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A produção discursiva do corpo no século XXI
Maria Roseli Castilho Garbossa1 (Unioeste)
roseligarbossa@hotmail.com
RESUMO: Falar do corpo é falar da história da civilização. É considerar que cada sociedade
age de acordo com as condições de produção de sua época e assim constrói e determina o que
considera como corpo, destacando certas características em detrimento de outras, criando desta
forma, os padrões a serem seguidos. Hoje, século XXI, percebemos um intenso aumento dos
discursos sobre e para corpo. O corpo é produzido, mostrado, admirado, desejado,
comercializado e consumido pelas diferentes classes sociais. A preocupação com a sua imagem
torna-se quase que uma obrigatoriedade. O corpo precisa ser belo, e, mais do que isso, ele deve
ser perfeito, mesmo que muitas vezes, inatingível. Pensamos, então, o corpo como um objeto
discursivo produzido em determinadas condições sociais, históricas e ideológicas. Para esta
análise, tomamos os preceitos teóricos e metodológicos da Análise de Discurso de orientação
francesa, para a qual os efeitos de sentido são constituídos por posições sociais e os sujeitos
agem de acordo com essas posições, porque “o sujeito se constitui pelo ‘esquecimento’
daquilo que o determina” (PÊCHEUX, 2009). Essa identificação fundadora da unidade
imaginária do sujeito se apoia no fato de que os elementos do interdiscurso, sob a forma do
pré-construído e do processo de sustentação, constituem no discurso do sujeito “os traços
daquilo que o determina” e são então re-inscritos no discurso do próprio sujeito (PÊCHEUX,
2009).
PALAVRAS-CHAVE: Beleza; Condições de Produção; Corpo.
ABSTRACT: To speak of the body is to speak of the history of civilization. It is to consider
that each society acts according to the conditions of production of its time and thus builds and
determines what it considers as body, highlighting certain characteristics to the detriment of
others, creating in this way, the standards to be followed. Today, the twenty-first century, we
perceive an intense increase of the discourses on and for body. The body is produced, shown,
admired, desired, marketed and consumed by different social classes. The concern with his
image becomes almost an obligation. The body needs to be beautiful, and more than that, it
must be perfect, even if often, unattainable. We think, then, the body as a discursive object
produced in certain social, historical and ideological conditions. For this analysis, we take the
theoretical and methodological precepts of Discourse Analysis of French orientation, for which
the effects of meaning are constituted by social positions and the subjects act according to
these positions, because "the subject is constituted by 'forgetfulness' of what determines it
"(PÊCHEUX, 2009). This founding identification of the imaginary unity of the subject is based
on the fact that the elements of interdiscourse, in the form of the pre-constructed and the
process of sustentation, constitute in the discourse of the subject "the traces of what determines
it" and are then re- inscribed in the subject's own speech (PÊCHEUX, 2009).
KEYWORDS: Beauty; Production Conditions; Body.
PALAVRAS INICIAIS
1 Doutoranda em Letras pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras - nível de Mestrado e
Doutorado - área de concentração Linguagem e Sociedade da Universidade Estadual do Oeste do Paraná –
UNIOESTE- câmpus de Cascavel, sob a orientação do Prof. Dr. Alexandre Sebastião Ferrari Soares.
Ao falarmos sobre a imagem de corpo, consideramos que ela é constituída de acordo
com cada época histórica e que em cada uma delas, alguns modelos são construídos e
propagados e assim passam a ser desejados e buscados. Ao propormos algumas análises a
respeito da imagem de corpo propagada no século XXI, há de consideramos que,
possivelmente, teremos modelos que pertencem a esta época. Época em que se tem ao alcance
muitos recursos para embelezá-lo e também modificá-lo, visto que vivemos um momento em
que novas tecnologias permitem, de forma intensa e veloz, a solução para problemas
relacionados ao corpo: sejam eles de saúde ou de estética.
No entanto, precisamos considerar que a preocupação com o corpo não é uma
determinação dos tempos de hoje. O homem sempre lançou um olhar atento ao corpo e dele se
apossou a fim de desenvolver técnicas e nele praticar as mais diversas intervenções. Assim,
explorar, modificar, embelezar e cuidar o corpo são práticas recorrentes na história da
humanidade.
O cuidado com o corpo, a saúde e o prolongamento da vida há muito desafiam a
medicina, por exemplo. De acordo Sant’anna (2002),
talvez fosse preciso lembrar sem demora que a preocupação com o próprio
corpo não carece de grandes justificativas: parece completamente natural ao
ser humano inquietar-se diante de suas transformações corporais,
especialmente quando elas anunciam doenças ou são percebidas como marcas
do envelhecimento (SANT’ANNA, 2002, p.51).
Atualmente, mais ainda, conceitos relacionados a doenças do corpo e ao seu
envelhecimento vão tomando novos contornos e tendem a ficar em um passado cada vez mais
distante. Em seu lugar, termos como saúde e longevidade ganham destaque e as práticas e os
discursos para a sua manutenção se intensificam. “Se a palavra-chave do século XVIII era a
felicidade, e a do século XIX a liberdade, pode-se dizer que a do século XX é a saúde”
(MOULIN, 2011, p.15).
Hoje, século XXI, presenciamos a intensa recorrência de discursos sobre saúde, beleza
e longevidade em diversas pesquisas e áreas: em pesquisas acadêmicas preocupadas em
compreender esse processo, no crescente número de revistas cuja temática central é orientada
por e para estas questões, nos inúmeros programas de televisão que dão receitas dos mais
diversos tipos, de alimentares a comportamentais, de resolução de problemas com a saúde à
convivência familiar, nos infinitos sites da internet, que crescem e se popularizam a cada
segundo. Enfim, discursos sobre e para o corpo se disseminam de forma veloz e intensa nos
mais diferentes meios midiáticos. No momento, tomamos para análise, os discursos da
Capricho sobre e para o corpo adolescente.
A REVISTA CAPRICHO
A revista Capricho como mídia que é, se insere como um lugar em que se (re)produzem
discursos que procuram construir e silenciar efeitos de sentido de acordo com os propósitos do
lugar social que ocupa. Voltada ao público adolescente feminino, a revista traz assuntos
considerados de interesse desse público, como moda, beleza e comportamento, contribuindo
para a propagação de modelos estereotipados de beleza, bem como, estimulando e alimentando
o consumismo, muitas vezes, desenfreado, em uma sociedade capitalista como a nossa.
Ao observarmos a organização da revista Capricho, percebemos a centralidade
assumida pelo corpo adolescente, sejam nas matérias, que trazem cuidados sobre ele, nas
imagens veiculadas, nos anúncios publicitários, nas capas, enfim, a totalidade discursiva da
revista parece assumir o corpo enquanto um lugar privilegiado, um espaço que precisa ser
cuidado, mostrado, desejado e desejável.
O corpo adolescente é midiatizado e explorado a partir de discursos e imagens que
dizem como ele deve ser. Para estar atualizada, ser aceita socialmente, e, consequentemente
ser feliz, a menina precisa tornar-se bela e atraente. Podemos perceber essas afirmações na
prática discursiva da Capricho, quando ela cita atrizes famosas e estratégias de combinação de
roupas e acessórios para disfarçar possíveis imperfeições. Citamos, a título de exemplo,
algumas SDs retiradas de edições ainda impressas da revista Capricho.
(SD1) Demi Lovato está na melhor fase de sua autoestima. Recentemente, a
cantora tem postado, no Instagram, várias fotos que provam isso: sem
maquiagem, com a barriga de fora, malhando, tomando suco verde... É a
prova de que os tempos difíceis ficaram para trás. Existe garota mais
inspiradora do que ela? (CAPRICHO, 10/2014, p.12).
(SD2) Se você tem barriguinha...
Escolha um modelo mais comprido, que tampe a barriga, e de cor escura,
como este da Alessandra kiyohara, 15 anos. (CAPRICHO, 29/01/2012, p.51).
(SD3) Tomara que caia
Ele vai dar um toque sexy à sua produção. Se você tiver pouco peito, use um
modelo com enchimento para valorizar. Jogue com saia longa, hotpants e
short de cintura alta (CAPRICHO, 29/01/2012, p.55).
Ao afirmar que a atriz está na melhor fase de sua autoestima, produz-se o efeito de
sentido de que isso se dá pelo fato de ela estar, possivelmente, magra, já que ela aparece nas
fotos com a barriga de fora, malhando e tomando suco verde. Ações geralmente permitidas às
meninas magras, pois às que não se encaixam nesse padrão de corpo, cabe outra opção: o
disfarce perfeito, sob as roupas oferecidas pelo periódico, já que, “Se você tem barriguinha”
deve escondê-la sob “um modelo mais comprido”, se “tiver pouco peito” deve usar “um modelo
com enchimento para valorizar”. A revista propaga um modelo de corpo ao mesmo tempo que
estimula a leitora a admirá-lo e querer se parecer ou pelo menos se sentir parecida com ele.
Para isso, sugere atitudes que o modificam a estratégias que disfarçam possíveis
irregularidades.
Essa tática da revista é comprovada quando ela mostra uma cantora famosa “com a
barriga de fora, malhando, tomando suco verde” e em seguida diz que “Se você tem
barriguinha...” ou “Se você tiver pouco peito” deve, respectivamente, “escolher um modelo
mais comprido, que tampe a barriga” e “usar um modelo com enchimento para valorizar”.
Enfim, se você tem um corpo malhado, magro, sem barriga e seios fartos deve mostrar, caso
contrário, deve escondê-lo, ou melhor, disfarçar para que ele pareça diferente e então possa ser
admirado, ou pelo menos, não criticado.
Essa é umas das estratégias discursivas (e não só) da revista Capricho, promover a falta
e em seguida, propor a sua superação. A adolescente precisa querer ter um corpo sem barriga,
magro, alto, seios fartos para, em seguida, buscar estratégias que o deixem parecido com esse
modelo de corpo. Para isso, entra em cena, a Capricho com sugestões para que as supostas
imperfeições, se não corrigidas, sejam disfarçadas sob peças de roupas e acessórios. Conforme
observado em “escolha um modelo que tampe a barriga”, “use um modelo com enchimento
para valorizar”.
Assim, interessa-nos, não o corpo biológico, mas o corpo discursivizado pela revista.
O corpo que é construído pelos discursos ditos e também pelos não ditos, cujos efeitos
produzem significações, deslizamentos de sentido e também silenciamentos. A esse respeito,
Ferreira (2013) afirma que
no corpo, como nos demais objetos discursivos , vai haver sempre uma tensão
constante que vem da própria sistematicidade do objeto (que se organiza
como uma estrutura), da historicidade que o afeta, porque nele se inscreve e
da interdiscursividade que nele está presente, porque o constitui. Essas seriam
então as condicionantes do corpo que o tornam um objeto discursivo –
sistematicidade – historicidade – interdiscursividade (FERREIRA, 2013,
p.131, destaques da autora).
É por esse viés que pensamos o corpo adolescente na revista Capricho: um objeto
discursivo construído em dadas condições de produção, que produz efeitos de sentido marcados
pelo conflito, pela contradição e pela equivocidade. Dessa forma, não destacamos o corpo
empírico, mas o corpo interpelado, o corpo simbólico, corpo que produz sentidos, onde trabalha
a ideologia, cuja materialidade específica é o discurso.
Podemos perceber, nos pronunciamentos da revista Capricho, que para legitimar o que
diz a respeito do e para o adolescente, ela o faz de modo a tentar construir a imagem de uma
instituição conhecedora do seu público leitor e, por isso, uma voz autorizada a falar para esse
público. Segundo a revista
(SD4) Capricho traz, mensalmente, tudo que as adolescentes querem saber
de uma maneira objetiva, clara e informal
(http://capricho.abril.com.br/revista/historia.shtml).
A revista, movida pela formação discursiva (FD)2 na qual ela está inserida, acredita ser
capaz de conhecer a adolescente a ponto de suprir as suas necessidades, sejam elas psicológicas
ou materiais, pois afirma trazer “tudo” que elas precisam. E ainda, acredita ser competente o
suficiente para o fazer de “maneira objetiva, clara e informal”. Eis a pretensão do discurso
jornalístico se apoiando em uma concepção de linguagem que considera a língua como
instrumento de comunicação: “Decorrem daí vários efeitos constitutivos dos sentidos
veiculados como informações jornalísticas: objetividade, neutralidade, imparcialidade e
veracidade” (MARIANI, 2005, p.7).
Podemos pensar que o discurso jornalístico é assim construído, porque o sujeito age
como se fosse a origem do seu dizer. Segundo Pêcheux (2009), “o sujeito se constitui pelo
‘esquecimento’ daquilo que o determina” (PÊCHEUX, 2009, p.150, aspas do autor).
2 Para Pêcheux (2009), formação discursiva [é] aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de
uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e
deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição,
de um programa etc.) (PÊCHEUX, 2009, p.147, itálicos do autor).
Essa interpelação do indivíduo em sujeito, segundo o autor, dá-se pela identificação do
sujeito com a FD que o domina. Essa identificação fundadora da unidade imaginária do
sujeito se apoia no fato de que os elementos do interdiscurso, sob a forma do pré-construído
e do processo de sustentação, constituem no discurso do sujeito “os traços daquilo que o
determina” e são então re-inscritos no discurso do próprio sujeito (PÊCHEUX, 2009, p.150).
Ao construir a sua prática discursiva sobre e para a adolescente, a revista Capricho leva
em consideração as características deste seu público. Tudo o que ela afirma, vai ao encontro
do que a adolescente, de certa forma, já espera. Se não fosse assim, não haveria a aceitação do
discurso e a tomada de decisão, ou seja, a adolescente não seguiria os aconselhamentos da
revista, seguindo as suas dicas de comportamento e de moda. E por fim, comprando as suas
ideias e os seus produtos, pois, no fundo, é isso que deseja.
O sujeito, movido pelas suas vontades e desejos busca incessantemente suprir as suas
faltas. De acordo com Lacan (2008, p.210), "Uma falta recobre a outra, daí a dialética dos
objetos do desejo, no que ela faz a junção do desejo do sujeito com o desejo do Outro". Aqui
reside, para Lacan, a impreterível incompletude do ser, pois o sujeito passa, pelo processo de
separação3, a ser desejante, ou seja, um efeito de significantes advindos do Outro e ocasionado
pela falta.
Podemos considerar, que “a ideologia interpela os indivíduos em sujeitos” Pêcheux e
Fuchs (in: GADET E HAK, 2010, p. 164) através de um conjunto complexo de formações
ideológicas predominantes em cada época histórica, mas que essa interpelação se dá por conta
da incompletude do sujeito. Sujeito que está sempre à procura de algo que o satisfaça, que o
complete. Sobre isso, podemos pensar na relação estabelecida entre a Capricho Week e a
adolescente. A fim de tentarmos compreender esta relação, passamos à análise de algumas SDs
da revista em análise.
O CORPO NA REVISTA CAPRICHO WEEK
Ao produzir a prática discursiva sobre o corpo adolescente, a revista é movida e
controlada pela FD em que se inscreve, pois, segundo a AD é ela que controla o
funcionamento do discurso, visto que a “interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso
3 A teoria e os conceitos lacanianos serão explorados, com maior profundidade, em trabalhos posteriores.
se efetua pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto é, na
qual ele é constituído como sujeito) ” (PÊCHEUX, 2009, p.150).
Dessa maneira ao construir a imagem do corpo adolescente, não o faz por meio do
retorno do que as coisas são, como se o discurso fosse sua origem, mas por meio do
interdiscurso, ou seja, por tudo o que já se pensou, já se viveu e já se enunciou sobre o corpo
em outras épocas e em outras circunstâncias. Atentemos à SD abaixo:
Capricho Week 22/06/2017
(Destaques nossos)
O periódico traz uma imagem do famoso cantor praticando algum tipo de esporte. Fato
comprovado observando a roupa que o artista está usando e também pelo ambiente em que se
encontra: ao fundo, nota-se uma trave de gol e redes de proteção, elementos característicos de
uma quadra de esporte. Logo abaixo à imagem, essa constatação é confirmada pelo enunciado
que explica que Justin Bieber, em suas folgas, se diverte praticando futebol.
No mesmo enunciado, a revista afirma que quem ganha com a prática desportiva do
cantor são todos os expectadores, pois diz que “quem ganha somos nós". Esse ganho
possivelmente se concretiza pela exposição do corpo do artista, conforme a própria revista
enfatiza ao descrever a prática do modelo salientando que ele o faz “sem camisa, exibindo o
tanquinho. ”
Ao mostrar a imagem do cantor sem camisa exibindo o corpo malhado com a barriga
que se parece um “tanquinho”, expressão utilizada no senso comum para designar uma barriga
conquistada com grandes esforços, dentre eles, muitos exercícios anaeróbicos, a Capricho
Week o faz como se fosse a primeira vez, como se ela fosse a origem do seu dizer. No entanto,
tudo que ela diz sobre o corpo ela retoma da memória discursiva, de sentidos já produzidos a
respeito do corpo: um corpo idealizado, desejável e desejado, pois os discursos que ela produz
para o corpo não partem dela, mas de tudo que já se falou, já se mostrou e já se viu sobre o
corpo. “O corpo, além do organismo vivente, é o que a língua designa como corpo (BARBAI,
2009, in: INDURSKY, FERREIRA, MITTMAN, 2015, p. 210).
Ao afirmar que Justin Bieber também se diverte, além de trabalhar, a revista cita uma
de suas atividades, uma prática popular entre os brasileiros, o futebol, ela a descreve
enfatizando que o artista o faz sem camisa exibindo o corpo malhado e ainda afirma que “
quem ganha somos nós, ainda mais quando o Biebs resolve jogar um futebolzinho de boas,
sem camisa, exibindo o tanquinho”.
Se a revista afirma isso é porque sabe que esse discurso é esperado e aceito pelo seu
público: a admiração pelo corpo malhado e com barriga tanquinho. Se não fosse assim, a
revista não mostraria e nem diria o que diz. A revista movida pela sua FD, acredita ser capaz
(e é) de conhecer a adolescente a ponto de suprir os seus desejos, no caso, o de se satisfazer ao
observar um modelo de corpo que é desejado socialmente.
Ao construir a sua prática discursiva sobre o corpo adolescente, a Capricho o faz
trazendo, através da memória discursiva, saberes, crenças, estereótipos e sentidos que já foram
construídos sobre o corpo ao longo da história. Nas palavras de Pêcheux (in: ACHARD et al,
2010, p.52, destaques do autor),
a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como
acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais
tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-
transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em
relação ao próprio legível.
Dessa forma, a memória discursiva permite que o sujeito “veja”, “leia” e “produza”
efeitos de sentido sobre o corpo no discurso da Capricho Week, pois a memória é a reconstrução
dos discursos através do pré-construído e do discurso transverso, que, no fio do discurso, vem
se restabelecer. Isso faz com que o discurso não seja homogêneo, mas marcado pela
multiplicidade e pela alteridade, pois ele é sempre composto de outros sentidos, que vêm
sempre de já-ditos em outros lugares. Parafraseando e citando Authier-Revuz (1990, p.27),
nenhum discurso é neutro, mas inevitavelmente carregado, ocupado, habitado e atravessado
“pelos discursos nos quais viveu sua existência socialmente sustentada”.
Assim sendo, ao construir a imagem de corpo aceito socialmente, a adolescente toma
nesse processo, tudo que viu, ouviu, sentiu e imaginou a respeito das imagens de corpo, pois
segundo Giddens (2002) "todos nós, nas condições sociais modernas, vivemos como que
cercados de espelhos: neles procuramos a aparência de um eu socialmente valorizado,
imaculado" (GIDDENS, 2002, p.160, in: BORBA e HENNIGEN, 2015, p.249).
Para que a adolescente seja aceita nesse “mundo espelhado”, a Capricho Week entra em
cena sugerindo peças de roupas, calçados, acessórios, maquiagem e tantos outros produtos. E,
diga-se de passagem, o espelho reflete a imagem de artistas famosos que são colocados pelo
periódico como pertencendo ao mesmo mundo da adolescente. Na SD abaixo, a revista,
primeiramente mostra Dua Lipa, compositora e modelo inglesa, famosa no mundo adolescente,
trajando roupas e acessórios procurados e usados por uma grande parte de adolescentes, pelo
menos, dentre o seu público leitor. Logo em seguida, na verdade, concomitantemente a isso, a
revista apresenta as vestimentas e acessórios que a modelo está usando, pelo menos nas
imagens, aliadas a tantas outras que seguem a mesma linha. Do lado de cada peça estão os
respectivos preços. Vejamos:
Capricho Week, 7/11/2017 Capricho Week, 7/11/2017
Ao visitar a revista e se deparar com esses, dentre tantos outros produtos, a adolescente
é estimulada e levada a adquiri-los. Esta aquisição é facilitada, pois basta dar um clique no
“carrinho de compras” que se encontra do lado de cada produto que a mesma será direcionada
a efetuar a compra. Uma vez cadastrada, a leitora não terá problemas e nem demora em finalizar
as suas compras: facilidades da era moderna.
Percebemos que a sociedade capitalista dita um padrão de beleza, proporciona e
estimula a necessidade (a falta) para então oferecer produtos que supostamente preencherão
estas lacunas, imediatas, pois elas, as lacunas, nunca serão totalmente preenchidas, pois são
elas que alimentam a busca, via consumismo.
Nesse processo, a mídia, a publicidade, o corpo, o consumo e o sujeito mantêm uma
forte e estreita relação simbólica capitalista. O aparecimento e o aperfeiçoamento das novas
tecnologias e, consequentemente, o desenvolvimento das indústrias potencializou a produção
em série e, diante desse fato, propiciou a “criação” de consumidores em potencial, dentre eles,
o público adolescente, nosso foco de análise, descoberto, segundo Fisher (1996), “na década
de 90 [época em que] os adolescentes encontraram uma acolhida espetacular na mídia e são
então descobertos como o novo alvo do mercado, justamente no tempo em que se experimenta
o auge da globalização das economias e das culturas (FISCHER, 1996, p.21).
Podemos pensar que é essa vontade de se tornar, no caso, parecida com a modelo e,
supostamente estar próximo de uma suposta perfeição de beleza, que controla a produção dos
discursos, dos comportamentos e dos sentidos. Uma “força” que move o motor do modo de
produção atual, pois os sujeitos estão sempre em busca de algo que os completaria e, em se
tratando do corpo, estão, não raras as vezes (para não generalizar) procurando alguma maneira
de ilusoriamente atingir, ou pelo menos encontrar um artifício para “disfarçar” a falta, e, atingir
a suposta perfeição. Eis o sonho de completude do sujeito.
Para Leandro Ferreira (2010), o sujeito, ao ser constituído pela linguagem, encontra
nela sua morada e disso decorre uma marca do sujeito enquanto efeito de linguagem. Por outro
lado, ao sofrer a determinação da ideologia, por via da interpelação, o sujeito se configura como
assujeitado. E por ser também um sujeito do inconsciente, descontínuo por excelência e que se
ordena por irrupções pontuais, esse sujeito se mostra como desejante.
Podemos pensar que a aceitação do discurso da revista Capricho Week pela adolescente
é determinada pela busca de completude do sujeito, já que ele é inscrito no desejo pela ideologia
e constituído pela falta, segundo a psicanálise lacaniana. E é essa busca incessante por algo que
a completaria que move a adolescente a buscar, via consumo, seja de modelos de corpo, de
comportamento ou de produtos a tão sonhada completude.
BREVES CONSIDERAÇÕES
A partir destas breves análises, atentamos ao fato de a revista trabalhar no sentido de
propor soluções para os supostos “problemas” da adolescente em relação ao seu corpo.
Supostos problemas que a revista enfatiza e propaga e que, momentaneamente, poderão ser
resolvidos através de pequenos “ajustes” que poderão ser feitos ao usar determinados produtos,
tais como roupas, calçados, acessórios e maquiagem, por exemplo. Cabe ressaltar, que esses
apetrechos sugeridos são, nada mais, nada menos, que produtos e marcas da própria revista
e/ou de seus parceiros financeiros.
A Capricho Week reproduz, legitimada pela voz das adolescentes, insatisfações das
mais variadas formas sobre o corpo. A partir dessas “neuras”, o sujeito é levado, ou pelo menos
é o que se pretende, via comportamentos e produtos sugeridos pelo periódico, a atingir,
momentaneamente, o ideal de beleza pretendido. Eis a ilusão de consciência e completude do
sujeito.
De acordo com o analisado, a adolescente acredita que se usar determinadas peças do
vestuário, as quais aparentemente disfarçam o que ela (e não só ela) acredita ser imperfeições
diante de estereótipos de beleza propagados, se sentirá melhor, mesmo que o suposto problema
continue lá. Já que se não é mostrado, ilusoriamente ele não existe mais, pelo menos enquanto
estiver disfarçado sob o produto anunciado.
Nessa direção, a sociedade capitalista dita um padrão de beleza, proporciona e estimula
a necessidade (a falta) para então oferecer produtos que supostamente preencherão esta lacuna,
imediata, pois elas, as lacunas, nunca serão totalmente preenchidas, pois são elas que
alimentam a incessante busca, via consumismo.
Nesse processo, a mídia, a publicidade, o corpo, o consumo e o sujeito mantêm uma
forte e estreita relação simbólica/capitalista. O aparecimento e o aperfeiçoamento das novas
tecnologias e, consequentemente, o desenvolvimento das indústrias potencializou a produção
em série e, diante desse fato, propiciou a “criação” de consumidores em potencial, dentre eles,
o público adolescente.
Para isso, a Capricho Week trabalha no sentido de “pegar” o sujeito justamente onde o
“tiro” é quase que certeiro: a busca pela completude. A necessidade de estar sempre
procurando por algo que supra a falta, que na verdade, nunca será completamente suprida, pois
é justamente ela que move o sujeito a se movimentar e movimentar a sociedade. Pois, logo que
um desejo é alcançado, surgem tantos outros. Eis o que acontece com a adolescente, a vontade
de ter um corpo parecido com o das modelos famosas. Desejo alcançado, momentaneamente,
quando a adolescente consegue ficar parecida com elas, seja pelo comportamento, seja pelas
roupas e acessórios adquiridos. Desejo que não se finda...
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