuldades enormes (e muitas vezes insuperáveis) nas séries
mais adiantadas, ao passo que os alunos que produzem textos
espontâneos, desde a primeira série, irão saber como resolver
suas dificuldades pelo resto da vida.
<237>
Uma outra questão, que perturba demais certos professores,
não é tanto o erro ortográfico (eles acham até natural que os
alunos errem de vez em quando), mas o tipo de erro cometido.
Para eles, é até aceitável que um aluno escreva CASA com Z
(CAZA), ou LIXO com CH (LICHO), porque essas dificuldades não
têm solução (segundo eles...). Por outro lado, não aceitam que
um aluno escreva COMUMTA (COM MUITA — texto 8),
NAALMADILIA (NA ARMADILHA — texto 8), A JENTE ESCOMDE
IM BAIXO DA CARTERA (A GENTE SE ESCONDE EMBAIXO DA
CARTEIRA — texto 10 d), ALSANTAR (ASSALTAR texto 11), EDE A
LEGUIA DEMA DACONTA (E DE ALEGRIA DEMAIS DA CONTA
— texto 12), EU CIRIA COECE A SUA CAZA (EU QUE RIA
CONHECER A SUA CASA texto 19 c), etc.
JULGAR PELOS ERROS
E PELOS ACERTOS
Essas concepções estão ligadas a uma outra, que leva o
professor a julgar seus alunos apenas pelos erros que cometem,
e nunca pelos acertos. É a avaliação punitiva. É a correção que
visa a amedrontar o aluno diante do erro e da ignorância, e não a
incentivá-lo a superar suas dificuldades, apoiando-se naquilo
que já aprendeu. Parece que o processo escolar tornou-se algo
que vai cortando, derrubando, destruindo coisas que o aluno faz
(o errado), e não um processo de construção, progresso,
aumento, que também terá seus momentos de revisão e de
reorganização dos conhecimentos que o aluno possui.
Alguns professores se esquivam desse tipo de argumento,
dizendo que são justos; consideram o certo e o errado
objetivamente. Em resumo, acham por exemplo, que um aluno
que acertou 70% das palavras ou das dificuldades ortográficas
(o que é isso?), foi bem na escola e merece ser aprovado. Até
hoje não encontrei nenhum professor que aceitasse apenas
50%: eles acham que 50% é muito pouco, porque a maioria das
palavras são muito fáceis (ou seja, pertencem ao conjunto de
palavras especiais já dominadas!?...).
Quando, porém, pergunta-se a esses professores se
aprovariam um aluno como o Ronaldo (texto 8), eles dizem que
não, porque o aluno não tem condições, já que
<238>
não aprendeu o mínimo necessário. Então pergunto dos 70% de
acertos e eles acham que o aluno errou muito mais, ou seja,
acertou muito menos do que os 70% esperados, sendo essa mais
uma razão para a reprovação.
Esses professores têm uma noção de cálculo estatístico
baseada não em números reais, mas numa certa desconfiança
imprecisa. Jamais chegam a fazer os cálculos realmente. E
acabam simplesmente guiando-se pela qualidade do erro: se o
erro ortográfico é chocante, o aluno tem índice baixo de acerto,
precisando, portanto, ser reprovado.
Vamos analisar com mais cuidado o texto número 8 e ver nos
seus detalhes, o que ele representa em termos de erros e
acertos.
Contaremos, em primeiro lugar, os erros de ortografia
considerando uma letra errada ou uma letra a mais ou a menos.
Por exemplo, na primeira linha: O LEÃO ANDANDO COMUMTA, o
aluno acertou as letras 0,1, e, ã, o (5), a, n, d, a, n, d, o (7), c, o
(2), m, u, t, a (4); e errou: m (falta em COM, que ele escreveu
CO) (I), o m (de MUMTA, na verdade um "i": MUITA) (I).
Portanto, na primeira linha, o aluno acertou 17 ocorrências de
letras e errou apenas 2. Procedendo assim, temos o seguinte
resultado:
Acertos erros
Linha 1 17 2
linha 2 19 5
linha 3 17 3
linha 4 19 3
linha 5 17 4
linha 6 13 5
linha 7 12 5
linha 8 12 7
linha 9 12 6
linha 10 7 4
total: 146 41
187 letras
Porcentagem (%) 78,07 21,93
100
Outro item que poderia ser investigado é a segmentação
correta das palavras. Vamos transcrever o texto, assinalando
com uma barra inclinada — / — o lugar onde ocorreu erro de
segmentação e com o sinal de igual, o lugar onde o aluno
acertou:
<239>
Testos acertos erros
1 O/leão = andando co/mumta =3 2
2. presa = de/repete = eli = caiu =4 1
3. numa = almadilia = e = pasou = 4 —
4. dois = coelio = na/almadilia = 3 1
5. e = falaro = asm = não/vamo 3 1
6. s=sauva=o=leao=pogue = 5 —
7. si/nos = sauva/você = 2 2
8. coando = voce = tive = 3 —
9. a/ai/in/sima voce = vai 3 3
10 come/nois 1 1
Total 31 11 42
Porcentagem (%) 7380 2620
100
Como se vê, um professor que tivesse como critério de
aprovação pelo menos 70% de ocorrências certas de letras e
segmentação, deveria aprovar Ronaldo. Porém, quando os
professores vêem somente o texto, acham que o aluno não
aprendeu quase nada, que escreve tudo errado, e que,
conseqüentemente, não tem condições mínimas de ir adiante.
A análise feita acima atesta que alguns professores usam uma
forma desonesta de fazer a avaliação do aluno, dizendo as regras
de um jeito e agindo de outro. Mostra, ainda, o preconceito
contra certos erros de ortografia, que ele, professor, considera
gravíssimos, não percebendo que para o aluno alfabetizando as
dificuldades ortográficas residem praticamente em cada letra
das palavras, a cada segmentação que faz ou deixa de fazer.
Se o professor fizesse um cálculo estatístico real, ambos
poderiam ver, pelo lado positivo, que muita coisa já foi
aprendida, e o que falta precisa ser dado através de atividades
específicas.
O texto 8, comparado com outros, apresenta muitos
problemas, o que significa, por outro lado, que os outros textos
têm um índice muito mais alto de acertos.
A produção de textos espontâneos pelos alunos, desde o início
da prática de escrita, apresenta resultados aparentemente
caóticos e estranhos, mas, analisados com mais cuidado,
constata-se que, no fundo, são muito mais certos do que
errados. Essa constatação é um bom argumento para convencer
qualquer professor de que vale a pena incentivar os alunos a
produzirem textos espontâneos.
<240>
10
AS hipóteses por trás dos erros
O HOMEM É UM ANIMAL RACIONAL
Uma criança usa sua capacidade de refletir sobre
tudo o que faz. Nenhuma criança é capaz de fazer o menor gesto
ou tomar a menor iniciativa, ou ainda ficar sem fazer nada, sem
que isso seja o resultado de uma decisão, fruto de uma reflexão.
Nisso, não há nenhuma novidade. Desde os mais antigos
filósofos, a humanidade sabe que o homem é um animal
especial, dotado de uma faculdade chamada racionalidade; em
outras palavras, o homem é um animal racional. O homem não
pode se ver livre da racionalidade, em nenhum momento, sob
nenhum pretexto, caso contrário, simplesmente deixaria de ser
homem. O homem é escravo de sua racionalidade. É por essa
razão que todo ser humano tem suas ações comandadas pela
racionalidade, sempre e em todas as circunstâncias, mesmo
quando comete barbaridades.
Tudo o que o ser humano faz é movido por um ato de reflexão
qualquer, como uso da faculdade da racionalidade. Nem toda
reflexão é consciente ou ponderada em todos os seus aspectos.
Quando andamos, mal sabemos como fazemos isso, mas o andar
requer uma tomada de decisão, caso contrário, não andaríamos.
A participação da reflexão na vida das pessoas torna-se bastante
evidente quando alguém se propõe a fazer algo diferente do
habitual. Se em vez de andar alternando os pés, alguém
resolvesse andar dando um passo e um salto, logo perceberia
que precisaria tornar consciente e constante a decisão de agir
dessa maneira, ou seja, precisaria acompanhar essa prática
pensando a cada instante como realiza-la. A reflexão e a decisão
sobre como andar, que antes eram inconscientes, passam a ser
conscientes para que a pessoa seja capaz de realizar
corretamente o que quer.
É evidente que a estrutura de nosso corpo, pelas suas
características físicas, pode agir sob influência de fatores
externos, por exemplo, a força da gravidade pode derrubar um
corpo em desequilíbrio, uma alfinetada num músculo pode fazê-
lo contrair-se automaticamente, etc. Os próprios animais fazem
muitas das coisas que fazemos. A diferença entre o animal e o
homem é justamente o fato de o animal nunca poder tomar uma
decisão refletida, mesmo que ele tome uma decisão mais
inteligente entre algumas alternativas, por exemplo, usando sua
estratégia de ataque ou defesa. Esse conhecimento sobre a vida
é considerado, nos animais, um instinto.
<242>
A interação dele com o mundo criou formas biológicas de agir
mas não de refletir. No homem o "instinto" é criado através de
uma interpretação da interação com o mundo, e isso já é refletir.
A reflexão só é possível com a presença da linguagem e vice-
versa. É por essa razão que, para muitos filósofos, linguagem e
racionalidade, ou linguagem e pensamento, são duas maneiras
diferentes de falar da mesma realidade. São dois lados da
mesma folha de papel: não se pode ter um lado, sem ter o outro.
A CRIANÇA E A RACIONALIDADE
Uma criança é um ser humano, portanto, um animal racional.
Isso significa que toda criança também é um explorador do
mundo, uma pessoa interessada em interpretar a realidade e o
imaginário, como fruto de uma necessidade essencial, senão não
seria gente. Ler o mundo é a sina de todos nós na vida e não há
como escapar.
Ao interpretar a realidade, a criança (o homem) processa seu
pensamento e tira suas conclusões sobre ela. Isso acontece em
todos os níveis e em todas as circunstâncias. Por isso, quando
uma criança entra para a escola, já percorreu um longo caminho
de exploração do homem, da vida e do mundo. Além disso,
através da linguagem e da cultura, a criança pode refletir sobre
sua reflexão e interpretar a realidade sob diferentes
perspectivas. Nesse âmbito, é fácil concluir que as crianças não
adquirem a capacidade de linguagem através da simples
interação com pessoas falantes, porque a linguagem —
entendida como racionalidade — é sua própria essência — sua
diferença específica, diria Aristóteles. Por essas razões, alguns
filósofos e lingüistas chegaram à conclusão de que a essência da
linguagem, ou a faculdade da linguagem, é inata. Através da
interação social, uma pessoa adquire apenas a forma material da
linguagem de outras pessoas que são falantes dentro de uma
sociedade; em outras palavras, aprende a falar português deste
jeito ou daquele, aprende chinês de um jeito ou de outro, ou
aprende qualquer variedade de qualquer outra língua.
Já vimos antes que uma criança aprende a falar a língua do
adulto numa idade muito tenra (de 1,5 a 3 anos). Durante vários
anos — em geral 7 —, vive interpretando a realidade,
acumulando uma bagagem de pensamento,
<243>
que é a marca de sua personalidade. Nessa aventura humana
pela vida, ela já teve inúmeras oportunidades para interpretar o
que seja a linguagem humana, a fala, a gramática da língua, os
usos da linguagem, a escrita, a leitura, as formas de
comunicação verbal e não-verbal e muito mais.
Portanto, toda criança que entra para a escola já pensou sobre
várias questões e já acumulou informações em sua mente. Esse
acúmulo de informações é o referencial de que se serve para
proceder a novas interpretações e construir, assim, novos
conhecimentos. Nada é totalmente estranho para uma criança:
sempre há algo de conhecido. Ao longo da vida, as novidades
tornam-se cada vez mais raras, razão pela qual se começa a
buscar sutilezas. É por essa razão que as ciências, por exemplo,
se desenvolvem.
Conhecer a realidade da criança no processo educativo escolar
significa entre outras coisas reconhecer que toda criança entra
para a escola com uma bagagem intelectual que ajuntou ao
longo de sua vida. Nessa bagagem, há muitas idéias a respeito
de fatos que serão tratados na escola. Nem sempre as crianças
têm as mesmas idéias que a escola, os livros didáticos ou os
professores transmitem. Para aprender, elas precisam descobrir
o que a escola, os livros didáticos e os professores pensam. Para
ensinar, por outro lado, a escola, os livros didáticos e os
professores precisam saber o que pensam os alunos. E isso deve
acontecer não apenas no primeiro dia de aula, mas em todos os
dias, em todas as séries, caso contrário, alunos e escola não
entrarão num acordo.
CONHECER OS ALUNOS
Na alfabetização, é fundamental que o professor saiba o que
pensam seus alunos a respeito da leitura, da escrita e da fala.
Essa é uma preocupação dos primeiros dias de aula, ocasião em
que o professor irá conversar com seus alunos. Ao longo do ano
escolar, essa deverá ser uma preocupação decorrente da
atividade de avaliação por parte do professor, de tudo o que o
aluno faz ou deixa de fazer.
A experiência tem mostrado que há algumas formas de
interpretação recorrentes no processo de alfabetização. Há
muitas idéias em comum e, nessa lista, estão
<244>
sobretudo as idéias corretas a respeito da realidade. As idéias
estranhas, erradas e incompletas também podem ser agrupadas
em categorias e refletem características de grupos específicos de
crianças, de tal modo que, na prática, a tarefa do professor é
muito mais simples do que poderia parecer na teoria.
Seria útil que o professor fizesse um levantamento das
interpretações mais comuns que os alunos novos e velhos têm a
respeito: 1) da escola, do ensino, do aprender, das noções de
certo e errado, da avaliação, da promoção, em suma, da vida
escolar; 2) do professor, de suas idéias e atitudes; 3) da
realidade: do homem, da vida e do mundo; 4) da sociedade e da
cultura; 5) da ciência, da superstição, da fé, da ilusão, do real e
do imaginário; e, sobretudo, 6) da linguagem e, em particular, da
leitura, da escrita e da fala em seus mais varia dos aspectos.
Como não é o caso de discutir aqui todos esses tópicos em
detalhe, prossegue-se com o estudo minucioso das questões
relativas à linguagem. Apresenta-se a seguir uma série de fatos
que demonstram formas de interpretar a realidade comuns a
crianças antes e no início de se submeterem ao processo de
alfabetização. Em resumo, trata-se de hipóteses das crianças a
respeito de fatos da fala, escrita e leitura, isto é, comentários
sobre o que pensam as crianças quando cometem certos erros,
principalmente de leitura e escrita.
EXPLICAÇÕES PARA OS ERROS
Freqüentemente, a análise dos erros conduz logo a uma
explicação clara e correta. Outras vezes, há dificuldades mais ou
menos sérias em saber exatamente as razões pelas quais um
aluno fez tal coisa e não outra. Nesses casos, há a possibilidade
de explicações alternativas, que serão mencionadas
oportunamente. Uma explicação não exclui a possibilidade de
outras. Porém, as causas mais evidentes serão as escolhidas. Por
outro lado, não existe nada para o qual não seja sequer possível
levantar uma hipótese de interpretação. Tudo o que um aluno faz
ou deixa de fazer tem uma razão de ser para ele, e o professor
precisa descobri-la para poder ensinar adequadamente.
<245>
- PATTO, 1997.
Pesquisar o que os alunos pensam e as hipóteses que
levantam ao estudar requer um conhecimento profundo e
especializado do assunto sob investigação, caso contrário,
acabam aparecendo interpretações equivocadas, como aquelas
que sugeriram o período preparatório, baseadas numa noção
errônea de "prontidão" no método das cartilhas. Também dizer
que o aluno é burro, lento, preguiçoso, incapaz, relaxado, etc.
não esclarece, de fato, a razão do erro do aluno. Nem sempre um
comportamento errado está associado a uma interpretação
errada da realidade. São coisas diferentes. Há alunos relaxados
que acompanham muito bem o progresso escolar, e há alunos
bem-comportados que apresentam sérias dificuldades de
aprendizagem e vice-versa.
Todo erro de matemática pressupõe uma explicação
matemática. Todo erro de português suscita uma explicação
gramatical (no sentido mais amplo). Interpretar erros de
ortografia, por exemplo, como distúrbios da fala, como problema
emocional do aluno ou de sua família, como problema
neurológico ou como uma doença psicológica é fugir das
verdadeiras causas, é enganar ao aluno e a si. Erro de ortografia
relaciona-se com as hipóteses que o aluno levanta sobre a
escrita, apenas isso. Problemas de outra natureza (físico,
emocional), quando de fato ocorrem, afetam não apenas a
resolução de problemas de matemática ou de ortografia, mas
toda a vida da pessoa. Os erros escolares são sempre muito
localizados e circunstanciais. Ocorrem em determinados
contextos, e não em outros (ocasiões em que o aluno acerta).
Por isso, são facilmente identificados e podem ser corretamente
interpretados por um bom especialista.
Hipóteses estranhas (não esperadas pelo professor) ocorrem
não só quando os alunos erram (sempre), mas também quando
eles acertam (às vezes). Por exemplo, um aluno pode multiplicar
420 por 32, escrevendo 40, 800, 840, 60 0, 1 440, 1 200 - O = 13
440. O aluno chegou ao resultado certo, seguindo um caminho
diferente daquele que o professor ensinou para fazer as contas
de multiplicação. Um bom professor procura descobrir que
raciocínio levou o aluno a escrever aqueles números estranhos e
depois colocar o resultado certo. Será que ele colou? Copiou do
colega? Ou será que o aluno fez de outro jeito? Vejamos:
multiplicar 420 por 32 significa somar 32 vezes o número 420,
ou somar o resultado de 2 X 20 + 2 X 400, ou seja, 40 + 800,
resultando em 840; depois somar ainda 30>< 20 (que o
<246>
aluno fez 3 X 20, acrescentando um zero ao resulta do), o que
dá 600, que somado aos 840 anteriores dá 1 440. Em seguida,
multiplica-se 30 por 400 (que o aluno fez 3 X 400, acrescentando
um zero ao resultado), o que dá 12 000, que por sua vez,
somado ao resultado anterior (1 440), dá o total de 13 440, que
é a resposta. Sem dúvida alguma, esse aluno não copiou o
resultado e muito menos colou. Mas um professor despreparado
pode não acreditar na versão do aluno, achando que ele
escreveu um monte de números aleatórios e depois colou o
resultado do caderno de algum colega. O final da história pode
ser uma nota baixa que poderá, eventualmente, causar uma
repetição de ano. Fatos como esses aparecem freqüentemente
na escola.
Descobrir as idéias dos alunos é entrar num mundo fascinante
e surpreendente. Talvez seja esse o motivo pelo qual, apesar dos
baixos salários, muitas pessoas insistem em continuar sendo
professores: é uma experiência intelectual e humana
maravilhosa.
A REFLEXÃO DO ALUNO NA ESCOLA
Para entender a realidade dos alunos, é preciso, ainda, estar
convicto de que as crianças não vivem passivamente no mundo,
mas estão a todo instante atentas para aprender tudo o que lhes
interessa, em todas as circunstâncias.
A leitura do mundo é algo que todo ser humano faz a todo
instante, graças à racionalidade. Todo ser humano, por mais
simples, mais rico ou pobre que seja, é escravo da própria
racionalidade. Por isso, tudo o que faz é fruto de um
pensamento, de uma reflexão, de uma decisão pensada.
Conseqüentemente, toda pessoa precisa estar constantemente
lendo o mundo e procurando entendê-lo. Cada um faz isso
segundo seu próprio modo de ser, segundo as características da
sua personalidade. Isso explica por que as pessoas chegam a
conclusões diferentes, tentando interpretar fatos iguais. O que é
importante para uma pessoa pode não ter valor para outra e
vice-versa.
Alguns educadores parecem ter descoberto só agora que as
crianças pensam, que tudo o que fazem reflete uma decisão
pessoal, resultante de uma reflexão. Em
<247>
outras palavras, todos os acertos e erros das crianças trazem
por trás de si hipóteses que levaram a criança a tomar
determinada decisão e fazer algo de um certo modo e não de
outro.
- Ver debate sobre o assunto promovido por Maria Helena
PATTO (1985) em vários números da revista Cadernos de
Pesquisas.
A nossa escola foi desviada desse caminho no momento em
que alguns piagetianos brasileiros começaram a dizer que as
crianças não aprendiam porque apresentavam uma síndrome da
dificuldade de aprendizagem, resultando dai os trabalhos de
prontidão e todas as atividades do período preparatório.
Recuperar o aluno como ser pensante passou a ser algo
imperativo para que a escola pudesse retomar seus trabalhos
com decência e, curiosamente, foi uma piagetiana (Emília
Ferreiro) quem chamou fortemente a atenção dos educadores
deste país para essa realidade. Nessas circunstâncias, o trabalho
de Emília Ferreiro apareceu com um certo tom de novidade.
Já em métodos antigos de alfabetização, encontramos um
esforço dos autores para interpretar a razão pela qual um aluno
chegou a uma conclusão errada. Trata-se de uma tentativa de
descobrir quais as hipóteses que as crianças levantam quando
cometem certos erros de escrita ou de leitura. Por exemplo, no
Manual explicativo
< CASTILHO, 1859, p. 45-7. do método de leitura denominado
escola brasileira, de Francisco Alves da Silva Castilho, o autor faz
um levantamento de alguns tipos de erro que os alunos
cometiam nas suas aulas. Apontou os seguintes fatos: aluno que
escreve como fala, segundo um dialeto que não respeita a norma
culta, acaba escrevendo errado. Por exemplo: quem escreve
ORDENCIA em lugar de PRUDÊNCIA, ou TIVE por ESTIVE; quem
troca -NHO por NIO; L por R, como ARMA por ALMA, CARDO por
CALDO; quem inverte a ordem de letras em palavras, como em
CRAVÃO; aluno que mistura letras, fazendo um uso indevido de
certas letras: FEIO ou FELO em vez de FERRO, NAVA em vez de
LAVA, XUA em vez de SUA, AJA em vez de ASA (que no tempo do
autor se escrevia AZA).
O MÉTODO, O PROFESSOR,
O ALUNO E A ESCOLA
Mesmo quando o ensino é impositivo, obrigando o aluno a
seguir o modelo a todo instante, os alunos continuam sendo
indivíduos com direito às suas próprias
<248>
idéias e interpretações. Nenhum método de alfabetização
controla tudo, sempre, o que obriga o aluno a tomar algumas
decisões por conta própria, interpretando até mesmo o que o
método ensina.
É por isso que, apesar do esforço do professor e da exatidão da
explicação do método das cartilhas, alguns alunos cometem
erros, aparentemente incompreensíveis (ou aceitos somente se
associados a problemas mentais). O aluno não deixa de lado sua
racionalidade, nem seu direito de refletir, porque está sendo
submetido a um método ou a outro. Quando o método é muito
rigoroso, os alunos que se submeterem mais facilmente e mais
plenamente acabam acertando mais; porém, aqueles que
começarem a questionar os resultados ou mesmo os
procedimentos, acabam, quase sempre, tomando um caminho
que não leva aos resultados esperados pelo método. Por
exemplo, o aluno que aprendeu pelo bá-bé-bi-bó-bu, escreve no
ditado LT para LATA, CP para CAPA, etc. Ele entendeu que a
vogal já vem com a consoante, sendo dispensável na escrita. No
fundo, volta-se à velha distinção entre ensino e aprendizagem:
não é porque o professor ensina que o aluno aprende; não é
porque o professor ensina de um determinado modo, que o aluno
se convence de que esse é o único modo de interpretar; como
também é verdade que não é por que o professor não ensina que
o aluno não pode aprender.
O importante é o fato de que, seja em que método for, os
alunos estão sempre pensando quando fazem suas tarefas, isto
é, para tudo o que fazem, têm uma hipótese que representa a
conclusão de um processo de argumentação, que revela ao aluno
que ele deve fazer algo de determinado modo e não de outro.
Um professor que conhece profundamente como a escrita, a
leitura e a fala funcionam e o que acontece durante o processo
de alfabetização, é capaz de analisar qualquer coisa que
aconteça ou deixe de acontecer com os alunos, quando eles vão
ler ou escrever. Por outro lado, um professor que não for capaz
disso, não tem condições de lidar com certos fatos que encontra,
principalmente quando os alunos fazem coisas estranhas ou têm
comportamentos inesperados.
Um professor terá condições de analisar e entender seja lá o
que for somente se se dispuser de uma competência técnica
bem-adquirida. Nem sempre o bom senso funciona. Às vezes, é
preciso saber muito bem
<249>
como a linguagem oral e escrita funcionam. Isso demanda do
professor alfabetizador conhecimentos sóli dos de lingüística e
dos sistemas de escrita. Como as escolas de formação têm
negligenciado sistematicamente esses aspectos, os professores
precisam sanar essa deficiência procurando estudar por conta. É
particularmente importante fazer um trabalho de reflexão,
análise e interpretação de tudo o que acontece no dia-a-dia em
sala de aula, a fim de não ter apenas a visão do método e da
cartilha na prática escolar.
Quando um aluno começa a errar sistematicamente, seguindo
o método do bá-bé-bi-bó-bu, a cartilha tem como única
alternativa obrigar o aluno a rever as lições anteriores, até
compreender o que ficou faltando ou o que foi entendido errado.
Se, apesar disso, não superar suas dificuldades e continuar
fazendo do mesmo modo, o aluno é remanejado, submetido a
processos de recuperação, reprovado, até que chegue à
conclusão de que não serve para os estudos.
Essa situação extremamente constrangedora precisa ser
abolida da escola. Mas, para isso, o professor precisa entender
realmente o que significa o que o aluno faz. As explicações mais
tradicionais que os professores usam têm a ver com as
deficiências dos alunos, com seus déficits. A escola usa de
rótulos já prontos, sem saber se são verdadeiros ou não, do
mesmo modo que opta por um método como o das cartilhas, sem
medir as conseqüências. Faz isso simplesmente para resolver
dificuldades circunstanciais, porque tem medo de enfrentá-las,
considerando mais fácil ignorá-las ou afasta-las para outro lugar,
criando a falsa aparência de que, eliminando os erros a qualquer
preço, tudo está em ordem. Raramente se lembram de que o
método também pode ser o culpado e quase nunca chegam à
conclusão de que os erros, sejam eles quais forem, podem ser
entendidos como hipóteses ou raciocínios lingüísticos dos alunos
que não correspondem às expectativas da escola.
Atribuir os erros das crianças à falta de capacidade de
observação, de inteligência, a fatores socioeconômicos, médicos,
fonoaudiológicos, de desnutrição, etc. são formas equivocadas
de interpretação de fatos lingüísticos e que têm levado a
educação por péssimos caminhos. Essas explicações foram
levantadas para inocentar os métodos de sua incompetência. A
escola precisa ser mais honesta e parar de ficar interpretando os
erros das crianças de uma maneira preconceituosa.
< MASSINI CAGLIARI, 1996i
<250>
O CERTO, O ERRADO E O DIFERENTE
Há um interesse particular em estudar os erros que os alunos
cometem quando estão aprendendo a ler e a escrever. A partir
da correta análise desses erros, o professor poderá ajudar o
aluno a se superar e a progredir na aprendizagem escolar.
Alguns erros são tão sérios que, se não forem sanados, o aluno
acaba não aprendendo a ler e, conseqüentemente, não se
alfabetiza.
Tradicionalmente, os livros didáticos e, sobretudo, o método
das cartilhas não gostam de erros. O método é feito de modo a
prevenir o aluno de cometer qualquer erro, mesmo que ele não
saiba muito bem o por quê das coisas que faz. De modo geral, a
escola detesta o erro no processo de aprendizagem, razão pela
qual a nota goza de tão grande prestígio. A nota é o castigo do
erro. Obviamente, a escola, os métodos e os professores só
pensam nos erros dos alunos, jamais nos seus próprios.
Em se tratando de linguagem, é preciso distinguir o certo, o
errado e o diferente. Uma língua vive em função de seus
falantes. Como a linguagem oral é um fato social, vamos sempre
encontrar um grupo de pessoas que usam a mesma linguagem
oral. Por exemplo, no Japão, as pessoas falam o japonês, na
Coréia falam coreano, na França falam francês, no Brasil falam
português. Para estudar essas línguas, o lingüista vai pesquisar
como as pessoas desses lugares falam. Ao fazer isso, descobre
que, apesar de essas pessoas usarem a mesma língua, falam
com diferenças regionais e até pessoais. Para organizar a
gramática de uma língua, que é o conjunto de regras desse
sistema lingüístico, o lingüista precisa descrever, por um lado, as
igualdades e, por outro, as diferenças.
Essa descrição é feita sobre fatos da linguagem oral. A escrita
nada mais é do que uma representação da linguagem oral.
Porém, nosso sistema de escrita, por ter um uso social muito
abrangente, está acima dessas diferenças entre os dialetos,
sendo um só para todos. Isso, obviamente, trouxe uma grande
vantagem no uso, mas também uma grande complicação na
descrição das relações entre linguagem oral e escrita. Nosso
sistema de escrita ortográfico não está mais preocupado em
saber como o usuário fala. Este simplesmente deve seguir o que
foi estabelecido para todos nas convenções da escrita.
<251>
Essa visão de linguagem oral e de escrita tem muito a ver com
o que comumente se chama erro de linguagem. Como a escola
tradicional trabalha com a linguagem somente do ponto de vista
da escrita, fica muito difícil entender os mecanismos da fala e
quais os seus usos. Tudo o que foge ao padrão da escrita passa a
ser considerado erro. É preciso acabar com esse equívoco.
Entendendo essa diferença entre linguagem oral e linguagem
escrita, podemos voltar à discussão do que é certo, errado e
diferente em cada um dos casos.
Do ponto de vista da escrita, está errado tudo o que vai contra
a ortografia e as normas gerais do nosso sistema de escrita. A
escrita também tem um estilo próprio, exigido de acordo com as
circunstâncias pela tradição cultural. As pessoas têm muita
liberdade dentro dessas regras: um tem letra mais bonita, outro
não; um escreve mais elegantemente, outro menos; um escreve
de forma mais clara, Outro de forma mais confusa. São
diferenças aceitáveis. Porém, escrever sem seguir a ortografia
está errado (a não ser em casos muito especiais, como em
propaganda, por exemplo). Escrever sem levar em conta certas
exigências culturais também constitui erro. Por exemplo,
escrever uma carta comercial em gíria é certamente um erro, e
não apenas uma manifestação de estilo individual.
Passemos agora à linguagem falada. Às vezes, uma pessoa vai
dizer uma coisa e troca de palavra, ou gagueja, ou se atrapalha
na pronúncia, na sintaxe ou na semântica. Esses erros ocasionais
são logo percebidos pelos falantes e em geral corrigidos em
seguida. Não são erros propriamente ditos, mas acidentes
lingüísticos.
O diferente na fala aparece na comparação de um dialeto com
outro. Essas diferenças não constituem erros lingüísticos. Assim,
se alguém falar "borboleta" e as outras pessoas disserem
"barbuleta", estamos diante de diferenças dialetais, e não de
erros. Se algumas pessoas dizem "nózvãmuçtrabalhar" e outras
pessoas dizem "nóízvaitrabaiá", estamos diante de dialetos com
regras diferentes e não diante de uma fala certa e de outra
errada. Se uma pessoa chama "biscoito" de "bolacha", ou vice-
versa, trata-se de diferenças dialetais e não de erros. Isso ocorre
porque cada um fala seu dialeto. Portanto, a gramática de cada
dialeto terá suas regras próprias. Não se podem misturar as
regras de
<252>
um dialeto (gramática ou sistema) com as regras de outro,
quando há diferenças entre elas. Assim, ao dialeto que admite a
forma "nózfomuçtrabalhar" não se aplicam as regras do dialeto
que admite "nóizfumu trabaiá". Isso seria um erro, e o contrário
também. Cada dialeto tem seu modo de ser, de acordo com o uso
que as pessoas fazem da linguagem oral. Está tudo certo nos
seus devidos lugares, sem misturas de regras.
Os falantes nativos não cometem erros, a não ser por
acidente, como foi mencionado anteriormente. Assim, nenhum
falante de qualquer dialeto do português diz que "mesa" é
"cachorro" ou "Mesa o está de baixo cachorro da". Mas poderia
dizer: "O cachorro está debaixo da mesa" ou "Debaixo da mesa
está o cachorro" ou até "O cachorro debaixo da mesa está".
Vemos claramente por esses exemplos o que é um erro
lingüístico e o que constitui uma diferença lingüística.
PATOLOGIAS DA FALA
Há problemas lingüísticos oriundos de patologias? A resposta
é sim, mas exige cuidados ao dimensionar tal realidade. Uma
pessoa que sofre uma lesão cerebral pode tornar-se afásica. O
traumatismo físico afeta o uso da linguagem de várias maneiras.
Uma pessoa com fissura palatina tem dificuldades no controle
aerodinâmico da fala e, conseqüentemente, na pronúncia das
palavras. Alguém com grande retardamento mental fará um uso
especial da linguagem, em grande parte diferente do uso comum
das pessoas. Uma pessoa que nasce surda terá enormes
dificuldades para lidar com a linguagem oral. Esses são
problemas sérios porque envolvem questões da integridade
física dos indivíduos. Tais pessoas manifestam suas dificuldades
constantemente, enquanto perdurar a patologia. Uma educação
especial poderá ajudá-las.
Não é raro, sobretudo na escola, encontrar professores que
confundem casos patológicos com outros em que simplesmente
se usa a linguagem de uma maneira diferente. Não existe uma
patologia da linguagem sem uma patologia física. O inverso
precisa ser analisado com todo cuidado. Não é porque uma
pessoa fala de modo estranho que ela traz consigo uma
patologia física, por exemplo, neurológica.
<253>
Na prática, uma pessoa que faz tudo normalmente, mas
apenas "fala errado", não apresenta um caso patológico. Por aí,
a família e a escola já poderiam fazer um diagnóstico bastante
confiável. As patologias físicas são perenes, e sua manifestação
estará presente em todos os casos ligados à deficiência. Se a
pessoa é deficiente auditiva, não irá ter dificuldades apenas com
as consoantes sonoras, mas com os sons em geral, e sempre. Se
a pessoa tem problemas de lateralidade, não irá simplesmente
escrever em forma espelhada ou trocando letras, mas irá
também esbarrar nas paredes e não conseguirá passar pelas
portas. Se uma pessoa fala com os colegas, brinca discutindo o
que acontece e, depois, escreve: "O cavalo é Edu vavevivovu",
não é um afásico. Uma pessoa que copia da lousa a palavra
"pato", escrita de forma cursiva pelo professor, escrevendo
ISATO não faz isso porque tem problema de discriminação
visual, mas simplesmente porque interpretou errado a escrita.
Perturba muito a alguns professores (e pais) as crianças com
dislexia ou dislalia. Esses termos já são complicados por si. Uma
forma de defini-los é dizer que a dislexia refere-se a dificuldades
mentais e patológicas de leitura, e dislalia refere-se a
dificuldades de articulação, causadas por lesão dos órgãos da
fala. Na prática, diferenças dialetais, idiossincrasias, equívocos
de aprendizagem são facilmente classificados por algumas
pessoas como casos de dislexia ou dislalia. Para erros
semelhantes de ortografia, inventaram um termo chamado
"disortografismo". É uma forma de inserir os erros de ortografia
nos casos patológicos. A escola precisa parar de concluir que as
crianças são deficientes por que falam ou escrevem errado.
Apesar de nascerem num ambiente onde se fala um
determinado dialeto, algumas crianças acabam falando de modo
estranho. Essas idiossincrasias acontecem porque as pessoas
tomam caminhos diferentes ao adquirir a linguagem oral. Somos
falantes de um dialeto, mas somos ouvintes de todos os dialetos.
Resumindo, na aquisição da linguagem, aprendemos antes a
ouvir e a entender do que a falar. Entender parece, então, ser o
ponto principal na aquisição da linguagem. Por outro lado,
concebemos a variação lingüística como sendo um fato marcante
da linguagem: há pessoas que dizem "tchia" e há outras que
dizem "tia", pessoas que dizem "baudji" e outras que dizem
"bardi".
Algumas crianças têm a marca da própria individualidade tão
forte, que começam a testar usos diferentes
<254>
da linguagem para falar (não para entender...). Acabam
produzindo regras muito consistentes e de aplicação geral,
modificando alguns aspectos do dialeto que estão aprendendo. E
curioso notar que as modificações são de cunho morfofonológico,
agindo especialmente sobre o aspecto sonoro. Por exemplo,
criam uma regra que ensurdece todas as consoantes oclusivas e
fricativas, mas não outros segmentos fonéticos, que continuam
sonoros. Essas crianças aca bam falando coisas como: "patata"
(BATATA), "póla" (130- LA), "katu" (GATO), "faka?' (VACA),
"foçefaipuçkautiçku?" (VOCÊ VAI BUSCAR O DISCO?). Outra
criança substitui todas as fricativas e oclusivas sonoras pelas
oclusivas surdas correspondentes:
"totêtaitutátumatólataraminh?" VOCÊ VAI BUSCAR UMA BOLA
PARA MIM?).
Essas crianças se fazem entender e, se a família entra neste
jogo, continuam falando desse jeito até saírem de casa e
começarem a perceber que as outras pessoas as ridicularizam.
Com o tempo, por causa da pressão social, essas crianças
deixam de falar assim. Mas pode acontecer de alguma criança
chegar até à escola falando desse modo. Por outro lado, quando
a pressão familiar é muito forte, algumas crianças ficam tão
preocupadas com a fala que acabam cristalizando esse modo de
falar, com medo de aprender algo diferente e com outros erros. É
o caso típico de pessoas gagas. A criança começa gaguejando
para passar da fala silabada que usa no início para uma fala num
ritmo acentual, típico da fala do adulto. Os erros ocasionais
produzem uma certa gagueira, que desaparece normalmente.
Mas, sob pressão psicológica muito forte, a criança pode
cristalizar a gagueira, em vez de eliminá-la.
Em todos esses casos, com muito tato, as famílias deveriam
forçar as crianças a imitar os adultos, evitando, assim, esses
modos de falar estranhos. Todavia, não se deve criar um
problema maior do que existe. O tempo ajuda mais do que os
conselhos. Por isso, em vez de esconder a criança, o melhor é
expô-la à comunidade, deixá-la interagir com outras crianças,
receber críticas e até zombarias, porque, no convívio, esses
problemas se resolvem melhor e muito mais cedo. Se o professor
tiver alunos que se encaixam nesse caso, precisará agir com
muito cuidado, sabendo que o melhor remédio é a pressão social.
É por isso que as atividades sociais na escola, como os recreios e
as festas, são tão importantes, principalmente para as primeiras
séries. Convém observar também que alguns dos "defeitos" de
fala de
<255>
crianças não são encontrados em fala de adultos, como é o caso
de quem fala somente com oclusivas: "totê tétitáti?" (VOCÊ
QUER FICAR AQUI?).
Os fonoaudiólogos deveriam se dedicar apenas aos casos em que
há patologia física, ajudando as pessoas a melhorar o
desempenho verbal. Os problemas da escola, ela própria deveria
resolver. Se fôssemos usar os mesmos critérios de certas
pessoas para classificar algumas crianças como portadoras de
patologia, a partir da observação de como usam a fala e a
escrita, deveríamos considerar muitos adultos, que estão
aprendendo línguas estrangeiras, como deficientes, porque
falam tudo errado, não conseguem aprender direito, etc.
Estariam no mesmo caso adultos que não conseguem "entender
direito" como lidar com computadores e com máquinas em geral,
ou não conseguem se virar direito em certos jogos de vídeo-
game. Os erros que cometem são tão primários quanto os das
crianças que estão aprendendo a ler e a escrever. Numa aula de
chinês para adultos falantes de português, iríamos encontrar
inúmeros adultos disortográficos e até com dificuldades de
controle mecânico fino, com problemas de lateralidade ao traçar
os caracteres, e assim por diante. Então, somos todos portadores
de patologias? Se não nos consideramos deficientes nessas
situações, por que achar que as crianças em situações idênticas
são deficientes? Não será um preconceito contra elas?
Isso não significa que as crianças não tenham mais nada a
aprender. Pelo contrário, a escola existe justamente para ensiná-
las o que ainda não sabem. O problema está em avaliar o que a
criança sabe e que precisa ser melhorado, o que precisa ser
incorporado como conhecimento novo, e o que precisa ser
deixado de lado, por ser um erro. Sua fala não precisa ser
melhorada porque o aluno já é falante de um dialeto do
português. Mas ele pode incorporar ao seu uso o de outros
dialetos, principalmente se não for falante da norma culta. E
inevitável que uma pessoa cometa erros quando está
aprendendo a ler e a escrever, como também é certo que esses
erros precisam ser corrigidos com o tempo. O professor não deve
falar apenas dos erros, mas também do processo de
aprendizagem, salientando que os alunos podem se aventurar
com os conhecimentos que têm, sabendo, contudo, que nem tudo
sairá correto. Daí a necessidade de educar as dúvidas a respeito
do que se faz, para checar constantemente se o resultado obtido
está certo ou não.
<256>
O ERRO E A REFLEXÃO DO ALUNO
Os erros que as crianças cometem são fruto de uma decisão
errada que tomaram. Uma decisão é o resulta do prático de um
processo de reflexão sobre um determinado assunto. Assim, ao
tomar uma decisão, uma pessoa tem de optar entre várias
possibilidades. Através de um processo de reflexão, ela chega a
uma das alternativas, considerada a mais adequada. A decisão
tomada nem sempre corresponde a uma "verdade" esperada.
Quanto menos informações tiver o indivíduo, mais dificuldades
terá para acertar.
Em casos de dúvida, as pessoas começam a agir através de
tentativa-e-erro, fazendo o processo de reflexão funcionar mais
efetivamente na avaliação dos resultados, julgando a adequação
através de comparações e tomando decisões mais eficientes, que
levam a um resultado já sabidamente conhecido como correto.
O método das cartilhas costuma avaliar apenas por
comparação. Confere-se com o original, e logo se vê se houve
acerto ou erro. Outro tipo de procedimento procura interpretar o
processo de reflexão individual que levou a pessoa a tomar
determinada decisão. No caso da cartilha, se o aluno errou,
pede-se a ele que faça uma nova tentativa. Talvez acerte. No
segundo caso, analisando o que o aluno pensou, pode-se
fornecer a ele novas informações para completar as que já tem
e, assim, ter melhores chances de tomar as decisões corretas.
Deve ser assim até que o aluno saiba tomar as decisões corretas
por si.
PROBLEMAS DE APRENDIZAGEM DE LEITURA E ESCRITA
Vamos fazer algumas observações a respeito de certos
problemas de interpretação da escrita e da leitura que a escola
enfrenta no processo de alfabetização. Iremos estudar
especialmente os problemas de aprendizagem de leitura e de
escrita, através da produção de escrita espontânea pelas
crianças.
Apresentaremos uma série de casos que ilustram diferentes
tipos de erro relativos à escrita e à leitura, juntamente com os
comentários necessários para esclarecer as hipóteses que
levaram os alunos a cometer esses erros.
<257>
Quando a própria explicação das hipóteses das crianças não
deixar claro o caminho a seguir, serão apresentadas sugestões
para o professor ensinar o aluno a não errar e a melhorar seu
desempenho na alfabetização.
Os testes revelam o que as crianças pensam da escrita?
1. Interpretação semântica da palavra
Alguns psicólogos costumam fazer o seguinte teste:
mostram um litro de um líquido e o despejam numa jarra
estreita; depois, pegam um outro litro do mesmo líquido (ou o
conteúdo da jarra estreita) e despejam numa jarra larga. Então,
perguntam às pessoas se há a mesma quantidade de líquido na
jarra estreita e na jarra larga. Algumas pessoas, principalmente
as crianças, acham que há mais líquido na jarra estreita do que
na jarra larga, partindo da idéia de que quanto mais alto o
volume da água, mais água contém a jarra. Para a criança, a
jarra que está mais cheia na vertical é a que contém mais
líquido. Medir volume por outros meios não parece ser fácil.
Usando a idéia do realismo nominal, oriunda de experimentos
como o mencionado acima, segundo Emilia Ferreiro, alguns
psicólogos fizeram testes, mostrando as palavras FORMIGA e
BOI, na forma escrita, e pedindo para que a criança indicasse
qual delas era a palavra BOI e qual a palavra FORMIGA.
Verificaram que as crianças costumam indicar a palavra
FORMIGA como sendo BOI e vice-versa. Concluíram, então, que
as crianças têm uma tendência a julgar pelas aparências e não
pelo valor simbólico da representação lingüística.
Provavelmente, as crianças pensariam que o tamanho das
palavras devesse ser proporcional ao tamanho dos objetos que
elas representam.
Tenho minhas dúvidas a respeito dessa interpretação. Se, em
vez de mostrar as palavras escritas, pedíssemos para a criança
analisar sua fala, pronunciando as palavras BOI e FORMIGA,
para então dizer em que caso a palavra é maior, ou seja, leva
mais tempo para falar, certamente a resposta seria diferente.
Quem faz uma pergunta como: "Que palavra é maior: BOI ou
FORMIGA?" costuma pensar na forma escrita e se esquecer de
que a palavra tem também um significado. Aliás, as pessoas,
inclusive as crianças, guiam-se muito mais pela semântica do
que pela fonética, quando falam. Portanto,
<258>
do ponto de vista semântico, a palavra BOI pode perfeitamente
ser interpretada como sendo "maior" do que a palavra FORMIGA,
porque, no primeiro caso, o animal representado é maior.
Os dois tipos de experimento são armadilhas para as crianças
e, na verdade, nada provam. Poderíamos fazer outras perguntas
e descobrir que as crianças, de fato, sabem distinguir
quantidades ou sabem responder corretamente. Por exemplo,
com relação à linguagem, se o experimento fosse conduzido da
seguinte maneira: pegam-se os dois cartões com as palavras BOI
e BORBOLETA, diz-se o que está escrito, mostram-se as letras, e
pergunta-se qual é a palavra que está escrita com mais letras. As
crianças, neste caso, respondem corretamente.
Se for perguntado apenas: "Qual é a palavra maior",
a criança julga pelo valor semântico que as palavras
têm e, nesse caso, tem toda a razão de dizer que a palavra BOI é
maior do que a palavra FORMIGA. O pesquisador está
preocupado com a escrita, e a criança, com a semântica.
Portanto, é falso dizer que as crianças não-alfabetizadas
fazem hipóteses erradas a respeito do tamanho das palavras. É o
psicólogo quem faz uma interpretação equivocada do fenômeno,
confundindo fala com escrita.
2. A figura como interpretador de texto escrito
Outro experimento, oriundo do trabalho de psicólogos,
consiste em pedir para uma criança não-alfabetizada ler um
livrinho de história e mostrar com o dedo o que está lendo. A
criança corre com o dedo o texto escrito, olha as figuras da
página e vai contando a história a seu modo. Depois, apresenta-
se à mesma criança um texto sem figura e pede-se para ela ler.
Ela diz que é impossível ler, porque não tem desenho. Daí, o
psicólogo seguidor das idéias de Emília Ferreiro conclui que a
criança pensa que não se pode ler um texto sem figura, que a
figura é o interpretador de qualquer texto escrito.
Como se trata de uma criança que não sabe ler, o que ela pode
fazer numa situação como essa? Ela sabe que os textos escritos,
quando acompanhados de fotos ou desenhos, referem-se a essas
figuras. Como ela não sabe ler o texto, a única alternativa é
tentar dizer algo a respeito do texto, interpretando as figuras e
os desenhos. É uma saída inteligente, usada comumente pelos
especialistas em decifração.
<259>
Curiosamente, a prova de que a criança sabe muito bem que
escrita é diferente de figura, está justamente no fato de que ela
confessa não ser capaz de ler um texto sem desenho. Isto é,
sabe que ELA não pode ler porque é analfabeta. Mas isso não
impede que OUTRA PESSOA o faça. Se o pesquisador tornasse o
texto sem desenho e lesse, e perguntasse à criança se é possível
ALGUÉM ler um texto sem desenho, a criança certamente iria
concluir que é perfeitamente possível. Aliás, escreve-se
justamente para que alguém possa ler, e desenho não é letra,
caso contrário, porque se imprimiriam tantos livros sem figuras?
Na história da escrita há inúmeros casos de decifração de
escrita antiga que foram interpretados a partir de desenhos que
acompanhavam o texto. Nem por isso, os pesquisadores
acreditavam que fosse preciso uma figura para ler o texto,
embora reconhecessem que isso poderia ajudar. A decifração das
inscrições do rochedo de Behistun é um exemplo. A escrita maia
é outro exemplo. Champollion sabia que no obelisco de Cleópatra
devia estar escrita a palavra Cleópatra.
3. Adivinhando palavras na leitura
Num outro tipo de experimento para testar o que as crianças
pensam da escrita e da leitura, mostra-se uma foto, por
exemplo, de um trator com dois homens conversando, e uma
legenda: "João emprestou o trator a José". O teste consiste em
fazer com que uma criança, que não sabe ler, indique onde está
escrita a palavra TRATOR, sem dar nenhuma pista para a
criança: ela deve descobrir por si e explicar a razão de sua
escolha (sic!). A criança tem, em geral, duas atitudes em casos
dessa natureza: diz que TRATOR é a primeira palavra escrita ou
aponta para a que tiver mais letras (nesse caso, a palavra
EMPRESTOU).
Obviamente, essa é uma brincadeira de adivinhar de muito
mau gosto: gostaria de fazer o mesmo com aquele pesquisador,
usando, porém, um texto em chinês ou mesmo em árabe, para
ver sua reação. A criança é constrangida pela obrigação de
responder e, para se ver livre do pesquisador, responde qualquer
coisa. A prova disso é que se o pesquisador disser que ela está
errada, ela continua mostrando outras palavras, até satisfazer a
curiosidade do pesquisador. Ela tem consciência de que não sabe
ler, então, porque obrigá-la a fazer algo impossível?
DOBLHOFFER, 1957 e MELLA 1981.
<260>
As crianças não-alfabetizadas não ficam procurando associar
fatos da escrita, como tamanho e forma de palavras, baseando-
se em analogias com o mundo real. Se ela não faz isso quando
fala, por que deveria fazer com a escrita? Seu comportamento é
induzido pelo pesquisador para produzir determinado tipo de
resposta e, portanto, não serve de evidência para mostrar o que
de fato uma criança que não sabe ler pensa a respeito da escrita
e da leitura.
Por outro lado, esses equívocos experimentais propiciam
atividades pedagógicas nocivas ao processo de aprendizagem,
induzindo a criança a pensar coisas estranhas a respeito do
mundo da escrita e da leitura. Depois disso, algumas delas
começam a dar retorno, fazendo tudo segundo as expectativas
do pesquisador ou do professor, confundindo seu próprio
raciocínio.
4. Quantas letras formam uma palavra?
Algumas pessoas elaboraram testes perguntando quantas
letras seriam necessárias para se ler algo e descobriram que as
crianças diziam que uma escrita deve ter no mínimo três letras,
que não podiam ser iguais.
Essa afirmação contradiz o fato de haver muitas crianças que
simulam espontaneamente a escrita de um texto e apresentam,
às vezes, uma enorme repetição da mesma letra. Por Outro lado,
sem dúvida alguma, parece muito razoável que as crianças
pensem que ler apenas uma letra não faz sentido, e ler letras
iguais não tem graça, mesmo porque na fala ninguém fica
repetindo o mesmo som três vezes seguidas.
5. Identificação de palavras
Algumas pessoas têm mostrado que as crianças se apegam mais
a nomes (substantivos e adjetivos) do que a verbos — e menos
ainda a outras categorias da morfologia —, quando tentam
identificar palavras ouvidas, apontando onde elas ocorrem na
escrita. Se a frase é: O TRATOR QUEBROU, as crianças julgam
mais importante achar primeiro a palavra TRATOR e não
QUEBROU, por exemplo. Se a frase é MARIA COMPROU UM BOLO
PARA A FESTA DE ANIVERSÁRIO, as crianças vão procurar as
palavras FESTA, BOLO, MARIA, e não COMPROU.
Essa escolha não depende de um comportamento
psicológico, mas lingüístico. O que a criança faz nada mais é do
que privilegiar o foco do enunciado, a idéia principal,
<261>
aquilo do que se fala, que mais interessa ao interlocutor. Nesses
casos, a escolha é um substantivo e não um verbo. Atrás da
resposta da criança há um uso pragmático da linguagem, não
uma análise gramatical.
6. Inventando palavras onde elas não existem
Diferente do teste anterior é aquele em que as crianças
inventam palavras para modificar o texto original apresentado,
nas primeiras tentativas de leitura. Diante de um enunciado
como MARIA COMPROU UM BOLO DE CHOCOLATE, a criança
conta uma história: "No aniversário da Maria tinha um bolo
muito gostoso".
Isso não significa que a criança ainda não seja capaz de juntar
as palavras para ler corretamente a frase. Pelo contrário, tal
leitura revela um leitor que já sabe ler e interpretar o que lê,
apropriando-se do texto e modificando-o de acordo com o
próprio desejo. Se o aluno tivesse lido algo corno: ONTEM
CHOVEU E INUNDOU A CIDADE, isso mostraria que ele não sabe
ler e está inventando.
O esforço de descoberta possibilitou a produção do texto
enunciado pela criança. As modificações representam sua
interpretação do texto original. A criança colocou-o num
contexto seu e disse o essencial dentro desse novo quadro. Esse
tipo de leitura é o que nós adultos fazemos. Quando lemos
um romance, por exemplo, ou uma poesia, ficamos vagando no
nosso mundo de fantasia, inventando mil coisas paralelas ao
texto escrito. Como fomos educados pela escola, sabemos que
não podemos expressar nossos sentimentos nessas ocasiões,
porque nossa cultura exige que respeitemos o princípio da
literalidade na leitura. Assim, ao lermos em voz alta, devemos
pronunciar apenas as palavras escritas no texto, deixando
dentro de nós toda e qualquer interpretação que não seja a
reprodução do que a escrita representa literalmente.
Outras formas de descobrir o que as crianças acham da escrita
7. "Cachorro começa com FU"
Com muita razão, as crianças pensam que as palavras têm
sons e significados e que são usadas para se referirem ao mundo
interpretando a realidade... Se não soubessem disso, não
aprenderiam a falar. Segundo os lingüistas,
<262>
as pessoas, quando falam ou ouvem, guiam-se pelas idéias que
a linguagem transmite e só secundariamente analisam os sons e
as estruturas gramaticais. Na escola, porém, a atividade de
estudo da linguagem consiste basicamente em analisar os sons e
as estruturas gramaticais, deixando de lado por vezes o
conteúdo semântico das palavras.
Uma professora me contou, certa vez, que na época em que
estava sendo alfabetizada sua professora perguntou: "Cachorro
começa com quê?" Ela prontamente respondeu: "Com FU". Todos
riram e a professora a mandou sentar, sem nenhuma explicação.
Como diz o ditado popular: "Quem pergunta o que quer, ouve
o que não quer". A forma de perguntar é muito importante.
Muitos alunos, de todos os níveis escolares, são reprovados não
porque não saibam, mas porque não conseguem perceber que a
pergunta do professor é capciosa e precisa ser respondida
segundo as expectativas do professor, e não literalmente.
Quando a aluna disse que CACHORRO começava com FU, estava
pensando no animal cachorro, em suas partes e, para ela, era
natural que um cachorro começasse pelo FOCINHO. Porém, a
professora não disse, mas queria que os alunos entendessem a
sua pergunta da seguinte forma: 'A palavra cachorro começa
com que letra?"
Se uma professora perguntar: "Quem sabe uma palavrinha
que começa com o som de GATO?", muito provavelmente vai
ouvir de algum aluno, como resposta, a palavra MIAU. O
professor diz que está errado (sic!) e corrige falando, por
exemplo, GARFO (sic!). A professora está pensando na forma
escrita das palavras, e o aluno, nas idéias que o enunciado
transmite, mesmo porque ainda não sabe ou não pensa com
rapidez a forma escrita das palavras.
Atividades conduzidas dessa maneira podem levar alguns
alunos a não entenderem o que se faz na escola, criando
embaraços sérios para continuar acompanhando o que o
professor ensina e o que deve aprender. É um absurdo pensar
que o aluno que respondeu FU ou MIAU, nos casos discutidos
anteriormente, não consegue perceber sons semelhantes em
início de palavras.
Os professores alfabetizadores se deparam com uma
quantidade enorme de fatos curiosos a respeito do
comportamento das crianças, ao aprender a ler e a escrever.
Esse anedotário constitui um excelente material para uma
pesquisa interpretativa das hipóteses que as crianças levantam
ao adquirir a linguagem escrita. Em vez
<263>
de aplicar testes idiotas, com perguntas capciosas, por que não
interpretar diretamente o que acontece nas salas de aula
durante o processo de alfabetização?
8. Aprendendo sozinho por níveis ou por incorporação de
ensinamentos?
Alguns pesquisadores acreditam que, deixando a criança
exposta a atividades de escrita, elas vão por si mesmas fazendo
uma mudança conceitual cada vez mais avançada, passando por
níveis cada vez mais sofisticados de interpretação da escrita.
Para jsso, por exemplo, o professor fica durante um certo tempo
pedindo para os alunos escreverem nomes próprios ou dando
ditados de palavras isoladas (ou até pequenas histórias). Os
alunos escrevem como quiserem, orienta o professor.
Na prática, tem-se constatado que, nesse tipo de atividade,
aparece de tudo um pouco, não só com relação à classe como um
todo, mas também para um mesmo indivíduo. Não existe um
caminho certo e único para aprender. Mas é verdade que, ao
longo do tempo, pode-se perceber muito bem como os alunos
(apesar de estarem aparentemente livres e sozinhos) vão
incorporando pequenas informações a respeito da escrita e da
leitura. Isso acaba produzindo alguns fatos semelhantes entre
os alunos, razão pela qual alguns pesquisadores começaram a
atribuir a essas modificações uma classificação por níveis. Por
exemplo, Emília Ferreiro e Ana Teberosky propõem níveis como:
pré-silábico, silábico e alfabético. Não se pretende discutir aqui a
classificação científica, mas os fatos.
Quando um professor pede aos alunos, que não sabem ler, que
escrevam qualquer coisa, como os nomes dos colegas, alguns
põem-se a copiar o que vêem escrito. Copiam fazendo rabiscos,
imitando a escrita cursiva, tentando desenhar letras, etc. Os
alunos têm grande convicção de que se aprende copiando.
Mesmo agindo assim, os alunos estão pensando e, quando não
têm um modelo para copiar, apóiam-se em conhecimentos que
podem extrair da realidade mais próxima ou simplesmente usam
os conhecimentos prévios que já adquiriram. Além de copiar,
as crianças esperam que alguém — o professor — explique o que
precisam saber para que a cópia não se torne uma atividade
puramente mecânica.
Nenhuma criança (ou pessoa) aprende como funciona o
sistema de escrita simplesmente copiando ou imitando. É preciso
muito mais. A razão disso é que, ainda hoje,
<264>
há vários sistemas de escrita que ainda não foram decifrados.
Aliás, uma das tentativas mais antigas de decifração de escrita
continua frustrada até hoje: a escrita maia. Outras escritas que
despertaram o interesse muito tempo depois, como a escrita
egípcia e a cuneiforme, foram decifradas com certa facilidade. O
que leva um sábio a decifrar uma escrita é a descoberta de como
ela representa a fala de uma determinada língua. Sabendo a
língua, fica mais fácil; do contrário, torna-se praticamente
impossível. A decifração exige comparações e a formulação de
regras com coerência e generalização. E esta é, sem dúvida, uma
boa maneira de alfabetizar alguém. Quando o sistema de escrita
é conhecido, isso pode ser feito em pouco tempo e com bons
resultados. É o que o professor deveria fazer em sala de aula.
Como o aluno conhece a língua, poderá facilmente entender as
regras de decifração. A partir de umas poucas idéias de como
funcionam as relações entre letras e sons, poderá generalizar o
processo de entendimento e aprender por si. Porém, se não tiver
algumas explicações iniciais, ficará perdido durante um tempo
longo demais para as exigências da escola e da vida. Mina!, a
escola existe para ensinar e não como um lugar onde as crianças
descobrem tudo sozinhas.
Nota
Recentemente, têm aparecido tentativas de decifração da
escrita maia, cuja aceitação ainda não foi confirmada.
Portanto, deixar as crianças fazerem isso por si é perder tempo e
paciência. Por isso, induzir os alunos a percorrer um caminho
que passa pelos níveis de construção da escrita, propostos pela
psicogênese da língua escrita de Emilia Ferreiro, não faz sentido.
Por que uma criança passa do nível pré-silábico para o silábico?
Essa é uma pergunta fundamental. Ela não faz isso porque a
natureza humana a leva de um nível a outro automaticamente,
pelo simples fato de ter diante de si lápis e papel. A criança
começa a escrever rabiscando porque nem sequer lhe dão algo
que possa copiar, então só lhe resta pressupor que a escrita é
uma representação gráfica da fala, que pode ser feita de
inúmeras maneiras. Assim, apega-se à única idéia que tem: a
escrita é uma forma gráfica de representação da fala. Logo, faz
seus rabiscos, representando a fala. Como é que as formas
gráficas representam a fala é algo que sobretudo ela gostaria de
saber, mas não sabe. A segunda idéia é a do caos do mundo da
escrita: escreve-se de muitas formas, portanto, nada mais
natural do que acrescentar mais uma...
A criança sente-se tão frustrada quanto o adulto e sabe que
escrever em todos os sentidos não pode ser o que ela fez. A
criança tem consciência de que não sabe
<265>
escrever, porque tem consciência de que não sabe ler... Então,
como ninguém a ensina a ler e a escrever, acaba procurando as
letras, porque sabe da sua existência; ela já as viu de muitas
formas. Com isso, passa a escrever grafando as letras que
consegue descobrir em algum lugar: alguns tentam imitar a
escrita cursiva e logo percebem que é uma forma muito
complicada de produção gráfica. Então, começam a usar letras
de fôrma maiúsculas (às vezes misturadas com minúsculas) para
escrever: agora, pelo menos, a produção gráfica da escrita é
mais fácil. O resultado é bem mais semelhante ao modelo.
Depois dessas tentativas de escrita aleatórias, a criança ouve
alguém dizendo que as letras representam os sons das palavras.
Isso parece algo muito interessante, pensa o aluno. Resta,
agora, descobrir como as letras representam os sons. Então,
surgem as famosas perguntas: "Que letra é esta? É a letra U de
URUBU", "Que letra é esta? É a letra B de BOLO", e assim por
diante. Descoberta a técnica, o aluno põe-se a investigar os
casos que se lhe apresentam, ao tentar escrever uma palavra.
Por exemplo, quer escrever BOLO. Como fazer? Falar é fácil. E
preciso descobrir as letras, agora. A palavra BOLO pode ser
analisada em partes, observando-se a qualidade das vogais ou a
articulação das consoantes. Então, o aluno começa a analisar sua
fala, dizendo: B0000-LUUUU. E chega à conclusão de que BOLO
se escreve O U. Por outro lado, analisa os movimentos
articulatórios das consoantes: bobobobo lulululu, e escreve: B L.
Esse aluno não chegou a esses resultados por si, mas porque
alguém lhe deu uma informação preciosa: as letras representam
sons da fala, como U de URUBU, B de BOLO. Ora, se o aluno
aprende pelas informações que vai incorporando, e não por
simples e espontânea reflexão, por que, em vez de dar uma
informação tão reduzida, o professor já não vai ensinando de
maneira mais inteligente?
É incrível como algumas crianças com tão poucas informações
acabam escrevendo coisas como: C V L ou AA O para CAVALO, B
B LT ou O O EA para BORBOLETA. Essas escritas não são fruto de
uma interpretação por parte da criança, segundo a qual a escrita
representa sílabas por letras. A explicação é a que foi dada
acima. O curioso é que esses alunos já sabem a forma gráfica
das letras, o valor fonético que representam e até a forma
ortográfica das palavras. Eles escrevem letras corretas, de
acordo com a ortografia. Falam "u" e escrevem O...
<266>
Em geral, escrevem apenas as vogais ou apenas as
consoantes, mas pode-se encontrar uma mistura, numa tentativa
de escrever o que foi identificado, de um modo ou de outro. Por
exemplo, é o caso do aluno que escreve: C M U para CAMELO. Ele
conhece o C ("kê"), o M ("mê"), mas não conhece o L (o "lê" de
LU). Porém, conhece o U do LU, e escreve C M U.
É evidente que o procedimento de descoberta usado pelo
aluno envolve uma relação entre letra e sílaba na fala. A
hipótese dele, porém, não é de que uma letra represente uma
sílaba, mas de que basta representar a sílaba por uma vogal ou
por uma consoante, ou seja, pela qualidade vocálica ou pela
articulação consonantal e, dessa forma, a escrita tem uma chave
de leitura bastante razoável. Essa hipótese, na verdade, é uma
das razões pelas quais a escrita semítica (egípcia, fenícia, árabe
clássico, hebraico clássico) representa apenas as consoantes e
não as vogais. As crianças fazem da mesma maneira e pelas
mesmas razões. Gelb tentou interpretar a escrita egípcia como
sendo silábica, mas seus argumentos não convenceram os
especialistas em sistemas de escrita. Uma escrita silábica típica
é a japonesa (katakaná, por exemplo), em que, para cada grupo
silábico composto de uma consoante mais uma vogal,
corresponde uma letra na escrita. Por exemplo, existe uma letra
diferente para cada sílaba do tipo bá-bé-bi-bó-bu, o que as
crianças fazem quando escrevem CAVALO, usando apenas as
letras C V L ou A A O. Esse raciocínio não tem nada de
semelhante com o funcionamento de uma escrita como a
japonesa.
9. Explicitação da decifração na leitura
As crianças constroem hipóteses baseadas em dois pontos de
vista distintos: um é o do método a que são submetidas, outro é
o da decisão pessoal, baseada nos conhecimentos que possuem
e na argumentação para chegar ao resultado ou conclusão
pessoal.
O primeiro tipo de hipótese predomina quando o aluno é
alfabetizado pelo método das cartilhas. Embora ele venha
observando os fatos de leitura e de escrita há muito tempo e
tenha opiniões pessoais a respeito, na escola, prefere usar, como
referência principal para sua argumentação, os conhecimentos
relacionados ao processo de ensino que recebe. E o caso típico
do aluno que aprende seguindo o bá-bé-bi-bó-bu e, quando vai
ler, explicita em voz alta essa técnica, lendo, por
<267>
exemplo: 'A lê-a-lá, tê-a-tá, la-ta: a lata". Concluindo, lê
analisando as letras em famílias de sílabas, depois compondo as
partes da sílaba que descobriu e, finalmente, juntando as sílabas
e formando a palavra.
Esse tipo de aluno encontrará enorme dificuldade em ler
corretamente grupos de consoantes ou quando encontrar as
chamadas "consoantes surdas". Assim, ao tentar ler uma palavra
como BRASIL, o aluno percorre o seguinte caminho: bê de
barriga, do bá-bé-bi bó-bu, rê de rato e do rá-ré--ri-ró-ru, A, o
esse do sá-sé si-só-su, o 1 e o lê do lá-lé-ii-ló-lu. Agora,
juntando: bê rê-a-çê.-i-lê = "berreaçeilê" (sic!?). Quando o
professor diz que está errado, o aluno logo percebe que não
juntou direito as letras e lê: "bê-rra-çi-lê" (sic!?). O professor
insiste em que está errado, e o aluno faz nova tentativa:
"berraçil" (sic!?). O professor perde a paciência, diz que está
escrito "Brasil". O aluno faz uma cara de derrotado e diz
baixinho "Brasil".
Quem quiser entender por que um aluno lê desse jeito, precisa
descobrir que idéias ele usa para ler. Nesse caso, é evidente que
o aluno segue o método do bá bé-bi-bó-bu, que o ajuda a ler
corretamente sílabas do tipo consoante mais vogal, mas se
atrapalha muito para descobrir como se lêem sílabas de outra
natureza.
Ao ler uma palavra como APTO, alguns alunos só conseguem
dizer "apítu" e não "á-pi-tu" ou "ap-tu". Isso acontece porque,
no método do bá-bé-bi-bó-bu, as famílias de letras (sílabas) são
sempre constituídas de uma consoante seguida de uma vogal.
Para resolver parte das dificuldades apresentadas pelo método,
as cartilhas passaram a apresentar também famílias com grupos
consonantais, como: brá-bré-bri-bró--bru. Essa lição pode
ajudar o aluno a ler mais facilmente uma palavra como BRASIL.
Mas as cartilhas não apresentam "famílias" de letras com sílabas
contendo consoantes mudas: ap-ep ip-op-up. Para um aluno ler
segundo o modelo, de acordo com o método do bá-bé-bi-bó-bu,
as cartilhas precisariam apresentar todas as combinações
possíveis de letras que representam uma sílaba. Isso, por outro
lado, tornaria a cartilha um livro extremamente longo e
complicado para as finalidades a que se propõe.
Quando se lê, é preciso usar os conhecimentos de decifração.
O que o aluno não está sabendo é que não se podem enunciar
em voz alta os procedimentos usados para se chegar à leitura, os
quais devem ser processados na cabeça, em silêncio. Depois de
descoberto o que está escrito, procede-se à leitura, em voz alta,
<268>
respeitando o princípio da literalidade. Criança que lê a palavra
HORA dizendo "agora", está claramente revelando a
interpretação da decifração do primeiro som pelo nome da letra:
"agá + ora agora". Às vezes, as crianças dizem "kê" lendo
palavras que começam com C + E ou I, e o professor não percebe
o porquê do erro do aluno, corrigindo-o sem explicar.
Esse procedimento muitas vezes cria impasses insuperáveis
para alguns alunos, que acabam desistindo de ler. Tentam ler
uma palavra como CASA ou BOLA e não conseguem chegar a
uma conclusão sobre o que está escrito, porque interpretam
errado as primeiras letras e chegam a uma palavra que não
existe, o que os faz desanimar. A criança pensa: "çê-á esse-a
çeaéça". Ou então: "bê-ô-lê-á beôlêa". Se o professor corrige
dizendo "beôleá", é pior ainda.
Diante de casos como esses, o professor precisa analisar a
conduta do aluno e descobrir quais são as hipó teses que ele está
levantando para decifrar a leitura, a fim de indicar ao aluno o
que ele deve fazer para mudar. Não basta dizer o certo e mandar
a criança repetir: isso não a ajuda em nada. Ela quer e precisa de
uma explicação técnica adequada. É impressionante como os
professores de alfabetização, em geral, não sabem sequer
perceber a real situação de alguns alunos que apresentam essas
dificuldades de leitura. Em vez de ajudar o aluno, alguns
professores já mandam estas pobres crianças para classes
especiais, quando não para psicólogos, dizendo (injustamente)
que estão cansados de ensinar e nem assim esses alunos
aprendem (sic!).
Mesmo um aluno que lê corretamente e com certa fluência, na
alfabetização, pode estar pensando do mesmo modo que o aluno
do caso acima. O aluno que lê bem também passa por um longo e
tortuoso processo de decifração da escrita, mas faz isso com
certa rapidez. Por outro lado, o aluno que se apegar demais ao
processo de decifração nunca conseguirá a fluência necessária
na leitura. Acabará sendo um leitor lento, quer com relação à
quantidade de material que lê, quer com relação à assimilação
dos conteúdos. Isso é fruto do método com que lhe ensinaram a
ler.
10. Leitura silenciosa acompanhada de articulações
Alunos que ficam mimicando as articulações dos sons
enquanto lêem em silêncio; que têm de ler em voz alta
<269>
para entender; ou que só entendem o que lêem em silêncio;
alunos que demoram demais para ler apresentam problemas de
leitura, com os quais o professor deve se preocupar.
A leitura fluente pode também ser ensinada e treinada e não
ficar somente a cargo dos alunos. O professor pode mostrar
como se lê, ler em grupos, reduzir o número de participantes
desses grupos até chegar a um aluno. Depois de muitas
repetições, os alunos se sentem mais familiarizados com o texto
e acabam lendo melhor. A leitura de improviso, por outro lado, é
sempre problemática e deve ser evitada.
11. Velocidade de leitura
A velocidade ideal de leitura é a aquela com que as pessoas
falam normalmente. Como alguns falam mais depressa do que
outros, existe uma certa variação. Quanto mais se acelera a
leitura, mais difícil a reflexão sobre o que se está lendo,
tendendo-se para uma leitura mais literal. Não faz sentido ler um
romance ou um livro de poesia a todo vapor (as chamadas
leituras dinâmicas), porque o objetivo de uma obra literária não
é apenas saber o que o autor diz literalmente, mas saborear a
arte dessas obras.
PROBLEMAS DE ESCRITA ORIUNDOS DE DIFICULDADES COM AS
LETRAS
Quando repete um modelo, a criança está testando sua
capacidade de responder ao que lhe foi perguntado
simplesmente imitando. Quando procura fazer uma atividade de
leitura ou de escrita por iniciativa própria, a criança usa de sua
reflexão, baseada em seus conhecimentos, para tomar as
decisões que julgar melhor.
No primeiro caso, típico do método das cartilhas, é difícil saber
exatamente as razões daquilo que as crianças fazem ou deixam
de fazer, pois as exigências do modelo são mais fortes do que a
reflexão pessoal da criança. Por isso, é costumeiro que os alunos
variem muito: um dia escrevem certo uma palavra, já no outro
dia, errado, depois voltam a escrever certo e mais uma vez,
errado. Conseqüentemente, torna-se difícil para o método das
cartilhas trabalhar com alunos que não se
<270>
mantêm integralmente dentro do modelo, cometendo erros,
porque o método não considera as razões do erro da criança
para poder corrigi-los.
No segundo caso, através da produção de escrita espontânea,
é possível saber com bastante segurança as razões (hipóteses)
que levaram o aluno a tomar as decisões acerca da sua escrita e
leitura. Conhecendo essas razões, o professor pode mostrar e
discutir isso com ele, indicando a saída, ou o passo seguinte,
para não errar e levar adiante, de maneira cada vez mais sólida,
o processo de aprendizagem.
Apresentam-se, a seguir, alguns casos de erros de escrita, com
os comentários a respeito das hipóteses que levaram os alunos a
esses resultados.
1. Escrever é fazer uma forma gráfica para ser lida
Algumas crianças tentam escrever pela primeira vez quando
ainda estão brincando em casa. Outras vão ter essa chance
somente quando entrarem na escola. Crianças muito novas
fazem rabiscos e dizem que escreveram uma história. Depois,
transformam os rabiscos caóticos em rabiscos senados
(mostrando a linearidade da linguagem oral e escrita).
Finalmente, misturam rabiscos com algumas letras ou tentativas
mais próximas a traçados de letras.
Essas crianças produzem esses textos e durante um certo
tempo são capazes de ler. Ao fazerem isso, estão reconhecendo
que a finalidade da escrita é permitir a leitura, ou seja, o texto
gráfico representa a linguagem oral que pode ser recuperada
através da leitura. Enquanto estão conscientes do que fizeram,
são capazes de ler, mas em pouco tempo já não se lembram mais
do que fizeram, e aquela forma de escrita já não permite mais a
leitura. Isso pode trazer uma certa frustração, que deve ser
compensada com o ensino de que escrevemos de outra forma,
permitindo uma leitura permanente para quem souber como o
sistema funciona.
2. Assinatura e escrita
Um caso um pouco diferente do anterior é o daquela criança
que faz um rabisco parar escrever o próprio nome. Na vida, é
muito comum as pessoas assinarem o próprio nome fazendo
rabiscos. Essa também é uma forma de escrita e funciona bem
para o caso das assinaturas
<271>
porque, além de ser uma marca individual, pode dificultar a
decifração das letras do nome do assinante. Em vez de se
assustar quando algum aluno faz coisas semelhantes, o
professor deveria brincar de fazer assinaturas. Esse tipo de
atividade pode ser dada logo no início do ano. Os alunos podem
entender que, para assinar documentos e cheques, as pessoas
nem precisam saber ler e escrever. Isso quer dizer, ainda, que o
sistema de escrita que a escola ensina tem outra função.
3. Letras em vez de rabiscos
A partir de uma discussão a respeito do modo como o aluno
escreveu seu nome, fazendo rabiscos, um professor pode
convencê-lo a escrever com letras. A explicação insiste no fato
de o nosso sistema de escrita ser constituído de letras, ou seja,
escrevemos com letras e não fazendo rabiscos. Diante de tal
explicação, um aluno pode escrever NEAPTASMLA em vez de
ANTÔNIO. Dessa maneira, o aluno está seguindo a explicação do
professor, escrevendo com letras, uma vez que ainda não se deu
conta de que estas são empregadas seguindo regras específicas
e não aleatoriamente.
Diante disso, o professor constata o que o aluno fez, diz que o
uso aleatório das letras não permite a leitura por outras pessoas
(atentar para a convencionalidade da escrita e seu uso social).
Alguns alunos não conseguem se livrar facilmente da idéia de
que "escrever com letras significa escrever com qualquer letra..:'
Para resolver isso, um bom exercício é trabalhar com pares
mínimos (exemplos: MATA/PATA/NATA/BATA/CATA/ LATA,
etc.).
4. A forma gráfica das letras
Um problema comum encontrado especialmente entre alunos
alfabetizados pelo método das cartilhas relaciona-se à
interpretação da forma gráfica das letras cursivas. Como o
método concentra-se na escrita, deixando a decifração da leitura
de lado, alguns alunos têm dificuldades em reconhecer na escrita
cursiva as letras que, de fato, ocorrem na grafia das palavras.
Por exemplo, o aluno pode até saber que a cartilha apresenta a
palavra OBA e oba, com as letras B e b (que estranhamente, para
ele, aparecem traçadas de formas diferentes). Agora, quando o
professor escreve com letras cursivas, a coisa piora, porque o
aluno vê escrito ( e pensa que, nessa forma de escrita, as letras
são:
<272>
O + i + v + a, o que vai levá-lo a separar as sílabas da palavra
da seguinte maneira: Oi-va. Algumas letras se prestam mais do
que outras a esse tipo de confusão, como se mostra a seguir:
Modelo apresentado pelo professor:
Pato Arca Objeto
Interpretação do aluno:
JSATO CERCA OGETO
Letras problemáticas:
P a j
Como o aluno interpretou:
p=i+s
A=C+e
bj = G
Esse tipo de engano é muito comum. Algumas das coisas
aparentemente sem sentido que alguns alunos escrevem devem-
se a esse tipo de dificuldade. Uma palavra como Antonio escrito
em letra cursiva só com o "a" maiúsculo, pode ser interpretada
pelo aluno da seguinte forma: CENTIERRIUE. Uma das razões
pelas quais se deve começar pela leitura e usar apenas as letras
de fôrma maiúsculas é evitar que o aluno cometa enganos dessa
natureza. Um bom exercício, nesses casos, é fazer transliteração,
ou seja, pedir ao aluno que escreva um mesmo texto ou palavra
em diferentes tipos de letra, como letras cursivas e de fôrma,
para se familiarizarem com a categorização gráfica das letras.
5. Escrita espelhada
Alunos que se põem a escrever antes de aprender as noções
básicas de leitura começam copiando. Como não entendem bem
como a categorização gráfica e funcional operam no sistema de
escrita, podem cometer vários enganos. Um deles é o da escrita
espelhada, a que já tivemos oportunidade de nos referir em
outros capítulos deste livro. O professor ensina que se deve
escrever da esquerda para a direita, assim o aluno começa a
copiar a palavra SAPO, escrevendo primeiro a letra S e não a
letra 0. Com isso, o professor pensa que deu uma boa regrinha
para seus alunos. Porém nem todos os alunos estão atentos à
seqüência das letras,
<273>
mas ao modo com que se deve escrevê-las. Então, quando um
aluno vai escrever a letra S, lembra-se da regrinha e escreve o S
da esquerda para a direita; o resto acompanha, resultando na
palavra espelhada. Algumas letras arredondadas prestam-se
mais a esse tipo de erro, como C e S e outras letras como Z e N.
O professor precisa dar uma explicação mais detalhada sobre a
direção da escrita e sua distribuição espacial.
6. Segmentação
Outra regrinha muito comum que os professores dão para
seus alunos é a de que observem a própria fala para escrever.
Uma das primeiras dificuldades que o aluno encontra, levando
em conta essa regrinha, é como segmentar o fluxo da fala em
palavras, como a escrita exige.
No início, parece haver uma tendência para as crianças
segmentarem a fala principalmente a partir de uma análise dos
elementos prosódicos, como entoação e ritmo, e menos a partir
de uma análise semântica dos itens lexicais. Por essa razão,
surgem escritas como:
ERAUMAVEZ UMABELAPISESA CEMORAVA NUCAS TELO. Aos
poucos, os alunos vão descobrindo os itens lexicais, a partir da
análise semântica. Mas ainda restam muitos casos que só se
aprendem através da ortografia, sobretudo quando ocorrem
palavras gramaticais, como preposições, conjunções e
expressões adverbiais.
Na prática, os alunos têm dificuldades reais em situações em
que são solicitados a separar ACASA em A CASA. Quando
encontram a palavra ABACAXI, separam A BACAXI, pensando
que é algo semelhante a A CASA. A leitura individual e freqüente
é uma boa solução para ajudar os alunos a segmentarem as
palavras na escrita.
Às vezes, os alunos se apegam a algum elemento semântico,
segmentando erroneamente palavras, como no caso de VISITA,
que o aluno escreveu VI SITA (verbo ver), ou NEI COM PARASÃO
em vez de NEM COMPARAÇÃO. Veja, ainda, o exemplo: SER
MANO em vez de SER HUMANO: como o R e o U formam uma
sílaba só na fala, "çe-ru-mã-nu", o aluno supôs que não podia
dividir a sílaba ao meio, colocando uma parte em cada palavra.
7. A letra representa o som de seu próprio nome
Outra regrinha que os alunos costumam ouvir é que, no
próprio nome das letras, encontra-se o som básico que a letra
representa (princípio acrofônico). Invertendo
<274>
os alunos formulam a regrinha: para escrever um som, basta
achar a letra em cujo nome ocorre aquele som que se quer
escrever. Ao aplicar isso, acabam escrevendo o seguinte: HRA
em vez de AGORA, CAMLO em vez de CAMELO, APARECU em vez
de APARECEU, LFATE em vez de ELEFANTE, LC em vez de HELICE,
TAPTE em vez de TAPETE, etc. O professor deverá chamar a
atenção para o fato de as sílabas serem constituídas de
consoantes e vogais, O princípio acrofônico refere-se apenas ao
primeiro elemento da sílaba e não à sílaba toda.
8. Escrevendo só vogais ou consoantes
Um caso um pouco diferente do anterior ocorre quando o
aluno escreve apenas as vogais ou as consoantes das palavras,
como em AAO ou CVL para CAVALO, PTC ou EEA para PETECA,
etc. Aqui o aluno escreve apenas um dos elementos da sílaba, de
acordo com a maneira como analisa a fala. Se prolonga as
sílabas, como em "caaaa-vaaaa-loooo", acaba salientando e
escrevendo as vogais. Se repete as sílabas, como em "cacacaca-
vavavava-lolololo", identifica como mais notável os movimentos
articulatórios, o que é representado na escrita pelas consoantes.
É muito curioso o fato de alguns alunos escreverem as letras
certas, como se conhecessem a ortografia das palavras.
Obviamente, não estão produzindo uma escrita silábica para as
letras. Simplesmente escrevem observando na própria fala o que
é mais evidente.
Mais raramente, encontram-se alunos que escrevem apenas a
primeira letra ou a primeira sílaba das palavras. O aluno faz isso
porque aprendeu o modelo do bá-bé-bi-bó-bu como forma de
escrita das palavras-chave. Se BAR RIGA tem o "bê", LATA tem o
"lê", então, registra OPAFNOLA, querendo dizer O PATO FOI NO
LAGO
9.0 bá-bé-bi-bó-bu nos ditados
O fato de alguns alunos escreverem no ditado palavras como
CP para CAPA, LT para LATA, MCC para MACACO, e ao mesmo
tempo escreverem no caderno as lições corretamente,
demonstra que eles escrevem seguindo as famílias de letras, que
são interpretadas a partir da observação da fala. Por exemplo:
la-ta; la-le-li lo-lu; ta, ta-te-ti-to-tu. Ele se lembra da letra da
palavra chave: lá-lé-li-ló-lu = letra L de LARANJA (palavra-
chave). Então acaba concluindo que basta escrever a letra
<275>
da lição referente à família de letras da sílaba que ele observou
na fala. Em outras palavras, observando a palavra LATA, ele
encontrou a primeira sílaba la e a família de letras a que essa
sílaba pertence, que é o lá-lé-li ló-lu. Então, lembrou-se da
lição da laranja e chegou à letra L, que era o objeto de estudo
dessa lição. Note que no método do bá-bé-bi-bó-bu, apresenta-
se uma letra que vem explicada através da palavra-chave e,
dessa forma, introduz-se o estudo da família de letras, que será
usada para ensinar o aluno a decifrar a escrita para ler e montar
palavras para escrever. Portanto, quando o aluno, no ditado,
escreve LT, está simplesmente seguindo o modelo que lhe foi
ensinado.
10. Formas morfológicas diferentes
Os alunos que falam dialetos muito diferentes da norma culta
lidam com dificuldades extras para acertar a grafia das palavras,
porque podem encontrar na própria fala formas morfológicas
diferentes para algumas palavras. É o caso de alunos que
escrevem TRABESSEIRO em vez de TRAVESSEIRO, BARBOLETA
em vez de BORBOLETA, DRENTO em vez de DENTRO, PRANTA em
vez de PLANTA, TONEAI em vez de ESTOU NEM AÍ, etc.
Aqui também a leitura individual e assídua irá ajudar mais do
que qualquer explicação do professor. Para ser objetivo, basta
dizer ao aluno a forma ortográfica dessas palavras.
11. Resultados pela metade
Ao escreverem, além das dificuldades para encontrar, a partir
de seu dialeto, a forma escrita das palavras, algumas crianças
defrontam-se, principalmente no início, com a dificuldade de
isolar e caracterizar foneticamente as palavras. Isso se torna
ainda mais complicado quando, analisando a própria fala, têm de
fazer isso aos pedaços, o que resulta em palavras como BRIZA
em vez de PRINCESA, PIONHO em vez de PIOLHO, PISICRE em
vez de BICICLETA.
Esses alunos sabem algumas coisas importantes a respeito da
leitura e escrita, mas não sabem colocar em prática seus
conhecimentos. Eles precisam fazer exercícios de comparação
entre o que escrevem e o que deveriam escrever, com uma
análise detalhada, passo a passo, do começo ao fim. Outro
exercício importante é analisar a decifração de leitura, ou seja, o
aluno deve
<276>
explicitar todos os mecanismos envolvidos no processo de
decifração de palavras escritas. Aqui não basta que o aluno
simplesmente leia o que está escrito; ele precisa ter claros os
mecanismos envolvidos nessa tarefa. Esse procedimento deveria
abranger quer as palavras escritas corretamente, quer as que ele
costuma escrever.
CAGLIARI, 1985b. L
12. Escrevendo foneticamente
Talvez os erros mais comuns dos textos espontâneos dos
alunos na alfabetização refiram-se ao uso da escrita como se
fosse uma transcrição fonética. Os seguintes exemplos ilustram
bem como os alunos são hábeis na transcrição fonética, valendo-
se dos recursos da escrita alfabética:
PATIO PATINHO
IGO = ÍNDIO
RAPAIS = RAPAZ
BARDJE = BALDE
MECADIO MERCADINHO
CIEASIORA = QUEM É A SENHORA
JALICOTEI JÁ LHE CONTEI
CAMANH COM A MÃE
Esse tipo de erro corrige-se com o tempo e muita leitura. Aos
poucos, o professor chama a atenção dos alunos, sem insistir
muito. Se alguma forma errada tornar-se recorrente, o professor
deverá voltar a explicar o que é ortografia e transcrição fonética.
13. Troca de letras
Outro tipo de erro freqüente é o uso indevido de letras. Como
uma letra pode representar muitos sons, e um som pode ser
representado por letras diferentes, isso obriga o aluno a fazer
escolhas a todo instante. Acertará algumas e errará outras, até
que, confrontando o que fez com o estabelecido pela ortografia,
comece a grafar as palavras corretamente. A sua dificuldade é
maior no início. Com o tempo restam apenas aquelas dúvidas
ortográficas mais comuns. Alguns exemplos:
SEBOLA = CEBOLA
CANORO = CACHORRO
QAXA = CASA
OGE = HOJE
EXTENDER = ESTENDER
ESTENÇÃO = EXTENSÃO
DICI = DISSE
LICHO LIXO
<277>
Um bom procedimento é fazer uma lista das palavras de uso
comum que os alunos estão errando mais, para que eles
decorem a ortografia ou consultem a lista enquanto não
memorizam.
14. Hipercorreção
Os casos de hipercorreção ocorrem quando o aluno exagera
na aplicação de uma regra, usando-a para contextos não
permitidos. Esses fatos são menos comuns, mas existem. Por
exemplo, o professor diz para o aluno que escreveu DICI que, às
vezes, o que se fala com "i" será escrito com E. Então, o aluno
escreve MEDECO em vez de MÉDICO. Outro exemplo: o aluno
quer escrever TATU mas registra TATO, em analogia com
BATO/"batu" (o professor havia explicado que se falava "u",
mas se escrevia O).
15. Surdas ou sonoras?
Um caso que perturba os professores é o de alunos que
trocam consoantes oclusivas ou fricativas sonoras pelas
correspondentes surdas, na escrita. Assim, escrevem FACA,
PATATA, POLA, CORILA em vez de VACA, BATATA, BOLA,
GORILA.
Se o aluno fala como escreve, a saída mais imediata é ensinar
que a escrita que respeita a ortografia não é uma transcrição
fonética. Assim como há pessoas que falam "tchia" e escrevem
TIA, do mesmo modo quem fala "póla" pode aprender a escrever
BOLA. Em casos em que ocorrem ambigüidades na fala, como no
exemplo de "faka", além da explicação acima, o aluno pode,
ainda, guiar-se pela semântica: quando está pensando no
animal, a escrita é VACA; e quando está pensando na
ferramenta, utensílio, a escrita é FACA.
Se o aluno fala certo, mas escreve errado, pode ser um reflexo
de estar agindo de acordo com a orientação do professor:
escrever observando atentamente os sons da fala. Como escreve
sussurrando as palavras, percebe que, na sua fala (sussurrada),
o som que pretende escrever é surdo e não sonoro. Nesse caso,
o professor pode mostrar ao aluno que o que ele escreveu não
corresponde ao que ele fala e que as variações fonéticas das
palavras são neutralizadas pela ortografia.
Esses casos não revelam que o aluno tem deficiência
auditiva nem de atenção: é uma questão de como ele lida com as
informações lingüísticas. Tanto isso é verdade
<278>
que esses alunos não têm problemas de confusão entre sons
surdos e sonoros por razões de déficit nem ensurdecem todos os
sons das palavras que escrevem. A confusão se estabelece
apenas com as consoantes oclusivas e fricativas. Elas se prestam
mais a esse tipo de erro porque dispõem de pares mínimos cujo
traço distintivo é a sonoridade. Lembrar, porém, que outros
segmentos fonéticos são sonoros na fala, como as vogais, as
nasais, as laterais. Os RR podem ocorrer na fala de maneira
sonora ou surda, e ninguém erra a escrita dos RR por causa da
sonoridade. Essa oposição de sonoridade não cria pares
mínimos, mas apenas variantes.
A confusão que alguns alunos fazem envolve o sistema de
escrita e sua forma de representação, e não falha de
discriminação auditiva. Quando dou exemplos de palavras que se
falam com RR surdos e sonoros em português, solicitando dos
professores que identifiquem em quais delas ocorre RR sonoro
ou surdo, eles ficam perplexos porque nunca souberam que
podia haver RR surdos e sonoros. Mas, nem por isso, se
consideram portadores de deficiências auditivas, incapazes de
discriminar sons surdos de sonoros. (Na pronúncia comum de
muitas pessoas, numa palavra como BARRIGA, encontramos RR
sonoro, e numa palavra como RATO, encontramos RR surdo...)
16. Um pouco por vez
Os alunos costumam levar à risca o que o professor diz. Na
alfabetização, por se tratar de crianças, é muito comum o
professor "enfeitar" o que diz, ou dizer por partes, dando uma
determinada informação técnica. Isso ajuda o aluno a progredir,
um pouco, mas pode levá-lo a cometer erros. O professor deve
levar em conta o progresso do aluno e não se desesperar quando
não escreve tudo correto da primeira vez. Por exemplo, o
professor explica que a letra H é um coringa que, no meio de
palavras, serve para modificar o valor fonético da letra que vem
imediatamente antes. Assim C com H dá "chê", L com H dá "lhê",
N com H dá "nhê". Por um lapso, o professor esqueceu-se de
dizer que o H ocorre somente com as letras C, L e N. Então, o
aluno, que já tinha errado, escrevendo ÍNDIO com IGO, porque
não tinha encontrado no alfabeto a letra que representa o som
"djê", passa a escrever com H depois do D: IDHO, seguindo a
última regra dada pelo professor.
<279>
17. Mistura de informações
Nos primeiros ditados, alguns alunos se perdem entre o que o
professor fala, o que ouvem e o que conseguem escrever no
tempo devido, produzindo às vezes resultados surpreendentes.
Por exemplo, o professor diz: "Todos quietos? Pronto? Vou ditar.
Pa-paaaiii. Pa... Joãozinho, fique quieto no seu lugar! Pap... Se
vocês não ficarem quietos, vão errar. Assim. Papai. Paaa-iii.
Vamos lá, minha gente! Mais rápido! Papai... etc:' Um aluno
muito atento procura repetir o que o professor dita e tenta
escrever o que lhe parece mais fácil primeiro. Assim, escreve
AAI, depois acrescenta mais um pedaço — AAIPA. Em seguida,
para escrever a palavra ASSIM registra ACM. Volta à palavra
anterior repetida pelo professor e acrescenta: AAIPAI ACM. Com
a identificação de mais alguns sons, seu texto fica: AAIPAIPAPA
ACM e, após o último esforço, temos o seguinte: AAIPAIPAPAI
ACM. Como o aluno não tem tempo de rever o que fez,
precisando escrever logo a palavra seguinte que o professor
passou a ditar, o que sobra no seu trabalho é algo
surpreendente, não por causa do erro, mas em conseqüência do
método sob o qual ele trabalha.
Tais erros são tão mal aceitos pelos professores, que os
alunos que os cometem sofrem discriminação e não raramente
acabam em classes especiais ou em clínicas de fonoaudiólogos.
18. Só o esforço não adianta
Quando algumas crianças estão escrevendo, nem sempre
sabem solucionar dúvidas e, como não podem resolvê-las com o
professor ou consultando livros ou outros recursos, acabam
escrevendo palavras somente com as letras que descobriram.
Assim, encontramos produções de escrita como as que se
seguem: SCOR, por SOCORRO, SATUX por SANDUÍCHE,
DONAIMEA por DONA ESMERALDA, etc. Esses alunos escrevem o
que conseguem no momento. Com o tempo e com um trabalho
assíduo de escrita e de leitura, acabam escrevendo tudo
corretamente.
19. Erros não corrigidos
Algumas crianças não corrigem uma letra escrita errada e
escrevem logo em seguida a letra certa, resultando daí uma
grafia estranha. Por exemplo, ao escrever IDADE, tendo feito o
"d", notou que ficou parecido
<280>
com "a" (cursivo). Então, faz um outro "d" com o traço vertical
bem longo e continua escrevendo, sem tirar o lápis do papel
(porque é uma escrita cursiva), resultando algo como i Outro
exemplo, o aluno quer escrever CASTELO e começa por CAT Em
vez de apagar o T para escrever antes o S, ele emenda tudo sem
correção, resultando: CATSELO. Inversões desse tipo são muito
comuns. Por distração, até adultos cometem, às vezes, erros de
supressão ou de acréscimo de letras.
20. Medo de escrever
Mais raramente algum aluno, que sabe escrever umas poucas
palavras, de repente, tomado por um pânico muito grande,
começa a escrever coisas muito estranhas. O medo de errar faz o
aluno errar mais ainda e, nesses casos, seus erros têm pouca
lógica. Exemplificando: A TIA DO FABIO FIO UM APTAPTAMAM P
XJOQ E de estranhar que um aluno que escreva "A TIA DO
FÁBIO" registre ARANHA CARANGUEJEIRA usando as letras
APTAPTAMAM P XJOO. O que ele fez foi apenas preencher o
espaço com letras para mostrar que escreveu algo, que depois
leria corretamente para o professor, explicando que se tratava
de uma aranha preta.
21. Letras maiúsculas
O aparecimento de letras maiúsculas no meio de palavras às
vezes tem a ver com o conhecimento da grafia das letras que os
alunos têm. Como têm certeza do traçado da letra na forma
maiúscula, e têm dúvidas sobre como deve ser o traçado na
forma minúscula ou cursiva, acabam escrevendo: "cachorro",
"apachonada", etc.
22. Sinais de pontuação
Além das letras, a escrita tem marcas e sinais de pontuação.
No começo, o professor não deve enfoca-los, chamando a
atenção dos alunos somente depois que tiverem uma certa
habilidade para ler e escrever e já estiverem produzindo textos
espontâneos. Erros dessa natureza não devem preocupar um
professor alfabetizador.
23. Letra feia
Alunos que têm uma letra muito feia, principalmente aqueles
que traçam de maneira a tornar a decifração extremamente
difícil, podem até achar que escreveram
<281>
corretamente certas palavras, mas quem lê (o professor) acaba
concluindo que o aluno escreveu errado. Cuidar da letra evita
muitos aborrecimentos aos usuários da escrita, e a escola
precisa ver na letra feia também um erro a ser corrigido.
ERROS NA ESTRUTURAÇÃO
DOS TEXTOS
1. Variação lingüística
Como as pessoas usam a linguagem oral todos os dias, estão
acostumadas a ouvir pessoas falando dos mais variados modos.
Por isso, os professores são mais complacentes com a linguagem
oral de seus alunos do que com a linguagem escrita. Na
alfabetização, costuma ser mais evidente a presença de dialetos
regionais e estigmatizados pela sociedade, na fala de muitos
alunos, obrigando o professor a tratar com mais atenção da
linguagem oral do que professores de outras séries.
De modo geral, o que mais chama a atenção na fala desses
alunos são exatamente as marcas estigmatizadas dos seus
dialetos. Nesse caso, incluem-se três tipos de erros mais
comuns. Erro causado pela forma lexical diferente que certas
palavras têm nesses dialetos, como:
"drentu", "fumu", "arriba", "pobrema", etc. Erro causa do pela
pronúncia estabelecida para certos elementos fonéticos, como:
"bardji", "çértu" (com R retroflexo), e erros oriundos da má
formação de concordância, como: "nóis vai", "uzómíveiu",
"askazakaiu".
É sempre necessária uma boa explicação sobre a questão da
variação lingüística e da norma culta.
2. Uso de pronomes
Um tipo de erro que muitos professores corrigem é o uso dos
pronomes retos em lugar dos oblíquos na função de objeto
direto. Assim: "eu vi ele", "ela viu eu", "Maria achou nós", etc. A
norma culta do português procura evitar esse tipo de construção.
Alguns escritores chegaram a usá-la em algumas circunstâncias
muito específicas, para dar um tom coloquial à fala de
personagens ou obter efeitos estilísticos, O professor
alfabetizador deve explicar o caso aos seus alunos e não se
preocupar se eles continuarem com esse modo de falar. De vez
em quando, entretanto, convém que o
<282>
professor volte a chamar a atenção dos alunos, fazendo ver que
na linguagem escrita, de modo especial, esse tipo de construção
precisa ser evitado.
3. Sintaxe
Do ponto de vista da norma culta, há alguns erros de
construção sintática muito comuns na fala de algumas crianças,
especialmente de falantes de dialetos estigmatizados. Por
exemplo, é freqüente o uso indevido do sujeito expresso por
pronome pessoal em repetição ao indicado já por um pronome
relativo, sujeito da oração, como em: "Era uma vez um gato que
ele saiu de casa e foi caçar ratos", "Eu fui na casa da minha vó
que ela mora em Cascadura".
Outra construção inadequada de acordo com a norma culta é o
uso de "onde", sobretudo em lugar de pronomes e de
conjunções, como por exemplo "que", "em que", etc., em frases
como: 'A notícia onde apareceu o crime", "Ele falou uma piada
onde o papagaio morreu afogado", "Tudo estava perdido, onde
eu deduzo que havia muita corrupção". O professor alfabetizador
deve mostrar o certo, mas não insistir. Esse tipo de erro só se
corrige depois de muita leitura de bons autores. Por tanto, ele
deixará de se preocupar tanto com isso, esperando que os
professores das séries mais adiantadas tratem do problema de
maneira mais especifica.
4. Repetição
Alguns problemas aparecem tipicamente em textos orais e
escritos e devem ser objeto da atenção do professor, no sentido
de ajudar seus alunos, desde cedo, a melhorarem seus textos.
Mais uma vez, é preciso insistir em que alguns erros não serão
corrigidos na alfabetização e, por isso mesmo, o professor não
precisará se preocupar muito com eles. Mas é bom ir sempre
chamando a atenção do aluno quando o professor achar
conveniente.
Alguns alunos dizem "né?!" ao final de cada enunciado ou
apresentam cacoetes lingüísticos, como "ééé..:', marcando todas
as pausas que fazem. Os alunos em geral não transportam esse
tipo de problema para a escrita. Todavia, há algumas repetições
exageradas e desnecessárias que aparecem tanto nos textos
orais quanto nos escritos. Por exemplo, o aluno que escreve a
todo instante palavras como: "daí", "aí", "depois". O professor
pode pedir para o aluno melhorar seu texto, evitando a repetição
dessas palavras.
<283>
Alguns professores, sobretudo de séries mais adiantadas, têm
a mania de considerar errada toda repetição de palavras
(geralmente substantivos ou pronomes pessoais) que ocorra
proximamente. A repetição, às vezes, deixa o texto mais claro e
de mais fácil compreensão. A repetição pode também ser
desnecessária e, nesses casos, cabe ao professor analisar e
discutir a questão com seus alunos. Num texto em que aparece:
"O policial pegou o carro e ele saiu correndo na avenida", o uso
do pronome "ele" pode trazer mais ênfase à narrativa, e sua
supressão pode deixar o texto mais pasteurizado ou com menos
vida. Note que quem usa "ele", em frases como essa, costuma
colocar nessa palavra o foco semântico, representado pelo
acento frasal. Por outro lado, um texto como: "O mecânico
chegou em casa. O mecânico chama-se Toninho. Ele viu o carro.
Ele falou: o carro está com a bomba quebrada. O carro assim não
pega.. mostra que o aluno faz seu texto preocupado demais com
a boa formação da frase que a escola ensina, ou seja, que o
aluno deve começar sempre com o sujeito da oração. O professor
pode mostrar que há outros recursos para deixar o texto melhor,
variando a estratégia de construção das frases.
5. Frases soltas — coerência
Alunos que aprendem que um texto é um conjunto de frases,
acabam produzindo textos semelhantes aos das cartilhas. Veja
este exemplo:
O xale é de Xaxá.
O pato nada no lago.
O pato é belo.
Xaxá é a vovó.
Esse tipo de texto precisa ser evitado, pedindo-se para o aluno
escrever histórias espontâneas. Desse modo, ele se vê preso à
necessidade de seguir uma idéia através de várias frases,
acabando por compor um texto mais próximo do seu modo de
falar com as pessoas. O texto acima só aparece como exercício
na escola, não na vida real, e reflete um modelo muito típico de
cartilha, no qual o aluno foi alfabetizado.
Os lingüistas dizem que um texto precisa ter "coerência", ou
seja, cada assunto precisa ser tratado de maneira "lógica" e
numa seqüência que acrescenta a cada instante uma informação
a mais, completando o que foi dito antes, como quem monta um
quebra-cabeça,
<284>
no qual todas as peças vão se encaixando naturalmente. No
exemplo acima, nem se sabe por que alguém diria aquele texto
daquele jeito. Não tem propósito aparente. Explicar por que esse
tipo de texto não está correto requer um estudo maior da
coerência textual. Se o professor adotar outra estratégia,
levando seus alunos a produzirem textos espontâneos, esse tipo
de
problema quase não aparece e, quando vem, não requer
explicações mais detalhadas.
6. Coesão
Outro problema típico de textos é a coesão, que pode ser
exemplificada pelo uso de elementos anafóricos e dêiticos.
Elementos anafóricos são palavras que se referem a outras já
mencionadas antes num texto. Por exemplo, os pronomes
servem para fazer uma referência a um nome dito antes, por isso
não se pode come çar um texto dizendo: ELE COMPROU UM
CACHORRO. PEDRO FICOU FELIZ. Porém, se o texto fosse:
PEDRO COMPROU UM CACHORRO. ELE FICOU FELIZ, o elemento
anafórico ELE, agora, tem um antecedente claro e bem-definido
no texto. Alguns alunos fazem, às vezes, confusão com os
elementos anafóricos, desestruturando o texto. Veja o exemplo,
a seguir: O padeiro queria fazer um pão gigante e foi pedir ajuda
ao João Pão Doce Ele pegou um saco de farinha e fermento que
ele tinha e jogou água depois foi mostrar para o dono que a
massa estava pronta para fazer o pão gigante.
Na segunda linha, o sujeito de FOI é o PADEIRO. O pronome
ELE na terceira linha fica sem antecedente claro, podendo se
referir ao PADEIRO ou a JOÃO PÃO DOCE. Esse é um típico
problema de coesão. O pronome ELE da linha 4 continua com o
problema de indefinição, causado em parte pela indefinição do
ELE anterior e, assim, todos os verbos, cujos sujeitos estão
ocultos, como JOGOU e FOI MOSTRAR.
7. Caligrafia
Finalmente, o professor deve avaliar nos textos dos alunos a
caligrafia, o layout, a forma de apresentação estética, a limpeza
e o uso apropriado das letras maiúsculas e minúsculas. Esse
cuidado com os aspectos externos do texto devem ser apontados
logo no início.
<285>
Todavia, não se deve supervalorizar por se tratar de um texto de
um principiante. É importante que o professor deixe os alunos
produzirem seus primeiros textos sem essa preocupação.
Portanto, o professor não irá questionar esses aspectos, embora
fale sobre eles com os alunos. Depois, quando os alunos já
estiverem escrevendo com certa fluência, por exemplo, no início
do segundo semestre, esses aspectos do texto deverão começar
a ser exigidos pelo professor. Na maioria das vezes, tais
problemas se resolvem quando o aluno passa a limpo seu
trabalho. Textos que vão ser expostos, enviados para alguém ler
ou integrar livrinhos precisam necessariamente de um cuidado
especial com a forma externa de apresentação.
No início do processo de alfabetização, as crianças vão
apresentar problemas de "clareza" na escrita por causa da
dificuldade em escrever traçando bem as letras. O professor
deve ficar muito atento aos possíveis obstáculos à aprendizagem
devidos ao fato de algumas crianças interpretarem
erroneamente o que elas próprias escreveram. Tem-se notado
que algumas crianças que não progridem apresentam um
traçado das letras muito "desfigurado". Treinar uma produção
gráfica melhorando o traçado das letras é importante para que
alguns desses alunos voltem a pensar corretamente a respeito
do processo de letramento.
<286>
11 – Ditado e copia
UMA ESTRATÉGIA LINGÜÍSTICA
CHAMADA DITADO
< CAGLIARI, 1990.
O ditado, na verdade, é uma atividade lingüística muito
comum em certas situações sociais, razão talvez pela qual se
tornou do agrado especial dos professores alfabetizadores. Tudo
o que é ouvido é memorizado por certo tempo e depois
esquecido. Quando se quer guardar uma informação, escreve-se.
Quando se quer que outra pessoa guarde uma informação nossa,
ditamos o que ela precisa escrever. Quando se tomam notas
numa conversa de telefone, por exemplo, em grande parte trata-
se de um ditado: alguém passa informações que são ditadas, às
vezes, até à moda da escola, com a pessoa silabando o que diz
ou usando referências acrofônicas. Em algumas profissões,
obviamente, a prática do ditado é intensa, como nos escritórios.
Nessa prática, constata-se também que é muito comum as
pessoas se encontrarem em situações nas quais não sabem como
escrever determinadas palavras, ou até mesmo entender o que
foi dito, fazendo confusões fonéticas e semânticas. Nessas
circunstâncias, as pessoas checam seus conhecimentos e suas
habilidades lingüísticas, especialmente perceptivo-auditivas,
controlando o que escrevem.
Na escola, certas aulas expositivas são espécies de ditado, e
as anotações que os alunos fazem são uma espécie de cópia.
Ditado e cópia são atividades interdependentes. O ditado leva
quem escreve a fazer uma espécie de cópia do que ouve, e a
cópia exige que o copista faça um ditado para si próprio, antes
de escrever. O professor fala como quem dita aos alunos, e quem
não faz anotações dificilmente se lembra, no final do ano, do
conteúdo da matéria de todas as aulas.
Pela experiência de cada um, podemos ver que há vários tipos
de ditado: alguns apegam-se mais ao literal, como as
informações passadas por telefone, outros reproduzem apenas
as idéias principais, como as anotações feitas numa aula.
A apresentação de modelos de fala e a reprodução desses
modelos no processo de aquisição da linguagem também são
estratégias lingüísticas à semelhança de ditado e cópia,
realizados apenas no plano da oralidade. A mãe ou o adulto dita
palavras, expressões ou frases para a criança repetir, e à medida
que o resultado
<288>
se torna mais satisfatório, a mãe vai constatando que a criança
está aprendendo a falar cada vez mais e melhor.
Esse quadro geral, certamente, é o que tem levado muitos
professores alfabetizadores a apostar no ditado como forma de
aprendizagem. Os professores acreditam que o ditado serve para
transmitir informações úteis, testar as dificuldades de realização
de escrita, avaliar o desempenho, revelando os conhecimentos já
dominados a respeito da escrita, além de ser uma prática que
constrange os alunos, obrigando-os a estudar. Nesse último
sentido, o ditado é uma prática que envolve mistério — não se
sabe o que o professor vai ditar —, gerando ansiedade. Embora
pouco recomendado, esse sentimento é, de fato, largamente
manipulado pela escola. Portanto, vê-se que o ditado é uma
prática que possui todos os ingredientes de que a escola gosta.
Tipos de ditado
Quanto aos objetivos que se pretende alcançar, os ditados
podem servir para avaliar o aluno ou para que seja cumprida
uma tarefa de cópia de anotações ou de informações úteis.
Do ponto de vista da maneira como são feitos, os ditados
podem ser fonéticos ou semânticos, se a preocupação de quem
dita é fazer com que seu interlocutor anote as letras das
palavras ou simplesmente as idéias.
Muitas vezes, algumas formas de ditado servem apenas para
avaliar se o aluno sabe ou não escrever certas palavras. Quando
o ditado envolve o conhecimento ortográfico, em geral,
enquadra-se nesse caso. Esse é o tipo mais comum de ditado na
alfabetização. O professor ensina uma lição do bá-bé-bi-bó-bu,
na qual o aluno aprende a desmontar e a montar palavras e,
depois, o professor vai testar se o aluno já dominou o que foi
ensinado, ditando-lhe as palavras já vistas. Se o aluno já
estudou o tá-té-ti-tó-tu e o lá-lé-li-ló-lu, certamente deverá
saber escrever palavras como LATA, LOTA, LUTO, TOLO, TELA,
etc.
Esse método não leva em conta que o aluno pode ter outras
estratégias para escrever e lidar com a ortografia. Para esse
método, os alunos simplesmente seguem o modelo apresentado,
desmontando e montando palavras em sílabas (estudadas como
famílias de letras). Se o aluno erra, é porque não se concentra,
não presta
<289>
atenção no que o professor diz, não estuda, não aprende ou, até
mesmo, porque tem dificuldades mentais, neurológicas ou
fonoaudiológicas.
Entretanto, as crianças estão acostumadas a usar a
linguagem priorizando a semântica das palavras e a usar
palavras em frases e não a segmentar a fala em sílabas e a
representar as palavras por letras (sem nenhum sentido lexical).
Essa é uma das razões pelas quais alguns alunos estranham
enormemente a prática de ditados (e de ensino através do bá-
bé-bi-bó-bu). O fato de o professor avaliar justamente essas
letrinhas das palavras incomoda ainda mais algumas crianças.
Quando se comparam os resultados obtidos na escrita livre das
crianças com os dos ditados tradicionais, percebem-se logo as
diferentes atitudes que as crianças têm diante da linguagem
nessas duas atividades. Os próprios erros são outros. Nos
ditados, não é raro encontrar erros absurdos sem razão
aparente; ao passo que, nos textos livres, quase todos os erros
têm explicações muito convincentes relacionadas ao processo de
reflexão que levou o aluno a escrever de determinado jeito.
Ditados para acertar a ortografia
A maioria dos professores está muito convencida da eficácia
dos ditados. Acham que além de avaliar, servem de reforço para
a aprendizagem. Curiosamente, esses mesmos professores
consideram que o aluno não deve escrever nada errado, para não
fixar o erro (sic!).
Para conciliar a avaliação com o ensino no ditado, esses
professores desenvolveram técnicas especiais de ditar, de modo
a dar todas as pistas fonéticas para o aluno saber que letra deve
escrever. É o caso do professor que dita a palavra BALDE
pronunciando o L como se fosse o som L de LATA, quando
deveria pronunciar U, pensando que se ele pronunciasse
naturalmente o U, o aluno não escreveria da maneira correta.
Ora, se o objetivo do professor é esse, seria melhor que
ensinasse os nomes das letras e fizesse os ditados dizendo os
nomes das letras. Mas, nesse caso, onde ficariam a ansiedade e o
mistério? Os alunos precisam acertar, mas precisam dar margem
para o professor não dar sempre e para todos unicamente a nota
máxima...
Tais ditados são realizados foneticamente, ou seja, o
professor fala e o aluno escreve. O modo como o professor fala,
como vimos, pode variar. Uns falam um dialeto
<290>
que a escola inventou para essa ocasião: o professor ensina aos
alunos como associar certas letras a certas articulações e
"mímicas fonéticas" e, na hora do ditado, serve-se dessas regras
para ditar. Outros professores procuram ditar as palavras
falando mais naturalmente, embora quase silabando as palavras.
Quando os alunos estão escrevendo, não é raro o professor
ficar repetindo palavras ou mesmo pedaços de palavras, supondo
que assim facilita o trabalho dos alunos. Em alguns casos, dado o
esforço de concentração do aluno para analisar o que ouve e
associar ao que já sabe, como o ditado ocorre com bases
fonéticas, certos alunos se confundem e escrevem coisas
absurdas. Por exemplo, o professor quer ditar a palavra
CASINHA. Começa falando-a normalmente. Depois, dita
pronunciando as sílabas isoladas. O aluno escreve CASI e pára,
porque fica pensando: CASA se escreve com S. FLORZINHA se
escreve com Z. E CASINHA... é com S ou Z? Nesse momento, o
professor já está repetindo sílabas: CA, CA. O aluno pensa que
está atrasado e escreve de novo CA. Quando presta atenção de
novo no professor, este já está silabando NHA, NHA, e o aluno
escreve o NHA junto com o CA. O resultado é: CASIZICANHA.
Finalmente, o professor volta a ditar a palavra inteira CASINHA e
o aluno constata que fez tudo errado e começa a apagar. Porém,
o professor passa para a palavra seguinte, e o aluno já não sabe
se corrige a palavra anterior ou se começa a escrever a palavra
nova.
Ditados no dia-a-dia
A sociedade reflete em sua cultura procedimentos escolares.
Assim, nota-se hoje que, quando alguém fala algo que o
interlocutor não entendeu, é comum as pessoas ditarem as
palavras silabando. Por exemplo: MARECHAL DE-O-DO-RO, com
DÊ, para que o interlocutor não confunda com TEODORO. Esse
procedimento, sem dúvida, vem do método do bá-bé-bi-bó-bu,
próprio das cartilhas.
Outro modo ainda vigente na sociedade é dizer as letras
acompanhadas de palavras-chave, aplicando-se, nesses casos, o
princípio acrofônico (melhor seria dizer acrográfico). Resumindo,
a primeira letra da palavra-chave, que se supõe de conhecimento
fácil, é a letra que se pretende salientar na palavra em dúvida.
Assim: DEODORO com D de DADO, e não TEODORO com T de
TATU. Outros procedimentos podem ser observados,
<291>
provenientes de outras estratégias de alfabetização, como:
DEODORO com DEEDÊ, Ó, DEODÓ, REORU. No Brasil, é raro as
pessoas soletrarem, dizendo o nome das letras das palavras. Na
cultura inglesa, isso é muito comum, e os falantes de inglês
estranham que estrangeiros encontrem dificuldade em saber de
que palavra se trata, quando eles os ajudam, soletrando. Todas
essas estratégias para lidar com as palavras vêm dos métodos
de alfabetização e, sobretudo, da maneira como as escolas fazem
ditados.
Ditado mudo
Alguns professores chamam de ditado mudo uma atividade
que consiste em pedir para o aluno escrever o nome do que vê
numa figura ou desenho. Por exemplo, desenha-se um pato, uma
galinha, uma laranja, etc. e o aluno tem de escrever os
respectivos nomes. Na verdade, essa atividade não é um ditado,
mas uma forma de induzir o aluno a escrever determinada
palavra (daí a semelhança com os ditados fonéticos). Poder-se
já, talvez, chamar esses ditados de ditados semânticos, uma vez
que se apresenta ao aluno uma idéia para que ele encontre a
palavra correspondente.
O tipo de erro que costuma ocorrer aqui também é diferente.
Além dos tradicionais erros de ortografia, podem ocorrer erros
de interpretação das figuras. O professor desenhou uma laranja,
e o aluno escreve BOLA. O professor diz que é fruta e o aluno
escreve MELÃO. O professor desenha uma unha (com dedo
cortado) e o aluno escreve MAXUQATO, com uma caligrafia que
leva o professor a achar que ele escreve qualquer letra para
qualquer palavra.
Anotações
Finalmente, existe toda uma arte na maneira de fazer
anotações quando se ouve alguém falando, por exemplo, numa
aula ou numa palestra. A escola deixa que cada um se vire como
pode, e é o que os alunos acabam fazendo. Seria interessante
que a escola orientasse os alunos nesse sentido também. O
professor pode passar sua experiência aos alunos, discutindo
com eles como se fazem essas anotações, que são na verdade
tipos de ditado sem o compromisso da cópia literal de tudo o que
se ouve. Alguns alunos chegam à universidade e não sabem
tomar notas: uns escrevem demais, outros de menos; uns
copiam só questões secundárias,
<292>
outros anotam modificando o que ouvem e interpretando
erroneamente o que foi dito. Esses alunos ainda têm a coragem
de dizer que o professor ditou a matéria errada. Seria
interessante que o professor, desde a alfabetização, fosse
ensinando como fazer anotações. O professor pode fazer uma
breve palestra que os alunos deverão acompanhar e anotar.
Feito isso, passa-se a discutir o que cada um anotou, o que está
a mais ou está faltando, o que é mais importante, o que é
secundário, etc. A escola precisa cuidar não só do conteúdo,
como da maneira como se estuda, das coisas que os alunos
precisam fazer para estudar na escola e sozinhos em casa.
Alguns alunos têm como único modelo da tarefa de estudar o
que acontece nas salas de aula, e o que encontram aí, algumas
vezes, não é um bom exemplo.
Ditado e ortografia
Existe uma falsa idéia segundo a qual as letras das palavras
representam uma transcrição fonética e que a ortografia
estabelecida representa a pronúncia do dialeto padrão (ou
norma culta). Assim, quando o aluno escreve certo, o professor
pensa que ele está dominando a norma culta e aprendendo
corretamente as relações entre letras e sons. Como se viu
anteriormente, esse tipo de asserção é um equivoco. A
complexidade das relações entre letras e sons advém do fato de
as palavras terem uma forma gráfica fixa e os falantes terem
pronúncias diferentes nos diferentes dialetos. Escrever
respeitando a ortografia pode ser uma maneira de o aluno ficar
atento a formas típicas do dialeto padrão, mas não é uma
garantia disso. Pode servir para o aluno desconfiar que sua
pronúncia com R retroflexo em palavras como BALDE está longe
da pronúncia da norma culta, uma vez que se escreve com L. Mas
o que dizer de uma palavra como PORTA? O uso do R retroflexo
aqui não é detectado pela ortografia. A confusão aumenta
quando o aluno percebe que BALDE fica "baudji", mas PORTA
não pode ser dita "póuta". A partir daí, ele não sabe mais quando
escrever L e quando escrever R.
É muito difícil sustentar a afirmação de que os alunos aprendem
a escrever fazendo ditados. Os ditados tradicionais fonéticos não
ensinam nada e servem simplesmente como uma brincadeira (de
mau gosto). Esses ditados exigem que o aluno escreva
corretamente as palavras. Ora, se o aluno não souber a
ortografia de uma palavra, ou tiver dúvidas, como irá resolver
isso
<293>
num ditado? O aluno que tem dúvida se CASA se escreve com S
ou com Z está num beco sem saída. Ele pode tentar escrever e
ver qual das formas lhe agrada mais... Todavia, será que essa é a
melhor maneira de resolver uma dúvida ortográfica? Isso faz
com que os alunos "chutem" a resposta, escrevendo do jeito que
acham mais provável. Em questão de ortografia, ou se está certo
ou errado. Não há o que discutir. A maneira correta de resolver é
perguntando a quem sabe ou procurando num dicionário ou
livro.
Ditado e transcrição fonética
Os foneticistas costumam fazer ditados para treinar as
pessoas nas transcrições fonéticas. Esses ditados são, de fato,
formas de ensinar a fazer transcrição fonética, porque o aprendiz
precisa pôr em prática o exercício de análise perceptual do que
ouve. Servem, ainda, para aplicação das normas dos alfabetos
fonéticos de transcrição de pronúncias. Não envolvem nada de
ortografia; são formas predeterminadas para pronúncia e grafia
das palavras. Os foneticistas gostam de trabalhar com palavras
inventadas ou com palavras de línguas desconhecidas do
aprendiz, para tirar toda influência da escrita (leia-se ortografia)
sobre o exercício. Quando se faz esse tipo de exercício com
dados da língua materna, as dificuldades geralmente crescem,
porque os alunos estão acostumados a lidar somente com a
ortografia tradicionalmente ensinada na escola.
Uma utilidade interessante dos ditados fonéticos na escola
seria ensinar a transcrição fonética. Os alunos poderiam
estabelecer um valor fonético único para as letras (e dígrafos) e
passariam a escrever ditados para registrar o mais fielmente
possível a fala do professor ou a dos colegas escolhidos para
ditar, usando diferentes dialetos. Nesse caso, todo som de "i"
seria representado por i e somente por i, todo som de "çê" seria
representado por Ç e somente por Ç — em vez de S ou SS. Seriam
escritos somente os sons realmente falados, do modo como
fossem pronunciados, sem qualquer preocupação com a
ortografia. Feito esse tipo de exercício, o professor pode pedir
para os alunos escreverem logo abaixo uma versão do ditado,
agora passando todas as palavras para suas formas ortográficas
correspondentes. Exercícios assim têm a vantagem de ensinar ao
aluno que transcrição fonética não é ortografia, que ele pode
observar os sons da fala independentemente da forma
ortográfica das palavras. Essa consciência ajuda
<294>
o aluno a lidar melhor com as dúvidas ortográficas e mostra que
não adianta a simples observação da fala, por mais cuidadosa
que seja, para saber ortografia.
Ditado e avaliação
Na escola, algumas vezes, são feitos ditados apenas para
controlar a disciplina, castigar a classe ou simplesmente ocupar
um tempo ocioso, que o professor não sabe como aproveitar. Tal
atitude é tão absurda que nem merece comentários.
Na alfabetização, a prática comum de ditados tem como
finalidade real avaliar o desempenho dos alunos para constatar
se já dominaram o que foi ensinado. Dados os problemas e as
dificuldades apresentados acima, fica claro que o ditado não é
uma boa forma de avaliação, mesmo para alunos que são
alfabetizados através do bá-bé-bi-b&bu. Na verdade, os ditados
são usados para dar notas. É sempre um item indispensável nas
provas e testes. Alguns professores contam os erros e calculam a
nota ou o conceito. Como a escola não consegue se livrar da
nota, tampouco consegue se livrar dos ditados.
Um professor mais bem-humorado pode usar os ditados como
uma forma de jogo: os meninos ditam para as meninas e vice-
versa, para saber quem escreve mais palavras corretamente.
Pode-se até fazer um campeonato. Nesses casos, como o
enfoque muda, o significado da atividade também muda. Aquele
ditado fonético que só serve para avaliar se o aluno já dominou a
lição é lamentável, inútil e deveria ser totalmente abolido da
prática escolar. Entretanto, brincar de fazer ditado pode ser uma
atividade interessante. Nesse caso, o objetivo não é ensinar
ortografia, nem avaliar a lição anterior, ou dar uma nota num
teste, mas despertar nos alunos o interesse pelas atividades da
escola, pelos estudos e tornar a aula mais alegre e animada.
O ditado e o método das cartilhas
Como vimos anteriormente, o ditado não é necessariamente
uma estratégia do método das cartilhas, mas sem dúvida
representa bem como funciona na prática o ensino do bá-bé-bi-
bó-bu.
Não é preciso lembrar aqui como acontece um ditado numa
sala de alfabetização. O mínimo que se pode dizer é que se trata
de uma cena patética e em grande parte ridícula. Pelas razões
expostas, conclui-se que o
<295>
melhor a fazer com relação aos ditados fonéticos na
alfabetização é aboli-los. Não só não fazem falta, como isso
ajudaria a eliminar vícios pedagógicos e comportamentos
inadequados perante a linguagem.
Na prática, alguns professores acham que conseguem, através
dos ditados, saber se um aluno aprendeu ou não, se está
progredindo ou não. Por exemplo, se um aluno escreve LT, CPA,
MACC, em vez de LATA, CAPA, MACACO, isso mostra que ele não
aprendeu direito a lição, que não sabe desmontar e montar
palavras com as famílias das letras, guiando-se pela palavra-
chave. Ora, pode estar acontecendo justamente o contrário: o
aluno entendeu do seu jeito o que o professor ensinou do jeito
dele. Essa questão é tão óbvia que o professor, diante desses
casos, não sabe como tirar o aluno do impasse. Volta a explicar
tudo de novo, direitinho, e o aluno volta a fazer tudo de novo, do
mesmo jeito.
O resultado do ditado demonstra o que o método produz: o
aluno acha que a escrita, em vez de ter um alfabeto (que se
esqueceram de lhe ensinar), é composta de famílias de letras,
cujos chefes são as letras comandadas pela explicação da
palavra-chave (ou seja, o B de BARRIGA ou BEBÊ). Pega-se uma
palavra, que é analisada em seus componentes (sílabas), e acha-
se a letra correspondente. Assim, "lata" se decompõe em LA +
TA; LA pertence ao lá-lé-li-ló-lu da família do L e TA pertence ao
tá-té-ti-tó-tu da família do T. E agora, como se escreve "lata"?
Conhecendo as famílias de letras, o aluno pensa que está aí o
contexto onde vai achar a letra para escrever. E escreve LT Mas,
então, por que o aluno escreve MACC para MACACO e não apenas
MCC? Isso mostra como o aluno, de fato, não está interessado
(não é uma hipótese guia) em escrever só pelas consoantes ou
pelas vogais. Ele escreve as consoantes porque o método do bá-
bé-bi-bó-bu, como vimos, o induz a isso. Por outro lado, através
de exercícios de montar e desmontar palavras, já viu que, além
das consoantes, existem as vogais, sobretudo sílabas terminadas
com a vogal A e, aos poucos, vai arriscando escrever também as
vogais, principalmente o A.
Os professores acostumados com ditados detectam os erros
dos alunos, porém raramente sabem interpretá-los. Quando o
fazem, comumente atêm-se a receitas preestabelecidas. Não são
capazes de fazer um trabalho atento de análise de todos os
fatores envolvidos. Para o método das cartilhas, o ditado é uma
das poucas ocasiões em que o aluno pode revelar seu erro...
Outros processos
<296>
de alfabetização deixam o aluno agir mais livremente e lidar
mais conscientemente com o erro, para se autocorrigir. Nesses
casos, o ditado não faz sentido, e o acompanhamento do
desenvolvimento do aluno é feito através de outras atividades,
especialmente da produção de textos espontâneos e livres.
Conseqüências dos ditados na alfabetização
Os ditados a que nos referimos anteriormente ocorrem como
atividades quase exclusivas da alfabetização. Outras formas de
ditado acompanham a vida lingüística das pessoas, mas
infelizmente têm recebido pouca atenção da escola. Entretanto,
o ditado tradicional é uma prática que deixa marcas dentro e
fora da escola, não só do ponto de vista do que se faz na escola,
como das conseqüências da avaliação. Alunos que erram nos
ditados são considerados menos inteligentes, mais levianos, e
classificados como deficientes mentais, neurológicos,
psicológicos, auditivos e articulatórios, recebendo a conseqüente
reprovação no final do ano pelo acúmulo de notas baixas obtidas
nos ditados. Isso mostra que, na prática, os professores não
lidam com os ditados apenas para avaliar se os alunos já
dominaram ou não a lição em estudo, mas também para reprova-
los, fazer remanejamentos, punir com cópias alunos
indisciplinados, etc.
Alguns alunos se acostumam tanto com ditados que
estranham quando o professor deixa de fazê-los em séries mais
adiantadas. Outros não suportam de jeito nenhum que um
professor dite alguma coisa para eles copiarem, porque pensam
que ditado é sempre uma forma de puni-los. De todas as
atividades da escola na alfabetização, o ditado é a mais
problemática e de conseqüências indesejáveis, porque realizada
de maneira inadequada e inconveniente.
Além dos aspectos negativos já apontados, pedagogicamente
falando, os ditados, juntamente com outras atividades muito do
gosto do método das cartilhas, induzem os alunos a concepções
estranhas a respeito do funcionamento da linguagem oral e
escrita. O dialeto inventado pelo professor na esperança (vã) de
tornar a ortografia um espelho do dialeto padrão, a fala silabada,
a destruição da semântica das palavras, a redução da linguagem
a listas de palavras desconexas, etc. são algumas das
conseqüências indesejáveis dos ditados. A linguagem vive nos
textos, e os ditados vão justamente
<297>
contra essa noção básica da linguagem. É claro que seria
possível fazer ditados de textos. Mesmo assim, a maneira como o
ditado lida com a linguagem reduz o texto a um amontoado de
palavras.
Quando e como fazer ditados
Os comentários anteriores já provaram que de modo geral é
preferível abolir os ditados da prática da alfabetização. Vimos
também que se pode fazer um campeonato com ditados, quer
com equipes de alunos, quer com indivíduos. Alguns professores
fazem ditados dizendo palavras que querem ver escritas e,
então, eles mesmos as escrevem na lousa. Os alunos, nesse
caso, apenas copiam do quadro-negro.
Escrever o que se dita com a intenção de avaliar o
desempenho dos alunos é sempre indesejável, mas fazer ditados
de textos interessantes para os alunos guardarem pode ser uma
prática saudável. Na alfabetização, essa prática tem o
inconveniente de apresentar muitas dificuldades com relação à
ortografia. Os alunos acabam errando demais, e o professor e o
aluno terão um trabalho a mais corrigindo. Nesses casos, a
melhor solução é a simples cópia.
Os ditados mudos e outras formas semelhantes de induzir os
alunos a escreverem são aconselháveis. Devem ser apenas
ocasionais para não limitar a escrita a palavras ou frases
extraídas de figuras apenas.
Uma prática que deve começar desde a alfabetização é o
ensino de formas de anotar o que se ouve. O professor pode
brincar de jornalista: alguns alunos irão dar entrevistas e outros
vão tomar nota. Depois, invertem-se os papéis. Feita a atividade,
procede-se a uma discussão geral e, depois, à análise com
comentários sobre cada caso.
Além das finalidades, o professor deve ficar atento à forma
como devem ser realizados os ditados. Se o ditado se insere num
contexto natural de uso da linguagem, como no ato de fazer
anotações ou cópia de informações, as pessoas que falam e que
escrevem devem usar a linguagem oral e escrita de maneira
natural. Modificar a pronúncia para ditar é justamente o que não
se deve fazer. Para esclarecer como se escreve uma palavra, o
melhor é dizer quais as letras corretas que devem aparecer no
contexto que gerou a dúvida ou, se for uma simples falta de
compreensão, repetir o que se disse de maneira mais lenta. Ditar
<298>
silabando todas as palavras é ridículo e, de certo modo, um
procedimento que ofende a quem escreve.
Em suma, nem toda atividade de ditado é ruim: depende de
como é feita, sobretudo das finalidades de sua realização e de
um uso natural da linguagem.
CÓPIA
A cópia na Antiguidade
A cópia é o método mais antigo de aprendizagem da escrita e
da leitura. Inúmeros documentos mostram que, na Antiguidade,
as pessoas aprendiam a ler e a escrever fazendo cópias de textos
de obras famosas. Assim, além de aprender como o sistema de
escrita funcionava, os aprendizes tomavam contato direto com
os textos mais importantes. No Museu do Louvre, no Museu
Britânico e em outros, encontram-se trabalhos de cópia, como
exercícios típicos para aprendizes da atividade de escriba, quer
na Mesopotâmia, quer no Egito ou mesmo na Grécia e em Roma.
Essa prática permaneceu por muito tempo até que, com o
advento dos estudos de alfabetização nas escolas, a
aprendizagem da leitura e da escrita tomou novos rumos.
Já dizia um provérbio latino: "Quem escreve lê duas vezes". O
aprendiz que faz uma cópia precisa refletir sobre o texto escrito
que ele reproduz, precisa tomar algumas decisões sobre como
vai proceder para copiar e, finalmente, comparar o que fez com o
original.
A cópia funciona como uma estratégia da aprendizagem da
leitura e da escrita, mas não é a única nem a principal. A cópia é
útil quando associada às demais explicações que o aprendiz
precisa receber de quem conhece como o sistema de escrita
funciona. Na Antiguidade, o aprendiz recebia a tarefa de copiar
uma frase de Homero, por exemplo. Ele tinha diante de si, numa
tábua, o alfabeto grego. Sabia que as letras tinham nomes que
permitiam decifrar a leitura. Como falante de grego, ia copiando
letra por letra e procurando os sons correspondentes até montar
as palavras, que podia reconhecer quer a partir das relações
entre letras e sons, quer pelo contexto, ou simplesmente porque
tinha memorizado a frase que lhe fora dada como exercício.
<299>
À medida que ia fazendo mais e mais exercícios, aprendia
como decifrar o que copiava e, portanto, desenvolvia a
habilidade da leitura, objetivo principal da tarefa de cópia. O ato
mecânico de reprodução do texto do exercício era considerado
secundário, ou seja, não se copiava, nesses casos, para guardar
um documento, como iria acontecer mais tarde com muita
freqüência com os escribas.
Cópia e aprendizagem do sistema de escrita
Pelo envolvimento com a escrita que a cópia promove, muitos
professores pensam que é um bom começo deixar as crianças
copiarem as palavras que encontram nas situações cotidianas.
Ao proceder assim, a criança toma iniciativas, faz perguntas para
si própria e propõe soluções para seus problemas.
Os resultados alcançados são evidências muito preciosas para
indicar ao professor o que o aluno sabe e o que não sabe a
respeito da leitura e escrita. Esse tipo de atividade, usada logo
no início, induz o aluno a comparar coisas iguais e coisas
diferentes, a juntar informações, a deduzir, pelo contexto,
porque ocorre uma letra assim ou de outro modo. Embora a
criança, por si só, não consiga decifrar o sistema de escrita, pode
aprender a refletir sobre ele e certamente aprenderá coisas.
Portanto, o simples ato de se copiar um rótulo, uma palavra que
encontrou escrita em objetos, paredes, livros, etc. traz
informações sobre o sistema de escrita e obriga a criança a
refletir e a levantar hipóteses enquanto vê, copia e avalia o
resultado obtido. Isso é importante, e o professor deve
aproveitar esse tipo de atividade como estratégia de ensino.
Alguns professores consideram que a cópia é um simples
exercício mecânico e que o aluno pode ficar copiando durante
muito tempo sem se alfabetizar. Isso é verdade e pode
acontecer, se o professor transformar a cópia numa tarefa que
se realiza mecanicamente. Escrever uma palavra ou frases, e
mandar o aluno copiar pura e simplesmente, ocasiona esse tipo
de problema. O professor precisa conversar com os alunos e
dizer a eles que, na tarefa de copiar, vão procurar descobrir que
letras copiaram, vão precisar saber o que está escrito, com que
letra começa a palavra, que letra vem depois, que som tem
determinada letra naquela palavra, etc., ou seja, a cópia
precisará despertar a curiosidade do aluno e predispô-lo a uma
análise de como as letras são e de quais sons existem nas
palavras copiadas.
<300>
Se o professor começar dando oportunidade para os seus
alunos copiarem palavras que encontram nos ambientes onde
vivem e perguntarem tudo o que quiserem saber sobre o que
estão fazendo, a cópia é uma ótima estratégia de ensino. Se o
professor manda o aluno copiar algo como tarefa de escola para
reproduzir um modelo, poderá ter como reação um ato mecânico,
que não ajuda em nada no processo de alfabetização. Por isso, é
preciso compreender bem a natureza da atividade de cópia e
tomar cuidados especiais na sua realização.
A cópia e a descoberta do mundo da escrita
Algumas crianças, muito antes de se encontrarem em
situação de aprendizagem na sala de aula, brincam não só de
imitar os adultos que escrevem, como também de copiar
material escrito. Ao fazer isso, explicitam as idéias que têm a
respeito do mundo da escrita, apesar de suas limitações para
usar o lápis. Em geral, fazem o que chamamos de rabiscos.
Algumas crianças vão mais longe e reproduzem com bastante
semelhança formas gráficas da escrita, letras e até palavras.
Seria bom que essas crianças recebessem, desde então, algumas
explicações básicas sobre o sistema de escrita. Uma das tarefas
iniciais da alfabetização pode ser esta: pedir aos alunos que
tentem escrever (mesmo sem saber), copiando ou não, para
sentir um pouco o que é escrever e ler.
O professor pode solicitar aos alunos que tragam para a aula
embalagens pequenas nas quais apareçam coisas escritas. Numa
folha de papel, irão colocar apenas material escrito, separando
assim desenhos de letras, e constatando como se dá a escrita
acompanhada de figura e feita apenas de letras. Copiar a
embalagem toda é outra atividade possível.
O professor irá falar sobre o mundo da escrita que existe no
meio em que o aluno vive e irá pedir para que eles observem,
fazendo comentários orais, e copiem algumas coisas para
mostrar aos colegas.
Ainda bem no início, os alunos podem copiar, juntamente com
os desenhos, nomes de colegas, animais e objetos, usados, por
exemplo, para compor etiquetas e formas de identificação de
pessoas e lugares na escola. Essa atividade pode ser feita não só
com lápis e papel, como também através de letras soltas, que
são escolhidas e montadas em lugares próprios, acompanhadas
<301>
da colagem de figuras. Essa também é uma forma de
identificação entre um modelo e o resultado de uma tarefa,
sendo, pois, uma espécie de cópia.
No mundo da escrita em que vivemos, além de letras, há
muitos pictogramas, sinais, marcas, etc., que constituem
excelente material para os alunos refletirem sobre o sistema de
escrita. Copiar, recortar e colecionar esse tipo de material é um
exercício interessante, útil e mesmo necessário no início da
alfabetização.
Colecionando letras e palavras
Depois que os alunos já souberem que se escreve com letras e
que o alfabeto é um conjunto limitado de caracteres que podem
ter formas gráficas diferentes, eles podem confeccionar um
álbum de letras. O professor irá solicitar que usem, por
exemplo, uma folha para cada alfabeto (conjunto completo de
letras de um determinado tipo). Cada página pode ter um título:
letras de fôrma maiúsculas, letras cursivas, minúsculas, etc. Os
títulos podem ser obtidos de outro modo, usando a imaginação:
letra do jornal X, letra da propaganda Y, letra florida, listrada.
Às vezes, não se encontram todas as letras do alfabeto para
copiar, porque elas não aparecem no texto consultado. Nesse
caso, o professor pode pedir para os alunos copiarem só o que
acharem e, mais tarde, quando estiverem mais adiantados,
voltarão a essa atividade e tentarão completar os alfabetos,
seguindo o padrão gráfico das letras já feitas. O professor pode
desenhar um quadro na folha de papel para os alunos fazerem as
letras nos respectivos quadradinhos, os quais, por sua vez,
podem estar marcados sempre com letras de fôrma maiúsculas
num dos cantos, para mostrar onde deverá ser colocada cada
letra. Esse tipo de atividade pode se estender para as séries
posteriores, de tal forma que os alunos passem a ter uma
espécie de manual de letras ou álbum de alfabetos. Em vez de
copiar graficamente, os alunos podem também recortar letras e
colar nos respectivos quadradinhos do álbum, como se fossem
figurinhas. O professor deve ficar atento para ajudar os alunos a
não misturarem alfabetos diferentes, baseando-se nas
características gráficas das inúmeras formas que as letras
podem tomar.
Quando os alunos já estiverem lendo e escrevendo palavras
isoladas, o professor pode propor o dicionário da classe. Cada
aluno irá enriquecer o dicionário
<302>
preparando uma ficha, na qual irá escrever uma palavra,
seguindo as instruções do professor quanto a layout, ilustração,
etc. Podem-se fazer duas caixas: uma com fichas de palavras
escritas pelos alunos e outra com fichas de palavras recortadas
por eles.
Ligado às atividades de ensino, o professor pode pedir para os
alunos copiarem em colunas cinco palavras que comecem ou
acabem com determinadas letras. Essas palavras servirão para
esclarecer aos alunos as relações entre letras e sons. Às vezes é
preciso dar uma orientação mais detalhada. Por exemplo, se o
professor estiver estudando a letra C, certamente irá pedir para
os alunos copiarem palavras que comecem com a letra C
acompanhada de E ou de I, numa coluna, e acompanhada de A, O
ou U, em outra coluna, para deixar claro o valor fonético da letra
C nesses dois contextos. Esse trabalho de cópia exige do aluno
muita concentração, e, ao mesmo tempo, propicia as primeiras
reflexões sobre o funcionamento do sistema de escrita e de
leitura.
Além dessas coleções que podem ser sempre aumentadas, o
professor pode formar com os alunos conjuntos fechados de
palavras. As crianças fazem uma lista com os nomes dos colegas,
colocando-os em quadradinhos que correspondam aos lugares
próprios de cada um na sala de aula, quando todos estão
sentados. Esse tipo de trabalho pode ser feito de forma coletiva
sob o comando do professor, que confecciona um pôster que os
alunos copiarão depois em uma folha de papel. Atividades como
essa, que misturam escrita com desenho (quadradinhos),
apresentam desafios e são excelentes para ensinar os alunos a
se organizarem nos estudos.
Copiar não é apenas repetir um modelo
Os professores que seguem o método das cartilhas usam a
cópia como reforço da aprendizagem e como um exercício típico
de tarefa para ser feita em casa. Cópia não é um reforço da
aprendizagem, a não ser num processo de alfabetização no qual
o aluno decora e repete um modelo, como faz o método das
cartilhas.
Melhor seria, então, dizer que a cópia é uma técnica para
decorar algo escrito, e que, uma vez realizada, pode servir como
reforço da aprendizagem. Nesse caso, o aluno pode
aparentemente apresentar um resultado correto na sua cópia,
memorizar informações sobre o que fez e, na hora do ditado,
recuperá-las e escrever
<303>
palavras corretamente, dando a impressão de que as aprendeu.
Esse aluno, porém, pode esconder o fato de não saber ler.
Chegará o dia em que terá de ler ou escrever algo que não foi
dominado, e ele não saberá o que fazer.
Essa constatação tem levado vários professores a abandonar a
cópia por considerar que ela não passa de um exercício
mecânico, e a manter o ditado como um exercício revelador dos
conhecimentos adquiridos ou não pelos alunos. O problema
apresentado aqui, na verdade, não está nas atividades em si,
mas no método das cartilhas. Simplesmente não se fixa a
aprendizagem de algo que não se aprendeu. Por outro lado, o
ditado pode ser muito enganador como instrumento para
verificar se o aluno aprendeu ou não, principalmente se ele fizer
muitas cópias como reforço da aprendizagem. O método das
cartilhas tira a chance de o aluno refletir, sendo ele obrigado a
fazer tudo segundo o modelo apresentado pelo professor e,
desse modo, apenas decora o que lhe apresentam, sem entender
verdadeiramente.
Copiar para memorizar
Copiar para decorar algo escrito pode ser uma armadilha para
o aluno que não sabe decifrar a escrita, transformando-a em
leitura. No entanto, esse tipo de cópia é útil para ensinar os
alunos a decorarem textos. Muitas pessoas acham
equivocadamente que decorar é algo indesejável no processo de
aprendizagem, quando, na verdade, é essencial. Já dizia Dante
que depois de entender é preciso decorar para que haja
conhecimento e ciência. Algumas pessoas dizem que não são
capazes de decorar uma poesia longa, um texto em prosa, um
diálogo, ou mesmo uma peça literária para um jogral ou um
teatrinho. Essas pessoas estão acostumadas a ler somente
textos literários. Decorar é uma atividade diferente: exige outro
tipo de análise do texto, o que se consegue melhor fazendo
cópias mecânicas. Copia-se um pequeno trecho umas duas ou
três vezes e, depois, procura-se reproduzir o que se quer
decorar, escrevendo. Faz- se isso em círculos cada vez maiores,
até que um texto relativamente longo esteja sob domínio da
memória. Decorar apenas com a repetição do texto é uma
estratégia que exige mais tempo, mas é muito usada por
artistas.
Desde a alfabetização, a escola deveria cultivar a
memorização, incluindo não apenas obras literárias, mas
também científicas. Citar um autor ipsis litteris,
<304>
de cabeça, faz parte de uma certa erudição que a escola deve
cultivar em seus alunos, desde as primeiras séries. Infelizmente,
esse é um aspecto muito mal compreendido por vários
profissionais ligados à educação, o que acarreta sérias
deficiências na formação dos alunos. Como acontece com muitos
fatos escolares, a escola usa uma estratégia de maneira
inadequada num determinado momento e, depois, quando
deveria empregá-la, por ser seu contexto correto, não o faz,
concluindo que não serve aos seus propósitos.
A cópia como punição
A escola tem consciência de que alguns exercícios de cópia
não passam de pura repetição mecânica. Por essa razão, utiliza-
se dela, às vezes, para punir alunos indisciplinados. A punição
consiste em copiar inúmeras vezes uma frase de cunho moral, se
o problema for de indisciplina, ou algo específico de uma lição,
se o aluno não presta atenção às explicações do professor. Um
professor deve ser também um educador e há maneiras mais
inteligentes e eficazes de educar uma criança que não punindo.
Na escola, uma das atividades mais comuns de escrita
consiste em copiar informações do quadro-negro, de livros, de
apontamentos, etc. Copiar informações, textos, passar a limpo
acaba parecendo para alguns alunos uma forma de punição e,
por isso, eles demonstram relutância em executar esse tipo de
tarefa, prejudicando-se muito nos estudos. A própria escola tem
muito pouco senso crítico para sair de sua incompetência e ver o
mal que causa aos alunos com certos comportamentos punitivos.
A cópia interpretativa com transliteração
Como vimos acima, fazer cópia pode ser uma boa atividade
de iniciação ao mundo da leitura e escrita, quando a criança,
além de copiar, põe em jogo uma análise do sistema de escrita e
usa de sua reflexão para descobrir os mecanismos da escrita e
leitura.
Há outros usos da cópia que ajudam os alunos a progredir
nos estudos. Um aluno pode copiar para aprender a forma
gráfica das letras, o traçado das letras maiúsculas, minúsculas,
das letras cursivas ou mesmo de letras enfeitadas. O uso de
gabaritos ou grades para orientação do traçado das letras é
sempre uma técnica aconselhável, seguindo o exemplo dos
desenhistas e artistas.
<305>
Outra atividade importante na alfabetização, ligada à cópia, é
a transliteração, que consiste em copiar um texto escrito com
um tipo de alfabeto, passando-o para outro tipo de alfabeto.
Assim, o texto vem com letras de fôrma e o aluno o passa para
letra cursiva ou vice- versa. Para os professores que obrigam os
alunos a escreverem em letra cursiva desde o início, é
importante que peçam cópias, passando da letra cursiva para a
de fôrma. Esse tipo de exercício costuma revelar surpresas,
mostrando que alguns alunos podem interpretar a forma gráfica
das letras de maneira curiosa. Por exemplo, um aluno pode
supor que a letra de fôrma maiúscula M, por ter somente "dois
morrinhos", corresponde à letra n cursiva.
Erros de cópia, nesses exemplos, não são apenas casos de
distração: o aluno pode estar usando um raciocínio errado,
fornecido pelo próprio professor. Por outro lado, um aluno pode
achar que a letra cursiva maiúscula A é formada de traços
semelhantes aos das letras C + e, que a letra P minúscula tem
traçado igual a j + s, etc.
Exercícios de cópia com transliteração ajudam a evidenciar
esse tipo de problema. Para isso, é claro que o professor precisa
estar atento ao que o aluno faz, analisar cuidadosamente os
erros e interpretar corretamente as razões que levaram esses
alunos a cometê-los. Quando aparecem erros como os apontados
acima, isso mostra que o aluno está com sérias dificuldades de
leitura e que não aprendeu corretamente a decifrar a escrita. Se
o erro for apenas circunstancial (um caso apenas), revela
unicamente uma interpretação idiossincrática por parte daquele
aluno, como aconteceu com uma criança que sabia ler e
escrever, mas que achava que a letra B cursiva minúscula era
uma "letra dupla" (como o lh, o nh, o sc, etc.), composta de i +
v. Essa idéia estranha a respeito da letra só foi detectada quando
o aluno fez cópia passando da cursiva para a escrita de fôrma.
Um exercício muito salutar para explicar aos alunos as
dificuldades que a escrita cursiva oferece para a leitura é
apresentar a eles um texto manuscrito em outra língua. Como
eles não sabem que palavras estão escritas, deverão passar da
escrita cursiva para a escrita de fôrma, interpretando apenas os
aspectos gráficos das letras e os modismos de quem escreveu.
Depois, podem comparar com o modelo feito pelo professor e ver
que tipos de dificuldade encontraram. Uma variação dessa
atividade consiste em usar como material
<306>
texto manuscrito feito em português arcaico. Outra maneira de
realizar essa atividade é usar letras de alunos da segunda série
(textos espontâneos) escritos cursivamente, para os alunos da
primeira série passarem para a versão com letras de fôrma.
De acordo com a tradição educacional de cada país, as pessoas
costumam usar diferentes formas gráficas para traçar as letras.
Os franceses e os americanos, por exemplo, escrevem algumas
letras ou juntam letras na escrita cursiva diferentemente dos
brasileiros. Essas coisas não passam despercebidas a um bom
professor e, ao encontrar material que exemplifique, ele deve
guardar para enriquecer seu arquivo de material pedagógico e
sua atividade profissional. Depender só de livros didáticos não é
uma boa estratégia. Alguns professores vivem tão fechados
dentro dos métodos que aprenderam nas escolas de formação e
nos livros que usam que nem sequer se dão conta de outras
questões.
Exercícios de transliteração não devem ser feitos e guardados.
O professor deve promover uma discussão com seus alunos para
analisar os erros e as dificuldades encontradas. A reflexão
coletiva motivada por essa atividade é tão importante quanto a
realização da própria transliteração. A escola precisa aproveitar
mais o que faz, para discutir com seus alunos o processo de
execução e os resultados obtidos.
Reescrevendo com cópia
Outro tipo de cópia interpretativa que ocorre mais adiante nos
estudos é a que propicia ler um texto e escrevê-lo com suas
palavras sem se afastar do modo como o autor fez seu texto. O
aluno troca palavras, usa outra construção sintática, mas seu
texto permanece um reflexo próximo do texto original. Esse tipo
de cópia é muito bom para o aluno refletir sobre a maneira como
o texto original foi feito, sua organização e desenvolvimento.
Ajuda a observar estilos e formas culturalmente marcados de
tratar certos textos ou assuntos. É claro que a escola vai tratar
desse assunto delicado com cuidado, para que o aluno não se
torne apenas um simples imitador. O objetivo aqui é
experimentar, andando junto com o autor na elaboração de um
texto. Por isso mesmo, exercícios dessa natureza precisam ter
como modelo um autor excelente e um texto exemplar, caso
contrário, em vez de ensinar o melhor, passa-se ao aluno um
exemplo menos interessante.
<307>
Um exercício semelhante ao mencionado anteriormente pode
ser feito no início da alfabetização, dando ao aluno uma frase
para ele copiar, substituindo uma ou mais palavras que ele
queira, ou substituindo progressivamente todas as palavras, até
ele constatar que a sintaxe de base é a mesma, mas a semântica
é outra.
Interpretação de texto através de cópia
Uma forma sutil de cópia interpretativa é, às vezes, praticada
em atividades de interpretação de texto. Existe um tipo de
interpretação de texto que é muito útil para analisar o conteúdo
de certos textos, como problemas (de matemática, de fïsica),
enigmas, textos de reflexão filosófica, religiosa, etc. Éo que se
chama de exegese de um texto. Toma-se uma frase do texto e
procura-se fazer o comentário mais apropriado para explicar em
detalhes o que o trecho do texto original significa, agregando à
interpretação todas as informações que o explicam e que são
decorrentes dele. Professores de matemática que ensinam seus
alunos a fazerem uma "exegese" dos problemas, conseguem que
seus alunos lidem com mais naturalidade e competência com a
solução dos casos apresentados. Em geral, é mais difícil
entender o problema em toda a sua extensão e complexidade do
que saber fazer as contas para chegar ao resultado correto.
Através do exercício de exegese, as várias etapas que o
problema exige vão se apresentando mais claramente, inclusive
a ligação de uma parte com outra.
A cópia como forma de colecionar informações
O tipo de cópia mais freqüente na vida escolar é a que serve
para colecionar informações. Copia-se o que se ouve do
professor, uma idéia de um livro, um conteúdo qualquer, um
texto e, até mesmo, um pensamento, uma piada ou um simples
nome, por razões sentimentais. Às vezes, copiar reproduzindo a
forma gráfica original tem um poder mágico que a simples
escrita não tem. Copia-se a linguagem pelo conteúdo e pela
forma gráfica. Só isso basta para mostrar que a cópia é uma
atividade muito importante na escola e que não deve ser tratada
de maneira equivocada pelos professores e pelos educadores em
geral.
Copiar grande quantidade de material exige uma atividade de
catalogação e de organização de arquivos que a escola deve
desenvolver nos alunos desde a
<308>
alfabetização. A organização da informação é essencial para
que ela seja usada quando necessário. Hoje, com o uso comum
de computadores, aprender a organizar arquivos de informação é
algo muito importante. Isso se aprende também na escola.
Essas atividades de cópia estão ligadas à organização da
informação em arquivos. O professor deve, em primeiro lugar,
aprender ele próprio a manter organizado seu arquivo de
material e, também, ensinar seus alunos a realizar essa tarefa de
modo eficiente. A prática, nesses casos, sempre ensina mais e
melhor do que a teoria.
Através de cópias, podem-se montar coleções de tudo o que
existe de escrito, desde formas gráficas de letras e alfabetos, até
poesias, crônicas e informações curiosas ou úteis a respeito de
qualquer assunto. A escola deveria incentivar seus alunos a
formar esses arquivos e a manter um banco de dados pessoal ao
longo de seus estudos. A medida que o tempo passa, esse banco
de dados vai se enriquecendo, e os alunos vão tendo melhores
condições de estudo em casa, dependendo menos da escola. As
crianças adoram colecionar, e se a escola souber aproveitar isso,
além de colecionar objetos, as crianças colecionarão material útil
aos seus estudos e até à vida profissional futura. Assim como um
aluno coleciona selos, pode colecionar informações sobre
passarinhos, árvores, flores, mantendo um arquivo com recortes,
fichas com anotações, fotos, desenhos, etc. A escola muitas
vezes não sabe ensinar os alunos a utilizar os conhecimentos
escolares para fazerem coisas úteis para a vida. Há estudantes
que infelizmente acham que tudo o que está relacionado à
cultura é tarefa escolar e que não faz sentido além das quatro
paredes da sala de aula.
Classificar, rotular, dispor em espaço adequado são aspectos
importantes da organização dos arquivos, das coleções e dos
álbuns. A distribuição espacial do material nas fichas, folhas,
caixas, etc. também merece cuidado especial. Como se vê, por
trás da atividade de estudar, há muito trabalho de cópia e,
envolvendo isso tudo, além do conteúdo das matérias, há um
trabalho de organização que é essencial no processo educativo.
A educação não germina em meio à desorganização mental e
material. A organização material é prova da organização mental.
Essa é uma atitude que ajuda os alunos a entenderem a
disciplina como uma forma de organização social.
<309>
Uma atividade especial de cópia é a tarefa de passar a limpo a
lição. A escola deve cultuar o hábito de o aluno fazer um
planejamento do trabalho que vai escrever, executar uma versão
preliminar num rascunho, corrigir e melhorar e, finalmente,
passar a limpo. Muitos alunos detestam passar a limpo uma
lição, porque associam essa tarefa à de cópia punitiva.
Como se viu neste capítulo, uma atividade como a cópia pode
ser bem aproveitada na escola ou pode ser usada como uma
forma equivocada de ensino ou mesmo de punição. Depende do
professor fazer um tipo de uso ou outro.
<310>
12
LEITURA E INTERPRETAÇÃO DE TEXTO
LEITURA
Ler é decifrar e buscar informações
Já se sabe que o segredo da alfabetização é a leitura.
Alfabetizar é, na sua essência, ensinar alguém a ler, ou seja, a
decifrar a escrita. Escrever é uma decorrência desse
conhecimento, e não o inverso. Na prática escolar, parte-se
sempre do pressuposto de que o aluno já sabe decifrar a escrita,
por isso o termo "leitura" adquire outro sentido. Trata-se, então,
da leitura para conhecer um texto escrito. Na alfabetização, a
leitura como decifração é o objetivo maior a ser atingido. Os
próprios textos escritos são, na maioria das vezes, pretexto para
trabalhar a leitura como decifração. O uso da leitura como forma
de pesquisar adquire uma importância secundária. Depois que o
aluno se tornou fluente na leitura, ou seja, sabe decifrar a
escrita com facilidade, o uso da leitura como busca de
informação torna-se o objetivo mais importante na escola, e a
simples decifração deixa de ser uma preocupação constante nos
estudos.
É preciso distinguir bem esses dois usos da leitura, a partir da
compreensão da própria natureza e funçãoda leitura, vista sob
esses dois aspectos.
Ao longo deste livro, muito se disse para mostrar o que uma
pessoa precisa saber para ler a diversidade do nosso mundo de
escrita. Para quem já sabe ler, parece muito fácil e natural.
Entretanto, para chegar a esse ponto, é preciso adquirir certos
conhecimentos. Uma simples reflexão sobre isso nos leva a
concluir, entre outras coisas, que essa pessoa precisa saber a
língua portuguesa, a diferença entre desenho e escrita, o que
são letras e como as diferentes formas de letra dão origem aos
diferentes alfabetos que usamos. Deve saber por que uma forma
gráfica pode ser interpretada como a letra A, e não de outra
maneira, e até que ponto pode variar a forma gráfica de um
caractere e, apesar disso, continuar reconhecendo nele a mesma
letra — em poucas palavras, ser capaz de identificar a
categorização gráfica e funcional das letras, o que se consegue
somente com o reconhecimento da natureza, função e usos da
ortografia.
Além da decifração
Quando lê, uma pessoa precisa, em primeiro lugar, arranjar
as idéias na mente para montar a estrutura lingüística do que vai
dizer em voz alta ou simplesmente
<312>
passar para sua reflexão pessoal ou pensamento. Em ambos os
casos, a passagem pela estrutura lingüística é essencial. Sem
isso, não existe linguagem e, portanto, não pode existir fala nem
leitura de nenhum tipo.
A decifração, porém, pode ser feita por etapas. Os
conhecimentos da escrita podem ser poucos, permitindo ao leitor
descobrir inicialmente apenas os nomes dos caracteres. Outros
conhecimentos podem ajudá-lo a pronunciar as letras e talvez
até as palavras, sem contudo revelar o significado do que está
sendo dito. Este último caso acontece, por exemplo, quando um
lingüista lê a transcrição fonética de uma língua totalmente
desconhecida para ele.
Somente o conhecimento pleno da língua que a escrita
representa é capaz de dar ao leitor condições adequadas para
uma leitura que englobe a decifração e a compreensão. As vezes,
a isto é preciso acrescentar conhecimentos mais amplos exigidos
pelo próprio texto.
Para que um leitor leia um texto e compreenda o que está
escrito, não basta decifrar os sons da escrita nem é suficiente
descobrir os significados individuais das palavras. Um texto vive
das relações entre as palavras e as frases em todos os níveis
lingüísticos. Quando uma pessoa fala espontaneamente, constrói
o que vai dizer integrando todos esses elementos de tal modo
que seu pensamento seja expresso numa determinada língua,
segundo as regras dessa língua, e de forma coesa e coerente.
Tudo isso é processado antes de o falante abrir a boca para
pronunciar as palavras. Portanto, não basta a simples
articulação de sons da fala para que uma pessoa entenda o que
está sendo dito. Contudo, toda pessoa, além de falante, é
também ouvinte — ouvinte não só das outras pessoas, mas
também de si próprio. Assim, uma pessoa pode falar e ouvir a si
própria e, a partir dessa audição, processar a compreensão da
linguagem. Isso, obviamente, acontece apenas como um
processo de feedback, ou seja, do controle sobre aquilo que se
diz. O processo de produção da fala tem sua origem muito antes
de o falante dizer algo.
No entanto, como a linguagem tem todos esses aspectos, é
possível uma pessoa decifrar os sons das letras, pronunciá-los
em forma de palavras, uma depois da outra e chegar ao
conhecimento do conteúdo semântico do texto escrito. Essa
maneira de ler é freqüentemente encontrada nas aulas de
alfabetização, devido ao modo como os professores obrigam
seus alunos a ler.
<313>
Perdurando essa prática, o aluno acaba entendendo que é desse
jeito que se deve ler, e acaba sendo um mau leitor, um leitor que
acompanha o que se lê unicamente como ouvinte de si próprio.
O correto é uma leitura na qual o leitor decifra o que está
escrito, se apropria das idéias que descobriu no texto, elabora
todos esses conhecimentos como se fossem seus e, seguindo a
lei da fidelidade ao literal do texto, passa a dizer o que leu, numa
fala que traduz o texto e revela seu modo de interpretá-lo.
Nas explicações dadas acima, nota-se como se pode ler de
várias maneiras, dependendo do que se encontra pela frente. Se
o leitor encontrar uma letra escrita de forma não-usual, pode
enfrentar uma tarefa de decifração gráfica. Se encontrar uma
palavra escrita numa grafia errada, terá de avaliar o que lê em
função das possibilidades de escrita que a própria ortografia da
língua gerou no sistema de escrita. Se se deparar com uma
palavra desconhecida, pode ter dúvidas sobre o valor fonético de
alguma letra (por exemplo, X), e lerá essa palavra sem detectar
o seu significado. Talvez isso seja irrelevante, talvez não. Talvez
ele descubra o significado ou o campo semântico dessa palavra
em função do contexto em que essa palavra se insere. Além
disso, o leitor pode conhecer todas as palavras, saber como
pronunciá-las e não entender o texto, porque é de certa forma
hermético ou incompreensível para o leitor, tendo em vista a
história dos conhecimentos que possui e o que o texto revela.
Esse tipo de leitura todos nós fazemos no dia-a-dia.
Dependendo do texto e do leitor, algumas dessas dificuldades
aparecem com maior ou menor freqüência. Quanto mais se lê,
mais fácil torna-se ler novos textos. Por outro lado, uma criança
que está aprendendo a ler encontrará grandes dificuldades logo
de saída, a começar pelo simples reconhecimento das letras.
Leitura e planejamento lingüístico
A leitura em voz alta ou a leitura em silêncio tem de passar
por todas as etapas descritas acima. A única diferença entre elas
acontece no momento em que, depois de processada a produção
da fala com os elementos extraídos da decifração e
complementados com o que a língua exige, o leitor decide se irá
dizer em voz alta o que leu ou simplesmente passar aquela
estrutura lingüística para seu intelecto. Em ambos os casos, o
planejamento lingüístico deve ser completo, inclusive
<314>
com relação à escolha da variedade dialetal e à determinação
fonológica e fonética do que está para ser dito.
É por essas razões que se pode afirmar que a melhor
velocidade de leitura é a velocidade normal de fala, que varia de
falante para falante. Querer ler mais depressa ou mais devagar
do que a velocidade com que se fala pode trazer dificuldades
para a compreensão do que se diz e mesmo para a própria
pronúncia, quando a leitura se realiza em voz alta.
Muitas pessoas nunca se deram conta de que, quando lêem
para si próprias, não estranham em nada o fato de dizerem o que
lêem no próprio dialeto, mesmo que seja uma variedade da
língua estigmatizada pela sociedade. Certamente, as leituras
feitas em silêncio são assim, pois, mesmo em silêncio, pode-se
ler em outros dialetos.
Uma pessoa que estuda uma língua estrangeira e que passa a
ter certa fluência facilmente lê textos (em silêncio) nessa língua,
recuperando uma pronúncia padrão cujo conhecimento lhe é
familiar. Assim, essa pessoa acelera seus conhecimentos e
aumenta sua habilidade de falar a língua estrangeira, através da
leitura. Por outro lado, se não dispõe de conhecimentos
adequados da língua estrangeira e se põe a ler com forte
sotaque ou de maneira errada, acaba tendo, futuramente,
dificuldades para falar a língua estrangeira corretamente. Isso
se dá ao ler, não ocorre apenas uma decifração fonética e uma
identificação semântica, mas todo um processo de produção de
fala. É por essa razão que se costuma dizer também que os
alunos aprendem mais e melhor a norma culta à medida que se
tornam leitores assíduos.
Assim como se diz que na alfabetização o professor deve
ajudar os alunos a passarem da habilidade de produzir textos
falados para a produção de textos escritos, do mesmo modo, ao
aprender a ler, o aluno tem de produzir uma fala que esteja
plenamente de acordo com o processo que usa para falar
espontaneamente.
Um texto escrito não corresponde exatamente a um texto oral
que queira dizer mais ou menos a mesma coisa, mas a base dos
dois é a língua, que, na sua essência, é oral. Assim sendo, ler não
é falar, mas deve chegar o mais próximo possível disso. Esses
são dois pontos de suma importância na escola e, dependendo
de como o professor lida com eles, revela concepções diferentes
de linguagem e de ensino, tornando seu trabalho algo fascinante
ou desastroso.
<315>
Foi dito acima que um leitor pode escolher o dialeto em que
quiser ler. A escrita tem como objetivo essencial permitir a
leitura. Somente as transcrições fonéticas obrigam os leitores a
fazerem uma leitura, reproduzindo fielmente os sons
representados, na língua e no dialeto retratado. Nosso sistema
de escrita permite que um texto qualquer em português possa
ser igualmente lido por falantes de dialetos diferentes. Assim,
leio um texto escrito por um autor português como se tivesse
sido escrito por mim, no meu dialeto. E os portugueses lerão
meus textos com sotaque português. Quando leio Vinicius de
Moraes, Castro Alves ou Érico Veríssimo, não me esforço para
dar uma pronúncia carioca, baiana ou gaúcha ao texto. Leio no
dialeto que desejo. Ler num dialeto diferente do habitual requer
prática e atenção especial.
Quanto mais se distancia do controle semântico do texto em
direção ao fonético, tanto mais difícil fica acompanhar na leitura
a mensagem que o texto traz. Ao contrário, quanto menos
alguém se preocupar com a parte fonética, mais fácil fica
acompanhar a parte semântica e, dessa forma, entender o que se
lê. Esse fato encontra um paralelo na fala: as pessoas que se
preocupam com a fonética acabam produzindo uma fala artificial,
truncada e, muitas vezes, perdem o fio do raciocínio. A fala deve
ser monitorada pela semântica. A leitura, também.
O leitor interfere no literal do texto
Na leitura, como o leitor está diante de um texto pensado e
produzido por outra pessoa, é preciso respeitar os elementos
básicos desse texto. Como vimos acima, a variação de pronúncia
não afeta a estrutura do texto. Não é porque não leio um texto
de Vinicius de Moraes com sotaque carioca que o texto perde sua
razão de ser. Continua sendo o texto de Vinicius de Moraes —
como se diz, ipsis litteris. Por outro lado, vimos que o leitor não
interpreta apenas a parte fonética de um texto, mas também a
semântica. Aqui também o leitor pode apropriar-se das idéias
que descobriu, ao decifrar o texto, e acrescentar suas próprias
idéias às do autor. Quando se lê uma poesia ou um romance, o
pensamento não se atém apenas às idéias expressas pelo autor,
mas o leitor fica divagando, voando nas asas da imaginação e da
fantasia. Afinal de contas, a literatura sobrevive por causa desse
mundo imaginário que cria na cabeça das pessoas e no qual os
leitores podem viver a aventura do fantástico.
<316>
A leitura em voz alta, todavia, implica algumas restrições. Na
nossa cultura, existe a lei da fidelidade ao literal do texto, que
consiste em exigir do leitor que diga todas e somente as
palavras que o texto transcreve. Outras idéias que o leitor tenha
ao ler um texto devem ficar guardadas para si e não podem ser
reveladas numa leitura em voz alta.
No início da alfabetização, as crianças ainda não sabem disso
e, por essa razão, ao lerem os primeiros textos, ficam
misturando o literal do texto com a interpretação que fazem
dele, dizendo tudo em palavras e em voz alta. Por exemplo, o
professor mostra uma frase como: "Maria comeu o bolo". A
criança lê: "Era uma vez uma menina que fazia aniversário e
queria comer um bolo. Ela se chamava Maria e o bolo estava
muito gostoso". Um aluno que lê desse modo é um excelente
leitor: sabe decifrar o que está escrito, sabe se apropriar da
mensagem do texto e acrescentar o seu mundo mental ao que o
texto representa para ele.
Diante de tais fatos, alguns professores pensam que esses
alunos estão "chutando", que não sabem ler porque ficam
inventando coisas que não estão escritas. Esse tipo de
interpretação está equivocado, como se pode perceber pelos
comentários feitos anteriormente. O único problema desse aluno
relaciona-se à lei da fidelidade ao literal do texto, conforme
exigência da nossa cultura. Em vez de a escola explicar aos
alunos o que fizeram e o que devem fazer, ela em geral pune
esse tipo de leitor, obrigando-o a ler apenas o literal, sem se
preocupar com os outros aspectos da leitura. O aluno passa a
incorporar esse tipo de concepção de leitura e torna-se um leitor
literal, para quem um texto tem de ser lido literalmente. É
preciso que o professor alfabetizador, desde o início, trate de
maneira muito cuidadosa da produção de leitura em silêncio e
em voz alta. Os alunos devem seguir a lei da fidelidade ao literal
do texto sem deixar de lado a própria reflexão que corre em
paralelo à mensagem do autor no texto.
Foi mencionado acima que os leitores podem ler em qualquer
dialeto. Porém, a leitura em voz alta sofre das mesmas pressões
sociais que a faia. Assim, diante de um público, nossa cultura
não aceita que um texto seja lido num dialeto estigmatizado,
mas no dialeto padrão, pelas mesmas razões segundo as quais a
sociedade não aceitaria que alguém falasse daquele modo,
naquelas circunstâncias.
<317>
Alguns alunos perdem-se nessa floresta e acabam tomando
caminhos errados. Sobretudo em casos de leitura silenciosa
(para estudo), alguns alunos querem refletir tanto sobre o texto
que lêem que acabam misturando a própria opinião com a do
autor e atribuindo a ele idéias que não são dele. A lei da
fidelidade ao literal do texto obriga também o aluno que lê em
silêncio a distinguir o que faz parte do texto escrito e o que faz
parte de sua interpretação.
Esse problema é semelhante ao de quem ouve, O falante diz
um enunciado a seu modo, mas o ouvinte lida não apenas com o
que ouve, mas também com a sua própria interpretação.
Contudo, deve ficar bem claro que o texto do falante precisa ser
interpretado de acordo com o que o autor quis dizer e não pode
ser misturado com fantasias e imaginações que todo ouvinte
sempre acrescenta ao que ouve. A sociedade impõe restrições
culturais para que quem fala e quem ouve consigam usar a
linguagem adequadamente e, da mesma forma, para quem
escreve e quem lê. Sem o princípio da literalidade, a linguagem
se perderia num mundo de fantasias. Porém, esse princípio não
destrói nem impede a existência do mundo interpretativo do
ouvinte ou do leitor. Simplesmente pede para que esse mundo
fique guardado dentro das pessoas. Somente quando isso passa
a ser verbalizado num contexto específico, tornando-se por sua
vez uma realização literal, pode-se usá-lo fora do sujeito que
ouve ou lê.
Leitura silenciosa e em voz alta
Como vimos a leitura pode ser feita sem que o leitor
pronuncie o texto foneticamente (leitura silenciosa) ou através
da fala do leitor (leitura em voz alta).
A leitura silenciosa tem um valor enorme na escola, desde os
primeiros contatos das crianças com a escrita e a leitura. Os
professores devem incentivá-la o mais possível. Na nossa
cultura, muito raramente os leitores são obrigados a ler um texto
em voz alta. Ler em voz alta para um público é tarefa comum da
escola, mas não em outras situações. Na vida real, a leitura em
voz alta está restrita a umas poucas profissões, como por
exemplo locutores de rádio e de televisão. Note que os atores
costumam ler em silêncio os textos que apresentam, mas depois
ensaiam como declamá-los ou representá-los foneticamente,
através de uma leitura especial em voz alta. Algumas vezes,
<318>
chegam mesmo a memorizar o texto ou partes dele, para um
melhor desempenho. A escola deveria seguir esse procedimento.
Muitas crianças gostam de ler em voz alta e até de misturar
leitura com fala. O professor não deve se preocupar com isso,
porque, se a leitura estiver sendo feita individualmente, esta
poderia até mesmo ser considerada um tipo de leitura silenciosa
especial.
O que se costuma chamar de leitura em voz alta na verdade
deveria chamar-se, mais propriamente, de leitura para um
público ouvinte. O objetivo é que ele participe do literal do texto
como ouvinte da fala de um leitor.
As leituras em voz alta têm sido uma grande preocupação da
escola, embora na verdade não haja motivo para se dar tanta
importância a essa atividade nem mesmo com relação ao que os
alunos precisam fazer na vida escolar em geral. Da mesma forma
que o ditado e as notas, alguns professores gostam que os
alunos leiam em voz alta porque a escola sempre fez isso... e
nunca pararam para pensar nas reais vantagens e desvantagens
dessas atividades. Os alunos podem passar perfeitamente sem
ditados, como podem passar perfeitamente sem ter de ler em
voz alta, mesmo na alfabetização. Os professores gostam do
ditado e da leitura em voz alta por que, através do desempenho
dos alunos, podem avaliar melhor se eles já dominaram o que foi
ensinado ou não. Consideram importante saber através da
leitura em voz alta se os alunos aprenderam a decifrar a escrita.
Por outro lado, esse tipo de leitura é uma atividade muito
solicitada pelos alunos que trazem para a sala de aula uma
expectativa que a própria escola criou em gerações anteriores.
Nesses casos, o professor precisa tomar cuidados especiais para
que seus alunos não se tomem maus leitores, simplesmente
porque querem se exibir lendo de qualquer jeito.
Decorar antes de ler
Um procedimento aconselhável logo no início é usar textos
que os alunos já sabem de cor para que eles leiam, por exemplo,
letras de música ou poesias. Nesse caso, como em qualquer
atividade de leitura em voz alta, o professor deverá insistir para
que seus alunos leiam o texto como se estivessem falando, para
não criar uma pronúncia artificial. Já que eles sabem o texto de
cor, basta estudar um pouco e, depois, ler acompanhando as
palavras (não as letras). Alguns professores
<319>
antigos recomendavam que, durante a leitura de um texto, se
percorresse com a vista algumas palavras à frente daquelas que
a boca estava pronunciando... o que era um bom exercício para
quem já tinha certa fluência na leitura. Isso ajuda a lidar melhor
com os elementos supra-segmentais e prosódicos.
Os exercícios de leitura podem continuar aplicando a mesma
estratégia: pede-se para o aluno decifrar um pequeno texto,
depois decorá-lo e, somente então, lê-lo em voz alta. Decorar um
texto de poucas frases é uma atividade banal para qualquer
criança. Se eu disser a uma criança "Maria fez uma festa muito
bonita e todos comeram um bolo delicioso", ela repete sem
dificuldade. O mesmo pode ser feito com relação à decifração de
um texto escrito.
Preparar a leitura
Com o desenvolvimento dos estudos, já não será mais
possível que os alunos decorem todos os textos que irão ler em
público. Mas, ao chegar nesse ponto, procedendo daquela forma,
já adquiriram tudo o que precisam saber para se tornarem bons
leitores, dominando inclusive certa fluência na leitura. A medida
que os estudos avançam, em vez de decorar o texto, o aluno
deverá preparar a sua leitura. Isso requer um certo estudo
prévio. Depois que o aluno estiver seguro de que irá ler sem
dificuldades, o professor permitirá que ele leia para a classe. Se
o aluno não ler o texto pronunciando-o naturalmente, o
professor deverá solicitar que volte a preparar seu texto para
uma leitura posterior, explicando que ler como se deve é
também uma forma de respeitar os ouvintes.
Um aluno que é solicitado a ler individualmente e em silêncio,
num primeiro momento, e somente depois que adquiriu certa
fluência lê em voz alta, não apresenta problemas de leitura.
Simplesmente precisa rá praticá-la e, com o tempo, tudo estará
em ordem. A escola, porém, tem alunos que aprendem a ler de
outras formas e, se não estiverem lendo de maneira correta, o
professor precisará analisar as dificuldades desses alunos,
explicar-lhes o que fazer e treiná-los a se tornarem bons
leitores.
Tipos de leitura
No fundo, todos os tipos de leitura são da mesma natureza,
embora, externamente, assumam características diferentes em
diversas circunstâncias. Já foram
<320>
mencionados dois tipos de leitura: a leitura em voz alta e a
silenciosa. Um terceiro tipo de leitura, que também já foi
apresentado anteriormente, refere-se ao fato de um texto
provocar nos leitores diferentes reflexões, segundo o modo como
cada um o interpreta. Temos, pois, uma leitura literal e outra na
qual ao literal vem associada a reflexão do leitor, ou seja, uma
leitura interpretativa.
A leitura pode ter uma tipologia ramificada a partir de outros
parâmetros, como a natureza dos textos e a finalidade do próprio
ato de ler. Neste último caso, a leitura pode ser informativa, para
divertir, etc. Com relação à natureza dos textos, uma leitura
pode ser do tipo a ser declamado, representado, estudado, etc.
Um estudo mais aprofundado levaria, ainda, a outros tipos de
leitura. De interesse particular é o tipo de leitura que se tem,
dependendo do tipo de sistema de escrita que se lê.
Cada sistema de escrita tem um tipo próprio de leitura.
Quando se lê num sistema ideográfico, parte-se do significado e
procuram-se depois os valores fonéticos associados. Quando se
lê num sistema fonográfico, parte-se da identificação dos sons
das letras e procura-se a palavra associada a esses sons para se
chegar ao significado. Como vivemos num mundo caótico de
escrita, onde esses dois sistemas básicos estão representados de
muitas maneiras, os leitores comumente passam de um tipo de
leitura para outro. Os números e os pictogramas pertencem ao
sistema ideográfico; as letras, ao sistema fonográfico; a
ortografia, ao sistema ideográfico; o uso de rébus, ao sistema
fonográfico. Um passar de olhos num jornal ou numa revista
mostra logo como nosso mundo de escrita exige dos leitores
habilidades muito diferentes a todo instante. Ler apenas letras é
uma tarefa típica da escola. No mundo fora da sala de aula, a
escrita apresenta-se de muitas formas. Os símbolos, os sinais, as
grifes, as marcas e até os sinais de trânsito e informações gerais
que se encontram nas ruas mostram bem que as letras
representam apenas um tipo de escrita e de leitura. Para muita
gente, até mesmo os números (os algarismos) são o tipo de
escrita com o qual lidam mais no dia-a-dia. Infelizmente, com
freqüência, a escola treina seus alunos apenas para lerem letras
e, não raramente, somente para o aspecto literal do texto. É
preciso abrir os horizontes e incorporar às atividades escolares
todas as formas de leitura que o mundo moderno da escrita põe
diante dos olhos de todos.
<321>
A leitura e o mundo
A palavra "leitura" tem sido
usada para representar metaforicamente toda atividade que
envolve produzir fala ou pensamento, refletindo-se sobre um
determinado objeto. Assim, ouve-se que alguém precisa "ler o
mundo", "ler as mãos", "ler as estrelas", etc. Isso tudo é um uso
da linguagem, e não de um processo de leitura, no sentido
técnico. Esse uso metafórico da leitura, no entanto, tem
propiciado uma certa confusão com relação ao próprio processo
de alfabetização. Para um aluno ler o que está escrito, por
exemplo, a palavra POTE, não precisa pegar um pote, apalpá-lo,
estudá-lo fisicamente, para entender melhor o que a atividade
lingüistica de ler representa. Basta que ele conheça a palavra
POTE e tenha os conhecimentos lingüísticos de um usuário da
língua portuguesa.
Em decorrência de idéias como essa, algumas pessoas pensam
que não podem usar palavras que não são do mundo do
alfabetizando. Assim, um professor não poderia usar a palavra
ZEBRA, a não ser no Quênia e em outros países africanos... Esse
professor se pergunta: "Como pode uma criança entender a
palavra ELEFANTE de maneira completa, se ele nunca viu um
elefante na vida?" Ora, a linguagem representa o mundo no
pensamento e, por essa razão, saber o que uma palavra significa
não é uma abstração derivada do objeto no processo de
aquisição da linguagem para cada falante. Alguém, um dia, fez
isto: viu um elefante e trocou a expressão "aquela coisa" por
"elefante". A partir da incorporação dessa nova palavra à língua,
os usuários dessa língua não precisam mais "daquela coisa para
aprender a palavra "elefante". Basta alguém explicar o que
significa. A literatura, a ficção e até a ciência vivem
lingüisticamente assim. O testemunho é algo de importância
essencial na vida humana. Não é preciso ir ao Japão para
acreditar e saber que tal país existe e vive de um determinado
modo.
A leitura tem outros aspectos interessantes e importantes.
Dissemos que o leitor precisa começar decifrando a escrita e
descobrindo que palavras estão escritas (descoberta do
significado literal). Porém, como a palavra geralmente está
inserida num contexto de uso da linguagem, ou, mais
tipicamente, a leitura abrange um texto em que há muitas
palavras e frases, a questão da descoberta do significado torna-
se mais complicada. Isso se deve à própria natureza da
linguagem e não da escrita. Num texto, as palavras estabelecem
uma relação
<322>
umas com as outras, tanto quanto as frases. Por isso,
geralmente, não basta detectar apenas os significados literais
das palavras. Será preciso ir além e buscar as relações entre
palavras, frases e demais elementos envolvidos na produção
daquele texto, OS quais permitam ao leitor reconhecer os
subentendidos, os pressupostos, as conotações e tudo o mais
que popularmente se costuma dizer que está nas entrelinhas de
um texto escrito (na verdade, seria nas entrelinhas da própria
fala... e não apenas da escrita).
Dificuldades na aprendizagem da leitura
As dificuldades mais comuns que os alunos apresentam
referem-se a problemas de decifração, de concatenação ou de
compreensão.
O problema mais sério de decifração é o daquele aluno que,
não sabendo decifrar a escrita, põe-se a ler imitando os adultos e
inventando uma fala. Alguns alunos chegam mesmo a escrever
várias palavras seguin do a cartilha, mas, como não sabem
exatamente o que estão fazendo, quando são solicitados a ler,
não con seguem ou lêem apenas as palavras já dominadas, O
professor deve, portanto, ensinar esses alunos a decifrarem a
escrita.
Uma dificuldade comum no princípio ocorre com os alunos
que acabam lendo palavras que não existem ou que não se
encaixam no contexto. Por exemplo, ao ver a palavra CASA, o
aluno diz "kaça" ou "çeaça". Seu esforço para decifrar ainda não
foi suficiente para reconhecer outros valores fonéticos das
letras. Uma boa estratégia é o professor dizer para o aluno que,
quando ele for ler e descobrir uma palavra que não conhece,
deve procurar observar se alguma das letras não pode ter outro
som e formar, desse modo, outra palavra.
Esse caso é semelhante à leitura incidental. Assim como
atribuímos palavras às coisas, de modo semelhante pode-se
aprender a reconhecer certas palavras atra vés de formas
gráficas específicas, como logotipos ou marcas de produtos,
linhas de ônibus, etc. Mesmo uma pessoa analfabeta pode fazer
esse tipo de leitura. Porém, como ela não sabe decifrar a escrita,
a leitura incidental não vai além da identificação do próprio
objeto, não sendo um conhecimento produtivo.
Um problema um pouco diferente é o caso dos alunos que no
início da alfabetização têm dificuldade para decifrar. Isso é
natural e o tempo necessário para cada
<323>
um resolver as suas dúvidas varia de aluno para aluno e de
contexto para contexto. O professor deve ter paciência e dar
todo o tempo necessário para que os alunos realizem a tarefa.
Ajudá-los é sempre uma boa estratégia, mas não se deve
resolver todas as suas dificuldades, do contrário eles se
acomodam.
Alunos que aprendem a ler pelo bá-bé-bi-bó-bu, às vezes
costumam enunciar em voz alta os mecanismos de decifração
que usam para ler, o que resulta, por exemplo, no seguinte: "lê-
a-lá, tê-a-tá, la-ta Esse aluno sabe ler, mas precisa aprender que
deve guardar para si os procedimentos de decifração,
pronunciando em voz alta apenas o resultado final daquilo que
descobriu.
O ensino da leitura
Alunos que foram incentivados a ler acompanhando com os
olhos letra por letra e sem fluência têm enorme dificuldade para
desvendar o conteúdo semântico do texto. Antes de o aluno
reconhecer pelo menos uma palavra inteira, não pode sequer
começar a dizer o que está lendo. Como no texto escrito já está
evidente em grande parte uma estrutura lingüística definida, é
possível passar da simples constatação do valor fonético das
letras para uma emissão oral dos sons. Isso se faz sem
problemas com as transcrições fonéticas de línguas
desconhecidas. O mesmo pode acontecer para um falante nativo
com sua própria língua. O leitor é, então, um simples
decodificador fonético da escrita. Alguns alunos lêem desse jeito
e chegam até a ter certa fluência, o que impressiona bem o
professor, porém, tal aluno não aproveita o que lê, porque sua
leitura não lhe traz significados, apenas sons da fala. Corrigir
esses alunos já é uma tarefa mais complicada, porque
incorporaram esse tipo de leitura como a forma correta escolar.
O professor, nesses casos, precisa discutir com esses alunos os
mecanismos de produção da leitura e fazer com que leiam
através da memorização de textos, mesmo curtos.
Alunos que apresentam problemas de naturalidade, de
fluência, de concatenação, enfim, dificuldades com a realização
fonética dos elementos prosódicos, precisam de uma
comparação entre o que seria uma leitura exemplar e o que eles
fazem.
Ler textos com muita, pouca ou nenhuma ilustração é
irrelevante para a leitura, desde que os alunos saibam
exatamente o que têm diante de si. Criança gosta de ler textos
com ilustrações. Os desenhos não atrapalham
<324>
a leitura, pelo contrário, podem ajudá-la. Porém, ficar ensinando
a criança somente com listas de palavras acompanhadas de
desenhos, de tal modo que o aluno possa ler as letras ou
simplesmente adivinhar o que os desenhos representam, não é
uma boa estratégia. Pode-se fazer isso de vez em quando, mas
não se deve propor somente esse tipo de exercício de leitura.
Alguns professores gostam de promover leituras coletivas.
Isso ajuda a afastar o medo da leitura individual. Essa prática é
muito interessante, especialmente quando a classe não gosta de
ler.
Outra atividade atraente de leitura é fazer jogral, ou seja, a
leitura de um texto por várias pessoas, sendo que, em alguns
trechos, há apenas um leitor e, em outros, vários leitores em
coro. Algumas poesias se prestam bem a esse tipo de atividade,
como certos poemas de Manuel Bandeira — "Evocação ao
Recife", "Sinos de Belém".
INTERPRETAÇÃO DE TEXTO
Três práticas escolares tradicionais
Ao lado do ditado e da cópia, a interpretação de texto tem
sido uma das atividades mais tradicionais da alfabetização com
cartilhas. Muitos professores pensam que se trata de uma
atividade fundamental e imprescindível. Assim como o ditado e a
cópia, a interpretação de texto passou a ser feita de inúmeras
formas, e os professores raramente param para refletir mais
profundamente sobre sua natureza. Há vários pontos
importantes que é preciso considerar, inclusive uma revisão
histórica, para entender a atividade de interpretação de texto
como um exercício de alfabetização.
A visão histórica apresentada a seguir tem como objetivo
introduzir uma reflexão geral sobre o assunto, sem entrar em
considerações específicas.
Ideografia e leitura
Pela própria natureza, os sistemas de escrita ideográfica
propiciam os leitores a refletir mais detalhadamente sobre os
valores semânticos das mensagens escritas. Isso é mais óbvio
quando se levam em conta os símbolos religiosos e os usados
para ajudar as pessoas a pensar, meditar, reviver sentimentos
fortes de patriotismo, etc.
<325>
Esse tipo de escrita, dos mais antigos, persiste até hoje. Poder-
se-ia dizer mesmo que sua finalidade é despertar a meditação e
a emoção (religiosa ou não). Portanto, a leitura que se faz desse
tipo de texto é basicamente interpretativa: quando, por exemplo,
uma pessoa apanha uma fotografia e tenta se lembrar, falando
ou simplesmente pensando a respeito de pessoas, coisas ou
fatos que a fotografia evoca. Uma leitura literal, nesse caso,
seria algo fora de propósito ou pertinente apenas em caso de
uma investigação científica.
Desde os tempos mais antigos, as pessoas cultas discutem o
significado das palavras, procurando recuperar formas e
significados antigos. Assim, podem compreender melhor o uso
das palavras na sua época. Por exemplo, para explicar a palavra
"pluviométrico", lembram que, em latim, "chuva" se dizia pluvia
e, portanto, "pluviométrico" tem a ver com "chuva". Outros
exemplos: "televisão" e "telefone" contêm a palavra grega tele,
que significa "longe". Portanto, "televisão" significa "algo que se
vê longe". "Telefone", que inclui outra palavra grega - fone, que
significa "som" -, tem o significado de "som longe". Logo se vê
que, no caso da palavra "pluviométrico", a referência
etimológica ajuda a entender o significado atual da palavra,
embora, em "televisão" e "telefone", a revelação etimológica
ensina mais grego do que português, porque "televisão" e
"telefone" são coisas que não podem ser descritas apenas com o
critério dos significados etimológicos, embora façam parte do
significado total dessas palavras as idéias de "algo que se vê
longe" e "som longe".
Essa prática de querer explicar o significado das palavras pela
origem histórica tem valor para pesquisas de lingüística
histórica, mas não ajuda muito, nem é conveniente, para estudar
o uso atual das palavras na língua. A própria ciência é vítima do
fascínio das palavras e, muitas vezes, fica divagando e sonhando
nesse caminho etimológico.
Esse tipo de procedimento é extremamente comum nas
escolas, mesmo quando faz pouco sentido, como no caso de
"televisão" e "telefone". Porém, estamos tão acostumados a isso
que nem sequer questionamos o que fazemos. Fora do mundo
escolar, esse jogo interpretativo faz menos sentido ainda.
Explicar para uma pessoa sem vivência escolar o que é
"televisão" ou "telefone", dizendo a origem das palavras que as
compõem, parece realmente ridículo. Se alguém, por um lapso
de memória, esquecesse a palavra exata "televisão"
<326>
e tivesse de comprar uma por telefone, e dissesse apenas "algo
que se vê longe", dificilmente se faria entender. Imaginar
situações como essa é um bom exercício para testar o que hoje
definimos como "televisão" ou qualquer outra palavra da língua.
O que se disse acima não significa que os estudos de
lingüística histórica não têm valor. Pelo contrário, são muito
importantes, mas devem ser entendidos corretamente. A língua
que falamos hoje é resultado de uma evolução histórica, mas não
deve ser confundida com o que existia antes: português não é
latim, menos ainda grego. O português tem vínculos com essas
línguas, mas existe de maneira própria.
A exegese em textos literários
Outra atividade ligada de certa forma ao que se disse antes é
a exegese, ou seja, comentários sobre o significado de palavras
para esclarecer com precisão como devem ser interpretadas. A
exegese se faz com base em etimologia e numa tradição ou
conjunto de normas (no caso das leis). Uma pessoa pode
cometer um acidente de trânsito doloso, mas não culposo. No
primeiro caso, não há crime, mas no segundo sim. Isso é assim
porque a lei distingue "doloso" de "culposo". Essas palavras
devem ser entendidas, portanto, dentro do contexto legal em
que se inserem. Obras antigas são estudadas através de
minuciosas pesquisas para as quais a exegese é fundamental.
O trabalho de exegese dos textos antigos gerou a
interpretação de texto, que passou a ser feita, posteriormente,
não mais com textos necessariamente antigos. Qualquer texto
passou a servir para um trabalho de análise exegética. No caso
das obras literárias, os comentários (exegese) abrangem. não só
a especificação de palavras, como também de formas de
produção de diferentes textos literários (gêneros e estilos).
Posteriormente, algumas ciências orientaram a própria
interpretação literária, sobretudo a filosofia, a sociologia e a
psicologia.
Quando a exegese contribui para esclarecer significados que
já não são mais transparentes para o leitor numa dada época, a
interpretação de texto enriquece-se. Porém, mesmo na
interpretação literária moderna, encontram-se, por vezes,
pessoas que nada mais fazem do que dizer com as próprias
palavras o que o autor disse com as palavras dele. Aqui já não há
mais exegese,
<327>
mas simplesmente uma reprodução individualizada de uma obra
escrita, uma espécie de reescritura (sem a arte do autor). Essa
atividade é tão comum nas aulas de português, envolvendo
textos literários, que até algumas editoras fazem acompanhar os
livros de literatura escolar de formulários e questionários para o
aluno dizer com as próprias palavras o que o autor escreveu, ou
preencher as lacunas dizendo do que trata determinada obra
literária.
Interpretação de base filosófica
Os comentários oriundos de estudos filosóficos são muito
diferentes porque envolvem não só um trabalho de exegese,
como também costumam vir acompanha dos de reflexões
pessoais de quem faz os comentários. Nota-se, necessariamente,
a comparação entre idéias de diferentes correntes filosóficas ou
filósofos. Um filósofo pode escrever um livro sobre as idéias de
Aristóteles, por exemplo, dizendo com as próprias palavras o que
o autor disse de mais importante e de interesse para o livro.
Porém, escrever um comentário sobre Aristóteles é totalmente
diferente. Exige um longo e árduo trabalho de pesquisa e de
estudo. No primeiro caso, dizemos que houve apenas uma
reprodução das idéias de Aristóteles; mas, no segundo caso,
houve de fato uma interpretação. A interpretação de texto deve
ser, sempre, necessariamente criativa e individualizada.
Questionário para interpretação de texto
Matérias como matemática, física, química, geografia, bem
como história e português, passaram a ter a partir da década de
60 um esquema diferente de tratamento de compreensão de
texto. Naquela época, a escola começou a pedir que os alunos
respondessem a questionários, cujos objetivos eram reproduzir
algo segundo as expectativas do professor ou do livro didático.
As respostas, portanto, podiam até vir dadas de antemão no
Manual do Professor, e todos os alunos acertariam se
conseguissem dar a mesma resposta. Nada de interpretação,
nada de pesquisa individual sobre o assunto, e, principalmente,
nada de opinião pessoal, fruto de pesquisas sérias ou não.
Bastava reproduzir o modelo dado pelo professor ou pelo livro
didático.
Esse tipo de tratamento também passou a ser dado a obras
literárias, nos livros didáticos e nas aulas de português.
Obviamente, tal atividade deveria ser abolida
<328>
da escola, em todas as matérias. Simplesmente reproduzir um
modelo não é um procedimento pedagógico recomendável
quando os alunos podem e devem usar da reflexão para
aprenderem.
Análise do discurso
Há, ainda, um tipo de interpretação de texto com o qual as
pessoas são levadas a deduzir do texto implicações de diversas
ordens, como reflexões filosóficas, psicológicas, ideológicas,
etc., que são explicitadas pelo leitor que interpreta, mas que não
foram objeto de preocupação direta do escritor. Certas análises
do discurso, por exemplo, desenvolvem todo o seu trabalho
nessa linha. Já não se pode dizer que esse tipo de trabalho seja
uma interpretação de texto propriamente dita, mas uma análise
do conteúdo lingüístico, psicológico, filosófico, ideológico,
psicanalítico, etc., inerente a alguns aspectos do conteúdo do
próprio texto. É por essa razão que os lingüistas chamam essa
tarefa de análise do discurso.
Outro tipo de análise do discurso está voltado para o estudo
dos mecanismos lingüísticos que possibilitam a um texto ter
determinadas características e não outras. Aqui a base do estudo
são as estruturas lingüísticas, não as noções filosóficas,
psicológicas, ideológicas, etc.
Mais semelhante ao estilo apresentado logo acima são os
estudos de lingüística textual e de análise da conversação. A
lingüística textual está mais preocupada com os mecanismos de
coerência e coesão, que fazem com que o texto seja uma
unidade e tenha uma
estrutura bem montada. A análise da conversação preocupa-se
especialmente com o estudo dos mecanismos lingüísticos que
permitem que duas ou mais pessoas construam conjuntamente
um texto, como acontece nos diálogos, conversas, debates, etc.
Lingüisticamente, estudar as estruturas que dão forma a um
texto é a melhor maneira de fazer uma interpretação de texto.
Um texto tem estruturas semânticas e gramaticais (sintaxe,
morfologia, fonologia, etc.), além de estar inserido num contexto
(pragmática,
sociolingüística, etc.).
Os pretextos da interpretação de texto
Pode-se, pois, ver que o que se chama interpretação de texto
apresenta diversas formas e significados. Em resumo, podemos
juntar tudo nos seguintes tipos: análise
<329>
literal de palavras, frases, temas ou assuntos tratados; estudos
etimológicos; análise exegética; comentários pessoais dos mais
diversos tipos, extrapolações de natureza filosófica, psicológica,
ideológica, etc.; análise do discurso de base ideológica,
argumentativa ou simplesmente estrutural, envolvendo apenas
os elementos lingüísticos determinados pela gramática;
lingüística textual e análise da conversação.
Essas diferentes abordagens de um texto são interessantes e
têm seu valor. Porém, quando uma delas predomina, isso revela
uma concepção de linguagem fortemente marcada. Por exemplo,
quem estuda apenas o significado literal de palavras de um
texto, ou procura entendê-lo pela etimologia das palavras-chave,
revela uma concepção de linguagem muito ingênua,
desconsiderando as complexas relações que as unidades
lingüísticas estabelecem entre si e com o mundo em que se
inserem. Por outro lado, uma pessoa que só sabe ver
interpretações psicanalíticas, ideológicas, etc. mostra uma
concepção de linguagem em que os elementos lingüísticos são
apenas pretextos para considerações de outra ordem.
Lingüística e interpretação de texto
Lidar com o texto, portanto, tem envolvido tradicionalmente a
própria maneira de ser da linguagem, dos lingüistas, da
gramática de uma determinada língua e de elementos não-
lingüísticos, formando um contexto no qual o texto assume seu
valor e significado pleno. Em outras palavras, para se ter uma
compreensão ampla de um texto (oral ou escrito), é preciso
saber tudo sobre a linguagem e sobre o mundo a que essa
linguagem se refere. Estudar essa questão e explicitar todos os
fatos e fenômenos envolvidos, em última análise é tarefa da
lingüística. Esse estudo é tão complexo que leva os lingüistas a
acharem que estão apenas no começo de uma compreensão da
linguagem humana no seu todo. Mais difícil ainda é formular em
palavras os resultados das pesquisas sobre a linguagem. Por
essa razão, a lingüística tem se mostrado uma ciência um tanto
enigmática para quem estava acostumado apenas com a
gramática normativa tradicional.
Se, por um lado, é difícil entender e descrever a linguagem na
sua globalidade, por outro lado, o uso da linguagem no dia-a-dia
é algo muito familiar e até banal para os falantes. No mundo
todo, as pessoas falam e ouvem como se isso fosse algo tão
familiar, fácil e óbvio
<330>
como andar e comer. Isso traz uma nova dimensão ao assunto.
Os falantes dizem seus textos ou escrevem-nos. Os ouvintes
ouvem textos e os leitores lêem textos escritos e fazem isso com
perfeição, sem precisar enunciar explicitamente todas as regras
de tudo o que está envolvido nessas atividades. Somente quando
surge uma dúvida específica, por exemplo, com relação a uma
palavra desconhecida ou usada de modo incomum, ou quando
surge uma curiosidade a respeito dos conhecimentos
relacionados com o texto, os usuários da língua necessitam de
uma reflexão particular para ajuda-los a entender melhor um
texto. Caso contrário, os textos são assumidos e consumidos
como auto-suficientes. Aliás, essa é uma das funções da
linguagem: achar que o interlocutor é capaz de entender o que
ouve ou lê. Sem esse pressuposto, não faz sentido sequer abrir a
boca para falar ou se pôr a escrever. O simples ato de pensar é
falar consigo próprio, supondo que o indivíduo é capaz de
entender o que ele formula lingüisticamente. Na verdade, toda
descoberta feita pelo homem nas ciências, nas artes e na
tecnologia só passou a existir no momento em que foi possível
pensar aquilo que se fez, isto é, colocar as idéias em palavras, e
essa é uma atividade tipicamente lingüística. Na Bíblia, se lê que
o próprio Deus usou a palavra para criar o mundo...
É preciso interpretar um texto?
Ao observar os usos da linguagem, notamos que uma pessoa
conversa com outra e, agindo assim, não precisa ficar fazendo
perguntas de vez em quando para saber se seu interlocutor está
entendendo ou não. Quando o interlocutor não entende algo, ou
pensa que está entendendo errado, ele simplesmente faz
perguntas para resolver suas dúvidas. Porém, certo tipo de
pergunta, ou mesmo uma quantidade grande delas, denota que
está acontecendo algo de errado. Perguntas que procuram
interpretar o texto são diferentes daquelas que aparecem
naturalmente numa conversa, conduzindo um assunto. Nesse
último caso, as perguntas têm uma função de construção do
próprio texto que está sendo produzido; no caso anterior, não.
Em outras situações da vida, como, por exemplo, quando
alguém está assistindo a um filme, a um programa de televisão,
ou visitando um museu, seria ridículo entregar aos
telespectadores ou visitantes um questionário de interpretação
de texto para saber se eles entenderam corretamente o que
viram. Isso não se faz
<331>
nem com os programas infantis. Seria interpretado como uma
forma de aviltamento do espectador, um modo de dizer que ele
não é capaz de entender as coisas e que sua capacidade
intelectual precisa ser monitorada. No fundo, seria uma forma de
negar a racionalidade do homem. Por mais pobre, miserável e
estúpido que alguém seja, ainda assim é um ser dotado de
racionalidade e infinitamente mais complexo do que qualquer
outro animal ou máquina. É justamente porque o homem possui
a racionalidade que ele pode ofender, desprezar, menosprezar e
humilhar seu semelhante. Por isso, perguntar às vezes pode
ofender. Se alguém leu ou ouviu um texto em que está dito
"Maria comeu bolo de aniversário" e encontra um exercício de
interpretação de texto, que pede para ela dizer quem comeu o
bolo, que tipo de bolo ela comeu, se comeu o bolo inteiro ou
apenas um pedaço, isso pode até ser respondido, mas o fato de
se apresentar tais perguntas é, sem dúvida, uma ofensa. O
objetivo de perguntar é a busca de uma informação nova, e,
nesse caso, as perguntas servem simplesmente para averiguar
se o leitor é capaz de responder, e nenhuma informação nova é
solicitada. Mudando um pouco o contexto, isso seria semelhante
a um professor de ginástica que perguntasse aos seus alunos se
eles sabem o que é andar, se movimentar, parar, ou ainda,
depois dos exercícios, perguntar a eles se estiveram parados ou
se movimentando.
Entender o texto no seu contexto
Chegamos, assim, a um ponto importante: como se entende
um texto e o que se entende dele? Há diferenças, se o texto for
oral ou escrito?
Pelas considerações feitas acima, vimos que a resposta a
essas perguntas implica um conhecimento global da linguagem e
do mundo. Vimos também que, apesar disso, as pessoas utilizam
perfeitamente a linguagem, inserida no mundo, sem saber
explicitar as regras que a regem. Portanto, cada um entende um
texto, seja ele oral ou escrito, pelo simples fato de ser um
usuário de uma determinada língua. Se alguém diz para um
falante de português "Maria comeu bolo de aniversário", a
comunicação ocorre porque o falante sabe dizer dessa forma e
sabe que, agindo assim, seu ouvinte, um falante de português
como ele, entende o que foi dito, e esse conhecimento é da
dimensão exata que os falantes atribuem ao que se disse e ao
que foi ouvido.
<332>
Questionar o processo de produção da fala ou de recepção da
mesma é questionar a própria capacidade de quem fala ou de
quem escuta.
No entanto, alguém pode observar que também se constata
que há casos em que pessoas (até muito inteligentes), que
entendem errado o que ouvem, come tem enganos com a
linguagem, e assim por diante. Na verdade, esse tipo de objeção
nada tem a ver com o que foi dito acima; refere-se ao fato de a
linguagem se prestar não só a comunicar de forma correta, mas
também a carrear informações que têm por objetivo induzir o
interlocutor a erro ou desafiá-lo a escolher a interpretação
necessária em meio a várias opções. Em outras palavras, a
linguagem pode trazer consigo muitas armadilhas para quem
fala e para quem ouve, porque isso também faz parte das
funções da linguagem. A linguagem não é apenas lógica,
inequívoca e completa, como alguns gostariam que fosse. Seu
emprego é um jogo que põe em desafio constante a natureza
racional de seus usuários.
O princípio da literalidade
Como a linguagem não é um exercício lógico e completo de
informações, falantes e ouvintes têm sempre mil opções de dizer
o que pretendem e de tirar de um texto toda sorte de
interpretações. Os usos sociais da linguagem, todavia,
encarregam-se de estabelecer certos limites, para que esta seja
um instrumento útil aos homens. Um desses limites é a
interpretação literal. O princípio da literalidade exige que todo
falante e ouvinte tenham, no sentido literal do que dizem ou
ouvem, o ponto de partida e a referência básica para toda e
qualquer interpretação complementar que se queira atribuir ao
texto. Por interpretação literal, entenda-se o uso comum que se
faz das palavras. Portanto, se alguém disser: "O pé da cadeira
quebrou", a palavra "pé", aqui, tem como sentido literal "o pé da
cadeira" e não o significado de uma parte do corpo humano.
Tanto assim é verdade que ninguém pensa em parte do corpo
humano quando encontra a expressão "pé da cadeira". Somente
as pessoas interessadas nos estudos etimológicos pensam
nessas hipóteses. Literal, portanto, significa o que está dito, do
jeito que está dito. Pensar em parte do corpo, nesse caso, é levar
em conta algo que não foi dito, nem pensado, mas simplesmente
associado à palavra "pé", uma vez que ela possui esse significa
do, mas em contexto muito diferente.
<333>
Quando ocorrem interpretações diferentes sobre um mesmo
fato ou enunciado é porque todo texto precisa ser entendido
dentro de um contexto lingüístico, de coesão, coerência e,
depois, referencial, ou seja, do mundo em que o texto se insere.
Quando o contexto lingüístico não é favorável, ou quando não
se dispõem das informações referenciais adequadas, interpretar
um texto pode ser uma tarefa inútil ou, no máximo, de solução
duvidosa, sem a possibilidade de se chegar a um resultado
seguro.
Para entender o que se lê, o que se ouve ou, mesmo, para
produzir um texto que está sendo lido ou ouvido, o falante e o
ouvinte/leitor utilizam-se de todos os conhecimentos já
adquiridos, quer com relação aos usos da linguagem, quer com
relação à interpretação de uma cosmovisão que cada um tem
para si. Em outras palavras, cada um usa a linguagem segundo
seu próprio metabolismo intelectual. Ora, se isso é assim, por
que se preocupar com o que as pessoas dizem ou entendem? É
por essa razão que a sociedade não faz roteiro para as pessoas
falarem nem questionários de interpretação de texto após uma
conversa qualquer. Essas atividades de produção e de
compreensão da linguagem são totalmente individuais e cada um
responde por si. Se fosse diferente, a linguagem seria algo
inconcebível na sociedade. Do jeito que ela se apresenta, é algo
fascinante, desafiador e maravilhoso.
Interpretação de texto e estudo escolar
Como a escola é um lugar onde as pessoas aprendem, é
natural que os professores se preocupem com o progresso dos
alunos. Isso inclui, entre outras coisas, avaliar a aprendizagem.
É por essa razão que os professores acham que precisam fazer
interpretação de texto, para checar se os alunos entendem o que
lêem. Essa avaliação, sem dúvida alguma, faz parte das
preocupações da escola. Porém, é preciso entendê-la
corretamente. Não só faz sentido, como é necessário que o
professor faça interpretação de texto, quando se trata de textos
científicos, como os de matemática, geografia, história, etc. Até
mesmo uma interpretação literária pode e deve ser feita. Pode-
se e deve-se fazer análise lingüística dos textos.
Porém, não é isso o que se encontra nos exercícios tradicionais
de interpretação de texto. Perguntar qual é o tema de um
romance não é fazer análise literária. Mandar o aluno preencher
as lacunas com palavras ou
<334>
citações de um texto não tem nada a ver com o tipo de
interpretação de texto mencionada acima; é simplesmente um
exercício idiota ou, quando muito, um passatempo. Um aluno
pode e deve memorizar os procedimentos científicos, a
cronologia histórica, as características geográficas, mas não são
os exercícios de preencher lacunas que vão lhe dar as condições
para isso:
estudar envolve estratégias mais inteligentes.
Uma delas é fazer com que uma leitura puxe outra, e um texto
puxe outro, um trabalho leve a outro e assim por diante. Um
aluno que interpreta bem um texto deve ser capaz de aplicar o
que estudou, e o fato de fazer corretamente algo relacionado
com o conteúdo do texto é prova mais do que suficiente de que
ele leu e entendeu corretamente. Se errar, pode-se voltar ao
texto e ver qual ponto não ficou claro, razão pela qual o aluno
não conseguiu fazer o que lhe foi pedido.
Por trás dessa discussão, mais uma vez, está a idéia de que a
escola não deve ensinar apenas um determinado conteúdo aos
seus alunos, mas deve, principalmente, ensinar como estudar
esse conteúdo. Em outras palavras, ela precisa cuidar muito
atentamente do modo como os alunos estudam. Fazer
interpretação de texto pode ser uma catástrofe para a vida
escolar do aluno se ele chegar à conclusão de que só pode
aprender algo respondendo a perguntas ou, pior ainda, se passar
de ano pensando que aprendeu, ao ver que respondeu
corretamente às perguntas que lhe foram feitas, de acordo com
o livro ou com a matéria que o professor passou na lousa.
Nesse tipo de atividade, falta a reflexão criadora do aluno,
falta a iniciativa para construir a própria aprendizagem, falta a
imaginação dedutiva que o leva a propor para si coisas novas, a
partir de coisas velhas que aprende. Isso tudo mostra que o
professor que estimula seus alunos a trabalhar tem todas as
condições de que precisa para avaliá-los. Por isso, não necessita
fazer uma lista de perguntas, no fundo geralmente descabidas.
A mania de a escola querer controlar a vida intelectual das
pessoas cria raízes na sociedade e dá frutos na nossa cultura.
Muitos intelectuais ficam cheios de pruridos quando falam,
porque estão sempre supondo que serão mal entendidos e,
conseqüentemente, outras pessoas irão achar que eles são
imbecis. Quando se fala e se ouve, há sempre a possibilidade de
enganos. Isso faz parte dos usos da linguagem, bem como
discutir e rever o que foi dito ou entendido. Esse é o jogo da
linguagem, e nenhum texto ou falante está imune a esse risco.
<335>
O tormento em que vivem certas pessoas tem sua origem nesse
medo de serem mal entendidas quando usam a linguagem
porque a escola sempre teve essa atitude com elas.
Portanto, como vimos, fazer interpretação de texto faz sentido
quando se procede a uma análise científica do mesmo, quer para
aprender conteúdos específicos das ciências e das artes, quer
para aprender sua natureza lingüística. Não faz sentido fazer
interpretação de texto com o simples pretexto de ver se o aluno
entendeu ou não o que leu, através de perguntas de identificação
de palavras ou de idéias.
Vale a pena fazer interpretação de texto?
A escola precisa se perguntar se vale ou não a pena fazer
interpretação de texto. O que acontece se não fizer? A resposta a
essas perguntas fica mais clara quando se leva em conta que
uma verdadeira interpretação de texto tem mais a ver com as
estruturas lingüísticas textuais do que com seu conteúdo.
Discutir o conteúdo de um texto é discutir as idéias do autor.
Nesse caso, é imperativo que outros conhecimentos, além dos
detectados no texto, sejam evocados para que a discussão seja
bem feita.
Além disso, a escola precisa se questionar sobre os textos que
ela usa para fazer interpretação de texto. Os professores fazem
interpretação somente de textos literários (ou
presumivelmente). Ora, esse tipo de texto é o menos
recomendável, uma vez que os exercícios de interpretação visam
apenas a detectar a identificação de palavras e idéias. Pior ainda,
os textos usados nas primeiras séries são escritos de tal modo
que permitem às crianças uma leitura tranqüila. Textos
científicos, que eu saiba, não são usados para fazer
interpretação de texto e são justamente os mais indicados para
isso. A formulação de problemas de matemática tem
características próprias, como a poesia, o conto, a piada, etc.
Estudar as características estruturais que fazem com que esses
textos sejam do jeito que são consiste num exercício de
interpretação de texto que a escola precisaria fazer.
A outra afirmação clássica apresentada pelos professores
para o uso das tradicionais interpretações de texto é o fato de
alguns alunos virem de famílias pouco acostumadas com textos
escritos e com o uso escolar desse material nos estudos.
Resumindo, os professores acham que passando os tradicionais
exercícios de
<336>
interpretação de texto, esses alunos irão aprender a fazer o que
a escola espera deles ou seja, resolver seus problemas
escolares. Alguns professores estão profundamente convencidos
disso uma vez que sempre fizeram assim e obtiveram resultados
muito satisfatórios. Mais uma vez, deve se dizer que esses
professores estão satisfeitos com esse tipo de trabalho e
resultado por que não conhecem outro modo de trabalhar nem
os resultados que poderiam ter, se optassem por um tipo de
trabalho diferente Em segundo lugar, exercícios de interpretação
de texto não dão a base cultural necessária para o que alegam.
As crianças pobres conseguem isso à medida que tomam cada
vez mais contato com a leitura e se põem a ler mais e mais.
Então, é a leitura que propicia os bons resultados apontados
pelos professores e não os exercícios de interpretação. Esses
professores devem ver as coisas também a longo prazo e levar
em consideração o mal que os exercícios tradicionais de
interpretação de texto trazem para os alunos, fazendo deles
pessoas que não cortam o cordão umbilical da alfabetização e,
conseqüentemente, não adquirem a liberdade de ler um texto e
refletir sobre ele com autonomia.
Quando uma pessoa está lendo um texto e encontra uma
palavra cujo significado desconhece, é natural que pergunte. O
mesmo acontece quando o conteúdo do que está lendo não é
compreendido. Por essa razão, o professor deve dizer para os
alunos que busquem a solução para essas dúvidas perguntando,
procurando no dicionário ou de outras formas. Como o professor
não pode saber de antemão quais são as dúvidas de seus alunos,
não pode tomar a iniciativa antes deles. Isso não tem nada a ver
com interpretação de texto propriamente dita. E uma prática
saudável que deve acompanhar toda leitura.
Estamos, pois, diante da seguinte situação: deixar de lado os
exercícios tradicionais de interpretação de texto, que procuram
apenas a identificação de palavras ou de idéias. Em lugar disso, o
professor irá promover estudos específicos sobre os mais
variados textos, levando em consideração os diversos interesses
suscitados pelos textos. Assim, um texto literário pode servir
para discutir literatura; uma poesia pode servir para estudar o
que é poesia.
Obviamente, um professor não vai estudar o que é poesia após
a leitura de cada poesia. Interpretação de texto como essa se faz
quando é necessário ou conveniente,
<337>
e não com todo texto que se lê. O professor pode estudar a
estrutura de uma piada, de um problema de matemática ou de
qualquer tipo de texto. Pode comparar um texto de jornal com
um texto de livro e ver as diferenças. Determinados assuntos
podem ser analisados, observando-se como vêm expressos em
tipos diferentes de textos, como cartas, notícias de jornal,
estudo técnico sobre o assunto, etc.
Interpretar um texto ou debater uma idéia?
Uma atividade importante, que a escola deve cultivar com
carinho, é o debate. Nesse caso, o texto representa apenas uma
das idéias em discussão. Os alunos não vão simplesmente
responder a perguntas de identificação, mas irão, pelo contrário,
apoiar ou rejeitar o que o autor disse, tendo em vista os
argumentos que entram na discussão que estão fazendo. Essa é
uma das melhores maneiras de avaliar se os alunos
aproveitaram muito ou pouco do que leram. Assuntos mais
técnicos permitem discussões mais fáceis, assuntos mais
polêmicos suscitam opiniões diferentes, e histórias de fantasia
permitem reelaborações críticas da história e de sua forma de
apresentação que também representam atividades muito úteis
na escola.
A grande vantagem do debate sobre a interpretação de texto é
que permite que as pessoas possam responder, levando em
conta o que ouvem e, dessa forma, elaborar por etapas um
comentário mais completo a respeito do que pensam. Um grande
problema das interpretações de texto é a falta de possibilidade
de estender a exposição de uma idéia, o que causa
freqüentemente confusões, estranhas conceituações e
conclusões falsas.
Atividades alternativas à interpretação de texto
A atividade de leitura não deve implicar necessariamente a
interpretação de texto. A leitura deve servir para o aluno buscar
informações, instruções, para estudar, como também, para se
distrair, se divertir, descansar, etc. A melhor maneira de perder
um leitor é pedir para ele preencher uma ficha de avaliação ou
de interpretação de texto. Essas fichas de leitura só servem para
destruir o prazer de ler. Em lugar disso, a escola deve ensinar os
alunos a tomarem notas de coisas bonitas e interessantes que
leram, colecionando
<338>
esses excertos, versos, pensamentos, etc. em cadernos de
anotações pessoais. É claro que cada um vai escolher a atividade
que achar mais interessante. Seria ridículo obrigar uma classe a
colecionar as mesmas coisas.
Fazer resumos de lições é uma boa prática escolar. Aqui
também, cada um faz de seu modo. Esses esquemas devem ser
personalizados, e, portanto, o professor promove a atividade,
pode discutir o que cada um fez e ensinar o que for necessário.
Esse tipo de trabalho com texto deveria ser a grande
preocupação dos professores de todas as matérias, e não só dos
de português e de alfabetização.
Uma prática muito usada por alguns professores, e que pode
substituir com vantagens os exercícios tradicionais de
interpretação de texto, é partir de um texto para fazer outro,
seja recontando uma história, seja adaptando o conteúdo a outra
forma de texto. Um aluno lê uma história sobre o trânsito ou a
vida de alguém famoso e, depois, escreve com as próprias
palavras o que se lembrar do que leu. Ou então, o aluno lê uma
poesia e transforma-a numa carta ou vice-versa. Esse tipo de
trabalho é muito recomendável, pois ensina as características
dos textos.
Muito do que foi dito acima serve para a prática do professor
em séries mais adiantadas. Na alfabetização, o mais importante
é dar chance aos alunos de ler e escrever o máximo possível,
como atividade individual. Um professor alfabetizador não
precisa, na verdade, se preocupar em trabalhar os textos de
maneira mais técnica: o melhor é produzi-los e ler.
Outra questão vinculada à interpretação de texto é o ensino da
gramática. Reduzir o ensino de português à análise de textos é
absurdo. Querer tirar todo o ensino gramatical de textos é
catastrófico. Se os textos forem os de leitura comum, há ainda o
inconveniente de despertar nos alunos aversão à leitura e aos
estudos em geral, porque acham que texto só serve como
pretexto para o estudo da gramática.
Os textos da interpretação de texto
Finalmente, e preciso dizer alguma coisa a respeito dos textos
que os professores dão para seus alunos lerem. De modo geral,
especialmente na alfabetização, a impressão que se tem é que a
grande maioria dos professores usa os piores textos como
exemplo para os alunos. Alguns escolhem os textos semelhantes
aos
<339>
encontrados nas cartilhas, que são os piores textos já
produzidos por alguém. Outros adaptam letras a canções
conhecidas para ensinar determinados conteúdos, e o resultado
literário apresentado é simplesmente horroroso. As escolas têm
recebido um grande número de livros de história de fantasia, à
moda dos contos de fada modernos. Destes, uns poucos livrinhos
são bem-feitos e têm valor. Não é raro encontrar livrinhos com
histórias sem pé nem cabeça, ridículas ou, quando muito,
histórias para boi dormir, como se costuma dizer. Alguns autores
pensam que o conteúdo de livros infantis deve ser inverossímil,
porque as crianças vivem no mundo da fantasia. Todo o mundo,
mesmo os adultos, vive no mundo da fantasia. Todo o mundo,
mesmo as crianças, tem senso da realidade. Um excesso de
leitura que navega em fantasias absurdas não pode ser uma boa
prática escolar.
Além desse tipo de livros, a escola deve incentivar os alunos a
lerem livros sérios, que tratem de coisas sérias. Tudo o que se
diz para um adulto pode ser dito para uma criança, bastando
escrever de maneira adequada para um ou para outro. Alunos
que só lêem livros de histórias de fantasia dificilmente depois
vão ler um livro de matemática ou de história diferente do livro-
texto adotado pelo professor nas séries mais adiantadas.
A partir de 1964, com a falsa alegação de proteger o mercado
editorial nacional, os editores praticamente pararam de publicar
traduções das grandes obras literárias estrangeiras. Nos últimos
anos, porém, essas obras voltaram às prateleiras das livrarias.
Felizmente, hoje é possível comprar muitas obras-primas da
literatura universal até em bancas de jornal. Apesar dessas
facilidades atuais, ainda raramente se vê um grande escritor
entre os textos que os alunos lêem, sobretudo nas primeiras
séries, porque os professores acham que seus alunos são
incapazes de entender. Com isso, ficam privados do que existe
de melhor em termos de texto e de leitura, simplesmente porque
seus professores são preconceituosos com relação à capacidade
de entender de seus alunos.
A salvação não é fazer interpretação de textos, mas dar aos
alunos o que há de melhor: a leitura dos grandes escritores. Os
frutos que cada um vai colher irão depender do modo como cada
um vai cultivar a própria vida como leitor. Para a escola, já seria
muito se convencesse os alunos a se tornarem leitores.
<340>
13
Ortografia da língua portuguesa
BREVE HISTÓRIA DA ORTOGRAFIA DA LÍNGUA PORTUGUESA
A influência do sistema latino
A língua portuguesa veio do latim. Os romanos estabeleceram
colônias na península Ibérica, implantando a cultura latina entre
os povos da região. Os árabes vieram depois e dominaram a
península do século V ao século IX. Durante essa época, Portugal
não passava de uma província dominada pela Espanha. Logo
depois da expulsão dos árabes, Portugal tornou-se um país
independente da Espanha.
Não se sabe quais línguas eram faladas ali, antes da chegada
dos romanos. Em Portugal, certamente era falada alguma língua
celta e, na Espanha, uma ou mais línguas iberas, além do basco.
O latim foi se fixando nessa colônia, adquirindo seu sotaque
próprio, firmando-se inicialmente como dialeto e, depois, como
língua. No século X já se podia distinguir claramente o espanhol
do português. Havia também o galego, falado na Galícia, ao norte
de Portugal, hoje território espanhol. O basco e o catalão
sobreviveram como línguas de minorias no território espanhol.
Em Portugal, no final da Idade Média, o latim era usado nos
documentos oficiais, entre as pessoas cultas, nas escolas, nos
livros e nos documentos religiosos. O povo, sempre pobre e
ignorante, compreendia cada vez menos o latim e usava quase
exclusivamente o português, no dia-a-dia. As pessoas que
sabiam latim escreviam de acordo com as normas estabelecidas,
embora se possa encontrar nessa época um latim bem diferente
do latim clássico. A ortografia, como sempre, resiste mais às
variações dialetais, dando a impressão de que a fala não mudou
muito. Erros de grafia têm sido usados por estudiosos para
levantar hipóteses a respeito das variações da fala do latim em
diferentes regiões. Esse é um método não muito seguro, mas que
permite um começo de pesquisa, que demonstrará depois se as
hipóteses se sustentam ou se são mero fruto de erros de escrita.
Por outro lado, as pessoas sabiam que, se o latim podia ser
escrito, por que não usar o mesmo sistema com adaptações para
escrever também o português, o espanhol, o francês? A primeira
resistência à escrita veio do fato, que se tornava notório na
escrita, de que essas línguas ainda pareciam dialetos do latim,
uma espécie
<342>
de latim estropiado. Com o aumento do sentimento de
nacionalismo e de independência desses povos, a língua
vernácula passou a ocupar o lugar da norma culta, que antes era
o latim clássico. Por volta do século X o latim era usado apenas
em livros e em circunstâncias muito específicas e não mais no
dia-a-dia. Naquela época, o latim já não era mais a língua do
povo nem mesmo em Roma; lá falava-se o romanesco.
Com o surgimento das primeiras obras literárias nas línguas
vernáculas, tornou-se imperativo que a literatura continuasse a
ser escrita nessas línguas, deixando o latim para algumas obras
científicas.
Como as pessoas estavam acostumadas com o alfabeto latino,
passaram a usar esse sistema para escrever. No princípio, a
adaptação das línguas apresentou muitas variações, revelando
uma espécie de transcrição fonética, misturada com
representações ortográficas próprias do latim. Esbarrando na
variação dialetal, as palavras foram adquirindo uma forma
padronizada pelo uso mais constante, fixando-se a ortografia
que deveria valer para todos os usuários e ser um modelo para o
ensino.
No nosso caso, como o português não era latim, algumas
modificações no sistema de escrita eram inevitáveis, sobretudo
nas relações entre letras e sons. Somente a ortografia iria,
depois, definir com precisão o valor das letras no sistema de
escrita da nova língua. A influência árabe deixaria sua marca
com o uso dos acentos gráficos para marcar diferentes
qualidades vocálicas. A escrita em Portugal também sofreu
influência da escrita praticada na Itália, na França e sobretudo
na Espanha, onde havia centros culturais de grande importância
na época.
Documentos antigos
Um grande estudioso da língua portuguesa, José Lei te de
Vasconcellos, tem dito que o documento mais antigo em língua
portuguesa, misturada com o latim da época, data de 1161.
Trata-se de um título de venda. Nesse documento, que é bem
curto, lê-se: "deslo rriuolo ate no rego que uai por a uila"... (a
letra u é igual à letra V). O segundo documento mais antigo data
de 1193 e é o seguinte:
IN NOMINE CHRISTI NOMINE. AMEN. Eu Eluira Sanchiz offeyro
o meu corpo áás virtudes de Sam Salvador do moensteyro de
Vayram, e offeyro co' no meu
<343>
corpo todo o herdamento que eu ey en Centegãus e as três
quartas do padroadigo d'essa eygleyga e todo hu herdamento de
Crexemil, assi us das sestas como todo u outro herdamento: que
u aia u moensteyro de Vayram por en SAECULA SAECULORUM.
ÁMEN.
Fecta karta mense Septembri era MCCXXIX!.
Menendus Sanchiz testes. Stephanus Suariz testes. Vermúú
Ordoniz testes. Sancho Diaz testes. Gonsaluus Diaz testes.
Ego Gonsaluus Petri presbyter notauit.
Um documento interessante sob vários pontos de vista é a
famosa carta de Pero Vaz de Caminha, contando o
descobrimento do Brasil. A ortografia que se vê no texto pode
ser sentida no pequeno trecho abaixo:
afeiçam deles he seerem pardos maneira dauerme lhados de
boõs rrostros e boos narizes bem feitos. amdam nuus sem nhuua
cubertura. nem estimam n huua coussa cobrir nem mostrar suas
vergonhas, e estam açerqua disso com tamta jnocençia como
teem em mostrar orrostro. traziam ambos os beiços de baixo
furados e metidos por eles senhos osos doso bramcos de
compridam dhuua maão travessa e de grosura dhuu fuso
dalgodam e agudo na põta coma furador, mete nos pela parte de
dentro do bei ço e oque lhe fica antre obeiço eos demtes he feito
como rroque denxadrez e em tal maneira o trazem aly emcaxado
que lhes nom da paixã nem lhes tor ua afala nem comer nem
beber, os cabelos seus sam coredios e andauã trosqujados de
trosquya alta mais que de sobre pemtem deboa gramdura e
rrapados ataa per cima das orelhas...
Observe, entre outras coisas, a palavra "cubertura" escrita
com U, "coussa" escrita com SS, "grosura" e ' escritas com
apenas um S. Perceba o uso do Ç em "açerqua" e "jnocemçia" e
o uso de M em vez de N em muitas palavras como "tamta",
"bramcos". Compare "demtes" com "dentro". Veja ainda o não-
registro do ditongo AI em "emcaxado". Há ainda fatos de
segmentação, como "os beiços" e "obeiço". A questão da carta
não se refere apenas à ortografia em uso na época, mas é
evidente que o autor variava bastante a forma de grafar por
iniciativa própria.
<344>
Tentativas de reforma e unificação
O que não tem faltado, na história da língua portuguesa, é
gente interessada em mudar a ortografia. Quanto mais se fazia
nesse sentido, percebia-se logo que piorava, até que chegamos
ao final do século passado com uma situação tão caótica que se
tornava imperativo tomar uma providência drástica. Certamente,
veio agravar em muito a enorme quantidade de livros e de
material impresso que começava a ser produzida. Ainda hoje, é
fácil entrar numa biblioteca e encontrar livros antigos, nos quais
podem ser vistas as mais diversas formas de grafar as palavras.
Primeira unificação das ortografias
Começou em Portugal, no final do século passado, um
movimento de reforma ortográfica que passou a contar com o
apoio da Academia das Ciências de Lisboa e do governo.
Gonçalves Viana publicou sua famosa Ortografia Nacional em
1904, com o subtítulo: Simplificação e un sistemática das
ortografias portuguesas. Uma comissão foi formada com a
presença de Cândido de Figueiredo, Gonçalves Viana, Carolina de
Michaelis, Leite de VasconceLlos e Adolfo Coelho. A comissão
encontrou dificuldades para contentar a todos e o projeto de
reforma foi se arrastando no tempo.
A proposta de Gonçalves Viana procurava aproximar a
ortografia da fonética no que fosse possível, sugerindo formas
"mais simples" e "seguindo regras". Sua proposta foi em grande
parte incorporada à Ortografia que usamos hoje. Mas ele
propunha coisas mais audaciosas, como escrever FICSO (fixo),
PROSSIMO (próximo), ELEJER (eleger), PAJINA (página), ou
ainda: TAM (tão), EMQUANTO (enquanto), ÇAPATO (sapato), etc.
Primeira reforma ortográfica oficial no Brasil
No Brasil, a recém-criada Academia Brasileira de Letras, sob a
presidência de Machado de Assis, recebeu em 25 de abril de
1907 um projeto de reforma ortográfica proposto pelo
acadêmico Medeiros e Albuquerque. O projeto objetivava
simplificar ao máximo a grafia das palavras, aproximando-se do
modelo de Gonçalves Viana e de Cândido de Figueiredo. A
discussão foi calorosa e mesmo naquela sessão já apareceu
quem quisesse reformar a reforma. Carlos de Laet manifestou-se
revoltado
345
contra a reforma, declarando em seu discurso:
"Assim — vou concluir — sou infenso à miseranda reforma,
julgando-a, como tenho demonstrado, — contraproducente,
selvagem, anti-patriotaa, inoportuna, descriteriosa, anti-
philosophica, mal-fundamentada e ridícula:" Apesar da
discussão, a reforma acabou aprovada com emendas. A
regulamentação do disposto em 1907 aconteceu somente em
1912.
As reformas da reforma ortográfica
Em 1915, Silva Ramos, da Academia Brasileira de Letras,
propôs ajustar o sistema ortográfico brasileiro ao português de
1911. A proposta chegou até o Congresso Nacional e foi
rejeitada. Em 1919, por iniciativa do acadêmico Estrada, a
Academia Brasileira de Letras rompe as negociações com a
Academia das Ciências de Lisboa, no sentido de procurar uma
unificação das ortografias oficiais. Em 1929, a Academia
Brasileira de Letras propõe um novo sistema ortográfico.
Um novo esforço de unificação dá-se em 1931, com a
participação das duas Academias, chegando-se a um acordo em
30/04, e ficando como base (regras) o estabelecido na
ortografia portuguesa de 1911. O governo brasileiro aprova o
acordo com o decreto 20/08 de 05/06.
O decreto 20 028 de 02/08 de Getúlio Vargas torna
obrigatório o uso da ortografia oficial em documentos e nas
escolas. Curiosamente, apesar de tudo estabelecido, o ministro
Gustavo Capanema solicitou de uma comissão especial um novo
projeto de reforma ortográfica, entregue em 21/12/1937, que
foi, porém, ar quivado. Em 1938, no entanto, Capanema faz
aprovar o decreto-lei 292, de 23/02, introduzindo novas nor mas
de acentuação extraídas do projeto de 1937, e forma uma
comissão presidida por José de Sá Nunes, soli citando da
Academia Brasileira de Letras um novo Vocabulário ortográfico.
Portugal lançou outro Vocabulário ortográfico em 1940,
elaborado pela Academia das Ciências de Lisboa, que,
curiosamente, também foi adotado pelo governo brasileiro em
1940. Em 29/01 de 1942, a própria Aca demia Brasileira de
Letras sugere o uso do Vocabulário ortográfico português.
Dada a nova situação, nada mais previsível do que fazer um
novo acordo de unificação das ortografias oficiais. Em 29 de
dezembro de 1943, a Convenção Ortográfica Luso-Brasileira,
reunid em Lisboa, fez o Acordo
<346>
de Unificação das Ortografias. Aprovadas as Instruções (bases
ou regras), recomeçaram as discussões nos dois países,
mostrando que a situação não era tranqüila fora da comissão e
das Academias.
O ano de 1945 foi de muita luta pela reforma ortográfica. Uma
nova Conferência Interacadêmica para a Unificação da Ortografia
Luso-Brasileira reuniu-se em Lisboa. O decreto 35228 de 08/12
do governo português ratificou as decisões da conferência. O
decreto-lei 8 286 do governo brasileiro aprovou a conferência e
seus resultados. O decreto 35 228 de 08/12 determinou um novo
Vocabulário ortográfico. Portugal também se propôs a fazer um
novo Vocabulário ortográfico, em comum acordo com a
Academia Brasileira de Letras. Os portugueses publicaram logo
seu Vocabulário, mas o Brasil somente em 1947
O Acordo de 1943 tinha incorporado mais "o jeito de escrever"
do Brasil, modificando bastante o de Portugal. A Conferência
Interacadêmica voltou ao "jeito de escrever" mais típico de
Portugal, modificando o uso mais comum no Brasil. A briga
continuava forte fora das Academias, com muitos intelectuais
brasileiros inconformados com as decisões tomadas. Por isso,
em 1955, a lei 2 623 de 21/10 restabeleceu para o Brasil o
sistema ortográfico do Pequeno vocabulário ortográfico da
língua portuguesa, publicado pela Academia Brasileira de Letras
em 1943, revogando o decreto-lei 8 285.
O desentendimento entre Portugal e Brasil era evidente e
intenso. Desse modo, Portugal ficou com o sistema ortográfico
de 1945 e o Brasil, com o de 1943.
Em 1971 um parecer conjunto das duas Academias introduziu
pequenas modificações na ortografia de ambos os países, como a
queda do acento diferencial (mêdo/medo). No Brasil tal
modificação tornou-se oficial com a lei 5 765 de 18/12.
Em i986 começou uma nova tentativa de unificação das
ortografias vigentes por proposta do acadêmico Antonio Houaiss.
Depois de tantas reformas, sobraram poucos detalhes para
unificar as duas ortografias. A questão mais problemática
continuou sendo aquela que caracteriza de modo mais
significativo o 'jeito de escrever" de Portugal e do Brasil, ou seja,
as "consoantes mudas". Em Portugal, escrevem-se algumas
consoantes que não são pronunciadas, como em FACTO, ACTO,
RECEPÇÃO ou que são pronunciadas em outras palavras como
CARÁCTER, APTO, não ocorrendo uma correspondência no Brasil.
<347>
Como vimos, a grafia dos vocábulos da língua portuguesa foi
fixada através de regras estabelecidas no projeto de reforma
ortográfica, que recebeu aprovação do governo e acabou se
transformando numa lei ou decreto. Dessa forma, a ortografia
tornou-se oficial e obrigatória. Infelizmente esse assunto não
deveria ser objeto de lei, pelo menos do jeito como aconteceu.
Deveria ser objeto da educação, mas como, num país como o
Brasil, a cultura e os assuntos culturais não têm vez e estão
ausentes da vida das pessoas, mesmo dos políticos, a única saída
que as pessoas têm para implantar a ortografia reformada é
através das leis. E quem escreve errado, como fica perante a lei?
Comete uma contravenção?
As regras referem-se também aos nomes das pessoas. Na
prática, cada pessoa recebe um nome com a grafia que os pais
decidiram (ou que o cartório registrou). Assim, em muitos
nomes, aparecem as letras K, Y e que, de acordo com as normas
vigentes, não deveriam ser usadas. Nomes próprios de lugares,
cidades, etc. também têm problemas ortográficos: será MOGI ou
MOJI, PIRASSUNUNGA ou PIRAÇUNUNGA? Quem decide, nesses
casos, são os decretos que atribuíram um nome a esses
logradouros públicos.
REFORMA ORTOGRÁFICA E ALFABETIZAÇÃO
Alguns professores acham que uma reforma ortográfica iria
facilitar a vida das crianças que estão se alfabetizando. Muitas
pessoas na sociedade e até nas universidades pensam assim.
Elas acham que seria mais fácil escrever MEZA como BELEZA, por
exemplo. Argumenta-se que seria bom que se escrevesse Z
quando tivéssemos o som de "zê" e que o S fosse usado apenas
para representar o som de "çê". Do mesmo modo, haveria outras
regras semelhantes.
Fazer reforma ortográfica não resolve problemas de
alfabetização. Na verdade, as reformas ortográficas atrapalham
mais do que ajudam. Uma vez feita uma mudança, as novas
gerações aprenderão do mesmo jeito que as gerações anteriores
aprenderam a velha ortografia, de tal modo que na prática nada
muda. Todavia, os que já aprenderam de um jeito terão de
mudar seus hábitos.
Indo contra a tradição da língua portuguesa, os estudiosos das
culturas indígenas brasileiras passaram a chamar os índios das
diversas tribos sem acrescentar o s de plural, dizendo, por
exemplo, 'bs bororó' ' tupinambá' etc. Na história das escritas (e
sobretudo das ortografias), os nomes oriundos de outras línguas
sempre criaram grandes problemas.
<348>
Voltando à regra anterior, analisemos o seguinte exemplo:
CASAS AMARELAS. Como deveria ser a grafia reformada? Se a
regra fosse escrever Z onde se fala "zê", para um paulista a nova
grafia seria CAZAZ AMARELAS. Porém, se tiver de escrever
CASAS FEIAS, a nova grafia ficaria: CAZAS FEIAS, mostrando
que, agora, em vez de se escrever apenas CASAS, teremos de
escrever CAZAS ou CAZAZ, dependendo do contexto. Se fosse um
carioca, as coisas seriam diferentes. Teríamos CAZAZ
AMARELAIX e CAZAIX FEIAIX. Os adeptos da reforma respondem
dizendo que basta escrever CAZAS com Z. Ora, se for para mudar
uma letra simplesmente sem mexer com a pronúncia, é muito
mais vantajoso deixar tudo como está. Se for para seguir a
pronúncia.., as coisas são diferentes. Na verdade, quem quer
mudar o S pelo Z expressa apenas uma dificuldade individual,
não um problema geral da língua.
Pequenas reformas poderiam ser feitas e de fato acontecem
em espaços de tempo longos em todas as línguas. Porém, não há
vantagens nas modificações, em geral, o que equivale a dizer
que a melhor atitude é sempre não alterar a ortografia.
Os professores que acreditam que reformas ortográficas
ajudariam as crianças precisam analisar a questão mais
profundamente. Para quem não sabe, a dificuldade não está em
grafar CAZA ou CASA, mas em escrever QAXA, QUAZA, etc. como
alguns fazem. Como alguém pode sugerir uma reforma
ortográfica se o aluno fala:
"Nóis fumu dispoiz andá dj psicréta"? Ensinar a norma culta para
o aluno acertar a ortografia é um equívoco muito grande. O
melhor é explicar todos esses problemas de maneira clara, de tal
modo que ele vá aprendendo as diferenças entre fala e escrita, e
as formas de escrever as palavras, seguindo ou não a ortografia.
Como ela foi inventada para neutralizar a variação lingüística,
voltar a usar o alfabeto como um código para fazer transcrição
fonética é destruir a essência da ortografia.
ORTOGRAFIA E ESCOLA
CAGLIARI, 1994b. > Nas aulas de português, a ortografia tem
sempre um papel muito importante. Algumas pessoas acham que
e na alfabetização que os alunos devem aprender a ortografia de
todas as palavras Alias, o critério mais comum de aprovação ou
reprovação na alfabetização é estudiosos
<349>
um julgamento sobre o conhecimento que o aluno tem da
ortografia das palavras. Alguns professores chegam mesmo a
estabelecer uma porcentagem para essa decisão. Obviamente,
esse critério estatístico não faz sentido dentro de uma pedagogia
saudável, mas infelizmente existe em muitas escolas. Às vezes, a
decisão do professor baseia-se na aversão que tem a certos
erros. Se o aluno escrever PEÇOA (pessoa) ou BRICPZA
(princesa) deverá ser reprovado sem mais discussão. São erros
insuportáveis, que denotam um analfabeto (sic!).
Essa questão tem muito a ver com o que dizem os professores
das séries mais avançadas. Se o aluno errar a grafia de uma
palavra de uso mais comum, logo se ouve comentário de que foi
mal alfabetizado, que a culpa daquele erro foi descuido do
professor alfabetizador. Alguns professores e até diretores de
escola chegam a reclamar dos professores alfabetizadores, por
causa dos transtornos que esses alunos causam no
desenvolvimento das atividades das séries mais avançadas. Em
situação pior estão os próprios alunos, uma vez que não
encontram nas séries avançadas o auxílio necessário para
superar as dificuldades que têm com a grafia das palavras. Os
colegas zombam, o professor se irrita e eles não sabem como
sair da armadilha em que caíram.
A escola e as pessoas devem se perguntar um dia se, de fato,
vale a pena reprovar um aluno simplesmente porque escreveu
PEÇOA ou BRICPZA. Responder a essa pergunta de maneira
negativa não significa diminuir a importância da ortografia. A
questão é outra: qual o peso das coisas na vida escolar? Além
disso, é mais do que certo que se um aluno souber escrever é
porque sabe ler e, se souber essas duas coisas, pode muito bem
pesquisar num dicionário e corrigir o texto que escreveu. Por
que os alunos não podem fazer suas redações com um dicionário
ao lado? Sem dúvida alguma é conveniente que os alunos
decorem a ortografia da maioria das palavras mais comuns, mas
isso se consegue muito mais facilmente quando eles têm a
chance de consultar freqüentemente o dicionário, o que deveria
acontecer sempre, em todas as aulas, quando tivessem urna
dúvida ortográfica.
As pessoas gostam de dar pontos para a ortografia porque é
uma questão que exige memorização, e é do gosto delas exigir
dos alunos que mostrem que decoraram o que foi ensinado.
Seria mais lógico e natural que as pessoas tivessem sempre à
mão um dicionário para
<350>
poderem escrever melhor, inclusive para resolver dúvidas
ortográficas. Porém, o dicionário até parece um livro proibido,
sobretudo nas provas. Na verdade, a ortografia nunca deveria
ser objeto de avaliação, uma vez que é natural que mesmo
pessoas acostumadas a escrever por vezes tenham dúvidas a
respeito de palavras que já escreveram antes sem titubear.
Essas atitudes da escola com relação à ortografia têm
provocado nas pessoas uma reação muito negativa com relação
a quem escreve errado. Assim como a sociedade cultiva um
desprezo preconceituoso contra quem fala uma variedade da
língua muito diferente da norma culta, do mesmo modo trata
quem escreve sem seguir a ortografia. Nesses casos, é mais
comum as pessoas estranharem uma grafia errada de uma
palavra do que um texto mal-estruturado ou uma idéia mal-
apresentada.
A situação de algumas escolas tem piorado recentemente por
causa da ação de alguns professores e pedagogos que passaram
de um extremo a outro. Antigamente exigiam a ortografia com
todo o rigor: se o aluno não soubesse tudo o que a cartilha
apresentava, não saía da primeira série. Depois, com as novas
idéias pedagógicas, passaram a entender que a ortografia não
era mais tão importante assim, ou melhor, que o aluno podia
escrever do jeito que quisesse, desde que escrevesse. A
ortografia seria aprendida depois, como parte do
desenvolvimento escolar.
Certamente, era preciso rever a maneira como a antiga escola
encarava a ortografia na alfabetização. Mas abandonar os alunos
à sua sorte futura, sem nenhuma explicação e, sobretudo, sem
que os professores das séries avançadas assumissem a tarefa de
cuidar da ortografia, criou uma situação de frustração para
muitos alunos, que passaram a não entender mais o que a escola
queria deles.
Explicar aos alunos o que é ortografia e como resolver dúvidas
ortográficas é uma atividade imprescindível na alfabetização.
Tendo ouvido todas essas explicações, um aluno pode
desenvolver tranqüilamente seu processo de alfabetização,
sabendo o que e como está aprendendo, de onde saiu e aonde
vai chegar. Sabe que está aprendendo a decifrar a escrita nos
seus aspectos fonéticos, sintáticos, semânticos e textuais. Sabe
que seus conhecimentos básicos de leitura já lhe permitem
tentar escrever, tendo plena consciência de que essa escrita é
uma tentativa de expressar a fala por escrito, de forma a
permitir a leitura dentro do sistema alfabético
<351>
que usamos, mas sabendo também que nossa escrita se
preocupa com a ortografia. Para aprender a escrever certo é
preciso checar a grafia de cada palavra.
No inicio, o objetivo é apenas escrever. Então, o professor não
precisa preocupar-se com a ortografia (nem o aluno). Depois que
o aluno conseguir escrever com certa fluência, está na hora de
começar a preocupar-se com o segundo aspecto do nosso
sistema de escrita, que é a grafia das palavras de acordo com o
modelo ortográfico estabelecido. Assim, um aluno pode apren
der a ler e a escrever tranqüilamente sem o tormento da
ortografia, e o professor não precisa se preocupar, imaginando
se determinado aluno vai ou não aprender a escrever certo.
Superada a primeira fase, que é decisiva, ou seja, o aprendizado
da leitura, aprender a ortografia vem como conseqüência do
trabalho de autocorreção dos textos.
Esse procedimento mostra que não é preciso começar com a
ortografia, mas também não se pode abandoná-la. O aluno tem
um tempo inicial para aprender a ler e a escrever, e um tempo
posterior para cuidar da ortografia e de outros aspectos da
escrita. Procedendo assim, é fácil ver como, no primeiro ano
escolar, o aluno não só aprende a escrever livremente,
produzindo textos espontâneos dos mais variados tipos, como
também corrige a ortografia desses textos e começa a decorar a
grafia das palavras mais comuns. Por outro lado, isso não
significa que um aluno irá sair da primeira série dominando
perfeitamente a ortografia de todas as palavras. Ele precisa
saber como se virar. Dominar a ortografia é algo que vem com o
tempo. Às vezes, vai esquecer o que já sabia e irá precisar
perguntar coisas banais e, se tiver respostas respeitosas para
suas dúvidas, acabará lidando muito bem com a ortografia no
futuro.
O que fazer, porém, com os alunos que infelizmente não
tiveram a chance de se alfabetizar dessa forma? O que fazer com
os alunos que não escrevem as palavras seguindo a ortografia
nas séries mais avançadas?
Em primeiro lugar, é preciso relembrar que não é só o
professor alfabetizador que deve partir da realidade de seus
alunos para estabelecer um processo de ensino e de
aprendizagem adequados; os professores das demais séries têm
a mesma obrigação. Portanto, se um professor da quinta série
percebe que um aluno tem dificuldades sérias com a ortografia,
cometendo erros intoleráveis, sua obrigação é ensinar a esse
aluno tudo aquilo que ele precisa saber. Entre outras coisas, o
professor
<352>
deverá falar, como se mencionou acima, a respeito do processo
de aquisição da linguagem, da variação lingüística, da natureza,
função e usos dos sistemas de escrita, em particular do nosso.
Deve explicar detalhadamente o que é ortografia e quais as
regras. Precisa ensinar o aluno a ter dúvidas ortográficas e como
resolvê-las. Precisa comparar a escrita ortográfica com outros
usos da escrita alfabética (por exemplo, para fazer transcrição
fonética), O professor deve apresentar uma lista de palavras
escritas erroneamente e analisar as hipóteses que o aluno
levantou para escreve-las. Será preciso discutir a necessidade de
escrever respeitando a ortografia e em que circunstâncias isso
tem uma importância maior, exigindo um trabalho preliminar de
revisão do aluno. Finalmente, pode-se pedir para o aluno
procurar no dicionário todas as palavras de seus textos, para
descobrir quais estão com a grafia errada. Como é óbvio em
educação, em qualquer momento da escolarização, o professor
precisa ensinar aos alunos (que ainda não aprenderam) todas
aquelas informações que deveriam ter sido aprendidas antes.
Lamentar o fato não resolve o problema do aluno nem deve
tranqüilizar o professor. Quando um aluno não sabe alguma
coisa, a obrigação dc) professor é ensiná-lo, seja o que for, em
que série da escola isso estiver acontecendo.
No caso de alunos preguiçosos, o professor pode analisar o
texto e dizer a ele que apresenta determinado número de erros
de grafia, por exemplo, 38. O aluno corrige e o professor vê se
sobraram erros. Por exemplo, podem ter sobrado três erros. O
aluno deverá procurar no dicionário todas as palavras de seu
texto até que não haja mais erros de grafia. Esse tipo de
atividade obriga os alunos a prestar mais atenção à ortografia.
Com o tempo vão achar mais fácil decorar a grafia das palavras
mais comuns do que ficar consultando o dicionário a cada novo
texto que escreverem.
IDÉIAS ERRADAS A RESPEITO
DA ORTOGRAFIA
Contribui muito para a dificuldade que alguns alunos têm
para escrever as palavras na forma ortográfica correta uma série
de informações erradas que recebem desde a alfabetização a
respeito da ortografia.
<353>
Desde os primeiros contatos com a escrita, o aluno ouve o
professor dizer que o nosso sistema de escrita é alfabético e que
isso significa que escrevemos uma letra para cada som falado
nas palavras. Nosso sistema usa letras, às quais são atribuídos
valores fonéticos. Mas o uso prático desse sistema não se reduz
a uma transcrição fonética. Portanto, o professor não pode dizer
simplesmente para o aluno observar os sons da fala, as vogais e
consoantes, e representá-los na escrita por letras. Esse é o
primeiro passo, mas não é tudo. Feito isso, o aluno precisa
aprender que, se cada um escrevesse do jeito que fala, seria o
caos. Para neutralizar a variação dialetal, a escrita inventou a
ortografia, fazendo com que todas as palavras tenham apenas
uma forma escrita. Assim, perdeu-se em grande parte o caráter
alfabético da escrita, que passou a ter um caráter ideográfico
muito forte. Por essa razão, podemos dizer que o objetivo
funcional da escrita é a leitura. A partir da ortografia, cada leitor
irá decifrar uma palavra escrita na forma ortográfica, dizendo-a
de acordo com seu dialeto. Portanto, cada um lê conforme fala.
Fazendo o caminho inverso, percebe-se logo que, dado o fato de
as pessoas falarem dialetos diferentes, as palavras terão
pronúncias diferentes. Como a ortografia decidiu que apenas
uma forma é a estabelecida, as pessoas precisam saber qual foi a
forma escolhida, independentemente da maneira como
pronunciam as palavras. Como se vê, muitas das explicações que
são dadas aos alunos, desde a alfabetização, não correspondem
a essas idéias básicas a respeito da natureza da ortografia.
O uso de ditados passa aos alunos a idéia de que podem
escrever corretamente as palavras desde que pensem para
escrever. A verdade, porém, é outra. Somente pensando
ninguém pode ter certeza a respeito da ortografia de nenhuma
palavra. Às vezes, é possível elaborar algumas regrinhas, como a
que diz que as palavras abstratas terminadas em -EZA são
escritas com Z (BELEZA, POBREZA) e as que formam um plural
feminino, com S (FRANCESA, PORTUGUESA). Mas essas
regrinhas são poucas e resolvem uma porcentagem muito
pequena de casos. Não é uma boa estratégia pedagógica mandar
o aluno simplesmente pensar para escrever. Isso se faz quando
não se quer levar em conta a ortografia, caso das primeiras
atividades de escrita das crianças. Depois, é preciso ensinar o
aluno a ter dúvidas ortográficas e a resolvê-las.
<354>
A prática de muitos professores de apagar uma palavra
escrita errada pelo aluno e de colocar o certo acaba gerando a
famosa preguiça intelectual. Depois de certo tempo, ele já não se
preocupa com a ortografia, porque o professor corrige mesmo. O
ideal seria desenvolver nos alunos o hábito de rever o que
escrevem, passar a limpo, fazendo uma autocorreção da
ortografia dos seus textos, seja em que matéria for, não só nas
redações escolares da aula de português.
Alguns professores costumam passar muitas e longas cópias
para que certos alunos decorem a ortografia. Para que essa
prática desse certo, seria preciso que o aluno fizesse cópias não
só de meia dúzia de palavras, mas de todas as palavras, o que
tomaria todo o seu tempo de escola durante décadas. Esse tipo
de cópia serve apenas para castigar. Então, como eles irão
aprender a ortografia de todas as palavras? Na verdade, isso não
deve ser um objetivo a ser alcançado. O objetivo real é que o
aluno aprenda a ortografia das palavras mais importantes e de
uso mais freqüente e que tenha o hábito de resolver suas
dúvidas ortográficas, quando necessário. Fazer cópias para
decorar a ortografia auxilia pouco e não garante que o aluno não
esqueça no futuro. A melhor estratégia para se conseguir que os
alunos estejam sempre em dia com a ortografia é a prática
constante da escrita (com dicionário) e muita leitura. Esse
contato com a escrita e com a leitura é que faz com que os
alunos resolvam seus problemas de ortografia, decorando a
grafia das palavras.
A DÚVIDA ORTOGRÁFICA
FERREIRA, 1963. >
Um ponto importante que os professores, principalmente de
alfabetização, precisam tratar com seus alunos é a dúvida
ortográfica. Tão importante quanto ensinar o que é ortografia e
quais os mecanismos de nosso sistema de escrita, em geral, é
ensinar como ter uma dúvida ortográfica e como resolvê-la.
Dúvidas ortográficas todas as pessoas têm. Na introdução do
Pequeno dicionário da língua portuguesa, Aurélio Buarque de
Holanda apresenta uma lista de palavras com relação às quais
ele tem dúvidas a respeito de qual seria a melhor forma de
grafá-las. Além disso, analisando seu dicionário, percebemos que
algumas
<355>
vezes ele traz uma forma arcaica de escrita ou uma forma
retratando regionalismo (pronúncia dialetal), criando, desse
modo, formas ortográficas paralelas de algumas palavras. Por
exemplo, ele acha que deveria ser DESINTUMESCER e não
DESENTUMESCER, como manda a Academia Brasileira de Letras
(Vocabulário ortográfico), uma vez que é INTUMESCER e não
ENTUMESCER. Traz pares de palavras como CAMINHÃO e
CAMIÃO, FLECHA e FRECHA, BALSA e BALÇA, ENGOLIMOS e
ENGULIMOS, SOLUÇO e SALUÇO, SEMANA e SOMANA (forma
arcaica), etc.
Qualquer usuário do nosso sistema de escrita tem dúvidas
ortográficas ocasionais. Às vezes, diante de uma palavra comum,
surge a dúvida: é DANÇA ou DANSA, TIGELA ou TIJELA? Quem
aprendeu a lidar com esse tipo de problema não se envergonha
de perguntar ou de consultar o dicionário.
A dúvida ortográfica surge de maneira típica em alguns casos,
sendo praticamente inexistente em outros. Um levantamento
desse tipo de dificuldades vai mostrar que, quando uma letra
representa vários sons ou um som é representado por várias
letras, a dúvida ortográfica tem mais chance de se instalar e será
sempre uma dificuldade para quem se alfabetiza. À medida que
uma palavra se torna mais familiar, menos dúvida causará.
Assim, para uma criança que se alfabetiza é um problema difícil
saber se deve escrever MESA ou MEZA, mas não para um aluno
já alfabetizado. Para um aluno nas primeiras séries, pode ser
difícil saber se deverá escrever BELEZA ou BELESA, PRINCESA ou
PRINCEZA. Para um professor alfabetizador, as dúvidas são de
outro tipo: será CONSTITUI ou CONSTITUE? Será ESTENDER ou
EXTENDER, EXTENSÃO ou ESTENSÃO ou ainda EXTENÇÃO ou
ESTENÇÃO? A memória visual adquirida através de muita leitura,
às vezes ajuda a decidir, mostrando que algumas grafias são
realmente estranhas e provavelmente inexistentes. Aliás, muitas
pessoas quando têm dúvidas ortográficas, escrevem as formas
alternadas para decidir depois qual a correta, a partir da
memória visual.
As cartilhas costumam colocar as lições em graus de
dificuldade crescente, tendo em vista as possíveis dúvidas
ortográficas. É por essa razão que a letra X vem por último.
Entretanto, nem sempre é difícil ler a letra X. Saber se uma
palavra se escreve com a letra X ou não é que é o problema. A
ortografia, pois, causa problemas diferentes para a leitura e para
a escrita.
<356>
Para muitos alunos, a grande dificuldade com a ortografia das
palavras não está no uso do X ou se a palavra BELEZA se escreve
com Z ou S. Para quem é falante de dialetos muito diferentes da
norma culta, o uso da ortografia e apresenta com dificuldades
muito maiores do que essas. Para um aluno que fala "bardji"
(balde), "brabuleta" (borboleta), "psicreta" (bicicleta), "nóis
fumo dispois" (nós fomos depois), ter uma dúvida ortográfica
não é simplesmente uma questão de saber se uma palavra se
escreve com S ou com Z ou ainda com X. Para ele, é preciso ter
bem clara, antes de tudo, a questão da variação dialetal e,
sobretudo, como funcionam, no seu caso, as relações entre
linguagem oral e linguagem escrita.
O professor deve incentivar seus alunos a terem dúvidas
ortográficas, explicando os vários tipos de dificuldade que nosso
sistema de escrita apresenta com relação a isso e levando em
conta também as dificuldades próprias de cada aluno.
Como já se disse, ter dúvidas ortográficas é muito natural e
comum. Por essa razão, o professor deve fazer ver aos seus
alunos que vale mais a pena resolver direito essas dúvidas do
que ficar imaginando como seria a forma ortográfica das
palavras ou escrever de qualquer jeito. Para que o aluno aprenda
a lidar direito com isso, é preciso que o professor tenha uma
atitude saudável, respeitando as dificuldades e dúvidas dos
alunos, não dando maior importância do que esse assunto
merece e, principalmente, deixando sempre à disposição do
aluno dicionários, vocabulários ou outros meios para que o aluno
possa resolver suas dúvidas ortográficas. Toda sala de aula
deveria ter um dicionário e todos os alunos deveriam ter acesso
a ele em todas as aulas, quando tivessem de escrever. Esse
exemplo da escola deveria ser levado para a vida. Todo aluno
deveria ter um dicionário em casa. Consultar o dicionário é uma
questão de hábito, que deve começar desde a alfabetização.
Outra prática importante é a autocorreção dos trabalhos. Todo
trabalho escrito deveria ser feito primeiro numa forma de
rascunho e depois passado a limpo. E antes de passar a limpo, o
aluno deveria, entre outras coisas, checar a forma ortográfica
das palavras, fazer um levantamento das dúvidas e resolver caso
por caso. A escola não deve apenas ensinar conteúdos
programáticos, mas também bons hábitos nos estudos, como se
tem enfatizado ao longo deste livro.
<357>
Apêndice
A categorização gráfica das letras
Apresenta-se neste apêndice um estudo detalhado das
relações entre letras e sons — que permitem a decifração da
escrita e a leitura —, bem como das relações entre sons e letras
— que fazem com que o aluno parta da observação de sua fala e
chegue a escrever de acordo com a ortografia.
Este estudo serve também para o professor refletir sobre a
categorização funcional das letras, ou seja, sobre como o
alfabeto e a ortografia comandam as relações entre letras e sons
em nosso sistema de escrita. Um exercício exaustivo nesse
sentido revela também como o processo de alfabetização é
complexo e exige uma quantidade considerável de
conhecimentos. Por outro lado, este material pode servir de
subsídio para o professor organizar aulas específicas em que irá
tratar de aspectos da categorização funcional das letras, por
exemplo, explicando como o conhecimento necessário à leitura
pode se fundamentar em regras, através da descoberta das
relações entre letras e sons (ou das relações entre sons e
letras).
As considerações a seguir estão organizadas, sempre que
possível, segundo a ordem do abecedário. O professor,
entretanto, não precisa seguir essa ordem. Talvez, na maioria
das vezes, terá de se deixar levar pelas sugestões dos alunos e
pelo desenvolvimento natural das aulas. Nos quadros aparecem
o nome das letras, seu valor fonético no alfabeto (princípio
acrofônico) e algumas explicações que serão desenvolvidas
adiante. Em seguida, são apresentados sucintamente os
comentários mais relevantes sobre como ler e traçar a letra,
mostrando como levantar dados e formular regras.
ESTUDO DA LETRA A
O nome da letra A é a e representa o som básico de "a". Como
qualquer letra, pode ter outros sons, que se verão a seguir
Portanto, quando urna palavra tiver o som de "a", esse som será
escrito com a letra A. E vice-versa: se for encontrada a letra A na
escrita, ela representa o som de "a".
O professor poderá escrever algumas palavras na lousa, dizer
o que está escrito e mostrar aos alunos onde ocorre a letra A,
identificando-a com o som "a" na fala. Como exemplo, pode
escrever AMIGA. Essa palavra começa e acaba com a letra A
tanto na escrita como na fala. A seguir, um exemplo de palavra
que começa com o som de "a" e que se escreve, portanto, com a
letra A, no início e no meio: ASSADO. Depois, uma palavra que só
tem o som de "a" no final:
MINHOCA.
O professor poderá pedir para os alunos irem ditando
palavras para ele escrever na lousa,
• fazendo colunas de acordo com os casos apresentados (início,
final, início-e-final, outros casos). Se por acaso algum aluno ditar
uma palavra que comece por H, o professor a escreve numa
outra coluna e explica por que aquela palavra tem H (razões
ortográficas), e como se lê o H em início de palavras: começando
pela letra seguinte, ou seja, pela vogal, como se pode ver em
palavras como HABITAÇÃO, HOJE, HINO, HUMILDE, HELICE, etc.
Quase todas as letras têm outros sons, além do som básico,
dependendo das letras que a antecedem ou a sucedem
(contexto). São os casos particulares. Por exemplo, a letra A, em
sílaba final de palavra oxítona, seguida de S ou Z (ou dos sons
"s" ou "ch", na fala, de acordo com o dialeto), tem o som de "ai"
ou apenas "a": no primeiro caso, tem-se uma fala mais "natural"
e no segundo, uma fala mais "artificial" (dependendo sempre do
dialeto). Exemplos: RAPAZ, PAZ, ATRÁS, TOMÁS, etc.
A mesma regra vale para as vogais U, E e O (com os sons de
"ê", "é", "ô" e "ó"), como mostram os seguintes exemplos: LUZ
("lúis" ou "lúich"), VEZ ("vêis"), PÉS ("péis"), ARROZ ("arrôis")
e NÓS ( "nóis").
Outro caso particular da letra A ocorre quando, na fala, ela
vem antes do som da vogal "u" (representada na escrita por U
ou por L no final da sílaba). Neste caso, a letra A tem um som
"posterior" (de "garganta"). Compare o som da letra A nas
palavras MAIS e MAUS e anote a diferença. Outros exemplos:
SAL, MAL, CALDO, BALDE, ALTO e AUTO, LAURA, etc. Note que o
som do "a" precisa formar ditongo com o som do "u". Se não
houver a formação de ditongo, a letra A possui o som básico de
"a", como se pode observar em palavras como SAÚDE (compare
com SAUDADE), BAÚ, RAUI SAUL, etc.
Às vezes, é preciso escrever uma letra A que não aparece
comumente na fala. Repare nos seguintes exemplos: CASA
AMARELA — numa fala fluente, o A final da palavra CASA não é
pronunciado: "kazamaréla". Para testar e conferir qual a vogal
que cai, se o A final de CASA ou o A inicial de AMARELA, podemos
ver outros exemplos, variando a vogal: CASA ESQUISITA, que se
torna "kaziskizita", ou ainda MURO AMARELO, que é dito
"muramarélu". Esses exemplos mostram que foi a vogal final da
primeira palavra que deixou de ser pronunciada e não a vogal
inicial da palavra seguinte.
Por razões semelhantes, às vezes é necessário escrever A ou
O que não ocorrem na fala ou "separar" palavras. Veja, por
exemplo: TODA A FAMILIA ("todafamília"), TODO O MUNDO
("todumúndu"), É O CASO DE ELE DIZER A VERDADE
("éukazudelidizeraverdadi"), ELA FOI PARA A CIDADE
("élafoiprasidadi"), etc.
A vogal A pode ser nasalizada, ficando com uma qualidade
vocálica diferente, caso da palavra ANA — compare com ASA,
cujo som do primeiro A é oral. Portanto, quando se tiver de
escrever o som nasalizado igual ao do início da palavra ANA,
sabe-se que deverá ser escrito com a letra A.
Na leitura, a letra A tem o som de A nasalizado ("ã") quando
ocorre antes das consoantes nasais M e N, e a vogal é tônica. Se
for átona, a letra A pode ter o som nasalizado ou não, como
mostram os seguintes exemplos. Som nasalizado: ANA, AMA,
CANA, CAMA. Som nasalizado ou não: ANÃO, AMADEU, AMOR,
CANAVIAL, CAMADA. Se depois das nasais M ou N houver uma
outra consoante, a letra A será sempre nasalizada, como em:
ANTÔNIO, CAMPO, CANTIGA, CÂNFORA, etc.
Quando a letra A vem antes de NH, tem sempre um som
nasalizado, embora nesse caso possa variar com o ditongo
nasalizado "ãi", como se vê em: BANHA ("bãnha" ou "bãinha").
Na verdade, toda vogal que vier antes de NH pode variar com um
ditongo nasalizado terminado em "i"; por exemplo: UNHA
("ünha" ou "üinha"), SONHO ("sõnhu" ou "sõinhu"), TENHO
("tenhu" ou "teinhu") e até VINHO pode ser pronunciado
"vinhu" ou "viinhu".
Quando uma palavra termina em -RAM, caso dos verbos, a
pronúncia é "rãu", no dialeto padrão, mas, em muitos dialetos,
ou numa fala bem informal, a pronúncia pode ser "ru": FIZERAM
("fizérãu" ou "fizéru"), ACHARAM ("acharãu" ou "acham"),
VIERAM ("viérãu" ou "viéru"). Note que, na escrita, há uma
distinção entre palavras que acabam em -RAM e palavras que
acabam em -RÃO. No primeiro caso, a sílaba final é átona (a
palavra é paroxítona), e, no segundo caso, a sílaba final é tônica
(a palavra é oxítona). Compare: ACHARAM e ACHARÃO,
ENCONTRARAM e ENCONTRARÃO; ou, ainda, VIRAM e VIRÃO,
SABÃO, LIMÃO, IRMÃO, etc.
Os exemplos apresentados anteriormente revelam, em
grande parte, os valores fonéticos letra A, nos casos em que
existe uma espécie de regrinha que orienta a interpretação.
Essas regras podem ser feitas porque os valores fonéticos da
letra estão ligados a determinados contextos.
Esses casos podem ser explicados e, uma vez aprendidos, são de
grande utilidade no ,trabalho de decifração. Porém, há
ocorrências em que o valor fonético da letra A só pode ser
;derminado pelo conhecimento da variação lingüística e da
ortografia das palavras. Quando um aluno é falante de um
dialeto muito diferente da norma culta, diz muitas palavras com
uma pronúncia peculiar, estabelecendo relações novas e
particulares entre as letras e os sons. Geralmente, nesses casos,
ele fala de um jeito e precisa aprender que a escrita é bem
diferente. Além disso, tem de saber a ortografia de palavra por
palavra, pois não é possível estabelecer regras dependentes de
contextos. Por exemplo, um aluno que fale um tipo de variação
lingüística que tenha palavras como: BARBOLETA (borboleta),
SEJE (seja),
;CANFUSO (confuso), ADESPOIS (depois), terá de fazer um uso
mais ideográfico do que
fonográfico, ao buscar as formas ortográficas. Para esses casos,
não basta ensinar as regras que relacionam letras e sons, mas
também como são formadas as palavras e como rege a
ortografia.
No próprio dicionário, encontramos registro desse tipo de
dificuldade, como em: BÊBEDO e BÊBADO, ou LEMBRAR-SE e
ALEMBRAR-SE, ILUMINAR e ALUMIAR, etc. Saber que existe a
dificuldade é introduzir uma dúvida ortográfica, e isso é muito
importante para que o aluno escreva sempre "desconfiando" da
grafia.
Entre as considerações a respeito de como se lê a letra A,
foram vistos também alguns
casos de como partir da fala para escrever a letra A. Todos os
exemplos anteriores podem ser estudados a partir da fala,
chegando-se às mesmas regras. Quando o problema se resolve
com uma regrinha contextual, fica tudo mais fácil; quando se
trata de variação dialetal,único jeito é o aluno desconfiar e
perguntar pelo certo a quem sabe ou consultar o
dicionário.
Partindo da observação da fala das pessoas e tendo em mira o
que se escreve com a letra i, podemos estabelecer relações entre
sons e a letra A, fazendo as seguintes afirmações:
1. Para representar o som de "a" ou de "ã", deve-se escrever a
letra A. Exemplos: "batata"
BATATA; "kãneta" = CANETA; "ãmbulãçia"' = AMBULÂNCIA.
2. Se ocorrer "ã" e a letra A não for seguida de M ou N, recebe
til.
3. Se a última sílaba de urna palavra terminar em "a", é possível
que a seguinte também comece por "a". Para saber como
escrever, é preciso analisar as palavras isoladamente, por
exemplo, intercalando outra palavra entre essas duas. Assim: em
"minhamiga", a primeira palavra é "minha" e termina em "a".
Posso dizer também: "minhacõnténtiamiga", o que mos a que a
segunda palavra também começa com "a". então, sei que devo
escrever um A a mais: MINHA AMIGA. Às vezes, há dificuldades
em saber se deve ou não escrever o artigo definido A, em
exemplos como: "élalavôtodakaza". Nesses casos, é preciso
fazer uma averiguação para saber se, numa faia pausada,
pronunciando as palavras isoladamente, cabe ou tão o artigo:
ELA LAVOU TODA CASA ou ELA LAVOU TODA A CASA. Embora
haja significa ':5 diferentes com ou sem o artigo, esse é um
problema para quem escreve em português.
o significado é "lavou a casa inteira", na escrita haverá o artigo.
Se o significado for "lavou casas que existem", não haverá
artigo. Num outro caso, como: "istuçérvipratodacriãça", a forma
escrita não registra o A (porque não ocorre o artigo): ISTO
SERVE PARA TODA CRIANÇA. Se essa frase não se referisse às
crianças em geral, mas a uma criança em particular (cada
criança), a frase teria artigo: ISTO SERVE PARA TODA A
CRIANÇA.
Com já foi dito, neste livro o som (s) da fricativa alveodental
surda vem transcrito com o cê-cedilha, "çê" Note que no caso de
consoante, sua representação oral aparece transcrita com a
vogal "ê", a qual, porém, precisa ser ignora da na fala contínua
em que aparece a consoante. Assim "çê", zê", "kê", etc, são, de
fato, apenas "ç", "a", "k", etc.
<361>
4. Em algumas palavras, mas não em todas, quando se encontra
o som de "a" diante do som de "chê", deve-se escrever AI e não
apenas A. Nas outras palavras, escreve-se apenas A. Facilita um
pouco mais saber que o som de "chê" se escreve com X, porque
nesse caso o "a" vai ser escrito com Ai e não apenas com A. Há
raras exceções, como MAXIXE (que na verdade é palavra de
origem estrangeira, introduzida na língua portuguesa). Palavras
como "machu" (MA CHO), "kachu" (CACHO), etc. não são
escritas com AI, mas, para saber isso, é preciso saber antes se o
som de "chê" vai ser escrito com CH ou com X.
5. O som "ãu" só ocorre na sílaba final de uma palavra (exceto
em casos de diminutivos, como CÃOZINHO, etc.). Há duas
formas de escrever esse ditongo: com AM, como acontece em
terminações verbais (exceto as do futuro do presente e algumas
formas de verbos irregulares como ESTÃO, SÃO); ou com ÃO, nos
demais casos, sobretudo se a palavra não for verbo:
ENTÃO, LATÃO, CORAÇÃO, etc.
6. Encontrando a escrita NH, é preciso verificar se ocorre o som
de "ã" ou de "ãi" imediatamente antes. Em qualquer dos dois
casos, escreve-se apenas a letra A. Não confundir o díagrafo NH
com o som de "nh". Em palavras como "mãinh "alemãinhs", a
escrita assinala o ditongo com A + E: MÃE, ALEMÃES, etc.
7. Diante do som de "u", ocorre um "a" posterior e não anterior
— como acontece nos demais casos. Essas diferentes pronúncias
(MAIS — MAUS) não são notadas na escrita, mas representadas
apenas pela letra A.
8. Nas formas verbais do tempo passado, podemos encontrar as
seguintes pronúncias:
"fizérãõ", "fizérú" e "fizéru". Estudando essas variações, pode-
se saber que na escrita teremos
-RAM. Essa regra aplica-se só a verbos e não a nomes. Portanto,
"zéru" não vai ser escrito ZERAM, mas apenas ZERO, porque não
existe variação de pronúncia como "zérãu" e "zéru" (nasal).
9. Algumas palavras têm uma pronúncia num determinado
dialeto (BARBULETA, ADISPOIS, MECADTO, BÃÜ, CHEGUEMO) e
outra, em outros dialetos (BORBOLETA, DEPOIS, MERCADJNHO,
BOM, CHEGAMOS). Às vezes, o conhecimento de que uma
determinada forma pertence à norma culta pode ajudar na
escrita, mas nem sempre. Pior ainda é o fato de as crianças, no
início da alfabetização, ainda não terem condições de saber se
uma forma pertence à norma culta ou não. Nesses casos,
somente através da questão ortográfica os alunos podem
desconfiar e resolver suas dúvidas.
A análise acima mostra como a letra A, que as cartilhas e os
professores em geral consideram fácil de aprender, envolve
várias dificuldades, quando se levam em conta seus usos nos
diferentes contextos e dialetos. Esse tipo de análise revela,
ainda, parte dos conhecimentos que uma pessoa precisa ter para
saber decifrar nossa escrita e escrever. Exemplifica como o uso
de uma escrita ortográfica neutraliza a variação lingüística na
escrita. Mostra, ainda, que o preço pago por essa medida traz,
como conseqüência, uma enorme complexidade nas relações
entre letras e sons e vice-versa.
O que dissemos deixa claro que a questão das relações entre
letras e sons — ou seja, a categorização funcional das letras — é
muito mais complexa e difícil do que pode parecer numa análise
superficial do fenômeno. Os alunos, quando estão aprendendo,
estão defrontando todas essas dificuldades, e o professor precisa
saber disso.
Insistindo mais uma vez num ponto delicado, é preciso
esclarecer que o exposto sobre a letra A serve de guia para o
professor. Certamente, ele não irá ensinar tudo isso, ponto por
ponto, um depois de outro e exigir que o aluno repita a lição de
cor ou resolva questões em prova. O professor irá abordar essas
questões à medida que for necessário e quando tiver
oportunidade. Na verdade, ele pode ensinar a seus alunos como
ler, decifrar a escrita e analisar a fala, para achar a letra
correspondente à escrita. Essa é uma maneira de alfabetizar sem
precisar das cartilhas e sobretudo do método do bá-bé-bi-bó-bu.
<362>
ESTUDO DA LETRA B
A letra B tem o nome de bê, e o primeiro som do "bê" é o som
básico que a letra representa. Exemplos: BOLA, CABELO, BARCO,
etc.
Quando a letra B vem escrita antes de uma letra que
representa uma consoante que não seja
nem R nem L, ela é pronunciada "bi", na fala comum e informal,
como em: OBJETO ("obijétu"), ABSOLUTO ("abiçolutu"),
SUBMARINO ("çubimarinu"), etc.
Esse fenômeno acontece também com outras consoantes como P
T, D, F, C, G, M, como se vê nos seguintes exemplos: OPTEI
("opitei"), RITMO ("ritimu"), ADVOGADO ("adivo gadu"), AFTA
("áfita"), TÉCNICA ("tékinica"), IGNORAR ("iguinorar")
MNEMÔNICO ("minemônicu"). Esse fato mostra como a leitura
pode ser feita. Escrever a partir da fala torna as coisas muito
complicadas, e o aluno precisa aprender palavra por palavra. Por
exemplo, escreve-se RÁPIDO e não RAPDO, MENINO e não
MNINO, ADIVINHAR e não ADVINHAR, etc.
Em certos dialetos, fala-se "trabeçêru", "pçicréta", mas a forma
ortográfica dessas palavras é:
TRAVESSEIRO e BICICLETA. Só se sabe quando colocar B ou não,
quando se aprende a ortografia dessas palavras. Nos dicionários,
encontram-se exemplos — ASSOBIAR e ASSOVIAR — de
variantes também na ortografia oficial.
Alguns alunos sussurram as palavras quando escrevem,
pronunciando somente sons surdos (vogais e consoantes). Por
essa razão, têm dificuldades em achar a letra certa na escrita
quando se têm pares de consoantes que se distinguem pelo traço
de sonoridade (P/B, T/D, C/G, F/\ S/Z, CH/J). Nesses casos, o
aluno é levado a escrever POLA (bola), CAPELO (cabelo), PATATA
(batata), etc. Exercícios com pares mínimos (tais como,
BULA/PULA, FACA! VACA), como vimos antes, podem ser úteis
para mostrar aos alunos essas distinções.
Quando um aluno lê a letra B pronunciando "p", o professor
precisa descobrir se se trata de um problema de decifração (o
aluno fala a palavra corretamente, mas lê errado) ou de uma
pronúncia diferente, própria do dialeto do aluno (diz-se "patata",
"faca" e não "batata", "vaca", etc.). No primeiro caso, é preciso
estudar como se decifra a letra B. No segundo, discutir a questão
da variação lingüística dos dialetos e como a ortografia registra
as palavras. Note que o aluno pode continuar falando segundo
seu dialeto e não ter problemas para escrever, bastando para
isso que esteja bem-informado a respeito do assunto: ele fala de
um jeito, mas deve escrever de outro. O aluno que ouve essas
explicações freqüentemente, acaba aprendendo ou pelo menos
desconfiando, e isso o ajuda em muito a aprender, de fato, com o
tempo.
ESTUDO DA LETRA C
O nome da letra C é cê, e o seu som básico é "çê' Essa letra
participa de um esquema complicado de relações entre letras e
sons, como se verá a seguir
No trabalho em sala de aula, o professor pode partir de uma lista
de palavras que ele escreve na lousa e estudar os casos,
formulando as regras com os alunos, ou pode partir de exemplos
2 exceção é a palavra PNEU, que admite 'pineu" ou "peneu".
3 O som da consoante oclusiva velar sonora [g] vem
representado pelo dígrafo "gu", quando precede I ou E, e por "g"
nos demais casos.
<363>
dados pelos próprios alunos, com base em sugestões
orientadas por ele. O que vale é a bagagem de informação que se
revela através do raciocínio que a classe faz juntamente com o
professor. Os procedimentos a seguir mostram essas
duas maneiras de organizar o ensine a aprendizagem em sala de
aula.
O professor pode começar dando algumas informações a
respeito de como se lê a letra C, observando o que acontece no
início de palavra. Nota-se que a letra C tem o som de "çê"
quando ocorre diante das vogais E e I, como em CEBOLA,
CÉLEBRE e CIDADE. Diante das outras três vogais, A, O e U, a
letra C tem o som de "kê", caso de CARA, COLAR e CUIDADO.
Portanto, dependendo da vogal que vier depois, a letra C terá o
som de "cê" ou "kê".
Para explicar o que são vogais e consoantes, o professor
poderá mostrar um cartaz do 1 alfabeto, com as letras dispostas
de tal modo que a primeira delas em cada linha seja uma vogal.
Quando o professor ensina uma coisa, um aluno pode estar
pensando em outra. Assim, algum aluno poderá lembrar (dando
exemplos) que na fala também existe o som de "kê' com vogais
E e 1. Se a letra C só tem o som de "kê" diante de A, O e U, que
letra se usa para escrever o som de "kê" diante de E e de 1?
Respondendo a essa pergunta, o professor explicará que usamos
as letras QU. Exemplos: QUERO, QUILO, AQUELE, etc.
Resumindo, pode-se formar uma coluna com todas as vogais e a
respectiva escrita com o som de "kê".
A
o
U
E
I
Som "kê"
CASA
COISA
CUECA
Escrita C
QUE
AQUI
Escrita QU
Ocasiões como essa são boas para que os alunos percebam que
ler é mais fácil do que escrever, uma vez que, partindo da
escrita, é fácil ler essas letras. Se alguém, no entanto, tiver de
escrever uma palavra que tem o som de "kê" mais uma vogal
como A, O ou U, terá duas opções: usar a letra C ou as letras QU
(lembrando que QU nunca aparece diante de U).
Como uma coisa puxa outra, algum aluno poderá querer saber
como se escrevem palavras que começam com os sons de "ça",
"ço" e "çu", como SAPO, SOBRADO e SUBIDA. A resposta do
professor irá introduzir a discussão da letra S. Essa letra, que
aparece diante de qualquer vogal, quando em início de palavras,
tem sempre o som de "çê" (mais vogal).
A seguir, apresenta-se uma lista de palavras para orientar os
comentários sobre o assunto.
Ortografia
CIDADE
CEBOLA
CABELO
COLA
CUECA
NASCER
MÁSCARA
EXCEÇÃO
EXCURSÃO
Pronúncia
"çidadi"
"çebola"
"kabelu"
"kola"
"kuéka"
"naçer"
"máskara"
"eçeçau"
"eçkurçãu"
Letra/Som
C = "çê"
C = "çê"
C = "kê"
C = "kê"
C = "kê"
SC = "çê"
SC = "çê" + "kê"
XC = "çê"
XC = "çê" + "kê"
364
Ortografia Pronúncia Letra/Som
COMPACT "kõumpaktu" ou C = "kê"
"koumpakitu" C = "ke" + "i"
ACNE "akni" ou C = "kê"
"akini" C = "kê" + "i"
CLARO "klaru" C = "kê"
CRAVO "kravu" C = "kê"
CHAVE "chavi" C = "chê"
TOC-TOC "tók-tók" ou C "kê"
"tóki-tóki" C = "kê" + "i"
Como se pode notar, a letra C tem basicamente os seguintes
sons: "çê", "kê", "kê" + "i" ou
"chê". Analisando detalhadamente os dados apresentados acima,
chegamos às seguintes regras:
1. A letra C tem o som de "çê" quando ocorre diante de E ou de
1, independentemente da letra que vier antes.
2. A letra C tem o som de "kê" quando diante de A, O ou U, de
uma outra consoante ou no final de palavra.
3. Quando a letra C tem o som de "kê", pode também ter o som
de "kê" + "i", ou seja, "ki", quando não seguida por vogal na
escrita, desde que a consoante não seja R ou L. No último caso,
só pode ocorrer o som de "kê" (sem o "ê") e nunca de "ki" (com
o "i"): "cravo" e "claro".
4. A função da letra H no meio de palavras é modificar o som da
letra anterior. No caso de C, passa a ter o som de "chê".
5. Em alguns dialetos, se diz "naiç-çer" ou mesmo "naich-çer". A
razão disso pode ter vindo do processo de alfabetização em que
as pessoas ficam silabando para aprender a ler. A leitura de NAS-
, em final de enunciado diante de pausa, pode ser "naç", "naiç"
ou "naich". Isso acabou gerando uma nova pronúncia para
palavras como NASCER. O SC tinha apenas o som de "çê", no
inicio da sílaba seguinte: "na-çer". Com a nova pronúncia, o SC
passou a ter dois sons fricativos "ch" + "ç" —, além de
influenciar na leitura da vogal anterior, que se tornou um
ditongo ("ai", em vez de "a"). O mesmo tipo de fenômeno ocorre
com seqüências com XC (ou XÇ). Esses grupos de letras
representam apenas o som de "çê" em alguns dialetos e, em
outros, os sons de "çê+çê" ou "chê+çê", com ou sem a
ditongação da vogal anterior: "e-çe çãu", "eç-çe-çãu", "eich-çe-
çãu".
Os sons da fala representados pela letra C
O estudo acima demonstra que é relativamente simples ler a
letra C. A questão da escrita, no entanto, apresenta dificuldades,
principalmente porque há outras letras que têm os mesmos sons
do C, obrigando o escritor a procurar a forma ortográfica
estabelecida. Por essa razão, além da letra C, deveremos
mostrar as outras letras que geram confusão em contextos
específicos. A seguir as regras que podem ser estabelecidas
sobre isso:
1. Tendo em vista os conhecimentos sobre a leitura da letra C,
podemos dizer que o som de "çê" pode ser escrito com C, desde
que venha antes das letras E ou I. Desse modo, palavras como
"çebola" e "çidadi" se escrevem CEBOLA e CIDADE.
Uma palavra como "çapu", "çopa", "çubir", que começa com o
som de "çê" seguido da vogal
"a "o" ou "u" (que serão escritas com as letras A, O ou U), não
pode ser escrita com a letra C. Nesses casos,' o sistema manda
usar a letra 5. Portanto, a letra S também representa o som, de
<365>
"çê". Isso pode gerar confusões. Na verdade, palavras como
CEBOLA e CIDADE, em princípio também poderiam ser escritas
com S: SEBOLA e SIDADE, porque a letra S também pode ser
usada diante da vogal I e E, como em SINO e SELO. Somente
conhecendo ortografia, uma pessoa pode saber que diante de 1
ou de E vamos ter a letra C ou S em início de palavras.
2. Ocorre também o som de "çê" no meio da palavra, em início
ou final de sílaba. Veja as seguintes palavras: "na-çer" NASCER,
"e-çe-çãu" EXCEÇÃO, "pa-çu" PASSO ou PAÇO, "pró-çi mu"
PRÓXIMO, "na-ça" NASÇA. Constatamos que o som de "çê" em
início de sílaba não-inicial de palavra pode ser representado
pelas seguintes letras: SC, XC, SS, Ç, X, SÇ e XÇ. Saber quando
usar uma letra e quando usar outra depende do conhecimento da
ortografia.
A única vantagem que ocorre aqui é saber que as palavras
derivadas são escritas com as mesmas letras. Assim, se NASCER
é com SC, NASCIMENTO também será com SC. Em NASÇA, como
não pode ocorrer a letra C com som de "çê" diante de "a", a
opção foi usar a letra cê cedilha (Ç). Esse é um procedimento
comum. Se existe a grafia EXCEÇÃO, pode-se desconfiar que
EXCETO se escreve do mesmo jeito. Se escrevemos PRÓXIMO
com X, iremos escrever PROXIMIDADE também com X.
Às vezes temos uma palavra homófona, mas que tem
ortografias diferentes para cada significado. I o caso de "paçu",
que se escreve com SS quando significa 'o movimento dos pés ao
andar' (PASSO), e com Ç quando significa 'palácio' (PAÇO). O
critério semântico, em casos semelhantes, pode ajudar a
encontrar mais facilmente a grafia estabelecida.
3. O som de "çê" ainda é encontrado em final de sílabas,
podendo ocorrer também em final de palavras, como se pode ver
nos seguintes exemplos: "baç-ta" BASTA, "biç-pu" BISPO,
"atraiç" ATRÁS, "rrapaiç" RAPAZ, "fiç" FIZ, "tauveiç" TALVEZ.
Nesses exemplos, o som de "çê" aparece representado pelas
letras 5 no meio de palavra e por 5 ou Z, em final de palavra.
4. Como a letra C também pode ter o som de "kê", vamos
estudar esse caso agora. Como vimos antes, o som de "kê" pode
ser escrito com a letra C, quando vem antes de A, O ou U, ou
seja, diante de vogais que não sejam 1 nem E. Exemplos: "kãma"
CAMA, "koiza" COISA, "kuçtumi" COSTUME.
Outra letra que pode representar o som de "kê" é a letra Q. A
letra Q tem o som de "kê" sempre, em qualquer caso. Porém,
para escrever os sons de "ki", "kê" e "ké", como não se pode
usar a letra C, a única saída é o Q. Ela tem duas particularidades:
vem sempre seguida da letra U e não ocorre QUU. Essa letra U
não é pronunciada, como nos exemplos: "kis" QUIS, "kê" QUE e
"kéru" QUERO. Nas seqüências de sons "kê" + "u" + "i" ("é" ou
"ê"), quando se pronuncia o U, podem-se ter duas formas de
escrita: com C ou com Q, como nas palavras:
"kuidado" CUIDADO, "kuéka" CUECA, "likuidifikador"
LIQÜIDIFICADOR "çekuêçia" SEQÜÊN CIA, "çekuéla" SEQÜELA,
etc. Aqui também, só o conhecimento da ortografia pode dizer se
ocorre uma letra ou outra.
5. O som de "kê" ocorre também em final de sílaba, caso em
que pode haver uma variação, e no qual o "kê" forma uma sílaba
nova com o acréscimo de "i", como em: "akni" ou "akini" ACNE,
"kõumpaktu" ou "kõumpakitu" COMPACTO, etc. Nesses
exemplos, só se pode escre ver a letra C, nunca a letra Q. Essa
variação entre "k" (sem a vogal) e "ki" (com a vogal) pode
ocorrer também em final de palavras, como em: "tik-tak" ou
"tiki-taki", que pode ser escrita TIQUE-TAQUE ou TIC-TAC Note
as duas formas de escrita, usando C sem a vogal e QU com a
vogal E (que se pronuncia "i" ou "é").
6. O som de "kê" ocorre também conjugado com o de "lê" ou de
"rê". Nesse caso, há uma vogal em seguida, completando assim
a estrutura silábica (que pode ter alguma consoante no final da
sílaba). Essas formas só podem ser escritas com a letra C e
nunca com a letra Q. Exemplos: "klareza" CLAREZA, "krônika"
CRÔNICA, etc.
Nas formas QUE e QUI, quando a letra U deve ser pronunciada,
ela é escrita com trema (Ü).
Nas histórias em quadrinhos, algumas palavras que denotam
ruído são representadas de forma especial, dependendo do
artista, mesmo quando existe uma grafia já dicionarizada. É o
caso de tic-tac e tique-taque. Ver CAGLIARI, 1993ª.
<366>
7. O som de "kê" pode ser representado pela letra K. Essa letra
não tem outro som a não ser esse. A letra K tem uso muito
restrito na língua portuguesa, servindo apenas para os nomes
próprios, algumas palavras de origem estrangeira e
abreviaturas. De modo geral, não se deve pensar que uma
palavra se escreve com K, sobretudo se não for nome próprio.
8. O som de "chê" pode estar ligado tanto à letra C, como à letra
X. A decisão aqui vai depender de consulta ao dicionário. Uma
pequena regra dentro dessa regra maior é aquela segundo a
qual, quando se tem a variação "ai» ou "a" antes do "chê", este
último será escrito com X (exceto em alguns casos de uns
poucos dialetos como o carioca, em que se pode ouvir
pronúncias como "kaichorru" ou "kachorru" para CACHORRO).
9. Uma palavra pode ter o som de "çê" quando pronunciada
isoladamente ou em final de enunciado, diante de pausa ou
silêncio. Porém, junto com outra palavra que começa com o som
de vogal, esse som de "çê" desprende-se da sílaba anterior e
passa a formar uma sílaba nova com a vogal do início da palavra
seguinte, ficando com o valor fonético de "zê". Veja os
exemplos: "ka-zaç a-ma-ré-las" e "ka-za-za-ma-ré-las" (CASAS
AMARELAS); "treiç i-ni-mi-gus" e "trei-zi-ni-mi-gus" (TRÊS
INIMIGOS)
10. Como vimos no estudo da letra A, aqui também os
problemas de variação lingüística podem complicar
enormemente a escolha das letras que deverão ser usadas na
escrita, quando se parte da observa ç cia fala. Quem não fala o
"çê" do plural de algumas palavras, vai ter de aprender primeiro
as regras de concordância da norma culta, para depois descobrir
onde devem ocorrer esses "çês", que serão indicados por S na
escrita. Mas não há apenas problemas de concordância. Quem
fala "kalidadji" tem menos chances de acertar a ortografia,
observando a própria fala, do que quem fala "kualidadji"
11. Uma das dificuldades do aluno antes de conhecer a forma
ortográfica certa ocorrerá com palavras que têm o som de "kê"
em final de sílaba, mas podem formar uma sílaba própria, sendo
seguido de "i". Como esta última é mais comum na fala, e a outra
é mais própria da leitura, o aluno muitas vezes escolhe escrever
com QU, como nos seguintes exemplos: TEQUINICA (em vez de
TECNICA — "té-ki-ni-ka"), COMPAQUITO (em vez de COMPACTO
— "kõum-pa-ki-tu"), etc. Outra dificuldade é a troca de QU por C,
quando o aluno ainda não aprendeu que diante de E e de 1, a
letra C não tem o som de "kê". Aparecem, então, estas grafias:
ACELI (AQUELE), CERIDO (QUERIDO), CI (QUE). Mais raras de
encontrar são palavras que deveriam ser escritas com C e o
aluno escreve com QU, como, por exemplo: QUOMANDANTI
(COMANDANTE),
QUOCISTA (CONQUISTA) e assim por diante. O próprio
dicionário registra umas poucas formas variantes desse tipo,
como QUATORZE e CATORZE, QUOTA e COTA.
12. Uma questão relacionada com os últimos exemplos, mas um
pouco diferente, é a ocorrência de formas alternadas de C e QU
na escrita, em palavras derivadas, quando se acrescentam
sufixos que começam por 1 ou E. Nesses casos, se a escrita
mantivesse a letra C, a palavra perderia o som de "kê" e passaria
a ter o som de "çê". Para manter o som de "kê", a única
alternativa do sistema ortográfico é usar QU. Veja os seguintes
exemplos: VACA, VAQUEIRO; COLOCO, COLOCA, mas
COLOQUEMOS, COLOQUEM; FICAR, mas FIQUEM; TOCO, mas
TOQUINHO, etc.
13. A partir da observação da fala, ainda há uma dificuldade
envolvendo a escrita do som "kê", em palavras como: "ta-kçi" ou
"ta;ki-çi", "fi-.kçi" ou "fi-ki-çi", "tó-ra-kçi" ou "tó-ra-ki-çi", etc.
Nesses casos, escreve-se com X: TAXI, FIXE, TORAX. Mas, no
caso da segunda palavra, seria igualmente possível a forma
FIQUE-SE e, no caso da primeira, TAQUE-SE, embora pouco
usuais. Nesses dois exemplos, o usuário da escrita pode
aprender a guiar-se pela semântica para distinguir uma forma de
escrita de outra. Todavia, isso é para quem já tem muita fluência
na escrita, o que não é o caso na alfabetização. Por isso, muitos
alunos são levados a escrever: TAQUESE em vez de TÁXI,
FIQUEÇO em vez de FIXO, etc.
Pronúncias como "pró-kçi-mu" (PRÓXIMO), "çin-ta-kçi"
(SINTAXE), etc., em vez de "pró-çi mu", "çin-ta-çi", etc., revelam
uma tendência escolar de ensinar a identificar a letra X com o
som de "kçi", em vez de outras alternativas.
<367>
Resumindo os principais pontos, nota-se que é relativamente
fácil ler a letra C; basta ver que vogal vem depois, se é do grupo
do E e I ou se é do grupo do A, O e U. Mas, quando se trata de
passar da fala para a escrita, a questão é bem complicada. O som
de "çê", em início de palavras, pode ser escrito com a letra C (se
em seguida vier a letra E ou 1) ou, então, com a letra S (seguida
de qualquer vogal). Quem decide se vai ser C ou 5, nesses casos,
é a ortografia. Não adianta ficar observando a fala.
No meio de palavra, o som "çê" pode ser escrito com as letras
SS, como em PASSO, com Ç, como em MOÇA, com X, como em
PRÓXIMO, EXTRA, com S, como em BASTA. Note que se usa SS
somente quando as letras precedente e seguinte são vogais, e se
usa S somente quando a letra precedente é uma vogal e a
seguinte é uma consoante.
Em final de palavras, o som "çê" (ou "chê" — dependendo do
dialeto) pode ser escrito com 5 ou com Z, como atestam os
seguintes exemplos: CASAS, MÊS, FEZ, RAPAZ. Sempre que o
som representar o plural de uma palavra, a escrita será com 5 e
não Z. Além disso, quando a palavra não for oxítona, não poderá
ocorrer a escrita da letra Z. Portanto, a dificuldade real fica
restrita às palavras oxítonas e singulares. Nos demais casos, a
escrita será sempre com S.
Com relação ao som de "kê" da letra C, o caso é menos
complicado: se na fala ocorrerem os sons "ka", "ko" e "ku", tem-
se na escrita a letra C (ca, co, cu). Se na fala aparecerem os sons
"ki" e "kê", a escrita usará as letras QU (que, qui). Quando
aparecer, na escrita, QU seguido de A ou O, a letra U se
pronuncia (nesses casos, não tem trema), como se nota nos
seguintes exem plos: QUATRO ( "cuatru"), LONGÍNQUO
("lõjirjkuo") etc. E vice-versa, quando na fala ocorrer o som de
"kê", seguido do som "u" e depois o som "a", "ô", "ó", a escrita
quase sempre será feita com QU.
Vê-se que ler a letra C é muito mais simples do que perceber
como será escrito o som ou mesmo "kê". A confusão mais
comum ocorre em início de palavras com C e S (diante de E e I)
ou com C e SS ou mais raramente com Ç, em meio de palavras.
Alguns alunos, no início,
escrevem CE em vez de QUE. A confusão é esperada e, com o
tempo, a criança vai assimilando a ortografia. É preciso ter um
pouco de paciência: não é possível aprender tudo num dia só.
ESTUDO DA LETRA Ç
A letra Ç tem o nome de cê-cedilha. É a letra C com uma
curvinha voltada para a esquerdae colocada embaixo da letra. A
letra Ç representa apenas o som de 'çê', e ocorre diante do grupo
das vogais A, O e U e nunca diante de E e I.
A letra Ç ocorre somente no meio de palavras, nunca no início
ou no fim. Poucas palavras, na língua portuguesa, são escritas
com essa letra, mas algumas delas têm uso muito freqüente.
Portanto, a melhor estratégia para aprender a empregar a letra ç
é aprendendo caso por caso. Por exemplo, as seguintes palavras
se escrevem com Ç: MOÇA, MOÇO, CALÇADA, CAÇA, MAÇÃ, ONÇA,
AÇO, AÇUCAR, AÇUDE, FAÇO, PEÇO, POÇO, etc.
Note a variação ortográfica em palavras como: NASCER,
NASCIMENTO e NASÇO; ACONTE CE e ACONTEÇA. Isso mostra
que a letra Ç é usada quando uma palavra com C + E ou C + I
adquire a terminação A, O ou U. Nesse caso, como não se pode
escrever C e manter o valor fonético de "çê", a ortografia
recorreu à letra Ç. Observe, ainda, o seguinte exemplo: FAZER,
FAZEMOS, FAÇO, FAÇA.
6 nasal velar vem representada pelo símbolo fonético Fiji.
Corresponde à nasal da língua inglesa empregada no final de
palavras tais como shopping, king, song, etc. Em português
aparece entre uma vogal nasalizada e uma oclusiva velar, ou em
final de sílabas, depois das vogais "u", "õ" e 'à", sobretudo em
final de palavras: "bãnku" (BANCO), "lãn" (LÃ), "oünça" (ONÇA),
etc.
<368>
ESTUDO DA LETRA D
A letra D tem o nome de dê, e o som básico que representa é
o som inicial de seu nome. Exemplos: DATA, DEDO, DIZER, DOCE,
DÚZIA.
Os dialetos da língua portuguesa podem ser divididos em
dois grupos: aqueles que dizem "ti" e "di" e aqueles que dizem
"tchi" e "dji". Portanto, sempre que se encontrar a letra D, em
alguns dialetos, o aluno lerá com o som de "dê": DIA ( "dia"),
PODE ( "pódi"), DEDO ( "dêdu"), DOCE ( "dôci") e assim por
diante. Em outros dialetos, há uma regrinha que diz que diante
do som de "i", a letra D passa a ter o som de "dj". Diante de
outras vogais, a letra D permanece com o som de "dê". Confira
os exemplos: DIA ("djia"), PODE ("pódji"); mas DEDO ("dêdu"),
DOCE ("dôçi"), DIJVIDA ("dúvida"), etc.
Fato semelhante ocorre com a letra T, que, num tipo de
dialeto, sempre é dito como "tê" — TIA ("tia"), POTE ("póti"),
PATO ("patu") POÇO ("pôçu"), etc. — e, em outro tipo,
representa o som de "tchi", quando ocorre antes da vogal "i",
continuando com o som de "tê", nos demais casos — TIA
("tchia"), POTE ("pótchi"); mas PATO ("patu"), POÇO ("pôçu"),
etc. Note que o que vale é sempre a pronúncia e não a escrita:
ADVOGADO ("adjivogadu"), RITMO ("ritchimu"), POTE
("pótchi"), etc.
Apesar da aparência complicada, esse caso na verdade é
muito simples, e não causa problemas aos alunos. Para ler o D,
tanto faz o aluno dizer "d" ou "dj", porque essa variação dialetal
não é estigmatizada pela sociedade.
A passagem da fala para a escrita também não costuma
causar maiores embaraços do que aqueles típicos do comecinho
da aprendizagem. E o caso daquele aluno que queria escrever a
palavra "índio", que pronunciava "idjo", e não achava, no
alfabeto, a letra "djê". Pensou bastante qual seria a letra mais
apropriada e acabou escrevendo IGO, uma vez que a letra G era
a que apresentava o som foneticamente mais próximo de "djê".
ESTUDO DA LETRA E
A letra E tem dois nomes: quando se dizem as letras do
alfabeto, tem o nome de ê e, quando se dizem os nomes das
vogais, tem o nome de é. Esses dois nomes mostram os dois
sons básicos dessa letra. "ê" e "é". Exemplos: DELE ("dêli"),
DELA ("dela"), MESA ("mesa"), PERTO ("pértu").
Para saber quando a letra E tem o som de "ê" ou "é", é
preciso conhecer a palavra. Quando se decifra uma palavra,
descobre-se aos poucos sua pronúncia, e o resultado final é dado
pelos conhecimentos que a pessoa tem da língua, como falante
nativo. Assim, se o aluno estiver decifrando a palavra MESA, tem
duas possibilidades: uma é ler "mêza" e outra é ler "méza".
Como falante nativo, ele sabe que "mêza" existe e tem um
determinado significado, mas ele nunca ouviu falar em "méza" e,
portanto, desconfia que essa palavra não existe na língua
portuguesa.
Às vezes, o problema requer um exame mais detalhado do
contexto em que a palavra vem inserida. Por exemplo, quando a
palavra ERRO vem escrita isoladamente, não se sabe se é "êrru"
ou "érru". Mas, dentro de uma frase, é sempre fácil saber: O
ERRO FOI CORRIGIDO ("êrru"); EU ERRO NOS ACENTOS
("érru").
Quando se escreve, tanto o som de "ê" quanto o de "é" será
registrado com a letra E. Às vezes, para facilitar a leitura, a
ortografia coloca os acentos agudo e circunflexo para indicar
uma
<369>
pronúncia ou outra. Por exemplo: VÊ, ACADÊMICO ("ê"); ATÉ,
INTRÉPIDO ("ê"), etc. Nesses casos, o aluno tem uma vantagem
para decifrar o valor fonético da letra E. Ao escrever, porém,
precisará saber quando colocar os acentos.
O professor deverá tratar desse assunto como fala dos
assuntos gerais de ortografia: o aluno precisa aprender que
algumas palavras têm acento e outras não. No primeiro
semestre, o professor pode ignorar o assunto. Explicará o que
for necessário, se algum aluno perguntar, ou por alguma razão
especial que surja durante o trabalho de leitura ou de escrita.
Na verdade, a língua portuguesa poderia não ter nenhuma
marca de acento na escrita, que as coisas ficariam exatamente
da mesma maneira. Hoje, as marcas de acento complicam a
escrita e quase não trazem vantagens para a leitura.
A distinção mais notável entre "ê" e "é" ocorre nas sílabas
tônicas. Em sílabas átonas, encontramos "é" somente em
palavras derivadas (por exemplo: PÉ — PEZINHO). Todavia, em
alguns dialetos (por exemplo, no baiano), é muito freqüente a
distinção entre a vogal aberta "é" e a fechada "ê", também em
sílabas átonas. Eles dizem, por exemplo, "méninu" (MENINO), ao
passo que, em outros dialetos, a pronúncia é "mêninu".
Nas sílabas átonas, em geral, há uma tendência para a letra E
assumir o som de 1. Veja os exemplos: SEGUINTES EXEMPLOS
("siguintizizêmplus"), ENFEITE ("ifeiti"), etc. Porém, diz- se
"êrói" e não "irói" para HERÓI.
De modo geral, na fala, em posição pós-tônica, encontram-se
apenas as vogais orais "i", "u" e "a". Pronúncias com os sons de
"ê" e de "ô" representam variantes dialetais que tendem a ser
excluídas da norma culta da língua. Em posição pré-tônica,
aparecem as vogais orais "i", "ê", "a", "ô" e "u", exceto em
alguns dialetos do Nordeste em que se encontram ainda os sons
de "é" e de "ó". Como não há uma regra que defina em que
ambiente de palavras ocorrerá uma vogal aberta ("é", "ó"),
fechada ("ê", "ô") ou reduzida ("i", "u"), a única saída é
conhecer a palavra e as diferenças dialetais de pronúncia. Para a
leitura, essa questão traz pouca dificuldade, mas, para a escrita,
o problema é sério.
Essa última questão torna-se mais clara quando constatamos,
por exemplo, que o som de "i" (fora de ditongo) pode ser
representado por I ou E. Compare EMPRESTAR ("imprêstar")
com IMPOSTO ("impôstu"); ENFERRUJAR ("iferrujar") com
INFELIZ ("ifelis"), etc. Veja ain da PARÊNTESES ou PARÊNTESIS.
Nesses casos, somente a ortografia pode dizer se a palavra se
escreve com E ou I.
Saber como proceder pode significar errar de vez em quando.
Por exemplo, um aluno escreve DICI e o professor explica que,
às vezes, a gente fala "i", mas deve escrever E: DISSE. Em
seguida, o aluno, que aprendeu a lição (até aí), escreve MÉDECO
em vez de MÉDICO. O professor não precisa ficar preocupado: é
assim mesmo que se aprende. O aluno não está aprendendo
errado, ele simplesmente não tem condições de operar com
todas as informações a todo instante. O importante é refletir
sobre o funcionamento do sistema de escrita. E isso ele fez muito
bem.
Quando a letra E antecede a consoante nasal M ou N
(sobretudo se em seguida vier outra consoante ou o final da
palavra), ela adquire um som nasalizado, como se pode
constatar nos seguintes exemplos: VEM, TEM, EMBORA,
ENCONTRO, ENTRA, ENTRADA, TENHO, HÍFEN, etc. Conforme as
regras vistas anteriormente, mesmo nasalizada, a letra E terá o
som de "e" ou de "i" (se estiver em sílaba átona). Exemplo:
EMBORA ("êmbóra" ou "imbóra"). Poderá também ter o som de
um ditongo nasalizado "êi", como em ITEM ("itêi"), DESDÉM
("dezdêi"), EMBORA ("êimbóra"), PENTE ("pêinti"). A ocorrência
da forma com ditongo nasalizado é mais comum em final de
palavras.
Tal qual a letra A, seguida de I, também a letra E, quando
seguida de I, pode ser pronunciada sem o I, quando essas letras
estão diante de R ou de X (representando o som de "chê").
Exemplos: CADEIRA ("kadeira" ou "kadêra"), PEIXE ("peichi" ou
"pêchi").
370
ESTUDO DA LETRA F
A letra F tem o nome de efe e representa o som que existe entre
o "é" e o "i" de seu nome. Em certos dialetos, algumas letras
como o F têm o som básico da letra no início do nome (fê mê, nê,
etc.), o que facilita a aplicação do princípio acrofônico visto
antes. Exemplos: FACA, FIQUE, FOCA, FUMAÇA, FEITO, CONFIAR,
etc. Encontrando-se esse som na fala, usa-se a letra E
A dificuldade de alguns alunos não está em reconhecer o som
"fé», ou mesmo em distingui-lo do "vê", mas em saber em que
palavra escreve-se F ou V porque às vezes falam "fê" e, às
zes, "vê". Quando sussurram, em vez de falar em voz alta, o
resultado fonético é um som do tipo fê e não vê Por isso ao
escrever o aluno pode chegar aos seguintes resultados A
FACA CHIFROU O CACHORRO, MARIA COMPROU UMA VIFELA,
ELE FEIO AQUI, ANDRE MORA NA FAFELA; (FACA = VACA; VIFELA
= FIVELA; FEIO = VEIO; FAFELA = FAVELA). Essas
confusões se corrigem com a prática, prestando atenção no
significado das palavras (faca:
ferramenta; vaca: animal) e na ortografia e não com inúteis
exercícios fonéticos de discriminação auditiva e intermináveis
repetições da pronúncia certa. A questão não é fonética, mas
dialetal e ortográfica.
ESTUDO DA LETRA G
O nome da letra G é gê e representa tipicamente o som inicial de
seu nome. A letra G, contudo,
tem também outro som muito comum, que é o de "guê" Existe
um paralelismo entre a letra C
e a letra G (a letra G foi derivada da letra C com um traço na
parte final inferior para
distinguir o som de "kê" do som de"guê",no latim).
A letra G, quando diante do grupo de vogais E e I,tem o som de
"jê" e,quando diante do grupo de vogais A, O e U, tem o som de
"guê", como se constata nos seguintes exemplos:
GENTE ('jênti"), GIRASSOL ("jiraçóu"); mas, GATO, GOTA, GULA
(com som de "guê").
Para escrever o som de "guê", seguido de E ou de I, basta
acrescentar um U entre o G e a vogal. A letra U, nesses casos,
não é pronunciada. Ela simplesmente modifica o valor da letra G.
Exemplos: GUERRA, GUIAR, FOGUEIRA, ÁGUIA, etc. (todos com
som de "guê" ou de "gui").
Porém, se depois do G + U ocorrerem as letras A ou O,
pronuncia-se também oU, como se percebe nos seguintes
exemplos: GUARANA, AGUA, CONTIGUO, EXÍGUO. Note que há
casos em que ocorre G + U, seguidos das vogais E ou I, e a letra
G tem o valor fonético de "guê" e o U também é pronunciado,
como em SAGÜI ("sagui"), AGÜENTAR ("aguéntar"). Compare
CONTÍGUO com CONTIGO
Como se pode ver, o caso acima é semelhante ao da letra Q, visto
no estudo da letra C.
Também já foi mencionado antes numa regra mais abrangente,
que, quando se têm duas consoantes diferentes em seqüência,
ou no final de palavra (exceto com S, Z, R, M e X em alguns casos
em meio de palavra), a primeira consoante poderá ser
pronunciada com um "i". No caso da letra G, veja os seguintes
exemplos: GNOMO ("guinomu" ou "gnomu"), IGNORAR
("iguinorar" ou "ignorar"). Quando se pronuncia o "i", tem-se
uma sílaba a mais na palavra. Quando não se pronuncia o "i", o
som "g" fica no final da sílaba que o precede.
7Ouso do trema na escrita facilita a leitura, mostrando ao aluno
que o U deve ser pronunciado. Se não aparecer trema nas
escritas GUE, GUI (ou QUE, QUI), o U não será pronunciado.
371
Quando se passa dos sons da fala para a escrita, descobrimos
que o som de 'lê" tanto pode ser escrito com a letra G (somente
seguido de E ou de I), como pela letra J (diante de qualquer
vogal): GELO, GIRAR, JANELA, HOJE, JILÓ, JOVEM, JUIZ. Isso
traz uma dificuldade ortográfica que só se resolve com a prática
constante da escrita.
"Como é que se escreve tal palavra, com G ou com J?" é uma
pergunta que os usuários da
escrita do português freqüentemente fazem.
Uma dificuldade mais fácil de resolver (semelhante ao caso da
letra C) acontece quando, por causa das regras estabelecidas em
palavras derivadas, ora se tem G, ora GU, para manter o valor
fonético original da palavra ("guê"), como nos exemplos a
seguir: CEGO/CEGUEIRA, FOGO/FOGUEIRA, AFOGO/AFOGUEI e
assim por diante.
Alguns alunos trocam GU por QU (ou vice-versa), não por
dificuldades auditivas, mas pela dificuldade gráfica que essas
escritas apresentam. Mais raramente, cometem esses enganos
por dificuldades de reconhecimento fonético, sobretudo em
certos contextos (no meio de palavras), e acabam escrevendo,
por exemplo: FREGÜENTE em vez de FREQÜENTE, AQÜENTAR em
vez de AGÜENTAR, ou mesmo ANTIQUO em vez de ANTIGO.
Outro tipo de confusão muito comum é a troca de G por C, como
em AMICO em vez de AMIGO. Esses são erros que se corrigem
pela ortografia e não através de exercícios de contraste de
sonoridade.
Quase sempre, o professor deverá ensinar aos alunos não só o
que se pode fazer, como também o que não se pode fazer, já que
desse modo os limites ficam mais bem determinados e os alunos
aprendem melhor e mais rapidamente. Por exemplo, há uma
regrinha que diz que em palavras derivadas mantém-se a letra
usada na grafia da palavra primitiva, como mostram os
exemplos: LARANJA e LARANJEIRA, MANGA e MANGUEIRA.
ESTUDO DA LETRA H
A letra H tem o nome de agá. Na língua portuguesa, essa letra
não representa nenhum som particular Portanto, seu nome não
tem serventia para a decifração da escrita. Exemplos: HOMEM,
HERA, HORA No entanto, essa letra serve para formar dígrafos.
Nesses casos, a letra H modifica o som da letra anterior
Exemplos. CHAVE, UNHA, ILHA.
A letra H, no nosso sistema de escrita, funciona como uma
espécie de curinga, servindo para modificar o valor fonético da
letra que a precede. Na escrita da língua portuguesa, a letra H
pode vir precedida por C, N e L, produzindo os dígrafos (duas
letras com um único som), como CH, NH e LH.
O alfabeto latino não tinha letras para representar esses sons
palatais porque não havia esse tipo de som em latim. Como o
português escolheu o alfabeto latino para sua escrita e como não
podia inventar letras, a solução encontrada foi criar dígrafos. A
letra H, e mais raramente a letra X, são usadas para modificar o
valor do som anterior, como uma estratégia para não inventar
letras novas. Esse emprego do curinga H, formando dígrafos,
alterou o princípio acrofônico de uma maneira inteligente,
abrindo possibilidades de novos empregos para as letras, sem
alterar o alfabeto.
O professor pode mostrar o valor dos dígrafos, comparando-os
com os das letras simples, através de pares mínimos:
MALA/MALHA, SONO/SONHO, FICA/FICHA, etc.
Quando a letra H vem no início de palavras, não forma dígrafos e
não apresenta, pois, som algum. Em conseqüência, a leitura
começará na letra imediatamente seguinte, como se vê em:
HABITAÇÃO, HELENA, HINO, HORA, HUMILDE, etc. Repare que a
letra seguinte é sempre uma vogal.
372
Em palavras de origem estrangeira, sobretudo em nomes
próprios, a letra H tem o som de "R inicial de palavras", como se
observa nos nomes HONDA ("rõnda"), YAMAHA ("iamarra"),
HOTEL HILTON ("otéurriutõu"), etc.
Como não é possível estabelecer regras para a ocorrência ou não
da letra H (a não ser no caso dos dígrafos), é muito difícil saber
se uma palavra começa com a letra H ou não. Somente o
conhecimento prévio da ortografia pode dizer. Em alguns poucos
casos, dá até para saber se haverá H ou não, dependendo do
significado da palavra, como ocorre em HORA e ORA, HAJA e
AJA. Note, por exemplo, que escrevemos ESPANHA, mas temos
de escrever HISPÂNICO, ou, ainda, escrevemos ERVA e
HERBICIDA, etc. Esta é uma grande dificuldade para o usuário do
sistema: por que HUMILDE se escreve com H e UMIDO não? O
professor não deve se preocupar com essas dificuldades, mas
deve explicá-las aos alunos. Com o tempo, irão fixando a grafia
das palavras mais comuns.
Alguns alunos, que aprenderam a decifrar usando o nome das
letras e o princípio acrofônico, pensam que a letra H funciona
como as demais e, quando vão escrever (e mais raramente ler),
fazem coisas como: HRA (AGORA), HLÏA (GALINHA), etc.
Outro tipo de dificuldade maior e mais comum vamos encontrar
na forma lexical de certas palavras que apresentam pronúncias
diferentes em alguns dialetos. Para ilustrar esse fato,
encontramos um aluno que fala por exemplo miu (MILHO) fia
(FILHA) bãia (BANHA) e sim por diante. Há, ainda, aqueles
falantes (mesmo da norma culta) que variam a pronúncia de
"Ih" com a de "li", como em BATALHA ("batalha" ou "batalia"),
FAMÍLIA ("família" ou "familha"), etc.
O aluno precisará aprender não só a reconhecer os sons da sua
própria fala, mas saber ainda que na norma culta há uma forma
lexical diferente, na qual a ortografia se baseia. Nesses casos,
saber escrever respeitando a ortografia exige uma longa
aprendizagem, e o professor não pode cobrar esse conhecimento
muito cedo. Pode e deve despertar a dúvida ortográfica nos seus
alunos, e pedir a eles que corrijam o material que escreverem.
Ler os dígrafos com H é tarefa fácil: o H está presente para
alertar o leitor. Escrever o NH e o LH não apresenta grande
dificuldade. As maiores encontram-se nos casos de variação
dialetal.
Com relação ao CH, existe uma dificuldade extra na escrita,
criada pelo uso da letra X com o valor de "chê". Portanto,
partindo da fala, o aluno terá duas formas de representar um
mesmo som, e a escolha de uma ou de outra não é facultativa,
mas controlada pela ortografia. Esse tipo de dificuldade os
alunos superam à medida que forem praticando a leitura e
produzindo textos. Trata-se de um conhecimento que não se
adquire em pouco tempo. O professor deverá, pois, ter paciência
com os erros dos alunos.
Nos dialetos em que o S se palatiza em final de sílaba ou diante
de outra consoante, o som de "chê" será escrito com S ou Z:
"ichkóla" (ESCOLA), "rrapaich" (RAPAZ), "pichta" (PISTA), etc.
Esse problema, na verdade, representa pouco para os alunos.
Eles o resolvem facilmente, da mesma maneira como resolvem
as pronúncias de "ti" e "tchi", escrevendo T e não TX ou TCH.
ESTUDO DA LETRA I
A letra 1 tem o nome dei e "i" é o som que ela representa. Como
acontece com as demais vogais, quando a letra I vem diante de
uma consoante nasal M ou I podera apresentar som nasalizado
ou não. Veja os exemplos: VI, CIDADE, CINTO, VINHO, VIM,
CINEMA.
A letra I não apresenta dificuldades para leitura, mas o mesmo
não acontece com a escrita. Essa variação pode, às vezes,
atrapalhar o aluno e criar problemas sérios de escrita e até de
leitura, por causa do medo de errar.
373
Nem todo som de "i" será escrito com a letra I, podendo, por
exemplo, ser escrito com a letra E, como nas palavras: "iskóla"
ESCOLA, "ifiar" ENFIAR. Como a língua portuguesa tem muitas
palavras com o som de "i", que ora se escrevem com E, ora com
I, fica difícil saber a ortografia, e os usuários têm comumente
dúvidas ortográficas a respeito dessas grafias. Não há como
ensinar a resolver esse problema a não ser criando o bom hábito
de ter dúvidas ortográficas e de buscar resolvê-las, procurando
num dicionário ou perguntando a quem sabe.
Como já foi visto, em palavras como "opitei" OPTEI, "obijétu"
OBJETO, etc., pode existir
uma vogal "i" na fala, porém não na escrita. O mesmo acontece
em palavras como "üinha"
UNHA, "bãinha" BANHA, etc.
Algumas palavras apresentam uma variação entre 01 e OU, como
LOIRO e LOURO, COISA e
COUSA, DOURADO e DOIRADO. Essa variação acontece tanto na
fala quanto na escrita e não
traz, portanto, nenhum problema.
Vimos anteriormente que algumas palavras têm duas
pronúncias, uma com um ditongo (M,
• El) e outra sem o ditongo (A, E), quando esses sons se
encontram diante de R ou X (com o som de "chê"), como em:
CAIXA ("kaicha" ou "kacha"), BANDEIRA ("bãndeira" ou
"bãndera"). Essas diferenças de pronúncia costumam atrapalhar
o aluno na hora de escrever. Além da dificuldade específica
dessas palavras, o fenômeno pode criar dificuldades com outras
palavras que apresentem contextos semelhantes, fazendo com
que o aluno use uma forma com hipercorreção. Por exemplo, em
vez de escrever PÊRA, o aluno escreve PEIRA, etc.
ESTUDO DA LETRA J
A letra J tem o nome de jota e seu som básico é o que aparece no
início de seu próprio nome.
Sempre que a letra J aparecei; o som correspondente na
decifração será o
Exemplos: JAMAIS, JEITO, JIBÓIA, JOGADOR, JUVENTUDE, etc.
Note que o som de "jê" pode ocorrer diante de todas as vogais. A
letra J pode ser usada diante de qualquer vogal, mas a letra G
tem o som de "jê" apenas diante das vogais E e I. Portanto, para
escrever o som de "jê" seguido de "a", "ó", "ô" e "u", o único
jeito permitido pelo sistema é o uso do J. Saber isso, ajuda muito
o aluno na hora de escrever.
Diante dos sons de "ê", "é" e "i", pode-se ter a letra J ou G,
dependendo da ortografia. Esse
fato, aparentemente simples, na verdade causa grandes
confusões e é uma permanente fonte de dúvidas ortográficas.
O aluno deve aprender ainda que o som de "jê" seguido do de
"dê", formando o "djê", deve rá ser escrito com a letra D apenas,
como em DIA ("djia"), BODE ("bódji"), etc.
ESTUDO DA LETRA K
A letra K tem o nome de cá e representa o som inicial de seu
nome: "kê". Essa letra caiu em desuso já no latim. Como
algumas línguas usam essa letra, palavras de origem
estrangeira, sobretudo nomes próprios, podem ser escritas com
ela. Pode aparecer também em abreviaturas cientificas. Alguns
exemplos: Kwait, km, kg.
A letra K mantém seu valor fonético diante de qualquer vogal. O
ensino, do K deve restringir-se à grafia de nomes próprios.
374
ESTUDO DA LETRA L
O nome da letra L é ele e o seu som básico é o que se encontra
no meio do nome entre o som ' e o "i' Em final de sílabas, tem
também o som de "u' Exemplos: LATA, LIVRO, MAL, SOL, CLARO.
Há três casos típicos de ocorrência da letra L: a) em início de
sílaba, sempre antes de vogal; ) entre uma consoante e uma
vogal na sílaba; e c) em final de sílaba, sempre entre uma vogal
e uma consoante ou em final de palavra. No primeiro caso, a
letra L tem o som básico de "lê», como, por exemplo: LATA
("lata"), LETRA ("letra"), LOGO ("lógu"), LIGA ("liga"). No
segundo caso, tem o mesmo tipo de articulação e o mesmo tipo
de som como em BLUSA ("bluza"), PIANO ("plãnu"), CLASSE
("klaçi"). A letra L (juntamente com a letra R) pode formar um
grupo consonantal com P, B, T, D, C (com o som de "kê"), G (com
o som de "guê"),F e V .Nesses casos, a letra L vem em segundo
lugar e tem o som de "lê" (segundo o caso menciona do acima).
Veja os exemplos: PLANTA, PROBLEMA, ATLÂNTICO, CLARO,
GLORIA, FLECHA (na língua portuguesa poderiam ocorrer D e V
seguidos de L, seguindo o mesmo padrão das outras consoantes,
porém, não existem palavras com essas ocorrências, a não ser
DLIN-DLON, VLADIMIR e pouquíssimas outras).
No terceiro caso, tem o som de "u", como parte final de um
ditongo formado com a vogal precedente, como mostram os
exemplos: SALTO ("çautu"), SAL ("çau"), FUNIL ("funiu"), MEL
("méu"), SUL ("çuu"). Em alguns dialetos do Sul do Brasil, o L
em final de sílaba mantém o valor fonético que apresentanos
outros contextos, não ocorrendo, pois, a formação de ditongo.
Nesses dialetos, as pronúncias são: "çaltu" (SALTO), "çal" (SAL
),"funil" (FUNIL) "mél" (MEL), "çul" (SUL)
A letra L apresenta pouca dificuldade de leitura. Uma vez que o
aluno identificou as letras e formou sílabas, as palavras
emergem automaticamente, e assim o aluno consegue dizer o
que está escrito.
Partindo da fala para a escrita, encontramos um problema sério
para os alunos. Pelo valor fonético de "u" que a letra L tem, e
como, no mesmo contexto do L, pode ocorrer a letra U, também
com o som de "u", é fácil ler, mas é difícil saber quando escrever
uma ou outra letra. Compare as seguintes palavras: CALDA,
CAUSA, MEL, CÉU, VÉU, TERRÍVEL, PAPEL, CHAPÉU, SAL,
SAUDADE, POUPA, POLPA.
A ortografia distingue poucas palavras pelo significado e com
grafias diferentes, usando L ou U São palavras homófonas, como
ALTO (que diz respeito à altura) e AUTO (que significa 'por si
próprio'). O que permite saber que PLANALTO se escreve com L e
não com U e AUTOMÓVEL se escreve com U e não com L é a
composição dessas palavras, uma formada por ALTO e outra, por
AUTO
A dificuldade maior com relação ao uso correto da letra L, como
em outros casos, reside no fato de alguns alunos falarem um
dialeto em que as palavras têm pronúncias diferentes,
acrescentando novos valores fonéticos à letra L e dificultando
em muito o acerto da grafia das palavras a partir da observação
da fala. Por exemplo, alguns alunos falam: "prãnta" (PLANTA),
"bardji" (BALDE), "pobrema" (PROBLEMA), etc., ao lado de
palavras como "prato" (PRATO), "barcu" (BARCO), "pobri"
(POBRE) e assim por diante. Só a ortografia pode resolver esse
tipo de problema, o que mostra que ela tem um poder enorme no
nosso sistema de escrita.
O professor não deve incentivar esses alunos a observarem
detalhadamente a própria fala para escrever. É melhor ir
pensando com quais letras se escrevem as palavras, fazendo,
aliás, o mesmo que fazem os usuários veteranos da escrita. Ao
escrever, estes se guiam mais pelo significado do que por uma
análise detalhada dos sons da fala. Os alunos, na alfabetização,
podem ir escrevendo do mesmo modo, sobretudo quando são
falantes de dialetos que têm
375
uma pronúncia muito diferente da pronúncia da norma culta ou,
como dizem alguns professo. res, quando "falam errado"
ESTUDO DA LETRAM
A letra M tem o nome de eme. O som que aparece no meio, entre
"e" e "i", representa o som básico da letra. Nos dialetos em que
o nome da letra é mê, o princípio acrofônico fica mais evidente.
1
A letra M tem duas funções distintas, uma quando ocorre em
início de sílaba e outra quando ocorre em final de sílaba (ou de
palavra). No primeiro caso, a letra M tem o som básico de "mê",
como, por exemplo, em: MAR, MURO, CAMELO, MORAR, COMIDA,
etc. No segundo caso, a letra M representa a nasalização da
vogal precedente, e pode ter ainda um som consonantal palatal
("nh"), depois da vogal nasalizada "i", ou um som consonantal
velar ("13 »)8, depois da vogal nasalizada "ii". Veja os
exemplos, a seguir: VEM ("vêi" ou "vêinh"), EMBORA ("ibóra" ou
"ïnhbóra"), BOM ("bõu" ou "bõuij"), ALGUM ("augú" ou
"augürJ"). Além disso, observe o fenômeno de juntura
intervocabular, em que essas consoantes nasais ficam mais
evidentes, uma vez que passam de final de sílaba para início de
sílaba, como se mostra nos seguintes exemplos: VEM AQUI
("véi-nha-qui"), ALGUM AMIGO ("au-gü-rja-mi-gu").
Quando a nasal M ocorre no interior de palavras, em fmal de
sílaba, diante de consoante no início da sílaba seguinte, além dos
casos contemplados acima, a letra M pode ter o som de "mê".
Nesse caso, quando ocorre o som do "mê", a vogal precedente
pode ser nasalizada ou não (se for a vogal A, haverá sempre a
mudança de qualidade, com ou sem a sobreposição da
nasalização). Outra possibilidade é a pronúncia da vogal
nasalizada, sem a ocorrência da con soante nasal M. Exemplos:
CAMPO ("kãmpu" ou "kãpu"), TEMPO ("témpu" ou "têpu"),
LIMPO ("limpu" ou "lipu"), etc. As consoantes nasais
apresentam dificuldades de leitura e de escrita, diante das quais
os alunos costumam se atrapalhar. Às vezes, algumas
considerações gerais ajudam a resolver pequenas dificuldades.
Nos verbos, as terminações nasalizadas são escritas com M:
FIZERAM, CONTAM — com exceção do futuro em -ÃO: ACHARÃO,
VENDERÃO e de alguns verbos irregulares, como SÃO e ESTÃQ
Nos substantivos e adjetivos, as terminações nasais costumam
acabar em vogal com til e
não em vogal com nasal: CORAÇÃO, ÓRFÃ, ANÕES. Os
aumentativos e os plurais também não têm consoante nasal:
LIVRÃO, CORAÇÕES, etc.
Raras palavras serão escritas com N em vez de M, como HÍFEN,
PÓLEN, SÊMEN, etc.
Estudar a estrutura de contextos, ou seja, os sons ou letras que
vêm antes e depois de uma determinada unidade fonética ou
caractere, é importante para ajudar o aluno a refletir sobre os
segmentos. Um bom motivo para tratar desse assunto é ensinar
quando se usa M ou N em final de sílaba, antes de consoante, no
meio de palavras. A regra é fácil: usa-se M diante de P e B, e N
diante das demais consoantes. Como não se escreve til no meio
de palavras (com raríssimas exceções, como CÃIBRA e os
aumentativos e diminutivos), toda vogal com som nasalizado
que ocorre diante de consoante seguirá essa regra. Exemplos:
CAMPO, BOMBA, CANTO, INFELIZ, ENVELOPE, CONSUMIR, etc.
Ler a letra M é muito mais fácil do que usá-la na escrita. Quando
aparecer o som de "mê", usa-
se a letra M. Isso é evidente no início de sílaba — mais ainda no
início de palavra. As regrinhas de decifração apresentadas acima
também ajudam, em muitos casos, o aluno a decidir sobre a
escrita.
8 o som Fiji, ver explicaçáo na página 368.
1
376
Quando a letra M (ou a letra N) indica a nasalização da vogal
precedente, o que se sabe distinguindo se a sílaba acaba em som
nasal, seguido ou não do S do plural, a vogal nasalizada pode ser
pronunciada com um ditongo formado por 1" ou "ti". Essa
pronúncia é muito evidente, mas a escrita não registra a vogal 1
nem o U. Mostrar esse fato aos alunos com exemplos ajuda a
esclarecer um tipo de dúvida ortográfica freqüente. Exemplos:
"ómëinh" (HOMEM), "tãmbëinh" (TAMBÉM), "sõurj" (SOM), etc.
Note, porém, que essa regra serve apenas para algumas
palavras, não para todas. Veja, por exemplo, as grafias de MÃE,
PÕE, ANÕES, etc.
Deve ficar claro para o aluno que, sempre que houver uma vogal
nasalizada, deverá ocorrer uma consoante nasal depois (M, N,
NH) ou a vogal deverá vir com o diacrítico da nasalização, que é
o til. O til ocorre somente sobre a vogal A ("ã") ou sobre a vogal
O ("õ"). O segundo caso acontece somente nas terminações de
plural ou no caso do verbo PÔR. Exem plos: IRMÃ, IRMÃS,
BALÃO, BALÕES, MÃE, MAES, CIDADÃO, CIDADÃOS, PÕES, PÕEM.
Por fim, lembre que a palavra "muitu", apesar da nasalização do
ditongo "ui", é escrita sem consoante nasal ou til, porque assim
foi fixada sua grafia.
ESTUDO DA LETRA N
A letra N tem o nome de ene. Seu som básico é o que está
intercalado, no seu nome, entre o "é" e o "i", como acontece com
algumas letras no nosso alfabeto. Nos dialetos em que o nome
da letra é nê, aplica-se mais facilmente o princípio acrofônico..
A letra N tem uma distribuição na fala e na escrita semelhante à
da letra M, ocorrendo um paralelismo entre as duas letras.
Sua ocorrência com o valor fonético básico encontra-se
tipicamente em início de sílaba, como em: NIVEL, NADA, NETO,
NOTA, NUCA. Esse som básico pode ocorrer também diante da
consoante oclusiva T ou D, no interior de palavra, em final de
sílaba, como nos seguintes exemplos: CANTO, REDONDO, SINTO,
ANDO, etc. Diante das consoantes oclusivas velares,
representadas pelas letras C (com o som de "kê"), G (com o som
de "guê") ou QU, a letra N pode representar, na fala, uma
consoante nasal velar (rj) como, por exemplo, em: BANCO
("bãrjku"), MANGA ("mãrjga"), ENQUADRAR ("irjkuadrar").
Diante de outras consoantes, como F, V S, Z, Ç, R, L, só ocorre a
nasalização da vogal precedente, sem a presença da consoante
nasal. Em falas muito enfáticas, vale a regra segundo a qual,
depois de "i" ou de "e" nasalizados, pode ocorrer uma consoante
nasal palatal do tipo "nh"; e depois de "ã", "õ"
e "á ", pode ocorrer uma consoante nasal velar do tipo "ij ".
Exemplos: ENLATADO ("éilatadu"
ou "êinhlatadu"), ENFORCAR ("iforcar" ou "inhforcar"), ONÇA
("õuça" ou "ourJça"), JUNTA ("jüta" ou "j€írjta"), etc.
Lembre que, no interior de palavra, no final de sílaba, a letra N
pode representar apenas a nasalização da vogal precedente, não
tendo outro som, como mostram os últimos exemplos.
Quando se parte da fala para a escrita, sempre que for detectado
o som de "nê", será usada a letra N. A letra N será raramente
usada em final de palavra. No meio de palavra, quando
ocorrerem vogais nasalizadas (monotongos ou ditongos), o
aluno vai ter de decidir entre o uso da letra M ou da letra N, para
colocar no final da sílaba (em início de sílaba, a decisão é fácil,
bastando observar se na fala ocorre o som de "mê" ou de "nê").
Como já foi visto, a letra M só será escrita diante das letras P e
B, e a letra N diante de qualquer outra letra (representando uma
consoante), ou seja, diante de T, D, C, Q, G, F, \' 5, Z, Ç, R, L, X.
Exemplos: SANTO, INDO, CINCO, CONQUISTA, FRANGO,
CONFIAR, ENVIAR, TRANSPORTAR, ENZIMA, TRANÇA, HON RA,
ENLAMEAR, ENXADA.
377
A letra N será escrita na forma do dígrafo NH quando tiver esse
som palatal em início de sílaba. Tal som não ocorre em início de
palavra, exceto em palavras estrangeiras (NHOQUE), em nomes
próprios oriundos de línguas indígenas (NHEENGATU) e na
palavra NHÔ, uma forma abreviada antiga para SENHOR
(SINHÔ).
ESTUDO DA LETRA O
A letra O tem dois nomes: chama-se ô quando está entre as
demais letras do alfabeto, e tem
o nome de ó quando faz parte da série das vogais: A, E, I, O, U
Existe um paralelismo entre
as funções da letra O e da letra E no sistema de escrita e na fala.
Às vezes, a escrita exige o acento circunflexo ou agudo para
indicar se a qualidade fonética da letra O será fechada "ô" ou
aberta "ó". Exemplos: AVÔ, AVÓ, ANTÔNIO, CÓLICA, etc.
Entretanto, nem sempre a escrita faz uso desses diacríticos.
Quando eles não estão marcados, se for a sílaba tônica da
palavra, pode ocorrer o som "ó" ou "ô", e o aluno precisará
descobrir que palavra está escrita, para, depois, saber se se trata
de um som ou de outro. Como se disse acima, trata-se de um
problema semelhante ao encontrado no estudo da letra E. Veja
os seguintes exemplos: BOLO ("bôlu"), BOLA ("bóla"), PORTO
("pôrtu"), PORTA ("pórta"). Somente o conhecimento que o
aluno tem da língua portuguesa, como falante nativo, pode
mostrar a ele como se pronuncia.
Em alguns casos particulares, pode-se saber um pouco mais. Por
exemplo, algumas palavras têm o som "ô" no masculino
singular, mas no plural ou no feminino (singular ou plural) têm o
som "ó", como em: PORCO ("pôrku"), mas PORCOS ("pórkuç),
PORCA ("pórka"), PORCAS ("pórkaç") e assim por diante. Às
vezes, a semântica ou a sintaxe (o significado ou a função das
palavras na frase) podem ajudar a mostrar as diferenças, como
em ROLA ("rôla" passarinho e "róla" do verbo 'rolar'). Veja
ainda, como exemplos, SOCO ("çôku" e "çóku") e CONFORTO
("kõfôrtu" e "kõfórtu").
A letra O, em sílaba átona, tende a ser pronunciada "u", ficando
a pronúncia do O fechado para uma fala mais formal ou própria
de certos dialetos (do Sul do país e no dialeto caipira).
Exemplos: TODO ("todu"), MUNDO ("múndu"), CAPÍTULO
("kapítulu") e assim por diante. Quando a vogal é nasalizada
(diante de M ou N seguidos de consoante), a tendência é mais
para "õ" do que para "u" nasalizados: CONFIANÇA ("kõfiãça"),
COMBATE ("kõmbati"). Porém, se a nasalização da vogal for
optativa (a nasal começa a sílaba), a tendência é a vogal "u" ser
nasalizada, como em COMIDA ("kumida"). Há sempre alguns
casos que não se enquadram bem, como COMPRIDO, que
praticamente é homófono de CUMPRIDO, ou COLOCAR, cuja
pronúncia com "u" na primeira sílaba não representa a fala
comum da norma culta.
Quando se parte da observação da fala para a escrita, sempre
que se encontrar um "ô" ou um "ó", a letra a ser usada será o O
(em alguns casos cõm a marca do acento agudo ou circun flexo).
Entretanto, quando se encontrar o som de "u" em sílaba átona, é
preciso conhecer a ortografia da palavra, para saber se deverá
ser escrita com a letra O ou U.
Algumas vezes, o som de "ô" precisa ser escrito com duàs letras:
O e U. Isso ocorre com algumas palavras que podem ter a
pronúncia com "ô" ou com "ou" como, por exemplo, TOU RO
("tôru" ou "tôuru"), POUCO ("pôku" ou "pôuku"). Ocaso não é
tão simples, porque palavras como "poupa" e "çoudádu" serão
escritas com L: POLPA e SOLDADO (confira ainda a palavra
POUPA, de 'poupar').
A regra apresentada acima mostra por que alguns alunos
decidem escrever BOUA em vez
de BOA, ou PROFESSOURA em vez de PROFESSORA, revelando a
dificuldade de chegar à ortografia observando somente a fala e
as relações possíveis entre letras e sons.
378
ESTUDO DA LETRA P
A letra P tem o nome de pê e seu som básico é o que se encontra
no início de seu nome.
Quando a letra P vem escrita em final de sílaba, ou seja, diante
de outra consoante que não seja R nem L, pode ter o som de
"pi", ou apenas de "p". No segundo caso, a pronúncia é mais
formal do que no primeiro caso. Exemplos: APTO ("ápitu"),
RAPSÓDIA ("rrapiçódia"), ADAP TAR ("adapitar"), OPÇÃO
("opição"), etc.
Somente observando a fala, é impossível saber quando escrever
P com ou sem 1. A variação é controlada apenas pela forma
ortográfica e não pela pronúncia ou por alguma regra contextual
da escrita. Confira, por exemplo, "rrápitu" (RAPTO) e "rrápidu"
(RÁPIDO).
Uma dificuldade semelhante a essa acontece com os sons de
"pç" (representado pelas letras P5, PISI, PIS mais consoante ou
PICI) em início de sílaba. A ortografia tem vários modos de
escrever, como se pode constatar nos seguintes exemplos:
"piçikolojia" ou "pçikolojia" PSI COLOGIA; "piçina" ou "pçina"
PISCINA.
Essas várias formas ortográficas não causam grandes embaraços
na decifração e na leitura, mas são terríveis na escrita para o
aluno que está começando a aprender. O professor não deve dar
muita atenção a erros oriundos desse tipo de dificuldade, porque
eles se resolvem com o tempo.
ESTUDO DA LETRA Q
A letra Q tem o nome de quê e seu som básico está logo no início
do seu nome: 'kê' A letra Q
vem sempre seguida da letra (4 na escrita, porém o Unem
sempre é pronunciado.
Como foi dito nos comentários à letra C, o dígrafo QU substitui a
letra C para representar o som de "kê" quando este precisa
associar-se aos sons "ê", "é" ou "i", como em: QUERIDA
("kerida"), QUERO ("kéru"), QUINTAL ("kintau").
Em palavras derivadas, pode ocorrer a troca de C pelo QU
quando o sufixo começar pela vogal E ou 1, para preservar o som
original de "kê" da letra C na palavra primitiva. Por exemplo:
VACA/VAQUEIRO, FICO/FIQUEI, TOCARJTOQUE,
BARCO/BARQUINHO, etc.
Como em português existem palavras que apresentam os sons
"kui", "kuê", "kué", e a ortografia tem dois modos de escrever
esses sons: QUI, QUE ou CUI, CUE, é preciso mostrar como se
escrevem as palavras mais comuns para que o aluno se
acostume com a ortografia correta. Observe os seguintes
exemplos: LÍQUIDO ("líkuidu"), FREQÜENTE ("frekuénti"),
SEQÜÊNCIA ("çekuéçia"); porém, CUIDAR, CUECA, RECUE, etc.
Esse tipo de problema, o professor resolve à medida que for
aparecendo nos textos dos alunos, sem insistir muito.
Essa dificuldade atrapalha a escrita. Quanto à leitura, basta o
aluno identificar QU com o som de "kê", para descobrir que
palavra está escrita (identificação semântica) e assim recuperar
a pronúncia completa e correta da palavra como um todo.
Quando a letra A vem depois das letras QU, a letra U do dígrafo
tem o som de "ti": QUATRO ("kuatru"), TAQUARA ("takuara"),
AQUARELA ("akuaréla"). Observe, todavia, que há duas formas
diferentes para o número 14: QUATORZE ("kuatôrzi") e CATORZE
("katôrzi"). O mesmo, porém, não acontece com os exemplos
anteriores.
379
Quando as letras QU aparecem diante de O, têm-se duas
pronúncias e duas formas ortográficas. A vogal U do digrafo
pode ser pronunciada ou não. Quando não é pronunciada, a
ortografia admite a forma com a letra C, em vez do dígrafo QU,
como mostram os seguintes exemplos: QUOTA/COTA,
QUOTISTA/COTISTA, QUOTIDIANO/COTIDIANO.
Dadas as dificuldades de escrita, alguns alunos acabam fazendo
opções ortográficas diferentes, mas nem por isso estranhas. Pelo
contrário, revelam usos que poderiam ser empregados pela
ortografia (e no passado não é difícil encontrar exemplos disso,
como VACA escrito VAQUA, CINCO escrito CINQUO, etc.). É
somente por razões das regras da ortografia atual que não se
pode escrever MAQUA (maca), QUIDADO (cuidado), QUAXA
(casa), etc.
Quando os alunos cometem esses erros, não revelam distração
nem incapacidade para perceber e aprender, mas estabelecem
relações possíveis entre sons e letras, embora descartadas pela
ortografia atual. Um bom exercício para o professor fazer no
início, quando está explicando as relações entre letras e sons e a
escrita ortográfica, é escolher palavras e tentar escreve-las de
todas as maneiras possíveis e depois mostrar para os alunos
qual é a forma escolhida pela ortografia. Por exemplo, uma
palavra como "casa", em princípio, poderia ser escrita das
seguintes formas: CAZA, CASA, KAZA, KASA, QUAZA, QUASA,
CAXA, QUAXA. Entretanto, a for ma ortográfica atual é apenas
CASA.
ESTUDO DA LETRA R
A letra R tem o nome de erre e o som básico que a representa é o
que ocorre entre "é" e "i" do seu nome. O sistema de escrita,
porém, distingue o uso de um R do uso de dois RR, formando um
dígrafo. Dessa maneira, em alguns casos é possível distinguir
dois sons diferentes, um chamado de R fraco e outro de R forte
(ou vibrante simples e vibrante múltipla
Foneticamente, a vibrante simples representa um tepe', mas a
vibrante múltipla pode representar uma variedade de sons. Para
ilustrar a diferença entre uma vibrante simples e uma múltipla,
basta observar os seguintes pares mínimos: CARO/CARRO,
MURO/MURRO, FERA/FERRA. Portanto, entre duas vogais, pode
ocorrer apenas um R ou dois RR, representando dois sons
diferentes. A vibrante simples "r" tem apenas um valor fonético:
o tepe (ARARA, SERA, TIRO, FURO, etc.).
A vibrante múltipla "rr", por sua vez, dependendo do dialeto,
pode representar vários valores fonéticos. Um dos mais comuns
é um som fricativo velar surdo, como ocorre tipicamente em
CARRO, ROUPA (dialeto paulista e carioca) e em MAR, CERTO (no
dialeto carioca). No dialeto mineiro e em alguns dialetos do
Nordeste, a vibrante múltipla tem o valor fonético de uma
fricativa glotal surda (ou seja, uma "aspiração"), como em
CARRO, ROUPA, MAR, CERTO. Em alguns dialetos do Sul do país,
a vibrante múltipla pode ter o valor fonético de uma consoante
vibrante (um tepe com vários movimentos rápidos da língua),
como em CARRO, ROUPA, MAR, CERTO. Nos chamados dialetos
"caipiras", quer a vibrante simples, quer a vibrante múltipla
podem ter o valor fonético de uma consoante retroflexa
(articulada com a ponta da língua levantada em direção do céu
da boca), produzindo um dos sons mais típicos do dialeto caipira.
Exemplos: ROÇA, PORTEIRA, BRASIL, ARARA, TIRO, MAR, VIR.
Dependendo da palavra, os falantes de todos os dialetos ora
dizem as vibrantes surdas, ora sonoras, bastando observar o
comportamento das cordas vocais na produção da fala.
9 Tepe:som alveolodental produzido com um toque rápido da
ponta da língua contra os alvéolos dos dentes incisivos
superiores.
380
Por exemplo, é comum que as pessoas digam palavras como
CARRO, RODA, MURRO, com uma vibrante surda; mas também é
comum que digam as seguintes palavras com uma vibrante
sonora: BARRIGA, TORRADA, TERRA. Em alguns casos, às vezes,
o falante usa a vibrante surda, outras vezes usa a vibrante
sonora, como em RITA, RETA, ERRO, etc.
O mesmo som "r" (vibrante simples), que aparece em CARO,
MURO, FERA, ocorre também quando a letra R vem escrita entre
uma consoante e uma vogal, dentro de sílabas. Os grupos
consonantais que se podem formar desse modo são: PR, BR, TR,
DR, CR, GR, FR, VR, por exemplo: PRATO, BRASIL, TRABALHO,
PADRE, CRIANÇA, GRATIDÃO, FRACO, LIVRO.
Se, porém, houver uma divisão silábica entre o R e uma
consoante anterior (que será S ou N), a letra R terá o som da
vibrante múltipla "rr" (igual ao que há em MURRO, CARRO),
como se constata nas palavras HONRA ("õurra?'), ISRAEL
("izrraéu").
Quando a letra R ocorre no final de uma sílaba, com a sílaba
seguinte começando por consoante, ela pode ter o som da
vibrante simples ou múltipla, dependendo do dialeto: POR TA
("pórta" ou "pórrta"), CARPA ("karpa" ou "karrpa").
O mesmo fenômeno ocorre com o R que aparece no final de
palavras: MAR ("mar" ou "marr"), FINGIR ("fijir" ou "fijirr").
Porém, quando na fala corrente, uma palavra terminada por R
junta-se a outra, que começa por vogal, a letra R só apresenta o
som da vibrante simples "r". Além disso, forma o início da sílaba
da palavra seguinte, como se pode ver nos exemplos a seguir:
CALAR A BOCA ("ka-la-ra-bo-ka"), VIR AQUI ("vi-ra-ki").
Em início de palavra, a letra R representa somente o som da
vibrante múltipla "rr", como
em RATO, RITA, RODA, ROLO, RUA.
A leitura da letra R apresenta dificuldades reais se o aluno
perder de vista a palavra como um todo. É mais fácil decidir que
som o R tem descobrindo que palavra está escrita do que ficar
lembrando todas as regras associadas a essa letra. Algumas
idéias, porém, ajudam bastante, mesmo quando não são muito
elaboradas.
No contexto intervocálico, a escrita distingue a vibrante simples
da múltipla, escrevendo um R no primeiro caso e dois RR no
segundo. O dígrafo só será usado para fazer a distinção exigida
nesse contexto.
Em início de palavras, a escrita usa apenas um R e nunca dois, e
o som será sempre de uma vibrante múltipla. Nos demais
contextos, sabemos com segurança que haverá sempre uma
vibrante simples se o R vier entre uma consoante e uma vogal,
no meio de sílaba, Sabe-se, ainda, com segurança, que se o R
vier depois de uma consoante N ou S, no meio de palavra, terá o
som de uma vibrante múltipla. Em final de sílaba, pode ter o som
de uma vibrante múltipla ou simples, dependendo do dialeto.
A maior dificuldade está na especificação do valor fonético de
uma vibrante múltipla. Como vimos, dependendo do dialeto,
tem-se um som diferente, sem contar a dificuldade de ser surdo
ou sonoro, conforme o modo como cada falante pronuncia certas
palavras.
Essa dificuldade não é do falante, obviamente, mas depende de
como o professor irá tratar a questão. O melhor é estar atento às
diferentes maneiras de falar dos alunos e ajudá-los a ir direto ao
reconhecimento da palavra — falada ou escrita — sem discutir
muito as variações de pronúncia.
A complexidade apontada acima explica por que alguns alunos
têm tanta dificuldade com a letra R na escrita. Os professores
não se dão conta de que os alunos falam de muitas maneiras
diferentes, mas devem usar apenas a letra R. No começo, como
ainda não chegaram a essa conclusão, os alunos têm sérias
dúvidas para escrever certas diferenças fonéticas que eles
reconhecem na própria fala, mas que não correspondem aos
sons que o professor costuma ensinar como representados pela
letra R. Por isso, é bom discutir o assunto na sua amplitude com
os alunos; assim eles já irão desconfiar que aqueles vários sons
fonéticos, vindos de diferentes dialetos, são todos escritos com R
ou RR.
381
Para um aluno que fala uma fricativa glotal surda (como no
dialeto mineiro) correspondente à vibrante múltipla (como no
dialeto carioca), a ocorrência de R em final de sílaba pode soar
como uma vogal sussurrada, igual à vogal precedente, isto é,
como uma vogal "longa", ou seja, um som único. É por essa
razão que aparecem formas na escrita desses alunos coisas
como:
MECADIO ("mercadinho"), POTA ("porta"), CADENO
("caderno"), etc. Em outras palavras, o aluno escreve E sem R
em MERCADINHO porque pronuncia "mehkadïu" e a seqüência
"eh", como ensinam os foneticistas, é uma forma diferente de
escrever "ê sonoro" + "ê surdo", já que o som aspirado é sempre
uma vogal surda.
Outra dificuldade advém do próprio fato de a criança ter de
soletrar às vezes para analisar os sons da fala e procurar as
letras correspondentes para escrever. Nesse caso, quando
encontra grupos consonantais como BR, PR, GR, etc., em que há
mais de um som consonantal numa única sílaba, o aluno começa
a identificar cada um através dos movimentos articulatórios e vai
atribuindo a cada uma dessas articulações uma sílaba à parte.
Depois, esquece-se do todo e acaba escrevendo coisas como:
PARATO (PRATO), AGARADECE (AGRADECE), ou ainda ATALAS
(ATLAS), PICICOLOGIA (PSICOLOGIA) e assim por diante.
Como em muitos outros casos, o mais importante não é chamar a
atenção para os erros e tentar corrigi-los a cada vez que
aparecem, mas explicar o que for necessário e possível e indicar
a ortografia como mestra para escrever corretamente as
palavras. Muitas formas de escrita serão aprendidas depois de
muita leitura e escrita, de pouco adiantando a precipitação na
aprendizagem. Vale lembrar mais uma vez o que já se discutiu
antes: não é porque se deu uma explicação uma vez, que o aluno
automaticamente aprende. E também é verdade que não é
porque não se explicou, que o aluno não irá aprender. Equilibrar
o ensino e a aprendizagem é o que compete ao professor.
ESTUDO DA LETRA S
A letra S tem o nome de ESSE e o som básico representado por
ela encontra-se entre o "é" e o "i" de seu nome.
Assim como existe uma letra R e um dígrafo, o RR, há uma letra
5 e um dígrafo SS. Do mesmo modo que as letras R e RR, as
letras 5 e SS são usadas no contexto intervocálico para distinguir
sons diferentes: a letra S representa o som de "zê" e as letras SS
representam o som de "çê", como se pode observar nos
seguintes pares mínimos: ASA/ASSA, POSA/POSSA; ou ainda os
exemplos: USO, MESA, ROSA, VASO, INGLESA/ESSA, OSSO,
ISSO, POSSÍVEL. O dígrafo SS só aparece entre duas vogais; a
letra 5, nos demais casos.
Em início de palavra, a letra 5 tem sempre o som de "çê" e pode
ocorrer diante de qualquer vogal, como em SACOLA, SOCO,
SUCO, SINO, SEMANA, etc. Em final de sílaba, a letra S tem o
som de "çê" ou de "chê", dependendo do dialeto. No dialeto
carioca (e em alguns outros) ocorre o som de "chê". Exemplos:
BASTA ("bachta"), ATRÁS ("atraich"), NÓS ("nóich"). Nos
demais dialetos, ocorre o som de "çê". Exemplos: BASTA
("basta"), ATRÁS ("atrais"), NÓS ("nóis").
Ocorre também com a letra S o fenômeno da juntura
intervocabular. Quando uma palavra termina em 5 e a que vem
imediatamente depois começa com vogal, a letra 5 tem o som de
"zê" e se desloca para o início da palavra seguinte, como se vê
nos exemplos a seguir: CASAS AMARELAS ("ka-za-za-ma-ré-
las"), OS HOMENS ("u-zó-mêis"). Isso vale para todos os
dialetos.
Quando a letra 5 vem depois de consoante, no meio de palavra,
tem o valor fonético
de "çê", como em PSICOLOGIA ("pçikolojia" ou "piçikolojia"),
ABSOLUTO ("abçolutu" ou "abiçolutu").
382
No meio de palavra, quando a letra S (em final de sílaba)
antecede uma consoante sonora (B, D, G, L, M, R), tem o som de
"zê". Diante de consoante surda, tem o som de "çê". Então, há
nesses casos uma concordância, com relação à sonoridade — que
os lingüistas chamam de assimilação do traço de sonoridade.
Veja os exemplos: ESBANJAR ("izbãjar"), DESDE ("dezdi"),
DESGRAÇA ("dizgraça"), DESLIGAR ("dizligar"), MESMO
("mezmu"), ISRAEL ("izrraéu"); ou DESTE ("deçti" ou
"dechtchi"), CASCO ("kaçku"), CASPA ("kaçpa"), etc.
Algumas letras, como S e R, correspondem a muitos sons
diferentes na fala. Isso atrapalha o aluno na hora de escrever.
Saber que há várias possibilidades de escrita não resolve suas
dúvidas ortográficas. Apesar disso, saber que há várias
possibilidades de escolha de letras para esses sons ajuda o aluno
a ter dúvidas ortográficas, o que é fundamental para o
desenvolvi mento da habilidade de escrever.
O som de "çê" também pode ser representado pelas seguintes
letras: Ç, X, SC, SÇ, XC, XÇ. Por outro lado, para confundir mais
as coisas, o aluno depara-se com o fato de a letra 5 ter outros
sons além de "çê", como "zê" e "chê". O 5 pode ainda formar
ditongo com uma vogal que venha imediatamente antes ou
acrescentar um "i" diante de uma consoante que venha depois.
Confira os seguintes exemplos: SAPO, ASSO, AÇO, RAPAZ,
ATRÁS, TRAZ, PROXIMO, NASCER ("naiççêr"), CRESÇO, EXCEÇÃO
("eiççeçãu"), ou ainda em certos dialetos, como o carioca: CESTA
ou SEXTA ("çêchta"), RAPAZ ("rrapaich"), CHUVA ("chuva"),
DESDE ("dejdji"), HOJE ("ôji"), etc.
Para quem sabe como se grafa essas palavras, parece fácil e
simples, mas se alguém tiver de observar a própria fala para
estabelecer as relações possíveis entre sons e letras envolvendo
os casos apresentados acima, fica muito difícil saber qual será a
ortografia da palavra e como se lêem essas letras.
Somando esses dois tipos de informação, os alunos têm diante
de si um problema bastante complexo. Juntando as letras que
estão de um certo modo relacionadas, como vimos, temos:
S, SS, Ç, X, SC, SÇ, XC, XÇ, Z, CH, J e G. Mostrar a complexidade
do problema aos alunos de verá servir para chamar a atenção
para o fato e alertá-los a ter dúvidas ortográficas e a resolve-las
perguntando a quem sabe ou consultando um dicionário.
Na fala de muitos dialetos diferentes da norma culta, nem todos
os elementos fazem a concordância nominal com a marca do
plural. Essa marca aparece apenas no artigo (ou na primeira
palavra que aparecer no sintagma). Esses falantes nem sequer
têm na fala uma dica para poder escrever o S de plural que a
ortografia exige. Exemplos: OS HOMEM ALTO FICA AQUI (OS
HOMENS ALTOS FICAM AQUI), AQUELAS MENINA NUM CHEGÔ
AINDA (AQUE LAS MENINAS NÃO CHEGARAM AINDA).
Como dissemos, a melhor atitude do professor diante de
dificuldades tão grandes como essa é dar tempo ao tempo, ir
ensinando aos poucos e deixar os alunos aprenderem por si
quando estiverem lendo e escrevendo bastante. Na maioria das
vezes, as explicações impressionam os alunos, mas eles não
conseguem operar com essas informações de imediato. Então, o
melhor conselho é mostrar que, através da ortografia, esses
problemas se resolverão com relativa facilidade.
ESTUDO DA LETRA T
A letra T tem o nome de tê, e o som inicial de seu nome,
seguindo o princípio acrofôníco, representa o valor fonético
básico da letra.
A letra T é semelhante à letra D, .só que uma é surda (1) e outra
é sonora (D). Em muitos dialetos, diante da vogal "i" (na fala), a
letra T temo som de "tchê", permanecendo com o som de "tê"
nos demais casos. Na grafia das palavras, o som "i" vem escrito
com a letra 1 ou E.
383
O último caso ocorre sempre em sílaba átona. Às vezes, o som
"i" não aparece na escrita, mas ocorrem duas consoantes em
fronteira interna de sílaba. Por exemplo: TIA ("tchia"), POTE
("pótchi"), ÓTIMO ("ótchimu"), RITMO ("rritchimu"); porém:
TATU ("tatu"), TESTA ("téchta" ou "téçta"), TERRÍVEL
("terríveu").
Em alguns dialetos, sobretudo do Sul do país, nunca se fala
"tchê", mas apenas "tê", mesmo diante de "i": TIA ("tia"), POTE
("póti"), etc. Em alguns dialetos do Nordeste, ocorre o som de
"tchê", não antes de "i", mas depois dessa vogal, como se pode
notar nos seguintes exemplos: MUITO ("míhtchu"), LEITE
("leitchi"), MITO ("mitchu"); porém: TIA ("tia POTE ("póti").
Algo semelhante ocorre com D: DOIDO ("doidju"), FERIDO
("feridju").
Há dialetos do Brasil central que usam o som de "tchê" em
contextos de palavras nos quais outros dialetos têm o som de
"chê", como, por exemplo, em: CHUVA ("tchuva"), XAROPE
("tcharópi"), FECHAR ("fetchar"), etc. Aqui também ocorre algo
semelhante com "jê": GELO ("djelu"), JOVEM ("djóvêi").
Como se disse em relação à letra D, apesar das variações
encontradas, a letra T também não causa grandes dificuldades,
nem para decifração na leitura, nem para a escrita. Às vezes,
alguns alunos fazem confusão entre o T e o D, na escrita.
Escrevem T em vez de D. A causa mais comum desse erro está no
fato de os alunos sussurrarem as palavras ao escrever. Fazendo
isso, a sonoridade do D perde-se, e o resultado fonético é um
som mais parecido com T do que com D. É o caso do aluno que
escreve: TOTO MUNTO (TODO O MUNDO), ELE POTEÍ (ELE PODE
IR), etc. Esses erros corrigem-se à medida que os alunos forem
fazendo mais e mais leitura e produzindo textos escritos,
preocupados com a ortografia.
ESTUDO DA LETRA U
A letra U tem o nome de U, e em seu nome está o som básico que
a letra representa.
Como acontece com todas as letras que representam vogais,
como o alfabeto dispõe apenas de cinco caracteres (A, E, 1, O,
U), todos os sons vocálicos da fala deverão estar basicamente
representados por essas cinco letras na escrita e vice-versa.
Exemplos de palavras com a letra U representando o som de "u":
TU ("tu"), SUJO ("çuju"), CÉU ("çéu").
Quando ocorre diante da letra M ou N que, por sua vez, ocorre
imediatamente antes de uma consoante, a letra U representa
uma vogal nasalizada "u", como se pode observar em:
JUNTO ( "jútu"), CHUMBO ("chúbu"), UM ("iirj"), FUNÇÃO
("f€íçãu"). Se depois da letra M ou N ocorrer uma vogal, a letra U
pode ter um som nasalizado ou não, como nos seguintes
exemplos: ÚMIDO ("timidu" ou "umidu"), UNIDO ("tinidu" ou
"unidu").
Porém, se a letra U estiver diante de NH, pode-se ter o som oral
ou nasalizado de "u" ou
de "ui", como em: UNHA ("ünha", "unha", "flinha" ou "uinha"),
PUNHO ("p "punhu", "püinhu" ou "puinhu").
Quando ocorre OU na escrita, pode-se ter uma pronúncia do
ditongo "ou" ou uma pronúncia monotongada de apenas "ô",
como nos exemplos a seguir: TOURO ("touru" ou "tôru"), POUCO
("pouku" ou "pôku"), etc. Entretanto, quando se parte da fala,
nem todo som de "ô" será escrito com OU, podendo ficar apenas
com a grafia de O, como se vê nas seguintes palavras: BOA
("bôa"), PROFESSORA ("profeçôra"), etc. Como os alunos
acabam inevitavelmente comparando com palavras como
VASSOURA ("vaçôra"), VOU ("vô"), etc., não raramente acabam
escrevendo também PROFESSOURA, BOUA, SOURO (SORO),
CHOURO (CHORO), etc. Na verdade, na fala atual, há muita
variação entre "ô" e "ou", em um número muito grande de
palavras, o que vem a confundir ainda mais na hora de escrever.
384
Em muitas palavras (não em todas) a letra U que acompanha a
letra Q não é pronunciada quando precede a letra E ou 1. Veja os
casos: QUERO ("kéru"), QUILO ("kilu"), LIQUIDO ("likido");
porém: FREQÜENTE ("frekuênti"), EQÜINO ("ekuinu"), etc.
Quando se escreve partindo da observação da fala, há outra
dificuldade grande. Trata-se de saber se o som de "u" será
escrito com a letra U ou com a letra L. Aqui, somente a ortografia
pode dizer qual letra deverá ser usada, uma vez que a pura
observação da fala não leva a nenhuma conclusão. Compare os
seguintes exemplos e veja a dificuldade que eles apresen tam:
"çuu" SUL, "uutchimu" ULTIMO, "autu" ALTO ou AUTO, "çau"
SAL, "çaudadji" SAUDA DE, "papéu" PAPEL, "chapéu" CHAPÉU,
"méu" MEL, "çéu" CEU, e assim por diante.
Há ainda a dificuldade oriunda da maneira como algumas
palavras são pronunciadas em certos dialetos, sobretudo em
dialetos estigmatizados pela sociedade (diferentes da norma
culta). É o caso do aluno que fala "tudu miidu" e tem de escrever
TODO O MUNDO. Enquanto o aluno não avançar um pouco nos
estudos, nem vale a pena ficar insistindo na correção de erros
como esse. O aluno precisa, no começo, ter a chance de escrever
e ler com certa liber dade e tranqüilidade e não ficar apavorado
desde o começo, com uma enorme quantidade de erros que o
professor faz questão de corrigir. No final do ano, mesmo sem
ter se preocupado muito com certos erros que os alunos
cometiam, o professor irá constatar que eles aprenderam
bastante, com certeza mais do que parecia. Quando os processos
de leitura e escrita se aceleram, muitos erros desaparecem.
ESTUDO DA LETRA V
A letra t tem o nome de vê e seu som basico e encontrado no
inicio de seu nome Exemplos
VACA ("vaka"), VELHO ("vélhu"), AVULSO ("avuuçu"), VIZINHO
("viztnhu").
A letra V não apresenta dificuldades de decifração. Alguns
alunos, porém, sentem dificuldade em decifrar grupos
consonantais formados por uma consoante seguida de L ou R.
Tendem a intercalar o som de uma vogal "ê", ou da vogal que
ocorre depois do L ou do R, como se estivessem silabando o bá-
bé-bi-bó-bu para ler. Por exemplo, dizem "li-vê-rô" ou "li-vô-rô"
para LIVRO Obviamente, esses procedimentos revelam bem o
tipo de ensino a que são submetidos.
É sempre importante lembrar aos alunos que decifrar letras é
apenas o começo do trabalho de leitura. Depois de reconhecer as
letras e de atribuir a elas um valor fonético, o aluno precisa
necessariamente descobrir que palavra está escrita (juntando os
sons até chegar ao significado) Uma vez descoberta uma
palavra (possível, pelo menos) ele devera pronuncia la como se
falasse espontaneamente. Nesse momento, percebe-se
claramente que algo como "li-vô-rô" é artificial e não ocorre na
fala, uma vez que a pronúncia comum dessa palavra é "livru".
Dentro das dificuldades já comentadas várias vezes
anteriormente, a confusão que alguns alunos podem fazer ao
escrever, observando a própria fala, pode levá-los a trocar a
escrita de V por F, produzindo formas gráficas como FELA
(VELA), FELHO (VELHO), FERDE (VERDE), etc. Mais uma vez, é
preciso lembrar que essas "trocas de letras" serão corrigidas
através da ortografia e não de exercícios de percepção de
sonoridade.
ESTUDO DA LETRA W
A letra W tem o nome de dáblio e representa o som "u" ou o som
"vê", dependendo da palavra em que ocorre. Em Portugal,
essa letra tem o nome de duplo vê. Exemplos: WILSON
("uiuçõu'i), WILMA ("viuma"), WC ('dabliu-çê'), etc.
385
ESTUDO DA LETRA X
A letra X tem o nome de xis e o som inicial thê" de seu nome
mostra o valor fonético básico dessa letra. Esse é o valor da letra
X em início de palavra, como em: XAROPE ("charópi'), XÍCARA (
XERETA ("cheréta'9, XUCRO ("chukru").
A letra X pode ocorrer também no meio de palavra, depois de N.
Nesse caso, também tem o valor fonético de "chê", como em
ENXADA ("ichada"), ENXERGAR ("ichergar"), ENXAME
("ichãmi"), etc.
Quando a letra X está no final de uma sílaba e precede uma
consoante no início da sílaba seguinte, tem o som de "çê" ou
"zê", dependendo de a consoante ser surda ou sonora. Em
alguns dialetos (por exemplo, o carioca), o som correspondente,
que ocorre nesse contexto, é "chê" ou ' Veja os exemplos: EXTRA
("éçtra" ou "échtra"), SEXTA ("çeçta" ou "çechta"), EX-
DIRETOR ("eizdiretor" ou "eijdjiretorr"). Note que praticamente
não há palavras com o X di ante de consoante sonora (exceto
diante de N), a não ser quando se tem o sufixo -EX.
Quando o X se encontra diante de uma consoante que representa
o som de "çê" (como XC, XÇ, XS), ocorre uma assimilação,
ficando apenas uma ocorrência do som "ç", como se consta ta
em: EXCETO ("eçétu"), NASÇA ("naça"), EXCELENTE
("eçelêfiti"), EXSURGIR ("eçurjir"), etc.
Quando a letra X aparece no fmal de palavra, tem o som de "ks"
ou "kis". A primeira ocorrên cia é considerada mais formal e a
segunda, maiS informal. Exemplos: TÓRAX ("tórakç" ou
"tórakiç"), XEROX ("cherókç" ou "cherókiç"), SÍLEX ("çilékç" ou
"çilékiç"). Em alguns diale tos, como no carioca, em vez do som
final "ç" ocorre o som "ch": TÓRAX ("tórakch" ou "tórakich").
Na posição intervocálica, a letra X apresenta várias
possibilidades de representação fonéti ca, podendo ter os
seguintes sons: "çê", "chê", "zê", "kç" (ou "kiç", "kch" e "kich").
Exemplos:
PRÓXIMO ("próçimu"), AUXÍLIO ("auçíliu"), LIXO ("lichu"),
BAIXO ("baichu"), EXAME ("izámi"), EXIGIR ("izijir"), FIXO
("fikçu"), TÁXI ("tákçi") e assim por diante.
Quando se parte da fala para a escrita, palavras como as
mostradas acima não permitem ao aluno saber se serão escritas
com a letra X ou com outra letra possível. Compare os seguintes
exemplos: ENXAII)A/INCHADA, SEXTA/CESTA. O aluno
prncipiante tem ainda uma dificuldade a mais, se for falante de
um dialeto no qual ocorre o som de "chê" que precisa ser escrito
com S e não com X (ou C como acontece em palavras tais como:
"rapaich" RAPAZ, "néchta" NESTA, etc.
ESTUDO DA LETRA Y
A letra Y tem o nome de ípsiion e representa sempre o som de "i'
Exemplos: YARA ("iara'9,
ESTUDO DA LETRA Z
H;rnmsse
Sempre que a letra Z ocorrerem início de sílaba, terá o som de
"zê". Exemplos: ZEBRA ("ze bra"), ZERO ("zéru"), ZANGADO
("zãgadu"), ZOMBARIA ("zõubaria?'), ZUMBIDO ("zümbidu").
386
Note que, quando o som de "zê" ocorre em início de palavra, só
pode ser escrito com a letra Z (nunca com S).
Quando uma palavra recebe um sufixo -IZAR ou -EZA, a escrita
será com Z e não 5. É por isso que se escreve INFERNIZAR,
BELEZA, RIQUEZA, etc. Note que há diferença entre
StCO o sufixo ..EZA, que se acrescenta a uma palavra para
formar um substantivo abstrato a partir de um adjetivo, caso de
BELO/BELEZA, RICO/RIQUEZA, e palavras que terminam com o
som de "êza", mas receberam apenas um A do feminino, como
INGLES/INGLESA, MARQUÊS/MARQUESA, FREGUÊS/FREGUESA.
Regrinhas como essas, os alunos podem ir
tem aprendendo desde a alfabetização.
XAME Quando a letra Z ocorre no final de palavra, tem o som de
"çê" (ou "chê", conforme o dialeto). Veja, por exemplo: PAZ
("paiç" ou "paich"), FEZ ("feiç" ou "feich"), LUZ ("luiç" ou
k sílaba "luich"), etc. Se a palavra que termina com a letra Z,
na fala contínua, vier antes de outra que
1I começa com vogal, ocorre o fenômeno da juntura
intervocabular. Isso acontece em todos
itexto, os dialetos. Veja os exemplos: LUZ AMARELA ("lu-za-
ma-ré-la"), FEZ A LIÇÃO ("fei-za-li-çãu").
EX- Para quem parte da observação dos sons da fala para a
escrita ortográfica, a dificuldade da
, X di- letra Z acontece em palavras que têm o som de "zê"
ou de "chê", mas que poderiam ser escritas
com S ou X intervocálicos ou com 5 em posição final de palavra,
como mostram os
XC exemplos: BELEZA, INGLESA, EXAME, RAPAZ, AZAR, ASA,
etc. Porém, em início de palavra, ocor
onsta rerá somente a letra Z, como já se disse acima. Além disso,
ainda no meio de palavra, só ocorre
r) etc. a letra S com o som de "zê" quando ele ocupa o final
de sílaba, e a sílaba seguinte começa por
consoante sonora como em: MESMO ("mezmu"), VISGO
("vizgu"), DESDE ("dezdi"), etc.
orren Lórakç"
is diale
Jdch"). AS LETRAS K, W E Y
fQnéti mplos: Essas letras só são usadas em palavras
estrangeiras, em siglas, abreviaturas, em nomes pró- EXAME
prios e para representar cálculos lógicos e matemáticos. As
palavras comuns da língua portu guesa não as empregam. Como,
porém, elas aparecem em alguns casos, o professor de alfabe em
ao tização deve levá-las em consideração e ensiná-las aos
alunos. Elas estão nos dicionários e, uirtes portanto, também
fazem parte do nosso alfabeto, embora tenham um uso muito
reduzido. ddade a Exemplos de palavras em que se encontram
essas letras: KAREN, KARINA, km, kg, kHz, Senao WILSON,
WILMA, WC, YARA, YVONE, YAMAHA. , etc.
ORTOGRAFIA DE NOMES PRÓPRIOS E
DE PALAVRAS ESTRANGEIRAS
É bom lembrar que os nomes próprios não têm uma forma
gráfica estabelecida pela orto grafia oficial, a não ser quando
usados como um apelativo comum. A ortografia dos nomes
próprios das pessoas é dada pelo documento de registro de
nascimento, conforme consta do cartório. Essa forma ortográfica
deve ser usada em documentos. Fora disso, se a pessoa tem seu
nome escrito de maneira diferente da fixada pela ortografia de
uso comum, pode escrevê lo seguindo as normas ortográficas.
Assim, alguém assinará em documentos o próprio nome como:
LUIZ, THEREZA, DORACY, KARMEN, JOACHIN, MANOEL, NErFO,
VICTOR, mas pode rá escrever, em outros casos, seguindo a
forma ortográfica geral dos apelativos, ficando portanto: LUIS,
TERESA, DORACI, CARMEM, JOAQUIM, MANUEL, NETO, VÍTOR.
O uso de nomes e até de palavras estrangeiras costuma trazer
novidades para o sistema de («ze- escrita, surgindo novas
relações entre letras e sons. Por exemplo, a letra H passou a ter
tam bidu"). bém o som de RR em nomes como HONDA, YAMAHA,
HOBBY.
387
1
Em geral quando uma palavra estrangeira passa a integrar o
sistema acaba recebendo uma forma de escrita à moda das
palavras vernáculas. Por exemplo, a palavra hobby ficaria com a
forma ortográfica ROBE (ou talvez RÓBI), assim como club ficou
CLUBE, abat-jour ficou ABAJUR, New York ficou NOVA IORQUE,
etc. Veja, ainda, o caso da palavra PIZZA que conti nua com sua
pronúncia italiana "pítça", embora, em português, seja estranho
o som "tçê", e mais estranho ainda atribuir esse som ao dígrafo
ZZ. Outra palavra italiana de uso muito co mum foi
aportuguesada: TCHAU (do italiano ciao), acompanhando o nome
de um país que se escreve REPÚBLICA TCHECA. O conjunto de
letras TCH forma um trígrafo.
Outras vezes, surgem palavras com sons em certos contextos em
que normalmente não ocorrem. Por exemplo, em início de
palavra não ocorrem os sons "lhê" e "nhê" (exceto na palavra
LHE e na forma abreviada de senhor: NHÔ), que aparecem em
palavras de origem estrangeira, como LHAMA e NHOQUE (que
alguns escrevem INHOQUE ou ENHOQUE). Ou tro exemplo desse
fenômeno pode ser visto no nome VLADIMIR, em que aparece a
seqüência de V + L, que é possível no sistema da língua
portuguesa, mas não tinha nenhum exemplo.
388
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396
ÍNDICE DE TÓPICOS POR CAPÍTULO
1. História da alfabetizaçdo
A leitura e a escrita na Antiguidade 13
O aparecimento das cartilhas 19
Cartilhas da língua portuguesa 22
As cartilhas e a alfabetização 26
A cartilha dá ênfase à escrita 26
O manual do professor 27
O período preparatório 28
Alfabetização hoje 31
Alfabetização e escola 32
2 O ensino e a aprendizagenL os dois métodos
O que é ensinar, o que é aprender 36
O professor como educador 38
Dois métodos 40
Duas concepções de linguagem 41
O método 1 — voltado para o ensino 42
A situação inicial 42
A técnica 43
A base: o já dominado 45
O uso da memória 46
A hierarquia: do fácil ao dificil 46
Controle rígido e avaliação 49
A fixação da aprendizagem 50
O que fazer com o erro 50
Aprender pelos efeitos 51
Um bom método de adestramento 51
O método 2 — voltado para a aprendizagem 52
A base: a reflexão na aprendizagem 52
A situação inicial 52
A técnica: explicações adequadas 54
O professor como mediador 55
O que fazer com o erro 55
A concepção de aprendizagem 56
Avaliação: tudo serve 57
Caos e caminhos tortos 58
Como fixar a aprendizagem 59
Os dois métodos na alfabetização 59
3. Avaliaçâ promoç planejamento
Notas e conceitos 62
Promoção automática 65
Avaliação e rendimento escolar 65
Qualidade de ensino e motivação 66
Avaliação e castigo escolar 67
O valor dos cálculos na avaliação 68
Avaliação sem nota 69
O trabalho substitui a nota 70
Auto-avaliação e autocorreção 70
O aluno na série seguinte 71
O círculo vicioso de quem não aprende 72
Uma nova visão da avaliação e da promoção 72
O planejamento escolar 74
Avaliação na alfabetização 76
A lição de casa 77
4 O método das cartilhas
A cartilha na escola e na vida 80
A cartilha e a fala 83
A variação lingüística 83
O idioleto do professor 83
A silabação 85
Observando a fala para escrever 85
Confusão entre fala e escrita 86
A cartilha e a escrita 87
A escrita prevalece sobre a fala 87
A palavra 88
Muitos alfabetos 89
A escrita cursiva 89
Equívocos a partir da escrita cursiva 91
Escrita sem sistema 91
Cópias e ditados 92
O que falta no estudo da escrita 92
A cartilha e a leitura 94
Como a cartilha ensina a ler 94
A interpretação de textos segundo a cartilha 95
Outros problemas das cartilhas 96 -
Aprender em ordem 96
O entulho gramatical 96
Metáfora e fantasia 97
Remanejamento para evitar problemas 98
O erro não tem vez 98
O fascínio pelo já pronto 99
Substitutos das cartilhas 99
A cartilha e os professores 101
5. Panorama do processo de alfabetizaØro
Valorizar o que é prioritário 104
Os alunos são falantes nativos 105
A idade para se alfabetizar 106
Querer ser alfabetizado 107
Um método sem métodos 108
Em quanto tempo se alfabetiza? 109
Quem comanda é o professor 111
Remanejamentos são aviltantes 111
Condições materiais 112
Leitura e escrita 113
A reprodução de modelos 114
A descoberta do mundo da escrita 115
6 A dec(fraçJo da escrita
Regras para a decifração da escrita 120
1. Conhecer a língua na qual foram escritas as
palavras 120
2. Conhecer o sistema de escrita 121
3. Conhecer o alfabeto 121
4. Conhecer as letras 121
5. Conhecer a categorização gráfica das letras
121
6. Conhecer a categorização funcional das le tras 122
7. Conhecer a ortografia 123
8. Conhecer o princípio acrofônico 124
9. Conhecer os nomes das letras 125
10. Conhecer as relações entre letras e sons (prin cípios de
leitura) 125
11. Conhecer as relações entre sons e letras (prin cípios de
escrita) 126
12. Conhecer a ordem das letras na escrita 126
13. Conhecer a linearidade da fala e da escrita 127
397
14. Reconhecer uma palavra 128
15. Nem tudo o que se escreve são letras 128
16. Nem tudo que aparece na fala tem represen tação gráfica na
escrita 128
17. O alfabeto não é usado para fazer transcrições fonéticas 129
A competência técnica do professor 130 A autonomia do
professor 131
7 Procedimentos para o estudo das letras
1. Fornecer as explicações básicas ao aluno 134
2. Explicar o que é uma letra 135
3. Explicar como segmentar a fala em palavras
136
4. Explicar como descobrir as regras de decifra ção 137
Juntando e generalizando 138
O que é mais fácil de decifrar 139
O que é mais difícil de decifrar 142
O que é mais fácil de escrever 147
O que é mais difícil de escrever 151
A difícil arte de ler e de escrever 155
A ação do professor 157
Aprendendo a estudar 160
& Sugestões de atividades na alfabetiza çdo
O trabalho com a leitura 164
Primeiras leiturâs 164
Inventando um código 165
A palavra como unidade dc escrita 167
Letras e sons 167
O alfabeto 170
Primeiros problemas com a decifração 172
Pares mínimos 173
Rimas 173
Categorização gráfica das letras 174
Primeiras leituras de textos 174
Interpretar ou discutir o que leu 175
O que ler 175
O trabalho com a escrita 176
Primeiras descobertas sobre a escrita 176
Descobrindo que a escrita representa a fala 177
Sistema ideográfico e fonográfico 177
Contar a história da escrita 178
Traçar as letras com gabaritos 179
Localização da escrita no espaço 180
Copiar para aprender 181
Escrita espelhada 181
Explicar o que é ortografia 182
Texto não é só ortografia 183
A correção da escrita 184
Diacríticos, marcas e arte na escrita 185
Letras cursivas 185
Caligrafia 186
Layout e pontuação 187
As primeiras escritas da criança 189
Aprender fazendo 190
Entendendo como se fala 191
Os alunos são falantes nativos 191
A variação lingüística 191
O dialeto padrão na escola 192
Falar sobre corno se fala 193
A aquisição da linguagem oral 193
Linguagem e lógica 195
A discriminação pela linguagem 195 Sobre o trabalho alternativo
196
9. A produçdo de textos espontdneos
Um texto não é um amontoado de palavras 198
Textos ou palavras isoladas? 200
Textos orais e escritos 201
O texto na vida e na escola 202
O professor e o texto do aluno 204
O planejamento dos textos 206
A produção de textos na alfabetização 209
A correção de textos 210
Textos significativos para os alunos 212
A cartilha e a produção de textos 214
A opção pelos textos espontâneos 217
Exemplos de textos de cartilhas e Outros 219
Textos espontâneos de crianças 225
Questões perturbadoras 237
Julgar pelos erros e pelos acertos 238
10. As hipóteses por trés dos erros
O homem é um animal racional 242
A criança e a racionalidade 243
Conhecer os alunos 244
Explicações para os erros 245
A reflexão do aluno na escola 247
O método, o professor, o aluno e a escola 248
O certo, o errado e o diferente 251
Patologiàs da fala 253
O erro e a reflexão do aluno 257
Problemas de aprendizagem de leitura e escrita 257
Os testes revelam o que as crianças pensam da
escrita? 258
1. interpretação semântica da palavra 258
2. a figura como interpretador de texto es crito 259
3. adivinhando palavras na leitura 260
4. quantas letras formam uma palavra? 261
5. identificação de palavras 261
6. inventando palavras onde elas não existem 262
Outras formas de descobrir o que as crianças acham da escrita
262
7. cachorro começa com FU 262
8. aprendendo sozinho por níveis ou por incorporação de
ensinamentos? 264
9. explicitação da decifração na leitura 267
10. leitura silenciosa acompanhada de articulações 269
11. velocidade de leitura 270
Problemas de escrita oriundos de dificuldades com as letras 270
1. escrever é fazer uma forma gráfica para ser lida 271
2. assinatura e escrita 271
3. letras em vez de rabiscos 272
4. a forma gráfica das letras 272
5. escrita espelhada 273
6. segmentação 274
7. a letra representa o som de seu próprio nome
274
8. escrevendo só vogais ou consoantes 275
9. o bá-bé-bi-bó-bu nos ditados 275
398
10. formas morfológicas diferentes 276
11. resultados pela metade 276
12. escrevendo foneticamente 277
13. troca de letras 277
14. hipercorreção 278
15. surdas ou sonoras? 278
16. um pouco por vez 279
17. mistura de informações 280
18. só o esforço não adianta
<399>
19. erros não corrigidos 280
20. medo de escrever 281
21. letras maiúsculas 281
22. sinais de pontuação 281
23. letra feia 281
Erros na estruturação dos textos 282
1. variação lingüística 282
2. uso de pronomes 282
3. sintaxe 283
4. repetição 283
5. frases soltas — coerência 284
6. coesão 285
7. caligrafia 285
11. Ditado e cópia
Uma estratégia lingüística chamada ditado 288
Tipos de ditado 289
Ditados para acertar a ortografia 290
Ditados no dia-a-dia 291
Ditado mudo 292
Anotações 292
Ditado e ortografia 293
Ditado e transcrição fonética 294
Ditado e avaliação 295
O ditado e o método das cartilhas 295
Conseqüências dos ditados na alfabetização 297
Quando e como fazer ditados 298
Cópia 299
A cópia na Antiguidade 299
Cópia e aprendizagem do Sistema de escrita 300
A cópia e a descoberta do mundo da escrita 301
Colecionando letras e palavras 302
Copiar não é apenas repetir um modelo 303
Copiar para memorizar 304
A cópia como punição 305
A cópia interpretativa com transliteração 305
Reescrevendo com cópia 307
Interpretação de texto através de cópia 308
A cópia como forma de colecionar informações
308
12 Leitura e interpretação texto
Leitura 312
Ler é decifrar e buscar informações 312
Além da decifração 312
Leitura e planejamento lingüístico 314
O leitor interfere no literal do texto 316
Leitura silenciosa e em voz alta 318
Decorar antes de ler 319
Preparar a leitura 320
Tipos de leitura 320
A leitura e o mundo 322
Dificuldades na aprendizagem da leitura 323
O ensino da leitura 324
Interpretação de texto 325
Três práticas escolares tradicionais 325
Ideografia e leitura 325
A exegese em textos literários 327
Interpretação de base filosófica 328
Questionário para interpretação de texto 328
Análise do discurso 329
Os pretextos da interpretação de texto 329
Lingüística e interpretação de texto 330
É preciso interpretar um texto? 331
Entender o texto no seu contexto 332
O. princípio da literalidade 333
Interpretação de texto e estudo escolar 334
Vaie a pena fazer interpretação de texto? 336
Interpretar um texto ou debater uma idéia? 338
Atividades alternativas à interpretação de texto 338
Os textos da interpretação de texto 339
13. Ortografia da língua portuguesa
Breve história da ortografia da língua portuguesa 342
A influência do sistema latino 342
Documentos antigos 343
Tentativas de reforma e unificação 345
Primeira unificação das ortografias 345
Primeira reforma ortográfica oficial no Bra sil 345
As reformas da reforma ortográfica 346
Reforma ortográfica e alfabetização 348
Ortografia e escola 349
Idéias erradas a respeito da ortografia 353
A dúvida ortográfica 355
Apêndice — A categorização gráfica das letras
Estudo da letra A 359
Estudo da letra B 363
Estudo da letra C 363
Os sons da fala representados pela letra C 365
Estudo da letra Ç 368
Estudo da letra D 369
Estudo da letra E 369
Estudo da letra F 371
Estudo da letra G 371
Estudo da letra H 372
Estudo da letra 1 373
Estudo da letra J 374
Estudo da letra K 374
Estudo da letra L 375
Estudo da letra M 376
Estudo da letra N 377
Estudo da letra O 378
Estudo da letra P 379
Estudo da letra Q 379
Estudo da letra R 380
Estudo da letra S 382
Estudo da letra T 383
Estudo da letra U 384
Estudo da letra V 385
Estudo da letra W 385
Estudo da letra X 386
Estudo da letra Y 386
Estudo da letra Z 386
As letras K, W e Y 387
Ortografia de nomes próprios e de palavras estrangeiras 387