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Marina de Carvalho Guedes
A POLÍTICA DE PROTEÇÃO DOS INVESTIMENTOS ESTRANGEIROS DA
UNIÃO EUROPEIA: NORMAS E MECANISMOS DE SOLUÇÃO DE LITÍGIOS
Dissertação em Ciências Jurídico-Políticas - Menção em Direito Internacional Público e Europeu, orientada pelo Professor Doutor Vital Martins
Moreira e coordenada pela Professora Doutora Ana Margarida Simões Gaudêncio, apresentada a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Julho, 2017
MARINA DE CARVALHO GUEDES
A POLÍTICA DE PROTEÇÃO DOS INVESTIMENTOS ESTRANGEIROS DA
UNIÃO EUROPEIA: NORMAS E MECANISMOS DE SOLUÇÃO DE LITÍGIOS
THE EUROPEAN UNION'S FOREIGN INVESTMENT PROTECTION POLICY:
RULES AND DISPUTE SETTLEMENT MECHANISMS
Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra no âmbito do 2.º Ciclo de
Estudos em Direito, na Área de Especialização em
Ciências Jurídico-Políticas/Menção em Direito
Internacional Público e Europeu.
Orientador: Dr. Vital Moreira
Coimbra, 2017
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Aos meus pais, Telma e Eduardo, recebam a minha gratidão por toda a paciência.
A Thiago Bessa por sua ajuda e dedicação, sem as quais eu não teria chegado até o fim.
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RESUMO
O presente trabalho evidencia pesquisas, de cunho jurídico e político, realizadas em torno dos
Investimentos Diretos Estrangeiros no contexto da União Europeia, tendo em conta a
introdução de competência da União pelo advento do Tratado de Lisboa de 2007, com entrada
em vigor em 2009. Enfoca em uma das diversas consequências consideradas pela mudança de
paradigma operada por Lisboa e sua contribuição na “Política Comercial Comum” da União:
os investimentos. Percorre as problemáticas jurídicas enfrentadas pela União Europeia quanto
à efetivação de sua competência na fase de transição, em que se indagou sobre o modelo de
investimento e de resolução de controvérsias que os acordos de investimentos firmados pelos
Estados e também entre eles, anteriormente a 2009, deveriam seguir. Explora também as
consequências deste novo paradigma sob a condução dos conflitos e normas estabelecidos
pelo Tratado da Carta da Energia. Propõe apontar os novos rumos da disciplina do Direito
Internacional dos Investimentos no âmbito europeu, notadamente pela constatação do
desenvolvimento de um modelo próprio de proteção de investimentos pela União Europeia e
da inovação no sistema de resolução de controvérsias investidor-Estado pela almejada
implementação do Tribunal Multilateral de Investimentos. Vislumbra relatar as tendências a
serem adotadas por este modelo e concluir sobre a importância prática de suas escolhas.
Consiste em um estudo do tipo qualitativo, de caráter descritivo, desenvolvido a partir de
pesquisas doutrinárias, legislativas, jurisprudenciais e institucionais no tocante às perspectivas
trazidas pelo Tratado de Lisboa ao investimento. Busca explorar a doutrina europeia, suas
ideias e as problemáticas em que se debruça, as quais decorrem de decisões tomadas pelas
instituições da União e, consequentemente, pelos tribunais que tem o condão de decidir sobre
os diferendos relativos ao investimento. São trazidas algumas disputas para a ilustração das
questões levantadas, a fim de mostrar como os julgadores têm decidido: as lacunas que
perpetuam e as impotências a que estão submetidos. A limitação nos meios de resolução de
controvérsias para a matéria em tela é aprofundada, abordando-se desde a proteção
diplomática e suas inconsistências ao direito do investidor, até o mecanismo de resolução
investidor-Estado. A mobilização, notadamente da Comissão e do Parlamento, em estabelecer
o Tribunal Multilateral de Investimentos, em caráter permanente, visa suprir as demandas não
respondidas pelos métodos atualmente usados. A União Europeia tem concluído nos últimos
anos que pouco importaria reformar seus standards de proteção de investimentos se não poder
dispor de um mecanismo que assegure a execução destes em aspecto de constrangimento
direto. Despede-se da arbitragem clássica entre investidor e Estado, para lançar-se em acordos
que aperfeiçoam esta última sistemática em um ambiente de maior confiança das decisões,
menores custos e maior celeridade, por exemplo. É indiscutível que a União Europeia tem por
fito reformar toda a matéria de investimentos. Visa criar um modelo novo, moderno e
adequado aos seus auspícios. Ambiciona introduzir e exportar suas novas regras,
estabelecendo-se como a grande referência mundial no assunto. Impulsiona uma maior
liberalização dos mercados de investimento e faz frente aos parâmetros de proteção do
investidor outrora orquestrados pelos Estados Unidos.
Palavras-chave: Política Comercial Comum. Investimento Direto Estrangeiro. Arbitragem
investidor-Estado. Tribunal Multilateral de Investimentos. União Europeia. Tratado de
Lisboa.
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ABSTRACT
The present work emphasizes the legal and political research carried out on Foreign Direct
Investments in the context of the European Union, bearing in mind the introduction of
competence of the Union by the advent of the Lisbon Treaty of 2007, which entered into force
in 2009. It focuses on one of the several consequences considered by the shift of paradigm
operated by Lisbon and its contribution to the Union’s “Common Commercial Policy”: the
investments. It goes through the legal problems faced by the European Union regarding the
establishment of its competence in the transition phase, in which the model of investment and
of settlement of disputes that the investment agreements concluded by the States, and also
between them, before 2009 should follow were questioned. It also explores the consequences
of this new paradigm under the conduct of the conflicts and standards established by the
Energy Charter Treaty. It proposes to point out the new directions in the discipline of
International Investment Law within the European framework, notably by observing the
development of a European Union model of its own for investment protection and the
innovation in the investor-State dispute settlement system by the desired implementation of
the Multilateral Investment Court. It aims at reporting the trends to be adopted by this model
and at concluding on the practical importance of its choices. It consists of a qualitative study,
of descriptive nature, developed from doctrinal, legislative, jurisprudential and institutional
research on the perspectives to investment raised by the Lisbon Treaty. It seeks to explore the
European doctrine, its ideas and the problems it addresses, which are the result of decisions
taken by the Union institutions and, consequently, by the courts that have the power to decide
on investment disputes. To illustrate the issues raised, some disputes are brought up, in order
to show how arbitrators have decided: the gaps that remain and the situations of
powerlessness that they are subjected to. The limitation on the means of settling disputes for
the matter in question is deepened, ranging from diplomatic protection and its inconsistencies
with investor rights to the Investor-State settlement mechanism. The mobilization, notably
from the Commission and the Parliament, to permanently establish the Multilateral
Investment Court aims to meet the demands not answered by the methods currently used. The
European Union has concluded in recent years that a reform of its investment protection
standards would be of little importance if the Union cannot have a mechanism to ensure the
execution of such standards through direct constraint. The European Union moves away from
classical arbitration between investor and State to engage in agreements that improve this
latter mechanism in an environment of more reliable decisions, lower costs and greater
celerity, for example. It is unquestionable that the European Union aims at reforming the
whole subject of investments. The Union intends to create a new and modern model suitable
to its interests. It aspires to introduce and export its new rules, establishing itself as the
world’s main reference in the subject. It drives a greater liberalization of investment markets
and it confronts the parameters of investor protection once orchestrated by the United States.
Keywords: Common Commercial Policy. Foreign Direct Investment. Arbitration investor-
State. Multilateral Investment Court. Lisbon Treaty.
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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
AETR – Acordo Europeu relativo ao Trabalho das Tripulações dos Veículos que efetuam
Transportes Rodoviários Internacionais (AETR), do inglês, ERTA.
AID – Associação Internacional para o Desenvolvimento
ALC – área de livre comércio
ASEAN – Association of Southeast Asian Nations (Associação de Nações do Sudeste
Asiático)
AUE – Ato Único Europeu (Single European Act)
BCE – Banco Central Europeu
BIRD – Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento
BIT – Bilateral Investimento Treaty
CCP – Common Commercial Policy (Política Comercial Comum - PCC)
CE – Comunidades Europeias
CETA – EU-Canada Comprehensive Economic and Trade Agreement (Acordo de Livre
Comércio entre a UE e o Canadá)
CIADI – Centro Internacional para Arbitragem de Disputa sobre Investimentos
CIF – Corporação Internacional para Finanças
CIJ – Corte Internacional de Justiça
CIRDI - Centro Internacional de Resolução de Disputas em Investimento
CNUDMI – Comissão das Nações Unidas para o Direito Mercantil Internacional
COREPER – Comitê dos Representantes Permanentes
DEIS – Development Effectiveness Indicator System (Sistema de indicação do
desenvolviemnto efetivo)
DIP – Direito Internacional Público
ECOFIN – Comitê Econômico e Financeiro
ECT – Energy Charter Treaty (Tratado da Carta da Energia)
ERTA – European Road Transport Agreement
EU – European Union
EUA – Estados Unidos da América
EUSFTA – EU-Singapure Free Trade Agreement (Acordo de Livre Comércio entre UE e
Singapura)
FAC – Foreing Affairs Council (Conselho das Relações Exteriores)
FITR – cláusula Fork-in-the-Road
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FMI – Fundo Monetário Internacional
FTA – Free Trade Agreement (Acordo de Livre Comércio)
GATS – General Agreement on Trade in Services (Acordo Geral sobre Comércio de
Serviços)
GATT – General Agreement of Tariffs and Trade (Acordo Geral sobre Tarifas – Aduaneiras -
e Comércio)
ICC – Câmara de Comércio Internacional
ICSID – International Centre for Settlement of Investment Disputes (Centro Internacional
para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos, CIADI)
IDE – Investimento Direto Estrangeiro
INTA – International Trade Committee (Comitê de Comércio Internacional do PE)
ISDS – Investor-to-State Dispute Settlement (Resoluação de diferendos entre investidor e
Estado)
LCIA – Tribunal Arbitral Internacional de Londres
MAI – Multilateral Agreement on Investment (Acordo Multilateral de Investimento)
MIGA – Multilateral Investment Guarantee Agency (Agência Multilateral para a Garantia do
Investimento)
NAFTA – North American Free Trade Agreement (Acordo Norte-americano de Livre
Comércio)
NMF – Nação mais favorecida
NOEI – Nova Ordem Econômica Internacional
OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
OEA – Organização dos Estados Americanos
OIIER – organizações internacionais de integração econômica regional
OMC – Organização Mundial do Comércio
PCC – Política Comercial Comum
PE – Parlamento Europeu
PLO – Processo Legislativo Ordinário
PPA – Contratos de Longo Prazo
QMV – Maioria Qualificada dos Votos
REIO – Regional Economic Integration Organization
SCC – Instituto de Arbitragem da Câmara de Comércio de Estocolmo
SEA – Single European Act (Ato Único Europeu)
TBIs – Tratados Bilaterais de Investimento
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TCE – Tratado da Comunidade Europeia
TEC – Tratado da Comunidade Europeia
TFUE – Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia
TJE – Tribunal de Justiça Europeu
TJUE – Tribunal de Justiça da União Europeia
TPA – Tribunal Permanente de Arbitragem
TPC – Trade Policy Committee (Comitê de Política Econômica)
TTIP – Transatlantic Trade and Investment Parternship (Acordo de Parceria Transatlântica de
Comércio e Investimento)
TUE – Tratado da União Europeia
UE – União Europeia
UNCITRAL – United Nations Commission on International Trade Law (Comissão das
Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional)
UNCTAD – United Nations Conference on Trade and Development
USTR – United States Trade Representative
ÍNDICE
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 10
2. INVESTIMENTO DIRETO ESTRANGEIRO: DEFINIÇÃO E REGIME JURÍDICO 18
3. COMPETÊNCIA DA UE QUANTO AO INVESTIMENTO DIRETO ESTRANGEIRO
............................................................................................................................................. 32
3.1 O alargamento de competências da UE e Política Comercial Comum (PCC) ........... 34
3.2 Os princípios relativos à competência da UE ............................................................ 37
3.3 A competência da União para investimento direto estrangeiro ................................. 44
3.4 A delimitação da competência da União no Parecer C-2/15 do TJUE sobre o acordo
de IDE entre a UE e Singapura ........................................................................................ 45
4. OS ACORDOS DE INVESTIMENTO ANTERIORES AO TRATADO DE LISBOA . 48
4.1 Competência dos Estados-membros .......................................................................... 48
4.2 A fase de transição dos acordos ................................................................................. 51
4.3 Acordos entre Estados-membros ................................................................................ 53
4.4 A transição dos acordos pelos policy papers .............................................................. 56
4.5 A transição pelo viés jurídico ..................................................................................... 61
4.5.1 ESTUDO DE CASO: ACHMEA (EUREKO) V. ESLOVÁQUIA .................... 62
4.5.2 OS PROCESSOS DE INFRAÇÃO INICIADOS PELA COMISSÃO .............. 64
4.6 Estudo de caso: Ioan Micula and others v. Romania ................................................. 66
4.6.1 A PROBLEMÁTICA REGULATÓRIA GERADA PELA ORDINANCE 1998
..................................................................................................................................... 67
4.6.2 A DECISÃO DO TRIBUNAL ........................................................................... 68
4.6.3 OS STANDARDS DE PROTEÇÃO .................................................................. 70
4.6.4 A CLÁUSULA DE TRANSFERÊNCIA DE FUNDOS .................................... 72
5. AS PECULIARIDADES DOS INVESTIMENTOS FRUTO DO TRATADO DA
CARTA DE ENERGIA ....................................................................................................... 75
5.1 O investimento em energia ......................................................................................... 75
5.2 A regulação da energia na União Europeia ................................................................ 76
5.3 Estudo de caso: Vattenfall v. República Federal da Alemanha ................................. 79
5.4 As arbitragens de investimento em energia na Hungria: os casos AES e Electrabel . 82
5.5 A resolução de diferendos de investimento: o ECT e a UE ....................................... 85
9
6. O NOVO PODER DECISÓRIO DO PARLAMENTO EUROPEU ............................... 89
6.1 A nova PCC e o Parlamento Europeu ........................................................................ 89
6.2 A articulação do Parlamento com as outras instituições europeias ............................ 91
6.3 Considerações acerca da nova processualística adotada pelo PE .............................. 95
7. AS NORMAS DO INVESTIMENTO DIRETO ESTRANGEIRO NA UNIÃO
EUROPEIA ........................................................................................................................ 101
7.1 O tratamento ............................................................................................................. 101
7.2 A proteção ................................................................................................................ 104
7.3 A garantia ................................................................................................................. 105
8. O DIREITO DE ADMISSÃO E ESTABELECIMENTO DE INVESTIMENTOS ..... 106
8.1 Os modelos europeu e americano de admissão de investimento ............................. 109
8.2 As Alterações Operadas pelo Tratado de Lisboa: Um Novo Modelo Europeu de
Tratados de Investimento ............................................................................................... 114
9. OS MECANISMO DE SOLUÇÃO DE LITÍGIOS ...................................................... 118
9.1 Estado versus Estado ................................................................................................ 121
9.2 Investidores versus Estado ....................................................................................... 123
10. A PROTEÇÃO DAS NORMAS SUBSTANTIVAS POR UM NOVO MECANISMO
DE SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS .......................................................................... 135
10.1 O Tribunal Multilateral de Investimentos .............................................................. 138
10.2 O Acordo entre a União Europeia e o Canadá (CETA) ......................................... 140
10.3 Os últimos documentos emitidos pela União Europeia ......................................... 143
11. CONCLUSÃO ............................................................................................................. 145
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 148
10
1. INTRODUÇÃO
O processo de integração regional da União Europeia é marcado por sua
dinamicidade e intensa articulação no sentido de aprofundamento das relações tanto
externas quanto entre seus Estados-membros. O último grande passo na evolução de suas
tratativas se remete ao Tratado de Lisboa, considerado uma mudança paradigmática no
sentido de ter operado a inserção do Direito Constitucional na esfera de atuação da União.
Neste sentido é que se alcançou um alargamento da Política Comercial Comum (PCC), a
qual passou a albergar aqueles investimentos de longo prazo, sob o auspício de proferir
desenvolvimento no setor produtivo de um Estado diverso daquele de origem de seu
investidor. Trata-se, portanto, dos Investimentos Diretos Estrangeiros (IDE).
Foi pelo Tratado de Maastricht (1992) que a integração no sentido dos IDE
começou a tomar forma, uma vez que a tratativa instituiu a liberdade de circulação de
capitais entre seus Estados-membros e terceiros Estados, embora sem ter transferido a
política de IDE para a União. Assim, àquela época se presenciava uma PCC descolada de
uma política comum de investimento estrangeiro, de tal forma que o investimento era
regulado de diferentes modos pelos Estados-membros dentro do espaço transfronteiriço da
União, convergindo somente em parte no tocante ao direito de acesso, por delegação dos
Estados-membros, já que o pós-estabelecimento ficava cargo de cada membro. Ou seja,
antes de Lisboa cada Estado tinha sua política própria em matéria de investimento direto
estrangeiro, fazendo surgir então uma clara assimetria entre os níveis de proteção
asseverados entre os Estados.
Não havia lógica, de assim o ser. A união precisava reunir um quadro de
competências compatíveis com seu poder de regular o acesso do investimento no mercado
interno, como o seu estabelecimento e proteção em relação ao mercado externo. Foi o que
ocorreu no Tratado de Lisboa, de modo que passou a ser competente em ambas as
dimensões e regulação. Portanto, a tratativa em comento uniu à competência de
liberalização dos investimentos estrangeiros a proteção dos investidores, resultando em um
único regime de acesso e de normas de proteção do investimento
Diante de uma nova perspectiva de articulação, é de se concluir que a União
passou a conduzir sua própria política econômica externa, o que repercutiu em um
rearranjo das competências de seu quadro institucional. Em evidência estão as novas
11
possibilidades conferidas ao Parlamento Europeu, o qual passou a desempenhar papel
significativo nas negociações e conclusões de acordos internacionais tomados pela União,
cabendo-lhe o direito de acompanhar, monitorar e até mesmo intervir nos referidos
processos. Embora não possa emendar o texto de tais acordos, tem o poder de rejeitar seu
texto, o que isso promoveria uma readequação forçada no que tange a Comissão.
A esta também foram adicionadas novas competências, dando-lhe ainda mais
importância no que tange aos investimentos estrangeiros, posto que a ela fora entregue a
definição, a condução, o poder de iniciativa legislativa e o poder de negociação desta
matéria com países terceiros.
Com estes ganhos de competência, fica claro que alguma instituição sairia com
atuação diminuída, em consequência deste rearranjo político, perda que ficou ao encargo
dos Estados-membros, visto terem sido destituídos do seu poder de legislação, bem como
de seus direitos de negociação e conclusão de acordos de investimento. Podendo fazer-lhes
somente sob autorização da Comissão. Entretanto, nem tudo lhes foi retirado. A
participação no Conselho parece agora ainda mais importante que antes, pois resulta de um
poder de controle significativo da Comissão através da comitologia.
O Tratado de Lisboa levantou ainda a questão de se saber como ficariam as
normas de investimento direto estrangeiro no direito dos Estados-membros após a
disciplina passar a ser articulada predominantemente pela União. Ou seja, se tais normas
estariam automaticamente derrogadas, sem qualquer efeito, ou se lhes restariam alguma
vigência e utilidade. Essa última hipótese é a que vem prevalecendo, embora não seja
totalmente pacífica no que toca aos investimentos celebrados em decorrência de acordos
bilaterais de investimentos firmados pelos Estados-membros antes da entrada em vigor do
Tratado de Lisboa.
Apesar da perda de poder legislativo por parte destes últimos, é importante
pontuar que ao serem unidos por uma só política de comércio externo, estando em foco os
investimentos, os membros da UE passaram a deter um maior poder negocial frente a
terceiros países. O rompimento com a ordem da fragmentação possibilitou um maior poder
econômico ao conjunto, fornecendo-lhe um somatório no poder de barganha.
Voltando à seara da discussão de competência, há de se sublinhar que a
exclusividade concedida por Lisboa à União se refere somente aos investimentos diretos
estrangeiros, caso em que não se comporta uma interpretação restritiva acerca da referida
12
competência. Entretanto, o direito dos investimentos se subdivide em outra categoria além
dos diretos, são os chamados investimentos indiretos, de portfólio ou de carteira, mais
estritamente relacionados ao mercado financeiro e sua dinamicidade na perspectiva de
curto prazo e de rápido deslocamento entre as economias nacionais. Desta forma, cumpre
afirmar que a competência da União não é extensiva à referida espécie, motivo pelo qual se
considera que a União não possui domínio sobre toda política de investimento externo.
A vertente dos investimentos de portfólio obedece a competência compartilhada
entre os Estados-membros e a União, os quais concorrem entre si para um exercício em
separado sustentado pelo princípio da preempção. Deste modo, a União não está adstrita
aos investimentos diretos. Pode ela negociar e concluir acordos de investimentos indiretos
sob o lastro de ser competente para regular a circulação de capitais entre a União e Estados
terceiros.
Para tanto, todavia, precisa se submeter ao crivo dos Estados-membros por se
tratar de acordos mistos, os quais envolvem igualmente a União e os Estados-membros,
devendo estes ratificarem tais acordos, haja visto que a nova competência exclusiva da
União abarca somente a regulação dos investimentos diretos, restando fora de sua órbita a
proteção dos investimentos de portfólio. Por este motivo, até mesmo uma iniciativa de
negociação de tal matéria estaria pendente da aprovação dos Estados-membros e, por
conseguinte, do exercício de um poder de veto por parte destes entes.
Parece estranho, entrementes, negociar e concluir em separado acordos de
investimentos diretos e indiretos. Esta problemática precisa ser solucionada
institucionalmente, uma vez se entender pelo intento de promover um modelo unificado de
acordos de investimentos da União, os quais, como visto, devem prescindir de uma
articulação conjunta desta com os Estados-membros. Portanto, é de se atentar para os
modelos de acordos de investimentos adotados por estes antes do advento de Lisboa,
principalmente no que tange a proteção dos investimentos de portfólio, haja vista a
necessária pretensão de se obter êxito nos referidos acordos mistos.
Outra questão que se impõe em discussão ainda pendente consiste em saber se a
competência da União inclui a proteção dos investidores quanto a expropriação, já que a
inteligência do art. 349 do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE) dirige
aos Estados-membros o regime de propriedade, tanto pública quanto privada. Ou seja, é de
se questionar como poderia atuar a União no caso de processos decorrentes de acusações
13
de expropriação ou nacionalização dos investimentos estrangeiros por algum Estado-
membro ou por terceiros Estados.
Esta indagação insta por uma maior atenção a política de proteção de
investimentos que está sendo desenvolvida pela União após Lisboa. É este debate o foco
do trabalho que se segue, pois anteriormente a este paradigma, os países da União
Europeia, em separado, adotavam cada qual seu modo de regular a entrada de
investimentos estrangeiros em seus territórios. De maneira geral, os países europeus se
caracterizavam pela preferência do “modelo de admissão”, pelo qual o Estado de
acolhimento não promove direitos de acesso e estabelecimento aos seus investidores, os
quais ficam estipulados já no texto dos acordos bilaterais como condicionados às leis
internas do respectivo Estado. Disto decorre o fato de que não se pode afirmar quanto a
uma intensa liberalização dos investimentos, posto que um significativo teor de
protecionismo resiste a iniciativa operada pelo tratado bilateral de investimento, ou
bilateral investment treaty (BIT).
Acontece que Lisboa trouxe consigo a competência da União Europeia quanto a
entrada dos IDE no território de todos os seus membros, gerando implicações na soberania
dos Estados em decorrência de uma lógica parafederalista. O que se verifica é que a União
vem caminhando no sentido de se distanciar do modelo de admissão e adotar algo mais
próximo ao “modelo de proteção” do pré estabelecimento dos investimentos, largamente
usado por países como Estados Unidos e Canadá. Portanto, a União se encontra em um
momento de desenhar seu próprio modelo de BIT, o que implica em falar de uma nova e
própria política de proteção de investimentos.
A principal fonte de pesquisa a ser utilizada resulta dos trabalhos do Professor
Doutor Vital Moreira, pelo seu enfoque sobre o direito dos investimentos da União
Europeia após o Tratado de Lisboa. Subsidiariamente, outras doutrinas que merecem
destaque se remetem aos estudos de Dominique Carreau e Patrick Juillard, Rudolf Dolzer e
Cristoph Scheuer, além das pesquisas efetuadas e promovidas por August Reinich.
Ademais, cumpre marcar a importância dos policy papers emanados dos órgãos
institucionais da União, no que diz respeito fundamentalmente à nova política de IDE em
desenvolvimento. E, por fim, no que tange aos resultados práticos da questão estudada,
aponta-se para o uso de decisões dos tribunais, sejam elas decorrentes de jurisdições
nacionais, arbitrais ou europeias.
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Para o Professor Doutor Vital Moreira, a política de investimento estrangeiro da
União Europeia está alicerçada sobre quatro pilares, sendo o segundo deles no tocante ao
enfrentamento da temática de sua proteção, o que envolve as garantias concedidas nos
termos da lei, das quais se destacam o direito de não-expropriação, de não-discriminação,
além do tratamento da nação-mais-favorecida e do tratamento nacional.
Da suspeita de violação de algum desses standards de proteção se materializa o
direito ao uso de mecanismos de solução de litígios, os quais podem ocorrer por dois vieses
fundamentalmente, quais sejam, os diferendos entre dois Estados signatários de acordo de
investimento, ou ainda os litígios entre um investidor albergado pela legislação de
investimentos que seu país firmou com o outro Estado-parte no acordo de investimento.
Este último mecanismo é designado por ISDS, do inglês Investor-to-State Dispute
Settlement, e tem sido uma bandeira levantada por muitos no que tange a solução de
litígios a ser adotada pela União Europeia em seu modelo de proteção de investimentos.
A problemática desta matéria consiste na limitada atuação das cortes domésticas,
bem como de sua questionável imparcialidade. Entretanto os litígios entre investidor e
Estado também podem ser solucionados em sede de arbitragem e conciliação internacional,
o que em tese proporciona decisões mais céleres e menos custosas. Todavia, a arbitragem
pode ocorrer sob as mais diferentes jurisdições, a exemplo do ICSID ou CIADI, em
português, Centro Internacional para Arbitragem de Disputa sobre Investimentos; da
Câmara de Comércio Internacional, da Corte Permanente de Arbitragem e das normas da
UNCITRAL (Comissão das Nações Unidas para o Direito do Comércio Internacional), ou
ainda a arbitragem ad hoc.
A grande maioria dos dissídios ocorre em sede do ICSID, o que não pode ser no
caso daqueles em que a União Europeia figurar como parte, já que apenas países podem ser
signatários da Convenção de Washington de 1965. Restando saber, portanto, para qual
mecanismo o modelo da UE apontará, o que pode ser discutido com base nos seus acordos
de investimento que seguem em processo de negociação, dos quais merecem especial
atenção, o CETA (Acordo de Livre Comércio entre União Europeia e Canadá), o qual
espera ratificação pelos Estados-membros da União e o TTIP (Acordo de Parceria
Transatlântica de Comércio e Investimento), articulado com os Estados Unidos e ainda em
processo de negociação. Além dos acordos com Singapura e Vietnã, aquele com
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negociações já concluídas e este em fase de revisão do texto da proposta de conclusão das
negociações para as línguas oficiais da UE.
A questão de se saber sobre a jurisdição a ser utilizada decorre do embate quanto
a responsabilidade civil da União e dos Estados, decorrente de seus direitos regulatórios
em matéria de proteção de investimentos estrangeiros. Sobre a qual ainda cabe estabelecer
um consenso em quais casos deve a União responder a terceiros Estados e quando isto se
incumbe aos Estados-membros que incorreram em violação de seus BITs em decorrência
de iniciativas de adequação ao Direito da União, principalmente no que tange a fase de
transição da comentada política de proteção de investimento.
Exposto o panorama geral, tem-se que esta pesquisa se justifica, em aspectos
teóricos, pelo objetivo de reunir as inovações operadas pela União Europeia, em matéria de
proteção de investimentos e resolução de litígios, com o advento do Tratado de Lisboa.
Estas mudanças, expressas fundamentalmente nos artigos 206 e 207 do Tratado de
Funcionamento da União Europeia demonstram uma importância de cariz prático, uma vez
se observar a tramitação de novos acordos entre a UE e países terceiros.
Há de se contar com a possibilidade de que nenhum desses dois acordos esteja em
vigência com o fim das pesquisas que irão culminar nesta dissertação. A despeito disto, o
que se visiona é observar e analisar as decisões a serem assimiladas e encetadas pela União
Europeia a partir de sua nova competência. Isso porque o desenvolvimento de um modelo
de proteção de investimento, novas tratativas e a formação de precedentes em termos de
Direito da União sinalizam para uma provável evolução da matéria em tela, de modo a
suscitar perguntas e respostas ao novo cenário que se impõe.
Desta feita, o desenvolvimento da pesquisa irá se proceder em onze capítulos,
sendo esta introdução o primeiro deles. Em seguida, no segundo capítulo se observarão
questões conceituais, essencialmente ao que caracteriza o investimento direto estrangeiro
entre os demais, bem como seu regime jurídico.
O terceiro capítulo introduz a matéria no contexto do Direito da União Europeia,
visa, portanto, as competências da UE quanto ao IDE na perspectiva de modificação
operada pelo Tratado de Lisboa. Assim, o tópico se subdivide em quatro outros subitens
que dizem respeito, respectivamente, ao alargamento da competência da UE no plano da
Política Comercial Comum; os princípios relativos à competência da UE; a competência da
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União para o caso específico dos IDE e mo recente Parecer do TJUE sobre a delimitação
dessa competência.
O quarto capítulo aborda o processo de transição dos acordos de IDE firmados
pelos Estados-Membros antes desta tratativa paradigmática. Assim, inicia-se tendo por
foco os acordos firmados entre os atuais membros da União e Estados terceiros. Subdivide-
se em seis seis vertentes: a competência dos Estados-membros quanto aos acordos; a
transição dos mesmos pelos termos dos policy papers, pelo enfrentamento da questão da
força jurídica dos acordos firmados entre os Estados-Membros e pela jurisprudência
(ilustrada pelos casos Achmea (Eureko) v. Eslováquia e pelos processos de infração contra
Estados-membros iniciados pela Comissão). Por fim, traz um aprofundamento da
apreciação jurisdicional pelo caso Ioan Micula and others v. Romênia: sua problemática
regulatória, a decisão do tribunal arbitral, além dos principais standards de proteção
envolvidos, com especial atenção a cláusula de transferência de fundos.
O quinto capítulo trata da celeuma entre países signatários do Tratado Carta de
Energia e os da União Europeia, no que importa os limites da competência de cada um
deles e os meios de resolução de litígios que dispõem para a temática dos investimentos.
Traz três casos em especial: Vattenfall v. República Federal da Alemanha; AES v. Hungria
e Electrabel v. Hungria.
O sexto capítulo é dedicado às inovações adicionais ao poder decisório do
Parlamento Europeu, de modo que toca novamente na PCC, observando com maior
destreza a relação processual entre as instituições europeias para o exercício legislativo,
com especial relevo aos investimentos.
O sétimo capítulo lança-se sobre os modelos de admissão e estabelecimento
existentes entre os acordos de IDE, nomeadamente o antigo modelo europeu e o modelo
americano. Destaca a diferença entre ambos e a nova tendência que os países europeus
adotaram consoante o advento de Lisboa, qual seja, um maior liberalismo no momento de
admissão, assemelhando àquele outro modelo.
O oitavo capítulo envida esforços nas normas de proteção de investimentos,
dividindo-as, conforme entendimento doutrinário, em três: o tratamento, a proteção e a
garantia, os quais estão sempre em discussão neste trabalho a fim de expor as
problemáticas atualmente enfrentadas pela União e sua competência para investimentos.
17
O nono capítulo traz a discussão dos mecanismos de resolução de litígios sobre
investimentos, sendo dividido entre aqueles em que são parte dois Estados e aqueles em
que figura o investidor em um polo e um Estado em outro. Este último é o caso dos
acordos com previsão de resolução de conflitos por ISDS, como já mencionado, devendo
este segmento receber especial enfoque no que tange ao recurso da arbitragem, as
jurisdições disponíveis e os efeitos de suas sentenças.
O décimo capítulo trabalha o que é visionado pela União Europeia para a
formulação de seu próprio mecanismo de resolução de litígios entre investidores e Estados-
membros, trazendo à tona os caminhos mais recentes assinalados pela UE,
fundamentalmente pelo processo de ratificação do CETA e pelo Projeto de Tribunal
Multilateral de Investimento.
Por fim, a conclusão se debruçará em responder a questão principal desta
pesquisa, que é assinalar as principais características da nova política de proteção de
investimentos e de resolução de litígios da UE, o que implica em descrever o que se espera
no novo modelo de BIT da União.
18
2. INVESTIMENTO DIRETO ESTRANGEIRO: DEFINIÇÃO E REGIME
JURÍDICO
O Direito Internacional Econômico se destaca nas relações internacionais em
decorrência dos inúmeros conflitos entre os países ricos e pobres. O relevo também se faz
em aspecto quantitativo, no que diz respeito ao número relativo de tratados desta seara que
entraram em vigor após o ano de 1945, correspondendo a 80% de todo o contingente
normativo internacional1.
Jónatas E. M. Machado2 caracteriza o Direito Internacional Econômico como a
disciplina jurídica internacional relacionada à cooperação, à integração e à
interdependência, cujo fito reside na regulação de operações econômicas internacionais
focadas na geração e mobilidade de riquezas transnacionais.
De modo geral, Celso D. de Albuquerque Mello define o Direito Internacional
Econômico como o “direito das transações econômicas internacionais”, valendo-se da
doutrina de D. Carreau e Patrick Juillard para descriminar seus ramos, dentre os quais se
encontra o direito dos investimentos.
Na perspectiva destes mesmos autores, o Direito Internacional dos Investimentos
resulta de dois fundamentos que travam entre si sucessivas forças no sentido de fornecer
conteúdo a este ramo do Direito Internacional. São, pois, os fundamentos ético-jurídico e o
econômico, ambos compartilhando de um núcleo comum3.
Na descrição do surgimento e demanda pelo direito dos investimentos, Carreau4
parte da premissa de que o direito não se encontra apenas em função da ordem positiva,
mas também da normativa. Assim sendo, o direito dos investimentos, em perspectiva
internacional, surgiu porque havia atores – notadamente Estados e investidores –, que
tinham, e têm, a este respeito, direitos e deveres, cujo conteúdo é especificado pelos
instrumentos que os regem. Tais normativas possuem caráter convencional, porém, a
1 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004. 2 v. Tiragem em homenagem a Celso D. de Albuquerque Mello. p. 1653 2 MACHADO, Jónatas E. M. Direito Internacional: do paradigma clássico ao pós-11 de setembro. 4 ed.
Coimbra: Coimbra Editora, 2013. p. 487-488. 3 CARREAU, Dominique; JUILLARD, Patrick. Droit internacional économique. 5. ed. Paris: Dalloz, 2013.
p. 432 4 CARREAU, Dominique; JUILLARD, Patrick. Droit internacional économique. 5. ed. Paris: Dalloz, 2013.
p. 467
19
grosso modo, se diferenciam em acordos multilaterais e bilaterais, conforme sejam seus
objetos e finalidades.
Feita esta introdução a respeito da classificação didática a que pertencem os
investimentos estrangeiros, cumpre agora prosseguir com a elaboração de seu conceito e
regime jurídico.
O conceito de investimento estrangeiro parte de uma grande abstração e
indefinição, uma vez que cada instrumento internacional tem o condão de definir, em seu
corpo, o investimento, em específico, que se propõe a disciplinar e o modo como decide
fazê-lo. Entretanto, este trabalho se dispõe a investigar um tipo dentre esta gama, qual seja,
o Investimento Direto Estrangeiro.
Para Patrick Daillier5 o investimento estrangeiro significa uma contribuição de
capital realizada por um agente econômico com nacionalidade diferente do local de destino
deste aporte, o que implica em uma decisão de risco e o estabelecimento de conexões com
esta economia no sentido de promover o seu desenvolvimento. Por sua vez, este
investimento será classificado como direto quando possibilitar ao investidor o controle
parcial ou total sobre a atividade econômica a que se destina sua participação.
Karla Closs Fonseca, por sua vez, disserta que o IDE se realiza quando um
indivíduo de um outro país, residente em território diferente daquele onde o investimento
será aplicado, efetiva o deslocamento de fluxos de capitais, na forma de ações, ou mesmo
na compra ou gerência de uma empresa, sob o objetivo de controlar as atividades e dali
promover a geração de lucros em longo prazo.
O exercício do controle é fundamental para caracterizar o IDE, caso contrário se
estaria diante de um mero investimento de portfólio, no qual o fluxo de capital envolvido
não corresponde a um peso considerável no processo de tomada de decisão de uma
sociedade, por exemplo.
Carreau e Juillard6 lecionam uma definição de IDE fundamentada na combinação
de três fatores: a) a existência de um aporte de capital; b) o estabelecimento de relações de
longo prazo em razão deste aporte; e c) a capacidade de exercer controle ou, pelo menos,
5 DAILLIER, Patrick; FORTEAU, Mathias; PELLET, Alain. Droit International Public. 8. ed. Paris
L.G.D.J., 2009. p. 1212. 6 CARREAU, Dominique; JUILLARD, Patrick. Droit internacional économique. 5. ed. Paris: Dalloz, 2013.
p. 466.
20
uma influência real sobre a gestão da empresa receptora do investimento devido as
relações efetuadas.
Para Dolzer e Schreuer7, a definição de IDE perpassa pela observação de uma
gama de características, a qual demonstra uma conceituação mais aprofundada e desenhada
segundo diversos fatores, o que realiza calcando-se na ciência econômica. Para tanto, tais
investimentos pressupõem a transferência de fundos; um contrato de longo termo e baixo
risco; um rendimento regular; além da participação do agente econômico na transferência
de fundos e sua gestão.
Por sua vez, Vital Moreira8, o qualifica como a aplicação transfronteiriça de
capitais voltada a uma efetiva e duradoura influência na gestão de uma empresa, se
diferenciando dos investimentos de portfólio por não possuir caráter puramente financeiro.
Neste mesmo sentido seguem Dolzer e Schreuer, para os quais os investimentos
de portfólio caracterizam-se pela ausência de gestão pessoal por parte do agente
econômico. Ademais, relaciona-se ao desenvolvimento de atividade econômica decorrente
de contrato de curto prazo e com a geração regular de rendimentos, voltando-se a
transações ordinárias no comércio e serviços. Sinalizam ainda para o fato de que a
definição do regime de investimento, se direto ou de portfólio, está intimamente
relacionado ao seu intento, ratione materiae.
A OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), então,
traz uma conceituação um pouco distinta das já apresentadas. Para esta organização,
consiste em Investimento Direto Estrangeiro aquele realizado de um país para outro, tanto
por pessoas físicas quanto por empresa; seja através da compra de uma empresa já
existente (ex. fusões e aquisições), pela criação de uma nova operação de capital ou ainda
através da expansão da operação já existente. Cabe notar que para esta organização, as três
principais características dos IDE são a existência do investimento de capital, de
empréstimos inter companhias e o reinvestimento dos lucros9.
Ademais, de acordo com o Relatório do Parlamento Europeu sobre a “Futura
política europeia em matéria de investimento internacional (2010/2203 (INI))”, uma
7 DOLZER, Rudolf; SCHREUER, Christoph. Principles of International Investiment Law. 2. ed. Oxford:
Oxford University Press, 2012. p. 60 8 MOREIRA, Vital. Respublica Europeia: Estudos de Direito Constitucional da União Europeia. Coimbra:
Coimbra, 2014. p. 364-365 9 OCDE. Putting foreign direct investment to work for development. In: Development Co-operation Report
2014: Mobilising Resources for Sustainable Development. OCDE Publishing, 2014. p. 78
21
distinção clara entre os institutos é algo difícil. Por este motivo, no parágrafo 11º do
Relatório, o Parlamento Europeu solicitou a Comissão que se estabeleça uma definição
clara dos investimentos para que se almeja proteção, ou seja, uma conceituação dos termos
para efeito de entendimento no âmbito da União Europeia.
Cumpre oferecer algumas definições bastante diferentes entre si. Primeiramente,
tem-se a doutrina de Sornarajah10, segundo a qual o Investimento de Portfólio consiste na
movimentação de capital no intuito de aquisição de ações de uma empresa situada no
exterior. Ao contrário do que ocorre no IDE, no qual o controle e a gestão são
características notórias, aqui tem-se apenas a propriedade sobre os investimentos. Outros
elementos, ademais, são trazidos à baila, a exemplo da assunção total dos riscos envolvidos
nas operações, uma vez que não cabe, na esfera do portfólio, acessar à justiça mediante o
entendimento da violação de direitos, uma vez que esse se encontra sob o manto dos riscos
comerciais comuns. Neste mesmo sentido está a ausência de proteção por parte do direito
consuetudinário internacional, uma vez que os riscos foram assumidos de forma voluntária.
A ausência de proteção é também justificada pelo fato de que os investimentos de
carteira podem ser realizados virtualmente nas bolsas de valores de qualquer país do
mundo, de modo que não há razão de se falar, em concreto, na criação de uma
responsabilidade jurídica. Apesar disso, uma responsabilização se torna possível quando
este caráter de investimento é realizado sob os auspícios de um acordo internacional.
Sornarajah conclui que essa questão de proteção, todavia, é dotada de bastante incerteza, o
que o leva a acreditar que a melhor saída é mesmo descrer de sua existência, salvo se
celebrado o tratado.
Por ocasião da sexta edição do Manual de Balanço de Pagamentos, o Fundo
Monetário Internacional põe em pauta uma orientação em maior consonância com a
economia financeira. O Investimento de Portfólio é então definido como transações
financeiras e posições envolvendo títulos da dívida ou capital próprio (diferença entre
ativos e passivos, ou seja, é a diferença entre seus bens e aquilo que deve), os quais não
estão inclusos em investimentos ou ativos de reserva (reserva, em moeda estrangeira, dos
10 SORNARAJAH, Muthucumaraswamy. The International Law on Foreign Investment. Cambridge:
Cambidge University, 2010. 3 ed. p. 8-9.
22
bancos centrais e autoridades monetárias, destinada a garantir a liquidez para a realização
de operações cambiais11).
O grande poder de negociabilidade dos investimentos de carteira permite uma
grande volatilidade nos movimentos de capitais, o que tem por implicação uma
diversificação das carteiras mais rapidamente, comportadas por uma boa infraestrutura
financeira. Ou seja, em poucas palavras, o Investimento de Portfólio é classificado
mediante três fatores: a natureza dos recursos captados, o caráter anônimo das aplicações e
o grau de liquidez de negociação dos capitais12.
São exemplos de institutos enquadrados nesta seara de investimento as cotas de
fundo de hedge13, fundos de private equity14 e capital de risco15 – institutos mais
comumente utilizados em mercados sob regulação mais branda. A quarta edição do
Manual de Balanço de Pagamento16, publicado em 1977, traz ainda outros exemplos, quais
sejam, títulos de longo prazo e debêntures.
A jurisprudência europeia, por fim, não se furtou em enunciar uma conceituação
dos IDE, o fazendo por ocasião do Acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça da União
Europeia17 de 12 de dezembro de 2006, no processo C-446/04 Test Claimants in the FII
11 BCE. Ativos de reserva e fundos próprios. Disponível em: <
https://www.ecb.europa.eu/ecb/tasks/reserves/html/index.pt.html>. Acesso em 23 maio 2016. 12 IMF. Balance of Payments and International Investment: Position Manual. 6 ed. 2010. p.110. 13 Hedge: Estratégia de proteção financeira, realizada nos mercados derivativos, para eliminar o risco a que o
agente econômico está exposto no mercado à vista. Consiste em assumir no mercado derivativo posição
oposta à detida no mercado à vista. Pode ser entendido como um seguro contra o risco de preço do mercado.
Disponível em: <http://www.portaldoinvestidor.gov.br/glossario.html?dir=/glossario/h/&letra=H>. Acesso
em 23 maio 2016. 14 Os private equities são fundos que compram participações em empresas fechadas e procuram melhorar sua
gestão e sua estratégia, aumentando sua eficiência e lucratividade para que cresçam e depois sejam vendidas
para outras companhias ou abram seu capital em bolsa. Disponível em: < http://exame.abril.com.br/seu-
dinheiro/noticias/fundos-de-private-equity-tem-lucro-de-17-com-empresas-fecha>. Acesso em 23 maio 2016 15 Capital de risco é aquele “investido em atividades em que existe a possibilidade de perdas. Em geral, esses
investimentos são realizados por capitalistas privados. Os movimentos desses capitais são registrados na
conta de capital do balanço de pagamentos”. SANDRONI, Paulo. Novíssimo Dicionário de Economia. Best
Seller, 1999. p. 80. 16 IMF. Balance of Payments and International Investment. 4 ed. 1977. p. 142. 17 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA. Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção)
de 12 de Dezembro de 2006 [pedido de decisão prejudicial da High Court of Justice (Chancery
Division) - Reino Unido] - Test Claimants in the FII Group Litigation/Commissioners of Inland
Revenue (Processo C-446/04). 2004. Disponível em:
<http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf;jsessionid=9ea7d2dc30d50ca000b308d74f47bf64af0a55
8c718e.e34KaxiLc3qMb40Rch0SaxuOc310?text=&docid=65682&pageIndex=0&doclang=PT&mode=req&
dir=&occ=first&part=1&cid=659530 >. Acesso em: 05 dez 2014.
23
Group Litigation/Commissioners of Inland Revenue18, onde o instituto aparece nos
seguintes termos:
A este respeito, as participações numa sociedade não adquiridas com vista a criar
ou manter laços económicos duradouros e diretos entre o accionista e essa
sociedade e que não permitem ao accionista participar efectivamente na gestão
dessa sociedade ou no seu controlo não podem ser consideradas investimentos
diretos.
Para o Relatório do Parlamento Europeu sobre a “Futura política europeia em
matéria de investimento internacional (2010/2203(INI))”, também denominado por
Relatório “Arif”, embora nenhum instrumento normativo da União Europeia tenha logrado
conceituar os IDE, a decisão supra do Tribunal de Justiça da União Europeia foi
paradigmática ao conceder ao termo uma interpretação calcada em três critérios.
O acordão caracteriza o IDE como um investimento de longo prazo que permite
adquirir ao menos 10% do capital ou ações de uma determinada empresa, sob o fito do
controle ou gestão da mesma. Este conceito parece entrar em consonância com o proferido
pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) e a OCDE, expresso por ocasião do Manual de
Balanço de Pagamentos do FMI19. A OCDE20, por sua vez, adiciona ainda o fator
motivação do investidor para a realização do IDE, qual seja, o estabelecimento de uma
relação estratégica de longo prazo, no intento de garantir significativa influência na gestão
da empresa alvo do investimento. Influência que se traduz em, pelo menos, 10% do poder
de voto na gestão da referida empresa.
De acordo com o referido instrumento do FMI21, o investimento direto representa
uma categoria de investimento cross-border, o que significa dizer que está associado a
ideia de que o investidor, residente em um país/economia possui controle ou influência
18 Ementa: "Liberdade de estabelecimento - Livre circulação de capitais - Directiva 90/435/CEE - Imposto
sobre as sociedades - Distribuição de dividendos - Prevenção ou atenuação da tributação em cadeia - Isenção
- Dividendos recebidos de sociedades residentes noutro Estado-Membro ou num país terceiro - Crédito de
imposto - Pagamento antecipado do imposto sobre as sociedades - Igualdade de tratamento - Acção de
restituição ou acção de indemnização". Órgão jurisdicional de reenvio: High Court of Justice (Chancery
Division). Objecto: Pedido de decisão prejudicial - High Court of Justice, Chancery Division (Reino Unido) -
Interpretação dos artigos 43º CE e 56.° CE e dos artigos 4.°, n.° 1, e 6.° da Directiva 90/435/CEE do
Conselho, de 23 de Julho de 1990, relativa ao regime fiscal comum aplicável às sociedades-mães e
sociedades afiliadas de Estados-Membros diferentes (JO L 225, p. 6) - Isenção do imposto concedido num
Estado-Membro a uma sociedade residente no território nacional que tenha recebido dividendos provenientes
de sociedades também residentes no território nacional - Isenção que não é concedida relativamente a
dividendos pagos a esta sociedade por sociedades residentes no território de outro Estado-Membro. 19 IMF. Balance of Payments and International Investment: Position Manual. 6 ed. 2010. 20 OCDE. OCDE Benchmark Definition of Foreign Direct Investment. 4 ed. 2008. p. 17. 21 IMF. Balance of Payments and International Investment: Position Manual. 6 ed. 2010. p.100-101.
24
sobre uma empresa ou capitais localizados (“residentes”) em outro país/economia. Ou seja,
é o mesmo que falar em investimento transfronteiriço.
Para uma melhor compreensão desta definição é imperioso trazer à tona a
conceituação de residência e território econômico. Tem-se, portanto, como residência, a
referência ao Estado onde se realizam, em maior predominância, os interesses relativos ao
investimento, limitando-se, a existência de apenas uma residência por entidade
econômica22.
A noção de território, por conseguinte, liga-se a ideia do local onde a atividade de
investimento possui maior conexão com uma economia. Assim, território econômico é
aquela zona onde a economia se desenvolve sob os auspícios de um único governo
(exercício de uma mesma jurisdição) ou única moeda (ex. União Europeia e o Euro),
entendimento que tem por consequência a abrangência de áreas não consecutivas, a
exemplo de enclaves territoriais, off-shore, ilhas, águas territoriais e até mesmo zonas em
disputas23.
Uma diferenciação mais nítida entre os conceitos de residência e território é
promovida pela conceituação de economia fornecida, igualmente, pela publicação da
OCDE, a qual afirma que “uma economia consiste em todas as unidades institucionais que
são residentes no seu território24”.
Na sistemática das relações decorrentes do investimento direto, carece, ainda, uma
exposição acerca do que caracteriza o investidor na esfera do IDE: é aquele agente
econômico (ex. indivíduo ou grupo de indivíduos, pessoa jurídica, sociedade, órgão do
governo e até mesmo organizações internacionais) residente em uma outra economia, e que
tenha, pelo menos, o controle ou gestão de 10% do poder de voto na atividade produtiva a
que o investimento foi destinado. Ademais, sobre as cadeias verticais de propriedade do
IDE, tem-se que quando a gestão contar com mais de 50% do poder de voto, será um
“subsidiário” ao IDE; quando essa porcentagem for de 10%, pelo menos, tem-se um
“associado” ao IDE e, por fim, quando o investidor detiver menos de 10%, classifica-o
como não relevante ao IDE.25
22 OCDE. OCDE Benchmark Definition of Foreign Direct Investment. 4 ed. 2008. p. 40 23 OCDE. OCDE Benchmark Definition of Foreign Direct Investment. 4 ed. 2008. p. 41-42 24 OCDE. OCDE Benchmark Definition of Foreign Direct Investment. 4 ed. 2008. p. 41 25 OCDE. OCDE Benchmark Definition of Foreign Direct Investment. 4 ed. 2008. p. 48-55
25
Assim, se entende por investimento direto estrangeiro a destinação de recursos,
tangíveis e não tangíveis, a Estado terceiro, por não-nacional ou não-residente seu, na
expectativa futura de geração de lucro cujo desdobramento se revele positivamente para o
desenvolvimento da economia do Estado receptor. Entrementes, essa classificação mais
restritiva quanto a definição dos IDE sofre críticas e argumentações, o que é visto por
efeito da sentença no caso Salini (Salini Costruttori S.p.A. and Italstrade S.p.A. v. Kingdom
of Morocco, ICSID Case No. ARB/00/4).
Nesta, o instituto em análise é caracterizado segundo avaliação de três critérios,
quais sejam, a realização de contribuições, a duração da execução do contrato e a
existência de risco na operação. O que se pode concluir desta exposição é que ela se inspira
em uma definição segundo parâmetros mais flexíveis e analíticos. A este respeito, a
doutrina de Carreau e Juillard26 coloca que os referidos critérios são, na verdade,
independentes, e que o ato de classificação de um aporte como investimento direto
estrangeiro deve seguir uma observação holística.
Deve-se notar que a decisão Salini não entende como critério definidor a
existência de contribuição promotora do desenvolvimento econômico do Estado de
acolhimento do investimento, a exemplo de outros tribunais arbitrais. Isso porque tal
critério é dotado de excessiva imprecisão, ou seja, é realmente difícil traduzir a influência
de determinado aporte na promoção do desenvolvimento econômico, principalmente
quando se trata de uma contribuição ocorrida em um longo decurso de tempo. Portanto,
entende que a consideração da sua existência acabaria atenuada pelos fatores de duração e
contribuição.
A respeito da observação dos critérios assinalados, Carreau e Juillard sinalizam
para a divisão da jurisprudência em duas correntes: uma adotando mais restritivamente os
critérios da decisão Salini, entendendo pela existência de IDE quando os quatro
fundamentos em baila forem observados concomitantemente; do contrário não haveria de
se falar em Investimento Direto Estrangeiro. A outra corrente, por sua vez, prima por uma
jurisprudência matizada, quer seja, pela análise independente da duração, risco,
contribuição e desenvolvimento econômico, aos quais adiciona o elemento “competência”,
a ser aplicado de forma flexível, tomando por norte regras gerais na resolução de litígios no
caso concreto.
26 CARREAU, Dominique; JUILLARD, Patrick. Droit internacional économique. 5. ed. Paris: Dalloz, 2013.
p. 479- 482.
26
Acerca da importância dos IDE no desenvolvimento econômico dos países
receptores de capital, a OCDE27 coloca que tal instituto é responsável pela criação de vagas
de trabalho, desenvolvimento tecnológico, além da geração de novas capacidades
produtivas o que, inclusive, pode contribuir para o acesso ao mercado internacional através
das atividades econômicas em âmbito local. Ademais, assim como discorrem Carreau e
Juillard, a OCDE aponta que seu impacto depende da extensão (amplitude), em escala
diretamente proporcional, à medida que novos vínculos econômicos são alcançados
globalmente, o que é consequência do risco, do aporte e da duração da contribuição.
Em relação às fontes do direito do investimento estrangeiro, prevalece uma clara
dominação dos tratados internacionais, sejam eles de aspecto bilateral ou multilateral.
Apesar disso, o direito consuetudinário exerce importante influência, servindo de base para
a elaboração dos próprios tratados, dos intercâmbios diplomáticos, da formação de
jurisprudência nos tribunais internacionais e para uma série de instrumentos de cariz não-
vinculativo (soft law) adotados sob a égide das Nações Unidas28.
Os acordos de promoção e proteção de investimentos, de conotação bilateral, são
os instrumentos mais importantes do direito dos investimentos, e também aqueles que mais
se realizam em termos quantitativos.
Tradicionalmente os BITs são, em geral, relativamente pouco extensos, com
aproximadamente 12 ou 14 artigos. Tipicamente estão distribuídos sob uma estrutura
tripartite. A primeira parte cuida de estabelecer conceitos aplicáveis àquela relação de
investimento, como os de investimento e investidor. A segunda parte, por sua vez, se
dedica a proteção dos investimentos e investidores. Por fim, a terceira parte se vincula a
solução de litígios, onde comumente se encontram duas provisões diversas: uma delas a
respeito do instituto da arbitragem na resolução de controvérsias entre Estado receptor e o
investidor estrangeiro. O outro modo de solução se liga igualmente a arbitragem, sendo, no
entanto, menos usual. Nesta perspectiva as partes litigantes são o Estado receptor e o
Estado no qual o investimento foi remetido.
Essa estruturação bem delimitada se encontra submetida às noções básicas da
celebração de tratados de promoção e proteção de investimentos, quais sejam,
27 OCDE. Putting foreign direct investment to work for development. In: Development Co-operation
Report 2014: Mobilising Resources for Sustainable Development. OCDE Publishing, 2014. p. 28 SUBEDI, Surya P. International Investment Law. In: EVANS, Malcolm D. International Law. 4. ed.
Oxford: Oxford University Press, 2014. Cap. 24. p. 727-728.
27
reciprocidade e mutualidade29. Assim, clarifica-se a razão de ser dos IDE: a promoção de
benefícios mútuos aos Estados de acolhimento e origem, via complementaridade de
interesses e correspondência de demandas e deveres. Nas palavras de Dolzer e Schreuer
essa motivação se traduz no escopo de “entender os dois interesses como compatíveis”30, a
fim de reforçá-los.
Importante pontuar a atenção dedicada pela doutrina de Dolzer e Schreuer31 à
existência de uma diferença entre o que se propõe um acordo de investimento e um acordo
clássico na seara do Direito Internacional. Para estes autores, o paradigma dos acordos de
investimento não é calcado na troca mútua de privilégio entre as partes, como ocorre nos
acordos clássicos. Ao panorama dos investimentos se remete uma lógica de trocas de
interesses que não necessariamente serão isonômicas, em uma ótica de paridade na
concessão dos benefícios e privilégios, mas sim numa troca daquilo que se faz mais
interessante aos auspícios de cada um dos Estados partes.
Sob a seguinte perspectiva, mister é evidenciar que os acordos de IDE resultam,
em sua maioria, de relações com dois polos: países do Norte versus países do Sul, países
desenvolvidos versus países em desenvolvimento e países exportadores de capital versus
países importadores do mesmo, horizonte que tinha, e ainda encontra espaço, na política de
expropriação e nacionalização ocorrida sob a justificativa da soberania nacional sobre os
recursos naturais e assuntos estratégicos, por exemplo.
Algumas características são atribuídas a cada um destes dois grupos de Estados.
De acordo com Malcolm Evans32 as políticas econômicas nos Estados em desenvolvimento
estão alicerçadas na observância de violações de direitos humanos e degradação do meio
ambiente em razão do desenvolvimento econômico. De outro modo são os países
desenvolvidos, os quais se lançam em políticas econômicas que combatem a fuga do setor
produtivo para países que oferecem melhores condições fiscais e entraves ambientais
menos rígidos, além da mão-de-obra farta e de baixo custo.
29 DOLZER, Rudolf; SCHREUER, Christoph. Principles of International Investiment Law. 2. ed. Oxford:
Oxford University Press, 2012. p. 20. 30 DOLZER, Rudolf; SCHREUER, Christoph. Principles of International Investiment Law. 2. ed. Oxford:
Oxford University Press, 2012. p. 21. 31 DOLZER, Rudolf; SCHREUER, Christoph. Principles of International Investiment Law. 2. ed. Oxford:
Oxford University Press, 2012. p. 20. 32 SUBEDI, Surya P. International Investment Law. In: EVANS, Malcolm D. International Law. 4. ed.
Oxford: Oxford University Press, 2014. Cap. 24. p. 727-751.
28
Estas particularidades, entretanto, não devem ser levadas a cabo de modo
ortodoxo, uma vez que algumas contradições às tais definições vêm se tornando comuns,
como é o caso da exportação de capitais por países em desenvolvimento. Esta nova
realidade foi abordada na publicação Putting foreign direct investment to work for
development33 da OCDE, no ano de 2014. O documento assinala que em 2012 os IDE
foram responsáveis pela maior fonte de fluxos internacionais de capitais para os países em
desenvolvimento e que, apesar de sua notável volatilidade, esta tem sido amortizada pela
atuação da China, a qual suporta 5% destes movimentos – sendo a quinta maior potência
em termos de exportação de capital –, os quais são direcionados enfaticamente no sentido
da cooperação Sul-Sul. Deste modo os países em desenvolvimento aparecem tanto no polo
exportador de investimento, quanto no importador; enquanto os países desenvolvidos
aparecem como responsáveis por 70% do declínio no movimento de capitais, fenômeno
denominado por “des-globalização”.
De acordo com Bernadete de Figueiredo Dias34, a regulamentação, no âmbito do
Direito Internacional dos Investimentos Diretos Estrangeiros, e sua extensa gama de temas,
resulta da necessidade de se enfrentar a instabilidade que a matéria observa nos
ordenamentos jurídicos internos – onde o Estado se mune do poder de alterar unilateral e
discricionariamente matéria de direito e interesse privado.
A normatização no seio internacional enseja o princípio da pacta sunt servanda,
cuja inteligência diz que “todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por
elas de boa fé”, conforme art. 26 da Convenção de Viena de 1969 sobre o Direito dos
Tratados.
A aplicação da pacta sunt servanda35 na conjuntura do direito dos investimentos
sugere não somente a inviolabilidade dos acordos existentes, como também a soberania
dos Estados, sob os aspectos econômicos e de autodeterminação, pois não há de se falar em
soberania quando não há autonomia no campo econômico.
33 OCDE. Putting foreign direct investment to work for development. In: Development Co-operation
Report 2014: Mobilising Resources for Sustainable Development. OCDE Publishing, 2014. p. 2. 34 DIAS, Bernadete de Figueiredo. Investimentos Estrangeiros no Brasil e o Direito Internacional.
Curitiba: Juruá, 2010. p. 199-200. 35 SUBEDI, Surya P. International Investment Law. In: EVANS, Malcolm D. International Law. 4. ed.
Oxford: Oxford University Press, 2014. Cap. 24. p. 733-734.
29
Antes de adentrar a exposição das normativas mais modernas a respeito do Direito
dos Investimentos, é preciso observar importantes paradigmas que assinalam sua tradição
costumeira. Trata-se da Doutrina Calvo, Doutrina Drago e da Hull Rule.
Em poucas palavras Surya P. Subedi36 define o pensamento de Calvo segundo a
lógica de que as disputas, provenientes de interesses de estrangeiro na economia de um
outro país, devem ser submetidas ao tribunal doméstico deste. Conclui, assim, que os
recursos naturais pertencentes a um Estado, de acordo com a doutrina da soberania, não
podem constituir permanentemente em propriedade estrangeira.
O pensamento de Calvo se radica ao contexto histórico da Argentina em 1868,
período anterior ao Tratado de Washington de 1965, quando, nas palavras de Osvaldo J.
Marzorati37, “se inverteram as premissas contidas na doutrina Calvo sobre a ação
diplomática e os tribunais estrangeiros”.
Segundo este autor, as bases do pensamento de Calvo consistiam na
obrigatoriedade do uso da jurisdição do país receptor de investimento na discussão e
decisão de diferendos em razão de investimentos estrangeiros. Defendia, portanto, o
esgotamento dos recursos internos e a aplicação da lei doméstica em detrimento de
qualquer outra possibilidade de solução, a exemplo da proteção diplomática.
O legado deixado por Carlos Calvo se traduz atualmente no princípio do
tratamento nacional38, pelo qual os estrangeiros não deveriam receber um tratamento
menos favorável em relação aos nacionais. Isso porque a Teoria de Calvo deve ser
entendida mediante o propósito de promover, por parte do Estado receptor, o
protecionismo em face da propriedade estrangeira. Há ainda quem assinale um legado
radicado na inconstância da lei doméstica, permitindo tanto fortes garantias, como também
uma completa falta de proteção39.
36 SUBEDI, Surya P. International Investment Law. In: EVANS, Malcolm D. International Law. 4. ed.
Oxford: Oxford University Press, 2014. Cap. 24. p. 730 a 731. 37 MARZORATI, Osvaldo. Aspectos legales de las inversiones extranjeras em América Latina. Argentina, de
la cláusula calvo a las tensiones de ICSID. In: ZÁRATE, José Manuel Álvarez; GRANDO, Michele;
HESTERMEYER, Holger. Estado y Futuro del Derecho Económico Internacional na América Latina. I
Conferência Bianual de la Red Latinoamericana de Derecho Económico Internacional. Universidad
Externado de Colombia. 2013. p. 623. 38 CARREAU, Dominique; JUILLARD, Patrick. Droit internacional économique. 5. ed. Paris: Dalloz, 2013.
p. 511-512. 39 DOLZER, Rudolf; SCHREUER, Christoph. Principles of International Investiment Law. 2. ed. Oxford:
Oxford University Press, 2012. p. 1-2.
30
Interessante evidenciar a importância que esse pensamento recebeu na América
Latina, onde foi recepcionado tanto pelo ordenamento jurídico argentino, bem como pelo
venezuelano e pelo mexicano.
De acordo com Marzorati, a Doutrina Calvo teve seu declínio com o auge das
economias multinacionais e o comércio e investimento oriundos de sua atividade. A
desconfiança dos países investidores em relação aos países receptores de investimentos em
sub-rogarem seus direitos; a necessidade de políticas que promovessem a economia do
custo das indenizações, bem como a discussão de um foro para além da jurisdição de um
país receptor, constituíram nos principais fatores para a criação de um foro neutro. Esta
inovação emergiu como revolucionária, uma vez aliada a ideia de consentimento
antecipado e voluntário do Estado em submeter-se a tribunais estrangeiros, advento que
sinalizou a quebra do paradigma da imunidade de jurisdição dos Estados40.
A Hull Rule41, designada ainda por Hull Formula, teve berço nos Estados Unidos,
logo após a Revolução Comunista Russa de 1917 e a Revolução Agrária no México.
Naquele cenário, Cordell Hull ocupava o cargo de Secretário de Estado dos Estados
Unidos da América, por meio do qual procedeu a diversas mudanças, de caráter
diplomático, com o seu vizinho, o Estado mexicano. Dentre as transformações que operou,
uma delas ficou marcada pela carta escrita ao seu homólogo mexicano, na qual
demonstrava o entendimento de que as leis de direito internacional permitiam a
expropriação da propriedade estrangeira, exigindo, em contrapartida, uma compensação
rápida, adequada e eficaz.
A linha de pensamento de Hull pode ser considerada como precursora do atual
direito de expropriação, pois tratava de anunciar que a apropriação de bens, sem uma
devida compensação, caracterizava-se por confisco, e não expropriação, conforme se
mostrava o pensamento da época.
Entende Bernadete de Figueiredo Dias, que, em sendo instrumentos decorrentes
do consenso entre os Estados, as normativas atinentes aos investimentos estrangeiros,
quando ratificadas, ensejam a responsabilidade do Estado infrator ou omisso, panorama de
40 MARZORATI, Osvaldo. Aspectos legales de las inversiones extranjeras em América Latina. Argentina, de
la cláusula calvo a las tensiones de ICSID. In: ZÁRATE, José Manuel Álvarez; GRANDO, Michele;
HESTERMEYER, Holger. Estado y Futuro del Derecho Económico Internacional na América Latina. I
Conferência Bianual de la Red Latinoamericana de Derecho Económico Internacional. Universidad
Externado de Colombia. 2013. 41SUBEDI, Surya P. International Investment Law. In: EVANS, Malcolm D. International Law. 4. ed.
Oxford: Oxford University Press, 2014. Cap. 24. p. 731.
31
onde se encontra a força coercitiva de tais acordos e, consequentemente, seu teor de
segurança jurídica. Em razão desta sistemática, desde meados da década de 1950, diversos
acordos multilaterais vêm sendo articulados e concluídos.
32
3. COMPETÊNCIA DA UE QUANTO AO INVESTIMENTO DIRETO
ESTRANGEIRO
De acordo com Dominique Carreau e Patrick Juillard, a regionalização dos
investimentos não é recente, decorrente, no mais das vezes, nas esferas econômicas ou
políticas. O fenômeno sinaliza para a convergência dos países pertencentes a uma
organização econômica, em uma política de investimento comum, a qual se manifesta em
acordos multilaterais42.
A respeito da disciplina do Investimento Direto Estrangeiro no ordenamento da
União Europeia, se faz mister estabelecer uma pequena evolução em termos de suas
tratativas que culminaram no Tratado de Lisboa. Inicialmente, há de se mencionar o
Tratado de Roma de 1957 (assinado em 25 de março de 1957, com entrada em vigor em 1º
de janeiro de 1958) que, apesar de instituir a Comunidade Econômica Europeia, na égide
de um aprofundamento da integração econômica, se fez silente na tangente dos
investimentos relativos a terceiros Estados, ao mesmo tempo que estabelecia um “mercado
comum” com liberdade de circulação interna de capitais e liberdade de estabelecimento, ou
seja, liberdade de investimento transfronteiriço dentro das CEE.
Seu texto, contudo, ressalta uma preocupação com o desenvolvimento da Política
Comercial Comum (PCC) que, como visto, é a raiz de uma política comum de
investimentos. Assim, seu preâmbulo traz a vontade dos signatários em promover uma
“supressão progressiva das restrições ao comércio internacional” e redução das barreiras
aduaneiras. Portanto, suas disposições seguem no sentido de adoção de uma pauta
comercial comum, logrando a formação de uma união aduaneira, cuja disciplina está
disposta do art. 110 ao 116.
Em 1986 fora celebrado o Ato Único Europeu (AUE), em inglês designado por
Single European Act (SEA), com assinatura em 17 de fevereiro de 1986 em Luxemburgo e
em 28 de fevereiro de 1986 na cidade de Haia, tendo entrado em vigor na data de 1º de
julho de 1987. Seu objetivo primordial era o de reformar as instituições no intuito de
receber Portugal e Espanha como membros, além de promover uma simplificação dos
processos de tomada de decisão com vistas ao estabelecimento do mercado único europeu.
42 CARREAU, Dominique; JUILLARD, Patrick. Droit internacional économique. 5. ed. Paris: Dalloz,
2013.
33
No tocante à PCC, o AUE foi importante por levar em consideração o Livro
Branco sobre o mercado interno, de 1985. Nele, a Comissão procedeu ao elenco de 279
medidas legislativas fundamentais para a instituição do mercado interno, as quais deveriam
ser postas em prática até a data de 31 de dezembro de 1992. Desta feita, a Comunidade
adquiriu, de uma vez por todas, um mercado sem fronteiras entre seus membros, abolindo
as quotas nacionais porventura ainda existentes, a exemplo das relacionadas a produtos
têxteis, bananas e carros japoneses.
Portanto, o AUE foi o instrumento responsável pela transformação do mercado
comum em mercado único, preparando o organismo para mais um passo ao
aprofundamento da integração, qual seja, a integração política e a união econômica e
monetária. Sublinhe-se que o estabelecimento do mercado único veio a intensificar a
realização de uma série de acordos comerciais no âmbito dos Estados-membros da
organização europeia.
O Tratado de Maastricht de 1992 (com assinatura em 7 de fevereiro de 1992 e
entrada em vigor em 1º de novembro de 1993), por sua vez, alterou os horizontes, trazendo
pela primeira vez uma menção expressa em relação aos investimentos diretos, conforme
leitura do art. 73 C. Como o próprio texto do artigo menciona, a disciplina em tela se insere
no esforço do organismo em implementar a livre circulação de capitais entre Estados-
membros e países terceiros. Neste quesito, vale ressaltar que a deliberação da matéria se
dava por maioria qualificada do Conselho, por proposta da Comissão. No mais, o quórum
passava a ser de unanimidade quando a medida em discussão significava um retrocesso da
legislação comunitária que fosse pertinente a circulação de capitais com terceiros países.
O Tratado de Amsterdã (com assinatura em 2 de outubro de 1997 e entrada em
vigor em 1º de maio de 1999), que alterou o de Maastricht ou Tratado da União Europeia,
não oferece, nenhuma inovação em matéria de investimentos. No entanto, foi incluído o
que se convencionou chamar de clause enabling ao art. 13343 do Tratado da Comunidade
Europeia (TEC).
43 63. O artigo 133º é alterado do seguinte modo:
a) No nº 1, a expressão «eliminação total» é substituída pela palavra «proibição» e a expressão
«progressivamente realizar» é substituída pela palavra «proibir»;
b) No nº 2, a expressão «progressivamente suprimidos» é substituída pela palavra «proibidos » e as remissões
para os artigos 13º, 14º, 15º e 17º são suprimidas, terminando o parágrafo com a expressão «nos termos do
artigo 12º»;
c) No segundo parágrafo do nº 3, a expressão «Estes direitos serão, contudo, progressivamente reduzidos até
ao nível daqueles ...» é substituída por «Estes direitos não podem exceder aqueles ...» e o segundo período
34
O art. 6º do Tratado de Amsterdã insere, em seu § 63, a alteração do art. 133 do
TEC, de modo a permitir que o Conselho, por unanimidade, alargue as competências da
Comunidade em acordos internacionais versando sobre serviços e propriedade intelectual,
sem que isso signifique uma alteração direta no texto da tratativa. Essa possibilidade de
alargamento se alicerçou no intuito de abarcar todas as áreas de negociação da
Organização Mundial do Comércio.44
Em outra perspectiva se encontra o Tratado de Nice (assinado em 26 de fevereiro
de 2001 e em vigência em 1º de fevereiro de 2003), o qual, de acordo com Vital Moreira45,
inseriu a União em um novo patamar, uma vez que conferiu competência de caráter
constitucional à União em matéria de investimentos estrangeiros. Desta forma, a mesma
pode ir além da limitação de liberalização dos investimentos estrangeiros apenas em
acordos de comércio internacional, para também atuar na esfera do comércio de serviços.
Apesar das inovações operadas, seu texto é considerado ilegível e de redação complicada,
o que buscou ser revertido pelo Tratado de Lisboa.
Em termos gerais, aquela tratativa (Nice) teve por objetivo principal preparar a
organização para a entrada de dez novos membros, quais sejam, Chipre, Eslováquia,
Eslovênia, Estônia, Hungria, Letônia, Lituânia, Malta, Polônia e República Tcheca,
passando a abranger um contingente de 25 países, o que ocorreu em 2004.
Após o Tratado de Nice a União alcançou novas mudanças em termos de
investimentos diretos estrangeiros com o paradigmático Tratado de Lisboa de 2007 – cuja
entrada em vigor se deu somente em 2009 –, sendo três as de maior destaque: o
alargamento de competências da União, a PCC, bem como o poder de decisão e co-decisão
do Parlamento Europeu.
3.1 O alargamento de competências da UE e Política Comercial Comum (PCC)
Desde o surgimento do que é, atualmente a União Europeia, no ano de 1957
quando da criação das Comunidades Europeias (CE) pelo Tratado de Roma, a mesma
manifestou sua política econômica externa por meio de sua PCC. Esta observou grandes
que começa por «As percentagens e o calendário» e termina em «no país ou território importador.» é
suprimido;
d) No nº 4, a expressão «à data da entrada em vigor do presente Tratado» é suprimida. 44 GSTÖHL, Sieglinde. The European Union’s Trade Policy. Disponível em: <
http://www.ritsumei.ac.jp/acd/re/k-rsc/ras/04_publications/ria_en/11_01.pdf>. Acesso em 19 maio 2016 45 MOREIRA, Vital.
35
alterações desde então, em decorrência da jurisprudência oriunda do Tribunal de Justiça
Europeu (TJE) atualmente, Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), no sentido de
perseguir o desenvolvimento do comércio internacional e das relações econômicas.
A última grande mudança operada foi por ordem do Tratado de Lisboa, assinado
em 2007 e cuja entrada em vigor se deu em 1º de dezembro de 2009, levando em
consideração grandes iniciativas decorrentes da negociação do Tratado Constitucional de
2004, o qual não chegou a ter sucesso. Sob esta tratativa a PCC recebeu um importante
marco institucional, beneficiando de um alargamento de competências para abranger o
Investimento Direto Estrangeiro, serviços e aspectos comerciais do Direito à Propriedade
Intelectual – dos quais este trabalho se restringe a uma abordagem focada naquele
primeiro.
As alterações introduzidas na PCC se remetem aos seus princípios e objetivos; à
competência externa, sobre a qual se discutem sua natureza, seu âmbito de atuação e sua
limitação. Além das novas atuações do Parlamento Europeu e, consequentemente, nas
necessárias adequações no âmbito do Conselho e da Comissão.
Antes de adentrar às tais questões, cumpre observar a marca evolutiva da
jurisprudência com efeito na PCC. São, portanto, balizamentos em forma de pareceres do
Tribunal de Justiça, os quais buscaram esclarecer as atuações do organismo europeu no
tocante à sua política externa.
O primeiro parecer, 1/75, decorrente da provocação da Comissão, foi responsável
pelo reconhecimento da competência quanto a PCC, a qual migrou da política comercial
dos Estados-Membros para a seara das Comunidades Europeias, em caráter exclusivo.
O segundo parecer, 1/76, consagra o princípio do paralelismo na determinação das
competências internas e externas das Comunidades. Decidiu ainda quanto aos acordos
mistos, nos quais impera a competência partilhada entre a Comunidade e os Estados-
Membros, decidindo que o compartilhamento deve ser consequente de uma justificação
legal, em detrimento de uma mera opção.
Quanto à importância desses acordos mistos, é primordial ter em conta seu
significado para a política dos Estados-membros, uma vez que tais acordos os tornam mais
visíveis no cenário internacional. Há de se ressaltar seu propósito de tentar promover a
coesão inter-institucional, promovida pela Comissão, bem como de delimitar as
competências no caso em concreto. Todavia, também são observados aspectos negativos,
36
uma vez que os acordos se tornam mais complexos ante a competência partilhada, além de
persuadir os Estados-membros a não entrar em acordos comerciais e de investimento.
Em 1978, parecer 1, o Tribunal se posicionou mais favorável em relação aos
acordos mistos, ressaltando o dever que emana do princípio da cooperação, o qual pode ser
entendido pelo imperativo de afastamento dos Estados àquelas tratativas que possam vir a
macular os objetivos de suas normativas estruturantes, a exemplo do atual Tratado de
Funcionamento da União Europeia (TFUE).
O parecer 2 de 1991, por sua vez, clarificou a denominada doutrina dos poderes
implícitos, enunciando que a competência exclusiva das Comunidades pode decorrer de
qualquer disposição de Tratado que conferir a mesma competência externa, tomando por
exemplo, para tanto, o artigo 113 das Comunidades Europeias, atual artigo 207 do TFUE.
Ademais, observou que a competência em comento pode ser adquirida por ocasião do
princípio da preferência (princípio AETR), bem como pelo da preempção.
O parecer 2/92 versa a respeito da Decisão da OCDE sobre o tratamento nacional
das empresas estrangeiras, decidindo pela competência compartilhada para discutir e
concluir em relação ao estabelecimento de investidores estrangeiros.
Ainda na década de 1990 teve origem o parecer 1/94, no qual o Tribunal decidiu
que os acordos tomados na órbita da OMC pertenciam a esfera de competência da PCC.
Além do mais, reconheceu a mesma competência de atuação quanto à propriedade
intelectual e aos serviços, neste último, tocando especialmente os acordos tomados em sede
do Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (GATS). No que tangencia a propriedade
intelectual, a jurisprudência se posicionou bastante restrita, entendendo que apenas se
vinculava à PCC a livre circulação de mercadorias falsificadas, agindo em detrimento do
restante das disposições do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual
Relacionados ao Comércio (TRIPS). Então, ficou registrada a competência compartilhada
para concluir a respeito do GATS e da TRIPS.
Por fim, o parecer 1/03 de 2006 discutiu as competências implícitas no contexto
da Convenção de Lugano Relativa à Competência Judiciária, ao reconhecimento e à
execução de decisões em matéria civil e comercial, para decidir pela competência
exclusiva das Comunidades ou a competência partilhada entre os Estados-membros e as
Comunidades. Nesse sentido foi colocado pelo Tribunal o princípio AETR, o qual serviu
para ressaltar a necessidade de uniformidade e coerência na aplicação das normas
37
comunitárias, concluindo pela competência exclusiva das Comunidades para a Convenção
de Lugano.
3.2 Os princípios relativos à competência da UE
Antes de prosseguir, faz-se mister, abordar algumas questões introduzidas por
ocasião dos pareceres jurisprudenciais. Menciona-se, portanto, a doutrina dos poderes
implícitos, o princípio AETR e o princípio do paralelismo.
O princípio dos poderes implícitos se alicerça sobre a premissa segundo a qual a
União não possui unicamente competências externas, mas também internas, as quais
devem decorrer da leitura implícita dos tratados, bem como de medidas para sua
implementação e de entendimentos adotados pelo Tribunal de Justiça.
A doutrina dos poderes implícitos teve origem no caso AETR o qual, discutindo a
competência para negociar e celebrar o Acordo Europeu relativo ao Trabalho das
Tripulações dos Veículos que efetuam Transportes Rodoviários Internacionais (AETR) –
do inglês, European Road Transport Agreement (ERTA) –, chegou à conclusão de que a
competência da União para celebrar acordos advém não só de uma expressa atribuição de
competência, como também das medidas adotadas pelas instituições comunitárias. Assim,
o princípio em tela, se remete ao princípio de preferência em relação às ações externas. É
de se salientar que este deve sofrer aplicação mesmo quando não se vislumbre qualquer
conflito entre o âmbito dos Estados-membros e da União, ou seja, quando não subsistir
discordância da competência disposta no referido acordo internacional. Como
consequência, a Comunidade passou a exercer competência sobre o transporte externo.
Quanto ao princípio do paralelismo, tem como pedra angular o estabelecimento do
paralelismo entre as ações internas e as externas da União. Inclui igualmente que a
negociação e a conclusão dos acordos internacionais devem ter por base as mesmas regras
de maioria em relação a legislação interna que verse sobre mesmo conteúdo.
Aplicando na PCC, o princípio do paralelismo apresenta-se sob lógica mais
estreita no contexto implementado pelo Tratado de Lisboa e o art. 207 do Tratado de
Funcionamento da União Europeia, em conformidade com o entendimento de Angelos
Dimopoulos46.
46DIMOPOULOS, Angelos. The Common Commercial Policy after Lisbon: Establishing Parallelism
between Internal and External Economic Relations?. Croatian Yearbook Of European Law And
38
Primeiramente o autor alerta para o § 6º do art. 207, o qual atua limitando a PCC
no contexto do princípio do paralelismo. Diz ele: “O exercício das competências atribuídas
pelo presente artigo no domínio da política comercial comum não afeta a delimitação de
competências entre a União e os Estados-Membros”, concluindo então pela limitação
explícita, segundo a qual não se “conduz à harmonização das disposições legislativas ou
regulamentos dos Estados-Membros, na medida em que os tratados excluam essa
harmonização”. Então, fica clara a negação à possibilidade dos acordos decorrentes da
PCC promoverem à harmonização das normas da União, o que é o mesmo que dizer que à
União não compete atuar segundo outras disposições do tratado, as quais seguem no
sentido de impor, justamente, a não interferência por parte desta.47
Ademais, o art. 207, § 6º, em seu início, anuncia sobre o princípio do paralelismo
explícito entre as competências internas e as externas da União, determinando que os
poderes externos desta não podem servir em substituição aos limites de sua competência
interna em relação a mesma temática.
Outro ponto a merecer destaque é o § 4º do art. 207, também do TFUE, o qual
atua determinando a unanimidade para negociar e concluir acordos nos ramos do comércio
de serviços, aspectos comerciais da propriedade intelectual e dos investimentos
estrangeiros, além de estabelecer o mesmo quórum para o comércio de serviços culturais e
audiovisuais, e para o comércio de serviços sociais, educativos e de saúde. Estes dois
ramos do comércio de serviços se dedicam respectivamente a proteção da diversidade
cultural e linguística da União, bem como a efetivação da responsabilidade dos Estados-
membros na prestação de tais.
É notório que a regra de quórum para a celebração e discussão de acordos
internacionais, em conformidade com o art. 207 é mesmo o da maioria qualificada,
designado do inglês pela expressão QMV rule, ou seja, qualified majority voting, do
português, maioria qualificada.
Policy. Zagreb, p. 101-129. 2008. Disponível em: <http://www.cyelp.com/index.php/cyelp/issue/view/4>.
Acesso em: 28 maio 2017. Acesso em 6 maio 2016. 47 DIMOPOULOS, Angelos. The Common Commercial Policy after Lisbon: Establishing Parallelism
between Internal and External Economic Relations?. Croatian Yearbook Of European Law And
Policy. Zagreb, p. 101-129. 2008. Disponível em: <http://www.cyelp.com/index.php/cyelp/issue/view/4>.
Acesso em: 28 maio 2017. Acesso em 6 maio 2016.
39
No entender de Angelos Dimopoulos48, a regra da unanimidade não foi
incorporada pelo art. 207, § 4º, do qual decorre a falta de regras internas em paralelo,
provocando o impedimento da adoção da ação externa. O autor fala ainda que desta
questão resulta a possibilidade de a União atuar na PCC, uma vez sua competência ampla
para o setor, a qual é advinda de sua competência interna para legislar no mercado interno,
mesmo que não o tenha feito até o presente momento, a exemplo de sua ausência no
tocante a expropriação da propriedade.
Ainda sobre o paralelismo, Dimopoulos49 disserta que o Tratado de Lisboa parece
ter dado um passo atrás, no sentido de rompimento do paralelismo entre as competências
internas e externas, onde se encontra uma falta de equilíbrio. Isso se justifica pela aplicação
do princípio da preempção, segundo o qual a exclusividade nas competências da União só
passa a existir com o seu exercício, o que é fundamentado pelos princípios da
subsidiariedade e da preferência.
O “passo atrás” surge mesmo do compartilhamento de competência entre a União
e os Estados em matéria de comércio de serviços e aspectos comerciais da propriedade
intelectual, servindo de referência nestas áreas no contexto do mercado interno.
O autor alerta para questão de a competência exclusiva da União, para assuntos
cobertos pela PCC, não deve ser interpretada de modo tão amplo a fim de tocar as
competências concorrentes, em âmbito interno, dos Estados. Ademais, alerta que mesmo
que a PCC possa levar, em potencial, a uma harmonização interna, isso não deve
determinar o cunho exclusivo de sua competência.
O paralelismo também decorre, explicitamente, nos processos de tomada de
decisão. Como já dito, para negociar e concluir acordos, o art. 207 determina o quórum da
discussão, devendo ser, em regra, maioria qualificada e, para algumas excepcionalidades, a
unanimidade, conforme versa a matéria. O paralelismo é então reforçado pela exigência de
tais quóruns tanto para assuntos externos, quanto para os internos, inclusive na tangente
processual.
48 DIMOPOULOS, Angelos. The Common Commercial Policy after Lisbon: Establishing Parallelism
between Internal and External Economic Relations?. Croatian Yearbook Of European Law And
Policy. Zagreb, p. 101-129. 2008. Disponível em: <http://www.cyelp.com/index.php/cyelp/issue/view/4>.
Acesso em: 28 maio 2017. Acesso em 6 maio 2016. 49 DIMOPOULOS, Angelos. The Common Commercial Policy after Lisbon: Establishing Parallelism
between Internal and External Economic Relations?. Croatian Yearbook Of European Law And
Policy. Zagreb, p. 101-129. 2008. Disponível em: <http://www.cyelp.com/index.php/cyelp/issue/view/4>.
Acesso em: 28 maio 2017. Acesso em 6 maio 2016.
40
Por fim, o referido recebeu enfoque pelo Tratado de Lisboa, o qual pôs fim a
unanimidade como regra para a negociação e conclusão de acordos internacionais, cujas
matérias não tenham sido exercidas no contexto das competências internas. Acredita-se,
todavia, que esta inovação venha a ferir o princípio do paralelismo, ao possibilitar que os
Estados atuem bloqueando acordos internacionais cuja matéria não tenha sido alvo do
exercício da competência interna. Apesar disso, Lisboa deixa importante legado ao instituir
o quórum da maioria qualificada, estabelecendo um paralelismo total entre as
competências e afastando possíveis ambiguidades na interpretação das disposições,
nomeadamente a respeito de sua extensão e da aplicação do devido processo legal.
Outro princípio que merece destaque neste momento é o da atribuição das
competências. Sua inteligência vai no sentido de enunciar que as competências reunidas
pela União somente têm razão de existir se conferidas pelos Estados-membros. Esta
conceituação em muito se aproxima do ideal federalista perseguido, contexto em que os
poderes externos da União são conferidos por seus membros e exercidos de modo
exclusivo em âmbito federal.
Merece ainda apreciação o princípio da preempção. Deste decorre a justificação
da competência dos poderes dos Estados-membros em atuar no mercado interno,
propugnando pela uniformidade das regras no sentido da preservação da unidade da
posição da União Europeia em relação a terceiros países na defesa de seus interesses
comuns.
No que tangencia os princípios e objetivos da União no contexto da PCC, cumpre
colocar a persecução do incentivo a integração mundial da economia, ou seja, liberalização
e abertura dos mercados, bem como a eliminação progressiva das restrições ao comércio
mundial e aos IDE, além da redução das barreiras alfandegarias dentre outras, conforme
inteligência do art. 206 do TFUE. Há quem fale, a exemplo de Markus Krajewski50, em
objetivos distribuídos em camadas, interna e externa, das quais a camada interna se remete
aos objetivos específicos da política econômica, ao passo que a camada externa se dedica
aos princípios e objetivos da Política Comercial Comum. É de se frisar que não reside,
50 Krajewski, Markus, The Reform of the Common Commercial Policy (December 30, 2010).
EUROPEAN UNION LAW AFTER THE TREATY OF LISBON, A. Biondi & P. Eeckhout, eds.,
Forthcoming. p. 2-8. Disponível em <file:///C:/Users/marin/Downloads/SSRN-id1732616.pdf>. Acesso 28
maio 2017. p. 4.
41
entre ambas as camadas, qualquer hierarquia, de modo que todos os princípios e objetivos
devem ser perseguidos de igual maneira, sob o manto da mesma importância.
A PCC, entretanto, não é somente estruturada em objetivos econômicos; há
também aqueles de cunho político, o que ficou evidenciado por ordem do Tratado de
Lisboa.
Os princípios e objetivos políticos se encontram dispostos no art. 21 do TUE,
quais sejam, a democracia, o Estado de Direito, a universalidade e indivisibilidade dos
direitos humanos e das liberdades fundamentais, além da dignidade humana e da igualdade
e solidariedade evidenciadas pela Carta das Nações Unidas e pelo Direito Internacional.51
Muitas críticas foram feitas no que se acredita ser uma politização da economia,
entendimento que é desmistificado por Markus Krajewski52 na defesa de que “a
liberalização do comércio nunca foi um fim por si só”. Não há, apesar disso, como negar
que as condições políticas, estudadas no caso concreto, podem conflitar com os objetivos
de fins econômicos, a exemplo da liberalização dos mercados. Nesta perspectiva é bastante
interessante expor três casos trazidos à baila pelo estudo de Frank Hoffmeister53. São
respectivamente o caso do Paquistão, de Moldávia e da Colômbia.
Quanto ao primeiro, se trata da renúncia de linhas tarifárias pelo período de três
anos, o que significa uma perda de receita na ordem de 900 milhões de euros anuais para a
União Europeia. Na esfera da OMC a renúncia refletiu como uma inobservância do
princípio da nação mais favorecida, além de que a União não comunicou previamente sua
ação àquele organismo internacional. A crítica contumaz, no entanto, surgiu no seio dos
direitos humanos, tendo em vista este consistir um objetivo político da PCC que não é
posto em prática no Paquistão, o qual vive uma crise humanitária que se alastra por anos à
fio. A referida recebeu grande atenção da comunidade internacional pelo livro biográfico
51 Krajewski, Markus, The Reform of the Common Commercial Policy (December 30, 2010).
EUROPEAN UNION LAW AFTER THE TREATY OF LISBON, A. Biondi & P. Eeckhout, eds.,
Forthcoming. p. 2-8. Disponível em <file:///C:/Users/marin/Downloads/SSRN-id1732616.pdf>. Acesso 28
maio 2017. p. 7. 52 Krajewski, Markus, The Reform of the Common Commercial Policy (December 30, 2010).
EUROPEAN UNION LAW AFTER THE TREATY OF LISBON, A. Biondi & P. Eeckhout, eds.,
Forthcoming. p. 2-8. Disponível em <file:///C:/Users/marin/Downloads/SSRN-id1732616.pdf>. Acesso 28
maio 2017. p. 9. 53 HOFFMEISTER, Frank. The European Union's Common Commercial Policy a year after Lisbon: SEA
change or business as usual?. In: KOUTRAKOS, Panos (Ed.). The European Union’s external relations a
year after Lisbon. The Hague: Cleer, 2011. p. 83-95. (CLEER WORKING PAPERS 2011/3). p. 88-90.
42
de Malala Yousafzai, “Eu sou Malala: a história da garota que defendeu o direito à
educação e foi baleada pelo Talebã”, com autoria de Christina Lamb.
O segundo caso se dedica às concessões de vinho da União Europeia à Moldávia.
No contexto do verão de 2010, quando o país teve suas exportações de vinhos negadas pela
Rússia, esta pequena nação se viu em intensas dificuldades econômicas e administrativas.
Foi então que a União Europeia encontrou ali uma oportunidade para promover reformas
democráticas e liberais, posto que o país estava na iminência de eleições parlamentares, as
quais aconteceriam em novembro do ano de 2010.
O último caso a ser relatado leva à Colômbia, país que vivencia grandes
dificuldades a exemplo da exportação ilegal de drogas por narcotraficantes e a pobreza. A
União Europeia é, então, anunciante de um acordo de livre comércio, o qual não viria a ser
desvinculado de um capítulo de direitos humanos e outro a respeito do desenvolvimento
sustentável.
Quanto às competências externas, muito já foi abordado quando dos pareceres
jurisprudenciais, a exemplo da doutrina dos poderes implícitos, do princípio do AETR e do
princípio do paralelismo. O tema, entretanto, não foi esgotado. Cumpre ainda abordar
sobre sua natureza, âmbito de atuação e limitação.
No que tangencia a natureza da competência da União para a PCC, se destaca a
indagação se aquela é exclusiva ou compartilhada com seus Estados-membros, conforme
muito já se esclareceu nas páginas anteriores. Ou seja, sua natureza se traduziria atuação
exclusiva, quadro em que figura como único ator normativo em um campo específico, ou
se dependeria também dos Estados que a compõe.
No contexto trazido pelo Tratado de Lisboa, verifica-se a solidificação da
competência exclusiva na PCC. É importante reforçar que esta não é advinda de nenhuma
disposição, em concreto, do Tratado das Comunidades Europeias ou qualquer outro
seguinte. É resultado de reconhecimento jurisprudencial, relacionando-se a doutrina dos
poderes implícitos, uma vez versar sobre o comércio de bens com base no mercado interno
junto às lógicas de representação externa.
Na sequência tem-se a abordagem do âmbito de atuação da PCC, o qual
providencia um equilíbrio entre as competências internas e externas por meio de uma única
base jurídica, qual seja, o artigo 133 do Tratado das Comunidades, atual art. 207 do TFUE,
conforme já explorado anteriormente. São, portanto, áreas de atuação da PCC aquelas
43
enunciadas pelo art. 207, § 1º, quais sejam, o comércio de mercadorias, a uniformização
das medidas de liberação, a política de exportação, além de medidas de defesa comercial, a
exemplo do dumping e do subsídio. Em caráter inovador, o Tratado de Lisboa juntou às
tais áreas o comércio de serviços, os aspectos comerciais da propriedade intelectual e o
investimento direto estrangeiro.
Na questão das limitações, muito já foi observado por ocasião da discussão do
princípio do paralelismo, as imposições dos dois diferentes quóruns (maioria qualificada e
unanimidade), do princípio da atribuição das competências e a regra da proibição da
harmonização para acordos em áreas em que a União não tem competência para
harmonizar.
Há, no entanto, quem se pronuncie pela existência de uma incongruência entre as
competências internas e as externas. Isso porque apesar de a União ter competência externa
para negociar e concluir acordos sobre saúde e educação, por exemplo, ela não possui
competência interna para harmonizar nestas mesmas matérias. Markus Krajewski54,
todavia, coloca que esta incongruência não decorre do princípio AETR, até porque o
mesmo só observa competências paralelas, ou seja, na condição de existência de uma
competência interna.
Por fim, menciona-se o princípio da cooperação leal entre a União e os Estados, o
qual segue na perspectiva de limitação do exercício da competência ao designar que um
acordo não deve ser concluído pela União sem antes haver a consulta sobre o mesmo entre
os Estados, haja vista existir a implementação do referido acordo por estes.
Expressamente disposto no art. 4, § 3º, do TUE, o princípio em tela pode ser
vislumbrado como um aspecto de condução da União a um processo de federalização em
suas relações externas. É baseado em uma política de coordenação e cooperação nos dois
níveis de governo, sendo o governo central, ou seja, a União, responsável pela
representação na política externa e os Estados, destinados ao âmbito interno, a exemplo do
exercício legislativo no sentido da implementação dos acordos internacionais.
Feita esta introdução geral a respeito das competências da União, incumbe
abordar uma em concreto, a relativa aos investimentos diretos estrangeiros.
54 Krajewski, Markus, The Reform of the Common Commercial Policy (December 30, 2010).
EUROPEAN UNION LAW AFTER THE TREATY OF LISBON, A. Biondi & P. Eeckhout, eds.,
Forthcoming. p. 2-8. Disponível em <file:///C:/Users/marin/Downloads/SSRN-id1732616.pdf>. Acesso 28
maio 2017.
44
3.3 A competência da União para investimento direto estrangeiro
Inicialmente sublinha-se que o termo não passou em vão, ele foi discutido no
objetivo de se saber se essa designação, encontrada no art. 207 do TFUE, cuidou apenas de
abarcar investimentos produtivos, ou se também acolhe aquela outra classe de
investimento, denominada por portfólio ou de carteira. Este trabalho adota a tese pela qual
o termo utilizado por ocasião do tratado se destina a abarcar somente investimentos com
fulcro produtivo, apesar de reconhecer a existência de um caráter quase imiscível entre os
dois institutos no tocante à negociação de tratativas.
Markus Krajewski, a este respeito, acrescenta que não há razão para se falar da
existência de uma competência externa implícita da União para com os investimentos de
portfólio, pois crer que seria o mesmo que ignorar a intensão expressa daquilo celebrado
no Tratado de Lisboa. Para ele, os investimentos de portfólio se encontram adstritos à zona
de competência dos Estados-membros, a quem cumpre negociar e celebrar acordos em tal
matéria. Assim sendo, aqueles acordos que abordam tanto os diretos, quanto os de
portfólio, devem ser celebrados em caráter misto, dando atenção a ambas as competências.
O autor coloca ainda que, se a intenção do legislador fosse abranger as duas
classes de investimento, não haveria necessidade alguma de especificar-se na utilização do
termo “investimento direto estrangeiro”, uma vez que a simples menção à livre circulação
de capitais já cobriria seu intento. Ademais, o termo é bastante específico para dar margem
algum outro tipo de investimento. Se o objetivo do legislador fosse englobar ambos, o teria
feito pelo uso de termo mais abrangente, o que decididamente não o fez.
É de se concluir que o alargamento de competência promovido pelo Tratado de
Lisboa serviu à União Europeia, conforme se depreende do artigo 3º, § 1º, alínea e), a
competência exclusiva em matéria de PCC, pasta na qual passou a se inserir o IDE, que
antes de Lisboa se colocava sob o domínio de competência compartilhada.
A alteração referente a PCC entre os países da União face o comércio
internacional, conforme se depreende da leitura dos artigos 206 e 207 do TFUE, conduziu
a uma nova competência da União, qual seja, promover a redução “progressiva das
restrições às trocas internacionais e dos investimentos diretos”. Em outras palavras, tem
por objetivo fundamental promover a liberalização das trocas internacionais, bem como do
investimento estrangeiro. Neste viés, consiste em um meio estratégico de afirmação e
45
consolidação da liderança europeia no intento de liberalizar e regular o comércio
internacional.
Ademais, a doutrina aponta para um objetivo complementar, que seria o apoio ao
desenvolvimento por meio das trocas comerciais. Neste caso, observa-se a preocupação da
União Europeia em conceder, de modo assimétrico, facilidades aos países pouco
desenvolvidos ou em desenvolvimento.
A mencionada política europeia é ainda peculiar ao promover uma abordagem da
liberalização comercial conjuntamente a preocupação de observar os princípios e valores
primados pela instituição e seus membros, aspecto em que se referencia às cláusulas de
direitos humanos e direitos laboral e a ambiental. Estas consistem em condições e
parâmetros para o desenvolvimento de relações comerciais da União junto a países
terceiros.
Por fim, pontua-se a nova interface dada a Política Comercial Comum em
decorrência do auspício europeu de “exportação do modelo regulatório da União Europeia
para países terceiros55”.
No tangente a relação direta estabelecida entre o PCC e o IDE, consoante é o texto
dos artigos 206 e 207 do TFUE, apesar de parecer imiscível a relação entre comércio e
investimento, o Tratado de Lisboa criou uma atmosfera jurídico-institucional no sentido de
permitir, a realização dos objetivos de liberalização dos IDE e a proteção de seus
respectivos investidores. Neste sentido é que atualmente tem-se em fase de ratificação e
negociação os primeiros acordos integrados de comércio e investimento, respectivamente
com o Canadá e com os Estados Unidos da América, por exemplo.
3.4 A delimitação da competência da União no Parecer C-2/15 do TJUE sobre o
acordo de IDE entre a UE e Singapura
Ao que tudo indica, todas as dificuldades e dúvidas doutrinárias sobre a
delimitação da competência da União em matéria de IDE foram resolvidas pelo Parecer do
Tribunal de Justiça da União Europeia, emitido recentemente, em 16 de maio de 2017,
versando acerca do acordo de comércio e investimento com Singapuara.
55 MOREIRA, Vital. O acordo de comércio e investimento entre a UE e os EUA (TTIP): Ponto de vista
europeu. (FDUC / CEDIPRE). Disponível em: <http://forumcompetitividade.org/wp-
content/uploads/2015/05/TTIP_Apresenta%C3%A7%C3%A3o-Vital-Moreira.pdf>. Acesso em 23 maio
2015. p. 8.
46
O documento em análise tem sua origem no pedido de parecer apresentado pela
Comissão Europeia nos termos do art. 218, nº 11, do TFUE. Assim, a instituição procede à
pergunta-chave que é saber se a União possui competência para assinar e celebrar, sem a
concomitância dos Estados-Membros, o Acordo de Livre Comércio com Singapura. Para
um melhor detalhamento da questão, a indagação sugere outros três quesitos necessários ao
esclarecimento da celeuma.
A primeira pergunta se concentra em saber se quais seriam as disposições do
acordo com Singapura que seriam de contemplados pela competência exclusiva da União
e, em seguida, quais aqueles que disfrutariam de uma competência partilhada desta com os
Estados-Membros. Por fim, inquire se há alguma disposição no acordo que seja de
competência exclusiva para estes.
Como é de se constatar, a tratativa com Singapura se debruça sobre as mais
variadas temáticas de interesse das instituições envolvidas, nomeadamente União, seus
Estados-Membros e o Estado de Singapura. Desta feita, é preciso tornar claro que o
Parecer lançou seu entendimento em direção a quatro searas, propondo-se a esclarecer a
matéria de livre prestação de serviços no domínio de transporte, os investimentos
estrangeiros, os compromissos relacionados à proteção da propriedade intelectual, bem
como no tocante a matéria concorrencial.
Conforme já evidenciado pelas exposições anteriores, o foco desta pesquisa se
remete aos investimentos estrangeiros, motivo pela qual a análise da competência da União
será limitada apenas a esta questão.
O Parecer conclui que, em regra, o acordo com Singapura deve ser trabalhado
consoante a competência exclusiva da União, tornando o compartilhamento uma exceção.
Desta feita, seu texto é claro em delimitar que os investimentos estrangeiros diretos ficarão
aos auspícios da União, enquanto que qualquer outro investimento que não se encaixe
nessa categoria, ficará ao encargo do exercício compartilhado de competência entre a
União e os Estados-Membros, assim, denomina-os por “investimentos estrangeiros
diferentes de investimentos diretos”.
A acepção parece querer denotar que o Tribunal se adiantou a questões que
eventualmente venham a necessitar seu entendimento, proferindo um posicionamento que
não se limitasse apenas aos investimentos de carteira, mas também a qualquer outro que
47
destoe do condão de produtividade e influência sobre as empresas alvo do investidor
estrangeiro.
Na mesma órbita de exceção se encontram as disposições relativas a resolução de
litígios entre investidores e Estado, matéria que igualmente ficará sob o crivo dos Estados-
Membros e da União, de modo a permitir um ambiente de discussão mais equilibrado no
que propõe a criação de um tribunal permanente para conflitos de investimentos, matéria
que será melhor tratada ao final deste trabalho.
48
4. OS ACORDOS DE INVESTIMENTO ANTERIORES AO TRATADO DE
LISBOA
4.1 Competência dos Estados-membros
Frente a nova perspectiva de acordos com terceiros países, implementada por
ocasião do Tratado de Lisboa, se faz bastante válido estabelecer um paralelo de como
acordos de investimento eram firmados anteriormente, a exemplo da sistemática de
negociação e das normas de proteção.
A referência a um modelo regulatório europeu, por sua vez, presta-se ao standard
adotado pelos países da União Europeia em momento anterior ao Tratado de Lisboa, o
qual, ante seu caráter constitucional, ampliou a competência da União quanto à matéria de
investimentos, o que, consequentemente, restringiu a atuação por parte dos Estados-
membros.
Em crítica ao modelo prévio, Vital Moreira56 disserta:
A verdade é que a política de investimento estrangeiro europeia padecia de uma
notória ‘esquizofrenia’, com a União limitada à liberalização do acesso (direito
de estabelecimento), enquanto os Estados-membros se ocupavam da proteção
dos investimentos (fase pós-estabelecimento). Além disso, havia uma notória
assimetria quanto à eficiência dessas duas vias: enquanto se contam pelos dedos
das mãos os acordos comerciais internacionais da EU com uma significativa
abertura do investimento estrangeiro, o número de BITs dos Estados-membros à
data do Tratado de Lisboa ultrapassava os 1200!. [grifos nossos]
O Tratado de Lisboa operou uma divisão de poderes entre a União e os Estados-
membros, a partir da qual aquela passou a assumir também a competência quanto ao
estabelecimento dos investimentos estrangeiros. Nesse sentido, Vital Moreira57 diagnostica
que, embora antes houvesse uma política própria de capitais, o mesmo não se dava quanto
aos investimentos, pois cada país desenvolvia a sua de forma autônoma (“assimetria de
proteção”), daí porque falar em uma formação desunida em termos de investimentos. A
União Europeia contava com uma economia integrada internamente, já havia consolidado
o seu mercado interno de investimentos, embora o mesmo não ocorresse no plano externo.
Em outras palavras, não havia uma política de investimentos quanto ao plano
exterior. O que ocorria era uma diferença regulatória (ou de proteção) entre os Estados-
56 MOREIRA, Vital. Respublica Europeia: Estudos de Direito Constitucional da União Europeia. Coimbra:
Coimbra, 2014. p. 352. 57 MOREIRA, Vital. Respublica Europeia: Estudos de Direito Constitucional da União Europeia. Coimbra:
Coimbra, 2014. p. 352-355.
49
membros. O fato é que antes de Lisboa a União Europeia ainda não possuía competência
exclusiva sobre a PCC – e consequentemente sobre o investimento direto estrangeiro –,
desta forma o regime de acesso e o regime de estabelecimento competiam a pessoas
jurídicas diversas. Antes, a competência regulatória da União estava circunscrita a entrada
(acesso) do investimento estrangeiro no mercado europeu.
A referida competência referente à fase pré estabelecimento se relaciona aos
artigos 52 e 64 do TFUE, os quais versam, respectivamente, a respeito da liberdade de
estabelecimento para estrangeiro e da “circulação de capitais provenientes ou com destino
a países terceiros que envolva investimento direto”.
Conclui-se que o horizonte das tratativas anteriores era fértil em fomentar
problemas de competição entre os Estados-membros – indo de encontro à lógica da
integração regional –, a exemplo do forum shopping, da distorção da concorrência no
mercado interno, além dos fenômenos do dumping laboral e fiscal.
O legado fundamental de Lisboa quanto a disciplina do IDE foi alcançar a
competência exclusiva da União nas duas dimensões em que o investimento sofre
regulamentação do Estado receptor, quais sejam: a admissão e o estabelecimento, além das
fases pré e pós-estabelecimento.
Nos dizeres de Ludmila Sterbová, as medidas relacionadas ao investimento se
traduzem em sua liberalização através do acesso ao mercado; enquanto a proteção, por sua
vez, restringe o acesso ao mercado – as duas abordagens se encontram dispostas no art.
207 do TFUE. Assim, os Estados perderam sua competência para negociar e concluir
acordos de proteção de investimento, pois anteriormente a União detinha competência
apenas quanto ao seu estabelecimento no mercado europeu.
Convém observar que ainda existem vários tratados negociados e concluídos
conforme os parâmetros de proteção estabelecidos, individualmente, por cada Estado. Com
a entrada em vigor de Lisboa, estes tratados não perderam sua força jurídica – apesar de
apresentarem grande tendência em conflitar com as normas, de mesmo caráter,
estabelecidas pela competência da União Europeia –, mas agora são alvos de um processo
de negociação que caminha para sua extinção, a qual é instado pela União Europeia e deve
ser levada a cabo pelos Estados-membros que ainda subsistem com tais acordos em
paralelo. O veredicto é que os Estados perderam a competência quanto ao alcance, ao
conteúdo e aos parceiros de seus acordos de investimento, emanando daí o conflito em
50
saber se as normas de proteção devem ou não pertencer ao seio de atuação da UE. Como já
dito, a PCC ganhou mais essa competência, passando a operar igualmente em questões
pós-importação de investimentos, ou seja, pós-estabelecimento, no sentido de saber se há
competência da União quanto a aplicação dos padrões de tratamento pós-investimento, e,
em assim sendo, quais padrões essa competência abarca.
Em resposta, o Tribunal de Justiça se articulou, sob leitura do art. 345 do TFUE,
para defender a aplicação dos standards de proteção na esfera da União, observando de
modo restritivo à competência estadual sobre a matéria58. Restará aos Estados-Membros
apenas a competência para decidir a respeito da existência da expropriação e o momento de
sua ocorrência, mas não para decidir em quais condições esta deve ocorrer.59
Em relação aos padrões de proteção, há quem defenda uma competência restrita
da União no que diz respeito aos padrões de desempenho, de não-discriminação,
tratamento justo e equitativo, além da plena proteção e segurança dos investimentos. Este
entendimento se baseia no princípio da neutralidade em face dos regimes de propriedade
dos Estados-membros, os quais não devem ser prejudicados pelos tratados em atenção ao
art. 345 do TFUE60. Daí a conclusão no sentido de à União não se abrange competência
relativa à expropriação. Entretanto, em que pesem justificativas legais diversas, ambas
levariam a perda de competência dos Estados sobre a proteção dos investimentos o que, de
mais a mais, congrega a missão de renegociação dos antigos tratados bilaterais.
Desta nova definição surge o problema de saber qual o destino dos Tratados
Bilaterais de Investimentos firmados entre Estados-membros e países terceiros à União
Europeia, pois são cerca de 1200 BITs celebrados antes do marco de Lisboa, sendo o modo
de condução essencial destes para uma eficácia da política da UE acerca dos IDE. Para
responder à esta querela foi elaborada a Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu
e do Conselho que estabelece disposições transitórias para os acordos bilaterais de
investimento entre Estados-Membros e países terceiros61, no ano de 2010.
58 Costa v. ENEL (Case 6/64 [1964] ECR 1251) e Fearon (Case 182/83 [1984] ECR 3677). 59 WAIBEL, Michael. Competence Review: Trade and Investment (February 8, 2013). Disponível em:
https://ssrn.com/abstract=2507138 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2507138>. Acesso 30 maio 2017. 60 Markus Krajewski. Krajewski, Markus, The Reform of the Common Commercial Policy (December 30,
2010). EUROPEAN UNION LAW AFTER THE TREATY OF LISBON, A. Biondi & P. Eeckhout, eds.,
Forthcoming. p. 2-8. Disponível em <file:///C:/Users/marin/Downloads/SSRN-id1732616.pdf>. Acesso 28
maio 2017. 61 EUROPEAN COMISSION. Proposal for a REGULATION OF THE EUROPEAN PARLIAMENT
AND OF THE COUNCIL establishing transitional arrangements for bilateral investment agreements
51
4.2 A fase de transição dos acordos
A mencionada Proposta deu origem ao Regulamento (UE) nº 1219/2012 do
Parlamento Europeu e do Conselho62, de 12 de dezembro de 2012, que estabelece
disposições transitórias para os acordos bilaterais de investimento entre os Estados-
Membros e os países terceiros.
A proposta introduz a matéria por meio de uma exposição de motivos, a qual
contempla seu contexto, as opções políticas e consultas das partes interessadas, bem como
seus elementos jurídicos.
O documento surge no seio da competência exclusiva da União para legislar e
adotar atos juridicamente vinculativos relacionados aos IDE no seio da PCC. Acontece
que, apesar da determinação desta nova competência, o Tratado de Lisboa não adicionou
qualquer disposição acerca do período transitório de vigência, daqueles acordos de
investimentos, firmados quando a competência para negociar e conclui-los ainda residia
aos Estados-Membros.
Surgia, então, um problema de cunho legislativo. Para solucioná-lo, o Parlamento
Europeu e o Conselho vieram à tona no sentido de suprir essa lacuna, estabelecendo um
regime transitório, em caráter excepcional, que se dedica a fornecer uma garantia explícita
de segurança jurídica ao permitir a vigência sob o crivo e autorização da Comissão
Europeia, possibilitando uma nova gestão da competência da União sobre os
investimentos.
Quanto ao tópico número dois, “opções políticas e consultas das partes
interessadas”, consiste no resultado da análise, por parte da Comissão, de diversas
propostas versando sobre o futuro regime transitório dos investimentos. Este tem por fulcro
desmantelar quaisquer divergências e incompatibilidades entre o regime anterior e o atual.
São postas em alvo as incertezas jurídicas oriundas da ausência de transitoriedade pelo
TFUE.
É de se sublinhar a atuação institucional rápida e decisiva em promover a proteção
dos investimentos através do instrumento legislativo em análise, recurso mais que indicado
para estabelecer a objetivada segurança jurídica para os investimentos sob o antigo regime.
between Member States and third countries. Disponível em:
<http://trade.ec.europa.eu/doclib/docs/2010/july/tradoc_146308.pdf>. Acesso em 14 maio 2016. 62 Jornal Oficial da União Europeia. Regulamento (UE) N. o 1219/2012 do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 12 de dezembro de 2012. Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/legal-
content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32012R1219&from=EN>. Acesso em 14 maio 2016.
52
É evidente o caráter transitório das medidas a serem implementadas pelo
regulamento, apesar disso, é importante ter em mente que tais iniciativas se traduzem em
uma transição progressiva e gradual que visa selecionar aqueles acordos de investimento
que não colidam com os interesses da União, ao mesmo tempo em que mantém o statu quo
dos acordos passados em autorização, sob o fim de minar qualquer potencial erosão dos
direitos e interesses dos investidores e dos investimentos.
O tópico de número três, intitulado por “elementos jurídicos da proposta”,
estabelece, por sua vez, a estrutura que dará corpo ao que seria o futuro regulamento.
Institui uma divisão da normativa mediante quatro capítulos, os quais, respectivamente, se
dedicam ao objeto e âmbito de aplicação do regulamento; procedimento de autorização
para a manutenção dos BITs; procedimento de alteração dos BITs e, por fim, o
estabelecimento de padrões de conduta dos Estados-Membros que buscam a manutenção
de seus investimentos estrangeiros.
É de se salientar que o regulamento, passado em processo legislativo ordinário,
atende somente àqueles tratados bilaterais de investimentos firmados entre um Estado-
Membro e países terceiros à União Europeia. Ou seja, ele não observa o regime a ser
dedicado aos acordos firmados entre Estados-Membros, problemática a ser abordada mais
adiante.
Em poucas palavras, é possível depreender que, como já comentado, o
regulamento surge para promover a manutenção dos BITs celebrados antes da entrada em
vigor do Tratado de Lisboa e também para regular aqueles firmados, ou mesmo somente
negociados, no interstício entre Lisboa e a entrada em vigor do próprio regulamento, o qual
data de 12 de dezembro de 2012.
Seu âmbito primordial de atuação é promover a manutenção de tais acordos pela
concessão de autorização da Comissão, a qual deve ocorrer quando não se encontrar
qualquer indício com a legislação da União, noutros aspectos que não as
incompatibilidades decorrentes de competências entre a União e os seus Estados-
Membros” (art. 9º, § 1º, alínea a); “ser supérflua, visto a Comissão ter apresentado ou
decidido apresentar, nos termos do art. 218º, n.º 3, do TFUE, uma recomendação de
abertura de negociações com o país terceiro em causa” (art. 9º, § 1º, alínea b); “ser
incompatível com os princípios e objetivos da União para a ação externa estabelecidos de
acordo com as disposições gerais consignadas no Título V, Capítulo 1, do Tratado da
53
União Europeia” (art. 9º, § 1º, alínea c) ou ainda, “constituir um sério obstáculo para a
negociação ou a celebração pela União de acordos bilaterais de investimento com países
terceiros” (art. 9º, § 1º, alínea d).
Do processo de autorização deve constar a documentação relevante e, em sendo o
caso, sua complementariedade, além de informações adicionais a serem direcionadas por
via escrita. Ademais, todos os avanços, a exemplo de reuniões e decisões tomadas no
âmbito da negociação e conclusão do acordo devem ser transmitidos, via notificação, o
mais rapidamente possível à Comissão, a fim de que esta esteja à par de todas as atividades
desenvolvidas para que possa basear sua decisão. Em caso de na rejeição da autorização, o
entendimento da Comissão deve ser lastreado pelas razões que fundamentaram a recusa.
Por fim, cumpre mencionar o instituto do reexame, segundo o qual até a data de
10 de janeiro de 2020, a Comissão deve apresentar ao Conselho e ao Parlamento um
relatório a respeito da aplicação do regulamento em tela, com a análise das autorizações
solicitadas e autorizadas, no sentido de se observar um reexame da necessidade da
manutenção de tais acordos.
4.3 Acordos entre Estados-membros
Paralelamente estão aqueles acordos bilaterais de investimento firmados entre
Estados-Membros da União Europeia, sobre os quais a Comissão evidencia uma postura
diferente daquela tomada para acordos envolvendo países terceiros. Isso porque sua
iniciativa foi de mandar pôr fim neles.63
A grande preocupação da Comissão decorre do fato que as referidas tratativas
consistem numa espécie de sobreposição ao Direito da União, dando ensejo a insegurança
jurídica. Algumas outras questões também são levantadas, a exemplo do que pontuou
Damon Vis-Dunbar em seu texto EU Member States reject the call to terminate intra-EU
bilateral investment treaties, de 10 de fevereiro de 200964.
No texto, Vis-Dunbar alerta para abertura de margem à prática de forum shopping
por parte daqueles membros que não derrogaram seus acordos de investimento, uma vez
63 Council of The European Union. 2008 Annual EFC Report to the Comission and the Council on the
Movement of Capital and the Freedom of Payments. Brussels Documento 17363/08. Disponpivel em: <
http://register.consilium.europa.eu/doc/srv?l=EN&f=ST%2017363%202008%20INIT>. Acesso em 15 de
maio de 2016. 64 VIS-DUNBAR, Damon. EU Member States reject the call to terminate intra-EU bilateral investment
treaties. February 10, 2009. Disponível em < https://www.iisd.org/itn/2009/02/10/eu-member-states-reject-
the-call-to-terminate-intra-eu-bilateral-investment-treaties/>. Acesso em 15 de maio de 2016.
54
que se tornou possível a litigância de questões tanto pela via da arbitragem de
investimentos, tanto por meio dos tribunais nacionais. O que ao seu ver, poderia desaguar
na discussão de reivindicações oriundas da arbitragem de investimento no contexto do
Tribunal de Justiça da UE. Um alerta diverso, segundo Cecilia Olivet65, é que vários destes
acordos possuem cláusula de resolução de conflitos pelo mecanismo de arbitragem
investidor-Estado (ISDS), o qual tem caráter vinculativo e não se sujeita à fiscalização do
Tribunal de Justiça.
Assim a União aproveitou, reiteradas vezes, a possibilidade de se manifestar
quanto a derrogação dos tais intra-BITs, a exemplo do que fez, no papel de Amicus Curiae,
no caso AES v. Hungria, sob a jurisdição do ICSID, em 2008. E em 2010 no caso Achmea
(Eureko) v. Eslováquia.
Outro risco imanente a manutenção resulta da prática de tratamento
discriminatório para com investidores de diferentes Estados-Membros da União, haja vista
que a falta de uma uniformização geral nos padrões de tratamento leva ao exercício do
direito de investimento com mais vantagens para uns investidores que a outros, deixando
estes em desvantagens, panorama que pode significar obstáculo indireto à livre circulação
de capitais.
Neste aspecto é de se sublinhar a colisão entre direitos e competências. O direito
de livre circulação de capitais, concedido por algum acordo intra-BIT não tem harmonia
com a competência exclusiva da União para investimentos e, consequentemente, seu
direito de restringir fluxos de capitais, mesmo que praticado em caráter de
excepcionalidade.
O rompante da Comissão com os acordos internos já chegou ao caso em concreto,
quando este órgão se posicionou no sentido de obrigar a Áustria66 e a Suécia67 a
eliminarem incompatibilidades com o ordenamento jurídico da UE em seus BITs internos,
o que não foi obedecido.
Damon Vis-Dunbar esclarece que as incompatibilidades em tela geralmente
resultam da existência de uma disposição denominada por “cláusula de transferência”, a
65 OLIVET, Cecilia. A test for European solidarity: The case of intra-EU Bilateral Investment Treaties.
Transnational Institute. January 2013. Disponível em: <
https://www.tni.org/files/download/briefing_on_intra-eu_bits_0.pdf>. Acesso em 15 de maio de 2016. p. 3. 66 Processo C-205/06, Comissão das Comunidades Europeias contra República da Áustria. 67 Processo C-249/06, Comissão das Comunidades Europeias contra Reino da Suécia.
55
qual é responsável por, exatamente, garantir aos investidores o direito de circulação de
capitais de investimento.68
A respeito de tais casos o Advogado-Geral da União, Sr. Poiares Maduro, se
posicionou, à título apenas de orientação, portanto não vinculativo, no sentido de que a
Suécia e a Áustria deveriam promover a referida adequação, mesmo que nos casos em tela
as colisões aconteçam somente em potencial, de modo que não há de se falar em violação
em concreto do direito da União.
Apesar do claro entendimento tomado pela Comissão, ele é alvo de intensas
discordâncias, motivo que levou países como Finlândia, Alemanha, Hungria e Lituânia a se
habilitarem como interessados intervenientes junto aos processos que a Comissão iniciou
contra a Suécia e a Áustria na jurisdição do TJUE.
O interesse dos países na manutenção dos intra-BITs é tema do documento A test
for European solidarity: The case of intra-EU Bilateral Treaties, de autoria de Cecilia
Olivet pelo Transnational Institute. No referido texto se esclarece que, depois da entrada
dos países do leste europeu na União Europeia, se observou um vasto crescimento o
número de intra-BITs. Foram 190 somente após a entrada da Bulgária e da Romênia em
2007. Ademais, traz dados como o que identifica que 65% das disputas entre a Europa
Ocidental e o Leste se baseiam em intra-BITs.69
A respeito das posturas tomadas pela Comissão Europeia, o documento estabelece
que, desde a adesão dos membros do leste europeu, a preocupação com o destino de seus
acordos de investimento já era visionada. A conclusão foi então exposta em novembro de
2006 em nota enviada ao Comitê Econômico e Financeiro (ECOFIN), o qual expressa que
“parece não haver necessidade de acordos deste tipo no mercado interno e sua natureza
jurídica após a adesão não é inteiramente clara”.
No extremo oposto à Comissão estão os Estados da Europa Ocidental, os quais
pugnam pela rejeição da eliminação progressiva dos intra-BITs. Dentre tais Estados se
destacam os Países Baixos, os quais possuem grande interesse na manutenção, uma vez
servirem como proteção para as empresas que lá tem sede, como também para proteger
68 VIS-DUNBAR, Damon. News: ECJ advocate general argues some Austrian and Swedish BITs are
incompatible with EU law. July 17, 2008. Disponível em: < http://www.iisd.org/itn/2008/07/17/european-
court-of-justice-opinion-argues-some-austrian-and-swedish-bits-are-incompatible-with-eu-law/>. Acesso em
15 de maio de 2016. 69 OLIVET, Cecilia. A test for European solidarity: The case of intra-EU Bilateral Investment Treaties.
Transnational Institute. January 2013. Disponível em: <
https://www.tni.org/files/download/briefing_on_intra-eu_bits_0.pdf>. Acesso em 15 de maio de 2016. p. 3.
56
cerca de 20.000 empresas beneficiadas da proteção imanente destes acordos, são as
chamadas empresas mailbox, as quais se aproveitam da jurisdição do país e seu regime
favorável a rotinas de evasão fiscal.70
Entretanto, há no reduto ocidental quem apoie a retirada, como propõe a
Comissão. Estes países se alicerçam na premissa de que os tratados terminados pelo
consentimento de ambas as partes têm por encerrada a proteção dos investidores que não
subsiste ao fim do acordo; o mesmo não ocorre quando geralmente o término é por
somente por iniciativa de uma das partes, caso em que se vislumbra o instituto da
denúncia.
Como se pode notar, os países do Leste parecem os mais prejudicados pela
manutenção dos intra-BITs o que, não ao acaso, os fazem se pronunciar em consonância
com a Comissão, visto que são os mais afetados por disputas oriundas destes acordos
internos. Para ilustrar traz-se à baila a situação da República Tcheca, a qual possui um
histórico de 18 casos em disputa, dos quais 13 resultam de intra-BITs. No mesmo caminho
seguem a grande maioria dos outros países do Leste. Polônia com 15 casos, dos quais 9 são
intra-BITs; República da Eslováquia, 7/10; Hungria, 6/10; Romênia, 5/8; Lituânia 1/5;
Bulgária, 3/3; Estônia, 2/3; Letônia, 2/3 e Eslovênia, ½.
Enquanto isso, os países da Europa Ocidental totalizam uma quantidade muito
inferior de casos e quase nenhum deles por acordos internos: Reino da Espanha, 2:
Argentina-Espanha BIT e Espanha-Venezuela BIT; Reino Unido, 1, UK-Índia BIT;
Alemanha, 2, ambos oriundos do Tratado da Carta da Energia; Bélgica, 1, China-Bélgica
BIT e, por fim, Portugal com um em face da Alemanha.71
4.4 A transição dos acordos pelos policy papers
Para os seus novos e futuros acordos, a União, a fim de exercer sua competência
exclusiva em matéria de investimento, desenvolveu o que virá a servir como seu modelo de
acordo de investimento, ao qual deu a designação de Plataforma Mínima sobre o
Investimento, oriundo do documento da Comissão Europeia denominado por Minimum
70 OLIVET, Cecilia. A test for European solidarity: The case of intra-EU Bilateral Investment Treaties.
Transnational Institute. January 2013. Disponível em: <
https://www.tni.org/files/download/briefing_on_intra-eu_bits_0.pdf>. Acesso em 15 de maio de 2016. p. 5. 71 OLIVET, Cecilia. A test for European solidarity: The case of intra-EU Bilateral Investment Treaties.
Transnational Institute. January 2013. Disponível em: <
https://www.tni.org/files/download/briefing_on_intra-eu_bits_0.pdf>. Acesso em 15 de maio de 2016. p. 10-
14.
57
platform on investment for EU FTAs – Provision on establishment in template for a Title
on “Establishment, trade in services and e-commerce”72.
De acordo com o documento EU investment agreement in the Lisbon Treaty Era:
A Reader, a plataforma serve como base às negociações dos FTA (Free Trade Agreement),
do português, área de livre comércio (ALC), ou seja, tendo por foco o comércio de serviços
e o estabelecimento de investimentos, no fito de reforçar o acesso das empresas da União
Europeia ao mercado externo.
Três aspectos do documento merecem destaque, o tratamento nacional, a cláusula
da nação mais favorecida (MNF) e a non-lowering of standard clause, que em português
recebe a designação de cláusula de não-redução dos standards.
Sobre o tratamento nacional, tem-se a aplicação, no pré e pós-estabelecimento, do
art. XVII do GATS, segundo o qual aos investimentos estrangeiros deve ser dedicado o
mesmo tratamento que o conferido aos nacionais.
A cláusula da nação mais favorecida estabelece que cada parte deve assegurar ao
investidor da outra parte, um tratamento não menos favorável que aquele dedicado a
qualquer outro de um país terceiro. Também estabelece, em seu § 2º, que o tratamento
observado em um país terceiro, quando decorrente de um acordo de integração econômica
que obrigue as partes a aproximar suas legislações, deve ser desconsiderado para efeito da
aplicação da referida cláusula. O artigo em tela prevê ainda a descriminação de setores que
ficariam livres de sua incidência, conforme disposição do art. II.2 do GATS, denominada
em anexo por Lists of commitments on establishment e Reservations on key Personnel,
contendo o setor ou subsetor a ser protegido, bem como o texto da respectiva reserva.
Em último lugar está a non-lowering of standards clause, sob a pretensão de ser
inserida no preâmbulo do acordo. Ela estabelece que as partes não devem encorajar IDE
que possa atuar na redução dos padrões de proteção da legislação nacional do ambiente
doméstico, do trabalho, da saúde e da segurança, bem como através do relaxamento das
normas laborais fundamentais, ou leis destinadas a proteger e promover a diversidade
cultural. Por conseguinte, o § 2º da cláusula, assegura a proibição de renúncia ou
derrogação da legislação ou padrões, como forma de promover o estabelecimento, a
72 Commission Européenne. Minimum platform on investment for EU FTAs – Provisions on
establishment in template for a Title on "Establishment, trade in services and e-commerce". Brussels,
le 28 July 2006. D (2006) 9219. Disponível em < http://www.iisd.org/pdf/2006/itn_ecom.pdf>. Acesso em 15
de maio de 2016.
58
aquisição, a expansão ou a retenção do investimento ou investidor, no território. Enfim, o §
3º anuncia a possibilidade de consultas com a parte que entender haver alguma
incompatibilidade com a cláusula de não-redução dos padrões. Assim, o procedimento de
consulta consiste em um esforço de cooperação para evitar qualquer conflito.
No documento Global Europe: competing in the world73, de 2006, a Comissão
Europeia pontua requisitos para a promoção da competitividade na União, o que deve se
basear essencialmente em dois fundamentos: 1) políticas internas corretas que direcionem
no sentido da competição externa e da manutenção da abertura comercial e de investimento
e, 2) a garantia de uma maior abertura e a promoção de regras equitativas em outros
mercados.
Os investimentos aparecem no rol de novas áreas do crescimento, em que a União
deve insistir na abertura dos mercados, juntamente com a propriedade intelectual, os
serviços, os contratos públicos e a concorrência.
Eles são abordados, em especial, com vistas a melhoria de suas condições junto à
países terceiros, de modo a contribuir no crescimento tanto da UE, como daqueles. O texto
ressalta a importância e necessidade de se investir livremente em outros mercados, em
contrapartida aponta que fatores como a presença física e a proximidade geográfica devem
ser levados em linha de conta no momento da expansão do investimento. Isso porque tais
aspectos contribuem para, por exemplo, tornar o fluxo comercial mais previsível, além de
consolidar a imagem e a reputação da empresa investidora e de seu país de origem.
Outro documento relevante aos investidores europeus é a Comunicação da
Comissão ao Conselho, ao Parlamento Europeu, ao Comitê Econômico e Social Europeu e
ao Comitê das regiões sobre comércio, crescimento e questões internacionais: “A política
comercial como um elemento central da estratégia da UE para 2020”74.
Nele se expõe o modo como a política comercial e de investimentos deve ser
articulada para o alcance de um crescimento europeu mais rápido, tendo em vista que a
abertura ao IDE promove competitividade, e contribuição em termos de crescimento,
emprego e baixa nos preços de consumo. É louvável, ademais, o sucesso já alcançado, pois
a União Europeia é o mais importante fornecedor e beneficiário do IDE. No entanto ainda
73 European Commission. Global Europe: competing in the world. 2006. Disponível em: <
http://trade.ec.europa.eu/doclib/docs/2006/october/tradoc_130376.pdf >. Acesso em 28 jul 2016. 74 Comissão Europeia. A política comercial como um elemento central da estratégia da UE para 2020.
Disponível em: < http://eur-lex.europa.eu/legal-
content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52010DC0612&from=PT>. Acesso em 28 jul 2016.
59
há muito a ser feito para a evolução do organismo em matéria de acesso de investimento ao
mercado, para tanto é pacífico o entendimento pelo qual é preciso reforçar a coerência e a
complementaridade entre as políticas internas e as externas.
A União tem em mente a necessidade de ampliar suas relações externas no tocante
ao investimento, o que visiona através da realização de acordos comerciais preferenciais
entre grandes economias, tais como Estados Unidos (EUA), China, Japão e Rússia, com os
quais envida esforços rumo a remoção dos entraves não pautais ao investimento via
cooperação regulamentar.
Em relação aos EUA, especificamente, tem-se o principal parceiro comercial e de
investimento o que, não ao acaso, estimula o incentivo ao trabalho do Conselho
Econômico Transatlântico com vistas a intensificar a já grandiosa liberdade econômica ali
existente através da convergência regulamentar e da prevenção a futuros entraves.
Os desafios da política comercial e do investimento passam necessariamente pela
liberalização dos IDE nas negociações comerciais em andamento. Por isso mesmo a
Comissão Europeia lançou o Comunicado “Rumo a uma política europeia global em
matéria de investimento internacional” no ano de 2010 – a qual será mais à frente
abordada-, na perspectiva de promover uma atualização das diretrizes de negociação dos
acordos com o Canadá, Singapura e Índia.
O texto anota a importância de se avançar nas negociações bilaterais já em curso,
como mencionado anteriormente, além de estabelecer novos vínculos com membros da
ASEAN (Association of Southeast Asian Nations) e parceiros-chave, com os quais há a
pretensão de negociações autônomas de investimento.
Além do mais, são lançadas metas a serem alcançadas ainda no ano de 2011, das
quais merece destaque a conclusão dos debates sobre a nova política europeia para
investimento e o desenvolvimento da relação de complementaridade e reciprocidade entre
a liberalização do mercado interno e externo.
Enfim, a Comissão implementa o compromisso de produzir anualmente, com
início em 2011, um relatório sobre os entraves ao comércio e ao investimento de caráter
fiscalizatório, a ter sua apresentação no Conselho Europeu da Primavera.
O documento em tela faz menção a outro documento de importância primacial, o
qual é denominado vulgarmente por “Europa 2020”, consistindo em uma Comunicação da
Comissão sobre a “Estratégia para um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo”. O
60
mesmo aborda pouco o investimento direto estrangeiro, apesar disso algumas passagens
perecem apreço.
Há a indicação de cinco objetivos a serem perseguidos em nível nacional,
determinantes ao futuro europeu no ano de 2020, são eles: emprego, investigação e
inovação, alterações climáticas e energia, educação e luta contra a pobreza. Como objetivo
indireto é possível destacar a preocupação com uma nova governação econômica, a qual,
dentre outras, deve ser pautada na política comercial e nas relações econômicas externas.
Por fim recebe análise a Comunicação da Comissão ao Conselho, ao Parlamento
Europeu, ao Comitê Econômico e Social Europeu e ao Comitê das Regiões sobre o “Rumo
a uma política europeia global em matéria de investimento internacional”, a qual tem por
fito as primeiras orientações da política de investimentos da UE para o futuro.
O principal legado deixado pelo texto foi a introdução dos padrões de proteção de
investimento a serem observados pela UE, de modo a criar um ambiente estável, sólido e
previsível, além das melhores normas do mercado, de condições para uma concorrência
equitativa e de elevada qualidade para atuação dos investidores. O que deve se aplicar
desde a fase de planejamento até a obtenção de lucros, ou seja, da pré-admissão até a pós-
admissão.
No tocante à proteção, em específico, o texto destaca normas substantivas que
devem servir de base aos padrões de investimentos da UE. São elas o princípio da não
discriminação, que se perfaz como alicerce ao tratamento da nação mais favorecida e o
tratamento nacional. A cláusula de proteção, a qual incide sobre os direitos contratuais
dados pelo Estado de acolhimento a um investidor. O direito de expropriação pelo país de
acolhimento, a quem se reserva a faculdade de decidir se um ativo pode possuir caráter
público ou privado e, naquele caso, proporcional a um objetivo legítimo que deve ser
compensando pelo pagamento tempestivo de indenização adequada. Por fim, resta ser
enunciada a liberdade de transferência de fluxos de capitais e pagamentos.
Há então uma preocupação premente com o mecanismo arbitral de resolução de
litígios entre investidor e Estado, cujos principais desafios se situam na transparência do
processo de resolução, a exemplo da previsão de audiências públicas, atuação de amicus
curiae e publicação das decisões tomadas; a fragmentação dos litígios e das interpretações,
as quais são responsáveis pela dificuldade na formação de jurisprudência. Problemas que
61
podem ser revertidos pela utilização de árbitros em caráter permanente e instituição de
regras para a condução da arbitragem.
Sobre esta matéria há uma grande questão, que é o fato da União Europeia não ser
membro signatário da Convenção CIRDI (Centro Internacional de Resolução de Disputas
em Investimento) – mais comumente denominada pela sigla em inglês, ICSID –, uma vez
que os requisitos para assim figurar é ser membro do Banco Mundial ou signatário do
Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça.
Por fim, esta Comunicação da Comissão aborda o instituto da responsabilidade
internacional aplicado aos acordos de investimento da UE. Isso porque no exercício de sua
competência exclusiva para a PCC, e conseguintemente para os investimentos, a Comissão
acredita que a União será a única instituição demandada em litígios decorrentes de medidas
tomadas por seus Estados, o que implica em dizer que a mesma será a responsável por
efetuar as compensações financeiras arbitradas em seu desfavor, mesmo que por ação
unicamente de um Estado-Membro.
4.5 A transição pelo viés jurídico
Conforme já anunciado, a União Europeia passa por um momento de transição no
tocante aos tratados de investimentos celebrados entre seus Estados-Membros.
Anteriormente este texto procedeu a uma abordagem em termos políticos, servindo de
introdução ao momento presente, que é de revelar sua conjuntura jurídica.
Retrospectivamente foram pontuados motivos que suscitam a permanência ou não
dos acordos de investimento intra-UE, o que também foi realizado por Blerina Xheraj75, no
sentido de enumerar cinco deles: I) tais acordos não se coadunam com a lógica do mercado
interno de capitais da UE; II) suas existências abrem caminho para discriminação entre
investidores da UE; III) a jurisdição destes acordos conflita com a competência exclusiva
do Tribunal de Justiça da União Europeia; IV) a aplicação de tais acordos põe em risco de
violação o princípio do primado do direito da UE e da autonomia de sua ordem jurídica e,
V) o pagamento de valor sentenciado pelo tribunal arbitral pode consistir em auxílios
estatais, o que é vedado pela legislação da União.
Blerina Xheraj estabelece um paralelo entre a temática das patentes e os acordos
de investimentos intra-EU, sobre os quais entende existir acordos semelhantes no âmbito
75 XHERAJ, Blerina. A reading of intra-EU BITs in light of recent developments of EU law. Disponível
em: <http://ccsi.columbia.edu/files/2013/10/No-158-Xheraj-FINAL.pdf>. Acesso em 28 junho 2016.
62
da União Europeia, haja vista ambos transcorrerem fora do enquadramento jurídico da UE,
além de preverem sistemas de resolução de diferendos pelo mecanismo da arbitragem e,
portanto, consistirem em uma ameaça à autonomia da ordem jurídica da UE. Assim, a
autora pugna para que ambas as temáticas recebam tratamento jurídico semelhante,
consoante a importância de se promover a segurança jurídica.
4.5.1 ESTUDO DE CASO: ACHMEA (EUREKO) V. ESLOVÁQUIA
Apesar do extremo valor das questões em pauta, o Tribunal de Justiça da União
Europeia ainda não se manifestou formalmente acerca da legalidade dos intra-UE. O
Tribunal Federal alemão foi instado a fazê-lo, levantando em seguida reenvio prejudicial
ao TJUE a respeito da validade dos acordos de investimento, entre Estados-Membros da
UE que preveem a arbitragem como mecanismo de solução de conflitos entre investidor e
Estado.
Para entender melhor o processo em questão, é preciso expor primeiramente
algumas datas. Em 1º de outubro de 1992 a Tchecoslováquia celebrou acordo bilateral de
investimentos com os Países Baixos, muito embora logo em 1º de janeiro de 1993 tenha
procedido ao processo de separação, dando origem à República Tcheca e a Eslováquia, a
qual passou a figurar como responsável pelas obrigações legais assumidas no contexto de
sua antecessora. Nada obstante, em seguida, 1º de maio de 2004, a Eslováquia aderiu a
União Europeia, dando início a um processo de liberalização de seu mercado de seguros de
saúde. O mesmo foi interrompido no ano de 2006, pelo Primeiro Ministro Robert Fico, por
medidas como proibição de distribuição de lucros aos acionistas das empresas, o que
somente teve sua inconstitucionalidade declarada no ano de 2011.
No lapso temporal em que vigorou a liberação, a empresa holandesa Achmea
(Eureko) promoveu uma série de investimentos no tocante a tais seguros, tendo seu direito
de proteção de investimentos potencialmente violado em vistas do recuo no processo de
liberalização. O motivou o início de um processo de arbitragem contra a República
Eslovaca sob a égide da jurisdição da UNCITRAL (Comissão das Nações Unidas para o
Direito do Comércio Internacional).
A Achmea pugnava pela declaração de violação do tratado bilateral em
decorrência da proibição de repasse dos lucros, almejando então valor compensatório. A
Eslováquia, por sua vez, entendia que o tribunal arbitral não possuía jurisdição para o caso,
63
uma vez que o acordo não teria resistido a sua entrada na União Europeia, o que não foi
acolhido, resultando no ganho de causa à Achmea, que recebeu cerca de 22 milhões de
euros.
Como a liberalização do mercado de seguro médicos foi alvo de uma mudança no
sentido de uma legislação mais restritiva, a Achmea (Eureko) levantou a questão de estar
sofrendo expropriação de seus investimentos realizados na Eslováquia. Suscitou o início de
um processo de arbitragem contra aquele país receptor. Conforme o art. 8º do Tratado
Bilateral de Investimento (BIT) entre os Países Baixos e a Eslováquia, o julgamento
seguiria as regras da UNCITRAL que, por sua vez, decidiu como sede da arbitragem o
Tribunal de Frankfurt am Main, Alemanha76.
A demandada questionou a competência deste juízo sem, porém, obter êxito. A
respeito deste ponto, é de se sublinhar que as arbitragens de investimento sob o manto da
UNCITRAL não são desnacionalizadas, estando, portanto, passíveis de recurso com fulcro
na lei do país sede da arbitragem – o mesmo não pode ser dito no que tange aos processos
abarcados pelo ICSID (Centro Internacional para a Resolução de Diferendos relativos a
Investimentos).
A Eslováquia não se satisfez com a sentença arbitral e levou a querela ao Tribunal
Regional Superior de Frankfurt am Main e posteriormente ao Tribunal Federal alemão, o
qual suspendeu o processo em razão da espera por uma decisão prejudicial do TJUE a
respeito dos três artigos em debate. São eles o art. 344, o 267 e o 18 do TFUE.
O primeiro aponta para a não submissão de diferendos lastreados em interpretação
ou aplicação dos tratados a um outro mecanismo de resolução que não o TJUE, o que
supostamente vetaria o uso da arbitragem.
O art. 267 versa sobre a competência prejudicial, exclusiva ao TJUE, para decidir
sobre a) “a interpretação dos tratados”, bem como sobre b) “a validade e a interpretação
dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União”.
Por fim, o art. 18 veta qualquer aplicação dos tratados da União que venha em
discriminação à nacionalidade, o que repousa sobre os investimentos no sentido de que um
76 BISCHOFF, Jan Asmus. German Court upholds Award on Jurisdiction in Eureko B.V. v. The Slovak
Republic (PCA Case No. 2008-13). Julho 2012. Disponível em: <
http://blogs.law.nyu.edu/transnational/2012/07/german-court-upholds-award-on-jurisdiction-in-eureko-b-v-v-
the-slovak-republic-pca-case-no-2008-13/ >. Acesso em: 25 abr 2017.
64
tratado bilateral em vigor no mercado interno da UE atuaria em desfavor dos investidores
dos demais membros.
O BGH (Bundesgerichtshof)77, por sua vez, apresentou seu entendimento sobre as
questões suscitadas. No tocante ao art. 344, defendeu que o mesmo não aborda
expressamente se a limitação a uma outra forma de resolução de litígios é somente entre
Estados-Membros ou é também válida para a relação entre cidadãos e Estados, o que
comportaria a relação investidor-Estado. Ademais, não acredita que a referida seja
abarcada no âmbito de disputas concernentes a interpretação e aplicação dos tratados da
União, porque entende que uma violação ocorre quando estas são o foco da discussão.
Assim, o art. 344 não merece apreço, posto que a disputa em tela não deve ser resolvida
sob a jurisdição da União. Por fim, o BGH entende que não compete ao TJUE interpretar
as tratativas da UE em toda e qualquer disputa, mas somente naquelas em que a norma
preveja, a exemplo de disputa entre seus membros.
No tocante ao art. 267, o Tribunal Federal alemão se posicionou no sentido de a
arbitragem não violar a competência do TJUE, desde que a sentença arbitral seja
compatível com os princípios essenciais do direito europeu integrados à ordem pública.
Quanto ao art. 18, também se entendeu pela ausência de violação. Na verdade, o
BGH sugeriu a eliminação de uma possível discriminação ao propor uma concessão aos
demais membros da UE que não sejam parte no acordo bilateral de investimento,
fornecendo-lhes os mesmos privilégios albergados às partes.
4.5.2 OS PROCESSOS DE INFRAÇÃO INICIADOS PELA COMISSÃO
Como exposto anteriormente, a questão ainda resta pendente no Tribunal de
Justiça. Este fato não obstou que a Comissão iniciasse processos de infração contra cinco
Estados-Membros, instando que pusessem fim aos seus acordos de investimentos firmados
com outros países da União. Sublinhe-se, antes dos alargamentos de 2004 (inclusão do
Chipre, Eslováquia, Eslovênia, Estônica, Hungria, Letônia, Lituânia, Malta, Polônia e
República Tcheca), de 2007 (Bulgária e Romênia) e de 2013 (Croácia).
As “cartas de notificação para cumprir” foram enviadas em 18 de junho de 2015,
posteriormente à troca de informação com os supostos Estados em infração, conforme
77 Investor-State arbitration under intra-EU BITS – the German Federal Court of Justice makes a preliminary
reference to the CJEU. Disponível em: <http://www.allenovery.com/news/en-gb/articles/Pages/Investor-
State-arbitration-under-intra-EU-BITS.aspx>. Acesso 29 junho 2016.
65
consta em Comunicado de Imprensa da Comissão Europeia78, o qual marca a primeira fase
dos processos de infração decorrentes da suspeita de que Suécia, Áustria, Romênia, Países
Baixos e Eslováquia violaram o Direito da UE ao manterem seus acordos bilaterais de
investimento com outros membros.
Antes de iniciar com um processo de infração, a Comissão procede a uma
alternativa de resolução rápida, através do mecanismo de comunicação EU Pilot, para
saber o posicionamento de cada dos Estados a respeito da compatibilidade dos acordos de
investimento intra-UE no panorama de seu mercado interno. Foram deixados de lado
apenas Itália e Irlanda, países em que não mais subsistem tais acordos.
Portanto, o processo formal se inicia com o envio da “Carta de notificação para
cumprir”, o qual os países supostamente infratores devem responder em um prazo máximo
de dois meses. Não havendo resposta, ou esta sendo insatisfatória, é aberto espaço para a
Comissão apresentar parecer fundamentado com as razões que a levam a suspeitar de uma
violação. Inicia-se a correr o prazo de dois meses para que as autoridades nacionais façam
cumprir a legislação europeia, o que não foi publicizado pelos meios de comunicação da
UE.
Silente o Estado ou em caso de insuficiência em seu posicionamento, a Comissão
procede ao Tribunal de Justiça, instando-lhe que inicie um procedimento contencioso, o
qual demandará cerca de dois anos para proferir acórdão a respeito da infração em causa.
Em seguida, cumpre ao Estado infringente fazer com as adaptações necessárias em sua
legislação interna para alinhar-se ao Direito da União Europeia.
Não se vislumbrando as adequações, a Comissão enviará nova carta de notificação
ao Estado que, em reiterado caso de inércia, fica sujeito a reenvio ao Tribunal de Justiça, o
qual se encarregará de estabelecer-lhe pena pecuniária fixa ou progressiva.
No caso da Suécia, em uma pesquisa às decisões relativas a processos por
infração, foi encontrada a de nº 20132207, de 18 de junho de 2015, cujo domínio
político/serviço responsável se refere a estabilidade financeira, serviços financeiros e união
dos mercados de capitais, sob o título de Bilateral Investment Agreement between Sweden
and Romania. O tipo de decisão indica o estágio em que se encontra o processo, estando
78 Comissão Europeia. A Comissão insta os Estados-Membros a pôr termo aos seus tratados bilaterais
de investimento intra-UE. Bruxelas, 18 Junho 2015. Disponível em: <http://europa.eu/rapid/press-
release_IP-15-5198_pt.htm>. Acesso em 29 junho 2016.
66
este em “notificação para cumprir art. 258 do TFUE + comunicado de imprensa”. A
decisão, no entanto, não se encontra acessível, no site da Comissão79.
A Romênia se encontra sob a infração de nº 20132206, a qual se remete
igualmente aos critérios apontados no processo anterior80.
Também na data de 18 de junho de 2015, a Eslováquia foi notificada da infração
nº 20122066, enquanto os Países Baixos, pela de nº 20122078, ambas sob o título Bilateral
Investment Agreement between The Netherlands and Slovakia. O processo possui domínio
político/serviço responsável e tipo de decisão iguais ao do anterior81.
A Áustria, por fim, está sob o nº 20132205, de mesma data, no tocante a
estabilidade financeira, serviços financeiros e união dos mercados de capitais, sob o título
Bilateral Investment Agreement between Austria and The Czech and Slovak Federal
Republik, com também decisão do tipo “notificação para cumprir art. 258 do TFUE +
comunicado de imprensa”82.
4.6 Estudo de caso: Ioan Micula and others v. Romania
Primeiramente, no que tange ao processo decorrente do TBI entre Suécia e
Romênia, algumas considerações merecem ser tecidas. Nesse sentido segue análise do
processo Ioan Micula and others v. Romania (ICSID Case nº ARB/05/20)83.
O referido processo tem por conclusão a declaração de violação, por parte da
Romênia, do art. 2 (3) do tratado bilateral de investimento firmado com a Suécia, o qual
versa sobre a garantia de tratamento justo e equitativo aos investidores estrangeiros, em
detrimento do uso de medidas injustificadas ou discriminatórias contra os mesmos. Apesar
disso, o tribunal negou haver violação do art. 2 (4) do tratado, segundo o qual cada parte
79 Disponível em: < http://ec.europa.eu/atwork/applying-eu-law/infringements-
proceedings/infringement_decisions/index.cfm?lang_code=PT&r_dossier=&decision_date_from=&decision
_date_to=&EM=SE&title=&submit=Procurar >. Acesso em 29 junho 2016. 80 Disponível em: <http://ec.europa.eu/atwork/applying-eu-law/infringements-
proceedings/infringement_decisions/index.cfm?lang_code=PT&r_dossier=&decision_date_from=&decision
_date_to=&EM=RO&title=&submit=Procurar>. Disponível em 29 junho 2016. 81 Disponível em: <http://ec.europa.eu/atwork/applying-eu-law/infringements-
proceedings/sions/index.cfm?lang_code=PT&r_dossier=&decision_date_from=&decision_date_to=&EM=S
K&title=&submit=Procurar>. Acesso em 29 junho 2016. 82 Disponível em: <http://ec.europa.eu/atwork/applying-eu-law/infringements-
proceedings/infringement_decisions/index.cfm?lang_code=PT&r_dossier=&decision_date_from=&decision
_date_to=&EM=AT&title=&submit=Procurar>. Acesso 29 junho 2016. 83 ŚWIĄTKOWSKI, Marek. Comment on Ioan Micula and Others v. Romania (ICSID Case nº
ARB/05/20). Polish Review Of International And European Law. Warsaw, p. 119-129. (?) 2013.
Disponível em: < http://www.dzp.pl/files/Publikacje/M_Swiatkowski-
International_Centre_for_Settlement_of_Investment_Disputes.pdf >. Acesso 29 jun 2016.
67
deverá observar as obrigações que tenha firmado com um investidor da outra parte
contratante, no que tange a matéria de investimento.
4.6.1 A PROBLEMÁTICA REGULATÓRIA GERADA PELA ORDINANCE 1998
O caso se inicia no ano de 1998, com a edição do Regulamento Governamental de
Emergência de nº 24/1998, denominado simplificadamente por Ordinance 1998, o qual
tinha por intento promover o desenvolvimento de áreas eleitas como subdesenvolvidas no
território da Romênia através de incentivos econômicos. Adicionalmente, em 1999, pela
decisão de nº 194, o país designou certas áreas como subdesenvolvidas, passíveis de
receber investimentos estrangeiros pelo prazo de dez anos, a contar de 1º de abril daquele
ano. Ainda, em 1999, foi editada a decisão de nº 525 que contemplava com certificados
aqueles investidores hábeis a se beneficiar da Ordinance 1998.
Acontece que os referidos incentivos foram prematuramente revogados pelo
governo romeno, deixando de vigorar logo em 2005, sob a justificativa de que não
entravam em consonância com a estrutura normativa da União Europeia. Isso porque a
Romênia estaria no encalço de promover a aproximação de sua legislação com o Direito da
União, no sentido de permitir sua adesão. Assim, em abril de 2005, a Romênia assinou o
tratado de adesão e, em janeiro de 2007, se tornou membro da UE.
Os requerentes alegam que o compromisso firmado pela Romênia teria duração
até 1º de abril de 2009, data em que cessariam os direitos concedidos pela Ordinance 1998
e pelos certificados de incentivo. Assim, a Romênia teria violado compromissos
vinculativos a vigorar até 1º de abril de 2009. O que consequentemente significou, para
estes, a violação da cláusula guarda-chuva presente no art. 2 (4) do tratado de
investimento; a quebra das expectativas legítimas guardadas pelos requerentes; uma
atuação do Estado romeno calcada na falta de transparência, na má fé e na obrigação de
agir de modo justo e equitativo; o uso de medidas injustificadas e, por fim, na expropriação
do direito dos requerentes de receber incentivos, sem a devida compensação, sendo
substancialmente privados do valor de seus investimentos. Enfim, os requerentes refutaram
o argumento de que o regulamento de incentivo fora cessado em razão da legislação da
UE.
Por sua vez, a requerida justifica-se sob a alegação de que cada Estado é livre para
exercer sua soberania legislativa e, desde que não atue de modo discriminatório, estaria de
68
acordo com as tratativas de proteção ao direito do investimento. Assim, conclui que
nenhuma garantia de estabilização da legislação foi feita e, portanto, não há que se falar em
quebra das expectativas legítimas dos requerentes.
No que é pertinente à aproximação do Direito da União, a requerida argumenta
que a cessação da vigência do BIT está diretamente relacionada com a celebração do
acordo europeu, o qual traz em seu art. 74 o objetivo de conclusão de acordos de promoção
e proteção de investimentos com outros Estados-Membros.
Outros argumentos que merecem destaque são os oriundos da atuação da
Comissão Europeia como amicus curiae no processo micula. Isso porque levanta a questão
da eliminação dos intra-UE BIT, uma vez entender que tais são incompatíveis com o
mercado único da UE. Ademais, a Comissão se mostrou atenta a ameaça operada pela
arbitragem na modalidade investidor-Estado, a qual é de caráter vinculativo e não se
sujeita, portanto, a revisão do Tribunal de Justiça da União Europeia. Por fim, a Comissão
Europeia alegou que qualquer compensação a ser destinada aos requerentes estaria em
conflito com a legislação da UE por supostamente consistir em auxílio estatal ilegal e,
portanto, passível de tornar a sentença arbitral inaplicável.
4.6.2 A DECISÃO DO TRIBUNAL
A questão inicial reside na relação entre a cláusula guarda-chuva, presente no art.
2 (3) do BIT, e as obrigações assumidas pela Romênia como Estado de acolhimento, no
desempenho de sua soberania. A conclusão do tribunal foi de que a requerida não poderia
ser responsabilizada por violação da cláusula guarda-chuva, uma vez que não existia, no
direito romeno, qualquer obrigação de manter os incentivos inalterados até 1º de abril de
2009.
A explicação para essa ausência de violação resulta do entendimento no qual o
investidor estrangeiro tem seu direito assegurado pela cláusula guarda-chuva quando o
Estado lhe fornece segurança através de sua legislação. Entretanto, a este Estado é
facultada a alteração das referidas leis, sem que isso signifique violação ao acordo de
investimento.
Ao inverso, uma violação é observada quando o Estado de acolhimento forneceu
uma garantia de estabilidade, ficando possível provar que se obrigava a manter inalterada a
legislação por um determinado período de tempo, ou ainda na existência de direitos
69
adquiridos. Nenhuma das duas hipóteses foi vislumbrada no caso da Romênia, segundo o
tribunal.
As alegações dos requerentes, no tocante a violação de uma expectativa legítima,
intimamente relacionada a inobservância do tratamento justo e equitativo, o tribunal
articulou que apenas havia a uma promessa de que nenhuma alteração substancial nos
incentivos seria realizada durante o período determinado de dez anos.
Sobre a relação entre a alteração dos incentivos e a entrada da Romênia na UE, o
tribunal entendeu que até o ano de 2003 era plausível que as partes cultivassem a crença de
que os incentivos se faziam compatíveis com a lei da UE, uma vez que os peritos
articularam que não era evidente que os auxílios com finalidade regional lícita não
cumpriam com as exigências de aproximação legislativa da UE.
A alegação dos requerentes é que a Romênia agiu com falta de transparência e
coerência, uma vez ter editado a Ordinance 1998 enquanto negociava a adesão à UE e,
consequentemente a extinção da vigência daquele regulamento. O tribunal classificou por
infundado esse argumento, acolhendo que a requerida agiu de boa-fé, pois ela tinha razões
para acreditar que aquela regulação permaneceria em vigor mesmo com sua entrada na
União Europeia. Assim, optou por declarar a violação do BIT firmado entre a Romênia e a
Suécia pelo fato da primeira não ter repassado aos seus investidores estrangeiros,
tempestivamente, a informação de que cessaria a vigência da Ordinance 1998 antes de
chegado seu devido prazo, que seria em 2009.
Quanto aos danos causados e as devidas compensações, o tribunal formulou o
montante de 85 milhões de euros, contra os valores de 600 e também de 200 calculados no
decorrer do processo.
Chama a atenção a argumentação da requerida, a qual se manifestou no sentido de
que a adesão à UE beneficiou os investidores, que tiveram seus incentivos retirados pela
Romênia, de modo a concluir que, do montante a ser fixado, deveriam ser subtraídos os
valores tidos como benefício extra em razão do mercado da UE. Isso porque o tribunal
declarou que a Romênia foi incapaz de produzir os devidos cálculos, não sendo possível
quantificar o valor alegado pela requerente.
Acerca da compatibilidade do BIT com o Direito da União Europeia, foi
entendido por não residir conflito. O motivo para tanto é o fato de não haver referência, no
BIT, ao Direito da UE e nem ao tratado de adesão, de forma que não resiste a subsunção
70
pela qual a Romênia ou a Suécia possuíam o intento de excluir a vigência ou alterar o
conteúdo do acordo de investimento entre os dois países. Deste modo, conclui que cada
tratado deve ser interpretado segundo essa ausência de intenção ao alterar o BIT. Ademais,
o tribunal assinalou que o direito da UE deve desempenhar função fundamental no acordo
de investimento entre a Suécia e a Romênia, devendo ser interpretado à luz dos demais
tratados aplicáveis.
Por fim, cumpre abordar a alegação da Comissão Europeia, na figura de amicus
curiae, segundo a qual o pagamento do montante valorado na sentença, na qualidade de
compensação ao direito violado, consiste em ilegal concessão de auxílios estatais, de modo
a tornar inaplicável a sentença arbitrada.
Em resposta, o tribunal optou por não adentrar à questão, tendo por motivação o
entendimento de que seria inadequado fundamentar o mérito de sua decisão no direito
europeu, o que poderia ter consequências na fase executória do processo.
Joel Dahlquist, Hannes Lenk e Love Rönnelid sintetizam, portanto, que o
processo “micula exemplifica o potencial de conflitos que os BITs intra-UE criam no
mercado interno”. Assim, faz-se mister adentrar um pouco mais no BIT84 firmado entre
Suécia e Romênia, sobre o qual outras quatro considerações merecem destaque85.
4.6.3 OS STANDARDS DE PROTEÇÃO
Primeiramente, a respeito do princípio da não-discriminação, o qual aparece em
potencial violação no art. 3 (2) do BIT, uma vez que limita a concessão do tratamento da
nação mais favorecida de modo alargado, em benefício de investidores e investimentos de
outra parte contratante. Nega a concessão de “vantagens de quaisquer costumes existentes
ou futuros, ou união econômica, zona de livre comércio ou outro acordo internacional
semelhante ao que uma das partes contratantes é ou pode tornar-se parte”.
Em segundo lugar está a incompatibilidade entre o art. 344 do TFUE e a resolução
de disputas pela via da arbitragem ISDS, a qual está fora do perímetro de atuação do
Tribunal de Justiça da União Europeia.
84 Agreement between the Government of the Kingdom of Sweden and the Government of Romania on the
Promotion and Reciprocal Protection of Investments. Disponível em: <
http://www.italaw.com/sites/default/files/laws/italaw6225.pdf >. Acesso em: 07 jul 2016. 85 DAHLQUIST, Joel; LENK, Hannes Lenk; RÖNNELID, Love. The infringement proceedings over
intra-EU investment treaties – an analysis of the caseagainst Sweden (March 1, 2016). Swedish Institute
for European Policy Studies (SIEPS) 4epa, 2016. p. 3. Disponível em:
<http://www.sieps.se/sites/default/files/2016_4_epa_%20eng.pdf >. Acesso em: 29 jun 2016.
71
Em terceiro reside o problema do conflito entre a cláusula de transferência de
fundos, presente no BIT Suécia-Romênia no art. 5º (cláusula de livre transferência de
fundos) e a inteligência do art. 75 do TFUE, o qual versa sobre movimento de capitais e
pagamentos, ou seja, a liberdade de congelamento de fundos, ativos financeiros ou ganhos
econômicos por iniciativa do Parlamento Europeu e do Conselho. Além de violação ao art.
63, que proíbe as restrições a movimentos de capitais e pagamentos entre Estados-
Membros (que é o caso do BIT Suécia-Romênia) e entre estes e países terceiros. Sendo
aquela restrição em atenção ao princípio da não-discriminação.
Em quarto e último lugar figura a importância da cláusula de sobrevivência, a qual
consiste na previsão de continuação da vigência dos direitos materiais assegurada pelo
tratado, mesmo com o fim deste. É de se pontuar que tal cláusula não exclui a possibilidade
de revogação unilateral do acordo, mas atua modulando os efeitos deste término, o que
também é possível mesmo pela sua extinção por consentimento mútuo das partes.
A cláusula de sobrevivência é o período de doze meses contados do fim da
vigência natural da tratativa ou ainda da data de manifestação de uma das partes no sentido
de sua revogação. Dito de outra forma, esses dozes meses marcam o tempo no prazo no
qual as partes devem estipular quais direitos materiais continuam em vigor e em qual
prazo.
No caso em comento, a cláusula de sobrevivência se encontra prevista no art. 10,
o qual dispõe acerca da entrada em vigor, vigência e denúncia. O seu § 2º assegura que o
tratado estará em vigor por 20 anos, após os quais deverá permanecer em força até o fim de
um período adicional de intervalo, no qual caberá notificação entre as partes acerca de seus
interesses em denunciar o acordo. Em havendo esta denúncia, conforme disciplina o § 3º,
aqueles investimentos realizados antes da data da notificação permanecerão em vigor no
prazo dos vinte anos a contar da data de realização do referido investimento.
Ainda acerca desta temática, cumpre observar o princípio da confiança mútua,
pelo qual as partes podem decidir por suspender um tratado, retirar-se dele fundando-se no
consentimento mútuo, ou ainda terminá-lo. Assim, é possível concluir que pelo
consentimento as partes podem renegociar o tratado ou por fim nele mesmo que não se
tenha alcançado o período da cláusula de sobrevivência. Esta inteligência é retirada do art.
54 da Convenção de Viena de 1969 sobre o Direito dos Tratados, pelo qual a extinção ou
72
retirada de um tratado pode decorrer de duas hipóteses, quais sejam, por disposição do
próprio tratado ou por consentimento das partes após consulta das mesmas.
O término do tratado, por sua vez, evoca a questão de saber como ficam os
direitos de terceiros dele decorrentes. O que não reside em uma preocupação no BIT
Suécia-Romênia, haja vista que este tem natureza contratual. Ademais, o art. 37, § 2°, da
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados formula que “qualquer direito que tiver
nascido para um terceiro Estado nos termos do artigo 36 não poderá ser revogado ou
modificado pelas partes, se ficar estabelecido ter havido a intenção de que o direito não
fosse revogável ou sujeito a modificação sem o consentimento do terceiro Estado”. No
entanto, é preciso frisar que as partes terceiras na revogação de BITs são sempre pessoas
jurídicas e por isso não se beneficiam pelo texto do presente artigo.
Por fim, Daslquist, Lenk e Rönnelid86 concluem pela existência de dois fatores
responsáveis por caracterizar tais direitos como auxiliares, ou seja, não pertencentes ao
âmbito do regime objetivo. São eles o fato da cooperação econômica intentar em benefício
econômico na mutualidade das partes, além de buscar promover as relações econômicas
entre Suécia e Romênia87.
4.6.4 A CLÁUSULA DE TRANSFERÊNCIA DE FUNDOS
Seguindo o encadeamento de ideias, é preciso analisar mais atentamente a questão
da cláusula de transferência de fundos, pois o mesmo foi argumento da Comissão Europeia
no TJUE em duas oportunidades, uma em face da Suécia e outra em face da Áustria.
Os processos contam com extrema semelhança. Ambos versam sobre a ausência
de atuação suficiente por parte dos Estados para eliminar as incompatibilidades em relação
a cláusula de irrestrita liberdade de transferência de fundos, disposta em tratados bilaterais
de investimentos celebrados pela Suécia ou Áustria com países terceiros a União Europeia.
Segundo a inteligência do referido artigo, as previsões dos tratados não devem
causar prejuízo a direitos e obrigações daqueles acordos concluídos antes de 1º de janeiro
86 DAHLQUIST, Joel; LENK, Hannes Lenk; RÖNNELID, Love. The infringement proceedings over
intra-EU investment treaties – an analysis of the caseagainst Sweden (March 1, 2016). Swedish Institute
for European Policy Studies (SIEPS) 4epa, 2016. p. 9-10. Disponível em:
<http://www.sieps.se/sites/default/files/2016_4_epa_%20eng.pdf >. Acesso em: 29 jun 2016. 87 DAHLQUIST, Joel; LENK, Hannes Lenk; RÖNNELID, Love. The infringement proceedings over
intra-EU investment treaties – an analysis of the caseagainst Sweden (March 1, 2016). Swedish Institute
for European Policy Studies (SIEPS) 4epa, 2016. p. 3. Disponível em:
<http://www.sieps.se/sites/default/files/2016_4_epa_%20eng.pdf >. Acesso em: 29 jun 2016.
73
de 1958, ou, no caso dos Estados aderentes, entre Estados-Membros ou entre estes e
Estados terceiros. O ponto alto do artigo de Dahlquist, Lenk e Rönnelid é que no caso de
incompatibilidade entre os tratados, o Estado ou os Estados responsáveis por este conflito
se incumbirão dos meios adequados para elimina-lo. Em caso necessário, devem cooperar
entre si no fito de promover uma adaptação da legislação conflituosa.
De acordo com a Comissão das Comunidades Europeias, estão em causa os arts.
57, § 2º; 59 e 60, § 1º do Tratado CE, atuais arts. 64 e 66. O art. 61, § 1º, entretanto, não
encontra correspondência no TFUE.
O primeiro diz respeito a competência do Conselho, sob proposta do Parlamento,
para adotar, mediante processo legislativo ordinário, medidas relacionadas a circulação de
capitais, as quais envolvam como remetentes, ou como destinatários, países terceiros à
União Europeia. Em especial, engloba o investimento direto, o qual se inclui o
investimento imobiliário, seu estabelecimento e admissão no mercado de capitais.
O art. 59, por sua vez, se direciona a prever uma salvaguarda para circunstâncias
especiais, ocasiões em que o capital proveniente ou destinado a país terceiro ameace ou
chegue a causar graves entraves ao funcionamento da União Econômica e Monetária,
caberá ao Conselho, sob proposta da Comissão, e consulta do Banco Central Europeu
(BCE), a competência de suspender, por um período inferior a seis meses, o movimento de
capitais entre este país e o mercado interno da UE, iniciativa que deve se fundamentar em
extrema necessidade.
O art. 60, § 1º, do tratado que institui as Comunidades Europeias, se inicia logo
fazendo referência ao art. 301, pelo qual versa a tomada de medidas urgentes necessárias,
no sentido de interromper ou reduzir relações econômicas, com um ou mais países
terceiros decorrentes de ações no âmbito da política externa e de segurança comum.
Para o mencionado inciso, se faz mister uma leitura segundo a qual se tomou por
necessária a referida intervenção nas relações econômicas, de modo que cumpre ao
Conselho a tomada de decisão sobre medidas necessárias urgentes no tocante a movimento
de capitais e pagamentos.
A defesa da Áustria e da Suécia, com intervenção da Lituânia, Hungria e
Finlândia – e no caso da Áustria, também a Alemanha –, se concentra na ausência de
demonstração de que alguma infração ocorreu. Isso porque, no entendimento de tais países,
as Comunidades Europeias, até aquele momento, não haviam exercido sua competência
74
legislativa de impor restrições à liberdade de transferência e pagamentos, de modo que o
art. 307 teria uma interpretação limitada. Ou seja, existe uma incompatibilidade “futura e
eventual”, da qual resultaria que a Suécia só pode ser tida como violadora do art. 307 do
TFUE se o Conselho passar a exercer sua competência nesta matéria. Até então a
Comissão estaria se fundando em presunções, somente.
Ademais, aqueles Estados s levantaram a questão de que este último artigo se
remete a medidas urgentes necessárias, as quais não seriam passíveis de previsão em
momento anterior, a exemplo do contexto em que foram celebrados os BITs, que se deram
antes mesmo da adesão de tais países a União Europeia. Assim, argumentam de acordo
com a cláusula rebus sic stantibus.
O tribunal, enfim, se posicionou no sentido de que a Suécia e a Áustria faltaram
com a obrigação de se adequarem ao art. 307 do TFUE. Além do mais, colocou que as
normas restritivas da livre circulação de capitais devem ser acolhidas dentro de prazos
tempestivos, os quais possibilitem que tais medidas resultem em efeito útil. No entender do
Tribunal, isso significa aplicação imediata das decisões do Conselho, a fim de evitar
efeitos exorbitantemente incertos.
Por fim, o tribunal entendeu que mesmo os tratados bilaterais tendo sido
celebrados antes da entrada da Suécia e da Áustria na UE, eles são incompatíveis com o
direito desta e merecem sofrer adequação para permitir a implementação de medidas
restritivas a liberdade de movimento de capitais e pagamentos, em detrimento de uma
competência dos Estados-Membros para tanto.
O caso específico da Áustria guarda então uma peculiaridade, que é a afirmação,
pelo requerente, de uma alteração no modelo austríaco de BIT, sob o fito de incluir uma
cláusula do tipo “organizações internacionais de integração econômica regional” (OIIER).
Seu objetivo seria a previsão, nas tratativas austríacas de investimento, da possibilidade de
imposição pela União, de medidas restritivas a circulação de capitais.
Entrementes, o tribunal não tomou esta iniciativa como capaz de significar uma
observância ao art. 307 do TFUE, de modo que respondeu com a interposição de ação
junto ao Tribunal das Comunidades Europeias.
75
5. AS PECULIARIDADES DOS INVESTIMENTOS FRUTO DO TRATADO DA
CARTA DE ENERGIA
Para melhor abordar a relação entre a regulação do setor energético e o Direito
Internacional dos Investimentos, notadamente no âmbito da União Europeia, esta parte da
pesquisa será introduzida mediante três perspectivas. Primeiramente se abordará a temática
pelo seu viés histórico, em seguida por referências trazidas pelas ciências econômicas. Por
fim, a abordagem jurídica será evidenciada pelas determinações do Tratado da Carta da
Energia (ECT), nomeadamente pela problemática de diferendos, os quais serão ilustrados
pelos casos: AES v. Hungary e Electrabel v. Hungary, além de Vattenfall v. República
Federal da Alemanha.
O objetivo é apontar os conflitos oriundos do paralelismo entre a regulamentação
trazida pela União Europeia e pelo Tratado da Carta da Energia, de modo a saber se há um
ordenamento que se sobreponha ao outro, se ambas as normas necessariamente conflitam
entre si, ou ainda, se elas se coadunam pacificamente. A resposta a ser articulada tem
relação íntima no que tange aos efeitos gerados pela aplicação dos acordos de
investimentos em sede de tribunais internacionais para resolução de seus conflitos.
5.1 O investimento em energia
De acordo com Markus Krajewski88, a relação entre investimento e energia nasce
no contexto do processo de descolonização, sendo aprofundada pela desintegração dos
regimes comunistas radicados no leste europeu. Materialmente, o autor disserta que foi na
exploração e produção de petróleo que nasceram os primeiros casos de expropriação dos
recursos naturais, albergados pela proteção oriunda do IDE.
A problemática é sublinhada pela soberania territorial dos Estados de
acolhimento, o que faz face ao capital e a transferência de tecnologia proporcionada pelo
investidor. A verdade é que a energia constituiu, sobremaneira, um insumo vital ao
desenvolvimento das economias nacionais. Em decorrência disto é que se observa a
individualidade dos Estados em promover políticas energéticas particulares, as quais visam
se adequar às necessidades de seus respectivos mercados.
88 KRAJEWSKI, Markus. The Impact of International Investment Agreements on Energy Regulation. In:
HERRMANN, Christoph; TERHECHTE, Jörg Philipp. European Yearkbook of International Economic
Law 2012. Berlin: Springer, 2012.
76
Desta forma, a regulamentação de tais políticas padece em um movimento
pendular que vai do extremo protecionismo até a liberalização. O que se observa por
políticas de nacionalização da propriedade das empresas em energia. Ou, até mesmo, o
incentivo da concorrência neste mesmo mercado através da competitividade nos preços e o
intento de fornecer um maior acesso da população à energia, indo pela lógica da
autoregulação do mercado, a qual proporciona um ponto de equilíbrio em que todos os
atores envolvidos na relação se encontram na melhor situação possível.
Contudo, é preciso ter em mente possíveis falhas do mercado, momentos em que a
intervenção governamental se faz premente, tendo em conta o objetivo de reduzir as
externalidades negativas, a exemplo de se promover uma alocação mais eficiente da
energia.89
Feitas essas primeiras anotações, pontua-se que as políticas energéticas decorrem
da persecução de três objetivos pelas iniciativas estatais, quais sejam, a segurança e
suficiência do fornecimento de energia; o acesso universal à energia e a sustentabilidade e
proteção ambiental90.
5.2 A regulação da energia na União Europeia
O Conselho Europeu, por ocasião do documento “Estratégia Europa 2020”
estabeleceu cinco metas no tocante a energia. O primeiro deles diz respeito à eficiência
energética da Europa; o segundo, a integração de um mercado de consumidores e o alcance
da segurança energética, além do desenvolvimento do continente na liderança da
tecnologia e inovação no setor e, por fim, o fortalecimento das relações no âmbito do
mercado externo.
Em 2009 o Tratado de Lisboa, pelo art. 194, § 1º, já tinha alcançado quatro
objetivos semelhantes no tocante à matéria, indo além pelos compromissos com o
desenvolvimento de energias novas e renováveis, bem como pelo auspício de estabelecer a
interconexão de suas redes.
89 GRAMLICH, L. Regulating Energy Supranationally EU Energy Policy. In: HERRMANN, Christoph;
TERHECHTE, Jörg Philipp. European Yearkbook of International Economic Law 2012. Berlin:
Springer, 2012. p. 373. 90 KRAJEWSKI, Markus. The Impact of International Investment Agreements on Energy Regulation. In:
HERRMANN, Christoph; TERHECHTE, Jörg Philipp. European Yearkbook of International Economic
Law 2012. Berlin: Springer, 2012. p. 346-347.
77
Por outro lado, o Tratado da Carta da Energia lança como objetivo aos seus
signatários, em texto preambular, a execução do conceito básico subjacente à Carta
Europeia de Energia, pela qual teve sua origem. Além da observância do tratamento
nacional e do tratamento da nação mais favorecida no que toca aos investimentos
asseverados por acordo complementar. Ademais, objetiva a liberalização progressiva do
comércio internacional e a não-discriminação nos termos do GATT (General Agreement of
Tariffs and Trade). Visa por fim, entre outras, às barreiras técnicas, administrativas no
setor de comércio de energia.
Em seu art. 2º o Tratado Carta sintetiza todas estas ambições pela implementação
de um quadro jurídico no sentido de promover a cooperação, no longo prazo, do domínio
energético. Lastreia-se, para tanto, na complementariedade e benefícios mútuos positivados
por sua precursora.
Como pode ser percebido, as tratativas voltadas ao setor de energia foram
estabelecidas em momentos históricos próximos, evidenciando se tratar de objetivos
similares, Ernesto Bonafé e Gökçe Mete91 apontam que muitos conflitos se sucederam pela
existência de três instrumentos regulatórios possíveis: o Direito da União, os Tratados
Bilaterais de Investimento e o Tratado da Carta da Energia, Isso porque, como dito, tais
normativas se valem dos mesmos objetivos, quais sejam, competitividade, segurança e
sustentabilidade, porém o fazem em mercados de energia em diferentes estágios de
desenvolvimento. Daí porque se falar na existência paralela de um mercado interno de
energia pela União Europeia.
No que tange ao setor em tela, há de se ressaltar que o ECT é o primeiro acordo
multilateral que alberga tanto a proteção de investimento quanto matérias relativas ao
trânsito, ao comércio e ao meio ambiente. O tratado não se encontra adstrito somente a
países, nem tão-somente aos localizados no continente europeu. Podem figurar como
membros tanto Estados quanto organizações regionais de integração econômica, a exemplo
da União Europeia que, desta forma, o faz.
De caráter vinculativo, com foco na cooperação, comércio de materiais e produtos
energéticos, investimento, trânsito e resolução de conflitos, a eficácia de seu conteúdo é
91 BONAFÉ, Ernesto; Mete, Gökçe. Escalated interactions between EU energy law and the Energy Charter
Treaty. In: Journal of World Energy Law & Business (2016) 9 (3): 174-188. Disponível em: <
https://academic.oup.com/jwelb/article-abstract/9/3/174/2578757/Escalated-interactions-between-EU-energy-
law-and?redirectedFrom=PDF>. Acesso em 5 jun 2017.
78
posta à prova pelo ganho de competência da União Europeia em decorrência do Tratado de
Lisboa. Assim, não ao acaso, Graham Coop92 discute se a relação entre o Tratado da Carta
da Energia e a União Europeia não padeceria em um conflito inevitável, remontando as
divergências abordadas quanto ao direito comunitário e os acordos de investimento intra e
extra UE.
O ECT precede a personalidade jurídica da União Europeia, bem como a entrada
dos últimos países nesta organização, de modo que fica claro a vinculação do acordo não
somente com os primeiros membros, mas também com aqueles que entraram por último,
em geral países do Leste Europeu.
Seu caráter misto permite que albergue como signatários tanto a União quanto
seus Estados-Membros. Disto decorre a principal problemática dos investimentos
estrangeiros em energia, uma vez que, de acordo com Amélie Noilhac93, a existência
paralela do ordenamento europeu com o ECT faz suscitar questionamentos, mormente em
relação ao art. 351 do TFUE. Sua inteligência diz que em havendo incompatibilidades
entre acordos anteriormente celebrados e novas competências estabelecidas em favor da
UE, caberia aos Estados-Membros promover medidas adequadas para saná-las.
Entrementes, apesar de não ter sido criado anteriormente, o Direito da União
obteve uma resposta mais rápida para suas ambições, o que os autores creditam ao aspecto
supranacional da governança na União Europeia. O mesmo não pode ocorrer quanto ao
ECT, visto que este está inserido numa sistemática intergovernamental, caracterizada por
procedimentos mais longos e de cariz eminentemente político, marcado por decisões lem
unanimidade.
Como solução a esta assimetria é colocado que o ECT precisa, igualmente,
incorporar uma cláusula de REIO (Regional Economic Integration Organization), devido
ao fato de que um cariz regional seria levado em conta na resolução de divergências entre a
União Europeia e o ECT.
92 COOP, Graham. Energy Charter Treaty and the European Union: Is Conflict Inevitable?. Journal of
Energy & Natural Resources Law. London, p. 404-419. (?) 2009. p. 407-419. 93 NOILHAC, Amélie. Intra-EU arbitration under the Energy Charter Treaty: The European Union
competence in Foreign Direct Investment: fundamental change for intra-EU energy arbitration?. Strasburg:
Université de Strasburg, 2014/2015. 39 p. Disponível em: <http://ajis-
strasbourg.weebly.com/uploads/4/0/6/6/40666569/m%C3%A9moire_de_stage_a._noilhac.pdf>. Acesso em:
28 maio 2017.
79
Tendo em consideração a existência paralela destes ordenamentos, Christer
Söderlund94 pergunta se é inevitável um conflito entre acordos bilaterais de investimento, o
Tratado da Carta da Energia e o Direito da União Europeia, haja vista que aqueles dois
instrumentos de proteção de investimentos permitem o acesso a arbitragem internacional, o
que não é vislumbrado pelo Tratado de Lisboa, o qual não enfrenta diretamente a matéria.
Uma grande peculiaridade do Tratado da Carta é também um tratamento
diferenciado para os momentos pré e pós-estabelecimento. Isso porque, em suma, há a
previsão de normas de soft law para o pré estabelecimento, também denominado de fase de
admissão. Em contrapartida, o pós-estabelecimento é marcado pelas normas de promoção e
proteção de investimentos de cariz hard law, efetivando o objetivo pleno de liberalização
do comércio e investimentos voltados ao setor de energia.
5.3 Estudo de caso: Vattenfall v. República Federal da Alemanha
Caso que ilustra bem a arbitragem de investimentos sob a égide do Tratado da
Carta da Energia é o Vattenfall AB, Vattenfall Europe AG, Vattenfall Europe Generation
AG versus Federal Republic of Germany (ICSID Case No. ARB/09/6)95.
Em brevíssimo resumo96, trata-se de uma concessionária de energia, de
nacionalidade sueca, cujos investimentos foram dedicados a construção de usina de carvão
em 2004, em solo alemão, mais especificamente na cidade de Hamburgo, às margens do
Rio Elba. Acontece que o empreendimento suscitou bastante polêmica na sociedade alemã,
nomeadamente a respeito dos impactos ambientais que traria à água do rio, a exemplo da
variação do volume, da temperatura e do teor de oxigênio.
Nesta tônica, a autorização para início das atividades, concedida em 2008, veio
acompanhada por condições no sentido de fazer cumprir a Diretiva da Água da União
94 SÖDERLUND, Christer. The Future of The Energy Treaty Charter in The Context of the Lisbon Treaty.
In: Energy Dispute Resolution: Investment Protection, Transit, and the Energy Charter Treaty. Part II
- BITs, The ECT and EU is a conflict inevitable? Disponível em:
<http://www.vinge.com/Global/Publikationer/Artiklar/The%20future%20of%20the%20Energy%20Charter%
20Treaty%20in%20the%20context%20of%20the%20Lisbon%20Treaty.pdf>. Acesso em 28 maio 2017. 95 ICSID. Case Details: Vattenfall AB, Vattenfall Europe AG, Vattenfall Europe Generation AG versus
Federal Republic of Germany (ICSID Case No. ARB/09/6). Disponível em:
<https://icsid.worldbank.org/apps/ICSIDWEB/cases/Pages/casedetail.aspx?CaseNo=ARB/09/6&tab=PRO>.
Acesso em 28 maio 2015. 96 BERNASCONI, Nathalie. Background paper on Vattenfall v. Germany arbitration. International
Institute for Sustainable Development: Foreign Investment for Sustainable Development Program. Julho
2009. Disponível em: <http://www.iisd.org/pdf/2009/background_vattenfall_vs_germany.pdf>. Acesso em
28 maio 2015.
80
Europeia. Em contrapartida, a Vattenfall respondeu que tais condicionalidades deixavam o
projeto impraticável, bem como economicamente inviável. Ademais, a concessionária
alegou que a Alemanha estaria violando o Tratado da Carta da Energia, do qual consta
como signatária desde 1997. Apesar disto, não é possível constatar, de certeza, quais foram
os argumentos levantados pela empresa sueca, pois, de modo geral, os litígios de
investimentos tramitados em sede de arbitragem caracterizam-se pelo manto do sigilo,
carecendo-lhes de transparência e publicidade. Somado a este ponto está o fato de que as
partes se recusaram a comentar o ocorrido, mesmo findo o processo.
A doutrina aponta, então, que as reclamações levantadas pela empresa sueca
encontram base na garantia da não-expropriação – ou, no caso de expropriação indireta, a
observação do dever estatal de compensação –, e na garantia do tratamento justo e
equitativo.
De qualquer forma, Söderlund defende que à União Europeia é imprescindível um
sistema de proteção dos investimentos que, em último caso justificaria o uso da arbitragem
internacional, uma vez que sua derrogação prejudicaria o equilíbrio competitivo dos
investimentos oriundos da UE em face daqueles provenientes de terceiros países,
O ECT, assim como os acordos bilaterais promovem a proteção do investimento
pela via da arbitragem internacional o que, pela União Europeia deve ocorrer de modo
diverso, ou seja, pela submissão do conflito judicial por suas instituições, exigência que
não é bem recebida pelos investidores internacionais.
Então, questiona-se se seria o caso do ECT se submeter aos desígnios do Tratado
de Lisboa. Hipótese reforçada pelo fato de que, comumente, o Direito da União é
considerado hierarquicamente superior aos BITs. Teoria na qual é estimado como um
sistema autônomo, bem como uma ordem jurídica superior que deve ser imposta em
detrimento de outras. Entendimento que inclusive foi adotado pela decisão da Corte
Europeia de justiça no caso C-26/62 Van Grend & Loos, a qual avaliou o ordenamento
jurídico europeu como autônomo no panorama do direito internacional.
Söderlund, por sua vez, se coloca contra esta perspectiva, referenciando às normas
e jus cogens como aquelas unicamente capazes de derrogar uma norma de direito
internacional. É o que se confirma pela inteligência do art. 53 da Convenção de Viena
sobre Direito dos Tratados. Conclui, então, pela não ocorrência de conflito entre as
81
disposições do ECT e do Tratado de Lisboa, de modo que ambos podem coexistir mesmo
se verificado algum conflito, salvo aqueles que remetem às suas normas fundamentais.
Em seguida, observa que não necessariamente a coexistência de tratados de
investimento em âmbito intracomunitário vai de encontro a execução de um mercado
interno. No entanto, assume que não pode haver tratamento discriminatórios entre os
investimentos envolvidos, o que entende ser factível, caso os Estados afilados a um único
ordenamento assumam o compromisso de não desenvolver condutas conflitantes com às
disposições das tratativas aplicáveis. Entrementes, esta posição é passível de crítica uma
vez que um alinhamento de normas seja possível, mas dificilmente capaz de afastar o
surgimento de conflitos.
Ao abordar as problemáticas que tocam a livre circulação de fundos, Söderlund
explicita a diferença entre normas vigentes unicamente dentro da União Europeia e aquelas
relacionadas a acordos bilaterais ou mesmo ao ECT. Ele anota que a proteção do
investimento em âmbito intracomunitário ocorre pela atuação do judiciário nacional do
acolhedor, o que é visto pelos investidores como uma frágil garantia aos seus direitos. Em
contrapartida, a garantia à arbitragem internacional está assegurada pelos acordos bilaterais
de investimento e pelo ECT. Deste modo, o investidor se direciona a proteção que conceda
maior benefício aos seus investimentos, motivo pelo qual a União Europeia precisa manter
uma estrutura capaz de promover garantias de proteção em condições competitivas frente
àquelas obtidas fora de sua zona de atuação.
Quanto à negativa da necessidade de se manter a vigência do ECT entre os países
formadores do mercado interno da União Europeia, ainda não há uma decisão
jurisprudencial da UE sobre a matéria, subsistindo o questionamento se há uma supremacia
do Direito da União. Apesar desta pendência, é precisamente este o argumento usando
pelos Estados-Membros em tribunais competentes para avaliar conjunturas que decorrem
da violação de acordos de investimento em razão das responsabilidades de adequações
normativas pelos signatários da UE.
O que se observou doutrinariamente pelas pesquisas relativas às consequências do
Tratado de Lisboa foi propriamente o compromisso da União, nomeadamente da
Comissão, em pôr fim aos acordos que prevejam a arbitragem de investimentos. Todavia,
essa tendência não pode ser confirmada por completo devido à previsão deste mecanismo
já ratificado, em âmbito institucional europeu no que toca ao CETA.
82
Essa decisão política, entretanto, deve significar pouco em relação ao interesse de
operar um desmantelamento do ECT. O autor conclui que a União Europeia deve
considerar a opção de criar seu próprio mecanismo de resolução de conflitos com lastro na
arbitragem, o que definitivamente irá responder à questão pela qual o processo de
integração desta organização permitirá ou anulará a proteção de investimentos no horizonte
europeu.
No que tange em saber se há uma sobreposição pelo Direito da União frente a
outras tratativas, Söderlund adota um entendimento minoritário, contrário à supremacia.
Defende, que em um trade-off entre uma redução da responsabilidade de um Estado e um
menor nível de proteção, o melhor caminho seria permitir que cada membro da UE
estabeleça os limites da proteção que pretende oferecer. Solução que não parece ser
suficiente pois persistiria uma competitividade no seio do mercado interno da União.
5.4 As arbitragens de investimento em energia na Hungria: os casos AES e Electrabel
Ernesto Bonafé e Gökçe Mete discutem a questão sob a perspectiva
jurisprudencial oriunda do ICSID em dois casos que relacionam a Hungria e sua
participação tanto no ECT quanto na União Europeia.
Primeiramente, trata-se do caso AES v. Hungria em que este país teria violado o
direito do ECT ao instituir valores máximos a serem cobrados pela empresa inglesa AES
ao mercado húngaro consumidor de energia, de modo a resultar em um impacto negativo
aos investimentos diretos alocados pela companhia.
Em sua defesa, o Estado alegou que o contrato vigente entre as partes violaria o
Direito da União na medida em que não estava de acordo com os regulamentos atinentes
aos auxílios estatais. E que mesmo que o referido contrato tenha precedência a entrada da
Hungria na União Europeia, os investidores não possuíam o direito de legítimas
expectativas quanto à matéria.
A AES asseverou ainda que em havendo conflito entre as normativas energética e
europeia, deve prevalecer aquela que seja mais favorável ao investimento. O que, a seu
entender, ocorria pela inteligência do ECT.
Instado a resolver a controvérsia, o ICSID declarou ser competente quanto a
querela. No entanto, optou por não enfrentar a matéria diretamente, limitando-se a decidir
que não houve violação uma vez que o ato consistiu em uma política pública racional do
83
Estado húngaro fundamentado em seu direito soberano de regulação em seu território. Não
entendendo por qualquer articulação do fato litigioso com as decisões juridicamente
vinculativas da UE e rejeitando a disciplina do art. 351 do TFUE, bem como os artigos 16
e 18 do ECT,
Por sua vez, no caso Electrabel S.A. v. República da Hungria (ICSID Case Nº
ARB/07/19) o dissídio também se originou da decisão estatal de inobservar os termos
acordados em contratos de longo prazo (PPA) celebrados antes de sua adesão a UE, o que
fez em atenção a incompatibilidade com o direito desta no tocante aos auxílios estatais e,
por conseguinte, seus efeitos na distorção da concorrência.
O caso foi então levado pela Electrabel à apreciação do ICSID sob a aplicação do
ECT. A decisão tomada vai no sentido de que o referido acordo de energia não retira a
aplicabilidade do Direito da União enunciado pela Comissão Europeia. Desta feita, não
haveria de se falar em expectativas legítimas dos investidores com fulcro no Tratado da
Carta, até mesmo porque a Comissão se instituiu no âmago de uma Organização Regional
de Integração Econômica (REIO).
A grande inovação operada em decorrência deste caso foi a decisão pela
incompatibilidade entre as duas ordens jurídicas, tendo o Direito da União o condão de
superar as proteções substantivas oferecidas pelo ECT. Especificamente no caso de litígios
entre seus Estados-membros, deve, portanto, prevalecer a normativa de energia, enquanto
que quando se trata de Estados-membros frente a terceiros, deve ter lugar a vigência do
ECT.
É de se pontuar a participação da Comissão Europeia nos casos relatados ante a
qualidade de amici curiae, atuando sob perspectiva que a manutenção dos acordos de
longo prazo (PPA) poderiam restringir a concorrência na esfera de seu mercado interno.
Os autores de referido estudo atentam para o fato de que os tribunais responsáveis
pelos respectivos julgamentos parecem fugir de enfrentar as inconsistências materiais entre
os ordenamentos em tela, uma vez que ambos se alicerçam em objetivos semelhantes,
como foi demonstrado no início da discussão. Apesar desta ausência de posicionamento,
Bonafé e Mete97 afirmam que na existência de inconsistências materiais pela aplicação de
97 BONAFÉ, Ernesto; Mete, Gökçe. Escalated interactions between EU energy law and the Energy Charter
Treaty. In: Journal of World Energy Law & Business (2016) 9 (3): 174-188. Disponível em: <
https://academic.oup.com/jwelb/article-abstract/9/3/174/2578757/Escalated-interactions-between-EU-energy-
law-and?redirectedFrom=PDF>. Acesso em 5 jun 2017.
84
ambas as tratativas, deve se adotar uma interpretação que as contemple de modo
harmônico.
János Katona98 também se debruçou no estudo desta possível relação conflituosa
tendo por foco a resolução de diferendos, pela via investidor-Estado, sob a tutela de
aplicação do ECT entre os Estados-Membros da União. Seu trabalho teve por pano de
fundo um estudo de caso, com ênfase na sentença proferida na disputa entre a Electrabel e
a Hungria. Sua principal conclusão vai no sentido de três entendimentos emitidos pelo
tribunal, quais sejam, a legislação da UE está contida na esfera do Direito Internacional
Público e, portanto, aplicável a uma arbitragem decorrente do ECT, embora aquele
ordenamento tenha precedência sobre este, mesmo que a lei da UE não deva ser
obrigatoriamente aplicada às disputas que também envolvam a tratativa de energia.
No que tange ao pertencimento do Direito da União ao Direito Internacional
Público (DIP), o tribunal assinalou que aquele primeiro é de natureza múltipla e assim
deve ser considerado sob diferentes perspectivas conforme é o caso em concreto. Não se
declinou, desta forma, o pensamento pelo qual as normas da UE se constituem em um
sistema regional, mas estão relacionadas ao direito internacional, bem como as
consequentes obrigações que dela emana.
Especificamente quanto ao conflito entre UE e ECT, o tribunal se baseou no
entendimento mencionado para responder que os diferendos devem ser resolvidos pela
observância do DIP, embora que, como dito, a legislação da UE deve se sobrepor a do
ECT. Ademais, no tocante ao art. 351 do TFUE, discorreu que tratados multilaterais não
podem efetuar proteção entre seus Estados-Membros. Do mesmo modo decidiu que
acordos anteriores não tem o condão de assegurar direitos previstos, no sentido de
fortalecer o direito dos investidores.
No que diz respeito a arbitragem entre investidor e Estado, adiciona que o Direito
da UE não proíbe este tipo de resolução de conflitos, posto não haver qualquer disposição
nesta vertente. Destarte, uma arbitragem nestes modos não pode ser considerada
inaplicável pela UE. O que ocorre nesta seara é mesmo uma exclusão do uso deste
98 KATONA, Janós. The role OF EU law in ‘intra EU’ ISDS under the ECT – Some thoughts on the
Electrabel v. Hungary award. Elte Law Journal, nº 1, 2015. p. 57 e 63. Disponível em: <
http://eltelawjournal.hu/role-eu-law-intra-eu-isds-ect-thoughts-electrabel-v-hungary-award/>. Acesso em 28
maio 2017.
85
mecanismo quando se tratar de conflito decorrente da interpretação e aplicação do Direito
da União apenas na relação entre Estados.
Ademais, é imprescindível relatar que a União Europeia, ao tornar-se signatária
do Tratado da Carta da Energia aceitou a previsão quanto a realização de arbitragem no
viés investidor-Estado.
Por fim, János Katona observa que sendo reconhecido o mecanismo de resolução
de conflitos supra entre Estados-Membros da UE em aplicação do ECT, se vislumbra um
provável abandono da justificativa política, pelas quais os países deveriam substituir as
proteções albergadas pelos acordos de investimento em razão das normas institucionais,
substantivas e processuais previstas pelo Direito da União Europeia. Evidencia-se a
importância desta tendência pelo fato de que um em cada dez conflitos de investimentos,
que tem como parte algum signatário da UE, envolve reclamações de investidores
radicadas nos termos do ECT99.
5.5 A resolução de diferendos de investimento: o ECT e a UE
Para que toda a problemática exposta possa ser compreendida, faz-se mister
enunciar a Parte V do Tratado da Carta da Energia, a qual dispõe sobre a resolução de
diferendos.
Primeiramente ocorre a previsão no sentido de que o conflito seja resolvido por
meios amigáveis, as quais poderão dar lugar a outras medidas caso não se encontre um
denominador comum entre as partes decorridos três meses de sua solicitação. Assim, o
diferendo pode ser submetido ao crivo da justiça interna do contratante, ou seja, tribunais
civis ou administrativos, ou ainda por um meio anteriormente acordado pelas partes, além
do recurso a arbitragem ou conciliação internacionais.
O uso destes dois últimos mecanismos está condicionado a não submissão do
conflito pela justiça doméstica ou a algum outro meio já determinados pelas partes, casos
em que os contratantes não poderão dar seu consentimento incondicional para a realização
da arbitragem ou conciliação. Ademais, é exigido das partes uma declaração escrita de seu
consentimento.
99 KATONA, Janós. The role OF EU law in ‘intra EU’ ISDS under the ECT – Some thoughts on the
Electrabel v. Hungary award. Elte Law Journal, nº 1, 2015. p. 57 e 63. Disponível em: <
http://eltelawjournal.hu/role-eu-law-intra-eu-isds-ect-thoughts-electrabel-v-hungary-award/>. Acesso em 28
maio 2017.
86
Em se observando as referidas qualificações, o litígio pode ser encaminhado para
o ICSID na hipótese dos Estados envolvidos sejam signatários da Convenção de
Washington de 1965, da qual a União Europeia não consta como signatário, o que lhe
suscita a busca por uma solução institucionalizada nesta seara. Não cabendo a jurisdição
deste tribunal, outra alternativa se refere a arbitragem por um único árbitro ou por um
tribunal arbitral ad hoc sob os desígnios da UNCITRAL, pelo Regulamento de Arbitragem
da Comissão das Nações Unidas para o Direito do Comércio Internacional. Resta
igualmente a opção pelo Instituto de Arbitragem da Câmara de Comércio de Estocolmo.
Estes três recursos arbitrais, todavia, estão condicionados à ratificação, pelos
Estados envolvidos, da Convenção de Nova York de 1958 sobre o Reconhecimento e a
Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras.
Na obediência destes requisitos, o Tribunal competente deve julgar a matéria
conforme o tratado em óbice, bem como as regras e princípios do direito internacional,
proferindo sentença de cariz final e vinculativo.
No tocante aos efeitos de decisões tomadas em conflito sob as normas do ECT,
Anna de Luca disserta sobre a força executória direta das sentenças provenientes da
matéria de investimentos em energia no domínio dos Estados-Membros da UE. São,
portanto, auto executórias e promovem efeitos diretos tanto no que implica a União, quanto
aos Estados-Membros e seus ordenamentos jurídicos internos.
É importante sublinhar este efeito direto pois, apesar da abordagem monista
tradicionalmente adotada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, uma nova tendência
jurisprudencial, em alinhamento à lógica dualista de integração dos acordos de
investimento, vem ganhando substancial destaque.
Em aspecto conclusivo, Jan Kleinheisterkamp100 aponta duas soluções para o
conflito entre ECT e União. Um seria o burilamento de uma alternativa que conjugue a
permanência dos membros da UE através de uma espécie de modulação dos efeitos do
Tratado da Carta para o mercado interno da UE, por meio de novos acordos, o que não
acredita resultar suficientemente eficaz.
100 KLEINHEISTERKAMP, Jan. The Next 10 Year ECT Investment Arbitration: A Vision for the Future –
From a European Law Perspective. Law Society Economy: Working Papers, London, v. 2011, n. 7, p.1-19,
jun. p. 15. 2011. Disponível em: <https://www.lse.ac.uk/collections/law/wps/WPS2011-
07_Kleinheisterkamp.pdf>. Acesso em: 28 maio 2017.
87
A outra alternativa – a seu entender – supostamente mais onerosa, mas também
mais suscetível de gerar efeitos positivos, seria a renegociação da tratativa junto àqueles
signatários não-membros da UE. Isso porque, considera que as instituições da União não
detêm de competências para alterar seus próprios tratados, posto que dependem da
iniciativa de seus membros, consoante é a disciplina do art. 48 do TUE, § 2º, que diz que
“o governo de qualquer Estado-Membro, o Parlamento Europeu ou a Comissão podem
submeter ao Conselho projetos de revisão dos tratados”.
Portanto, é preciso observar que embora os Estados-membros, pela nova
competência sobre investimentos, não possam efetuar individualmente os termos de suas
renegociações, eles podem barrar a atuação da Comissão, o que seria possível caso não
houvesse aprovação pela maioria qualificada dos Estados.
Jan Kleinheisterkamp101 avalia ainda que dificilmente o TJUE, instado a decidir
sobre a matéria, o fizesse pela total incompatibilidade entre os tratados em comento, uma
vez que desde seus primórdios o ECT esteve relacionado aos membros do que é hoje a
atual União Europeia. Além do mais, o mesmo foi proposto e pensado pela própria
Comissão, que apesar de não ter se manifestado oficial e diretamente sobre a matéria, tem
sofrido especulação de que em momento oportuno pugnaria pelo fim do paralelismo entre
as tratativas. No entanto, é factível que o atual quadro possa resultar da eliminação da
relação intra-UE e ECT por decisão do TJUE em favor da prevalência do direito primário
europeu.
Na perspectiva deste trabalho, a grande inovação trazida pelo ECT foi mesmo a
previsão de uma “regra geral de solução de controvérsias relativas aos investimentos
através da arbitragem internacional102”, nesta tangente, inclui o mecanismo de solução de
litígios entre investidor e Estado, também denominado por ISDS (Investor-to-State Dispute
Settlement).
Na verdade, a Comissão, com base em seu posicionamento perante outros tratados
de investimento intra-UE, deve, provavelmente, estabelecer oposição quanto a vigência
paralela destes ordenamentos, por acreditar que a aplicação do ECT possa violar
101 KLEINHEISTERKAMP, Jan. The Next 10 Year ECT Investment Arbitration: A Vision for the Future –
From a European Law Perspective. Law Society Economy: Working Papers, London, v. 2011, n. 7, p.1-19,
jun. p. 15-16. 2011. Disponível em: <https://www.lse.ac.uk/collections/law/wps/WPS2011-
07_Kleinheisterkamp.pdf>. Acesso em: 28 maio 2017. 102 RIGONI, Giuliana Magalhães. A regulamentação dos investimentos internacionais no Tratado da Carta
da Energia. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, v. (?), n. 51, p.116-129, 2007.
jul.-dez.
88
normativas internas, posto que a previsão de arbitragem e da cláusula de livre transferência
de fundos devem dispensar, respectivamente, a atuação exclusiva do TJUE, além da
prerrogativa da própria Comissão em impor medidas restritivas à liberdade de capitais. O
que ocorreu pelo fato da Comissão não ter se antecipado ao atual nível de integração no
momento da negociação do ECT, implicando, agora, na falta de dispositivo no tocante a
uma cláusula de desconexão, a qual possibilitaria a inaplicação da normativa de energia no
âmbito intra-UE.
89
6. O NOVO PODER DECISÓRIO DO PARLAMENTO EUROPEU
Ainda em caráter das alterações operadas pelo Tratado de Lisboa, resta abordar a
referente ao Parlamento Europeu (PE). Neste sentido, alcunhou-se o termo
“Parlamentarização da PCC” para sinalizar a atuação efetiva desta instituição na política
europeia de investimentos estrangeiros. A bem da verdade, se constatou a superação do
“déficit democrático” que maculava a legitimidade das decisões tomadas no seio da União
Europeia em matéria de política econômica externa.
6.1 A nova PCC e o Parlamento Europeu
Antes o PE estava limitado a uma função meramente consultiva, cenário que foi
modificado para caracterizar um poder de decisão ou co-decisão. Essa mudança significa
que as atividades do PE passaram a ser regidas pelo procedimento legislativo ordinário,
cuja disciplina se encontra no art. 294 do TFUE. Segundo este, o referido delibera sob
proposta submetida pela Comissão, repassando sua posição ao Conselho que não
necessariamente irá acolhê-la. Em caso negativo, este mesmo artigo prevê a constituição de
um Comitê de Conciliação prévio a Terceira Leitura, ante a persistência de dissonância
entre Parlamento e Conselho nas Primeira e Segunda Leitura.
A importância de se ter em mente que a PCC, e todas as matérias que se inserem
em sua pasta, está submetida ao regime do procedimento legislativo ordinário é observar
ainda suas implicações em decorrência do artigo 218 do TFUE. Este dispositivo se coloca
no sentido de que a decisão do Conselho, pela celebração de um acordo, fica condicionada
à aprovação do Parlamento Europeu, dentre outros casos, quando à matéria de acordo seja
aplicável o processo legislativo ordinário.
Desta sorte, de um modo geral as atividades do Parlamento Europeu ficam
sintetizadas em: a) órgão de consultas; b) co-legislador junto ao Conselho; c)
monitorização dos acordos e políticas desenvolvidas pela Comissão; d) decisão, vide
aprovação de acordos relacionados à determinadas matérias (sujeitas ao processo
legislativo ordinário).
Com o advento do Tratado de Lisboa, o Parlamento Europeu (PE) também sofreu
um alargamento de competências, passando a figurar como co-decisor junto ao Conselho,
em matéria de medidas autônomas relacionadas a Política Comercial Comum, sobre a qual
90
decide em processo legislativo ordinário (art. 207, § 2º, do TFUE). Assim, sua aprovação é
fundamental para a negociação e conclusão de acordos comerciais e a Comissão tem o
dever de informar sobre os estágios de andamento do acordo, rumo a sua finalização. O
que o faz ao Comitê de Comércio Internacional do PE, o INTA (International Trade
Committee)103. Apesar desse reforço em sua importância, o Parlamento ainda careceu de
atuação, a exemplo da matéria no âmbito da PCC, a qual é iniciada por proposta da
Comissão enviada ao Conselho que decide sobre a pertinência dessa negociação.
A nova competência do Parlamento Europeu leva a implicação nos parlamentos
nacionais, os quais tem retirada a competência para a ratificação de acordos internacionais
da PCC. Com essa nova configuração não é mais necessária a transposição do Direito
Internacional, atual Direito da União, ao ordenamento jurídico interno. Consequentemente,
é visível a perda de influência de tais instituições em matéria comercial, o que leva alguns
autores a pôr em questionamento a legitimidade da própria PCC.
Entretanto o poder de influência dos Estados não é totalmente deixado de lado,
visto que ainda resiste a participação de seus peritos/especialistas em sede do Comitê de
Política Comercial (Trade Policy Committee) – também denominada por comissão especial
do Conselho e anteriormente à Lisboa por “Comissão 133” –, o qual pertence ao quadro
institucional do Conselho.104 Dentre suas competências está a de manter o PE e a Comissão
informados a respeito das negociações dos acordos internacionais. Ludmila Sterbová
qualifica a relação do PE com o TPC como algo one way, uma espécie de via de mão
única, pois ao Parlamento apenas são transmitidas informações quanto ao andamento dos
acordos sem que possa, portanto, ter o direito de intervir, nem de oferecer sua consultoria
para tanto.
A exigência do quórum de maioria qualificada (e não unanimidade, como ocorria
anteriormente) no processo legislativo é outro ponto de questionamento na órbita do
Parlamento Europeu, uma vez que permite que decisões sejam tomadas em desfavor de um
Estado, ou ainda contra seu interesse. Essa constatação põe em xeque o dever do
103 WOOLCOCK, Stephen. EU Trade and Investment Policymaking After the Lisbon Treaty.
Intereconomics 2010: Trade Policy. London School of Economics, UK. DOI: 10.1007/s10272-010-0321-z.
Disponível em: <https://www.ceps.eu/system/files/article/2010/02/22-25-Woolcock_0.pdf>. Acesso em 18
de maio de 2016. p. 2. 104 STERBOVÁ, Ludmila. Impacts of the Lisbon Treaty on the EU Trade Policy: Identification of
Possible New Problems related to the EU Competences, to the EU Membership in International
Organizations and to the Role of the European Parliament. Prague: E-leader Budapest, 2010. p. 3-4.
Disponível em: <https://www.g-casa.com/conferences/budapest/papers/Sterbova.pdf>. Acesso em: 28 maio
2017.
91
Parlamento de servir como contrapeso à Comissão e ao Conselho na representação dos
interesses dos Estados e de seu povo.
O Tratado de Lisboa inovou igualmente ao inserir, em benefício do Parlamento, o
poder de conceder ou negar consentimento para a aprovação de acordos provenientes da
PCC, conforme inteligência do art. 218, § 6º, alínea a, do TFUE, quando antes se
evidenciava apenas sua faculdade para consultas. Em âmbito interno há ainda o seu poder
de veto final. Entrementes, essa nova competência se encontra limitada a aplicação
quando tais acordos são executados provisoriamente, contexto em que o Parlamento não
tem qualquer atuação via consentimento. Isso porque em caráter provisório há somente a
decisão do Conselho baseada em proposta da Comissão quanto a sua aplicação, conforme o
art. 218, § 3º, do TFUE.
Apesar da exceção citada, é pacífico que as novas competências do PE foram
fundamentais para determinar uma política comercial democratizada, pois seu controle em
relação aos acordos comerciais insere, de modo gradual, legitimidade a PCC. Essa
democratização e legitimação decorre principalmente de o fato deste órgão ser composto
por representantes dos cidadãos, os eurodeputados105.
Em relação a diminuição do poder de influência dos Estados, há uma colocação
no sentido da não redução substancial do déficit de legitimidade democrática na PCC, de
modo que a mesma tenha ficado mais federal, contudo questionavelmente mais
democrática nas relações econômicas externas106. Assim Krajewski conclui que Lisboa
aperfeiçoou questões democráticas do direito constitucional proveniente do Tratado de
Nice em relação a PCC, a exemplo da simplificação das regras de votação, o que ocorreu
tomando-se como panorama os procedimentos legislativos do mercado interno, muito
embora tenha inserido novas problemáticas.
6.2 A articulação do Parlamento com as outras instituições europeias
Outras mudanças também foram feitas, a exemplo do orçamento europeu e ao
número de eurodeputados. Além de diversas que, no entanto, não se ligam ao PCC.
105 LORENTZ, Adriane Cláudia Melo. O Tratado de Lisboa e as reformas nos Tratados da União
Europeia. Editora Unijuí: Ijuí, 2008. 106 Krajewski, Markus, The Reform of the Common Commercial Policy (December 30, 2010).
EUROPEAN UNION LAW AFTER THE TREATY OF LISBON, A. Biondi & P. Eeckhout, eds.,
Forthcoming. p. 2-8. Disponível em <file:///C:/Users/marin/Downloads/SSRN-id1732616.pdf>. Acesso 28
maio 2017.
92
O Tratado de Lisboa deu também igualdade de importância entre o PE e o
Conselho em relação a adoção do orçamento da União, uma vez que anteriormente à
tratativa somente o Conselho tinha o poder decisório quanto as despesas obrigatórias.
Atualmente compete a Comissão a elaboração do projeto de orçamento, o qual será
efetivamente elaborado pelo PE e pelo Conselho por processo legislativo especial.
Inseriu igualmente o chamado controle político, pelo qual o PE passou a escolher,
por indicação do Conselho, o presidente da Comissão Europeia.
Por fim, limitou o número de eurodeputados, fixando na quantidade de 750, afora
seu próprio presidente. A restrição quantitativa se aplica igualmente no caso de adesão de
novos membros, quando o número distribuído a cada país sofrerá reestruturação.
Atualmente a divisão é feita mediante o número de 6 deputados, para países menores, e 96
para o mais populoso deles, a Alemanha. Entretanto essa distribuição não é diretamente
proporcional ao número de população.
O Conselho figura como principal ator no contexto de tomada de decisões da UE
em matéria de política comercial, cumpre a ele decidir pela assinatura, aplicação provisória
e conclusão quanto aos acordos relacionados a PCC.
Já a Comissão é a guardiã do Tratado de Lisboa, o qual alterou suas funções em
pouca intensidade, pois esta instituição continua desempenando seu papel de negociadora
dos acordos comerciais e executora da política comercial. Sua principal alteração,
entretanto, ocorreu mediante implementação de um novo sistema de comitologia.107
Apesar de não estar prevista explicitamente em nenhum tratado, o referido
consiste em um instrumento recorrente na operacionalização da União Europeia. A
comitologia se fundamenta como um recurso à atividade de experts sobre matérias
específicas que dizem respeito a União. Seu desenvolvimento representa um mecanismo de
controle do desempenho da Comissão em relação aos poderes que lhe são delegados pelo
Conselho e pelo Parlamento Europeu na adoção de atos tomados em co-decisão (processo
legislativo ordinário, PLO).
Mesmo possuindo um desígnio voltado ao controle, a comitologia é alvo de
muitas críticas, como a complexidade e a falta de transparência de suas atividades. Por isso
mesmo o Tratado de Lisboa não alcançou orquestrar mudanças suficientes para a total
107 HOFFMEISTER, Frank. The European Union's Common Commercial Policy a year after Lisbon: SEA
change or business as usual?. In: KOUTRAKOS, Panos (Ed.). The European Union’s external relations a
year after Lisbon. The Hague: Cleer, 2011. p. 83-95. (CLEER WORKING PAPERS 2011/3). p. 94-95
93
credibilidade neste mecanismo, da qual resulta a previsão por diversos estudiosos, de que
novas reformas precisarão ser realizadas.
Há basicamente duas linhas de pensamento que respondem ao seu surgimento e
funcionamento. O primeiro deles se alicerça no institucionalismo sociológico e
construtivismo de autores como Joerges e Neyer, Dehousse e Wessels108; o segundo, a
teoria da escolha racional, em Steunenberg, Pollack, Ballman e Franchino. Para aquele, a
comitologia se apresenta como um fórum de especialistas focados na resolução de
problemas políticos, enquanto este acredita tratar-se de uma espécie de Conselho de
Ministros em proporção reduzida109.
A comitologia tem seu marco inicial no art. 155, § 4º110 da Comunidade
Econômica Europeia, a qual, entretanto, silenciou em determinar os casos possíveis de
delegação de poderes pelo Conselho e também no tocante à instalação de mecanismos de
controle. Sua primeira reforma foi então oriunda do Ato Único Europeu (Single European
Act, SEA), de 1986. Nesta ocasião o instituto da delegação de poderes passou a ser
regulado pelo art. 202, §3º111. No mesmo contexto foi introduzida uma distinção
esclarecendo os procedimentos consultivo, de gestão e de regulamentação, além do
procedimento de salvaguarda. O Tratado de Maastricht, por sua vez, inseriu o
procedimento de co-decisão legislativa entre o Conselho e o Parlamento, atualmente
denominado por processo legislativo ordinário (PLO).
108BLOM-HANSEN, Jens. The EU Comitology System: Taking stock before the New Lisbon
Regime. Journal of European Public Policy. London, p. 607-617. jun. 2011. p.612. 109 BLOM-HANSEN, Jens. The EU Comitology System: Who Guards the Guardian?. Aarhus, Denmark:
Citeseer, 2008. 33 p. p. 4-5. Disponível em:
<http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/summary?doi=10.1.1.554.1475>. Acesso em: 28 maio 2017. 110 A fim de garantir o funcionamento e o desenvolvimento do mercado comum, a Comissão:
- Assegura a aplicação das disposições do presente Tratado e das medidas tomadas pelas instituições por
força deste último,
- Formula recomendações ou pareceres sobre as matérias que são objeto do presente Tratado, caso este
último preveja expressamente ou se a Comissão considerar necessário,
- Ter o seu próprio poder de decisão e participando na formação dos atos do Conselho e da Assembleia em
conformidade com o presente tratado,
- Exerce a competência que o Conselho confere, para a execução das regras que estabelece. 111 Tendo em vista garantir a realização dos objetivos enunciados no presente Tratado e nas condições nele
previstas, o Conselho:
- Assegura a coordenação das políticas económicas gerais dos Estados-Membros,
- Dispõe de poder de decisão,
- Atribui à Comissão, nos atos que adopta, as competências de execução das normas que estabelece. O
Conselho pode submeter o exercício dessas competências a certas modalidades. O Conselho pode igualmente
reservar-se, em casos específicos, o direito de exercer diretamente competências de execução. As
modalidades acima referidas devem corresponder aos princípios e normas que o Conselho, deliberando por
unanimidade, sob proposta da Comissão e após parecer do Parlamento Europeu, tenha estabelecido
previamente.
94
A inovação, entretanto, não fez cair as rivalidades institucionais, principalmente
quanto as provenientes do Parlamento Europeu, o qual vindicava direitos iguais àqueles
concedidos a Comissão. Essa disparidade só começou mesmo a ser sanada pela decisão
paradigmática do Conselho de Ministros em 1999, o qual procedeu a determinação de
algum controle, dos atos delegados à Comissão, em benefício do PE. A paridade,
entretanto, só veio a ser instituída pelo advento do Tratado de Lisboa, o qual promoveu
legitimidade democrática ao sistema pela remoção do domínio exercido pelo Conselho no
processo de tomada de decisão, a exemplo desta instituição não mais constar como
instância recursal da Comissão em matéria de atos de execução.
A atuação do Parlamento na comitologia passou a ser marcante em 2006 com o
procedimento de regulamentação com controle, compondo definitivamente o processo de
tomada de decisões em matéria delegada. Antes disso, entretanto, suas atividades eram
pífias no contexto em comento.
Na seara do controle, as três instituições apresentam posturas discordantes. A
Comissão e o Parlamento optam por regras mais permissivas ao controle da comitologia,
enquanto o Conselho acredita em regras mais estritas. Neste sentido, o PE é favorável a
implementação de mecanismos tradicionais de controle, a exemplo dos direitos de reexame
e revogação, o Conselho, por sua vez, credita às atividades de peritos para desempenar o
controle sobre a Comissão.
O sistema de comitologia opera sob regras distribuídas em quatro níveis. O
primeiro deles emana dos Tratados da União Europeia, de modo que atua delineando o
funcionamento do referido sistema. O segundo nível implica em regras de enquadramento,
as quais obram com base nas disposições das tratativas, embora seu desempenho decorra
diretamente de legislação ordinária proveniente de decisões do Conselho, em especial o
Conselho de Ministros nos anos de 1986, 1999 e 2006. Assim, a aplicação de um
determinado procedimento de comitologia deve decorrer de decisões do Conselho.
O terceiro nível discorre sobre a decisão pela qual o comitê deve ser instalado
para o debate de uma delegação de poderes, o que é tomado em avaliação do caso em
concreto.
Enfim, o quarto nível se dedica às práticas dos trabalhos formais e informais nos
comitês, os quais são presididos pela Comissão, responsável por fornecer assistência do
secretariado e, ainda, podendo atuar como mediador informal e advogado político
95
As mudanças operadas pelo Tratado de Lisboa podem ser observadas segundo
dois patamares. O primeiro é aquele da revogação do referido art. 202, de modo a
introduzir uma nova hierarquia de normas. Se antes as atividades delegadas da Comissão
se encontravam submetidas ao procedimento de regulamentação com controle, agora este
controle é efetuado mediante dois novos mecanismos, quais sejam, um direito de
revogação e um direito de oposição, como disposto no art. 290 do TFUE.
O segundo patamar, por sua vez, desloca as regras de enquadramento tomadas
mediante decisões de comitologia do Conselho na seara do procedimento de consulta.
Agora essas regras passam a assumir a forma de regulamentos oriundos do procedimento
legislativo de co-decisão, de modo a conceder mais influência a atuação do Parlamento.
Essa inovação, frise-se, é legado das negociações tomadas no seio do malogrado Tratado
Constitucional de 2004.
Ademais, como pontuado por Fausto de Quadros112, o Tratado de Lisboa retirou a
competência executiva do Conselho: não há mais razão de se falar em delegação de
competência executiva. Com Lisboa, a Comissão passou a ter competência executiva
própria e, por conseguinte, não mais delegada pelo Conselho.
6.3 Considerações acerca da nova processualística adotada pelo PE
Como referido em diversas ocasiões, é mister esclarecer o processo de tomada de
decisão nos moldes de co-decisão entre o Parlamento Europeu e o Conselho, ora
denominado por processo legislativo ordinário (PLO), o qual se caracteriza por uma
complexidade oriunda de três fases de leitura da proposta legislativa.
A primeira leitura se inicia em sessão plenária do Parlamento, a qual obtém
aprovação da proposta pelo quórum de maioria simples, mesmo que haja alteração no texto
da referida. A proposta segue então para o Conselho que deverá votar em maioria
qualificada pela aprovação. O texto retorna ao Parlamento com as explicações sobre a
decisão tomada, tanto pela aprovação, quanto rejeição, e ainda mediante alterações
realizadas. A Comissão deve igualmente emitir parecer a respeito de seu entendimento
sobre o assunto.
A segunda leitura se inicia pelo retorno do texto ao Parlamento, que obterá
aprovação do mesmo mediante sua maioria simples. Em havendo rejeição do PE quanto à
112 QUADROS, Fausto de. Direito da União Europeia: Direito Constitucional e Administrativo da União
Europeia. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2013. p. 629.
96
postura tomada pelo Conselho, pelo quórum de maioria absoluta, tem-se por resultado um
projeto de lei malogrado, restando ainda a possibilidade de o Parlamento propor alterações
ao que foi apresentado pelo Conselho, de modo que incumbe à Comissão igualmente
proceder com a emissão de parecer no tocante as mudanças operadas.
Assim, o texto segue para uma segunda leitura no Conselho, o qual pode aprová-
lo por maioria qualificada, devendo, no entanto, proceder unanimamente quanto àquelas
alterações tomadas em parecer negativo da Comissão. Em sendo o caso de rejeição do
texto do Parlamento pelo Conselho, o processo segue pela instauração de um Comitê de
Conciliação, o qual será composto pelo número igual de membros das duas instituições,
tendo a Comissão o papel de moderação deliberativa. No contexto do referido Comitê,
imperará suas próprias regras de votação.
No caso de a Comissão não observar acordo quanto ao texto em análise, a
proposta legislativa terá definitivamente falhado. Em contrário, havendo acordo entre o
Conselho e os eurodeputados, segue o procedimento para sua terceira fase, cujo objetivo é
o alcance de um texto comum. Há uma diferença de quórum entre as instituições para a
aprovação final do texto. O Parlamento deve deliberar no sentido da maioria expressa dos
votos, enquanto o Conselho, pela maioria qualificada.
Cabe ainda esclarecer a tramitação da negociação dos acordos comerciais
internacionais, inseridas no âmbito da PCC, tomando como fonte o texto de Stephen
Woolcock113. No comércio, e após Lisboa, também nos IDE, a Comissão produz uma
espécie de projeto de diretriz, delineando as posições dos Estados-Membros, bem como as
posturas assumidas pelos mercado e sociedade civil. Então o texto procede a consulta junto
ao Parlamento Europeu, de modo que as negociações comerciais são geralmente um
processo interativo, cada uma daquelas posturas ou acordos tomados em negociações
prévias, se destina a informar os entendimentos dentro da seara da União Europeia.
O projeto de diretriz articulado pela Comissão é discutido na TPC (Comitê de
Política Comercial), cuja nomenclatura em inglês se remete a Trade Policy Committee. O
referido consiste em uma instância preparatória do Conselho no tocante ao comércio. O
TPC se encontra disposto no art. 207, § 3º:
113 WOOLCOCK, Stephen. Trade Policy: Policy-Making after Treaty of Lisbon. In: WALLACE, Helen;
POLLACK, Mark; YOUNG, Alasdair R. (ORG.) Policy-Making in the European Union. The New
European Union Series. 7 ed. Oxford: Oxford University Press, 2015. p. 394-397.
97
Artigo 207. (ex-artigo 133 do TCE)
2. O Parlamento Europeu e o Conselho, por meio de regulamentos adotados de
acordo com o processo legislativo ordinário, estabelecem as medidas que
definem o quadro em que é executada a política comercial comum.
3. Quando devam ser negociados e celebrados acordos com um ou mais países
terceiros ou organizações internacionais, é aplicável o artigo 218º, sob reserva
das disposições específicas do presente artigo.
Para o efeito, a Comissão apresenta recomendações ao Conselho, que a autoriza
a encetar as negociações necessárias. Cabe ao Conselho e à Comissão assegurar
que os acordos negociados sejam compatíveis com as políticas e normas internas
da União.
As negociações são conduzidas pela Comissão, em consulta com um comité
especial designado pelo Conselho para assistir nessas funções e no âmbito das
diretrizes que o Conselho lhe possa endereçar. A Comissão apresenta
regularmente ao comité especial e ao Parlamento Europeu um relatório sobre a
situação das negociações.
4. Relativamente à negociação e celebração dos acordos a que se refere o nº 3, o
Conselho delibera por maioria qualificada.
Relativamente à negociação e celebração de acordos nos domínios do comércio
de serviços e dos aspetos comerciais da propriedade intelectual, bem como do
investimento direto estrangeiro, o Conselho delibera por unanimidade sempre
que os referidos acordos incluam disposições em relação às quais seja exigida a
unanimidade para a adoção de normas internas. [grifos nossos]
Portanto, o TPC é um comitê na órbita do Conselho e tem por função aconselhar e
assistir a Comissão na negociação e na celebração de acordos comerciais, principalmente
nos seguintes aspectos: matéria atinente a OMC, relações comerciais bilaterais, e novas
disposições oriundas do Tratado de Lisboa e relativas a PCC, na condição de serem
matérias que devam passar pelo crivo do Conselho.
Os seus membros efetivos se reúnem uma vez por mês, enquanto seus suplentes,
uma vez por semana. Há ainda uma menção a formação diversa do TPC, a qual se destina a
debates relativos a serviços e investimento, cabendo-lhe igualmente aconselhar a Comissão
em suas negociações no âmbito da OMC e também com países terceiros. Na hipótese desta
formação, suas principais competências residem em acordos de comércio de serviços,
investimentos e proteção de investimentos, bem como tais matérias quando inseridas no
contexto de acordos de livre comércio. O TPC tem sua presidência por eleição entre os
membros do Conselho (Chefes de Estado e de Governo dos países da EU), sendo seu
secretariado provido pela Comissão.114
As análises de propostas legislativas seguem ao COREPER que é o Comitê dos
Representantes Permanentes, ainda no Conselho, composto por embaixadores dos Estados-
114 Comitê de Política Comercial. Disponível em: < http://www.consilium.europa.eu/pt/council-
eu/preparatory-bodies/trade-policy-committee/>. Acesso em 01 de junho de 2016.
98
Membros, cujo desígnio se direciona a uma instância de diálogo e de controle político. Sua
atuação reside no exame prévio dos processos a serem apreciados pelo Conselho.
A diretriz formal é então adotada pelo FAC (Conselho das Relações Exteriores),
devendo a Comissão relatar regularmente o desenvolvimento de suas atividades ao
Parlamento por meio do Comitê de Comércio Internacional (INTA). Com o Tratado de
Lisboa, o referido órgão se tornou mais ativo e passou a buscar moldar os posicionamentos
e, consequentemente, a diretriz formulada no âmbito da Comissão.
Entretanto, o art. 218, § 2º, do TFUE, afirma explicitamente que é o Conselho que
reúne o direito de autorizar as negociações dos acordos, bem como determinar suas
diretrizes. O Parlamento, por sua vez, não possui qualquer poder formal sobre a diretriz de
negociação. Nesse cenário, válido é estabelecer uma comparação com o papel do
Congresso estadunidense.
Em muitos aspectos o reforço do papel do PE torna o mesmo muito próximo ao
papel desempenhado pelo Congresso estadunidense, com uma diferença, que é a
autorização de negociações e garantia de um tempo limite concedido ao Executivo daquele
país.
Embora o PE não possua poder formal para determinar os objetivos a serem
perseguidos pelas negociações europeias em acordos comerciais internacionais, o mesmo
detém de um poder de veto, como já mencionado. Ademais, as atividades europeias de
negociação não possuem um tempo limite, podendo o Conselho alterar os intentos da
negociação, bem como o prosseguimento das mesmas. Entretanto, o Parlamento pode
compensar sua falta de poder formal com a realização de compromissos políticos a partir
da Comissão ou do Conselho na negociação de objetivos no decorrer das consultas
públicas.
Cumpre à Comissão a titularidade das negociações de acordos comerciais e de
investimentos – pois abarca todo o âmbito da PCC – em representação da União Europeia
e dos Estados-Membros. Assim, incumbe a ela realizar reuniões, no contexto da TPC,
órgão mais importante em termos de comércio.
Com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, a Comissão adquiriu a
responsabilidade de reportar as atividades desempenhadas no horizonte do TPC ao
Parlamento, mais especificamente ao INTA. Também incumbe a Comissão o encargo de
99
relatoriar aos Estados-Membros os contatos informais realizados com os possíveis
parceiros comerciais.
O Conselho pode direcionar à Comissão questões no decorrer das negociações,
embora na maioria dos casos novas iniciativas de alteração são resultado de proposições da
Comissão, as quais seguem para análise no TPC. Caso a proposta não receba o apoio
necessário, o presidente deste comitê devolve o texto a Comissão.
Embora o tratado disponha em deliberação por maioria qualificada dos votos
(QMV) – unanimidade para matéria de IDE –, o TPC dificilmente procede a uma votação
formal, preferindo basear sua tomada de decisão pelo consenso. O uso desde recurso de
votação significa, no entanto, que os Estados seguem no sentido de considerar que a
possibilidade, de uma votação de fato, os fariam reunir esforços para evitar que
assumissem posições isoladas ao ponto de explicitar a qualidade de minoria, daí então a
opção pelo consenso.
Como visto, o centro da política comercial da União Europeia reside na dinâmica
entre a Comissão, os Estados-Membros, o Conselho e o Parlamento Europeu. O principal
mecanismo de articulação é aquele pelo o qual os governos dos Estados atuam em foco
principal, tendo a Comissão como seu representante e no desígnio de absorver, com grande
fidelidade, aquilo que transcorre no panorama da União.
Entrementes, não cabe aos Estados somente estipular os objetivos e ratificar os
termos acordados, também lhes compete manter as negociações próximas aos seus
interesses. Deste modo, é possível avaliar o bom desempenho quando se constata a boa
comunicação e articulação entre as referidas instituições, além da acreditação da Comissão
como negociador frutífero e legítimo representante.
A mesma deve agir, segundo critérios de flexibilidade, mediante postura técnica
em relação às negociações de política comercial, para tanto se destaca o TPC. Cabe-lhe
igualmente neutralizar o surgimento de quaisquer questões sensíveis no sentido de evitar
uma politização das discussões. Apesar disso, em havendo insatisfação de qualquer
membro quanto a condução das negociações na Comissão, cumpre a este iniciar uma
discussão quanto a querela no âmbito do Conselho, junto ao TPC.
Apesar da referida possibilidade, em geral as questões comerciais são aprovadas
pelo crivo do Conselho sem que haja qualquer debate. Questões sensíveis ao Parlamento
100
são aquelas que decorrem de fortes posicionamentos políticos e ideológicos, a exemplo dos
direitos humanos e do desenvolvimento sustentável.
101
7. AS NORMAS DO INVESTIMENTO DIRETO ESTRANGEIRO NA UNIÃO
EUROPEIA
A partir da década de 1960 iniciou-se o desenvolvimento dos princípios gerais do
investimento internacional, os quais se totalizam em três grupos, de acordo com as
matérias versadas, quais sejam, processamento, distribuição e, proteção e garantia. Tais
normativas continuam até hoje como fonte do direito dos investimentos, procedendo a
noções de tratamento, proteção e garantia.
7.1 O tratamento
O tratamento abrange as regras e princípios do direito nacional e internacional que
se relacionam ao regime jurídico do direito dos investimentos desde antes da efetiva
realização do aporte, até a liquidação deste. As disposições acerca do tratamento podem
ocorrer tanto em virtude do investidor, quanto do próprio investimento. Pela doutrina
clássica115, são três os princípios que residem sob o manto do tratamento: a) o tratamento
justo e equitativo; b) o tratamento nacional; e, c) o princípio da nação mais favorecida.
O tratamento justo e equitativo, para parte da doutrina, se confunde e torna-se
sinônimo do mínimo internacional, a exemplo de Karla Closs Fonseca116. Para outra parte,
os dois conceitos são imiscíveis. Esta corrente doutrinária pressupõe que consistindo no
mesmo instituto, haveria a expressa disciplina legal no espeque de sinalizar qualquer
interpretação em contrário. A lei, em geral, silencia.
Para Vital Moreira117 existe algo denominado por “padrões de tratamento dos
investidores” que remete à concretização dos princípios de direito internacional geral, o
qual se relaciona ao tratamento dos investimentos estrangeiros. Assim, diferentemente de
como entende Karla Closs Fonseca, o princípio do tratamento justo e equitativo estaria
abarcado por este padrão geral.
Por fim, cumpre ressaltar, que ao inverso dos princípios a serem comentados a
seguir, o tratamento justo e equitativo é aquele que oferece maior proteção ao investidor
115 CARREAU, Dominique; JUILLARD, Patrick. Droit internacional économique. 5. ed. Paris: Dalloz,
2013. p.499-500. 116 FONSECA, Karla Closs. Investimentos Estrangeiros: Regulamentação Internacional e Acordos
Bilaterais. Curitiba: Juruá, 2010. p. 114. 117 MOREIRA, Vital. Respublica Europeia: Estudos de Direito Constitucional da União Europeia. Coimbra:
Coimbra, 2014. p. 341-343.
102
por possuir caráter absoluto, vez que não é passível de variação. Seu conteúdo é fixo, não
se altera ante o ordenamento jurídico que congrega118.
O tratamento nacional profere uma igualdade formal, no contexto do ordenamento
jurídico interno do país receptor do investimento, entre o investidor nacional. Assim, fala-
se em tratamento não menos favorável119 ao disposto ao investidor nacional. Em outras
palavras, a cláusula do tratamento nacional tenciona que os Estados receptores não
protejam suas economias em relação aos investimentos estrangeiros que ali adentram.
O GATT 1947, embora sem visionar o Direito Internacional dos Investimentos,
estabeleceu um conceito para o princípio do tratamento nacional, fazendo-o com foco na
tributação e regulamentação em âmbito interno. Nada obstante, a conceituação outrora
operada é bastante válida em aspectos didáticos, conforme se destaca de seu art. III:
1. As Partes Contratantes reconhecem que os impostos e outros tributos internos,
assim como leis, regulamentos e exigências relacionadas com a venda, oferta
para venda, compra, transporte, distribuição ou utilização de produtos no
mercado interno e as regulamentações sobre medidas quantitativas que exijam a
mistura, a transformação ou utilização de produtos, em quantidade e proporções
específicas, não devem ser aplicados a produtos importados ou nacionais, de
modo a proteger a produção nacional.
2. Os produtos do território de qualquer Parte Contratante, importados por outra
Parte Contratante, não estão sujeitos, direta ou indiretamente, a impostos ou
outros tributos internos de qualquer espécie superiores aos que incidem, direta
ou indiretamente, sobre produtos nacionais. [grifos nossos]
A mitigação da cláusula de tratamento nacional é possibilitada em alguns casos
excepcionais, a exemplo daqueles ligados à matéria tributária, de propriedade cultural e da
indústria cultural, além da previsão de exceção para os casos de concessão de tratamento
recíproco, questões de saúde, ordem e moral pública e de segurança nacional120.
Uma exceção que merece destaque frente às demais, no panorama do tratamento
nacional, é a cláusula de desenvolvimento. Essa excepcionalidade se radica na assimetria
econômica entre os países, a fim de conceder maior flexibilidade aos Estados não-
desenvolvidos receptores de investimentos. A cláusula permite uma maior margem para a
118 FONSECA, Karla Closs. Investimentos Estrangeiros: Regulamentação Internacional e Acordos
Bilaterais. Curitiba: Juruá, 2010. p. 108-114. 119 2 Acerca do termo “não menos favorável”, o Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT
47), assim coloca em seu art, III, § 2º: “Os produtos do território de qualquer Parte Contratante, importados
por outra Parte Contratante, não estão sujeitos, direta ou indiretamente, a impostos ou outros tributos internos
de qualquer espécie superiores aos que incidem, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais”. 120 FONSECA, Karla Closs. Investimentos Estrangeiros: Regulamentação Internacional e Acordos Bilaterais.
Curitiba: Juruá, 2010. 101-102.
103
disciplina jurídica necessária a efetivação do acordo de investimento, desde que sua
postura não leve ao prejuízo do investidor121.
O princípio do tratamento da nação mais favorecida, por fim, também apresenta
íntima ligação ao preceito de não discriminação ao investimento estrangeiro, de modo a
receber tratamento menos favorável que o nacional. Seu diferencial, contudo, se perfaz na
cláusula free rider122, pela qual se tem a concessão unilateral de benefícios aos parceiros de
um determinado país.
Pelo princípio do tratamento da nação mais favorecida, um determinado país deve
pautar suas relações de investimentos estrangeiros pelo acordo internacional mais
favorável. Se futuramente vier a firmar com um terceiro um acordo com melhores
benefícios, este se tornará o parâmetro frente aos acordos anteriormente acertados em suas
relações internacionais.
O princípio, sinalize-se, é válido para pautar relações de tratamento geral, não se
aplicando a casos específicos em que um Estado estabelece relações de privilégio e
benefícios com uma determinada empresa transnacional. Eventos como estes não obrigam
a extensão dos benefícios aos demais interessados em investir no respectivo setor daquela
economia.
Sobre a matéria, Karla Closs Fonseca leciona que seu objetivo primordial é
dirimir as diferenças entre os regimes jurídicos de investimentos, a fim de reduzir a
margem de manobra política dos Estados em desenvolvimento. Pelo princípio, o país
receptor de investimento se observa pressionado a ampliar unilateralmente, a todos os
países com os quais celebrou acordos de promoção e proteção de investimentos, “qualquer
direito ou benefício adicional que outorgue a terceiros países com quem celebre
acordos123”.
Sobre este princípio, o GATT 1947 também apresentou regulamentação,
estabelecendo uma noção de “direito de tratamento preferencial” cujo conteúdo se baseia
121 FONSECA, Karla Closs. Investimentos Estrangeiros: Regulamentação Internacional e Acordos Bilaterais.
Curitiba: Juruá, 2010. 102. 122 Também denominada por “free-rider problem”, do português “problema do carona”, remetendo-se ao
contexto de obrigatoriedade, sublinhada aos países em desenvolvimento, de adesão ao GATT e GATS para
se tornar membro da OMC. Essa exigência é explicada pelo fato de que, no passado, sua ausência
possibilitava que países ausentes em algum desses espaços clamassem por direitos, esquecendo-se de,
reciprocamente, efetuar concessões. MALANCZUK, Peter. Akehurst’s Modern Introdution to the
International law. 7 ed. New York: Routledge, 2002. p. 231 123 FONSECA, Karla Closs. Investimentos Estrangeiros: Regulamentação Internacional e Acordos Bilaterais.
Curitiba: Juruá, 2010. 107-108.
104
na isenção de cobrança de direitos ou encargos aduaneiros, de qualquer natureza, ao
produto importado. A normativa se remete, logo em seu artigo I, a um tratamento geral de
nação mais favorecida, o qual se caracteriza pelos seguintes termos:
1. Qualquer vantagem, favor, imunidade ou privilégio concedido por uma Parte
Contratante em relação a um produto originário de ou destinado a qualquer outro
país, será imediata e incondicionalmente estendido ao produtor similar,
originário do território de cada uma das outras Partes Contratantes ou ao mesmo
destinado [...]. [grifos nossos]
7.2 A proteção
A proteção, por sua vez, se relaciona às regras e princípios que visam proteger o
investimento dos atos discriminatórios das autoridades públicas, ou seja, da força
expropriatória do Estado perante a iniciativa privada estrangeira. Em outras palavras, a
proteção visa beneficiar tanto o investimento em si, fornecendo-lhe segurança e
estabilidade, quanto às pessoas que se deslocam em função de seu capital.
Pela doutrina clássica124, a evolução das noções de proteção não se apresenta tão
desenvolvida como as relativas ao tratamento. As agora em comento limitam-se a matéria
de proteção integral e segurança do investidor frente aos atos do Estado receptor.
A proteção se aplica para desestimular práticas de expropriação ou
nacionalização125, as quais configuram em verdadeiras violações ao direito de propriedade
do investidor estrangeiro. Isso porque, pela expropriação ou nacionalização tem-se a
transferência de títulos do investimento do particular estrangeiro para o Estado nacional.
É bem verdade que o investidor também possui direitos frente ao poder
expropriatório do Estado, dentre o mais robusto deles está a regra da compensação. O
direito internacional dos investimentos é passível em aceitar esta postura, nem sempre a
entendo como uma violação. Sua configuração é admitida quando fundamentada no
interesse público do respectivo Estado. Destarte, a iniciativa estatal distancia-se de uma
possível atuação discriminatória. Em havendo o devido processo legal para a expropriação
e procedendo-se o seu deferimento pelo órgão jurisdicional adequado, cabe ao expropriante
124 25 CARREAU, Dominique; JUILLARD, Patrick. Droit internacional économique. 5. ed. Paris: Dalloz,
2013. 526-532. 125 De acordo com Karla Closs Fonseca (2010, p. 116-117), conceitualmente a expropriação se remete a atos
individualizados, isolados, sobre uma determinada empresa privada, na pecha do interesse público. Em
contrapartida, a nacionalização se destina a medidas gerais aplicadas a um setor da economia como um todo,
indistintamente, visionando objetivos legítimos de regulação, embora o domínio público dos bens de capitais
implique na violação do direito fundamental a propriedade privada.
105
compensar o investidor, medida a guiar-se segundo fórmula Hull, pela qual a compensação
estatal deve ser efetuada de modo rápido, adequado, conforme o valor de mercado e em
moeda conversível.
Outro ponto, albergado pela noção de proteção, diz respeito à cláusula de
transferência de fundos cuja espeque é resguardar interesses tanto do Estado receptor,
quanto do investidor estrangeiro, ao assegurar e facilitar a realização de transferências,
valendo-se dos institutos da conversão e repatriação de capital.
A cláusula de transferência de fundos, no entanto, também toca a questão da
soberania monetária de um Estado. Ela responsabiliza-se em travar políticas de
enfrentamento da deterioração financeira de seu respectivo país, fato que torna legítimo o
controle, por vezes traduzido em limitação, no direito de livre transferência de capitais por
parte do investidor estrangeiro, sob o interesse maior de proteger a balança de pagamentos
deste Estado.
7.3 A garantia
Por fim, segue-se exposição acerca da noção de garantia. Tem o condão de
fornecer ao investidor os mecanismos de redução dos riscos políticos aos seus
investimentos, em vistas de que os riscos econômicos fiquem a cargo deste próprio agente.
A garantia, portanto, parte do consenso pelo o qual não é possível disciplinar previamente
todas as situações, reconhecendo que todo instrumento normativo abriga lacunas, diante
das quais deve imperar a interpretação da respectiva lei.
É desta maneira, que as noções de garantia oferecem um leque de estruturas, a
exemplo dos seguros e do sistema de solução de controvérsias, mitigando as consequências
financeiras da ocorrência de certos riscos políticos e, consequentemente, econômicos, que
lhe resultariam em prejuízo. Importante mencionar que anteriormente a este princípio, os
conflitos entre investidor e Estado receptor eram dirimidos no seio da própria justiça
doméstica do país anfitrião o qual, por vezes, se valia de sistema de salvaguardas
favoráveis à sua economia, em detrimento do investidor estrangeiro.
106
8. O DIREITO DE ADMISSÃO E ESTABELECIMENTO DE INVESTIMENTOS
A seguir será trabalhado o tratamento do investimento conforme o direito de
admissão e estabelecimento, com especial atenção aos aspectos do pré e pós-
estabelecimento, os quais serão ilustrados, conseguintemente, pelos modelos europeu e
americano de investimento direto estrangeiro. Por fim, será discorrido sobre o os efeitos do
Tratado de Lisboa nos direitos de admissão e estabelecimento no seio do Direito da União
Europeia.
Os Estados não são obrigados a admitir o investimento estrangeiro em seu
território, podendo fazê-lo de um modo completamente restrito ou mesmo promovendo sua
liberação. Esta, por sua vez, apresenta uma tendência em não acontecer por completo, visto
que estrategicamente não é interessante aos Estados abrir determinados setores de sua
economia à concorrência internacional. A liberalização comumente ocorre ancorada em
uma agenda de compromissos, a qual assinala a progressiva e específica abertura dos
mercados126. Até mesmo porque as obrigações criadas são de longo prazo e incidem
mesmo que na ocorrência de profundas mudanças no desenvolvimento econômico, tanto
em âmbito positivo, quanto no negativo, a exemplo do desequilíbrio econômico financeiro.
Sob a perspectiva de liberação do mercado interno, Carlos García Fernández e
Miguel Flores Bernés127 justificam as variações firmadas entre os diferentes acordos de
admissão e estabelecimento pelos fatores de “vantagens comparativas de localização,
proteção de setores econômicos estratégicos e industriais, acesso a outros mercados,
transferência de tecnologia, fomento de exportações”, entre outros.
Acerca da entrada de capitais, é preciso pontuar que se relaciona intimamente com
a política econômica do país receptor. Essa linha tênue de interação é imprescindível em
virtude do grande impacto que tais investimentos podem ocasionar ao país, estando este
126 COSTA, José Augusto Fontoura. Direito Internacional do Investimento Estrangeiro. Curitiba: Juruá,
2010. P. 138. 127 FERNÁNDEZ, Carlos García. BERNÉS, Miguel Flores. Admisión y Estabiecimento de la Inversión en el
Derecho Internacional Público. In: Jurídica: Anuário del Derpartamento de Derecho de la Universidad
Iberoamericana. Instituto de Investigaciones Jurídicas (UNAM). n. 33, ano 2003. ISSN 1405-0935.
Disponível em: < http://www.juridicas.unam.mx/publica/rev/indice.htm?r=jurid&n=33 >. Acesso em 29
junho 2016. p. 61.
107
assegurado, consuetudinariamente, pelo princípio da soberania territorial e da
autodeterminação do Estado, derrogáveis somente por ato expresso do próprio receptor.128
Conceitualmente, o direito de admissão é aquele hábil à regulamentação da
entrada do investimento em um país, enquanto o estabelecimento se destina as condições
de sua permanência.
É possível concluir, então, que as tratativas relativas a admissão e estabelecimento
tem por fim último a promoção dos fluxos de investimento, a qual se dá na dependência do
grau de abertura ou controle sobre as atividades econômicas. Assim, leva-se em
consideração, no momento de elaborar o direito de admissão pelo Estado, as questões de
definição dos setores econômicos relevantes, as regiões geográficas, a exigência de
inscrição ou licença para o exercício de acesso a um determinado mercado, além da
estrutura legal hábil a moldar o relativo direito129.
A regulação dos investimentos pode ser feita, de acordo com Dominique Carreau
e Patrick Juillard130, sob duas vertentes, a da liberalização ou a da proteção, o que é
ilustrado pelos modelos europeu (anterior ao Tratado de Lisboa) e o americano, uma vez
que aquele previa uma cláusula de admissão, pela qual os Estados não garantiam o direito a
admissão, possibilitando o acesso somente aos investimentos que lhe eram convenientes,
enquanto este se diferenciava pela cláusula de estabelecimento.
A cláusula de admissão decorre do direito soberano que os Estados detêm de
regular os investimentos de forma a promover condições favoráveis de investimento entre
as partes contratantes, o que se perfaz na medida em que versam os termos da legislação do
país anfitrião. Em consequência, é possível concluir que as normativas que regem o direito
de admissão em um país receptor podem mudar conforme sejam feitas alterações em seu
direito doméstico.
Entrementes, o instrumento baseado na cláusula de admissão confere tratamento
nacional, tratamento da nação-mais-favorecida e proteção àqueles investimentos já
admitidos pelo Estado anfitrião. Tais acordos se caracterizam por não conterem exceções
específicas de atuação do investimento estrangeiro, a exemplo de listas positivas e
128 DIAS, Bernadete de Figueiredo. Investimentos Estrangeiros no Brasil e o Direito Internacional.
Curitiba: Juruá, 2010. p. 89-91. 129 DOLZER, Rudolf; SCHREUER, Christoph. Principles of International Investiment Law. 2. ed.
Oxford: Oxford University Press, 2012. p.88. 130 CARREAU, Dominique; JUILLARD, Patrick. Droit internacional économique. 5. ed. Paris: Dalloz,
2013. p. 462-463.
108
negativas e condições de tratamento, uma vez que em sendo o investimento estrangeiro de
total discricionariedade do país anfitrião, não se vislumbra a necessidade de tais exceções.
De acordo com o momento em que as proteções consagradas pelo tratado podem
ser efetivadas, ocorre uma divisão destes acordos mediante dois aspectos. Quando a
proteção só se efetua depois da realização dos investimentos, fala-se em pós-
estabelecimento; quando a proteção ocorre tanto antes quanto depois da realização do
investimento, tem-se o pré e o pós estabelecimento que em geral é somente denominado
por pré estabelecimento, ficando implícita a proteção no momento posterior.
A escolha por um destes aspectos se radica na política adotada pelo Estado. A
proteção somente na fase pós-estabelecimento não oferece o direito de admissão aos seus
investidores, de modo que seu texto resulta da condição de que o Estado anfitrião admitirá
a entrada dos investimentos diretos sob a tutela de suas leis e regulamentos, de âmbito
doméstico. Assim, sublinhe que a proteção é denominada como pós-estabelecimento pois é
somente nesta fase que se aplicam os standards de proteção previstos pelo Direito
Internacional dos Investimentos.
O outro aspecto opta por fornecer uma proteção mais abrangente, incidindo em
todas as etapas do investimento, designadas pelos textos das tratativas como
estabelecimento, aquisição, expansão, administração, condução, operação e venda,
abrangendo qualquer outra disposição no mesmo sentido.
Carreau e Juillard fornecem uma discussão bastante interessante quanto a
diferença prática entre as cláusulas de admissão e de estabelecimento, a qual consiste pela
limitação ou ampliação da aplicação do tratamento nacional, sendo aquela a política
adotada pela cláusula de admissão, e esta, a pela cláusula de estabelecimento131.
No entanto, estes autores entendem não existir grandes diferenças entre ambas,
reduzindo a questão a um problema de cunho semântico. Isso porque o princípio da
liberdade de circulação, presente na cláusula de estabelecimento sofre restrições, ou seja,
limitações explícitas, as quais que se impõem em razão da transparência necessária às
relações entre as partes contratantes no tocante ao tratamento nacional no período anterior
a realização do investimento. Disto resulta a redução dos controles de admissão e, por
outro lado, a mitigação da livre circulação, levando a convergência do que inicialmente se
acreditava como pontos extremos.
131 CARREAU, Dominique; JUILLARD, Patrick. Droit internacional économique. 5. ed. Paris: Dalloz,
2013. p. 512-514.
109
8.1 Os modelos europeu e americano de admissão de investimento
Até então, os países europeus optavam pela não concessão do direito de admissão,
fazendo indiretamente pela aplicação das normas e garantias colacionadas pelo Estado de
acolhimento, unilateralmente132. O modelo europeu estava relacionado intimamente com a
proteção dos investimentos na fase pós-estabelecimento, uma vez que ao receptor se
reserva o direito de controlar a admissão dos investimentos, sendo-lhe facultada a recusa
da referida entrada pela concessão ou não de uma autorização de admissão, a qual tem o
condão de proteger o investimento na fase pós-estabelecimento.
O referido modelo recebeu inspiração do Projeto da OCDE de Proteção dos Bens
Estrangeiros e, em contraposição, tem-se o modelo americano de regulação com fulcro no
United States Trade Representative (USTR), posto inovar quanto à forma e o fundamento
de seus acordos. Em consequência, se assinala que o modelo europeu se liga unicamente ao
direito de proteção dos investimentos, enquanto que o modelo americano procede tanto à
proteção quanto ao direito de liberação dos fluxos de investimento. Este atua igualmente na
fase pré estabelecimento e na fase pós-estabelecimento, promovendo naquela o direito de
livre admissão ao fazer uso do tratamento nacional e do tratamento da nação-mais-
favorecida.
O modelo americano tem como principais representantes os Estados Unidos e o
Canadá, os quais visionam proporcionar ao investimento um direito positivo ao tratamento
nacional e ao tratamento da nação-mais-favorecida, ou seja, oferece direitos em todas as
fases do investimento. Sublinhe-se, portanto, a garantia destes quando o investidor ainda
está por realizar sua aplicação.
Destarte, diferentemente do modelo anterior, este aqui prever uma limitação a
soberania do Estado anfitrião em benefício do investimento estrangeiro, muito embora
restrições sejam aceitas, as quais são positivadas nas listas de exceções ao tratamento
nacional e ao tratamento da nação-mais-favorecida. Assim se justificam as listas positivas,
nas quais se relacionam aqueles setores da economia em que o investidor pode atuar, e as
listas negativas referentes aos setores em que o investimento estrangeiro não o pode fazer,
ficando liberado todos os outros que não receberem menção na lista. É propriamente o que
132 SCHREUER, Christoph. Investments, International Protection. Áustria: Max Planck Foundation For
International Peace And The Rule Of Law, 2011. 23 p. Disponível em:
<http://www.univie.ac.at/intlaw/wordpress/pdf/investments_Int_Protection.pdf>. Acesso 30 abr 2016. p. 9.
.
110
Jeff Sullivan133 aborda pela possibilidade de exclusão de certos setores ou subsetores, bem
como a de medidas não-conformativas existentes.
De acordo com o documento da UNCTAD (United Nations Conference on Trade
and Development) World Investment Report 2015: Refering International Investment
Governance134, as listas positivas desenvolvem uma sistemática de liberalização seletiva.
Nesta, determinados setores possuem direitos de pré estabelecimento, pelos quais o Estado
receptor se encontra constrangido pelo compromisso de liberalização.
O modelo estadunidense de Tratado Bilateral Relativo ao Encorajamento e a
Proteção Recíproca de Investimento135, referente ao ano de 2004, é composto por três
sessões, as quais versam, de modo geral, sobre as definições que se aplicam na égide do
tratado, a disputa de diferentos e a arbitragem, além da resolução de diferendos entre
Estados. Há ainda quatro anexos, quais sejam, a) Direito Internacional Costumeiro; b)
Expropriação; c) Serviço de Documentos a um Estado-Parte; e, d) Possibilidade de um
Mecanismo Bilateral de Apelação.
Acerca do direito costumeiro, o modelo fala à respeito de sua aplicação baseada
no padrão mínimo internacional e no direito de expropriação, resultando então em um
alicerce composto pelos princípios de proteção dos direitos econômicos e dos interesses
estrangeiros.
Ainda em referência ao recurso das listas, Fernández e Benés, discorrendo de
acordo com os compromissos específicos em conformidade com GATS, mencionam
acerca dos compromissos horizontais e setoriais. Aquele consiste em limitações aplicáveis
a todos os setores alí presentes, enquanto este destina-se a setores e subsetores,
individualmente.136
133 SULLIVAN, Jeff. Definition of investment, admission and establishment. Sarajevo: Allen & Overy,
2013. 27 slides, color. Training Course for Economies in Transition on a New Generation of International
Investment Policies. Disponível em:
<http://investmentpolicyhub.unctad.org/Upload/Documents/DOWNLOAD3-Allen and Overy-Definition of
Investment Admission Establishment.pdf>. Acesso em: 26 maio 2017. Pg. 26. 134 UNCTAD. Chapter III: Recent Policy Developments and Key Issues. In: World Investment Report
2015: Reforming International Investment Governance. p. 110. Disponível em:
<http://unctad.org/en/PublicationChapters/wir2015ch3_en.pdf >. Acesso 29 maio 2017. 135 2004 US Model BIT: Treaty between The Government of The United States of America and The
Government of [country] concerning the Encouragement and Reciprocal Protection of Investment.
Disponível em: <http://www.state.gov/documents/organization/117601.pdf>. Acesso em 29 abril 2016. 136 FERNÁNDEZ, Carlos García. BERNÉS, Miguel Flores. p.71-72.
111
A respeito de listas negativas, o Banco Mundial137 profere uma abordagem
segundo a qual tais formulações estão distribuídas sob uma estruturação em dois anexos, o
primeiro versando acerca das medidas não conformativas e o segundo, sobre as exclusões.
O primeiro dispõe-se nas possibilidades da cláusula Standstill (cláusula de estabilização),
no Roll Back e na Ratchet Clausule. Há ainda quem proceda a uma classificação distinta,
alicerçada em três divisões: reservas em respeito a medidas existentes, reservas sem
referência à medidas existentes e reservas a medidas futuras138.
As medidas não-conformativas consistem em um instrumento jurídico, ou mesmo
em uma prática pela qual se observa a violação de termos previstos no acordo de
investimento, a exemplo da desobediência ao tratamento nacional pela permissão de
diferenças entre o direito concedido ao investidor estrangeiro em comparação com o
nacional. Em uma conceituação tautológica, as medidas não-conformativas são aquelas que
se aplicam em desconformidade com o que se acordou entre os países signatários do
tratado.
A cláusula standstill tem por intento engessar a regulação, de modo a determinar
que aos Estados fique impedida a adoção de uma legilação mais rigorosa139. Portanto,
estabelece um padrão mínimo de regulamentação, o qual não pode ser derrogado mesmo
na superveniência de uma outra orientação político-econômica dos Estados.
O Projeto de Acordo Multilateral de Investimentos (MAI) considera a cláusula
standstill como um princípio segundo o qual se garante a existência de um standard
mínimo, de caráter irreversível, no que tange a liberalização, impedindo a inserção de
novas restrições, bem como o agravamento daquelas já existentes140.
137 WORLD BANK GROUP. Investment Policy and Promotion Week: Event 1. Module 3. Key Elements of
IIAs and their impact on domestic reform. Session One: Issues of Scope and Investment Establishment.
Viena, 13 de outubro de 2015. Disponível em: <https://olc.worldbank.org/sites/default/files/Module-
3_Session-1-Roberto-Echandi_0.pdf>. Acesso em: 29 abril 2016. 138 FERNÁNDEZ, Carlos García. BERNÉS, Miguel Flores. Admisión y Estabiecimento de la Inversión en el
Derecho Internacional Público. In: Jurídica: Anuário del Derpartamento de Derecho de la Universidad
Iberoamericana. Instituto de Investigaciones Jurídicas (UNAM). n. 33, ano 2003. ISSN 1405-0935.
Disponível em: < http://www.juridicas.unam.mx/publica/rev/indice.htm?r=jurid&n=33 >. Acesso em 29
junho 2016. p.72. 139 GLOBAL UNION. TISA - backdoor services liberalisation on a global level! Disponível em:
<http://www.uniglobalunion.org/news/tisa-backdoor-services-liberalisation-a-global-level>. Acesso 29 maio
2017. 140 OCDE. Negotiating Group on the Multilateral Agreement on Investment (MAI) Drafting Group No.2 on
Selected Topics Concerning Treatment of Investors and Investment (Pre/Post Establishment)
MECHANISMS FOR STANDSTILL, ROLLBACK AND LISTING OF COUNTRY SPECIFIC
RESERVATIONS. Fevereiro 1996. Disponível em < http://www1.oecd.org/daf/mai/pdf/dg2/dg2953r1e.pdf
>. Acesso 29 maio 2017.
112
O documento da Comissão Europeia141, de abril de 2016, denominado por
Services and investment in EU trade deals: Using ‘positive’ and ‘negative’ lists coloca que
a cláusula standstill tem o condão de registrar o comprometimento das partes em manter o
mercado aberto sob um parâmetro mínimo de liberalização. Deste modo, os Estados ficam
constrangidos a não procederem por medidas mais restritivas em um momento futuro.
O documento assinala também a existência da ratchet clause, a qual assegura os
efeitos jurídicos para a relação acordada em caso de superveniência de iniciativas
unilaterais de liberalização. Esta cláusula determina que em havendo uma abertura de
mercado, nenhuma iniciativa futura, sob a mesma matéria, pode resultar na restrição de
direitos.
Pelo MAI o Roll Back é o processo de liberalização pelo qual se dá a redução ou
eliminação de medidas não-conformativas. Ele está intimamente relacionado com a
cláusula standstill e tem como consequência o Efeito Ratchet que, por seu entender,
bloqueia ações que vão de encontro às iniciativas de liberalização, de modo a impedir
quaisquer providências no sentido de sua recisão ou nulidade. O documento da Comissão,
por sua vez, se refere a proibição de normas que revertam direitos já liberalizados em face
de decisão unilateral de uma parte no acordo. Para esta instituição, a reversão tem por
limite o padrão mínimo determinado pela cláusula standstill.
Outras medidas restritivas também são aplicadas, como é o caso da Lista de
Propósitos ilustrativos, que se caracteriza pela flexibilidade quanto aos produtos que
devem sofrer reservas em relação a proteção, em detrimento da competitividade frente a
produtos provenientes do mercado externo. Para Savoie142, a opção pela List or Loose traz,
por sua vez, o benefício de uma abordagem restritiva dotada de um maior nível de
transparênia, pois identifica e descreve seus setores em alvo. O lado negativo é que exige
uma intensa análise da legislação.
Este sistema é adotado pelo Canadá sob duas vertentes, quais sejam, long form e
short form que se distinguem essencialmente pelo nível de informação existente no texto
141 European Comission. Services and investment in EU trade deals Using 'positive' and 'negative' lists.
Disponível em < http://trade.ec.europa.eu/doclib/docs/2016/april/tradoc_154427.pdf >. Acesso 29 maio
2017. 142 SAVOIE, Pierre-olivier. Reservation, corporate social resposability and other mechanisms in support of
sustainable development in Canada's Model Foreign Investment Promotion and Protection Agreement. In:
BAETENS, Freya. Investment Law within International Law: Integration perspective. Cambridge:
Cambridge University Press, 2013. p. 232-239. p. 236-237.
113
do acordo, sendo aquele termo dedicado a instrumentos de cunho descritivo mais apurado e
este, aos que se limitam a uma descrição mais superficial das reservas estipuladas.
Fernández e Bernés esclarecem ainda a ideia por trás da implementação de
listas, por isso se remetem ao termo “não consolidados”, para referirem-se ao entendimento
de que tais recursos demonstram a ausência de ações estatais consolidadas para aquele
setor, uma vez que a não abertura ao mercado externo se traduz na falta de vontade em
assumir compromissos compreendidos por ocasião de sua adesão à OMC. Já o termo
“nenhum”, remete ao inverso, que o Estado está conforme o liberalismo aceito sob a égide
da OMC. Ademais, colocam que o sistema de lista positiva deve assumir um sentido
afirmativo, haja vista conferir flexibilidade às relações bilaterais e multilaterais143.
Acerca destas questões foi elaborado um rol com os tipos de restrições passíveis
de serem impostas pelo Estado receptor144, quais sejam: medidas de controle de acesso ao
país receptor; condições de entrada do capital no país receptor; medidas de controle à
propriedade do investidor; medidas de controle baseadas na limitação dos poderes dos
acionistas e, medidas de intervenção governamental no funcionamento do investimento.
São exemplo destas regulamentações, respectivamente, os seguintes exercícios:
proibição da entrada de investimento estrangeiro no país, ou mesmo a limitação no número
de investidores; imposição da condição de desenvolvimento e exigência de conteúdo local;
controle do direito de propriedade dos acionistas estrangeiros; bem como o direito do
Estado receptor em nomear altos cargos, os quais são responsáveis pela gestão e controle
da companhia.
É de se ressaltar que as restrições assinaladas nos dois parágrafos anteriores são
mais comumente empregadas pelo modelo europeu, posto que o americano, em maior
atenção a lógica da liberalização comercial, disciplina proibições a tais medidas. É o que se
constata pelo art. 8º do Modelo de acordo de investimentos do Estados Unidos de 2004 e
também pelo art. 1106 do NAFTA.
143 FERNÁNDEZ, Carlos García. BERNÉS, Miguel Flores. Admisión y Estabiecimento de la Inversión en el
Derecho Internacional Público. In: Jurídica: Anuário del Derpartamento de Derecho de la Universidad
Iberoamericana. Instituto de Investigaciones Jurídicas (UNAM). n. 33, ano 2003. ISSN 1405-0935.
Disponível em: < http://www.juridicas.unam.mx/publica/rev/indice.htm?r=jurid&n=33 >. Acesso em 29
junho 2016. p.71. 144 FONSECA, Karla Closs. Investimentos Estrangeiros: Regulamentação Internacional e Acordos
Bilaterais. Curitiba: Juruá, 2010. P. 92 a 93.
114
Da diferenciação dos modelos quanto a sua admissão, Anna Joubin-Bret145
articula uma conclusão precisa quanto ao surgimento de conflitos de investimento, qual
seja, o modelo americano se vale de uma cláusula de negação para barrar a concessão de
benefícios a determinados setores. Enquanto isso, o modelo europeu, por meio do instituto
do controle da admissão, não ver razão em negar direitos, precisamente porque neste caso é
necessária uma concessão prévia de qualquer destes.
8.2 As Alterações Operadas pelo Tratado de Lisboa: Um Novo Modelo Europeu de
Tratados de Investimento
Se antes os modelos dos países europeus dotavam de individualidade,
convergindo pela existência de vários pontos em comum, de onde decorre a unificação em
um modelo denominado por “europeu” – ou seja, dos países europeus –, com o Tratado de
Lisboa esse individualismo em aspecto micro foi superado.
O instrumento responsável pela alteração foi o documento denominado por
Plataforma Mínima de Investimento146, de 2006, com autoria do Conselho da União
Europeia. Nele, um modelo de negociação para o acesso de investimento é inserido às
futuras obrigações da então Comunidade Europeia, o que veio a ocorrer, em caráter
positivo, através reforma operada pelo Tratado de Lisboa.
Nas palavras de Augusto Reinich, por ocasião do European Yearbook of
International Economic Law de 2010147, esta tratativa acrescentou uma competência no
Direito da União, a qual consiste propriamente na conclusão de tratados versando sobre
investimento direto estrangeiro, os quais devem passar a ter consonância com o sistema de
compromissos do GATS, via lista positiva. Portanto, constata-se que a tendência aos
membros da União Europeia é migrar do modelo europeu de admissão para algo mais
próximo ao modelo americano, reservando-se claramente às idiossincrasias daquele
conjunto de Estados.
145 JOUBIN-BRET, Anna. Admission and Establishment in the Context of Investement Protection. In:
REINISCH, August. Standards of Investment Protection. New York: Oxford University Press, 2008. Cap.
2. p. 9-28. 146 European Comission. Minimum platform on investment for EU FTAs: Provisions on establishment
in template for a Title on “Establishment, trade in services and e-commerce". 28 jul. 2006. Bruxelas.
Disponível em: < http://www.iisd.org/pdf/2006/itn_ecom.pdf>. Acesso em 28 maio 2017. 147 REINISCH, August. Protection of or Protection Against Foreign Investment?: The Proposed Unbundling
Rules of the EC Draft Energy Directives. In: HERRMANN, Christoph; TERHECHTE, Jörg
Philipp. European Yearkbook of International Economic Law 2010. Berlin: Springer, 2010. p. 53-76.
115
Em consequência, é de se considerar que a União Europeia deverá, em seu
modelo próprio de tratados de investimento, albergar o tratamento nacional e o tratado da
nação-mais-favorecida na fase de pré estabelecimento. Este novo paradigma consiste
propriamente em estender seu padrão de proteção aos investimentos para garantir que, logo
antes da realização do investimento, a este seja assegurado um tratamento não-menos-
favorável àquele aplicado aos nacionais presentes no mesmo setor econômico.
Rudolf Dolzer e Christoph Schreuer atentam para a demarcação de um limite em
que as condições de atuação entre nacionais e estrangeiros caracterizam um panorama de
igualdade. Vários aspectos de comparação devem ser analisados tomando como premissa
que se trata de uma igualdade substancial e não formal, de modo que sua aplicação se
vincula ao caso em concreto148.
Primeiramente, há de se saber se entre os investidores nacional e estrangeiro se
relaciona uma situação passível de comparação. Para tanto, o modelo dos Estados Unidos
adota termos como “situação idêntica” e “circunstâncias semelhantes”. Em segundo lugar,
deve se estabelecer qual o tratamento está em discussão para, posteriormente, verificar se é
o caso de uma efetiva diferenciação entre os investimentos e se, mesmo em sendo, não
subsiste justificativa para tanto.
Para que se trate de uma comparação possível, há de se estabelecer o ramo
específico de destinação do investimento, de modo a saber se naquela mesma área subsiste
distinção entre nacionais e estrangeiros. Entretanto, nisto reside um problema, que é o de
se conceituar tal ramo ou área. Dolzer e Schreuer apontam para um conflito nesta
determinação, posto ser o ponto de partida mais amplo, tratando de um mesmo setor
econômico, ou mais restrito, uma mesma linha de negócios dentro de um mesmo setor
econômico.
A questão foi respondida, no contexto do NAFTA, na órbita do processo Myers v.
Canadá sob três aspectos que são a existência de uma diferenciação, a justificativa para tal
e a importância da intenção em operar a discriminação, tendo-se em conta que as
circunstâncias em comparação derivam da sujeição do investimento às mesmas exigências
legais quanto ao tratamento nacional.
Antes de adentrar ao mérito da discussão, faz-se mister contextualizar a
problemática pelo processo S.D. Myers v. Canadá, na medida em que o contencioso incide
148 DOLZER, Rudolf; SCHREUER, Christoph. Principles of International Investiment Law. 2. ed.
Oxford: Oxford University Press, 2012. p. 198.
116
na discriminação de investimentos. O Canadá alegou que a empresa “Myers Canadá” não
era controlada direta ou indiretamente pela estadunidense SDMI, o que foi julgado como
improcedente pelo tribunal, o qual reconheceu que aquela perfazia-se em um investimento
da SMDI e, portanto, controlada por uma empresa estrangeira149. Esta consideração
permitiu o entendimento pelo qual ocorreu violação ao tratamento nacional, uma vez que o
Canadá, mesmo sendo país receptor de investimentos, agiu para proteger os interesses de
sua indústria, conforme consta da primeira e segunda sentenças parciais, respectivamente
de novembro de 2000 e outubro de 2002150.
Quanto a uma justificativa, esta seria aceita caso amparada na regulamentação
governamental. No tocante a importância da intenção de se discriminar, o cerne da questão
reside em saber se não haveria um meio menos oneroso ao investimento estrangeiro para
que o determinado objetivo fosse alcançado. Trata-se de saber da possibilidade de medidas
alternativas às restrições aplicadas.
Ademais, a jurisprudência se divide em saber se a intenção de discriminar é
necessária para qualificar uma violação ao tratamento nacional, prevalecendo o
entendimento pelo qual houve a discriminação, portanto ausente a exigência do elemento
volitivo em razão da nacionalidade.
O standard de proteção com lastro no tratamento da nação mais favorecida
(NMF), por sua vez, tem por intento fornecer a garantia que nenhuma das partes
contratadas sofrerá um tratamento menos favorável no que tange às relações com terceiros
Estados quanto a produtos similares, conforme inteligência do art. 1º do GATT. Sua
aplicação visiona alargar os direitos dos investidores quando o Estado de acolhimento tem
outros acordos, mais benéficos, com países que vão além daquela relação bilateral, posto
que pela cláusula NMF estes benefícios se estendem de forma automática.
É de se ressaltar que a cláusula tem o condão de preencher lacunas deixadas pelo
texto do acordo de investimento, promovendo sua liberalização do modo mais vantajoso já
estabelecido pelo Estado do contratado. Esta forma de aplicação é voltada ao direito
comercial; no que tange ao direito dos investimentos, se observa uma maior subjetividade e
149 DOUGLAS, Zachary. The International Law of Investment Claims. Cambridge: Cambridge University
Press, 2009. p. 305-306. 150 UNCITRAL. S.D. Myers, Inc. v. Government of Canada. Disponível em:
<https://www.italaw.com/cases/969>. Acesso 29 maio 2017.
117
abstração, uma vez que se visiona negociações e resultados que abarcam searas
substantivamente distintas.
Assim, no caso de uma aplicação conforme os parâmetros do direito comercial,
corre-se o risco de se alcançar uma modificação significativa do regime sob o qual o
tratado foi firmado, o que pode levar, inclusive, a aplicação de um regime dissonante
àaquele primeiramente acordado, tornando-os incompatíveis e instituindo, por exemplo, a
previsão de novos direitos.
118
9. OS MECANISMO DE SOLUÇÃO DE LITÍGIOS
É preciso ter como pedra angular do direito, independente do ramo em que se
deseje atuar, que muitas vezes a existência de um instrumento legislativo não esgota a
possibilidade de surgir, pelas partes envolvidas, um entendimento diferente do que ali está
escrito e, portanto, os efeitos jurídicos em que deve resultar. Esta realidade não é diversa
no ambiente internacional, onde é comum que as pessoas jurídicas de direito internacional
apresentem compreensões dissonantes em relação ao que é contemplado pelos acordos
celebrados e ratificado entre as partes.
Faz-se mister, neste momento, introduzir uma conceituação doutrinária e
jurisprudencial acerca da matéria em comento. Antes, no entanto, para fins metodológicos,
deve-se perceber melhor os termos a seguir utilizados como sinônimos para a controvérsia,
são eles: disputas, diferendos, litígios, conflitos e dissídios. É bem verdade que existe uma
verossimilhança maior com o primeiro dos seis mencionados. Nada obstante, todos foram
usados para designar igual instituto, embora parte da doutrina assim não o faça.
Jónatas E. M. Machado aborda sobre as diferentes denominações, entendendo por
litígios ou disputas as “divergências ou polarizações” decorrentes de relações entre pessoas
jurídicas de direito internacional sobre matéria das mais variadas, a exemplo da econômica.
Na a condição de que sejam capazes de se desenrolar em situações em que impere uma
potencial mácula a “cooperação, a paz e a segurança internacionais”.
Este autor menciona ainda subsistir, no âmbito das concepções doutrinárias,
aqueles que acreditem numa diferença entre “litígio” e “conflito”, posto que em não se
vislumbrando uma solução para aquele, a questão pode tornar-se este último. Machado
leciona que este termo se propõe a uma aplicação mais abrangente, de modo que englobe
um maior número de circunstâncias e conjunturas.
A Corte Internacional de Justiça, por sua vez, emitiu em duas ocasiões uma
conceituação para disputas, quais sejam, no Case of The Mavrommantis Palestine
Concession (Grécia v. Grã-Bretanha) e nos South West Africa cases (Etiópia v. África do
Sul; Libéria v. África do Sul).
Quanto ao primeiro caso, a decisão da Corte foi colocada, na língua francesa,
pelos seguintes termos: Un différend est um désaccord sur um point de droit ou de fait, une
contradiction, une apposition de thèses juridiques ou d’intérêts entre deux personnes. No
119
inglês, parece não se vislumbrar uma definição tão precisa, não se observando o uso de
palavras que colocassem a situação através de termos mais precisos e suscetíveis de gerar
um conceito capaz de transmitir uma maior segurança jurídica, ou seja, A dispute is a
disagreemet on a point of law or fait, a conflict of legal views os interests between two
persons151.
No segundo caso a Corte, em julgamento das objeções preliminares, decidiu por
caracterizar quando uma situação deveria ser considerada uma disputa, não se atendo
somente à condicionalidade, por uma das partes, do chamamento à jurisdição da CIJ. Ela
vai além e observa a verificação se uma das partes foi “positivamente oposta pela outra”,
ou seja, foi manifestamente operada pela demandada em dissonância ao direito
internacional pelo qual ambas estão vinculadas.
Para dirimir estas celeumas é que o Direito Internacional lança mão dos
mecanismos de soluções de controvérsias, os quais se subdividem entre meios pacíficos e
meios coercitivos, sendo aquele o que interessa ao Direito dos Investimentos,
A doutrina brasileira, por meio de Accioly, Silva de Casella152 distribuem as
soluções pacíficas sob duas vertentes: meios diplomáticos e meios jurídicos. De forma
semelhante o faz Jónatas E. M. Machado153 que, com fulcro na natureza jurídica dos
institutos em comento, os distingue em meios políticos – para se referir aos meios não-
jurisdicionais – e meios jurisdicionais. Valério de Oliveira Mazzuoli154, por sua vez, aplica
uma classificação baseada em quatro vertentes, quais sejam, meios diplomáticos, meios
políticos, meio semi-judicial – ao qual se dedica exclusivamente à arbitragem – e meios
judiciais, os quais albergam a arbitragem no entender daqueles outros quatro juristas.
As tratativas, em geral, não aplicam uma classificação tão organizada como o faz
a doutrina. Exemplo disto são a Carta das Nações Unidas, em seu capítulo sobre Solução
Pacífica de Controvérsias e a Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Ambos, respectivamente, em seus artigos 33 e 25, se limitam a enunciar aqueles recursos
151 ICJ. The Mavrommantis Palestine Concession. Publication of The Permanente Court of Justice. Series
A – nº 2. August 30th, 1924. Disponível em: <
http://www.mpil.de/files/pdf1/idsict_mavrommatis_palestine_concessions_excerpt.pdf >. Acesso em 15 jun
2017. 152 ACCIOLY, Hildelbrando; SILVA, G. E. do Nascimento e; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito
rnacional. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. 153 MACHADO, Jónatas E. M. Direito Internacional: do paradigma clássico ao pós-11 de setembro. 4 ed.
Coimbra: Coimbra Editora, 2013. p. 487-488. 154 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008.
120
que entendem como pacíficos, quais sejam, negociação, bons ofícios, mediação, inquérito,
conciliação, arbitragem e processo judicial.
A negociação é de cariz puramente diplomático, alicerçando-se na
consensualidade, equidade, oportunidade e boa-fé entre as partes, sendo utilizada em
momento prévio a instauração de processos judiciais, de modo a ser entendido via
preventiva a ocorrência destes.
Os bons ofícios e a mediação, não raramente, se confundem. Uma linha bastante
tênue os aproxima em razão de ambos observarem a intervenção de um terceiro. Aquele se
concentra no desenvolvimento de uma comunicação entre as partes. A mediação, por sua
vez, vai além e, através de um rigor mais formal, propõe uma solução não-vinculativa para
o conflito.
O inquérito, também designado por investigação, tem o condão de apurar os fatos
relacionados à disputa, a exemplo de fiscalizar a aplicação as normas de direito
internacional. Ele sempre antecede os meios jurisdicionais e, por vezes, possibilita a
produção de provas que irão instruir um eventual processo. Este método se caracteriza pela
formação de uma comissão investigativa que irá atuar nos territórios das partes envolvidas,
as quais têm como dever aceitar sua presença e facilitar o processo de produção e colheita
de provas. O desenvolvimento destes trabalhos culmina na elaboração de um relatório pela
comissão, o qual não se confunde com um laudo arbitral, uma vez que sua cogência se
limita a aspectos morais como via de constrangimento das partes.
Mazzuoli dedica todo um parágrafo155 para lecionar que não existe hierarquia
entre os meios de solução de controvérsias, acreditando que todos desfrutam de igualdade
jurídica, à exceção do inquérito, porque este visa buscar a verdade dos fatos e se antepõe
aos demais meios. Os quais, por sua vez, existindo em uma pluralidade de formas, podem
se substituir alternativamente em razão de uma inefetividade daquela inicialmente adotada.
Há ainda que se abordar a conciliação e a arbitragem, meios bastante comuns à
realidade das controvérsias de investimento que, em geral, não alcançam a jurisdição
internacional na forma de tribunais internacionais permanentes. Esta espécie de tradição
têm sido alvo de uma importante iniciativa da União Europeia, qual seja, o projeto para a
criação de um Tribunal Multilateral de Investimentos dotado de um corpo permanente para
a resolução de disputas.
155 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008. p. 916-917.
121
A conciliação, no entender de Machado, é um instituto que reúne características
da arbitragem e da mediação no sentido de produzir um relatório, de caráter não
vinculante, sob o propósito de emitir recomendações às partes. A doutrina de Accioly, por
sua vez, a aborda por um viés metodológico diferente, reunindo sob um só tópico as
comissões internacionais de inquérito e conciliação. Por isso mesmo, conclui que as
comissões de conciliação têm o condão de investigar os fatos dos quais os litígios
decorrem para, assim, lastrear suas sugestões. Define-a, portanto, pelo seu caráter
consultivo e com fins de operar o constrangimento das partes pela via meramente
persuasiva.
Por fim, enuncia-se a arbitragem, mecanismo que recebe grande destaque no
tocante aos investimentos merecendo, por conseguinte, um estudo bem mais aprofundado.
Desta forma, o desenrolar deste capítulo dará destaque a solução de litígios sob o prisma
das pessoas jurídicas envolvidas no dissídio.
Primeiramente se tratará de disputas entre dois Estados e, em um segundo
momento, terá espaço aquelas que relacionam investidor e Estado, constituindo,
nomeadamente, nas arbitragens mistas.
Embora a arbitragem seja igualmente utilizada entre os Estados, assim como a
conciliação, é a proteção diplomática que melhor ilustra as linhas de trabalho dos
mecanismos de solução de disputas entre Estados.
9.1 Estado versus Estado
Historicamente a proteção diplomática nasceu do poder absoluto que os Estados
exerciam na sociedade internacional até meados do século XX, momento em que eram os
únicos sujeitos de Direito Internacional, razão pela qual denominam-se como sujeitos
clássicos, originários, ou ainda, tradicionais.
Em decorrência de se constituírem os únicos a possuírem personalidade jurídica
internacional, os Estados negavam aos seus nacionais a capacidade para agir
internacionalmente, guardando essa atuação unicamente para si. Desta forma, os
indivíduos deveriam se socorrer aos Estados para acessarem o exercício de um direito
internacional. Portanto, se encontravam dependentes do crivo destes para que suas
reivindicações fossem acolhidas e, mediante o instituto do endosso, seguissem como sendo
do próprio Estado. Era um exercício de afirmação de seus direitos, pelo qual tomava para
122
si as queixas de seus nacionais, gozando de plena liberdade de ação, o que inclui a
liberdade de declinar das reivindicações de seus nacionais, ou mesmo de desistir de
prosseguir com a relação conflituosa.
Ao mesmo tempo que a proteção diplomática é uma liberdade ou faculdade aos
Estados, aos investidores ela se traduz como uma limitação de seus poderes e dependência
aos Estados nacionais, até mesmo em aspecto processual, posto que o investidor não atua
diretamente no processo. Fator que sugere não consistir em um meio de solução que goze
facilmente de empatia pelos investidores, bem como pelos Estados, por envolver questões
que tocam decisões políticas e econômicas no setor externo.
Caso paradigmático no tocante à proteção diplomática foi aquele conhecido por
“Barcelona Traction” (Bélgica v. Espanha) que se deu sob a jurisdição da Corte
Internacional de Justiça (CIJ) eminentemente na década de 1960. Nele, a Bélgica litigou no
sentido de promover, através do instituto da em tela, amparo aos seus nacionais que eram
os acionistas majoritários, da empresa Barcelona Traction, Light and Power Company,
Limited, com sede estatutária e social em Toronto, Canadá, e atuação na Espanha. Foi neste
país que alegou-se ter ocorrido a falência da empresa em decorrência de atos restritivos à
atuação do investimento estrangeiro por parte do Estado espanhol. Previamente ao litígio, a
Bélgica operou, pela via diplomática, negociações diretas com a Espanha, as quais não
tiveram sucesso e resultaram na postulação do Estado belga a CIJ em 19 de junho de 1962.
Portanto, se depreende que três Estados estavam envolvidos na controvérsia:
Bélgica, Canadá e Espanha, configurando uma relação triangular. Não obstante este
primeiro ter alegado o controle majoritário da sociedade por nacionais seus – o que lhe
daria fulcro ao exercício da proteção diplomática –, a Corte não reconheceu sua
legitimidade para a causa, posto a requerente não ter alcançado comprovar o controle por
seus nacionais e assim faltar-lhe jus standi para efetivar a proteção em comento156.
Entendeu que se tratava de uma sociedade canadense e, assim sendo, somente este
país teria a legitimidade para vindicar qualquer indenização aos prejuízos sofridos pelos
acionários. Deste modo, acolheu a pretensão da Espanha, exposta por ocasião de sua
terceira objeção preliminar, de que “o direito internacional não reconhece, em relação ao
156 International Court of Justice. Case Concerning The Barcelona Traction, Light and Power Company,
Limited (Second Phase): Judgment of 5 February 1970. Disponível em: < http://www.icj-
cij.org/docket/files/50/5389.pdf>. Acesso em: 20 jun 2017.
123
prejuízo causado por um Estado à empresa estrangeira, qualquer proteção diplomática dos
acionistas exercida por um Estado que não seja o Estado nacional da empresa”157.
O motivo que responde à uma aceitação relativamente pequena ao instituto da
proteção diplomática é a significativa possibilidade de gerar prejuízos à diplomacia dos
países envolvidos, ou mesmo prejuízo aos investidores, os quais podem ser preteridos por
seu Estado sob a justificativa de manutenção de boas relações com seus iguais, o que
Larissa Ramina158 denomina por “politização indevida”. Além do afastamento da
possibilidade do uso de forças armadas e meios de constrangimento radicados no uso da
violência, como era o caso da “diplomacia canhoneira”.
Consequentemente, as disputas em matéria de investimento foram aos poucos
migrando da esfera de atuação dos Estados para o enfrentamento do investidor em face do
Estado, o que só foi permitido pelo reconhecimento da personalidade jurídica dos
indivíduos pela sociedade internacional. Desta forma, os acordos de investimentos
passaram a adotar duas cláusulas com vistas a dirimir as disputas deles decorrentes. Uma
se refere a arbitragem entre investidor e Estado acolhedor, enquanto a outra se volta a
arbitragem entre as partes signatárias do acordo, comumente ambas seguem pela
necessidade do uso prévio da conciliação.
Faz-se mister, neste momento, assinalar um conceito de arbitragem de modo a
permitir uma base para os temas que serão tratados a seguir.
9.2 Investidores versus Estado
Para Dolzer e Schreuer159 a arbitragem surgiu para suprir as lacunas deixadas
pelos meios clássicos de resolução de litígios, referindo-se, nomeadamente, a proteção
diplomática e ao tratamento dos conflitos pela justiça interna do Estado acolhedor do
investimento. Accioly, Silva e Casella160 enumeram as três principais características do
instituto em comento, quais sejam, as vontades expressas das partes em consentir a solução
de determinado litígio – especificando o pedido, a causa de pedir e as partes – pela via
157 International Court of Justice. Case Concerning The Barcelona Traction, Light dnd Power Company,
Limited (Preliminary Objections): Judgment of 24 July 1964. Disponível em: <http://www.icj-
cij.org/docket/files/50/5343.pdf>. Acesso em: 20 jun 2017. 158 RAMINA, Larissa. Direito Internacional dos Investimentos: Solução de Controvérsias entre Estados e
Empresas Transnacionais. Curitiba: Juruá, 2009. p. 41. 159 DOLZER, Rudolf; SCHREUER, Christoph. Principles of International Investiment Law. 2. ed.
Oxford: Oxford University Press, 2012. p. 236-237. 160 ACCIOLY, Hildelbrando; SILVA, G. E. do Nascimento e; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito
rnacional. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 862.
124
arbitral e, assim, prosseguindo pela escolha dos árbitros e aceitando a vinculação
obrigatória do laudo ou sentença arbitral.
Significativa parte dos Estados alegam que a arbitragem deve se ater a conflitos
de ordem jurídica, o que inclui pedidos sob formulações no direito, ou solução que sejam
resultados, de alguma maneira, da observação do direito, perfazendo em consonância ao
entendimento adotado pelas Convenções de Haia sobre a Resolução Pacífica de Conflitos
(1899 e 1907).
A arbitragem, sublinhe-se, vem em resposta à necessidade imposta pelos Estados
de esgotamento dos recursos em sua justiça interna, ao que se adiciona a atuação limitada
de seus tribunais nacionais em razão da morosidade do sistema judicial e da falta de
credibilidade às sentenças ali emitidas. A falta de imparcialidade é um problema explícito
que acompanha os questionamentos, não raros, da independência de decidir do respectivo
Poder Judiciário, haja vista as discricionariedades que podem decorrer de ingerências de
outros Poderes. Em destaque o Executivo, o qual pode exigir dos juízos uma lealdade
irrestrita às normas de seu Estado nacional em detrimento do disposto pelo Direito
Internacional.
Para adentrar melhor no assunto, faz-se premente uma breve introdução no
tocante a aquisição de personalidade jurídica pelas empresas transnacionais, consistindo,
juntamente à mídia global, como sujeitos não-formais do Direito Internacional.
Para Mazzuoli161, o capítulo XI do NAFTA foi paradigmático, através de seu art.
1.110, em promover as empresas transnacionais ao status de sujeito de direito das gentes.
Os termos mencionam as expropriações indiretas ou medidas equivalentes às
expropriações, razões pelas quais as mencionadas empresas teriam capacidade de agir e,
portanto, processar diretamente um Estado, fato que lhes concedeu igualdade jurídica em
relação aos direitos anteriormente apenas assegurados aos Estados nacionais.
A concessão de direitos, entrementes, não se deu de forma ampla, uma vez que
não vislumbrou às empresas a capacidade para concluir tratados. Nada obstante, mesmo
com essa limitação, as referidas seguem firme em influenciar os caminhos do direito e das
relações internacionais, a exemplo do que fazem por meio dos acordos de investimentos e
os contratos de concessão.
161 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008. p. 379.
125
Portanto, é preciso concluir que a aquisição de personalidade jurídica de direito
internacional possibilitou às empresas a renúncia à proteção diplomática, conforme coloca
Machado162.
Introduzidas estas primeiras linhas sobre a arbitragem, cabe agora enfrentar a
matéria com por um prisma mais descritivo, sob propósito de abordar suas minúcias e
assim clarear seu mecanismo de funcionamento, o que servirá para, no próximo capítulo,
se alcançar uma explicação da pretensa adoção, pela União Europeia, não só de um modelo
próprio de acordo de investimento (EU Model BIT), como também sua opção pela criação
de um tribunal de investimentos. Nas próximas linhas o texto prosseguirá pela descrição
dos quatro pilares que dão contorno ao instituto da arbitragem: suas formas, a escolha e os
poderes dos árbitros, o seu procedimento e a sua sentença.
A arbitragem voluntária ou facultativa resulta de uma escolha, pelas partes,
quando o conflito já se iniciou, ou seja, ela é posterior aos desentendimentos. Por sua vez,
a obrigatória ou permanente decorre de um acordo prévio entre os envolvidos, a qual pode
ser prevista por dois tipos de instrumentos normativos: os que têm como tema central a
própria arbitragem, consistindo o acordo no próprio compromisso arbitral, ou aqueles que
apenas abordam, entre suas disposições, sobre assuntos diversos, uma cláusula
compromissória de arbitragem.
Os tratados que tratam exclusivamente da matéria em tela podem prever a
arbitragem como um recurso voluntário, que pode ser usado para dirimir determinadas
questões específicas; ou de caráter permanente e obrigatório, caso em que se utiliza da
arbitragem de modo geral e irrestrito – independente do teor do dissídio –, e de forma
obrigatória. Neste caso, entretanto, é necessário um reforço da expressão da vontade das
partes, o que Accioly163 denomina por um instrumento de complemento do compromisso
arbitral.
É neste documento que as partes se manifestam no sentido de escolher, de forma
livre, os árbitros que irão julgar o litígio. Este é o princípio fundamental da arbitragem.164
162 MACHADO, Jónatas E. M. Direito Internacional: do paradigma clássico ao pós-11 de setembro. 4 ed.
Coimbra: Coimbra Editora, 2013. p. 687. 163 ACCIOLY, Hildelbrando; SILVA, G. E. do Nascimento e; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito
rnacional. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 864-865. 164 ACCIOLY, Hildelbrando; SILVA, G. E. do Nascimento e; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito
rnacional. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 864.
126
No passado, as soluções eram confiadas a um soberano ou Chefe de Estado que
gozava de confiança das partes. Atualmente já não é comum esta escolha. Ainda subsistem
arbitragens delegadas a um único árbitro, mas em geral elas ocorrem pela atuação conjunta
de três deles: cada parte escolhe um de sua confiança e estes, por sua vez, chegam a um
consenso sobre o terceiro, denominado de super árbitro.
Como dito, a essencialidade da escolha se resulta da confiabilidade que as partes
mantêm com seus com seus escolhidos. Daí porque a composição do corpo arbitral não se
restringe mais a Chefes de Estados, parâmetro que foi alargado e, hodiernamente alberga
diplomatas, juristas e pessoas com formação técnica na temática em que culminou o
conflito.
A arbitragem ocorre, no cenário atual, pela formação de tribunais ad hoc, ou seja,
sem caráter permanente, formado exclusivamente para a resolução de uma determinada
disputa. Esta questão vem sendo debatida pela União Europeia e se encaminha para uma
reforma do atual modelo de arbitragem mista, pela constituição de um Tribunal
Multilateral de Investimentos de caráter permanente, ao inverso do que parece sugerir a
atuação do Tribunal Permanente de Arbitragem (TPA). O fito deste é fundamentalmente
servir de intermediário das comunicações entre as partes e fornecer-lhes uma lista de
árbitros que dotam de sua confiança e credibilidade para solucionar litígios sem, no
entanto, atuarem de forma permanente e com ausência de poderes para operar na formação
de jurisprudência.
Assim, para cada caso em que são designados, os árbitros atuam conforme
determinados poderes e limites de competência, os quais decorrem dos termos firmados
por ocasião do compromisso arbitral. É importante assinalar que, apesar da mencionada
limitação, tais autoridades disfrutam do poder de decidir se possuem competência para o
exercício de sua própria competência (kompetenz-kompetenz).
É o que Emmanuel Gaillard165 denomina como princípio da competência-
competência, pelo qual os árbitros dispõem para decidir a respeito de sua própria
competência, em ordem cronológica prioritária, quando se constate uma “aparência de
165 GAILLARD, Emmanuel. Teoria Jurídica da Arbitragem. São Paulo: Atlas S.a., 2014. Tradução de:
Natália Mizrahi Lamas. “Esta obra apresenta a tradução em português do texto integral do curso [Aspects
philosophiques du droit d’arbitrage international] ministrado pelo advogado e professor Emmanuel Gaillard,
na Academia de Direito Internacional de Haia”.
127
convenção de arbitragem”, sem prejuízo de uma futura análise da questão pelas jurisdições
estatais, as quais podem subverter aquela competência ao seu controle.
O autor acredita que o referido princípio visa proteger a arbitragem, no sentido de
que proporciona aos árbitros se manifestarem sobre a competência, para conhecer da
matéria, antes que outras jurisdições o façam. Objetiva, destarte, reduzir a fragilidade da
competência do juízo arbitral, a qual se lastreia unicamente na vontade das partes.
Gaillard disserta que do princípio em pauta decorrem dois efeitos, um de caráter
positivo e outro de caráter negativo. O primeiro se remete à liberdade, que concede aos
árbitros, de efetuar suas decisões; o segundo, ao fato de que limita as jurisdições estatais a
apenas exercer sua competência quando não se trate, logo de início, de aparente disputa
proveniente de compromisso estabelecido por ordem de convenção arbitral, dotado de
validade e vigência.
Conclui, então, que o efeito negativo se revela em benefício do presente
mecanismo de resolução de conflitos, posto que tal negatividade resulta de que “o espírito
em favor da arbitragem está no âmago deste princípio, cuja inspiração é a antítese da
neutralidade que caracteriza a noção de litispendência”166. Sobre esta, adiciona que se
reserva aos casos em que a competência para conhecer de uma matéria se situe apenas na
órbita de dois Estados, posto que entre eles reside uma necessidade de desempate, uma vez
se tratar de jurisdições revestidas por desígnios análogos.
Da mesma forma, os árbitros também detêm de autonomia para decidir sobre o
procedimento arbitral, o qual não se encontra disposto no mencionado compromisso. A
questão processualística pode então ser orientada pela inteligência das Convenções de Haia
de 1899 e 1907. Esta última foi além e, em nome da celeridade, criou o rito sumário em
opção ao processo sumário.
A diferença entre ambos é que aquele contempla debates orais que poderão ter ou
não caráter público pela decisão das partes. No processo sumário não se observam os
debates orais, uma vez que toda a parte procedimental se dá de forma escrita. Em geral a
arbitragem se distancia do princípio da publicidade de seus atos, de modo que as decisões
166 GAILLARD, Emmanuel. Teoria Jurídica da Arbitragem. São Paulo: Atlas S.a., 2014. Tradução de:
Natália Mizrahi Lamas. “Esta obra apresenta a tradução em português do texto integral do curso [Aspects
philosophiques du droit d’arbitrage international] ministrado pelo advogado e professor Emmanuel Gaillard,
na Academia de Direito Internacional de Haia”. p. 80.
128
são tomadas de forma secreta pelos seus julgadores, sob a maioria dos votos e apenas são
conhecidas pelas partes envolvidas, salvo quando estas dispõem em contrário.
Por fim, cumpre abordar as sentenças arbitrais, que também recebem a alcunha de
laudos. Seus principais aspectos concernem na obrigatoriedade de seu cumprimento,
dando-lhe vinculação entre as partes e força de caso julgado, sem possibilidade de um
segundo julgamento quanto à materialidade da decisão.
Restam, como exceções, apenas a opção para estritos casos de violação de normas
fundamentais do direito, como o uso de poderes excessivos pelos julgadores;
imparcialidade, fraude, incapacidade ou inobservância de aspectos essenciais ao princípio
do devido processo legal, dos quais devem resultar a anulação da sentença. Contudo,
critérios como erro, inobservância da equidade e lesão ao interesse de um litigante não se
designam como capazes de invalidar a decisão167.
Como dito, a sentença está protegida pelo seu caráter definitivo, salvo se as partes
acordarem pelo inverso, ou se um fato novo ocorrer, ou ainda, se dele só se tomar
conhecimento após a prolação da sentença. Ausentes essas condicionalidades, é dada a ela
o princípio da autoridade da coisa julgada, ao qual se junta a relatividade da coisa julgada,
pela qual somente as partes envolvidas se encontram vinculadas, daí falar-se em efeito
relativo. Há casos, todavia, em que a observância da decisão também se aplica aos
terceiros intervenientes na causa, disferindo sobre estes interessados igual força vinculante.
Em um último momento, faz-se premente ressaltar a distinção operada por
Accioly168 entre força obrigatória e força executória das sentenças arbitrais. Isso porque
não há uma autoridade internacional que se dedique a verificar se as sentenças estão sendo
cumpridas e, em caso negativo, constranger a parte responsável pelo seu incumprimento.
O que há de mais próximo a este intento é a Convenção de Nova York sobre
Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, de 1958, a qual se limita apenas a aplicação
do reconhecimento e a execução das sentenças emitidas em um território diverso daquele
do Estado responsabilizado pelos árbitros, conforme os termos dos art. I, § 1º, e art. II, § 1º.
O artigo III disciplina, porém, que “cada Estado signatário reconhecerá as
sentenças como obrigatórias e as executará em conformidade com as regras de
167 ACCIOLY, Hildelbrando; SILVA, G. E. do Nascimento e; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito
Internacional. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 867. 168 ACCIOLY, Hildelbrando; SILVA, G. E. do Nascimento e; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito
rnacional. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 867. p. 862.
129
procedimento do território no qual a sentença é invocada”, de modo que o processo de
reconhecimento não se dá pela orientação de um instrumento de Direito Internacional. Não
se constata uma universalidade com o condão de constranger os Estados nacionais em
razão de afastar procedimentos que permitem critérios discricionários ao seu
reconhecimento.
A determinação de como a arbitragem irá se perfazer depende ainda do
ordenamento do tribunal escolhido, o qual exercerá sua jurisdição em consonância com as
normas estabelecidas pelo seu ato constitutivo. No tocante a arbitragem mista, também
alcunhada pela sigla ISDS, do inglês, investor-state dispute settlement, ela é adotada por
algumas convenções específicas à temática dos investimentos.
Dentre elas se destacam a Convenção de Washington de 1965, responsável pela
criação do CIRDI (Centro Internacional para Resolução de Diferendos Relativos a
Investimentos), mais conhecido pela sigla, em inglês, ICSID (International Centre for
Settlement of Investment Dispute), criado no âmbito do Banco Internacional para
Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD).
Outra importante Convenção é a da UNCITRAL, sigla para designar a Convenção
das Nações Unidas sobre Direito do Comércio Internacional que, não obstante a menção ao
comércio, também engloba o ramo dos investimentos. Ela se relaciona intimamente ao
TPA, na medida em que utiliza da lista de árbitros fornecida por este para, assim, compor o
corpo dos julgadores dos tribunais que irão atuar pelos Regulamentos e pela Lei Modelo da
UNCITRAL.
Serão estas duas convenções, bem como seus respectivos tribunais que terão
destaque nas páginas seguintes em decorrência de importantes problemáticas que se
enlaçam com a União Europeia. Antes, todavia, deve-se atentar para a existência de outras
jurisdições para arbitragem mista, a exemplo do Instituto de Arbitragem da Câmara de
Comércio de Estocolmo (SCC); a Câmara de Comércio Internacional (ICC), sediada em
Paris; além do Tribunal Arbitral Internacional de Londres (LCIA), todos eles, frise-se, de
domínio privado.
Há quem prefira dividir a arbitragem mista sob duas vertentes, é o caso de Dolzer
e Schreuer169 que o fazem pela Convenção do ICSID de um lado e, de outro, pelas
convenções além do ICSID, na qual se situa a UNCITRAL e as demais citadas devem ser
169 DOLZER, Rudolf; SCHREUER, Christoph. Principles of International Investiment Law. 2. ed.
Oxford: Oxford University Press, 2012. p. 238-244.
130
compreendidas como jurisdições mais próximas desta, apesar de que não receberão
destaque devido aos propósitos deste estudo.
A Convenção de Washington de 1965 institucionalizou a resolução de disputas
entre Estados e nacionais de outros Estados. Para Carreau, apenas esta tratativa disfruta do
status de um acordo quadro (umbrella clause) de caráter multilateral, se constituindo no
primeiro e único acordo de vocação universal em matéria de arbitragem. Para este mesmo
autor, o ICSID se difere de qualquer outro centro de resolução de conflitos por arbitragem,
uma vez que não observa a necessidade de exequatur para a execução de sua sentença,
entendendo que ela, em si, já é um título executivo de efeitos forçados.
Larissa Ramina170 adiciona que o ICSID não consiste em um tribunal arbitral de
cariz permanente, mas sim um secretariado administrativo que se vale do recurso de listas
– a exemplo do que faz o TPA – para designar árbitros em disposição para resolver
determinada disputa. Para a autora, o grande trunfo do Centro é o de “deslocalizar” o
sistema de solução de controvérsias, o que vai ao encontro de Gaillard171 quando diz que os
“árbitros não têm foro” e que, se fosse preciso definir um, seria mesmo todo o mundo.
Neste mesmo sentido segue Carreau ao dizer que, afora as sentenças arbitrais prolatadas no
âmbito do ICSID, todas as outras deverão se valer das vias executórias fornecidas pela
justiça doméstica em que a decisão é vindicada.
Ramina elabora que o ICSID trabalha mediante três incumbências, quais sejam a
conciliação e a arbitragem – como já mencionado –, por um mecanismo suplementar e pela
competência de seu secretário-geral em poder desempenhar a função de indicar árbitros
para a resolução ad-hoc de conflitos.
No que tange ao mecanismo suplementar, cumpre assinalar sua grande valia, que
é a de administrar litígios que fogem à competência da Convenção de Washington, mas
que, em geral, buscam a conciliação ou a arbitragem para resolver suas querelas.
O mecanismo suplementar, ou seja, se dispõe a atender pessoas jurídicas em
conflito que, no entanto, não creditaram esta solução a Convenção de Washington de 1965,
talvez por não terem aderido ao seu ato constitutivo, ou ainda por entenderem a
170 RAMINA, Larissa. Direito Internacional dos Investimentos: Solução de Controvérsias entre Estados e
Empresas Transnacionais. Curitiba: Juruá, 2009. 171 GAILLARD, Emmanuel. Teoria Jurídica da Arbitragem. São Paulo: Atlas S.a., 2014. Tradução de:
Natália Mizrahi Lamas. “Esta obra apresenta a tradução em português do texto integral do curso [Aspects
philosophiques du droit d’arbitrage international] ministrado pelo advogado e professor Emmanuel Gaillard,
na Academia de Direito Internacional de Haia”. p. 1.
131
precedência da aplicação de outro direito. Esta última justificativa comumente está
relacionada a negação em preterir o direito nacional, a força de seus tribunais para
intervenção em conflitos internacionais de base contatual e para o controle da execução das
sentenças. Deste modo é de se concluir que o local onde decorrer a resolução da disputa,
pelo mecanismo suplementar, terá o poder de exercer grande influência no resultado
material e prático da decisão.
Além da conciliação e arbitragem, o mecanismo suplementar suporta ainda outros
dois procedimentos, quais sejam, a aplicação de um desses dois institutos quando o litígio
não envolver manifestamente matéria de investimento. Ademais, quando se tratar dos
auspícios das partes em promover a constatação de fatos, o que geralmente ocorre, à
semelhança da investigação ou inquérito, para subsidiar materialmente a pretensão prévia à
instauração de um diferendo, de maneira a privilegiar o conhecimento imparcial dos fatos
por um árbitro, em detrimento de questões puramente de direito.
A respeito da última função exercida pelo ICSID, que toca em especial nos
poderes de seu secretário-geral, há que se pontuar duas questões. A primeira é, como já
dito, a de indicação de árbitros para litígios que se projetam na arbitragem fora da atuação
de seu Centro, acolhendo o modo ad hoc, conforme norte estabelecido pelas Regras de
Arbitragem da UNCITRAL em 1976. De mais a mais, é conferido a mencionada
autoridade o poder de exercer uma competência quase-judicial, na medida em que lhe é
outorgado o dever de conhecer ou não as disputas frente à jurisdição do Centro e, assim,
procedendo ao juízo de admissibilidade (screening power)172.
A Convenção de Washington, cujo intento era promover o desenvolvimento
econômico, foi resultado de esforços despendidos pelo BIRD no fito de reduzir os riscos
políticos que acompanharam a relação do investidor com o Estado acolhedor. Não ao
acaso, o acordo ambicionava a implementação de igualdade processual entre as partes, o
que só poderia ser alcançado pela instauração de um meio neutro, despolitizado, o que só
seria possível pela derrogação da soberania estatal.
É importante colocar que, apesar de decorrer de propósitos visionados pelo BIRD,
o acordo em comento se inseria numa lógica maior, qual seja, o Grupo Banco Mundial que
alberga esta instituição e mais outras três além do ICSID, são elas: a Associação
Internacional para o Desenvolvimento (AID); a Corporação Internacional para Finanças
172 RAMINA, Larissa. Direito Internacional dos Investimentos: Solução de Controvérsias entre Estados e
Empresas Transnacionais. Curitiba: Juruá, 2009. p. 75.
132
(CIF); e a Agência Multilateral para Garantia dos Investimentos (MIGA), que aqui merece
destaque.
Com origem em outubro de 1985 em Seul, Coréia do Sul, seu objetivo (art. 2º),
conforme consta da convenção que a estabelece, é o de fomentar o fluxo de investimento
entre seus signatários, com ênfase naqueles em via de desenvolvimento. A MIGA atua de
modo estratégico para atrair investimentos às áreas de difícil operação, notadamente
fornecendo condições se segurança aos investidores focados em economias em
desenvolvimento. Nestas, há grandes riscos políticos para o setor privado e consequente
necessidade de um suporte como garantia em resposta às instabilidades.
A Agência persegue a reversão de tais riscos pela implementação de seguros
públicos e privados, aos quais subscreve, por meio de cosseguro e resseguro numa busca
para diversificar, através da cooperação mútua dos riscos assumidos.
O mecanismo de segurança proposto pela MIGA inclui proteção contra
expropriação direta e indireta – que inclui o não-pagamento de valor estipulado por
sentença arbitral – que inclui o não-pagamento de valor estipulado por sentença arbitral –
inconversibilidade monetária (ou a negação ou limitação ao direito de repatriação dos
lucros advindos do movimento de capital), e violações contratuais decorrentes de violência
política, sob o rol exemplificativo de conflitos civis, revoluções, terrorismo e ruptura de
acordos econômicos173.
Por fim, quanto à introdução de regras para a condução da arbitragem, a Comissão
estuda uma solução institucionalizada para o fato de não consistir em signatário da
Convenção de Washington de 1965 e, por sua vez, está ausente do mecanismo de resolução
do ICSID; estuda, ademais, a possibilidade de introdução de um código de conduta para
nortear as atividades dos árbitros, tendo em vista questões recorrentes relacionadas ao de
conflito de interesses.
Outra alternativa na lógica da arbitragem mista eram as regras estabelecidas pela
UNCITRAL, de modo que não se trata de um mecanismo para administrar procedimentos
em casos particulares, voltando-se ao direito privado na perspectiva internacional.
Seus principais instrumentos são o Regulamento de Conciliação de 1980, o
Regulamento de Arbitragem datado de 1976 e revisto em 2010, e sua Lei Modelo de
Arbitragem Comercial Internacional – também denominada por Lei Modelo CNUDMI.
173 DOLZER, Rudolf; SCHREUER, Christoph. Principles of International Investiment Law. 2. ed.
Oxford: Oxford University Press, 2012. p. 228-231.
133
Visava fornecer substratos normativos à instauração e condução de tribunais ad hoc, como
bem exemplifica Dolzer e Schreuer174. Doutrinariamente é contemplado como instituto
revestido de grande modernidade, concedendo-lhe inclusive importância de caráter
evolutivo para a matéria sobre a escolha da jurisdição aplicável, além do idioma e local do
procedimento.
Ramina175 observa dois fatores muito considerados quando da escolha das normas
substantivas da UNCITRAL, sendo um deles de aspecto positivo e o outro negativo sob a
perspectiva da segurança jurídica almejada.
Positivamente coloca que a Lei Modelo tem o condão de vincular seus signatários
à standards de proteção específicos à arbitragem, a serem internalizados, de forma cogente,
pelos ordenamentos jurídicos internos de suas partes, uma vez que a Convenção as obriga a
uma adequação doméstica em função dos padrões universalmente consagrados.
Negativamente se expõe que a UNCITRAL não fornece uma base jurídica no
sentido da execução de sentenças proferidas sob os auspícios de sua norma, não as
revestindo pelo manto da força executória direta. Consequentemente, deixa brechas às
reivindicações por incumprimento com fulcro na imunidade de execução respeitante aos
Estados.
Um exemplo de adoção de um ou de outro meio de resolução de litígios consta do
Projeto de Acordo Multilateral de Investimento (MAI)176, negociado no domínio da
Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). No projeto
consolidado do texto do MAI, de abril de 1998, ao dispor das resoluções de disputas, entre
Estados, a formação de um tribunal é prevista sob os auspícios do ICSID e, em alternativa
a este, estão as regras da UNCITRAL para um tribunal ad hoc ou a ICC (parte V, C, § 2º,
a). Para a relação investidor-Estado, o acordo possibilita o recurso da arbitragem (parte V,
D, § 2º) pelas seguintes vias: ICSID, Mecanismo Suplementar do ICSID, pelas regras da
UNCITRAL ou pelas regras de arbitragem da ICC177.
174 DOLZER, Rudolf; SCHREUER, Christoph. Principles of International Investiment Law. 2. ed.
Oxford: Oxford University Press, 2012. p. 243. 175 RAMINA, Larissa. Direito Internacional dos Investimentos: Solução de Controvérsias entre Estados e
Empresas Transnacionais. Curitiba: Juruá, 2009. p. 36. 176 OCDE. The Multilateral Agreement on Investment Draft Consolidated Text. Disponível em: <
http://www1.oecd.org/daf/mai/pdf/ng/ng987r1e.pdf>. Acesso em: 22 jun 2017. 177 OCDE. The Multilateral Agreement on Investment: Commentary to The Consolidated Text.
Disponível em: <http://www1.oecd.org/daf/mai/pdf/ng/ng988r1e.pdf >. Acesso em: 22 jun 2017.
134
Como é de se concluir, o MAI, apesar de visionar a liberalização extrema dos
investimentos; a proteção dos investidores, notadamente empresas transnacionais; ter tido
o potencial para ser o maior tratado econômico-jurídico-político de toda a história dos
investimentos; e perseguir um caráter de hard law às suas disposições – constituindo-se em
um instrumento convencional universalmente aplicável –, não vislumbrou a pretensão de
formular um novo mecanismo ou tribunal próprio para disputas decorrentes de
investimentos por ele protegidos.
O acordo não obteve sucesso em seu desígnio, posto nunca ter entrado em vigor, o
que se credita ao seu aspecto de excessiva promoção do liberalismo em detrimento dos
Estados acolhedores de investimento. Isso pode ter sido fruto de seu caráter juridicamente
vinculativo, o qual não conseguiu se articular perante uma ausente convergência de
interesses e de sentimento de representatividade entre a pessoas jurídicas envolvidas. 178
Em 2014, Jarrod Wong falava da subversão do modelo de resolução de disputas
de investimento pela arbitragem Estado-Estado, a qual deveria ser usada apenas quando o
conflito não pudesse ser resolvido pela independente arbitragem investidor-Estado. O
objetivo era que através da implementação de sistemas arbitrais mutuamente exclusivos, se
evitassem arbitragens maculadas pelo instituto da litispendência, além da possível
politização do diferendo, de onde podem resultar sentenças conflitantes.179
Agora, em 2017, parece que à União Europeia, não só o modelo Estado-Estado
está subvertido, como também o está a arbitragem investidor-Estado (ISDS), entendimento
que faz emergir a ideia de um tribunal próprio para investimentos.
178 REINISCH, August; BJORKLUND, Andrea K. Soft codification os international investment law.In:
REINISCH, August; BJORKLUND, Andrea K. International Investment Law and Soft Law. Cheltnham,
UK. Ed: Edward Elgar (EE). PG. 305-318. 179 WONG, Jarrod. The Subversion of State-to-State Investment Treaty Arbitration. In: Columbia Journal of
Translation Law. Disponível em: < http://jtl.columbia.edu/wp-content/uploads/sites/4/2015/01/Wong-Article-
53-CJTL-6.pdf>. Acesso em 22 jun 2017.
135
10. A PROTEÇÃO DAS NORMAS SUBSTANTIVAS POR UM NOVO
MECANISMO DE SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS
Em julho de 2010 a Comissão Europeia emitiu a Comunicação intitulada por
“Rumo a uma política europeia global em matéria de investimento internacional”180, na
qual formula parâmetros para a política futura de investimentos da União Europeia. O
órgão considerou as mudanças relativas à matéria introduzida pelo Tratado de Lisboa, bem
como pelos Tratados Bilaterais de Investimentos existentes entre os países-membros e
Estados terceiros.
Quanto ao primeiro aspecto, a Comissão frisa que a política de investimentos da
União Europeia será no sentido de guiar-se pelo princípio da não discriminação, do qual
são corolários o tratamento da nação mais favorecida e o tratamento nacional.
A Comissão se dedicou a resolução de litígios entre os investidores e o Estado.
Inseriu a arbitragem como meio vinculativo para socorrer os investidores em caso de
incumprimento das normas de proteção e promoção de investimentos por parte da figura
estatal. Ou seja, a Comissão observou a necessidade e importância de haver um mecanismo
ISDS de solução de controvérsias nos acordos firmados sob a égide da União Europeia,
conforme ocorria em considerável número de acordos bilaterais firmados por seus Estados-
membros antes do marco de Lisboa, quando a competência passou a ser exclusiva da
União.
Sob este novo prisma, é observada ainda a necessidade de complementar o
mecanismo, ante a sua eminente implementação na esfera da União Europeia o que, para
tanto, deve ocorrer sob o desenvolvimento de três pilares: promoção da transparência;
enfrentar a problemática da fragmentação dos litígios e das interpretações; e, introdução de
regras para a condução da arbitragem.
A promoção da transparência seria alcançada, segundo a Comissão, por
audiências públicas, inserção do instituto do amicus curiae, além da publicação das
decisões (mesmo em sede de arbitragem), por exemplo. A fragmentação dos litígios e das
interpretações, por sua vez, seria um meio de promover a coerência e a previsibilidade das
180 Comissão Europeia. Comunicação da Comissão ao Conselho, ao Parlamento Europeu, ao Comité
Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões: Rumo a uma política europeia global em matéria
de investimento internacional. Bruxelas, 7.7.2010. Disponível em: <
http://www.europarl.europa.eu/meetdocs/2009_2014/documents/com/com_com(2010)0343_/com_com(2010
)0343_pt.pdf >. Acesso em 20 maio 2015.
136
decisões – uma vez que a contumaz arbitragem ad hoc vai de encontro às práticas da
utilização dos mesmos árbitros –, além da criação de uma esfera recursal, no sentido de
promover a segurança jurídica.
Em novembro de 2013 a Comissão Europeia produziu o Investment Protection
and Investor-to-State Dispute Settlement in EU agreements, Executive summary181. Um
documento de dez páginas que expõe de modo claro as modificações decorrentes, no
âmbito dos investimentos, do Tratado de Lisboa.
No documento, os investimentos ISDS recebem destaque junto às disposições
sobre proteção de investimentos. São garantias mostradas como chave para que o
investidor tenha segurança na aplicação de seu investimento, consistindo em quatro: a
proteção contra discriminação, a proteção contra a expropriação, proteção justa e equitativa
e a proteção da transferência do capital.
Conforme lista Vital Moreira182, em especial atenção do TTIP (Transatlantic
Trade and Investment Paternship), há ainda grandes desafios e obstáculos nos processos de
negociação dos acordos de investimento, a exemplo das assimetrias constitucionais, das
divergências regulatórias e de interesses e setores protegidos. Neste horizonte, o autor
percorre a uma divisão de temas sensíveis entre às partes.
Para a Europa seria o protecionismo agrícola, as normas de segurança alimentar, a
proteção dos dados pessoais e a questão do ISDS, ao qual Vital Moreira dedica o adjetivo
“intratável”. Em contrapartida, para o lado americano enuncia as denominações de origem
geográfica europeias, as compras públicas, o protecionismo nos serviços e no investimento
e a vinculação do Estado. Destes temas somente o relativo ao ISDS é interessante a este
trabalho, tendo em vista que se trata de seu tema. Todavia, é preciso revelar que outras
questões citadas tangenciam a matéria e cedem explicações às divergências ora elencadas.
A peculiaridade das negociações no que é pertinente ao mecanismo ISDS pode ser
sintetizada pela alínea I, preambular, do Projeto de Relatório do Parlamento Europeu183 de
181 European Commission (Ed.). Investment Protection and Investor-To-State Dispute Settlement in EU
Agreements. Disponível em: < http://trade.ec.europa.eu/doclib/docs/2013/november/tradoc_151916.pdf>.
Acesso em: 30 jan. 2015. 182 MOREIRA, Vital. O acordo de comércio e investimento entre a UE e os EUA (TTIP): Ponto de vista
europeu. (FDUC / CEDIPRE). Disponível em: <http://forumcompetitividade.org/wp-
content/uploads/2015/05/TTIP_Apresenta%C3%A7%C3%A3o-Vital-Moreira.pdf>. Acesso em 23 maio
2015. 183 Parlamento Europeu. Comissão do Comércio Internacional. Projeto de Relatório que contém as
recomendações do Parlamento à Comissão Europeia para as negociações da Parceria Transatlântica
de Comércio e Investimento (TTIP) (2014/2228(INI)). Relator: Bernd Lange. 05 de fevereiro de 2015.
137
05 de fevereiro de 2015, o qual contém recomendações do Parlamento à Comissão acerca
das negociações da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento:
I. Considerando que o presidente Juncker afirmou igualmente de forma clara nas
suas orientações políticas que não aceitará a jurisdição dos tribunais nos Estados-
Membros seja limitada por regimes especiais para litígios de investidores (...).
Assim o é que Vital Moreira184 faz-se categórico ao apontar para a necessidade de
se “encontrar uma solução equilibrada quanto a proteção de investimento estrangeiro e
quanto à solução alternativa de litígio de investimento”. Com este objetivo foi que a
própria União Europeia, após os resultados da Consulta Pública sobre o TTIP, suscitou a
reflexão do tema pelos seus órgãos institucionais.
O mencionado projeto de relatório é ainda mais claro ao tratar das recomendações
relacionadas às regras a serem utilizadas pelo novo Tratado. De acordo com a
recomendação “e”, alínea XIV, a inclusão de um mecanismo de solução de controvérsias
entre investidor e Estado seria dispensável tendo em vista as grandes diferenças entre os
sistemas jurídicos europeu e americano – assim, ao que parece, o Parlamento estaria
negando a possibilidade de conclusão do TTIP com cláusulas relativas ao ISDS. Essa
negativa é então seguida da recomendação de utilização de um mecanismo de resolução de
litígios entre investidor e Estado sob uma nova roupagem, a qual deve albergar a utilização
dos tribunais nacionais dos Estados-membros da UE.
Sob esta perspectiva, há interessante estudo de Jan Kleinheisterkamp e Lauge
Poulsen que lançam uma visão do TTIP pelo viés dos possíveis mecanismos de solução de
litígios de investimento, nomeadamente dois, o modelo “The Australia-US Model” e o
“The ISDS Patches Model”185 – o qual é aqui de maior valia.
Os estudiosos caracterizam este último fundamentalmente sob dois pilares: a
participação das cortes locais e a inclusão de um mecanismo independente de recurso.
Disponível em: <
http://www.europarl.europa.eu/meetdocs/2014_2019/documents/inta/pr/1049/1049287/1049287pt.pdf>.
Acesso em 01 jun 2015. 184 MOREIRA, Vital. O acordo de comércio e investimento entre a UE e os EUA (TTIP): Ponto de vista
europeu. (FDUC / CEDIPRE). Disponível em: <http://forumcompetitividade.org/wp-
content/uploads/2015/05/TTIP_Apresenta%C3%A7%C3%A3o-Vital-Moreira.pdf>. Acesso em: 23 maio
2015. 185 KLEINHEISTERKAMP, Jan; POULSEN, Louge. Investment Protection in TTIP: Three Feasible
Proposals. Policy Brief. December 2014. Disponível em: <
http://www.globaleconomicgovernance.org/sites/geg/files/Kleinheisterkamp%20and%20Poulsen%20Decem
ber%202014.pdf >. Acesso em 1 jun 2015.
138
Quanto àquele, há de se dizer que teria por intuito servir como filtro às queixas do setor
privado, tanto no tocante às frívolas, como àquelas que podem ser resolvidas sem suscitar a
participação de cortes superiores ou supranacionais. Para frisar a importância destas cortes
no cenário repaginado do ISDS, as interpretações alcançadas em âmbito local adquiririam
o caráter obrigatório de aplicação e vinculação, de modo a se tornarem diretamente
exequíveis.
10.1 O Tribunal Multilateral de Investimentos
Foi, então, inevitável que a Comissão migrasse em favor de um meio diferente de
solução de controvérsias, em detrimento dos atualmente existentes, os quais não
contemplam todas as necessidades da União Europeia. Assim, aquele órgão vem
trabalhando, desde 2015, no Projeto de Tribunal Multilateral de Investimentos, de caráter
permanente para a realização de arbitragens.
Os documentos da União não se mostram uniforme quanto a natureza deste, por
vezes falam se tratar de uma reforma do mecanismo ISDS, enquanto em outros momentos
se referenciam a ele como um mecanismo completamente novo. Na verdade, parece ser
mais uma reforma do sistema ISDS que a criação de um novo modelo, posto que continua
a fazer uso da arbitragem, mas agora deverá fazer através de um tribunal permanente com
regras unificadas para a condução das disputas. Por outro lado, tem a grande ambição de
substituir todos os mecanismos de resolução existentes na órbita da União Europeia.
À parte desta diferença de classificação, os policy papers convergem no sentido
de caracterizarem os objetivos a serem perseguidos por meio da criação de um tribunal.
Primeiramente há a preocupação em intensificar a transparência nos procedimentos em
tela, além de impossibilitar a ocorrência de fórum shopping, a existência de demandas
múltiplas e paralelas e o conhecimento de reivindicações frívolas.
O Tribunal Multilateral de Investimentos efetuará suas atividades de forma
permanente para a solução de conflitos entre investidor-Estado. Isto inclui um corpo de
árbitros atuando intermitentemente segundo os mais rigorosos padrões éticos, inclusive o
dever de transparência e de fazer emergir a confiança nas decisões tomadas, além da
previsibilidade destas, possibilitando um contexto de formação de jurisprudência.
O novo órgão não está adstrito apenas aos membros da União Europeia, podendo
ser signatário qualquer Estado que se interesse pela proposta que aquele representa, na
139
condição de que já tenha se manifestado, em seus respectivos tratados de investimentos, no
sentido de aceitar a resolução de disputas entre investidor e Estado. Sua estrutura
comportará uma primeira instância, cujas decisões poderão ser revistas pelo seu órgão
recursal.
O Tribunal visiona abarcar competências tanto para os tratados de investimentos
que ainda serão firmados, quanto para aqueles que já se encontram em vigor na UE. No
âmbito destes últimos, é premente a realização de reformas para permitir a jurisdição do
Tribunal, o que vem sendo estudado, dentre outros meios, pela Avaliação Inicial de
Impacto186.
Deste documento consta a preocupação em alinhar os sistemas de resolução de
diferendos existentes na órbita dos acordos de comércio e investimento dos Estados-
membros, nos quais se inclui o Tratado da Carta da Energia, de modo a renegociá-los em
conformidade com as políticas em desenvolvimento pela União Europeia. Entretanto, a
Avaliação coloca que o processo de reformulação seria bastante complicado a estes
acordos e não observa uma resposta eficaz às suas previsões de uso do mecanismo ISDS
pela vertente ad hoc.
A outra alternativa à renegociação seria deixar que os tratados bilaterais de
investimento continuassem a vigorar no modo como foram concebidos até que o lapso
temporal de seu termo seja alcançado. Daí que o documento alerta que esse processo de
substituição pode levar muito tempo, observando inclusive o decorrer de décadas.
Contudo, pontua que, por outro lado, a renegociação de cada acordo para a
convergência rumo ao sistema ICS (Investment Court System) seria complexo e
desproporcional, ou seja, uma iniciativa irracional na medida em que se analisa a
probabilidade das disposições destes acordos suscitarem uma controvérsia que precise ser
conhecida no âmbito da arbitragem, haja vista que os outros meios de resolução de
conflitos não foram capazes de encontrar uma resposta à demanda.
Neste mesmo sentido vai o documento Investment in TTIP and beyond – the path
for reform: Enhancing the right to regulate and moving from current ad hoc arbitration
towards na Investment Court, o qual aborda a os desafios da União Europeia em
contemplar, na sua primeira geração de acordos de comércio e investimento, a proteção
deste e o mecanismo ISDS.
186 Comissão Europeia. Inception Impact Assessment . Disponível em: <http://ec.europa.eu/smart-
regulation/roadmaps/docs/2016_trade_024_court_on_investment_en.pdf>. Acesso em 21 jun 2017.
140
10.2 O Acordo entre a União Europeia e o Canadá (CETA)
Publicado em maio de 2015, o documento de condão conceitual se aprofunda nas
questões relativas à reforma em comento. Inicialmente ele assinala alguns avanços já
alcançados pelo CETA (Comprehensive Economic and Trade Agreement) àquela época,
muito embora seu processo de ratificação, inclusive nos dias atuais, ainda não se encontre
concluído, uma vez pendente a ratificação pelos membros da organização europeia.
Neste sentido, seis pontos daquele documento, referente ao acordo com o
Canadá, devem ser mencionados. Primeiramente, no que tange aos standards de proteção, o
CETA inovou ao estabelecer uma definição, um núcleo duro, aos termos que ainda não
dotavam de consenso pela doutrina e jurisprudência. Nomeadamente fala-se do tratamento
justo e equitativo e da expropriação indireta, da qual se desvinculou a possibilidade de
reivindicação com fulcro no direito de legítimas expectativas em decorrência de políticas
públicas implementadas pelo Estado.
O acordo impossibilitou também a ocorrência de fórum shopping e pontuou a
necessidade de implementar algo no sentido de fazer recorrerem diretamente ao
mecanismo de resolução de litígios investidor-Estado, em detrimento da exigência do
esgotamento dos recursos internos. Assim, em nome dos custos e da duração dos litígios, a
intenção da União Europeia é estabelecer um modo de fazer com que as partes decidam,
logo no contexto do surgimento do conflito, a jurisdição que irão se valer para resolvê-lo e,
portanto, evitar também a tramitação em paralelo de uma mesma disputa.
Duas opções são estudadas para preencher a lacuna em tela, quais sejam, pela
previsão da cláusula Fork-in-the-Road (FITR) ou pela abordagem No u-turn. A primeira se
remete à escolha, vinculativa, do tribunal que irá resolver o litígio, ou seja, se será um
tribunal investidor-Estado ou um de caráter doméstico. A segunda, por sua vez, é mais
contundente e estabelece a renúncia, pelos investidores, de recorrer às cortes domésticas,
obrigando-os necessariamente ao mecanismo ISDS.
O terceiro ponto diz respeito às regras de condução da arbitragem de conflitos
decorrentes do CETA, sobre o qual o Concept Paper fala em uma adoção das regras da
UNCITRAL para reger a transparência nos processos. Este ponto não veio a ser
confirmado, em agosto de 2016, pela Avaliação Inicial de Impacto para aplicação no TTIP,
o qual apenas se remete à aplicação de normas “comparáveis” às Regras de Transparência
da UNICTRAL.
141
Ainda sobre a condução das disputas, observa que o CETA adotou um código de
conduta, preciso e claro, para os árbitros. A questão ainda deve ser melhor trabalhada para
os acordos futuros, tendo em vista o objetivo de minar eventuais contextos de conflitos de
interesse. Isso porque, o mecanismo ISDS, desprovido da reforma, possibilita os árbitros
sejam escolhidos pelas partes conforme o caso, de modo que deixa brechas para que um
advogado em uma disputa se encontre na posição de árbitro em outra. Situação que
provoca indagações sobre a imparcialidade do julgador, bem como de sua independência
em julgar em favor do direito de regular dos Estados contra a proteção do investidor, que
pode lhe conferir incentivos financeiros em casos que, de alguma maneira, se encontram
vinculados. Desta forma os auspícios da União Europeia e de seus parceiros é pela
implementação de uma lista de árbitros permanente em virtude da nomeação por eles feita.
Outro marco inovador trazido pelo CETA foi o loser pays principle, ou seja, o
princípio segundo o qual o perdedor da disputa é quem deve arcar com os custos dela
oriundos. Foi este o modo encontrado para desencorajar o surgimento de disputas na via
arbitral, no sentido de afastar questões frívolas ou infundadas em razão do ônus financeiro
que a parte deverá suportar caso não obtenha êxito em sua reivindicação.
O sexto ponto que merece destaque é inovação da previsão de um mecanismo
recursal às demandas decididas em primeira instância, não subsistindo a sistemática de
instância única, contemplada pela grande maioria das arbitragens na atualidade. Todavia, o
documento conceitual observa que ainda há o que ser perseguido nesta seara. Assim,
aponta o Órgão de Apelação da OMC e a CIJ, como capazes de prestar-lhe parâmetros e
experiências no desenvolvimento de um modelo adequado aos imperativos da solução de
controvérsias investidor-Estado.
O documento Avaliação Prévia de Impacto indica ainda, que o Sistema de
Tribunal de Investimento deve ser lastreado por um projeto que contemple de flexibilidade,
de modo a antever as lacunas a serem preenchidas no tribunal. Como exemplo está a
previsão de que o mesmo evolua e venha a receber um maior número de demandas, de
modo que deve estar preparado para responder a elas de modo rápido e eficiente. Estes
adjetivos já são levados em linha de conta, em boa medida, pela pretensão de que seus
julgados sejam revestidos de execução direta.
142
Embora o órgão em comento ainda esteja na fase de planejamento, onde que
muitas conclusões podem não passar de inferências187, o CETA e o FTA UE-Vietnã (Free
trade agreement ou, no português acordo de livre comércio) já incluíram em seus textos
disposições no tocante ao processo de transição rumo ao Tribunal Multilateral de
Investimentos. Neste mesmo sentido é o que se pretende expandir estas normas de
transição para outros acordos, de comércio ou de investimento, em negociação, sob o fito
de proporcionar a coerência das políticas almejadas pela União Europeia.
Ainda da Avaliação, consta que não há um plano de implementação a ser
efetuado, uma vez que as negociações quanto ao tribunal multilateral de resolução de
disputas sobre investimento estão sendo aventadas pelo, já apreciado dispositivo 218 do
TFUE. Ademais, consta dali que o planejamento indicativo será realizado no terceiro
trimestre de 2017.
Em seguida aos documentos acima colacionados, a União Europeia emitiu dois
importantes documentos que promovem uma abordagem mais atualizada sobre a matéria.
São eles: Consultation Strategy - Impact Assessment on the Establishment of a Multilateral
Investment Court for investment dispute resolution188, dois discursos significativos da
Comissária Europeia para o Comércio, Cecília Malmström e um relatório referente a
reunião entre as partes interessadas na reforma do ISDS, o qual, limita explicitamente a
vinculação dessa reunião à uma assunção de posição oficial por parte da Comissão189.
Da estratégia de consulta, duas informações são ratificadas sobre a condução das
políticas voltadas à solução de controvérsia pela União Europeia, quais sejam: que a
orientação futura para os acordos de investimento e resolução de controvérsia nesta seara
devem prescindir dos termos expostos no documento sobre o TTIP, ora mencionado, de
maio de 2015. Ademais, a Comissão deixa clara a sua posição no sentido de que essas
novas orientações não devem se aplicar aos intra-EU-Bits, nem mesmo ao Tratado da Carta
de Energia.
187 REINISCH, August. NOTE: The Future Shape of EU Investment Agreements. In: ICSID Review,
Vol. 28, No. 1 (2013), pp. 179–196. Disponível em: <
http://deicl.univie.ac.at/fileadmin/user_upload/i_deicl/VR/VR_Personal/Reinisch/Publikationen/Thefuturesha
peEUInvestAgree.pdf >. Acesso em 26 maio 2017. 188 European Comission. Consultation Strategy: Impact Assessment on the Establishment of a
Multilateral Investment Court for investment dispute resolution. Disponível em: <
http://trade.ec.europa.eu/doclib/docs/2016/october/tradoc_154997.pdf>. Acesso em: 19 jun 2017. 189 European Comission.: Summary Report: Stakeholder meeting on a multilateral reform of investment
dispute resolution including the possible establishment of a multilateral investment court. Disponível
em: < http://trade.ec.europa.eu/doclib/docs/2017/march/tradoc_155418.pdf >. Acesso 19 jun 2017.
143
10.3 Os últimos documentos emitidos pela União Europeia
No discurso de 27 de fevereiro de 2017190, a Comissária Malmström assinala para
os valores da União Europeia no tocante ao tratamento justo aos investidores – do qual
pode se concluir da observância do tratamento nacional, tratamento da nação mais
favorecida e do tratamento justo e equitativo –, além da preocupação de estabelecer um
ambiente favorável ao investimento com base na não-discriminação, na compensação por
expropriações e na livre transferência de fundos.
A Comissária sentencia que o mecanismo ISDS é antiquado e distante daquilo que
pode ser considerado como um sistema perfeito e adequado. Na verdade, ela coloca que se
trata de um mecanismo bastante controverso, motivo pelo qual sua reforma é instada sob a
perspectiva de um acordo quadro multilateral, principalmente sob os auspícios de se
melhorar os aspectos de transparência, equidade, imparcialidade, responsabilidade e
efetividade.
No Summary Report de 27 de fevereiro de 2017, documento que embora não
possa vincular uma posição oficial da Comissão, expressa três interessantes preocupações
deste órgão institucional. Primeiramente a desconfiança de algumas partes interessadas no
novo mecanismo de resolução de litígios alegam que seja cedo para se articular a presente
reforma, já que sequer a reforma bilateral, decorrente das novas competências da UE foram
postas em práticas. Nenhum de seus acordos se encontram em vigor, muito embora se
deposite grande confiança que em breve o CETA estará sendo aplicado.
Ademais, o relatório aponta para uma preocupação sobre quais normas
substantivas devem ser ali veiculadas, colocando em hipótese as legislações nacionais e os
contratos privados, além dos obviamente assegurados acordos de investimento. A
importância desta escolha surge do fato de que o Tribunal Multilateral de Investimentos
poderá vir a ser o único órgão competente para interpretar normas oriundas dos mais
diversos ordenamentos jurídicos.
Por fim, ressalta-se que as partes interessadas demonstraram empenho em fazer
com que, dos instrumentos de adesão ao tribunal, não decorra uma renegociação dos
acordos de investimentos já em vigência.
190 European Comission. Reforming investment dispute settlement: Speech by Cecilia Malmström
European Commissioner for Trade. Disponível em:
<http://trade.ec.europa.eu/doclib/docs/2017/february/tradoc_155393.pdf>. Acesso em 19 jun 2017.
144
O documento mais atual de que se tem conhecimento é o discurso da Comissária
Malmström de 29 de maio de 2017, denominado por Transparent EU Trade and
Investment Policy191, em que dialoga com a sociedade civil e se disponibiliza para escutar
o que as partes interessadas têm a dizer, o fazendo com a máxima transparência possível.
O discurso esclarece os acordos de investimento que estão na agenda da União. O
primeiro a ser mencionado é o CETA que já conta com a aceitação do corpo institucional
da UE, concluída em 15 de fevereiro de 2017 pela posição favorável do Parlamento
Europeu. Por parte do Canadá, Senado e Parlamento já deram sua aprovação. Ou seja, sua
entrada em vigor está pendente unicamente pela ratificação dos membros europeus que
devem fazê-la em breve por seus parlamentos.
O Japão é mencionado com uma grande expectativa, no sentido de se aprofundar
os laços no comércio e investimento com o continente asiático, evidenciando um sinal
contra o protecionismo nestas matérias. Embora reuniões sobre esta articulação já tenham
sido realizadas, a Comissão ainda carece do mandato negocial a ser concedido pelo
Conselho.
Para o Mercosul, bem como para o México, a Comissão vislumbra a conclusão de
acordos até o final de 2017. Ademais, atualiza que também se encontra em negociação com
a Indonésia e a Turquia, além de estar se articulando para alcançar um mandato negocial,
com o Conselho, para tratar também com a Austrália, a Nova Zelândia e o Chile.
Por fim, compromete-se a emitir, até o final do corrente ano, o Relatório Trade for
All, pelo qual assinalará os avanços obtidos na comentada política comercial e de
investimento da
191 European Comission. Transparent EU Trade and Investment Policy. Disponível em: <
http://trade.ec.europa.eu/doclib/docs/2017/may/tradoc_155608.pdf >. Acesso em: 28 jun 2017.
145
11. CONCLUSÃO
O Tratado de Lisboa modificou significativamente as atribuições no quadro
institucional da União Europeia. Dentre inúmeras alterações, este trabalho se deteve em
analisar uma delas, qual seja, sua competência exclusiva para negociar e concluir acordos
com Estados terceiros, analisando os efeitos jurídicos, principalmente no que tange à
proteção dos standards de investimento e os meios para resolução de conflitos deles
decorrentes.
Primeiramente cumpre retomar a matéria fornecendo uma breve conceituação,
pela qual os investimentos diretos estrangeiros são aqueles capitais, com finalidade
produtiva, numa perspectiva de longo prazo, que têm como intento um mercado diverso ao
de seu investidor. Esse investimento visiona o controle de empresas no âmbito exterior,
fator que conta como seu principal cariz.
No caso da União Europeia, em se tratando de um mercado interno e único quanto
a matéria, não havia razão de sua regulamentação por pessoas jurídicas diversas, mas que,
teoricamente, possuíam os mesmos interesses de desenvolvimento econômico. Isto porque
a entrada de investimentos nos Estados-membros era regulamentada de acordo com o
ordenamento jurídico interno de cada um. Isto abria margem para a competitividade dentro
de um mercado único, caracterizando o comportamento dos investidores num panorama de
fórum shopping no contexto de escolha da jurisdição mais conveniente para conhecer do
conflito. Derroga-se, portanto, a admissão sob a tutela do direito interno dos Estados em
nome do parafederalismo que se pretende desenhar pelas instituições e pelo Direito
Constitucional da União Europeia.
Uma assimetria quanto a admissão dos investimentos diretos foi solucionada pelo
Tratado de Lisboa que, ao conceder competência exclusiva a União quanto a sua Política
Comercial Comum – a qual passou a incluir o IDE –, possibilitou uma proteção dos
investimentos de modo uníssono na fase pré estabelecimento – o que antes não ocorria – e
na fase pós-estabelecimento.
A pesquisa conclui que a União está no caminho para adotar o seu próprio modelo
regulatório de investimentos diretos, o qual se aproxima do modelo americano em razão do
liberalismo que sinaliza promover, marcado por uma proteção calcada no tratamento
nacional e no tratamento da nação-mais-favorecida.
146
Contudo, é preciso pontuar que a admissão dos investimentos continua padecendo
em decorrência de um certo protecionismo. Agora, no lugar de admitir os investimentos
conforme disciplina jurídica interna, passa a emitir restrições ao mercado externo
notadamente por meio do sistema de listas, positivas como é o procedimento adotado pelo
GATS, ou negativa como consta do projeto do CETA (Comprehensive Economic and
Trade Agreement) entre a UE e o Canadá. Esta sistemática negativa não é de todo ruim
uma vez que costuma vir acompanhada de mecanismos de restrição ao protecionismo,
como é o caso da cláusula standstill e do efeito ratchet.
Nenhum acordo de investimento sob os auspícios de Lisboa foi colocado em
vigência. Todavia, observa-se um contínuo e intenso esforço das instituições europeias
neste sentido. Afirmação que não se aplica somente a negociação e a ratificação de
acordos, mas também através de iniciativas institucionais que visionam barrar a vigência
de tratativas de investimentos que vão de encontro à competência exclusiva. É este o caso
de processos de infração instaurados pela Comissão sob o fito de pôr termo aos acordos
celebrados entre os Estados-membros antes do Tratado Reformador de Lisboa.
Muito embora, frise-se, os documentos mais recentes emitidos pela União
sinalizam para uma existência em paralelo dos acordos firmados antes de Lisboa, incluindo
o Tratado da Carta da Energia, em distinção dos posteriores. Para aqueles se vislumbra a
continuação dos mecanismos clássicos de resolução de litígios, prevendo, em alguns casos,
a disputa, em sede de arbitragem, entre investidor e Estado. Todavia, o horizonte que se
abre vem buscando promover uma nova sistemática, qual seja, o Tribunal Multilateral de
Investimentos.
A instituição ainda parece distante de ser colocada em prática. Ainda são
estudadas as hipóteses de condução de suas atividades, a qual se busca fazer no sentido de
preencher as lacunas deixadas pelos demais meios de solução de conflitos. Até o presente
momento, as duas condições mais animadoras a serem implementadas pelo tribunal é o
caráter permanente de seu corpo de árbitros, distanciando-se da lógica ad hoc, inclusive no
que tange a criação de um código de condutas para as atividades de seus julgadores, o
compromisso com a transparência e efetividade das decisões.
Ademais, a União demonstrou seu total com a matéria ao deixá-la, desde logo,
explícita nos termos do CETA. É um sinal de sua motivação e responsabilidade em
promover a liberalização dos investimentos, não somente no âmbito europeu, como
147
também para todo o mundo, destacando-se como uma nova e bastante louvável iniciativa
para guiar os caminhos do IDE no futuro.
Portanto, mesmo tendo decorrido um significativo lapso temporal desde a
reforma, acredita-se em seu aprofundamento, principalmente no que tange ao sistema de
resolução de conflitos, com destaque para a arbitragem.
Ainda parece cedo, entretanto, para falar na existência de um modelo próprio de
investimentos. Será preciso observar se as tendências assinaladas, como prenúncio neste
trabalho, encontrarão vigência, o que pode ocorrer em um futuro próximo pela ratificação
do CETA nos parlamentos dos Estados-membros da UE.
148
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