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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em ComunicaçãoXXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016
Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E SOCIABILIDADE ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016
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Acontecimento, tensividade e circuito dos afetos
Event, tensivity and circuit of affects
José Luiz Aidar Prado I
IDoutor, PUC-SP. Contato: aidarprado@gmail.com
Resumo: A partir de uma teoria do acontecimento buscamos pensar a comunicação comocirculação de marcas num campo tensivo, afetivamente investido, em que os sujeitos emergemao serem fiéis ao processo de verdade instaurado com o acontecimento. A tensividade é pensadacom Zilberberg, a teoria do acontecimento com Badiou, a formação do sujeito, submetido aopoder, mas capaz de agência, com Butler e Safatle, que por sua vez propõe o desamparo comoafeto fundamental. A comunicação se coloca, portanto, a partir da teoria do acontecimento, decunho político, capaz de tematizar a transformação do circuito dos afetos e, portanto, aemergência de novas sociabilidades.
Palavra chave: teoria do acontecimento, tensividade, afeto, política, sujeito não idêntico
Abstract: Starting from a theory of event, we seek to envision communication as the circulationof portents in an affectively invested tensive field in which individuals emerge that are loyal tothe process of truth brought about by the event. Here, tensivity is seen in light of Zilberberg, thetheory of events in light of Badiou, and the formation of the individual, subjected to power butcapable of agency, in light of Butler and Safatle, who in turn propose powerlessness as afundamental affect. Communication is thus seen based on the theory of events of a politicalnature, which can thematize the transformation of the circuit of affects, and hence, theemergence of new sociabilities.
Keywords: theory of events, tensivity, affect, politics, nonidentical subject
Em textos anteriores (PRADO, 2015, 2016) pensamos a teoria da comunicação a partir
das marcas e inscrições que circulam num campo tensivo de sociabilidades, produzindo
efeitos comunicacionais de informação, entendimento parcial nas interações, acordos
normativos e trocas/diálogos. Nesse campo as partes disputam os sentidos ao constituir
discursos carregados de afetos e com variação de intensidades. Não se comunica apenas na
elevada intensidade estésica, mas também na conversa trivial cotidiana. Não se trata de
afirmar que a informação ou a comunicação cotidiana não constituem comunicação, porque
estariam dominadas por um paradigma sistêmico, definindo-se idealizadamente uma
comunicação (habermasiana) mais próxima da arte e do acontecimento. Se a comunicação
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é conjunto de marcas e inscrições a circular em um campo tensivo, na medida em que os
discursos disputam os sentidos[1], tal disputa pode ir da estesia para a anestesia ou
vice-versa, através de graus afetivos. Aqui seguiremos a ideia de Zilberberg (2011) de que
é a intensidade que promove a extensidade, ou seja, a criação de mundo brota no
acontecimento (intensidade), cujos sentidos são disputados pelos discursos antagônicos na
extensidade posterior (acontecimento tornado mundo, disputado pelos discursos
concorrentes), no cotidiano pós-acontecimental. Em termos de valências[2] o caminho
semiótico vai progressivamente do assomo do acontecimento (intensidade), passando pela
modulação, para chegar à resolução nos estados. Dito de outro modo, os sentidos se
ancoram na afetividade (idem, p. 45) e a comunicação acompanha a distribuição de
discursos afetados.
Nesse processo, o campo tensivo registra afetivamente os devires, para os quais se
pode investigar a amplitude, a velocidade e a duração. Como diz Zilberberg: “a questão é
discernir (...) de que modo um gerúndio , vinculado ao acontecimento, converte-se em
particípio, vinculado ao estado” (idem, p.23). O caminho do acontecimento ao estado é o
da descendência, pois vai da brutalidade do acontecimento, que irrompe numa estesia que
os discursos num primeiro momento não conseguem concernir, até a permanência, em que
se dá a estabilidade de um diálogo menos ou mais difícil, a depender de como os
antagonismos se enfrentam. As ações comunicativas dão-se a partir do acontecimento,
quando os discursos passam a disputar os sentidos produzidos a partir dele. Há sujeitos fiéis
ao acontecimento, que constroem com suas ações o após acontecimento, mas há também os
sujeitos reativos e os obscuros (BADIOU, 2008, p.72), que tentam desconstruir os efeitos
do acontecimento na extensidade, se opondo a ele (ver também PRADO, 2016).
Poderíamos pensar aqui numa narrativa do acontecimento, feita a posteriori, desde sua
emergência (assomo), posterior tentativa de modulação até a constituição do novo estado,
com novos regimes de sociabilidade e interação. O acontecimento de certo modo destitui os
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sujeitos, pensando-se aqui sujeito como aquele que responde aos discursos, às
interpelações, cuja resposta não é apenas a de uma boca falante, mas de um corpo pulsante,
palco das pulsões. Como diz Zilberberg, o acontecimento desapropria o sujeito de suas
competências modais, como se aquele sujeito que respondia aos discursos dos estados
anteriores ao acontecimento não mais pudesse proceder doravante a partir das mesmas
formas e dos mesmos afetos. Pensamos aqui o sujeito não como um núcleo de consciência
que se reforma e se transforma no acontecimento, mas como aquele que emerge a partir
dele, criando novas respostas, novos discursos, novas formas de vida. O sujeito emerge
com o acontecimento, na medida em que a ele se torna fiel. Esse tornar-se fiel não se dá
frente a um discurso pré-existente, mas a algo ligado à intensidade que rompeu com os
estados anteriores e inaugura novos discursos, a partir de uma nova economia libidinal, em
seu correspondente circuito de afetos (SAFATLE, 2015). O acontecimento convida à ação.
Como diz Zilberberg, “do ponto de vista valencial, o acontecimento, por ser portador do
impacto, manifesta enquanto tal que o sujeito trocou (...) o universo da medida pelo da
desmedida” (idem, p. 163). É essa desmedida que abre o mundo aos devires. Entretanto, a
separação que Zilberberg faz do ponto de vista do sujeito, entre sofrer na intensidade do
acontecimento e agir na extensividade, após o acontecimento, não nos convém, já que para
nós no acontecimento o sujeito de estado é destituído e o acontecimento rompe com a
temporalidade do estado anterior, e novos sujeitos podem advir com o acontecimento, mas
não são mais os mesmos sujeitos[3]. Assim, o sujeito surge com o acontecimento, não sofre
com ele.
Diríamos que há aí a configuração de duas políticas/estesias possíveis: uma, que
privilegia a transformação trazida pelo acontecimento e outra que enfatiza a reforma na
extensidade. Seguimos aqui mais a Badiou que a Zilberberg, pois em Badiou a
extensividade não é pensada, após o acontecimento, como reparadora. Para Zilberberg no
calor do acontecimento sincrético, com sua intensidade máxima, a afetividade está em seu
auge e a legibilidade é nula, não havendo discursos que nesse primeiro momento dêem
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conta do acontecimento. Porém,
Logo em seguida, conforme evolui o amortecimento das valências afetantes, o
acontecimento enquanto tal cessa de obnubilar, de obsedar, de monopolizar, de saturar o
campo de presença e, em virtude da modulação diminutiva das valências, o sujeito
consegue progressivamente, por si próprio ou com auxílio, reconfigurar o conteúdo
semântico do acontecimento em estado, isto é, resolver os sincretismos intensivo e
extensivo que o discurso projeta (idem, p.169).
Na visão de acontecimento de Badiou não há uma retomada, implícita no trecho acima,
em que Zilberberg fala em “reconfiguração”, como se com o acontecimento algo tivesse
sido perdido e tivesse de ser recuperado após a aclimatação às consequências do
acontecimento. Para Badiou a ruptura do estado anterior tem um saldo positivo, e os
sujeitos fiéis nisto apostam, pois aqui há uma visão política e não culturalista do
acontecimento. O que isso significa? Aquilo que no estado de coisas caracterizado pela
representação anterior era injusto, repressivo, injurioso etc, encontra no acontecimento a
emergência que permite vislumbrar uma mudança, entendida por Badiou como
singularidade , que traz uma potência de existência máxima, inaugurando uma nova
temporalidade. Se houver sujeitos nascidos com o acontecimento, que efetivamente
coloquem seus corpos a serviço de suas consequências afetivas transformadoras, então um
novo processo de verdade se inicia e novas formas de discurso e de comunicação se
instauram. Nesse sentido, não há reconfiguração, mas emergência do novo.
Ao estudar as dinâmicas intensivas e extensivas que o acontecimento faz vibrar,
Zilberberg apresenta no primeiro caso, o andamento e a tonicidade e, no segundo, a
temporalidade e a espacialidade (idem, p. 170). Ao sobrevir, o acontecimento se dá num
andamento vivo, vibrátil, brusco, intenso. Há aí a emergência de algo surpreendente,
desmedido e que devasta, retira da ordem cotidiana, enfrentando a tendência de
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melancolização por parte do poder (BUTLER, 2001, p. 147). Algo, diz Zilberberg, aí
transtorna o sujeito. Já o dissemos, mais que transtorna, destitui, provocando
“desorientação modal” (idem, p.171). É por esta razão que para esse autor o sujeito fica
estupefato e cessa de agir, restando-lhe apenas o sofrer. Preferimos, com Badiou, dizer que
quem sofre é a vítima e no acontecimento se trata, ao invés, de uma dimensão aberta de
infinito, e, portanto, aqui cabe mais afirmar paixões e afetos da alegria, da intensidade[4] e,
portanto, paixões não de liquidação da falta, mas paixões complexas que abrem para os
devires. Como diz Deleuze, “sobre as linhas de fuga, só pode haver uma coisa, a
experimentação da vida” (DELEUZE, 1998, p. 61). O acontecimento abre não apenas
estados de coisas, como diz Zilberberg, mas linhas de fuga para os devires.
Ocorre com o acontecimento uma fulminação da temporalidade: “a recomposição da
temporalidade está condicionada à desaceleração e à atomização, ou seja, ao retorno àquela
atitude que o acontecimento suspendeu momentaneamente” (idem, p. 171). Para
Zilberberg, o sujeito (aqui comportado demais para nossos propósitos) “almeja reaver
pouco a pouco o controle e o domínio da duração, sentir-se novamente capaz de comandar
a temporalidade fórica a seu bel-prazer”(idem). Em termos da visão badiouana não se trata
de recuperar a duração, mas de repensar a temporalidade, a historicidade, dentro da
perspectiva do novo processo de verdade implantado a partir do acontecimento. O
acontecimento se abre para uma justiça que não se reduz a regras de um funcionamento
condominial[5], em que quem gerencia é o síndico. No acontecimento, como diz Derrida,
dá-se um “messianismo desértico (sem conteúdo e sem messias identificáveis)”:
Um deserto sinalizando para o outro, deserto abissal e caótico , se o caos descreve
primeiramente a imensidão, a desmesura, a desproporção no escancaramento de uma boca
aberta – na espera ou na chamada do que denominamos aqui, sem saber, o messianismo: a
vinda do outro, a singularidade absoluta e inantecipável do que chega como justiça . Esse
messiânico, acreditamos que ele permanece uma marca indelével — que não se pode nem
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deve apagar – da herança de Marx, e sem dúvida do herdeiro, da experiência da herança em
geral. Sem o que reduzir-se-ia a acontecimentalidade do acontecimento, a singularidade e a
alteridade do outro (DERRIDA, 1994, p. 47).
Eu S/A
Uma das partes a participar nessas interações, que disputam sentidos, menos ou mais
prenhes de conflitos, é constituída pelas máquinas de expressão que, guiadas sobretudo
pelos objetivos de controle sistêmico (maximização de efeitos de audiência, aumento de
lucros, influência e poder), a partir de um sensoriamento do ambiente, buscam produzir
sujeitos ligados ao que Safatle chama de “figura atual do homem”, e que nós temos
caracterizado como o Eu S/A, o sujeito empreendedor de si mesmo, construído como um
microempreendimento neoliberal de si próprio, um tipo de sujeito possuidor de um si
próprio no âmbito do capitalismo globalizado. (ver PRADO, 2013; FREIRE FILHO, 2010;
2011).
A questão é que o agente, em sua formação na infância, é constituído a partir de
discursos numa época em que não podia argumentar com eles, tendo desde cedo se
submetido aos mecanismos de poder, como diz Butler (2001, p.17). Dessa experiência
afetiva primária poderão emergir vários tipos de sujeitos, em sua relação com os
acontecimentos, mas isso depende dos modos pelos quais o sujeito buscou e conseguiu
reconhecimento e de sua relação concreta com os poderes e biopoderes em situação. Daí a
importância da teoria do reconhecimento na formação do sujeito. O sujeito
primordialmente se constituiu a partir de experiências de sofrimento de determinação? Teve
experiências positivas de indeterminação? Como ele se relaciona com um reconhecimento e
com normas do poder pastoral em vigor que não passe pela construção de uma figura do
tipo Eu S/A? Como ele enfrenta os regimes de verdade aos quais está em cada situação
submetido? Em que sentido ele tem condições de se pensar a partir da despossessão de
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si?[6] Dunker explica que o sofrimento deve obedecer a três condições (idem, p. 219): a)
deve ser pensado a partir de uma teoria do reconhecimento, ou seja, todo sofrimento
“contém uma demanda de reconhecimento e responde a uma política de identificação”; b)
deve ser estruturado como uma narrativa (ou seja, “como trabalho de linguagem que
contorna um objeto, conferindo-lhe uma ‘estrutura de ficção’”); c) envolve uma
experiência de indeterminação.
Essa ideia da teoria do acontecimento em que o sujeito não é mais pensado a partir da
matriz neoliberal do Eu S/A, que possui atributos e predicados que constituem seus
méritos e realizações, vistos como propriedades, conecta com a obra de Judith Butler, em
que o reconhecimento é ancorado em uma política pensada para “trazer à vida social a
potencia de um horizonte antipredicativo” (SAFATLE, 2015, p.30). O afeto central aqui
considerado é o desamparo freudiano, em que o sujeito não se sustenta em determinações,
mas se abre a uma afetividade “que tem a força de constituir vínculos a partir do que me
despossui de minhas determinações e predicações, por isso afecção do que se desdobra
como vínculo inconsciente”(idem, p.32). O modelo de comunicação é neste caso não mais
o de cooperação intersubjetiva, do contrato, do ajustamento, mas aquele ligado a
modos não intersubjetivos de reconhecimento, no qual as figuras do contrato das trocas
recíprocas, do consentimento consciente ou da afirmação identitária de si saem de cena
para compreendermos melhor como o desamparo, entendido como afeto, pode criar
relações. O amor é, segundo Lacan, uma relação que nos desampara, mas que nos recria
(idem, p. 33).
Em Butler a teoria de gênero sai do trilho da produção de identidades, tornando-se
uma:
astuta teoria de como, através da experiência de algo no interior da experiência sexual
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que não se submete integralmente às normas e identidades, descubro que ter um gênero é
um ‘modo de ser despossuído’, de abrir o desejo para aquilo que me desfaz a partir da
relação ao outro (SAFATLE in BUTLER, 2015, p. 175).
As normas e os regimes de verdade em vigor definem figuras valorizadas atuais do Eu
S/A, afetivamente investidas, fornecendo os quadro de referencia a partir dos quais o
reconhecimento dos sujeitos pode se dar. Esses sujeitos não são aqui pensados como
essencialistas/essencializados, pois eles não preexistem aos discursos, como já dissemos:
vão se constituindo na medida em que a cada momento respondem aos discursos e aos
afetos que os solicitam, a partir de uma história de respostas anteriores, incorporadas no
corpo, encarnadas.
O quadro de reconhecimento não é invariável, como diz Butler (2015, p.34), mas é em
relação a tais enquadramentos que o sujeito terá de se fazer, se refazer, se destituir e
permitir que o corpo suporte novos sujeitos acontecimentais, contestando e transformando
essas normas, os nomes e os conjuntos/representações que dão identidade às coisas e aos
seres. A comunicação nesse nível dos enquadramentos e das normas é, como diria
Marcondes Filho (2010, p.22), trivial, conservadora, operando dentro do que Landowski
chama de regime de programação ou de manipulação (2014, p.21). Ela visa reproduzir o
mundo objetivo. Em termos da semiótica tensiva estamos aqui no domínio da
extensividade, não da intensividade. Os afetos nesse nível da comunicação são extensivos,
pois o actante segue percursos (sucessão de estados passionais) moderados e modalizados a
partir de programas do equilíbrio e da estabilidade.
Paixões
Como estudar as paixões e os afetos que se dão na intensidade do acontecimento ou na
extensidade pós-acontecimental? Barros nos explica que as paixões (1990, p.61) podem ser
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simples ou complexas. Nas simples, temos um sujeito ligado a objetos de valor, em que os
actantes seguem as articulações do:
● querer ser, sob a relação sujeito-objeto, como desejo, ambição, cobiça, avidez, curiosidade;● do não querer ser, como medo, repulsa, aversão;● do querer não ser, como desprendimento, generosidade, prodigalidade;● ou do não querer não ser, como avareza, mesquinhez e sovinice (BARROS, idem, p. 61).
Dentro desse quadro de possibilidades, é possível ter paixões mais ou menos intensas.
Como diz Barros, o sujeito pode ter um desejo mais ou menos intenso, havendo vários
critérios para diferenciar as paixões:
a maior ou menor intensidade do querer – desejo ardente, sôfrego, veemente,
excessivo, violento, irreprimível – e os tipos de valores desejados – pragmático descritivo
na cobiça; descritivo e modal, na ambição, em que se quer tanto ter quanto poder;
indiferentemente pragmático ou modal na inveja ou no anseio; cognitivo na curiosidade,
que se define pelo querer saber (BARROS, 1990, p.61).
Nas paixões complexas não se conjuga apenas o sujeito a um objeto, mas “as
modalidades se organizam em uma configuração patêmica e desenvolvem percursos”
(ibidem) a partir do estado inicial da espera. Há vários arranjos modais possíveis a partir
do:
● querer ser – o sujeito da espera deseja estar em relação de conjunção ou de disjunção com umobjeto de valor (idem, p.62)[7].
● crer-ser – o sujeito da espera confia que um outro sujeito realize suas expectativas ou direitos.
A partir dessa espera inicial podem se desenvolver diferentes percursos “em que as
determinações modais do sujeito fabricam efeitos de sentidos que são ditos ‘passionais’
”(idem). Um primeiro grupo de paixões refere-se à relação sujeito-objeto, mas de modo
diverso das paixões simples, pois aqui há uma combinação entre querer ser e o saber sobre
as possibilidades de ocorrência aguardada pelo sujeito da espera (idem, p.63). Assim,
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● a felicidade equivale a relaxamento (articulação entre saber poder ser/querer ser – saber possível aconjunção desejada);
● a aflição traz tensão (saber poder não ser/querer ser – saber incerta insegura a conjunçãodesejada);
● o alívio traz distensão (articulação entre saber não poder não ser/querer ser – saber certa aconjunção desejada);
● e infelicidade traz intensão (saber não poder ser/querer ser – saber impossível a conjunçãodesejada).
Em termos de variação da tensividade há dois percursos possíveis, nos diz Barros:
1. da tensão ao relaxamento: aflição g alívio g felicidade2. do relaxamento à tensão: felicidade g infelicidade g aflição
Há um segundo grupo de paixões a partir da espera, as do crer ser, ligadas à confiança
ou à decepção. Assim, crer ser traz confiança (relaxamento); crer não ser traz insegurança
(tensão); não crer não ser traz despreocupação (distensão); não crer ser traz decepção
(intensão). Os percursos de variação tensiva das paixões de confiança e decepção são:
1. percurso de aumento de tensão: confiança g decepção g ???????????2. percurso de diminuição de tensão: insegurança g?segurança g?confiança
No primeiro percurso é gerada crise de confiança, pois o sujeito crédulo/confiante
passa a cético, descrente (idem, p.65). Se o estado de decepção permanece, as paixões
decorrentes são ressentimento, desilusão, desengano, desapontamento, desesperança,
decepção, mágoa etc (idem). Há aqui queda da esperança. Perde-se a esperança devido ao
caráter enganoso do contrato ou ao seu rompimento. Diz Barros, falando desse aspecto
durativo das paixões:
Mágoa e ressentimento explicitam a duração do efeito passional e atribuem a paixão
não só ao não-fazer do sujeito, como também a seu fazer contrário (ofensa). Inclui-se nesse
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caso, rancor, causado, segundo o dicionário, pela ação de um sujeito prejudicial a outro
(idem, p. 65).
Algumas paixões, diz Barros, unem os efeitos de insatisfação (“privação do objeto”) e
da decepção (“crise de confiança”), como amargura, azedume, desagrado, amargor,
desprazer (idem). Barros coloca a amargura como paixão central desse grupo, unindo
insatisfação e decepção, ou seja, separação do objeto e perda de confiança, que podem se
prolongar em outros efeitos narrativos, como: a) de mágoa que perdura, de resignação; b)
de aflição ou insegurança, que podem gerar sentimento de falta. Só se pode resolver a falta
a partir de um programa de liquidação da mesma, havendo dois tipos de falta: a de
objeto-valor e a fiduciária ou falta de confiança. O programa de liquidação da falta busca
uma de duas, a depender do caso: ou suprir o objeto faltante ou resolver a crise de
confiança.
As paixões tensas ou de falta são a aflição e a insegurança. As relaxadas são as de
felicidade e de confiança; as distensas são o alívio e a segurança e as intensas a insatisfação
e a decepção. Zilberberg diferencia as paixões de falta das de ausência (que são as
intensas). Em termos do rompimento do contrato de confiança (fiduciário) há duas
alternativas: o sujeito frágil rompe unilateralmente, colocando-se na defensiva (idem),
vivenciando a paixão de decepção, que não o conduz à falta e à reparação; o sujeito
ofensivo sofre as paixões da falta, que o conduzem aos programas de liquidação. A falta
resolve-se de três formas diferentes:
pelo prolongamento da aflição e insegurança na paixão relaxada da resignação e da
conformação; pela volta à situação de confiança e, finalmente, pela reparação. Para reparar
a falta é necessário instaurar-se um sujeito do fazer, em geral em sincretismo com o sujeito
que sofre a falta e a quem cabe realizar um programa para liquidá-la. O programa reparador
liquida ora a falta de objeto – efetuam-se novas tentativas de conjunção – ora a falta de
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confiança (idem, p. 66).
A modalização que começa a competência do sujeito para a reparação da falta é o
querer fazer. Esses programas podem ser de revolta ou vingança, pois visam atingir o
responsável pela falta. A questão é: o sujeito do querer fazer pode faze-lo, tem competência
para tal? “O poder fazer é a forma do sujeito ofendido afirmar-se, graças à possibilidade de
destruição do ofensor”(idem, p.67).
As paixões de malquerença podem ser definidas pelo querer fazer (a hostilidade) ou
pelo poder fazer junto com o querer fazer da revolta (o ódio) (idem, p. 67). De outro lado,
há as paixões da bemquerença:
Resta lembrar que, assim como a insatisfação e a decepção levam à malquerença da
hostilidade e da agressividade, a satisfação e a confiança conduzem à bemquerença da
afeição. A benevolência, interpretada como querer fazer bem ao outro, tem também a
possibilidade teórica de ser definida pelo poder-fazer, que torna o sujeito competente para o
fazer da recompensa (ibidem).
As paixões de bemquerença são:
- querer fazer bem - amor
- não querer não fazer bem - apreço
- querer não fazer bem – antipatia, repulsa
- não querer fazer bem – indiferença, desamor
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As paixões de malquerença são:
- querer fazer mal – ódio
- não querer fazer mal - indiferença
- querer não fazer mal – simpatia
- não querer não fazer mal – desprezo
Os percursos da variação tensiva são:
1. da tensão ao relaxamento:
amor g desamor g antipatia
ódio g indiferença g simpatia
1. do relaxamento à tensão:
antipatia g apreço, estima g amor
simpatia g desprezo g ódio
As paixões de malquerença que se definem também pelo poder fazer (já que em
português não existem paixões de bemquerença nessa situação) são:
● querer fazer e poder fazer (tensão) - ódio, ira, cólera● querer fazer e poder não fazer – resignação, conformação (relaxamento)● querer-fazer e não poder não fazer – fúria, irritação (intensão)● querer-fazer e não poder fazer – desalento, desânimo (distensão)
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O poder-fazer corresponde, nos diz Barros, à recuperação da confiança em si-mesmo,
enquanto o não poder fazer é a “perda total de confiança, o desalento e o desânimo que podem
conduzir o sujeito à conformação e à resignação, como se vê nos percursos abaixo”:
1. diminuição da tensão: ódio g desalento g resignação2. Recrudescimento da tensão: resignação g fúria g ódio
Barros ressalta que para tratar das paixões complexas é necessário organizar os percursos em
estados passionais e
determinar as transformações modais desses estados, que desembocam em configurações
produtoras dos efeitos afetivos e passionais. Tais paixões pressupõem uma história modal (e
passional) anterior, ou seja, explicam-se como configurações modais sustentadas pela
organização narrativa. A paixão do rancor, por exemplo, determina vários estados passionais do
sujeito: o da espera satisfeita e confiante, o de frustração e de decepção, o da insegurança e
aflição da falta, o de malevolência e, finalmente, o de rancor. O rancor permite a passagem ao
fazer reparador, mas, como diz o dicionário, é, às vezes, sopitado ou reprimido (idem, p. 70).
Do estrutural ao cultural: o sujeito em ricochete
A tabela de paixões se coloca para um sujeito estrutural, fora da cultura. Para podermos nos
aproveitar dos saberes semióticos sobre as paixões, será preciso dinamizar, portanto, essa
estruturação categorial, de modo a não impor tal estrutura aos afetos culturalmente operativos,
ligados concretamente aos modos de configuração condominial dominantes que encontramos e
vivemos no mundo.
Para Butler, há uma diferença entre um relato estrutural e um cultural sobre a
performatividade, que ela entende como “função de postulação ( positing ) da linguagem”
(BUTLER et allii, 2000, p.28). Para ela
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A performance de gênero cria a ilusão de uma substancialidade anterior ou primeira – um
self nucleado generificado – e constrói os efeitos do ritual performativo de gênero como
emanações necessárias ou consequências desta substância primeira. Mas enquanto Žižek isola as
características estruturais da postulação linguística e oferece exemplos culturais para ilustrar esta
verdade estrutural, estou mais preocupada em repensar a performatividade como ritual cultural,
como reiteração de normas culturais, como habitus do corpo em que as dimensões sociais e
estruturais do significado não são enfim separáveis (idem, p.29).
Para tanto, atravessaremos tal estrutura: a) pelas análises psicanalíticas de Butler, con a
entrada em cena do inconsciente e das pulsões, ligadas ao poder e à performatividade da
linguagem, e b) pela tematização do circuito dos afetos em Safatle, também ancorado na
psicanálise, que pergunta como isso implica em enfrentar a economia libidinal e o circuito dos
afetos que confirmam as políticas e os regimes de visibilidade e discursos de verdade
enfrentados. Pois nosso interesse não está apenas em mapear os percursos passionais estruturais
dos textos, em que os sujeitos narrativos buscam afetivamente objetos de valor e se ligam a
outros sujeitos, através de percursos modais e passionais, nos quais confiam para buscar coisas
ou atuar em processos conjuntos, mas em entender como o poder constrói sujeitos que, desde
crianças, se formam em discursos afetivamente investidos que não dominam, e reiteradamente a
eles se submetem. Além disso, interessa perguntar como os sujeitos investidos por esses poderes
podem subverter essa dominação.
a) Comecemos com Butler. O poder melancoliza. Como diz Safatle:
A hipótese de Judith Butler consistirá em mostrar como a força da submissão dos sujeitos,
seja às identidades de gênero pensadas em uma matriz estável e insuperável, seja à forma geral
da identidade, é indissociável dos usos da melancolia. O poder age produzindo em nós
melancolia, fazendo-nos ocupar uma posição necessariamente melancólica. Podemos mesmo
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dizer que o poder nos melancoliza e é desta forma que ele nos submete. (...) A melancolia
aparece como uma das múltiplas formas, mas a mais paralisante, de aceitar ser habitado por um
discurso que, ao mesmo tempo, não é meu mas me constitui (SAFATLE in BUTLER, 2015, p.
190).
O poder aparenta ser externo: “pressionando o sujeito à subordinação, assume uma forma
psíquica”(BUTLER, 2001, p. 13) que constitui sua identidade. Ela trabalhará neste livro o dar-se
volta do sujeito quando este se vira para responder a uma interpelação vinda da autoridade, do
poder, como no exemplo de Althusser, em que o policial grita: “Alto lá!” e nesse momento em
que a voz autoritária interpela o indivíduo caminhante cria-se o sujeito, quando ele se volta para
responder ao policial. Esse modelo será continuado por Foucault. Butler pergunta como o poder
forma o sujeito, como esse o acolhe, apontando aí um paradoxo, pois nos vemos obrigados a nos
referir a algo que ainda não existe: “tentamos dar conta de como nasce o sujeito mediante uma
figura que provoca a suspensão de nossas certezas ontológicas” (idem, p.14). Essa volta do
sujeito é tropológica, resultando daí que a melancolia “participa do mesmo mecanismo que
descreve, produzindo topografias psíquicas que são claramente tropológicas”(idem, p.15). Assim,
não se trata somente de que a função do tropo seja a geração (do sujeito), mas de que a
descrição desta parece exigir a utilização de tropos, uma operação de linguagem irredutivelmente
mimética e performativa, que reflete e ao mesmo tempo institui a generatividade que se propõe a
explicar (ibidem).
Para Butler a interpelação é a produção discursiva do sujeito numa situação comunicativa,
pois tem lugar nesse intercâmbio “pelo qual o reconhecimento é oferecido e aceito. A questão é:
por que esse sujeito se volta para responder na direção da voz autoritária da lei? Que afetos
acompanham essa voz interpeladora? Esse é um sujeito culpável? Que afetos se ligam à resposta
do sujeito? Ele se instaura com medo da polícia, porque já ouviu relatos de agressões a cidadãos?
Como o poder lida com eles? O poder goza ao bater? Ao trancafiar e punir (lembramos aqui do
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filme O decálogo, episódio “Não matarás”, de Kieslowski)? Há aí uma consciência em que se dá
o funcionamento psíquico da norma reguladora? Em torno dessa questão gira esse livro de Butler
(2001). Essa voz autoritária tem poder performativo, pois ao dizer ela faz, ela faz fazer, ela
modaliza. E aí está envolvido um percurso passional, pois o sujeito se volta para o policial com
temor, com culpa, inseguro ou com raiva, caso esteja numa passeata e o governo coloca a polícia
para jogar bombas de efeito moral.
Como diz Salih, “Butler argumenta que, como não existe nenhuma identidade social sem
sujeição, o sujeito está passionalmente preso à lei ou à autoridade que o sujeita” (SALIH, 2015,
p.165; BUTLER, 2001, p.17). Para Butler, o sujeito “seria o efeito do poder em dobra, em
ricochete ( in recoil) (ibidem). O sujeito é ao mesmo tempo formado e subordinado. Há aí uma
ambivalência, que permite a Butler afirmar que o sujeito emerge ao mesmo tempo que o
inconsciente.
A definição foucaultiana da sujeição como a simultânea subordinação e formação do sujeito
assume um valor psicanalítico concreto ao considerarmos que nenhum sujeito emerge sem um
vínculo apaixonado com aqueles de quem depende de maneira essencial (idem, p. 18).
Entretanto, existe aí um potencial de agência, ou seja, um potencial da psique de “fazer o
poder se voltar contra si mesmo” (idem, p.166). Em nossos termos, a agência se coloca a partir
de um acontecimento, ao permitir confronto com o poder e transformação do estado de coisas.
Pergunta Butler: como a forma psíquica se constitui a partir das estruturas de poder? A
relação com o poder é ambivalente: o sujeito não existe sem o poder, mas o excede, pode ser
agente, subverte-lo. Até que ponto os afetos ligados à sujeição são mais poderosos que os da
alegria que brotam no acontecimento? O sujeito está numa posição paradoxal, pois está preso à
sujeição e esta lhe causa algum tipo de prazer: “Butler pressupõe que os sujeitos querem desejar;
no entanto, o objeto de seu desejo é precisamente aquilo que os impediria de querer” (SALIH,
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2015, p.173). Como romper com o prazer da pulsão de morte, que desacontecimentaliza a
vida?[8]. Nem o corpo nem a psique preexistem aos discursos de poder. Eles são
formações discursivas que emergem simultaneamente através da sublimação do corpo na
alma. ‘Sublimação’ é um termo psicanalítico que descreve a transformação ou o desvio do
instinto sexual para atividades ‘culturais’ ou ‘morais’. (...) A sublimação do corpo na alma ou
psique deixa para trás um ‘remanescente corporal’, que excede o processo de normalização e
sobrevive como aquilo que ela chama de ‘uma espécie de perda constitutiva’ (idem, p. 176).
Assim, o corpo não é lugar de uma construção, mas:
o sujeito vem a existir quando seu corpo é alvo de uma ação e é destruído (presumivelmente
pelo discurso?), o que significa que essa é uma destruição produtiva ou, talvez, uma
suprassunção ou Aufhebung , uma vez que tanto o corpo quanto a psique são simultaneamente
formados e destruídos no interior de estruturas discursivas (SALIH, idem, p. 176).
Ao sermos chamados por um nome injurioso, diz Butler, isso nos dá uma existência social,
pois o narcisismo se ocupa de qualquer termo que confira existência, então “sou levada a abraçar
quaisquer termos que me injuriam porque eles me constituem socialmente” (SALIH, idem, 177).
O poder deve ser reiterado e “o sujeito é precisamente o lugar desta reiteração, que nunca é uma
repetição meramente mecânica” (idem, p. 27). Desta forma, uma estrutura tabelar das paixões é
apenas um ponto de partida, mas não deve nos guiar peremptoriamente, porque aí se perderia a
dinâmica inconsciente que faz oscilar tensivamente o sujeito entre submissão e agenciamento
acontecimental. O dilema assim se coloca para Butler: “como adotar uma atitude de oposição
frente ao poder, mesmo reconhecendo que toda oposição está comprometida com o mesmo poder
a que se opõe?” (ibidem). Que afetos me ligam ao poder a que me coloco como submisso e que
afetos despertam nesse lançamento para devires agenciadores? Isso coloca um sério problema
para a teoria política:
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Ou bem se considera que as formas de dominação capitalista ou simbólica são tais que
nossos atos estão sempre já ‘domesticados’ a priori , ou bem se oferece uma série de ideias
generalizadas e atemporais sobre o caráter aporético de todos os movimentos dirigidos ao futuro.
Sugiro que a cumplicidade primária com a subordinação não conduz forçosamente a nenhuma
conclusão histórica ou lógica, mas que abre algumas possibilidades tentativas. O fato de que a
potência esteja comprometida na subordinação não é sinal de uma inevitável contradição interna
no núcleo do sujeito, nem, por conseguinte, uma prova adicional de seu caráter pernicioso ou
obsoleto. Mas tampouco permite restaurar uma visão purista do sujeito derivada de visões
liberais-humanistas clássicas, onde a potência aparece, sempre e exclusivamente, em oposição ao
poder. A primeira dessas visões caracteriza as formas politicamente farisaicas de fatalismo; a
segunda, as formas ingênuas de otimismo político (idem, p. 28).
Aqui a visão de crítica de Butler se coloca, portanto, contra teorias críticas que apresentam
uma descrição apocalíptica do mundo cibercultural e globalizado da atualidade. Sim, nossos atos
estão domesticados, pois fomos formados na submissão a formas modalizadas do Eu S/A, mas é
preciso pensar a abertura acontecimental para novos processos de verdade e para a emergência de
novos sujeitos agenciadores. De um lado, é preciso romper com o fatalismo, de outro com a visão
clássica do sujeito centrado em atributos de identidade (sucesso, self autocentrado etc), de outro
trabalhar na tensão entre submissão e agenciamento. A análise deve trabalhar nessa dinâmica
tensiva complexa. Tanto Freud como Nietsche, na visão de Butler, explicam a constituição da
consciência como efeito de uma proibição internalizada:
a proibição da ação ou da expressão faz a pulsão voltar-se para si mesma, constituindo um
âmbito interno, que é a condição da introspecção e reflexividade. A pulsão que se volta sobre si
mesma se converte em condição catalizadora da formação do sujeito; trata-se de um desejo
primário dobrado sobre si que aparece também esboçado na visão da consciência infeliz de Hegel
(BUTLER, idem, p. 33).
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Melancolia
A incorporação melancólica, nos lembra Butler, é justamente um modo de o sujeito se
desligar do objeto perdido, incorporando-o no Eu. Desde cedo toda a formação do sujeito está
investida pelas paixões e pelos afetos. Como? Ele não se desliga definitivamente do objeto
perdido, mas produz uma identificação melancólica, que “permite a perda do objeto no mundo
externo” ao mesmo tempo que oferece
um modo de preservá-lo como parte do eu e, por conseguinte, de evitar que a perda seja total.
Aqui vemos que desligar-se do objeto significa, paradoxalmente, não seu abandono total, mas a
transformação de seu estatuto externo em interno. A renúncia ao objeto se torna possível somente
sob a condição de uma internalização melancólica ou, o que para nossos propósitos pode ser
ainda mais importante, uma incorporação melancólica (Butler, 2011, p.149).
A internalização preserva a perda na psique, ao mesmo tempo em que a nega. A melancolia é
um circuito produzido e faz parte, portanto, do funcionamento do poder regulador (idem, p. 158,
grifo nosso). Para Butler,
Se a melancolia designa um âmbito de vinculações que não aparece explicitamente como
objeto do discurso, então erode a operação de linguagem pela qual esta não apenas postula
objetos, mas também os regula e normaliza ao postula-los. Enquanto a melancolia parece ser em
princípio uma forma de contenção, um modo de internalizar um vínculo que está excluído do
mundo, também estabelece as condições psíquicas para ver que ‘o mundo’ se organiza de
maneira contingente através de certo tipo de repúdios (idem, p.158).
Essa dobra do sujeito sobre si, esse recolhimento ancorado num repúdio, na medida em que
faz com que o sujeito se constitua e ao mesmo tempo se sujeite ao poder está afetivamente
carregada e a economia libidinal e seus circuito de afetos precisa ser investigada para que a teoria
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social e política possa pensar a forma da agência pós-acontecimental (embora não se possa
planejá-la), bem como entender o quadro dos afetos possíveis na potência de existência dada nas
singularidades emergentes após a intensidade do acontecimento.
b) É importante pensar, portanto, a política que altera os regimes de sociabilidade e de
visibilidade, ou seja, os regimes e dispositivos que regulam as formas de ver, de ser vista e de
valorar positiva ou negativamente essas imagens e interações, bem como o circuito dos afetos. A
tensão do acontecimento busca romper com a formação de sujeitos constituídos pela identidade
encarnada no Eu S/A, que vive em condomínios, assegurado contra a invasão dos Outros, com
medo de perder seu mundo protegido e securitizado. Como diz Safatle,
o medo como afeto político (...) tende a construir a imagem da sociedade como corpo
tendencialmente paranoico, preso à lógica securitária de que deve se imunizar contra toda
violência que coloca em risco o princípio unitário da vida social (SAFATLE, 2015, p. 24).
Não é o medo o afeto sobredeterminante único, mas dá-se também a busca de alívio,
tranquilidade, desafogo de viver dentro do condomínio, de ter uma identidade protegida de Eu
S/A, que tem atributos de sucesso, capital e propriedades. É claro que ao lado desses afetos há o
medo do Outro extorquir um gozo que seria o meu, de me privar da parcela de gozo que penso
minha. Sob a perspectiva de uma política rumo a uma democracia radical não se trata de buscar
uma figura de Eu S/A, com medo do Outro, vivendo num alívio tíbio e ligeiramente animado,
muitas vezes adrenalinadamente regado a fast sexo, a escaladas em academias e raves, nem na
esperança que nos tira do instante, ou seja, adia nosso compromisso com o messiânico de que
falava Derrida (já citado).
A estratégia deveria nos levar a perguntar: “qual corporeidade social pode ser produzida por
um circuito de afetos baseado no desamparo”(idem, p.25), que cria vínculos de despossessão?
Safatle propõe o desamparo como afeto primordial, para saída do percurso dominante do medo,
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mas é preciso salientar que nem o medo é o único afeto do poder, nem o desamparo o único afeto
revolucionário. Na intensidade pós-acontecimental, em que os regimes de sociabilidade e de
visibilidade podem ser transformados, muitos afetos podem acompanhar os agenciamentos dos
sujeitos fiéis, como alegria, desapego, cuidado com o outro, satisfação, felicidade, distensão,
tensão, amor, afeto, amizade; por outro lado, ao enfrentar os sujeitos obscuros e reativos poderão
surgir paixões como ódio, fúria, raiva, irritação, desânimo.
É preciso ter em conta que Safatle enfatiza o desamparo, na medida em que esse afeto se liga
à possibilidade de se pensar um eu não idêntico . Se o eu pós-acontecimental, o sujeito fiel, se
guiar pela lógica da identidade, retornaremos a um estado pré-acontecimental. Safatle afirma:
Estar desamparado é deixar-se abrir a um afeto que me despossui dos predicados que me
identificam. Por isso, afeto que me confronta com uma impotência que é na verdade forma de
expressão do desabamento de potencias que produzem sempre os mesmos atos, os mesmos
agentes. Um corpo político produzido pelo desamparo é um corpo em contínua despossessão e
des-identificação de suas determinações. Corpo sem eu comum e unicidade, atravessado por
antagonismos e marcado por contingências que desorganizam normatividades impulsionando as
formas em direção a situações impredicadas. Por isso, o desamparado produz corpos em errância,
corpos desprovidos da capacidade de estabilizar o movimento próprio aos sujeitos através de um
processo de inscrição de partes em uma totalidade (idem, p. 26).
Para pensarmos esse eu despossuído a obra de Butler é fundamental. Para tanto, é preciso
romper com uma dimensão antropológica altamente normativa, pois construída a partir de
categorias de teor psicológico como ‘identidade pessoal’ e ‘personalidade’. Nessa via as
demandas por reconhecimento não mais seriam compreendidas como “potencialidades capazes
de permitir o desenvolvimento de predicações da pessoa individualizada” (idem, p. 28). Safatle
propõe, portanto, um modo de reconhecimento antipredicativo . O que nos leva a pensar numa
outra comunicação, não mais baseada no acordo de pessoas em contrato, mas em uma relação
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feita a partir da diferença:
Contrariamente à ficção filosófica do amor como uma espécie de afecção que, através do
reforço de estruturas cooperativas e de afirmação mútua de interesses particulares, nos leva a
construir relações sob a forma do contrato tácito entre pessoas que se afetam de forma consensual
e consentida, a reflexão psicanalítica sobre o amor proposta por Lacan nos permite pensar modos
não intersubjetivos de reconhecimento, no qual as figuras do contrato das trocas recíprocas, do
consentimento consciente ou da afirmação identitária de si saem de cena para compreendermos
melhor como o desamparo, entendido como afeto, pode criar relações. O amor é, segundo Lacan,
uma relação que nos desampara, mas que nos recria. A reflexão sobre o amor demonstra seu
interesse político na medida em que abre a compreensão para formas de reconhecimento entre
sujeitos que ao menos por um momento, deixam de querer ser determinados como pessoas
individualizadas (idem, p. 32/33).
Notas
[1] Nossa polêmica aqui se refere a concepções como a ação comunicativa, de Habermas (2012) ou a comunicaçãocomo acontecimento de Marcondes Filho, entre outras. Diz este último: “Uma comunicação densa está próxima daarte, ambas como formas de apreensão sensível do mundo. Mais do que a arte, a comunicação se realiza também noplano da interação entre duas pessoas, nos diálogos coletivos onde esse novo tem chance de aparecer, onde oacontecimento provoca o pensamento, força-o, onde a incomunicabilidade é trincada e criam-se espaços deinterpenetração”(2010, p.23).
[2] A tensividade é acolhida como “lugar imaginário em que a intensidade – ou seja, os estados de alma, o sensível – ea extensidade – isto é, os estados de coisas, o inteligível – unem-se uma à outra. Essa junção define o espaço tensivo“de recepção e qualificação para as grandezas que têm acesso ao campo de presença”(ZILBERBERG, 2011, p.66).Cada grandeza entra nesse espaço, portanto, qualificada em termos de intensidade e extensidade, mas há uma“autoridade do sensível sobre o inteligível”(idem), ou seja, da apreensão sensível dos estados de coisas do mundo.Essas grandezas sofrem gradações, em que o sentido sofre modulações. O que interessa é tratar cada grandeza demodo a verificar os movimentos de ascendência e descendência no contínuo de seu desenvolvimento, com osrespectivos aumentos e diminuições de intensidade. Valência é dada num nível de pré-sentido, antes que os valores seafirmem. Para Zilberberg, o valor é a “associação de uma valência intensiva com uma valência extensiva”(idem, p.67).Assim, uma grandeza “penetra no campo de presença proporcionalmente à quantidade de impacto e irrupção que trazem si”(idem). Em termos de intensidade isso pode ser menos ou mais impactante X menos ou mais tênue. Em termosde extensidade isso pode ser menos ou mais concentrado X mais ou menos difuso.
[3] Nem mesmo os corpos que suportam sujeitos são os mesmos.
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[4] Badiou chama a esse sujeito emergente com o acontecimento de “imortal”, pois ele não vive para sobreviver, masvive a potencia da ideia, não vale pela vida nua protegida pelos direitos adquiridos ao nascer.
[5] Para Dunker (2015, p.58) o condomínio é um “lugar fortemente delimitado (muros), no qual a representação ésubstituída pela administração funcional (síndico) que cria uma rígida lei própria (regulamentos) conferindosuplemento de identidade moral a seus habitantes. Nele ganham substância os ideais de autorrealização e sucesso”. Omuro do capitalismo avançado, que cerca o condomínio, “substitui a dimensão criativa da negação (não) pela funçãoreificante (é isso)” (idem, p. 66).
[6] A própria linguagem nos trai aqui: falamos no sujeito como se ele fosse uma entidade constante, que não sofreoscilações e não se destitui. Cada acontecimento a que se filia um actante destitui os sujeitos de estado anteriores.
[7] Essas paixões não devem ser confundidas com as paixões simples. Diz Barros (idem, p.62): “enquanto as paixõessimples resultam da modalização do objeto de valor pelo querer ser, as paixões complexas definem-se pelacombinação, compatível em maior ou menor grau do querer ser com o saber sobre as possibilidades de ocorrência ounão da conjunção desejada pelo sujeito da espera. O saber poder sobremodaliza a espera. São os casos de tristeza,pesar, tormento, tortura, aflição ou de alegria, felicidade, contentamento”.
[8] Há que falar do acontecimento de um modo que não o desacontecimentalize. Há quatro formas dedesacontecimentalização e domesticação do acontecimento: 1) a do sujeito reativo; 2) a do sujeito obscuro; 3) a dosujeito varejista (espalhamento); 4) a do sujeito da estesia solipsista. Desenvolvi isso a partir de Badiou em Prado(2016). Badiou desenvolve isso, mas com três sujeitos antiacontecimentais, em seu livro Lógicas de los mundos (2008,p. 72).
Referências
BADIOU, A. Lógicas de los mundos. Buenos Aires, Manantial, 2008.
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Trabalho apresentado no GT COMUNICAÇÃO E SOCIABILIDADE ,no XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016
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