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A USUCAPIÃO FAMILIAR: ASPECTOS CRÍTICOS
Celmo Ferreira alves1
Silvia de Abreu Andrade Portilho2
RESUMO
Através da Lei 12.424 de 16 de junho de 2011, foi inserido no Código Civil Brasileiro
de 2002 o artigo 1240-A que regulamenta a usucapião familiar, usucapião conjugal,
usucapião urbano por abandono do lar, pró-família, assim batizadas pela doutrina.
Refere-se a uma nova modalidade de aquisição da propriedade imóvel vinculada
diretamente ao término do vínculo matrimonial entre ex-cônjuges ou ex-
companheiros, o que a remete diretamente ao Direito de Família. Tem como
requisito principal e polêmico a expressão “abandono do lar” tornando-a amplamente
discutida, devido a promulgação, outrora, da EC nº66 de 2010 que dizimou a culpa
pelo desfazimento da sociedade conjugal. Por isso, a proposta desse trabalho é,
sem esgotamento do assunto, tecer uma breve análise do instituto da usucapião,
procurando demonstrar uma interpretação sensata do texto frio da recente norma e
suas implicações no Direito das Famílias. Para tal fim, analisou-se as mais diversas
doutrinas e jurisprudências, pois todos estão em estado de alerta com o
direcionamento do novo dispositivo.
PALAVRAS-CHAVE: Usucapião. Família. Abandono do lar. Culpa.
1 INTRODUÇÃO
Foi inserida uma nova modalidade de usucapião no ordenamento jurídico
brasileiro, tratada pela doutrina como usucapião familiar, usucapião urbana por
abandono do lar ou usucapião pró-família, a depender da doutrina.
Trata-se de uma forma aquisitiva da propriedade imóvel urbana entre ex-
cônjuges ou ex-companheiro criada pela lei 12.424 de 16 de junho de 2011 que 1Graduando do 10º período do Curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas Professor Alberto Deodato – Belo Horizonte/MG. 2Advogada; Mestra em Direito Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Pós-Graduada em Direito Público (Newton Paiva) e Direito Processual Civil (UGF); Professora de Direito Civil, Prática Civil e Hermenêutica Jurídica na Faculdade de Ciências Jurídicas Professor Alberto Deodato.(orientadora)
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inseriu o artigo 1240-A no Código Civil de 20023, objeto desse estudo e de severas
críticas pela comunidade jurídica.
A referida norma está sendo objeto de diversas discussões e gerando
significativas dúvidas na doutrina e nos operadores do direito em geral. O ponto
central dos debates doutrinários giram em torno da expressão usada pelo legislador
“Abandonou o lar”. Tal expressão vai na contramão do princípio constitucional da
vedação ao retrocesso, pois com a promulgação da Emenda Constitucional nº66 de
2010 não há mais que procurar culpados entre os cônjuges pelo fim da relação
afetiva.
Outros pontos relevantes referem-se a como interromper o prazo
prescricional aquisitivo entre os cônjuges; se o bem é particular, devido o regime de
bens adotados, pode ser objeto da ação de usucapião familiar ou somente o bem
comum do casal.
Para tal fim, realizou-se um estudo da usucapião e do elemento culpa.
Para tanto recorreu-se a legislação vigente, a doutrina e as, ainda primárias,
jurisprudências sobre o tema.
Posto isso, a presente pesquisa se fez necessária em nome da boa
ordem social, pois o atual instituto da usucapião familiar trouxe questões que devem
ser analisadas devido a sua influência diretamente no direito das famílias, ao passo
que problemas não faltarão quando de sua aplicação em casos concretos.
2 A USUCAPIÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
No Brasil a legislação que regula a usucapião se compõe de diversas leis,
dependendo da modalidade. A Constituição da República promulgada em 1988
trouxe em seu bojo a proteção à propriedade e junto o imperativo de cumprimento
da função social, sob pena de desapropriação sanção e aquisição por terceiros, por
meio do instituto da usucapião.
3 Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta,
com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
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Na seara infraconstitucional, O Código Civil de 2002, por sua vez,
normatiza algumas modalidades que serão citadas mais adiante, principalmente a
mais recente de suas modalidades, tema desse trabalho.
2.1. CONCEITO E REQUISITOS GENÉRICOS DA AÇÃO DE USUCAPIÃO
2.1.1. CONCEITO
Dentre os mais variados, tem-se a necessidade de ser consistente na
conceituação do instituto da usucapião.
Nas palavras dos doutrinadores Cristiano Chaves de Faria e Nelson
Rosenvald4, “A usucapião é modo originário de aquisição de propriedade e de outros
direitos reais, pela posse prolongada da coisa, acrescida de demais requisitos
legais”.
De forma simples e objetiva, o professor César Fiúza5 afirma que
usucapião é: “tipo extraordinária de aquisição da propriedade. Funde-se em posse
prolongada, que transforma situação de fato em situação de direito”.
2.1.2. REQUISITOS GENÉRICOS DA AÇÃO DE USUCAPIÃO
Em qualquer modalidade de usucapião em nosso ordenamento jurídico,
são essenciais três requisitos: o tempo, a posse mansa e pacífica e o bem passível
de usucapião, além do requisito psíquico animus domini, exercício da posse com
vontade de ser dono.
Como requisitos acessórios, a depender de cada modalidade, a título
ilustrativo vale destacar: justo título capaz de transferir-lhe o domínio; boa-fé ou
ignorando o vício ou obstáculo para aquisição do domínio; estabelecimento no
imóvel da sua moradia habitual, ou obras e serviços tornando a terra produtiva por
seu trabalho; não ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural, a depender do
tamanho da área, conforme o caso, dentre outros.
4FARIAS,Cristiano Chaves; ROSENVALD,Nelson. Curso de Direito Civil: Direitos Reais v.5.p.396. 5FIÚZA, Cesar; Direito Civil: Curso completo. – 13. Ed. Revista, atualizada e ampliada p.784.
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Os requisitos são divididos, segundo as melhores doutrinas, em:
pessoais, reais e formais, vistos a seguir em apertada síntese.
Os requisitos pessoais tratam das qualidades necessárias atribuídas às
pessoas do possuidor e proprietário. Analisa quem tem legitimidade ativa e passiva
para a ação de usucapião, o que a lei cuidou de definir.
A usucapião não será proposta entre atuais cônjuges, companheiros; pais
e filhos durante o poder familiar; em desfavor dos absolutamente incapazes; entre
tutelados ou curatelados e seus tutores e curadores, enquanto durar; contra os que
se acharem servindo nas Forças Armadas, em tempo de guerra; e contra os
ausentes do país em serviço público.
As pessoas físicas e as pessoas jurídicas, nacionais ou estrangeiras, tem
capacidade e legitimidade para figurar no pólo ativo ou passivo da ação de
usucapião. Quanto às pessoas estrangeiras, necessário faz a autorização de
funcionamento no país e cumprimento de certas restrições legais.
Na legitimidade passiva, é imprescindível figurar a pessoa do proprietário
constante no registro imobiliário, pois trata-se da pessoa que terá seu direito de
propriedade suprimido. Os confinantes também são citados para responderem a
ação de usucapião, consoante artigo 942 do Código de Processo Civil.
Quanto aos requisitos reais, referem-se aos bens passíveis de usucapir
que sejam de domínio do particular, ao passo que os bens dos entes públicos não
se subordinam a tal incidência.
Tal entendimento está conforme impõe a Súmula 340 do STF6, que assim
determina: "desde a vigência do Código Civil, os bens dominiais, como os demais
bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião". Essa orientação foi
recepcionada pela Carta Constitucional de 1988, como se vê nos seus artigos 183, §
3º, e 191, parágrafo único.
Já os requisitos formais, indicam os elementos necessários e comuns do
instituto, como a posse mansa e pacífica e contínua, o lapso temporal ininterrupto,
acompanhados do animus domini, que significa a intenção ou a vontade de ser
dono.
Os elementos especiais ou suplementares, por sua vez, variam de acordo
com a modalidade a ser aplicada no caso concreto. A título exemplificativo tem-se
6 BRASIL, Supremo Tribunal Federal.
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que: na usucapião ordinária é o justo título e a boa-fé; na usucapião urbana é a
moradia sua ou de sua família; na usucapião rural é o trabalho – nestas últimas a
exigência de não possuir outra propriedade, seja urbana ou rural.
Exige-se a posse ad usucapionem, que nas lições da professora Maria
Helena Diniz7 é: “Detenção física de uma coisa corpórea durante determinado
período de tempo, com ânimo de tê-la para si, como se proprietário fosse”.
Como visto, os requisitos formais podem ser comuns e específicos, a
depender da modalidade que cada caso requer, salientando que todas as
modalidades deverão ater-se ao cumprimento da função social da propriedade e
proporcionar moradia digna à família como objetivo final.
2.2. AS ESPÉCIES DE USUCAPIÃO PREVISTAS NO ORDENAMENTO JURÍ- DICO BRASILEIRO
Como visto, a usucapião se dá pelo abandono da posse pelo proprietário
do bem, é o descaso com a coisa sem dar a devida destinação social ao bem, que
pode ser imóvel ou móvel, sendo que este último não é objeto desse estudo.
No Brasil iniciou-se com o revogado Código Civil de 1916, muito embora
seu preceito fundamental era o “ter” e não o “ser”.
A Constituição Federal de 19348 trouxe para o ordenamento jurídico
brasileiro a usucapião “pro-labore”.
A vigente Carta Constitucional de 1988, veio para sacramentar os
princípios universais dos direito humanos à uma morada digna como mínimo
necessário a mantença de uma família, bem como a função social da propriedade.
Em janeiro de 2003, entrou em vigor o Novo Código Civil Brasileiro,
trazendo em seu bojo consideráveis avanços legislativos à usucapião, reduzindo
prazos, qualificando as posses, e adaptando-as às mudanças sociais.
Na sequência, serão abordados cada uma das modalidades previstas no
ordenamento jurídico brasileiro, numa rápida passagem, finalizando com a mais
nova modalidade inserida em nosso ordenamento legal, usucapião familiar, objeto
desse estudo.
7 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das coisas. Vol. 5. p.165.
8BRASIL, Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil.
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2.2.1 USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA
Esta é a modalidade de maior dilação temporal prevista no atual Código
Civil. Seu fator fundamental é o tempo necessário para conversão da posse em
propriedade. Os prazos são: quinze anos para a posse desqualificada e dez anos
para posse qualificada. Neste último caso o usucapiente será beneficiado com a
redução de cinco anos do prazo por dar função social à propriedade.
Nas palavras de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald9, é a
posse desqualificada simples extraordinária:
A posse simples é aquela que se satisfaz com o exercício de fato pelo usucapiente de algum dos poderes inerentes à propriedade (art. 1.196 do CC), condizendo-se o possuidor como faria o dono, ao exteriorizar o poder sobre o bem. Assim mesmo que não habite o imóvel - deixando-o sob vigilância de um detentor -, alcançará a usucapião em quinze anos, caso satisfaça os outro requisitos.
Como previsto, na modalidade extraordinária descrita no artigo 1.238 do
Código Civil vigente, a intenção do legislador é punir quem abandona a propriedade
por um lapso temporal de quinze anos. Neste caso, independentemente de título ou
boa-fé, seja posse direta ou indireta, com ou sem benfeitoria, bastando apenas o
animus de possuir como seu, o possuidor poderá usucapir a propriedade. Ao mesmo
tempo, o legislador se curvou diante do principio constitucional da função social da
propriedade, quando no parágrafo único do aludido artigo reduziu para dez anos o
prazo, nos casos de uso como moradia habitual, ou realizado obras ou serviços
sociais produtivo. Trata-se da posse qualificada, afirmando em maior grau a função
social a que a propriedade se destina.
2.2.2 USUCAPIÃO ORDINÁRIA E TABULAR
Aqui o legislador aplicou o prazo de dez anos para a modalidade ordinária
e de cinco anos para a qualificada tabular (art. 1242 e parágrafo único do CC). Nesta
modalidade, o fator determinante é o justo título e boa-fé.
Por justo título, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald10,
lecionam que: “é o instrumento que conduz um possuidor a iludir-se, por acreditar
9FARIAS, Cristiano Chaves;ROSENVALD,Nelson. Curso de Direito Civil: Direitos Reais v.5.p.414.
7
que ele lhe outorga a condição de proprietário”. Para melhor corroborar este
entendimento, prosseguem os citados autores: “É o ato translativo inapto a transferir
a propriedade por padecer de um vício de natureza formal ou substancial”.
Quanto à boa-fé, necessário socorrer-se da classificação da posse, onde
o artigo 1201 do Código Civil refere-se à ignorância do possuidor quanto ao vício ou
obstáculo que o impede adquiri a coisa, acreditando já lhe pertence.
A denominada usucapião tabular está prevista no parágrafo único do
artigo 1.242 do Código Civil11, estabelecendo que:
Será de 5 anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.
Trata-se de modalidade inédita de prescrição aquisitiva, cujos requisitos
são aquisição com justo título oneroso, com base no registro imobiliário,
posteriormente cancelado, somado à moradia ou investimentos de interesse social e
econômico, verdadeira afirmação da função social da posse.
2.2.3 USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA E RURAL
A Constituição Federal de 1988 normatiza em seus artigos 183 e 191,
respectivamente, a usucapião especial urbana ou pró-moradia(áreas de até
250,00m2) e a usucapião especial rural ou pró-labore(áreas de até 50hectares),
ambas com idêntica reprodução em seus respectivos artigos 1240 e 1239 do Código
Civil de 2002. A Especial Urbana é também prevista no Estatuto das Cidades( Lei
10.257/2001) em seu artigo 9º, inclusive na modalidade coletiva em seu artigo 10º,
abraçando desta forma as famílias carentes que moram em comunidades como vilas
e favelas.
Para uma melhor analise, tem-se as palavras dos mestres Cristiano
Chaves de Farias e Nelson Rosenvald12:
10FARIAS, Cristiano Chaves;ROSENVALD,Nelson. Curso de Direito Civil: Direitos Reais v.5.p.422. 11Vade Mecum Acadêmico de Direito Rideel/Anne Joyce Angher,organização.-16.ed.-São Paulo: Rideel,2013, p.190. 12
FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD,Nelson.Curso de Direito Civil: Direitos Reais v.5 ,p.434
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A usucapião especial é uma das mais claras demonstrações do principio da função social da posse na Constituição de 1988, pois homenageia aqueles que com animus domini, residem e/ou trabalham no imóvel em regime familiar, reduzindo os períodos aquisitivos de usucapião para cinco anos. Tanto a usucapião urbana como a rural seriam espécies de miniusucapiões extraordinárias, já que ambas dispensam os requisitos do justo título e boa-fé, contentando-se com a posse com animus domini, mansa e pacífica.
O legislador pretendeu, ao elaborar estas normas, prestigiar os imóvel já
ocupado por quem não tenha outra propriedade urbana ou rural, assegurando um
patrimônio mínimo à entidade familiar. Nessa modalidade, pessoalidade da posse é
fundamental, pois a doutrina dominante não entende que possa ser somado a posse
do atual com a de seu antecessor.
2.2.4. USUCAPIÃO URBANA COLETIVA
Na lei 10.257 de 10 de Julho de 200113, Estatuto da Cidade, o artigo 10
e seu parágrafo primeiro, tutelou uma modalidade de usucapião capaz de beneficiar
toda uma comunidade, como vilas e favelas. Refere-se a usucapião coletiva urbana,
assim descrita no texto da norma:
As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural. § 1o O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas.
A usucapião coletiva de imóveis particulares é um forte aliado da função
social da posse. Permite a aquisição da propriedade em benefício de possuidores
que não poderiam adquirir individualmente, pois residem em moradias acessíveis
apenas por becos e vielas de difíceis delimitações, ou porque o tamanho da área
possuída não atende ao tamanho mínimo legal da área individualmente ocupada.
A área bruta tem que ser de mais de 250,00m2 e a sentença declaratória
será proferida em nome dos possuidores envolvidos no processo judicial, formando
assim um condomínio necessário, atribuindo a cada um idêntica fração ideal.
Ressalta-se que as frações ideais não se dividirão em unidades autônomas, salvo 13Vade Mecum Acadêmico de Direito Rideel/Anne Joyce Angher,organização.-16.ed.-São Paulo: Rideel,2013, p.1610.
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deliberação favorável de 2/3 dos condôminos, de acordo com o que estabelece o
artigo 10 e seu parágrafo quarto do Estatuto da Cidade, lei 10.257 de 10 de julho de
200114.
2.2.5. USUCAPIÃO URBANA ADMINISTRATIVA
A Lei 11.977/2009, também conhecida como a lei do Programa Minha
Casa Minha Vida-PMCMV, visando a proteção ao direito constitucional à moradia,
inseriu no ordenamento jurídico brasileiro uma inédita modalidade de regularização
fundiária processada exclusivamente na via administrativa caso não haja conflito.
Trata-se da Usucapião Administrativa, que por sua vez não exige sentença judicial.
Precedida de várias etapas administrativas a cargo do Poder Público
Municipal para em seguida são enviadas ao oficial registrador imobiliário para que
faça as averbações e registros. As fases compreendem: o Poder Público Municipal
elabora o Auto de Demarcação Urbanística; após segue-se para averbação no
registro imobiliário; na sequência será elaborado pelo município o Projeto de
Regularização Fundiária também enviado ao oficial de registro imobiliário para
averbação. Finalmente, após decorridos cinco anos da posse, o município expedirá
os títulos para serem registrados no registro de imóveis, sem atuação do Poder
Judiciário, se não houver litígios.
Nos ensinamentos dos doutrinadores Cristiano Chaves de Farias e
Nelson Rosenvald15, a usucapião administrativa é:
Ocupação pacifica por mais de cinco anos; áreas de até 250m2 utilizadas como única moradia, beneficiando famílias que não tenham propriedade imobiliária urbana ou rural; que a área a ser demarcada esteja em zona de interesse social – ZEIS, assim prevista em lei municipal ou no plano diretor; áreas declaradas pelo Poder Público de interesse para implantação de projetos de regularização fundiária de interesse social. As áreas de interesse específico devem envolver o mesmo sentido, prestigiando a população carente ou situações necessárias para a regularização da cidade.
Nota-se que a intenção do legislador é no sentido de adoção de meios
simplificados de efetivação das situações jurídicas, convertendo a legitimação da
posse em propriedade, pela via administrativa. 14Vade Mecum Acadêmico de Direito Rideel/Anne Joyce Angher,organização.-16.ed.-São Paulo: Rideel,2013, p.1610. 15FARIAS, Cristiano Chaves;ROSENVALD, Nelson.Curso de Direito Civil: Direitos Reais v.5 ,p.450.
10
2.2.6. USUCAPIÃO INDÍGENA
Inserida no artigo 33 da lei nº 6001 de 197316, que dispõe: “O índio,
integrado ou não, que ocupe como próprio, por dez anos consecutivos, trecho de
terra inferior a cinqüenta hectares, adquirir-lhe-á a propriedade plena”. O parágrafo
único não aceita tal aquisição quando se tratar de terras de propriedade da União,
ocupadas por tribos, bem como as áreas reservadas pelo Estatuto do Índio ou terras
de propriedade coletiva do grupo tribal.
Com muita propriedade sobre o assunto, Cristiano Chaves de Farias e
Nelson Rosenvald17, discorrem sobre a norma:
Com efeito, tratando-se de área máxima de 50 hectares de posse, qual seria a necessidade do índio esperar 10 anos de prazo para usucapir, quando o artigo 191 da Constituição Federal lhe faculta a mesma pretensão no prazo reduzido de 05 anos pela senda da usucapião rural?
Como visto, a norma já não produz a mesma eficácia, pois atualmente,
diante da criação de novas modalidades de usucapião em prazos menores, foi
subtraída sua efetividade.
2.2.7. USUCAPIÃO ESPECIAL DO ARTIGO 68 DO ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS-ADCT
De acordo com o dispositivo do artigo 68 do ADCT18, “Aos
remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras
é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos
respectivos”.
Para uma clássica síntese do tema, vai uma parte do acórdão proferido
pelo Superior Tribunal de Justiça19, da lavra do Ministro Benedito Gonçalves:
16Vade Mecum Acadêmico de Direito Rideel/Anne Joyce Angher,organização.-16.ed.-São Paulo: Rideel,2013, p.869. 17
FARIAS, Cristiano Chaves;ROSENVALD, Nelson.Curso de Direito Civil: Direitos Reais.v.5,p.460. 18Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. 19BRASIL, Superior Tribunal de Justiça.
11
(...).Os quilombolas tem direito à posse das áreas ocupadas pelos seus ancestrais até a titulação definitiva, razão pela qual a ação de reintegração de posse movida pela União não há de prosperar, sob pena de por em risco a continuidade dessa etnia, com todas as suas tradições e culturas. O que, em último, conspira contra pacto constitucional de 1988 que assegura uma sociedade justa, solidária e com diversidade étnica. Resp 931060/RJ Rel. Ministro Benedito Gonçalves.Dje.19/03/2010
Como seres humanos e dignos, os quilombolas são possuidores e o
imóvel será registrado no Cartório de Imóveis em nome da comunidade e poderá
recair sobre bens públicos. Essa é uma exceção às regras dos ordenamentos
contidos nos artigos 183 e 191 da Constituição Federal de 1988.
3 A USUCAPIÃO FAMILIAR PREVISTA NA LEI 12.424/2011: ASPECTOS CRÍTI- COS
A família, base de toda sociedade, há de ter uma proteção especial do
Estado, pois sem família não teria sentido a busca incessante por um mundo
civilizado e de todos, dignamente. Os modelos de família avançaram com conquistas
significantes. A felicidade ocupa o topo da pirâmide familiar. Por isso, novas famílias
surgiram e o ordenamento jurídico está se amoldando aos mais recentes modelos
de família surgidos. O Estado intervém o mínimo possível, deixando a livre escolha
de convívio e de regime de bens entre os cônjuges ou companheiros, prevalecendo
o afeto.
Nesse sentido, o legislador infraconstitucional, através da lei 12.424 de 16
de junho de 2011, inseriu no artigo 1240-A no Código Civil de 200220 a mais recente
modalidade de aquisição da propriedade imóvel, a usucapião familiar ou usucapião
pelo abandono do lar, dentre outras denominações, a depender do doutrinador.
Essa nova modalidade aquisitiva tem seus requisitos semelhantes a
Usucapião Especial Urbana disciplinada pelo artigo 1240 do Código Civil vigente e
pelo artigo 183 da Constituição Federal de 1988, salvo o expressão “cuja
propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar”,
acrescentada à usucapião familiar, objeto desse trabalho.
A redação do artigo 1240-A que regulamenta a usucapião familiar é a
seguinte:
20Vade Mecum Acadêmico de Direito Rideel/Anne Joyce Angher,organização.-16.ed.-São Paulo: Rideel,2013, p.190.
12
Aquele que exercer, por dois anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250 m2 cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex- companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. Parágrafo único:O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
Referida norma aplica-se, também, às uniões homoafetivas, pois os
tribunais superiores já se manifestaram favorável às relações homoafetivas como
entidade familiar. Portanto, a interpretação do artigo 1723 do Código Civil de 200221
deverá ser conforme a Constituição Federal para reconhecimento da união
homoafetiva como mais uma entidade familiar como se fosse união estável. Posto
isto, verifica-se a possibilidade de usucapião familiar entre pessoas do mesmo sexo.
Sobre o novo instituto da usucapião familiar, os mestres Cristiano Chaves
de Farias e Nelson Rosenvald22, discorre: “desse novo instituto são destacados três
requisitos conjuntos: “a) a existência de um único imóvel urbano comum; b) o
abandono do lar por parte de um dos cônjuges ou companheiros; c) o transcurso do
prazo de 2 anos”.
Vale dizer que se trata de uma norma que adentrou desordenadamente
no Direito das Coisas, discriminando quem habita área rural nas mesmas condições
e atropelando institutos há tempos consagrados pelo contrato constitucional, entre
eles o regime de bens contidos no Direito de Família. Por isso que está em
julgamento a eficácia da questionada norma da usucapião conjugal, também assim
denominada.
Para Tereza Cristina M. Mafra e Marcelo de O. Milagres, trabalho
apresentado na V Jornada de Direito Civil – Conselho de Justiça Federal23:
O usucapião, como modalidade de aquisição originária de direitos reais, atende à exigência de funcionalidade social que se atribui ao exercício de direitos patrimoniais, não se ajustando à idéia pretendida e discutida de sanção pelo rompimento de vínculos de natureza afetiva [...] A inovação legislativa vai além do texto constitucional. Além disso, contraria a conhecida regra do artigo 1.244 do Código Civil, acerca das causas que obstam o curso do tempo. Em homenagem à estabilidade das relações familiares, não há que se falar em curso do tempo ou prescrição entre
21Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. 22
FARIAS, Cristiano Chaves;ROSENVALD, Nelson.Curso de Direito Civil:Direitos Reais v.5, p.464. 23V JORNADA DE DIREITO CIVIL-Centro de Estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal.
13
cônjuges (e companheiros) na constância da sociedade conjugal(art. 197,I, do Código Civil). O art. 1240-A, além de fixar prazo aquém da previsão constitucional, parece incrementar conflitos no âmbito familiar.
Sair do lar, por si só, não se pode ajustar à posição de inércia em
relação à coisa e não configura o ânimo de abandono. Por isso, no âmbito do Direito
de Família, a idéia de abandono, hoje, é extremamente controvertida.
Quanto à violação do dever conjugal, o artigo 1566 do Código Civil24
vigente assim descreve: “são deveres de ambos os cônjuges: I-fidelidade recíproca;
II-vida em comum, no domicílio conjugal; III-mútua assistência; IV-sustento, guarda e
educação dos filhos; V respeito e consideração mútuos”(Código Civil, 2002, p.206).
Nota-se que o artigo 1240-A do Código Civil, que regula a usucapião
pelo abandono do lar, permite punir o cônjuge retirante da habitação familiar por não
estar levando a vida em comum no domicilio conjugal. Entretanto, deve-se ressaltar
que o retirante poderá estar cumprindo todos os deveres na mantença da família e
ao mesmo tempo estar sofrendo tamanha punição porque saiu do lar por motivos
alheios à sua vontade. Isto não é abandono do lar e muito menos abandono da
família. Além do mais, refletirá negativamente sobre a possibilidade de reabilitação
conjugal, o que sempre necessita de um período de reflexão.
O abandono do lar contido na expressão “cuja propriedade divida com ex-
cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar”, no estudo apresentado por Tula
Wesendonck – XXI Congresso Nacional do COMPENDI25, escreveu: “o correto seria
interpretar o abandono do lar pelo abandono da posse, requisito essencial para
contagem do tempo de dois anos. Assim a nova lei não estaria exumando o que foi
sepultado”.
Faltou Técnica ao apressado legislador em querer beneficiar a parcela
desfavorecida da sociedade. Percebe-se tratar de uma norma mais política que uma
norma jurídica não dotada de eficácia e efetividade.
O regime de bens, outrora adotado livremente pelos conviventes,
sofrerá questionamentos patrimoniais. A título ilustrativo, se o regime de bens for o
de separação absoluta de bens, descabido falar em “cuja propriedade divida”,
porque o imóvel é exclusivo do cônjuge que abandonou, apesar da composse
24Vade Mecum Acadêmico de Direito Rideel/Anne Joyce Angher,organização.-16.ed.-São Paulo: Rideel,2013, p.205. 25WESENDONCK, Tula, Usucapião familiar: uma forma de solução de conflitos no Direito de Família ou (re)criação de outros? XXI Congresso Nacional do COMPEDI.
14
exercida por ambos. Nesse caso, o ex-cônjuge ou ex-companheiro seria lesado
profundamente em seu direito de propriedade, configurando, desta forma, o
enriquecimento sem causa, não permitido pelo ordenamento civil pátrio.
Sobre o assunto, tem-se posição inserida no enunciado também
aprovado na V Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho de Justiça Federal,
por José Carlos Zebulum26, quando afirma que, antes do abandono, basta a
composse do bem imóvel:
a aquisição do domínio integral pelo ex-cônjuge ou ex-companheiro ocorrerá ainda que o imóvel estivesse na propriedade exclusiva do outro em virtude do regime de bens adotado, sendo suficientes a caracterização da composse pré-existente ao abandono.
O lapso temporal para aplicação da norma será de dois anos contados a
partir da constatação do abandono, quem abandonou ou deu causa ao abandono.
Tem-se o menor prazo entre todas as modalidades da usucapião, ou seja, o biênio
fluindo a partir de 16 de junho de 2011, data de vigência da lei 12.424/11,
atendendo-se aos princípios da segurança e da confiança jurídica, sob pena de
confisco e grave lesão ao direito constitucional de propriedade.
Nessa linha de raciocínio, passa-se a interrupção do poder aquisitivo da
propriedade familiar, por um dos cônjuges ou companheiros, em face do outro.
Para evitar a ocorrência do lapso temporal para propositura da ação da
usucapião familiar, seria oportuno dizer, que resta ao cônjuge retirante sem o ânimo
de abandono, que se faça regulamentar sua saída do lar, a fim de que o abandono
do lar ou da propriedade não fique caracterizado. Para tanto, podem os ex-cônjuges
ou ex-companheiros se valerem de medida cautelar de separação de corpos, ou até
mesmo usar os instrumentos extra-judiciais e particulares. Neste último caso seria
consensual entre os conviventes, a saída de um deles do imóvel da família.
Nesse entendimento tem-se a Súmula 197 do Superior Tribunal de
Justiça27, recepcionada pelo atual Código Civil Brasileiro, que estabeleceu: “O
divórcio direto pode ser concedido sem que haja prévia partilha dos bens.”. Os
avanços do Direito de Família são no sentido de que o mais importante é ser feliz.
Por isso o abandono do lar deve ser interpretado com muita cautela, senão corre-se
26V JORNADA DE DIREITO CIVIL-Centro de Estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal. 27BRASIL, Superior Tribunal de Justiça.
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o risco de punir o ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, mas não
abandonou a família. Fica para os operadores, doutrinadores e julgadores do direito,
em seus combates por justiça, dizer se a prescrição se interromperá apenas uma
vez, como manda o artigo 202 do Código Civil, ou será causa de suspensão ou
impedimento.
O prazo de dois anos para usucapir, cabe ressaltar, foi muito bem
recepcionado pelo princípio da proteção à família. Porém, o Poder Judiciário é de
modelo arcaico, moroso, burocrático e que ainda não está preparado para
processamento de tal ação. Referido fato se dá na certeza que a sentença
declaratória da propriedade, demandará tempo muito superior que o próprio biênio
necessário para ingresso da ação.
Pelo texto frio da norma, percebe-se que o legislador operou sério desvio
em relação às normas do direito de família, impondo gravíssima sanção de
subtração de bem, suprimindo daquele que se retirou do lar o seu patrimônio
mínimo, que poderá ser o único.
Nessa linha de entendimento, os mestres Cristiano Chaves Farias e
Nelson Rosenvald28, discorre:
Antes do advento da lei, para evitar a venda do bem comum - o quê colocaria em risco o direito de moradia do cônjuge que permanecia com a prole -, a solução criativa dos juízes consistia em manter a compropriedade estabelecendo a posse em favor daquele que reside com os filhos, sendo as faculdades de uso e fruição do bem um substitutivo à verba alimentar que seria prestada em pecúnia pelo ex-convivente. Agora, contudo convivem dois sistemas: um objetivamente definido a partir do artigo 1639 do CC, com relação ao patrimônio constituído na constância; e um regime subjetivamente definido pela causa da extinção do vínculo. Há um patrimônio geral – cuja sorte seguirá a autonomia privada do casal ao tempo da união – da e um patrimônio afetado ao acaso , quer dizer, o bem imóvel de moradia do casal, reservado ao convivente inocente, derrogando-se a regime livremente eleito pelos consortes.
Para complementar, Madson Ottoni de A. Rodrigues29, dispara:
Em razão de vincular o direito de propriedade a aspectos personalíssimos como a intimidade, a vida privada, a afetividade e o desejo de coabitação das pessoas, que são incoercíveis. Ademais, a previsão legal em discussão poderá precipitar a desfazimento de matrimônios e uniões estáveis,
28FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil:Direitos Reais v.5 p.467. 29
V JORNADA DE DIREITO CIVIL-Centro de Estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal.p.256.
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afetando a paz familiar e potencializando a litigiosidade das relações familiares. Por outro lado, o abandono a que se refere o dispositivo legal em comento, contraria o sentido tradicional de abandono civil, consistente na intenção do proprietário em não mais ter o bem em definitivo, a exemplo do artigo 1.276 do Código Civil.
Não resta dúvida que o instituo em comento, usucapião familiar, vai na
contramão de princípios, até então, consagrados pela comunidade jurídica e
comemorados pela sociedade. Houve interferência na separação judicial e de fato;
no divórcio e na união estável, e haverá, certamente, nas uniões homoafetivas
Na aplicação da norma haverá confronto com situações em que os
conviventes não estão mais sob o mesmo teto, e em relação à partilha de bens. Se
partilhados os bens, salvo situações legais, foram obedecidas as regras do regime
de bens adotados livremente. Nesta situação, se o retirante sair em benefício da
harmonia familiar, sem o animus do abandono, não seria justo o ex-convivente
retirante ser punido com a perda da propriedade, porque saiu em benefício da prole
para que esta não fique sem abrigo.
No Direito de Família, especialmente no regime de bens, o intérprete da
norma em apreço deverá ter muita cautela. Nos regimes da comunhão parcial de
bens, na participação final nos aquestos, na comunhão universal de bens e na
separação total ou convencional de bens, haverão bens comuns e particulares.
O texto do artigo 1240-A da usucapião familiar tem a expressão: “cuja
propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro”. Sendo assim, entende-se
que os bens particulares por força dos regimes adotados, mesmo ocorrendo o
abandono do lar, não são passíveis da usucapião familiar por parte do cônjuge
abandonado. Entretanto, poderão ser usucapidos por outras modalidades de
usucapião, atendidos os requisitos legais de cada modalidade.
E mais, e nos casos de afastamento espontâneo do lar para evitar
desconfortos emocionais e desencadear para agressões físicas, totalmente
combatida pela Lei 11.340/200630, conhecida como lei Maria da Penha. Questiona-
se se o cônjuge retirante deverá sair por livre vontade ou terá que esperar uma
30BRASIL, LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.
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medida judicial de afastamento do lar para não configurar o abandono do lar. A
resposta para essa pergunta está mais adiante em jurisprudência colegiada.
Sobre o assunto, há de transcrever o atento manifesto da doutrinadora
Maria Berenice Dias31:
O que significa mesmo abandonar? Será que fugir do lar em face da prática de violência doméstica pode configurar abandono? E se um foi expulso pelo outro? Afastar-se para que o grau de animosidade não afete a prole vai acarretar a perda do domínio do bem? Ao depois, como o genitor não vai ser tachado de mau pelos filhos caso manifeste oposição a que eles continuem ocupando o imóvel?
Outra situação a ser analisada seria a retirada do ex-cônjuge ou ex-
companheiro da residência da família por estar sofrendo agressões físicas. Neste
caso a culpa, estudada mais adiante, pelo abandono do lar, recairia sobre o retirante
e privilegiaria o agressor com a possibilidade de usucapir o bem depois do prazo de
dois anos. Portanto, essas são apenas algumas de tantas respostas que deverão
ser dadas no curso de uma ação, dependendo do caso.
Quanto à área, o legislador deveria ter sido advertido que um imóvel com
área limite, um dos requisitos da usucapião familiar, de 250,00m2 (duzentos e
cinquenta metros quadrados), pode representar grandes valores, chegando a atingir
preços bem elevados, dependendo de sua localização geográfica.
Por conseguinte, passa-se à analise dos prefixos “ex” que antecedem os
cônjuges ou companheiros no texto da norma, que também merecem uma análise.
Nesse sentido, escreveu o professor José Fernando Simão32:
A partícula ex significa que a união estável ou o casamento acabaram de fato ou de direito. A extinção de direito significa que houve sentença ou escritura pública reconhecendo o fim da união estável (ação declaratória de extinção da união estável), ou sentença ou escritura pública de divórcio ou separação de direito, bem como liminar em medida cautelar de separação de corpos. A extinção de fato significa fim da comunhão de vidas entre cônjuges e companheiros que não se valeram de meios judiciais ou extrajudiciais para reconhecer que a conjugalidade. É a simples saída do lar conjugal.
Como visto, ex-cônjuge ou ex-companheiro são aqueles que não mais
possuem vínculos matrimoniais. Entende-se que o casamento ou a união estável
acabaram de direito ou de fato.
31DIAS, Maria Berenice. Usucapião e abandono do lar: a volta da culpa? 32SIMÃO, José Fernando. Usucapião familiar: problema ou solução.
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Fica evidente estar-se diante de uma norma que não trilhou com técnica
pelos os caminhos da casa legislativa. Trata-se da Medida Provisória nº 514 de 2010
convertida na lei 12.424 de 2011. Resultado da Medida provisória nº 459 de 2009
que anteriormente foi convertida na lei nº 11.977 de 07 de julho de 2009 que instituiu
o Programa Minha Casa Minha Vida. Isto.
Nessa corrente surgiu o artigo 1240-A do Código Civil de 2002, que
dispõe sobre a usucapião familiar, cheio de polêmicas, fruto de conversões de
Medidas Provisórias em leis, tão apressadamente que abandonou a técnica.
3.1 A CULPA NO DIREITO DE FAMÍLIA E A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 66/2010
O ponto central e polêmico da usucapião familiar é o abandono do lar,
que carrega consigo o elemento culpa, objeto de impiedosas críticas por parte dos
mais renomados doutrinadores.
Cabe registrar que o passado do Direito de família foi marcado pela
discussão do motivo da separação. O revogado Código Civil de 1916, em seu artigo
317 elencava que para haver a ação de desquite deveria ter algumas justificativas,
dentre elas, encontrava-se o abandono do lar conjugal por dois anos contínuos.
Essa procura por um culpado, permaneceu até pouco tempo em razão de
o legislador, ao elaborar o Código Civil de 2002, manter a regra do ordenamento
revogado, mesmo diante de uma doutrina consolidada no sentido de que a
separação ou o divórcio deveriam servir apenas para livrar a pessoa da infelicidade
de ter de conviver com quem não mais sentia afeto nem desejo de vida em comum.
A Emenda Constitucional 66/2010 inseriu o parágrafo 6º no artigo 226 da
Constituição da República33, dispondo que: “o casamento civil pode ser dissolvido
pelo divorcio”. Com isto, aboliu os prazos estabelecidos para o divórcio e consagrou
a liberdade pelo fim da afetividade entre os cônjuges, bem como sepultou o princípio
da culpa pela descontinuidade da relação conjugal, preservando-se o direito de ser
feliz.
33§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.
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Os entendimentos dominante da doutrina sobre o abandono
do lar e o resgate da culpa, são sintetizados nas palavras do eminente jurista Elpídio
Donizete34:
De minha parte, só vislumbro malefícios nessa modalidade de usucapião. Explico. O requisito nuclear da aquisição da propriedade pelo ex-cônjuge que permanece no imóvel é o abandono do lar pelo outro. Abandono do lar pressupõe culpa ou, no mínimo, falta de motivo justificado para não mais morar sob o mesmo teto. Exemplificativamente, para não perder parte do imóvel, o homem vai ter que provar que saiu de casa porque não mais aguentava as ranzinzices da mulher e esta, por sua vez, vai ter que demonstrar que, cansada de sofrer agressões físicas e psicológicas, resolveu deixar o traste para trás. O fato é que essa esdrúxula modalidade de usucapião vai ensejar o revolvimento de antigas e dolorosas feridas, tudo no afã de demonstrar que o “meu inferno é o outro”. Estamos assistindo ao retorno do ingrediente denominado culpa, o qual foi abolido da indigesta receita das separações conjugais pela recente EC 66/2010.
Assim sendo, deverá ser com muita reflexão e técnica a discussão do
elemento culpa por abandono do lar, sob pena de ressuscitar um embate
desnecessário desse elemento constitucionalmente enterrado, implacavelmente
atacado pela doutrina majoritária quando se fala em usucapião pelo abandono do
lar. Ao magistrado, nessa situação, deverá se valer dos fins sociais e às exigências
do bem comum.
3.2 – REQUISITOS DA USUCAPIÃO FAMILIAR
O novo modelo de usucapião inserido no ordenamento jurídico através do
artigo1240-A do Código Civil Brasileiro exige, além dos pressupostos da usucapião
especial urbana já mencionada, que um dos ex-cônjuges ou ex-companheiros tenha
abandonado a propriedade comum pelo prazo de dois anos.
Exige-se, ainda, que o bem imóvel esteja localizado em área urbana de
até duzentos e cinquenta metros quadrados, que por sua vez será objeto de
discussões no que tange a dimensão do imóvel, pois nem sempre o menor imóvel
vale menos. Já que o instituto visa beneficiar as classes de menor renda.
Outro requisito é o da posse mansa, pacífica, direta e contínua sem
qualquer oposição por um período de dois anos, mais o indispensável requisito,
animus domini – a vontade de ser dono.
34DONIZETTI, Elpídio. Um Consolo para o abandonado: Usucapião do lar desfeito.
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Outro requisito importante, apesar de negativo, é que o usucapiente não
seja proprietário de nenhum outro imóvel, seja urbano ou rural. Nesse sentido, tem-
se a idéia de beneficiar quem ainda não tem um lar para abrigar a família.
Vale dizer que cabe ao réu o ônus de provar que o autor já é proprietário
de outro imóvel, pois seria impossível o autor fazer tal prova que é em todo território
nacional. Como também provar se o réu já se beneficiou da ação anteriormente.
Portanto, nota-se que o fim a que se destina a norma em estudo é dar
garantia de moradia àquele que não tem, desaguando assim, no direito fundamental
da dignidade da pessoa humana.
O abandono do lar por um dos cônjuges ou companheiros não será muito
explorado nessa parte do trabalho, pois já foi objeto de várias discussões em seu
decorrer, inclusive quando se fala no resgate da culpa, já derrotada pela Emenda
Constitucional nº66 de 2001. O verbo abandonar deve ser entendido como inércia do
cônjuge ou companheiro que saiu do imóvel e não tomou nenhuma medida em
defesa de sua propriedade. Por isso a redação mais correta seria constar no artigo
1240-A ‘abandono da propriedade’ e não ‘abandono do lar’ como consta.
3.4 – JURISPRUDÊNCIA
Os Tribunais já estão se manifestando sobre o tema. Em publicação no
site do Tribunal de justiça de Minas Gerais35, tem-se, em resumo, a noticia intitulada:
“Juiz garante Usucapião Conjugal”. Os trechos são os seguintes:
Uma mulher divorciada ganhou na Justiça o direito ao domínio total e exclusivo de um imóvel registrado em nome dela e do ex-marido, que se encontra em local incerto e não sabido. A decisão do juiz Geraldo Claret de Arantes, em cooperação na 3ª Vara de Família de Belo Horizonte, tomou como base a Lei 12.424/2011, que regulamenta o programa Minha Casa Minha Vida e inseriu no Código Civil a previsão daquilo que se convencionou chamar de “usucapião familiar”, “usucapião conjugal” ou, ainda, “usucapião pró-moradia (...)Foram juntados ao processo documentos que provaram o antigo casamento, o divórcio e o registro do imóvel em nome do ex-casal. A localização, o tamanho e o tempo de uso da casa pela mulher também foram observados pelo magistrado. (...)No pedido liminar à Justiça, a mulher comprovou ser portadora de doença grave, necessitando imediatamente do pleno domínio da casa onde vive para resolver questões pendentes. A não localização do ex-marido, comprovada nos autos, impedia qualquer negociação que envolvesse o imóvel.
35BRASIL,Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
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Decidido liminarmente e não tomou conhecimento de que o lapso
temporal de dois anos deveriam serem computados a partir da entrada em vigor da
norma trazida pela lei 12.424/2011, o que compromete a segurança jurídica.
Por conseguinte, passa-se ao entendimento do Tribunal de Justiça do
Distrito Federal36, quanto a uma questão que envolve o tema mais polêmico desse
trabalho, o abandono do lar, julgado a seguir:
Ementa: Direito Civil. União Estável. Imóvel adquirido durante período de convivência. Perda da meação pelo companheiro. art. 1.240-A. Aplicação analógica. Companheira vítima de violência doméstica e familiar. Inaplicabilidade. Partilha necessária. Segundo dispõe o art. 1.725 do Código Civil , reconhecida a união estável, aplica-se o regime da comunhão parcial de bens. Não comprovado, na hipótese, os requisitos para Usucapião nos termos do art. 1.240-A, em especial o abandono do lar e a posse sem oposição, inviável aplicação analógica deste dispositivo à companheira anteriormente vítima de violência doméstica e familiar a partir da interpretação dos justos objetivos da lei Maria da Penha , ainda mais quando já reparada financeiramente por tal ocorrência.
Percebe-se tratar de um entendimento colegiado que não reconheceu
como abandono do lar a retirada do cônjuge autor de violência doméstica contra a
mulher. Nesse caso não há que se falar em posse sem oposição, por força dos
justos objetivos da Lei Maria da Penha.
Pelo visto podem cumular ações de dissolução de união estável,
separação e divórcio, com usucapião familiar, o que se ter como positivo.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com uma breve exposição ao longo deste trabalho, foi analisada uma
apressada norma que, não obstante tenha sido criada com o objetivo de cumprir a
exigência da função social da propriedade, acabou trazendo inúmeras discussões e
críticas, no sentido até mesmo de afrontar o direito de propriedade e o regime de
bens, criando um surpreendente modo de perda da propriedade com um minúsculo
espaço de tempo.
Como se não bastasse, o legislador ao editar a lei que inseriu o artigo
1240-A no Código Civil, expressou em seu texto a causa culposa da separação –
36BRASIL, Tribunal de Justiça do Distrito Federal.
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abandono do lar – há tempo eliminada pela Emenda Constitucional nº 66 de 13 de
julho de 2010, que autorizou o divórcio incondicionado a qualquer causa.
A perfeita interpretação da referida norma faz-se necessária conforme o
caso a ser apreciado, pois certamente o tempo nos interrogará com surpreendentes
perguntas. A falta de um conteúdo lógico que justifique a que veio adentrar no
ordenamento jurídico, precisamente no seio familiar, discutindo posse, propriedade e
abandono do lar, exigirá boa vontade e sensibilidade dos operadores do direito.
Para finalizar, pode-se afirmar que na aplicação do direito,
principalmente a norma em estudo, os operadores e juízes do Direito não poderão
mais se comportarem como mero expectadores do processo, escravos da lei ou
legalistas, sob pena de grave lesão ao princípio fundamental que é a dignidade da
pessoa humana. Portanto, recomenda-se a máxima cautela na interpretação da
nova norma para que jamais sejam esquecidos os fins sociais que norteiam a
usucapião, bem como seus fundamentos, destes incluindo o direito a um lar para a
família.
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23
providências.Disponívelem:www.planalto.gov.br/ccivil_/lei/11340.htm>. Acessado em 03/11/2013. BRASIL, LEI 12.424 de 16 de junho de 2011, Altera a Lei no 11.977, de 7 de julho de 2009, que dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/Lei/L12424.acessado: 20/10/2013.
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