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CADERNO DE FÍSICA DA UEFS 09 (01 E 02): 37-52, 2011
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A REVOLUÇÃO NÃO-EUCLIDIANA
por IMRE TOTH (1921-2010)
Para o matemático de hoje as geometrias não euclidianas tornaram-se um objeto ortodoxo e relativamente banal. Mas, até o começo do séc. XX, muitos matemáticos reputados e muitos filósofos deram prova de uma resistência tenaz.
* Com o recuo, alguns historiadores chegaram a crer que só os espíritos incompetentes e limitados tinham podido opor uma tal recusa às ideias de Gauss, Bolyai e de Lobatchevski. Imre Toth mostra que não foi nada disso. É que as verdadeiras dificuldades, finalmente, não foram de ordem estritamente lógico-matemática; precisaria sobretudo reconhecer, graças a um passo filosófico árduo, que as novas geometrias tinham a mesma "verdade", o mesmo "direito à existência" que a geometria clássica.
* Esta foto (à esquerda), tirada de um manuscrito latino do séc. VI referente a agrimensura, é certamente a cópia de um documento muito mais antigo e epresenta sem dúvida Euclides. Os Elementos que este nos deixou datam do fim do séc. IV ou do início do séc. III a.C. Eles constituem uma síntese dos conhecimentos matemáticos da época. É a Euclides que devemos a introdução de um axioma que não figurou em seus predecessores e que é conhecido sob o nome de "postulado euclidiano das paralelas". A história desse axioma e de suas transformações constitui um longo e importante capítulo da história da matemática. (Herzog August-Bibliothek, Wolfenbüttel)
•
Falamos, a propósito da geometria não euclidiana, de uma revolução científica, e isto é sem
dúvida correto, mesmo se a significação do termo “revolução” precise ser esclarecido. Mas se
atribuímos à aparição da nova geometria a um ato de descoberta, isso é certamente falso.
Toth, Imre CADERNO DE FÍSICA DA UEFS 09, (01 E 02): 37-52, 2011
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UM MUNDO CONHECIDO, MAS SEM EXISTÊNCIA RECONHECIDA
Visto que não existia em nenhuma parte, antes de 1824, um anti-mundo geométrico encoberto,
não esperando senão a chegada de seu Cristovão Colombo, para ser descoberto. Portanto, depois de
1825, eis que ele estava subitamente aí e que ele existia no sentido em que nós dizemos que o universo
espacial associado à geometria euclidiana existe. Me parece então que a palavra criação convirá
melhor para designar o ato histórico da constituição da nova geometria, sob o duplo aspecto de sistema
de axiomas verdadeiros e de universo de objetos geométricos reais ( o sentido atribuído aqui à palavra
criação será precisado mais adiante).
É somente depois de ter sido assim criada que a geometria não euclidiana (ou GNE) pôde
tornar-se objeto de uma descoberta propriamente dita. Mas se a criação foi o resultado de um ato,
instantâneo, sua descoberta não teve lugar senão quarenta e cinco anos após sua criação, entre 1870 e
1880. Tem nesse momento, a revolução encapsulada na teoria desde que sua criação eclodiu. No caso
normal (por exemplo descoberta de um inseto, de um continente, de uma estrela), a descoberta consiste
no reconhecimento da existência do objeto em questão. A identificação de sua estrutura e o exame
detalhado de suas propriedades vêm em seguida. Porém a descoberta no caso da GNE, se identifica
com o processo que tem assumido sua recepção e sua integração no edifício da ciência matemática.
Ora, esse processo de reconhecimento precisou de muito tempo. Muitos geômetras tinham já
demonstrado teoremas não euclidianos e por conseguinte tomado conhecimento da estrutura e
propriedade do futuro espaço não euclidiano. Mas, embora conhecida, a GNE não era reconhecida.
Filósofos e matemáticos consideravam que o espaço não euclidiano era uma pura impossibilidade e não
concordavam nem na verdade nem na realidade da GNE. Nesse sentido, podemos dizer que o
conhecimento do espaço não euclidiano precedeu sua existência.
A GEOMETRIA NÃO EUCLIDIANA NÃO FOI REFUTADA SÓ POR IGNORANTES
Segundo a tradição anedótica, aqueles que se recusaram a aceitar a GNE no fim do séc. XIX
apareceram sobretudo como filósofos ignorantes em matemática, ou bem como matemáticos
esclerosados, incapazes de seguir o trabalho da geração jovem. Historicamente, esta explicação não é
exata.
Certamente se encontrava entre os adversários da GNE verdadeiros ignorantes. Era o caso do
filósofo materialista e revolucionário russo N. G. Tchernychevski, que, em 1878, não via na GNE mais
que as elucubrações selvagens de um ignorante, um galimatias estúpido, um contra-senso idiota, um
saber de imbecil. Era também o caso do filósofo idealista alemão Lotze, para o qual a GNE não era
mais que um paradoxo fútil, uma caricatura da ciência, um jogo lógico gratuito (1879). Porém se
examinarmos o conjunto dos trabalhos publicados contra a GNE, percebemos que seus adversários em
sua maioria, tinham os meios técnicos de compreender a nova teoria.
Assim J. Belboeuf, professor da universidade de Liège, membro da Academia de Bruxelas, é
provavelmente o primeiro a ter notado desde 1859 a nova geometria, a tê-la examinado com muita
seriedade a tentar chamar sobre ela a atenção pública.
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O problema das paralelas foi estudado pelos gregos, depois pelos árabes (Alhazen, Omar Khayyam, Nasreddin). Ele foi introduzido no pensamento ocidental da Idade Média por Lévi ben Gershom (1288-1344) que se chama também Léon de Bagnols. Este eminente representante do pensamento judeu medieval se ocupou de filosofia e de teologia, mas também e medicina, de astronomia e de matemática. Seu estudo de Euclides se situou entre outros em uma tradição teológica remontando a Maimônidas e a são Thomás de Aquino, que tinham levantado a questão: a estrutura euclidiana imposta por Deus ao nosso mundo devia ser considerada como uma necessidade limitando a liberdade divina? Essas preocupações filosófico-teológicas desempenharam também um papel na revivescência do interesse que conhecerá o problema das paralelas no fim do século XVIII, sobretudo na Alemanha.
Ele portanto rejeitou a GNE; sua atitude permaneceu a mesma trinta anos mais tarde, quando ele
publica seu último livro (da Hermann, em Paris, em 1897), em uma época onde a maioria era já
favorável à GNE. Podemos fazer notas análogas a respeito de Pierre Issaly, hoje completamente
esquecido. Na Inglaterra, o c´∂elebre lógico Augustus de Morgan considerava a geometria clássica
como a very English subject e os heréticos dessa ortodoxia como se situando no extremo de toda
heresia. “Eu digo, dizia em 1869 o matemático inglês J. J. Sylvester, que há pessoas que consideram
Euclides como uma vanguarda da constituição britânica”. Ch. L. Dodgson, muito pouco conhecido
como professor de matemática na universidade de Cambridge e como autor de um trabalho sobre
Euclid and his modern rivals (1879), mais célebre sob o nome de Lewis Carroll, refutava
obstinadamente não somente a GNE mas toda e qualquer menor reforma da geometria euclidiana. É
surpreendente ver quanto ao autor de Alice e da Caça ao Snark pode faltar a sensibilidade igual da
poesia “absurda” própria ao espaço geométrico.
Mesmo entre os filósofos, os adversários os mais ativos não podiam ser acusados de ignorância
matemática. Assim o epistemólogo americano J. B. Stallo (1823-1900) publicará em 1881 um livro
sobre os Conceitos e teorias da física moderna que foi o objeto de numerosos relatórios que se
dividiram entre o elogio e a crítica. Esse trabalho, que foi traduzido em francês, em alemão e em várias
outras línguas, teve efeitos consideráveis. Stallo se propunha purificar a ciência de todo elemento
metafísico. Com a teoria dos átomos, a GNE tornou-se seu alvo principal. Ele a rechaçou lhe dando o
nome pejorativo de geometria transcendental; esta foi segundo ele um produto metafísico nocivo.
Portanto a competência teórica e a vasta informação de Stallo são indiscutíveis. Na França, é Charles
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Renouvier quem se propôs de expurgar a ciência de elucubrações metafísicas da GNE. Paul Tannery,
em 1876, menciona seu nome como aquele de um filósofo capaz de julgar a questão do ponto de vista
técnico, mas que permanece francamente hostil à nova geometria.
DÜHRING E “AS PARTES DEGENERADAS DO CÉREBRO DE GAUSS”...
Na mesma época (1874-1895) Otto Schmitz-Dumont publicou na Alemanha uma seerie de
trabalhos muito bem documentados onde propunha, ele também, eliminar a GNE das matemáticas em
nome do verdadeiro espírito cioentífico. Mas são os ataques fulminantes de Eugen Dühring contra a
GNE, seus fundadores e seus propagadores, que atrairam a atenção pública. Embora possamos dizer
sem exageros que Dühring foi um dos personagens o mais execrável do cenário alemão, devemos
reconhecer que ele possuia uma séria cultura matemática. Seu ateismo militante, sua crítica impetuosa
da filosofia idealista (ele se dava por um adepto de Auguste Comte) e sua filosofdia social e política
(ele se considerava como um socialista não marxista) tiveram uma ressonância muito viva no público
alemão.
Uma de suas descobertas (que ele repartia com outros) consistiu em encontrar na biologia uma
base científioca para a justificação do anti-semitismo. Em lugar de batizar os israelitas, ele pensou que
era preciso eliminá-los biologicamente. Em nome de seu ideal positivista e materialista, ele proclama
também a guerra santa contra a GNE. Eis aqui algumas de suas apreciações: insanidade demencial,
semi-poesia e total absurdo, produto da alucinação matemática, teoremas e figuras místicas e
delirantes nascidas de um pensamento doentio... Ele falou também das partes degeneradas do cérebro
de Gauss como do fator material responsável pela elaboração da GNE. Tais propostas naturalmente
causaram escândalo em certos meios universitários; mas, ao mesmo tempo, elas lhe deram uma grande
popularidade entre os estudantes e os trabalhadores. É exatamente a recepção favorável às idéias de
Dühring pelos socialistas alemães que determinou Engels a escrever um Anti-Dühring no qual ele
criticou o estilo macanicista (isto é, não dialético) do materialismo dühriniano.
Mas, posto que ele consagrou uma parte considerável de seu livro aos problemas do
conhecimento matemático, Engels não encontrava nenhuma palavra a favor da revolução não-
euclidiana.
Dühring goza de uma certa consideração mesmo nos meios científicos: Georg Cantor, o
fundador da teoria dos conjuntos, o menciona como o mais importante representante do positivismo na
Alemanha e discute seus conceitos com uma grande atenção. Um de seus famosos livros de escândalo,
Robert Meier, o Galileu do séc. XIX, não contém praticamente senão insultos grosseiros contra Gauss,
Helmholtz, Joule, a GNE, os judeus, os matemáticos e físicos alemães.1 De maneira mais estritamente
acadêmica, seu trabalho foi continuado na Alemanha por Hugo Dingler, professor na Escola
politécnica de Munique e de Darmstadt, bem conhecido também por seu engajamento a favor do
nacional-socialismo. Dingler pedia a eliminação da teoria da relatividade e da GNE, que ele
considerava como construções anti-científicas, e ainda em um livro publicado pouco antes de sua
1 Esse livro foi recentemenmte reeditado (1972) em razão de sua “viva atualidade”, pela Wissenchaftliche Buchgesellschsft, um dos editores científicos mais prestigiados da Alemanha Federal.
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morte, em 1955, em Munique2. Segundo ele, a geometria deve ser fundada sobre a prática manual,
essa que é certamente impossível no caso da GNE; a geometria euclidiana é portanto praticamente a
única geometria possível.
AS LUTAS DE LOBATCHEVSKI E DE BOLYAI
Na Rússia, é Ostrogradski, considerado pela historiografia soviética corrente não somente como
um dos maiores matemáticos do séc. XIX mas também como um sábio progressista, materialista e ateu,
que se torna acusador público da geometria de Lobatchevski. Nomeado em 1828, aos 27 anos, para a
Academia de São Petersburgo, tornou-se mais tarde inspetor geral do ensino de matemática na Rússia
sob Nicolau I, Ostrogradski tornou-se a autoridade matemática suprema de seu país. Em 1832 e 1842,
em dois relatórios oficiais (em francês) apresentados à Academia de Ciência, ele julga os trabalhos de
Lobatchevski como incompreensíveis e marcados de ERROS; segundo ele, eles não merecem a
atenção da Academia. Em 1834, isto é, entre esses dois relatórios, Ostrogradski publicou uma ata
menos acadêmica no jornal le Fils de la Patrie (os Filhos da Pátria), não assinado mas redigido por um
dos jornalistas reacionários mais notórios época, S. O. Bouratchek: Geometria imaginária? Por que
com efeito não se imaginar que o preto é branco, o quadrado redondo e a soma dos ângulos do
triângulo menor que dois retos? Pergunta-se porque se escreve e sobretudo se publica tais
fantasmagorias. O verdadeiro alvo do sr. Lobatchevski foi certamente jogar uma farsa aos
matemáticos. E por que então o título “os Fundamentos da geometria”, e não “a Sátira da geometria”
ou “a caricatura da geometria”?
Embora menos violento, não menos desfavorável foi a atitude para com Lobatchevski de um
outro grande matemático russo contemporâneo, V. I. Buniakovski, célebre probabilista e teórico dos
números, vice-presidente da Academia de ciência. É preciso enfim mencionar que, na imprensa
especialisada alemã, tinham sido também publicados dois relatos irônicos e malevolentes para com a
habilidade de Lobatchevski (para a maior consternação de Gauss).
Lobatchevski, entretanto, não esteve privado de toda sustentação. Mencionamos por exemplo
seu colega Kotelnikov, professor de mecânica na universidade de Kagan, um matemático menor que se
fez notar como um dos primeiros propagadores da filosofia de Hegel na Rússia; e também Butlerov,
um dos químicos mais notáveis da Europa, conhecido além disso (como o astrofísico alemão Zollner e
o experimentador inglês Crookes) pelo seu ataque ao espiritismo.
Mas se, no caso de Lobatchevski, se pode invocar o fato que seus adversários (Ostrogradski,
Buniakovski) não eram geômetras peritos nos fundamentos da geometria, o mesmo argumento não é
mais aplicável para Jean Bolyai. Ele jamais foi criticado ou atacado em público, mas ele teve de
afrontar em sua vida cotidiana, desde suas primeiras tentativas e praticamente até o fim de sua vida, o
adversário mais sério, o mais competente, portanto o mais perigoso: seu próprio pai. Wolfgang Bolyai,
o pai de Jean, não só foi um matemático de primeira classe, mas, ao lado de Gauss, foi certamente o
melhor perito no problema das paralelas, o problema maior da época que diz respeito aos fundamentos
da geometria. Em 1876, ano durante o qual a atividade nesse domínio foi particularmente intensa, ele
2 Esse livro foi também reeditado na Alemanha Federal pela Suhrkamp.
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produziu sozinho oito tentativas de solução, quer dizer, o mesmo que todos os outros autores reunidos
durante o mesmo ano. Entre as soluções propostas se encontravam algumas que eram particularmente
interessantes e refinadas. Mas o que distinguia Wolfgang Bolyai de todos seus predecessores, era seu
impecável espírito autocrítico; ele sempre descobria os erros escondidos em seus próprios raciocínios.
Na época em que seu filho e meteu a atacar o problema das paralelas, ele já estava persuadido do
fracasso de todas as tentativas de solução. Portanto, lendo em 1825 a primeira forma elaborada da
Ciência absoluta do espaço, ele achou graça de sua grande cultura matemática pois seu filho tinha
produzido um trabaljo pouco comum.
Ele insiste para que seja imediatamente publicado. Os exemplares apareceram graças a ele, em
junho de 1831, antes mesmo que fosse impresso seu próprio livro (1832) nos suplementos do qual o
trabalho de seu filho devia inicialmente tomar lugar. É ele enfim quem envia um desses primeiros
exemplares ao seu amigo Gauss com uma carta de recomendação. De diversas maneiras, ele ajudara a
conhecer os trabalhos de seu filho. Mas nem seu amor por seu filho nem sua veneração por Gauss não
puderam fazê-lo saltar a barreira. Ele jamais aceitou a GNE, e permaneceu, até o fim de sua vida
(1856), ao mesmo tempo o único suporte moral e o adversário irreconciliável de seu filho, o que
envenenou a existência dos dois homens.
AS RESERVAS DE CAYLEY E A INTOLERÂNCIA DE FREGE
Estranho é também o caso do grande matemático inglês Arthur Cayley. Ele é certamente o
primeiro, entre os matemáticos sem contato pessoal com os fundadores da GNE, a publicar (1865) um
trabalho inspirado pelos resultados de Lobatchevski. Sua contribuição não é particularmente essencial,
mas é o primeiro trabalho técnico consagrado à GNE onde a nova geometria é considerada com a
mesma seriedade e a mesma objetividade que qualquer outra teoria matemática estabelecida; o autor,
visivelmente, não põe em dúvida que os desenvolvimentos de Lobatchevski sejam corretos. Ele
considera entretanto a GNE como estranha e incompreensível, e não pode aceitá-la. Quanto às
fórmulas de Lobatchevski, Cayley declara francamente que não as compreende; mas acrescenta que
será muito interessante encontrar uma interpretação real.
G. Saccheri (1667-1733)
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Uma tal interpretação “real” (isto é, euclidiana) foi com efeito dada um pouco mais tarde por
Felix Klein (1871), notadamente em ajuda de uma configuração descoberta e estudada muito antes
(1859 pelo mesmo Cayley (modelo Cayley-Klein. Embora reconhecendo o valor do resultado de Klein,
Cayley continua a enunciar reservas. Ele não concede ao sistema senão o estatuto confuso e
problemático de quasi-geometria. No sentido estrito, a denominação de geometria é reservada só ao
sistema euclidiano (1883). Mas, em 1889, ele é mais explícito. De acordo com um matemático inglês
conhecido na época, R. Ball, ele considera que o que se chama GNE não é senão um discurso no qual
os termos geométricos usuais são utilizados em um sentido diferente daquele que se lhe atribuiu
ordinariamente. O mesmo termo (por exemplo a palavra distância) serve assim, segundo Cayley para
exprimir duas noções inteiramente diferentes. Mas Cayley não aceita senão a existência real do modelo
e se recusa a considerar o objeto não-euclidiano ele mesmo (que o modelo traduz e representa no
espaço euclidiano).
Um dos adversários mais intolerantes da GNE foi o matemático e célebre lógico Gottlob Frege.
Seu caso é bastante desconcertante. Porque sua crítica, sempre veemente, apaixonada, dramática, às
vezes mesmo grosseira e injuriosa (sobretudo a dirigida a Hilbert) se situa no início do séc. XX; até o
fim de sua vida (1925), ele conctinuou a rejeitar a GNE com intransigência implacável: atreve-se
qualificar de astrologia os “Elementos” de Euclides, este trabalho gozando de uma autoridade
incontestada há mais de dois mil anos? Mas, se não se ousa, então é a GNE que deve ser classificada
entre as pseudo-ciências (astrologia, alquimia). Embora o combate conduzido por Frege contra a GNE
e contra seus adeptos tenha sido aberto e público, embora seus artigos tenham sido reeditados e que
novos documentos iníditos aí tenham sido ajuntados, a reprovação de Frege ao encontro da GNE é
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geralmente ignorada; não se menciona sua querela senão de uma maneira vaga e alusiva.3 Se salva
assim a imagem hagiográfica do fundador da lógica moderna e do grande inovador no domínio dos
fundamentos da matemática.
Saccheri, Lambert, Taurinus, Reid e alguns outros conceberam a possibilidade de construir geometrias anti-euclidianas. Mas não são propriamente falando precursores de Gauss, Bolyai e Lobatchevski; com efeito, eles não deram o passo decisivo que consistia em conceder a todas essas geometrias ao mesmo tempo o mesmo estatuto de “verdade” da geometria euclidiana.
“Eu tenho medo da gritaria dos ignorantes”, escrevia Gauss a Bessel, em 1829, para justificar
sua recusa de publicar seus resultados concernentes à GNE. Mas essa fórmula se justificada como ela
aparece à primeira vista, não deve ser aceita tal e qual. Porque os “ignorantes” não estiveram sozinhos
em causa. De fato, entre os gritos dados pelos adversários da GNE, os mais estridentes vieram dos
teóricos mais competentes.
A GEOMETRIA ANTI-EUCLIDIANA: UM SISTEMA COHERENTE MAS CONSIDERADO COMO FALSO.
A história da ciência mostra que a resistência dos peritos às teorias heterodoxas não é um
fenómeno raro. Mas o que distingue radicalmente a história da GNE é que esta última foi rejeitada
antes mesmo de ter vindo ao mundo.
A GNE propriamente dita deve sua aparição aos esforços independentes de Gauss, de Jean
Bolyai e de Lobatchevski. Que pertencendo a três gerações sucessivas todos três chegaram a uma
forma acabada de suas ideias e de seus sistemas quase simultaneamente, por volta de 1825 (Gauss em
1824, Bolyai em 1825, Lobatchevski em 1826)4. Mas já Saccheri, em 1733, Lambert em 1766 e F. A.
Taurinus em 1825 26 tendo enunciado e demonstrado proposições que correspondiam em expressão -
3 Na Alemanha, os autores (Lorenzen, Mittelstrass, Thiel e sobretudo Kambartel) se propondo a reedificação radical de toda a ciência matemática com o auxílio do conceito de prática operacionalista tomaram recentemente a defesa pública não somente de Dingler, mas de Frege contra Hilbert. 4 Gauss jamais publicou seus resultados. Lobatchevski publicou seu primeiro trabalho em cinco etapas entre fevereiro de 1829 e agosto de 1830. A Ciência absoluta de Bolyai foi impressa em Junho de 1831 sob a forma de uma brochura independente: em 1832, sua exposição foi republicada como um Suplemento do manual de seu pai.
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verbal deles a teoremas da GNE. Para os distinguir dos teoremas da GNE propriamente dita, eu os
designo por enquanto pelo termo de proposições anti-euclidianas.
A leitura do livro de Taurinus nos reserva uma surpresa: lá se encontra o sistema anti-euclidiano
sob a sua forma acabada. Taurinus expôs toda a trigonometria do plano não euclidiano (na qual a soma
dos ângulos do triângulo é inferior a dois ângulos retos), assim como um resultado particularmente
notável: a existência de uma infinidade de tais sistemas (oposto à unicidade da geometria euclidiana),
cada um sendo caracterizado por uma constante numérica (chamada, na terminologia atual, curvatura
do espaço). A notar também que, entre os autores citados, Saccheri é o único que persistiu em crer na
não consistência lógica do sistema anti-euclidiano e que esperou poder encontrar um dia a contradição
que, segundo ele, estaria escondida. Erro. Mas erro que não era partilhado, provavelmente, por
Lambert, e certamente não mais por Taurinus. Este último (assim como todos os outros autores anti-
euclidianos: Reid, Schweikart e Wachter) estava já firmemente convencido da consistência do sistema
anti-euclidiano. Portanto, todos os três atribuíram às proposições anti-euclidianas o valor lógico da
falsidade e rejeitaram categoricamente a possibilidade de uma GNE propriamente dita. Seja como for,
a GNE está já paradoxalmente presente, sob a forma do sistema anti-euclidiano, mas renegada e
deixada em um estranho estado de ontologia negativa. A situação era de resto embaraçante pois que,
ainda que renegada, o novo sistema se recusava de abandonar a cena.
Mas todos os autores que precederam Gauss, Bolyai e Lobatchevski não rejeitaram a geometria
anti-euclidiana. O filosofo escocês Thomas Reid imaginou vegetais dotados de inteligência humana,
dispondo das únicas informações que lhes fornecessem seus olhos, e mostrou que a geometria natural
desses “Idoméniens” seria um sistema anti-euclidiano: os grandes círculos do globo celeste seriam
para eles retas (retas dotadas naturalmente de uma extensão finita e fechadas sobre si mesmas) e a
soma dos ângulos do triângulo seria superior a dois ângulos retos (uma tal geometria não euclidiana
se chama elíptica). Para nós, seres humanos móveis que a providência divina proveu do senso comum,
a GE permanece o único sistema verdadeiro; mas os “Idoméniens”, que aplicam a palavra reta às
linhas que na realidade não são retas, concederiam para a própria geometria deles, a mesma evidência,
a mesma veracidade necessária que nós atribuímos à de Euclides5. Mas isso que escapou a Reid foi
realizado no caso da geometria hiperbólica (onde a soma dos ângulos do triângulo é superior a dois
retos) por um aluno de Gauss, Wachter. Este último reconheceu não somente a consistência do sistema
anti-euclidiano hiperbólico, mas ele foi verdadeiramente o primeiro a admitir (1816) a verdade dessas
proposições, e isto no caso onde a palavra reta designa linhas retas do espaço e não linhas
correspondendo às retas do espaço não euclidiano sobre um modelo euclidiano. Mas Wachter pensa
sério rechaçar, em revanche, a geometria de Euclides como falsa. Mais tarde, aliás, ele mudará de
opinião crendo ter demonstrado a não consistência do sistema anti-euclidiano.
A LUCIDEZ DE ARISTÓTELES
5 Desde 1834, Ampere deu atenção à geometria dos Idoméniens. O nome de Reid caiu praticamente no esquecimento até em 1972, data na qual a monografia excelente de Norman Daniels ressuscitou sua figura e seu trabalho.
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Aristóteles, [en l’occcurrence] na ocasião, merece uma atenção particular. Com efeito, a análise
de seu trabalho nos revela um fato que foi muito tempo ignorado, a saber, que a fonte histórica do
encaminhamento que foi ter na criação da GNE deve ser buscada muito provavelmente no grupo dos
geômetras que o rodearam, ele e seu amigo Eudoxo. Segundo o testemunho de seu trabalho, a
demonstração de um dos lemas fundamentais da geometria euclidiana era viciado por um raciocínio
circulas, sem dúvida porque se tentava efetuar pelo único meio proposições da geometria absoluta de
Bolyai, sem se dar conta que se tinha já tacitamente admitido no raciocínio uma proposição auxiliar
cuja verdade depende da verdade do lema euclidiano que era preciso demonstrar. Criticando os autores
desta tentativa, Aristóteles deixa transparecer a idéia que, para escapar a esse círculo vicioso, é preciso
conscientemente adotar como verdade, sem nenhuma demonstração, um dos lemas euclidianos
figurando no raciocínio. A construção correta da geometria exige portanto que uma de suas
proposições consideradas até então como um teorema da geometria absoluta de Bolyai seja
reconhecida como um princípio ou, para tomar um termo moderno, como um axioma.
Introduzindo seu postulado (o postulado das paralelas) para fundar a geometria euclidiana,
Euclides não fez senão responder a essa exigência. O problema das paralelas precedeu assim pelo
menos meio século o postulado euclidiano das paralelas. Não é portanto verdade que o caráter
complicado e a falta de evidência intuitiva do postulado euclidiano tenha provocado a aparição do
problema das paralelas (como o afirma a história tradicionalmente); já que a introdução mesma do
postulado não é senão uma consequência da primeira tentativa para dar uma solução ao problema das
paralelas e que a solução de Euclides era correta. Numerosas passagens do corpus aristotélico nos
mostram também que os geómetras gregos tinham já empreendido tentativas para demonstrar uma das
proposições fundamentais da geometria euclidiana por redução ao absurdo das proposições anti-
euclidianas. Foi um fracasso. Os gregos com efeito conseguiram demonstrar que a hipótese referindo
uma soma de ângulos passando dois ângulos retos conduzia no quadro do sistema absoluto de Bolyai
ao absurdo de um par de retas paralelas que se cortam. A possibilidade de uma das geometrias anti-
euclidianas possíveis estava assim eliminada. Infelizmente, a outra variante anti-euclidiana (soma dos
ângulos do triângulo inferior a dois ângulos retos) não pode ser eliminada da mesma maneira; e assim a
hipótese geral de um sistema anti-euclidiano, inabalado, tornou-se uma provocação aberta.
Os geómetras gregos tinham já, segundo toda probabilidade, descoberto que na hipótese anti-
euclidiana a relação da diagonal com o lado do quadrado tomava também valores racionais. De uma
maneira ou de outra, Aristóteles tinha já percebido que essa situação aberta não podia ser atribuída a
uma incapacidade acidental, mas que a hipótese anti-euclidiana era realmente irrefutável; a alternativa
(triângulo euclidiano ou anti-euclidiano?) é portanto indecidível por meio do raciocínio lógico (isto é,
no quadro da geometria absoluta). Aristóteles menciona dezesseis vezes a proposição anti-euclidiana
referente à soma dos ângulos do triângulo, mas jamais ele a qualifica explicitamente de absurda, de
impossível ou de falsa. Ele menciona cincoenta e duas vezes a proposição euclidiana correspondente
mas jamais ele a apresenta como uma verdade necessária cujo contrário seria impossível, até absurdo,
mas somente como um enunciado geral (admissível para o conjunto de todos os triângulos). Melhor
ainda, ele considerava a demonstração conhecida dessa proposição como uma quase-demonstração,
visto que, na sua opinião a soma dos ângulos constitui a essência do triângulo e a ele pertencem sem
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termo médio; uma tal propriedade é indemonstrável e deve ser admitida como princípio (axioma). Mas
ele fala da soma dos ângulos do triângulo como de uma quantidade que pode ser tanto igual, superior
ou inferior a dois ângulos retos (180º).
TRIÂNGULO EUCLIDIANO OU TRIÂNGULO NÃO EUCLIDIANO? PARA ARISTÓTELES, A ALTERNATIVA PERMANECE ABERTA
Nos Segundos analíticos, Aristóteles lança a questão: qual das duas proposições opostas
referentes à soma dos ângulos do triângulo é verdadeira, ou qual das duas constitui a razão de ser do
triângulo, a proposição euclidiana ou aquela anti-euclidiana? A questão permanece sem resposta.
Aristóteles é muito circunspecto e toma o cuidado de tratar as duas proposições antagónicas como
possuindo os mesmos direitos do ponto de vista da possibilidade lógica delas. Ele certamente jamais
aceitou a veracidade das proposições anti-euclidianas citadas, mas ele não concede uma preferência à
proposição euclidiana.
A análise consagrada por Aristóteles (Ética a Eudemo, Grande moral) em esclarecimento do
conceito de liberdade se mistura na discussão paralela do exemplo matemático: geometria euclidiana,
geometria anti-euclidiana. Os textos seguem fortemente a ideia que ele encarou o domínio da
geometria sob o aspecto de uma profunda analogia estrutural com o domínio da ética. Ele acentua de
resto que recorre à analogia geométrica justamente para por em evidência a essência da ideia de
liberdade (livre arbítrio) graças a esse paralelo. A ação ético-política (efetuada sem coação exterior) é
precedida por uma decisão inicial do ser humano. No ponto de partida de sua diligência, ele se vê posto
diante de uma alternativa: uma via vai conduzir ao bem, a outra cravará no mal. Nenhum raciocínio
demonstrativo pode basear a escolha. Essa decisão, primeira e livre, é o princípio da ação ética, como o
axioma é o princípio posto no início lógico de uma teoria geométrica.
A liberdade, no domínio ético corresponde à indemonstrabilidade ou indecidibilidade lógica do
axioma geométrico. E o caráter ético da decisão inicial do princípio de ação ética (o bem ou o mal) se
transmitira a toda ação, que resulta com
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John Bolyai (1802-1860) tinha apenas 20 anos quando começou a desenvolver uma geometria independente do "décimo axioma" de
Euclides sobre as paralelas. É em 1832 que seus trabalhos são publicados em apêndice a um trabalho de seu pai, Wolfgang Bolyai. Da tiragem
separada foram difundidos desde o mês de junho de 1831. A página do título em frente anuncia que trata-se de "a ciência absolutamente verdadeira
do espaço" e indica que, se se adota um axioma oposto àquele do postulado das paralelas de Euclides, se pode realizar a quadratura do círculo.
Em Tirgu-Mures, a cidade onde habitaram os Bolyai, os romenos edificaram há alguns anos uma dupla estátua: Bolyai o pai, assentado
considera com olho crítico e espantado Bolyai o filho que o põe em apuros, mergulhado em uma poderosa meditação não-euclidiana. Esta
dramatização, concebida no estilo do "realismo socialista", exprime à sua maneira uma verdade histórica; porque efetivamente Wolfgang Bolyai,
um dos melhores especialistas de seu tempo sobre o problema das paralelas, jamais aceitou a nova geometria engendrada entre outros por seu
próprio filho.
necessidade, como o caráter geométrico euclidiano ou anti-euclidiano do axioma é transmitido aos
teoremas que resultam pela necessidade lógica. As proposições geométricas citadas como axiomas
opostos, paralelamente à oposição ética do bem ou do mal, são: a soma dos ângulos do triângulo é igual
a dois retos, a soma dos ângulos do triângulo não é igual a dois retos. Que se poderá falar da liberdade
de escolher entre as teorias geométricas opostas? O contexto o sugere, mas Aristóteles se abstém de
toda declaração explícita sobre esse ponto. A situação devia o embaraçar, pois que ele termina a
passagem com a exclamação: Para esse momento não se pode dizer nada de mais, mas é também
impossível passar a questão sob silêncio.
Seja como for, essas passagens implicam tacitamente que Aristóteles considerou a alternativa
triângulo euclidiano – triângulo anti-euclidiano como uma oposição axiomática indecidível para uma
inferência demonstrativa e que, face a essa impossibilidade, ele buscou talvez um critério ético para
justificar a escolha de um e a recusa de outro6. Em todo caso, é espantoso que Aristóteles não viu
6 Aristóteles e numerosos outros autores depois dele aceitaram a consistência do sistema anti-euclidiano sem demonstração. A primeira demonstração de consistência relativa dos sistemas euclidiano e não euclidiano foi dada
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qualquer razão de excluir a priori a possibilidade de um triângulo anti-euclidiano sob pretexto que ele
seria falso, nocivo e dependente de uma geometria degenerada; ele se contenta de sugerir que a
alternativa permanece aberta. Mas essa idéia não se implantou e não representou nenhum papel
histórico sensível no abalo do geocentrismo euclidiano. Aristóteles, posto que se situa na origem do
movimento histórico, adotou sem dificuldade, do ponto de vista do progresso lógico, a posição que se
encontra no termo da evolução. Por sua imparcialidade e pela maturidade filosófica de suas ideias, ele
ultrapassou todos seus antecessores.
UM PASSO CHAVE: ADMITIR A PLURALIDADE DOS MUNDOS GEOMÉTRICOS.
Esse exame sumario da pré-história da GNE nos mostra que as principais ideias que, segundo a
literatura corrente, marcam o advento da GNE propriamente dita (consistência do sistema anti-
euclidiano, indecidibilidade da alternativa: geometria euclidiana ou anti-euclidiana) foram admitidas
muito cedo. A possibilidade de um sistema anti-euclidiano foi tomada em consideração muito antes de
Gauss, Bolyai e Lobatchevski. É porque, na literatura histórica corrente, Saccheri, Lambert, Taurinus,
Wachter e Reid são frequentemente considerados como os verdadeiros precursores, às vezes mesmo
como verdadeiros inventores desconhecidos de uma GNE somente mais pobre em teoremas que aquela
de Gauss, Bolyai e Lobatchevski. A questão se põe portanto: é justificado atribuir o estabelecimento da
GNE propriamente dita somente à tríade Gauss, Bolyai e Lobatchevski? Ou ainda: existe um resultado
essencial para o estabelecimento teórico da GNE propriamente dita que seja uma contribuição
exclusiva de Gauss, Bolyai e Lobatchevski e que não se encontre em nenhum de seus predecessores,
feita sob formas fragmentárias, alusivas ou conjecturais?
A resposta é afirmativa: uma tal ideia existe, e ela se refere à possibilidade de aceitar os dois
sistemas de proposições opostos como simultaneamente verdadeiros, atribuindo aos dois mundos
geométricos que lhes correspondem o mesmo valor ontológico, a mesma realidade; e tudo isso falando
do mesmo objeto e conservando a mesma interpretação semântica dos termos fundamentais como
linha reta, distância, comprimento de um segmento de reta, congruência, etc. Nos dois sistemas de
axiomas. Esta idéia, completamente nova, é o trabalho exclusivo de Gauss, Bolyai e Lobatchevski.
Antes deles, toda a gente via as duas geometrias opostas como constituindo os dois termos de uma
estrita alternativa: tratam dos mesmos objetos (pontos, retas, triângulos círculos, etc.) e o sentido dos
termos fundamentais permanecendo invariável, uma e somente uma das duas geometrias pode ser
aceita, e a outra deve ser rejeitada. Enfim, é a idéia da pluralidade dos mundos geométricos oposta à
concepção de unicidade que distingue Gauss, Bolyai e Lobatchevski de todos seus predecessores e que
justifica que se lhes atribui de modo exclusivo a GNE no sentido próprio. Para distinguir entre a GNE
propriamente dita e os outros sistemas opostos ao de Euclides, eu designei esses últimos por um termo
utilizado ligeiramente com o mesmo fim por Gauss e Wolfgang Bolyai, o de geometria anti-euclidiana.
Desse ponto de vista é claro que os predecessores de Gauss, Bolyai e Lobatchevski não são
predecessores da GNE, mas dos representantes mais ou menos evoluídos da geometria anti-euclidiana.
em 1868 por Beltrami. Gauss aceitou a idéia sem qualquer tentativa de a demonstrar. Bolyai e Lobatchevski sentiram a necessidade de uma demonstração; mas suas tentativas não envolveram um resultado satisfatório.
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Porque a GNE não é a soma de uma acumulação quantitativa das contribuições deles, e sua
aparição não pode ser atribuída a uma certa perfeição técnica, de novos conceitos, métodos e
procedimentos técnicos desenvolvidos no interior da ciência matemática. Absolutamente todos os
resultados técnicos, matemáticos e metamatemáticos, podem ser obtidos também no quadro de uma
filosofia da unicidade geométrica. Historicamente, o sistema anti-euclidiano foi desenvolvido nesse
momento que se o supunha falso. A demonstração de sua consistência relativa pode ser efetuada se não
importa qual dos dois sistemas é considerado como falso (e mesmo, na geometria absoluta de Bolyai,
se os dois postulados das paralelas, o euclidiano e o não euclidiano, são considerados como nem
verdadeiro nem falso). Procedendo assim, se obterá esse resultado espantoso: a inconsistência do
sistema considerado como falso, como fictício, acarreta a inconsistência dos sistema considerado como
verdadeiro, como real. Geometria não euclidiana e geometria anti-euclidiana se opõem assim à causa
de sua filosofia imanente, a da pluralidade contra a da unicidade, e não se pode qualificar uma delas de
verdadeira e a outra de falsa. Recusar a filosofia da pluralidade não constitui uma falta de raciocínio
lógico e certamente não é um erro matemático devido à ignorância somente.
O combate daqueles que rejeitaram a GNE não era a expressão de uma certa politica científica:
em nome de sua ideologia, eles consideraram seu dever intervir no desenvolvimento da ciência.
Retrospectivamente, se pode admitir que seu êxito teria como consequência bloquear parcialmente o
progresso científico.
FECUNDIDADE DA NEGAÇÃO
O caráter anti-intuitivo da GNE chocou os espíritos do séc. XIX por causa da concepção
dominante de uma geometria concebida como ciência do espaço físico ou como manifestação de uma
intuição espacial a priori, pura e necessária. É certamente a razão pela qual os partidários da GNE
tiveram todos a opinião que a revolução da GNE consistia na eliminação definitiva do argumento
baseado na evidência intuitiva. Mas isso não é senão um aspecto menor da GNE, e que aliás se
reencontra no caso da topologia e mesmo da análise clássica.
Se se quer guardar a ressonância política do termo revolução aplicado à história da ciência, é
sobre a filosofia da pluralidade que é preciso insistir: ela foi a única responsável pela subversão
realmente revolucionária. Em outros termos, essa revolução foi engendrada por uma mudança radical
de ponto de vista. Esse aspecto é muitas vezes desconhecido, mas não escapou à atenção dos
adversários mais ardentes da GNE. Dühring, Renouvier e sobretudo Frege compreenderam muito bem
que o ponto capital (e para eles o mais inaceitável) da GNE era justamente a filosofia da pluralidade
que a veicula. Não se pode servir a dois mestres ao mesmo tempo; não se pode servir ao mesmo tempo
ao verdadeiro e ao falso. Se a GNE é verdadeira, então a GNE é falsa; e se a GNE é verdadeira, é a
GNE que deve ser falsa. Assim argumentava Frege.
Ele não errou em rejeitar a filosofia da pluralidade; é em todo caso muito difícil de a ela aderir.
Com efeito, a trajetória que conduz ao estabelecimento da GNE é talvez ainda mais bizarra que as
proposições estapafúrdias que ele engendra. Historicamente, a geometria anti-euclidiana precedeu a
geometria não euclidiana propriamente dita. O único sistema “verdadeiro” e “real” era a geometria
euclidiana; uma primeira proposição anti-euclidiana foi obtida pela negação formal do axioma das
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paralelas de Euclides ou de um dos teoremas fundamentais que daí derivam. Inserida no texto
euclidiano a palavra não inverte o sentido de uma proposição lhe dando automaticamente o valor de
falsidade. O sistema anti-euclidiano resulta dessa primeira proposição pelo meio mecânico de
inferência lógica. É propriamente um subsistema do sistema de proposições euclidianas; as proposições
compondo sua rede são todas teoremas euclidianos cuja falsidade (na geometria euclidiana) é
demonstrável. O mundo que se tentou daí associar é ontologicamente oposto àquele do espaço
euclidiano, não somente como irreal, mas como impossível e conscientemente fictício. A aparição da
GNE é devido a uma segunda negação: o discurso guarda sua expressão verbal anti-euclidiana ao
mesmo tempo que sua semântica inicial, ele muda somente seu signo lógico. Essa segunda negação
substitui o valor de falso por aquele de verdadeiro. Um novo sistema verdadeiro, um novo mundo
geométrico real assim se constituiu. Mas a GNE deixou inabalado o sistema ao qual ela é
irreconciliavelmente oposta; melhor, é somente pela geometria não-euclidiana que a geometria
euclidiana pode ser confirmada como sistema autônomo. Como Tristão e Isolda, as duas geometrias
não podem nem viver nem morrer senão juntas.
O RESULTADO DE UMA LIVRE CRIAÇÃO
Foi um verdadeiro ato de criação que fez surgir a GNE, mas a palavra que a fez surgir foi a
palavra não. A negação é criadora. Pela partícula "não" se realiza a conjunção histórica dos dois
sistemas. Para a GNE corresponde uma estrutura evolutiva não-euclidiana na qual, sob sua forma anti-
euclidiana, o não-ser precede o ser, o contra vem antes do pró. Ela postula o impossível sob a forma de
um discurso mentiroso e o transforma em realidade e em verdade.
Frege, o adversário mais temível da GNE, bem viu esse ponto essencial. Ele rejeitou a GNE (e
também a teoria dos números reais de Cantor e Dedekind) pela mesma razão; elas são construídas as
duas sobre um ato de criação, atribuindo a objetos cuja impossibilidade de existência é demonstrável
em um sistema previamente dado. A fonte direta de sua oposição é seu anti-criacionismo irredutível,
consequência de sua ontologia platônica. Muito logicamente, ele não podia senão rejeitar a pluralidade
dos mundos geométricos. Porque a “filosofia da pluralidade”, de fato, não é senão uma maneira
eufêmica de designar “uma filosofia da criação”.
PARA SABER MAIS
R. Bonola.Non-Euclidean Geometry, Dover, 1955.
H. Delong, A Profile of Mathematical Logic (chap. 2: Non-Euclidean Geometry), Addison-Wesley,
1970.
D, Gans, An Introduction to Non-Euclidean Geometry, Academic Press, 1973.
L. Roth, "Geometry and the Scientific Imagination", Rendiconti di Matematica, 1-17, 1970.
W. H. Brock, "Geometry and the Universities: Euclid and His Modern Rivals, 1860-1901", Hystory of
Education, 21-35, 1975.
Toth, Imre CADERNO DE FÍSICA DA UEFS 09, (01 E 02): 37-52, 2011
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N. Daniels, "Thonas Reid's Discovery", Journal of the Philosophy of Science, 219-234, 1972.
F. Gonseth, la Géométrie et le problème de l'espace, Editions du Griffon Neuchâtel, 1958.
I. Toth, Die nicht-euklidische Geometrie in der Phae omenologie des Geistes, Heiderholf, 1972.
H. Poincaré, la Science et l'hypothèse, 1903: Derniers pensées, 1913, Flammarion.
TRADUÇÕES DAS LEGENDAS E OUTRAS NOTAS QUE APARECEM NO ARTIGO ORIGINAL:
*
[Nota na ilustração do início do texto] Eis como se apresentam os cinco postulados de Euclides
em um manuscrito grego do séc. XIV conservado na Biblioteca Nacional. O postulado mais famoso é
seguramente o quinto: "Se uma reta cortando duas retas faz os ângulos interiores do mesmo lado
menores que dois ângulos retos, as duas retas prolongadas ao infinito se encontrarão do lado onde os
ângulos são menores que dois retos".
(Cliché J. L. Charmet)
*
Pág. 144: Imre Toth ensinou nas universidades de Bucareste, de Frankfurt e Bochum.
Atualmente ele é professor na Universidade de Ratisbonne (RFA). Suas pesquisas dirigem-se
essencialmente sobre as matemáticas gregas e sobre os problemas filosóficos ligados aos fundamentos
da matemática.
Wilson Pereira de Jesus
tradutor