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PDL – Projeto Democratização da Leitura
Apresenta:
PDL – Projeto Democratização da Leitura
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Para Ellen, Adam e Katharine.
PDL – Projeto Democratização da Leitura
Coordenação editorial: Maristela Petrili de Almeida Leite Valentim Rebouças Lenice
Bueno da Silva Edição do texto: Marcelo Gomes Assistência Editorial: Ana
Lucia Santos
Tradução: Ana Maria Machado Preparação de texto: Márcio Della Rosa Coordenação
de Revisão: Estevam Vieira Ledo Jr. Revisão; Ana Maria Tavares Edição de Arte: A+
Comunicação Ilustração da capa e miolo: Rogério Soud Saída de filmes: Hélio P. de
Souza Filho Impressão e acabamento:
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do
LIVRO, SP, Brasil)
Garner, Alan
A lua de Gomrath / Alan Garner ; ilustrado por Rogério Soud ; traduzido por Ana
Maria Machado. — 2. ed. — São Paulo : Moderna, 2006.
Título original: The moon of Gomrath.
1. Literatura infanto-juvenil I. Soud, Rogério II. Título.
06-0674 __________________ CDD-028-5
índices para catálogo sistemático:
1.Literatura infanto-juvenil 028.5
2.Literatura juvenil 028.5
Originally published in English by Harper Collins Ltd under the title The moon of
Gomrath Copyright © Alan Garner 1963 The author asserts the moral right to be
identified as the author of this work. Published by arrangement with Harper Colins
Publishers Ltd.
Todos os direitos reservados no Brasil por Editora Moderna Ltda. Rua Padre Adelino,
758, Belenzinho, 03303-904 - São Paulo, SP Vendas e Atendimento: Tel.: ( 0 1 1 ) 6090-
1500 Fax: ( 0 1 1 ) 6090-1501 www.moderna.com.br Impresso no Brasil, 2006
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Nota aos Leitores
O autor afirma que as coisas e os locais mencionados em A pedra encantada de Brisingamen
e sua sequência, A lua de Gomrath, realmente existem, com exceção de Fundindélfia, mas ele
trocou um pouco seus lugares. Garante também que os ingredientes das histórias são
verdadeiros, os encantamentos são genuínos (embora incompletos, para evitar eventuais
problemas) e os nomes são reais, mesmo se os personagens são inventados. Muitos desses
nomes vieram da literatura celta e podem ter sido assuntos de histórias antigas, há muito
perdidas.
Da mesma forma, a maioria dos elementos e das entidades dos livros aparecem de
uma forma ou de outra no folclore tradicional das Ilhas Britânicas. Mas o autor os adaptou
a sua própria visão. Os Einheriar, por exemplo, eram os guarda-costas dos deuses na
mitologia escandinava. O Herlathing era a forma inglesa da Caçada Selvagem e Garanhir, "A
Pessoa que podia dar Chifradas", era um dos muitos nomes de seu chefe, mas a natureza
dessa Caçada Selvagem que aparece aqui está mais próxima ao ciclo de mitos irlandeses.
Para escrever estas histórias, o autor pesquisou em vários livros, cujos títulos constam
de uma bibliografia na edição original, e usou nomes arcaicos para lugares habitados por
anões e elfos.
Na tradução, quando achamos que era o caso, demos uma versão em português de
certos nomes próprios (como o Poço Sagrado, o Farol, a Colina da Samambaia Negra). Mas
deixamos vários em sua forma original, para evocar a sonoridade poética que ajuda a
compor esse universo fantástico. Além disso, mantivemos também algumas palavras que
são importantes para criar esse clima, mesmo não existindo em nossos dicionários. Nesse
caso, sempre dá para adivinhar seu sentido a partir do contexto em que ocorrem. É o caso
de lios-alfar, cantrefe, palugue, bodaque — entre outras. Como todo leitor sabe, há palavras
mágicas, e é com elas que se fazem encantamentos. Nas páginas de Alan Garner, cumprem
magnificamente essa função.
Ana Maria Machado
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Highmost Redmanhey Fazenda na Borda de Alderley, onde Susan e Colin vão se hospedar.
É propriedade do casal Mossock.
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Os irmãos Colin e Susan Por causa de uma viagem dos pais, passam uma temporada em Highmost Redmanhey, onde vão viver incríveis aventuras.
Gowther e Bess Mossock e seu cão, Scamp. Seus hóspedes vão trazer o mundo da fantasia para Highmost Redmanhey.
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Cadellin Argentesta, o
mago.
Há séculos vive em Fundindélfia,
a velha mina dos anões. É o guar-
dião dos cavaleiros da Caverna
dos Adormecidos.
Atlendor, senhor dos elfos
Busca desesperadamente salvar
seu povo, os lios-alfar, do Grande
Mal que vem causando sua
desaparição.
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Uthecar Hornskin, o anão.
Lutador incansável. Perdeu um
olho numa luta com a feiticeira
Morrigana.
Alhanac, o cavaleiro.
Vai conduzir Susan e Colin, através dos portões de ferro, de volta a Fundindélfia, a velha mina dos anões.
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"E, para passar o tempo, que seja este um livro agradável de se ler, mas, para que se lhe dê fé e se tenha crença
em que é tudo verdadeiro o que nele contém, que fique isso a seu critério."
William Caxton
31 de julho de 1485
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• 1 •
Os elfos de Sinadon
azia frio e ventava muito na estrada de Mottram, abaixo da Borda, colina de
Alderley, que era coberta de bosques. As árvores eram sacudidas de um lado para
outro, lá em cima na escuridão. Se alguém precisasse sair de casa numa noite dessas,
tinha de afundar bem a cabeça por baixo da gola, ficando com o rosto todo e nrugado, sem
enxergar nada, e avançar contra o vento. E era bom mesmo que fosse assim, porque o que
estava acontecendo por entre as árvores não era para olhos humanos.
De uma fresta da Borda escapava uma faixa de luz azul que cortava a escuridão.
Vinha de uma fenda estreita num rochedo alto que parecia um enorme dente, e dentro dela
havia um portão duplo, de ferro, escancarado. Passando por ele, chegava-se a um túnel.
Sombras se mexiam por entre as árvores, enquanto uma funesta procissão ia pelo portão,
sumindo dentro da colina.
Eram pessoas minúsculas, de pouco mais de um metro. Tinham o peito afundado e a
cintura fina, e seus braços e pernas eram compridos e magros. Vestiam túnicas curtas, com
cinto e sem manga, e estavam descalças. Alguns usavam mantos de penas de águia branca,
que eram sinal de distinção, não agasalho. Seguravam arcos de curva acentuada. De um
lado do cinto, portavam aljavas cheias de flechas brancas. Do outro, espadas largas. Todos
montavam pequenos cavalos brancos. Alguns iam eretos e orgulhosos, mas a maior parte
deles se curvava sobre o santo-antônio da sela, e alguns até jaziam completamente imóveis
sobre os pescoços de suas montarias, enquanto as rédeas eram seguras pelos
companheiros. Ao todo, eram uns quinhentos.
Ao lado dos portões de ferro, estava parado um velho. Era muito alto e magro como
uma árvore do bosque, uma bétula nova. Suas vestes alvas, seus cabelos e barba brancos,
compridos, esvoaçavam com o vento. Apoiava-se num cajado que também era branco.
Devagar, os cavaleiros foram passando pelos portões e entrando no túnel luminoso.
Quando todos já estavam lá dentro, o velho se virou e os seguiu. Os portões de ferro
rangeram e se fecharam após sua passagem. Ficou apenas um rochedo nu, sob o vento.
Dessa maneira, sem que ninguém percebesse, os elfos de Sinadon foram para
Fundindélfia, o último baluarte da Alta Magia em nossos dias. E lá foram recebidos por
Cadellin Argentesta, um grande mago, guardião dos lugares secretos da Borda.
F
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• 2 •
O Poço
pa! — disse Gowther Mossock. — O que é isto?
— O quê? — perguntou Colin.
— Isto que está aqui, no jornal.
Colin e Susan chegaram mais perto, para ver o que o dedo de Gowther estava
apontando, uma manchete perto do meio da página.
EXPLORANDO AS PROFUNDEZAS
Despertou muita curiosidade a descoberta do que parece ser um poço de dez metros de profundidade,
durante escavações realizadas em frente ao Hotel Trafford Arms, na Borda de Alderley.
Trabalhadores contratados por Isaac Massey e Filhos estavam cavando a terra em busca de um lençol
d'água que causava infiltrações na superfície, quando deslocaram uma laje de pedra e descobriram uma
cavidade. Ao baixarem uma corda com um peso na ponta, constataram que a profundidade aproximada tinha
cerca de dez metros, dos quais cinco ficavam debaixo d'água. O poço não tinha nenhuma ligação com o
vazamento e, embora não se tenha removido toda a cobertura, estima-se uma área de aproximadamente dois
metros quadrados para a cavidade, que tem paredes forradas de lajotas de pedra.
Foi aventada a hipótese de que antigamente teria existido uma bomba d'água em frente ao hotel. As
escavações podem ter revelado o poço do qual a água era bombeada.
Outra teoria provável é a de que se trate de um respiradouro, ligado às galerias de antigas minas, que se
estendem por uma distância considerável em direção à aldeia.
• • •
— O engraçado — disse Gowther quando as crianças acabaram de ler — é que, desde
que eu me entendo por gente, sempre ouvi dizer que existe um túnel que vem das minas
de cobre até o porão do Trafford. E agora ele aparece. Fico imaginando o que pode ser isso,
finalmente.
—E
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— Não sei por que tanto interesse — disse Bess Mossock. — É só um buraco molhado,
seja o que for. E por mim, pode ficar por lá o tempo que quiser.
Gowther riu:
— Ei, garota, cadê a sua curiosidade?
— Na minha idade, e me arriscando a engordar que nem a Porca Eilen, ando com
outras coisas na cabeça, se quiser saber. Não dá para ficar metendo buracos cheios dágua
dentro dela.
— Deixe disso... Todo mundo tem outras coisas pra pensar. Eu tenho de fazer minhas
compras, e vocês ainda não acabaram.
— Será que a gente não podia ir só dar uma olhadinha? — propôs Susan.
— Era o que eu ia sugerir — disse Gowther. — É logo ali, depois da esquina. Não leva
mais que dois minutos.
— Pois então, podem ir — disse Bess. — Espero que se divirtam. Mas não fiquem o
dia todo por lá, hein...
• • •
Saíram do mercadinho e foram para a rua da aldeia. No meio dos carros estacionados,
a carroça verde da família Mossock, com seu cavalo branco, Príncipe, era uns trinta anos
mais velha do que tudo o que estava em volta. Mas os Mossock também eram. Bess, com
seu casaco comprido e um chapéu redondo e de abas preso no cabelo com um longo
alfinete, e Gowther, usando colete e suspensórios, não viam razão para mudar a vida de
sempre. Estavam acostumados a viver assim. Uma vez por semana saíam de Highmost
Redmanhey, a fazenda que tinham na encosta sul da Borda, e vinham de carroça até a
aldeia de Alderley, fazer a entrega de ovos, frangos e verduras aos fregueses. Quando
Colin e Susan tinham chegado, para ficar em Highmost Redmanhey, no começo, tudo tinha
parecido meio estranho. Mas eles logo se adaptaram aos costumes dos Mossock.
Gowther e as crianças foram a pé, deixando a carroça para trás, e seguiram pela
distância curta que subia a rua até o Trafford Arms, uma estalagem construída segundo
um ideal de beleza do tempo da rainha Vitória, num estilo meio gótico, mostrando a
estrutura de peças de madeira aparente.
Na frente do prédio, tinham cavado uma espécie de trincheira, de um metro de
profundidade, bem junto à parede. Gowther subiu no monte de terra e barro, ao lado, e
olhou lá para baixo.
— Aí está.
Colin e Susan subiram também.
O canto de uma lajota de pedra brotava da escavação, pouco acima do chão. Um
pedaço da lajota estava quebrado, deixando um buraco de menos de meio palmo. Era tudo.
Susan pegou uma pedrinha e a jogou pelo buraco. Passou um segundo até se ouvir um
ploft, ressoando, quando ela bateu na água.
— Não dá para saber muita coisa, não é mesmo? — disse Gowther. — Você está
conseguindo ver?
Susan tinha pulado para dentro da escavação e estava abaixada, espiando pelo buraco.
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— É redondo... feito um túnel em pé. Parece que tem alguma coisa espetada, uma
espécie de cano... não dá pra ver mais nada.
— Vai ver que é mesmo só um poço — disse Gowther. — Pena... eu bem que ia gostar
se a velha história fosse verdade.
Voltaram para a carroça. Quando Bess acabou as compras, continuaram fazendo sua
ronda de entregas. Só terminaram no fim da tarde.
— Imagino que vocês vão querer voltar pra casa a pé pelo bosque, como das outras
vezes.
— Isso mesmo, por favor... pode?
— Por mim, achava melhor desistir dessa idéia — disse Gowther. — Mas se estão
mesmo querendo tanto, podem ir... só que duvido que achem muita coisa. E tratem de ir
direto pra casa. Daqui a uma hora já vai escurecer, e esses bosques podem ser muito
perigosos de noite, traiçoeiros... Vocês podem cair num buraco de mina de uma hora para
outra.
Colin e Susan foram andando pelo sopé da Borda. Faziam isso toda semana, enquanto
Bess e Gowther voltavam para casa na carroça. E toda vez que arranjavam um tempinho
livre, iam também até a colina, andar à toa, procurando...
Nos primeiros quinhentos metros, a estrada era margeada por jardins suburbanos,
seguros. Depois, começavam a aparecer umas plantações e num instante a aldeia ficava
para trás. À direita, erguia-se a encosta norte da Borda, vertical, saindo diretamente do
caminho de pedestres, com algumas faias se curvando sobre a estrada e a crista íngreme,
cheia de pinheiros e pedras.
Os dois saíram da estrada e tomaram a picada estreita por entre as árvores. Durante
algum tempo foram subindo em silêncio, embrenhando-se pelo bosque. De repente, Susan
falou:
— Mas, na sua opinião, qual é o problema? Por que não podemos encontrar Cadellin
agora?
— Pelo amor de Deus, não me venha com essa história de novo... — disse Colin. — A
gente nunca soube como é que se pode abrir os portões de ferro, ou a entrada do Poço
Sagrado de Holywell, então não temos muita chance de encontrá-lo.
— Sei disso, mas por que é que não está querendo nos ver? Antes, eu podia entender
quando ele sabia que não era seguro vir até aqui. Mas agora não. Do que é que tem medo
já que Morrigana foi embora?
— Aí é que está... — disse Colin. — Será que foi mesmo?
— Só pode ter ido — disse Susan. — Gowther disse que a casa dela está vazia, e todo
mundo na aldeia confirma.
— Mas pode muito bem estar viva e não estar em casa — disse Colin. — Andei
pensando muito: a única vez que Cadellin fez isso conosco foi quando achou que ela
estava por perto. Então agora, das duas uma: ou ele se cansou da gente, ou está havendo
algum problema. Só pode ser. Senão, por que ia ser sempre assim?
Tinham chegado ao Holywell, o Poço Sagrado. Ficava no sopé de um penhasco, em
um dos numerosos vales da Borda. Era um buraco raso e longo na pedreira, no qual
pingava água da rocha. Ao lado, havia outra bacia, menor, em forma de le que, e em cima
dela uma fresta na face do rochedo — era o segundo portão para Fundindélfia, as crianças
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sabiam. Mas agora, o que estava acontecendo, semana após semana, era que seus
chamados não tinham resposta.
Não faz parte desta história contar como Colin e Susan foram levados pela primeira
vez ao mundo da Magia, que está tão perto de nós e nos passa tão despercebido, como o
que está por trás das sombras1. Mas depois de terem feito amizade com Cadellin
Argentesta, agora estavam muito magoados porque ele parecia tê -los abandonado, sem
nenhum motivo ou aviso. Quase desejavam nunca ter descoberto encantamento algum.
Não podiam suportar a idéia de que o bosque para eles fosse vazio de tudo, a não ser de
beleza. Ou de que a pedra que escondia os portões de ferro fosse apenas uma pedra, e que
o penhasco por cima do Poço Sagrado não passasse de um penhasco.
— Vamos — chamou Colin. — Ficar olhando não vai fazer o portão abrir. E se a gente
não se apressar, não vamos chegar em casa antes de escurecer. E você sabe como Bess
gosta de reclamar.
Foram saindo do vale para o alto da Borda. No crepúsculo, os galhos se erguiam
contra o céu e a penumbra corria pela grama, virava um breu nas fendas e nas bocas dos
túneis das velhas minas, que cortavam o bosque com seus monturos de areia e pedregulho.
Ouvia-se o assobio do vento, embora as arvores não se mexessem.
— Mas eu tenho certeza de que Cadellin daria um jeito de nos avisar, se não
pudéssemos...
— Espera aí! — interrompeu Colin. — O que é aquilo? Você está vendo?
Estavam andando pelo lado de uma pedreira, desativada havia muitos anos. O chão já
estava coberto de capim e mato, e por isso só o paredão nu fazia com que aquele vale fosse
diferente dos outros que havia na Borda. Mas esse despojamento dava ao lugar uma
atmosfera primitiva, uma sensação de isolamento que, ao mesmo tempo, era inquietante e
tranqüila. Parecia que nesse lugar a noite chegava mais depressa.
— Onde? — perguntou Susan.
— Na outra ponta da pedreira, um pouquinho à esquerda daquela árvore.
— Não...
— Lá vai de novo! Sue! O que é aquilo?
O vazio do vale estava sombrio, mas uma mancha de escuridão se mexia, mais
sombria do que o resto. Flutuava por cima do capim, sem forma, achatada, mudando de
tamanho, e subia a superfície do penhasco. Em algum ponto no meio da mancha, se é que
aquilo tinha um meio, havia dois pontos de luz vermelha. Deslizou pela beirada da
pedreira e foi absorvida pelo mato.
— Você viu? — perguntou Colin.
— Vi. Quer dizer, se havia alguma coisa, eu vi. Pode ter sido só... um efeito de luz.
— E você acha que era só isso?
— Não.
1 Esta história é contada no livro A pedra encantada de Brisingamen, que também faz parte desta coleção. (Nota da editora.)
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• 3 •
Atlendor
gora estavam com pressa. A diferença podia estar neles mesmos ou no bosque, mas
Colin e Susan sentiam que alguma coisa tinha mudado. De repente, a Borda se
tornara não exatamente maléfica, mas estranha, insegura. E eles estavam loucos
para chegar a um lugar aberto, sair do meio das árvores. Talvez fosse só efeito da luz ou
dos nervos, ou dos dois ao mesmo tempo, mas alguma coisa ainda parecia estar brincando
de assustá-los. A toda hora imaginavam que havia um movimento de algo branco por
entre o alto das árvores — nada muito definido, mas insinuado e fugidio.
— Você acha mesmo que havia alguma coisa lá na pedreira? — perguntou Susan.
— Sei lá... e se houvesse, o que seria? Acho que deve ter sido mesmo só um efeito de
luz. Não acha?
Mas antes que Susan pudesse responder, ouviu-se um assobio no ar. As crianças
deram um pulo para o lado, enquanto um pouco de areia jorrou a seus pés, bem entre elas.
Olharam e viram uma flecha, pequenina e branca, fincada bem no meio do caminho. E
enquanto olhavam, espantados, uma voz firme falou, vinda da escuridão, acima de suas
cabeças.
— Não movam um único músculo de seus músculos, uma única veia de suas veias, um
único fio de cabelo de suas cabeças, senão eu hei de lhes lançar tantos dardos, do mais fino
carvalho, que vocês ficarão costurados na terra.
Instintivamente, Colin e Susan olharam para cima. Diante deles, uma bétula muito
velha lançava seu tronco em arco por cima do caminho. Entre os galhos da árvore, estava
de pé uma figura miúda, parecida com um homem, mas de pouco mais de um metro.
Usava uma túnica branca e tinha a pele morena, crestada pelo vento. Os cachos de seu
cabelo, colados à cabeça, pareciam labaredas de prata. E os olhos... bem, eram olhos de
cabra. Emitiam uma luz que não se refletia em nada no bosque. Nas mãos, a criatura
segurava um arco muito curvado.
No primeiro momento, Colin e Susan ficaram parados, incapazes de dizer qualquer
coisa. Depois, a tensão dos últimos minutos fez Colin estourar.
— Que idéia é essa? — gritou. — Quase nos acertou com essa coisa!
— Ah, pelos Donas! Ah, por santa Mothan! É ele mesmo, o que fala com os elfos!
Colin e Susan levaram um susto com essa voz cheia, que dava gargalhadas. Viraram -
se e viram outra figura pequena, porém mais troncuda, parada no caminho atrás deles,
com os cabelos vermelhos brilhando sob as últimas luzes do dia. Poucas vezes tinham
A
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visto uma cara tão feia. Tinha uns lábios enormes, dentes separados, verrugas na cara,
nariz de batata, barba e cabelo embaraçados e uma pele ressecada como as cascas das
árvores no auge do inverno. O olho esquerdo era coberto por um tapa-olho, mas o direito
valia por dois. Sem dúvida, era um anão. Adiantou-se e deu uma palmadinha no ombro de
Colin, com tanta força que o corpo do menino balançou:
— E este sou eu, Uthecar Hornskin, que amo vocês por causa disso! Salve! E agora,
será que Sua Alteza não quer descer da árvore e falar com os amigos?
O vulto branco no alto da árvore não se mexeu. Parecia não ter ouvido nada. Uthecar
continuou:
— Estou achando que há outros lugares neste bosque esta noite que estão muito mais
necessitados das flechadas dos elfos do que aqui! Vejo que Albanac se aproxima e ele não
parece nada tranqüilo!
O anão estava olhando para o caminho lá na frente, mais adiante de Colin e Susan.
Eles não conseguiam ver tão longe no escuro, mas ouviram o som distante de cascos de
cavalo se aproximando. Cada vez mais alto, cada vez mais perto, até que do meio da noite
surgiu um cavalo negro, com olhos selvagens e molhado de suor. Esparramando areia,
parou de repente junto a eles. O cavaleiro, um homem alto, também vestido de pre to,
chamou em direção ao alto da árvore:
— Atlendor, meu senhor! Encontramos o que procurávamos, mas está fora do bosque,
para o sul, e se move depressa demais para mim. Ermid, filho de Erbin, Riogan, filho de
Moren, e Anwas, o Alado, com metade dos cavaleiros de seu cantrefe, estão vigiando, sem
tirar o olho. Mas não bastam. Depressa!
Seu cabelo liso e negro chegava aos ombros, o ouro brilhava em uma de suas orelhas,
e seus olhos pareciam queimar como gelo. Na cabeça, tinha um chapéu de copa alta e abas
largas e os ombros estavam envoltos por uma capa ampla, presa com uma fivela de prata.
— Estou indo. Albanac ensinará a esta gente o que desejo.
Ligeiro, o elfo correu pelo tronco da bétula acima, e desapareceu no meio da copa da
árvore. Houve apenas uma brancura esvoaçando pelas árvores em volta, como se fosse
uma rajada de neve. E por entre os galhos soou um barulho parecido com o do vento.
Durante algum tempo, ninguém falou. O anão dava a impressão de estar se divertindo
muito com a situação, contente em deixar que os outros fizessem o movimento seguinte. O
homem chamado Albanac olhava as crianças. Colin e Susan ainda estavam se recuperando
da surpresa e se acostumando com o fato de que estavam novamente no mundo da Magia
— ao que parecia, por acaso. E agora que estavam lá outra vez, lembravam-se de que não
era apenas um mundo de encantamento, mas também de sombras profundas.
Estavam caminhando para dentro daquele mundo desde que tinham chegado à
pedreira. Se tivessem reconhecido essa atmosfera antes, os choques sucessivos dos
encontros com o elfo, o anão e o cavaleiro não teriam sido tão fortes nem os te riam
deixado sem fôlego.
— Acho que agora — disse Albanac — a questão não está mais nas mãos de Cadellin.
— O que você quer dizer com isso? — disse Colin. — E o que está acontecendo?
— Ia levar algum tempo para explicar o que quero dizer. Ou o que está acontecendo,
aliás. E o lugar para essas explicações é Fundindélfia, então é melhor irmos juntos.
— Não há nada mais urgente para você resolver no bosque esta noite? — perguntou
Uthecar.
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— Nada que a gente possa fazer — disse Albanac. — A velocidade e os olhos dos elfos
são nossa única esperança, e tenho medo de que mesmo eles não sejam o s uficiente.
Apeou do cavalo e seguiu a pé, com as crianças e o anão, pela picada aberta na mata.
Mas depois de algum tempo, Susan percebeu que não estavam andando na direção do
Poço Sagrado.
— Não seria mais rápido se fôssemos por ali? — perguntou, apontando para a
esquerda.
— Seria — confirmou Albanac —, mas por aqui o caminho é mais largo, e isso
representa uma grande vantagem esta noite.
Chegaram a uma espécie de clareira, de pedra e areia, que se estendia até a beirada da
Borda. Era a Ponta das Tormentas, um lugar de onde dava para se apreciar a paisagem
durante o dia, mas que agora não parecia muito amistoso. De lá, cruzaram por cima das
pedras até Saddlebole, que era uma ponta do morro que avançava para dentro da planície.
Bem no meio dela erguia-se um rochedo alto e arredondado.
— Pode fazer o favor de abrir os portões, Susan? — pediu Albanac.
— Não consigo. Já tentei uma porção de vezes.
— Colin — disse Albanac —, por favor, encoste a mão direita na pedra e diga a
palavra Emalagra.
— Assim?
— É.
— Emalagra!
— De novo.
— Emalagra! Emalagra!
Não aconteceu nada. Colin recuou, com cara de bobo.
— Agora Susan — insistiu Albanac.
Susan deu um passo até junto da pedra, e encostou nela a mão direita.
— Emalagra. Viu? Não adianta. Já tentei muitas vezes e não...
Apareceu uma fresta na pedra. Foi crescendo e revelando um par de portões de ferro.
E atrás deles, um túnel iluminado por uma luz azul.
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• 4 •
O Brollachan
ão vai abrir os portões? — perguntou Albanac. Susan esticou a mão e
tocou os portões de ferro.
Eles se abriram sozinhos.
— Depressa — disse Uthecar. — A noite é muito mais saudável lá dentro do que aqui
fora.
Apressou as crianças a passarem logo pelo portão. A pedra se fechou de novo assim
que todos acabaram de entrar.
— Por que eles se abriram? Antes nem se mexiam — disse Susan.
— Porque você disse a palavra. E também por outra razão que depois vamos discutir.
Foram descendo com Albanac pelos caminhos de Fundindélfia. Um túnel levava a
uma caverna, a caverna dava passagem a um túnel, e assim seguiram, de túnel em túnel e
de caverna em caverna, todos diferentes e todos iguais. Parecia não haver fim.
Quanto mais fundo iam, mais forte ficava a pálida luz azul . Assim, as crianças
souberam que estavam se aproximando da Caverna dos Adormecidos, cuja consideração
tinha feito com que a velha mina dos anões de Fundindélfia recebesse a maior carga de
Magia de uma época. E seu guardião era Cadellin Argentesta. Ali, naquela caverna,
durante séculos esperando o dia em que Cadellin iria despertá-lo de seu sono encantado
para travar a última batalha do mundo, jazia um rei, cercado por seus cavaleiros, cada um
com sua égua branca como o leite.
As crianças olharam em volta, contemplando as chamas frias, agora brancas no
coração da Magia, cintilando na armadura de prata. Viram os cavalos e os homens.
Ouviram o murmúrio abafado de sua respiração ecoando, a batida do coração de
Fundindélfia.2
Depois da Caverna dos Adormecidos, o caminho começava a subir, passando por mais
túneis, por pontes estreitas e de arcos altos, sobre abismos desconhecidos, ao longo de
passagens apertadas no teto de cavidades, atravessando planícies de areia debaixo de
abóbadas de pedra, até as cavernas mais remotas da mina. Finalmente, chegaram a uma
pequena gruta, bem nos fundos do Poço Sagrado, o lugar que o mago usava como seus
aposentos. Lá estavam umas poucas cadeiras, uma mesa comprida e uma cama de pele de
animais.
2 Para saber mais sobre Fundindélfia e os cavaleiros adormecidos, leia A pedra encantada de Brisingamen. (N. da E.)
—N
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— Onde está Cadellin? — indagou Susan.
— Deve estar com os lios-alfar, os elfos — disse Albanac. — Muitos estão passando mal,
com a doença-da-fumaça. Mas enquanto ele não chega, vocês podem descansar aqui. Na
certa há muita coisa que estão desejando saber.
— Claro que há! — exclamou Colin. — Quem estava atirando flechas contra nós?
— O senhor dos elfos, Atlendor, filho de Naf. Ele precisa da ajuda de vocês.
— Da nossa ajuda? — repetiu Colin. — Pois tem uma maneira muito esquisita de
pedir.
— Nunca pensei que os elfos fossem assim... — disse Susan.
— Vocês estão se precipitando — disse Albanac. — Lembrem-se de que ele está com
medo, numa situação de perigo. Está cansado, sozinho... e é um Rei. É bom lembrar, tam-
bém, que os elfos não têm um amor natural pelos homens, porque os lios-alfar foram
expulsos para os lugares ermos justamente por causa da sujeira, da feiúra e do ar impuro
que os homens estão adorando nestes últimos duzentos anos. Vocês precisam ver o que a
doença-da-fumaça está fazendo com os elfos de Talebolion e de Sinadon. Precisam ouvir a
chiadeira dela nos pulmões deles. Tudo culpa dos homens.
— Mas como é que nós podemos ajudar?
— Vou lhes mostrar — disse Albanac. — Cadellin está há muitos dias falando contra
isso, e tem suas razões, mas já que vocês estão aqui, acho que o melhor é contar -lhes o que
está errado. Em resumo, é o seguinte: há alguma coisa escondida nos ermos das Terras do
Norte, lá longe no Prydein, onde os elfos tinham erguido seu último reino. Durante muito
tempo, o número de lios-alfar já vinha diminuindo — não por causa da doença-da-fumaça,
como está acontecendo no ocidente, mas por alguma razão que não conseguimos descobrir.
Os elfos simplesmente estão desaparecendo. Somem sem deixar vestígios. No começo, era
de um em um, ou aos pares. Mas não faz muito tempo, perdeu-se um cantrefe inteiro, o
cantrefe de Grannos, com tudo, até mesmo cavalos e armas. Não sobrou nem uma flecha.
Isso é obra de algum Grande Mal. Para descobri-lo e destruí-lo, Atlendor está
conclamando todo o seu povo, do sul e do oeste, e reunindo toda a magia que conseguir.
Susan, será que você podia dar a ele a Marca de Fohla?
— O que é isso? — perguntou Susan.
— É o bracelete que Angharad Mão-de-Ouro lhe deu.
— Esta pulseira? Eu nem sabia que ela tinha nome... em que ela pode ajudar Atlendor?
— Não sei — disse Albanac. — Mas tudo que for mágico pode ajudar, e você tem
magia nesse bracelete. Não abriu os portões?
Susan olhou a tirinha de prata antiga que usava em volta do pulso. Era tudo o que
havia trazido das ruínas do último encontro que tinham tido com aquele mundo, e fora
dada a ela, numa noite de perigo e encantamento, por Angharad Mão-de-Ouro, a Dama do
Lago. Susan não sabia o que significavam as letras pesadas que estavam inscritas em
negro, numa língua esquecida, sobre a superfície da prata. Mas sabia que não se tra tava de
uma pulseirinha comum, e não a usava sem respeito. 3
— Por que tem esse nome? — perguntou.
3 Episódio relatado em A pedra encantada de Brisingamen. (N. da E.)
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— Há muitas histórias sobre essas coisas, que só conheço vagamente — respondeu
Albanac —, mas sei que as Marcas de Fohla fazem parte da Magia mais antiga do mundo.
Esta é a primeira que vejo, e não sei para que serve. Mas de qualquer modo, você pode dá-
la a Atlendor?
— Não — disse Susan.
Mas os elfos podem ser totalmente destruídos, quem sabe se justamente por precisarem de
uma Marca! — disse Albanac. — Você se nega a ajudá-los bem na hora em que eles mais
precisam?
— É claro que vou ajudar — disse Susan. — Só que Angharad me recomendou muito
que eu cuidasse sempre de meu bracelete, mas não disse por quê. Então, se Atlendor está
precisando, eu tenho de ir com ele.
Ouvindo isso, Uthecar desandou a rir. Mas Albanac ficou preocupado e disse:
— Agora você me pegou. Atlendor não vai gostar nada disso. Mas esperem: será que
ele precisa saber? Não quero levar-lhe mais problemas, se puder evitar. Pode ser que a
Marca não sirva para Atlendor, que não possa usá-la, que só funcione com você. Mas você
podia me emprestar o bracelete, Susan, e o levo para que ele tente, experimente seus
poderes. Se não der certo, é mais fácil ele aceitar sua oferta.
— Ah, é? E quem garante que, no momento em que tiver a Marca nas mãos, ele não
some, para lá de Bannawg, mais depressa do que raposa se metendo pelo meio do bosque?
E leva o bracelete mágico embora...
— Você não conhece os lios-alfar, Hornskin — disse Albanac. — Dou minha palavra de
que ele não vai fazer trapaça.
— Então é preciso que os ouvidos de Cadellin saibam disso — disse Uthecar. — Para
que Atlendor não fique achando que um perigo atroz merece ações atrozes. Jamais um lios-
alfar sairia de Fundindélfia se Cadellin os mandasse ficar.
— Não precisa — disse Susan. — Confio em você. E confio em Atlendor. Aqui está a
pulseira. Ele pode tentar ver o que consegue fazer. Mas, por favor, não fiquem com ela
mais tempo do que o necessário.
— Obrigado — disse Albanac. — Você não vai se arrepender.
— Tomara que não — disse Uthecar, com uma cara que não parecia nada feliz. — Mas
pelo que ouvi sobre vocês, acho que andam muito sem juízo por não estarem vestindo uma
armadura. A Morrigana não esquece, nem perdoa.
— A Morrigana? — repetiu Colin. — Onde? Ela está atrás da gente outra vez?
Embora as crianças tivessem cruzado com essa mulher pela primeira vez sob sua
forma humana, logo ficaram sabendo que não era apenas com a feiúra dela que deviam se
preocupa. Era a Morrigana, a senhora dos antros de bruxas chamados de celeiros do mal. E
acima de tudo, ela tinha o poder de despertar poderes maléficos nas pedras e de fazer o
ódio fermentar no ar, além de ter uma força terrível. Mas seu poder tinha sido quebrado
por Cadellin Argentesta, principalmente por intermédio de Colin e Susan. E eles não
sabiam se ela havia ou não sobrevivido à destruição que aniquilara seus seguidores.
— O celeiro do mal está disperso, mas ela foi vista — disse Albanac, apontando
Uthecar com um gesto de cabeça. — O melhor é perguntar a ele, que trouxe notícias dela.
O anão com gênio de mel, vindo das Terras do Norte, para lá de Minith Bannawg.
— O que foi? Você a viu? — quis saber Colin.
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— E não vi? — disse o anão. — Vocês estão mesmo querendo saber? Pois então, eu
conto.
Respirou fundo e começou:
— Quando eu vinha para o sul, passei pela Colina da Samambaia Negra, em Prydein,
e uma tremenda tempestade estava se formando. Por isso, comecei a procurar umas pedras
e uns galhos de mato mais fechado, com intenção de fazer um abrigo para passar a noite. E
vi uma pedra redonda, castanha, meio separada das outras. Pus os braços em volta dela
para levantá-la, e nesse momento, ai meu rei do sol e da lua, meu senhor das estrelas
brilhantes e perfumadas!, a pedra criou braços e me agarrou o pescoço, e já estava quase
expulsando a vida que mora em mim!
Fez uma pausa e continuou:
— Nem me perguntem como, porque eu mesmo não sei dizer, mas consegui me soltar.
E, de repente, a pedra era a Morrigana! Pulei pra cima dela com minha espada. E mesmo
ela me arrancando o olho, cortei sua cabeça. O berro que deu foi repetido por todo lado, na
Colina da Samambaia Negra. Mas a cabeça deu um pulo, direto, redondinho, e voltou para
seu pescoço, e num instante lá vinha ela de novo, xingando pra cima de mim, e fiquei
morrendo de medo. Três vezes nós lutamos, três vezes tirei sua cabeça, mas três vezes ela
ficou inteirinha de novo, e eu já estava quase morrendo, de tanta dor e cansaço. Então,
quando mais uma vez passei a espada pela altura de seus ombros, quando a cabeça estava
voltando para o tronco, consegui botar a lâmina de ferro bem no lugar do pescoço. Então a
cabeça, "gong!", quicou na lâmina, e pulou para o céu. Quando estava começando a cair, e
vi que vinha para cima de mim, me desviei e ela entrou na terra uns dois metros, com toda
a força que vinha. Que cabeça! Depois ouvi o barulho de pedras mordendo, mastigando,
mascando, moendo e triturando, achei que era hora de levar minhas pernas para longe
dali, e lá me fui pela noite afora, através do vento e da neve.
• • •
Ficaram todos esperando o mago chegar. E enquanto esperavam, Uthecar se
encarregou de não deixar que a conversa se interrompesse nem um minuto.
Contou como Albanac o encontrara um dia e falara de um boato sobre alguma coisa
que tinha saído do chão perto de Fundindélfia e estava sendo caçada por Cadellin
Argentesta. Como já estava havia muito tempo sem fazer nada, o próprio Uthecar resolveu
fazer a viagem para o sul, saindo de Minith Bannawg, na esperança de que Cadellin
apreciasse seu auxílio. Não se decepcionou. O assunto era muito mais importante do que
ele imaginava...
Havia muito, muito tempo, um dos antigos malefícios do mundo tinha aterrorizado a
planície, mas tinha sido apanhado e aprisionado num poço, no sopé da Borda. Muitos
séculos mais tarde, por meio da estupidez dos homens, esse mal escapara e exigira muito
trabalho e sacrifício para ser recapturado. Pois agora Albanac vinha com a notícia de que o
homem novamente soltara esse mal.
— E ninguém faz idéia do lugar deste mundo duro e encolhido, onde se pode
encontrar de novo o Brollachan — disse Uthecar.
O Brollachan...
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— Acontece que o Brollachan — disse Uthecar — tem olhos e boca, mas não tem fala e,
infelizmente, não tem forma.
Não dava para entender. Mas a sombra que se ergueu na mente de Susan enquanto o
anão falava parecia escurecer toda a caverna.
Pouco depois, Cadellin chegou. Estava com os ombros curvados, e apoiava o peso no
cajado que tinha na mão. Quando viu as crianças, franziu a testa, acentuando as rugas em
volta dos olhos.
— Colin? Susan? Fico contente em ver vocês, mas por que estão aqui? Albanac, por
que passou por cima de mim e fez uma coisa dessas?
— Não foi bem isso o que aconteceu, Cadellin — disse Albanac. — Mas antes de mais
nada, como estão os lios-alfar!
— Os elfos de Dinsel e Talebolion vão demorar muito a sarar — disse Cadellin. — Os
que vieram de Sinadon são mais fortes, mas estão tomados pela doença -da-fumaça, e tenho
medo de que alguns estejam fora de meu alcance.
Voltou-se para os meninos e acrescentou:
— Mas agora me contem como vieram parar aqui.
— Fomos... detidos... por Atlendor, o elfo. E depois, Uthecar e Albanac apareceram —
respondeu Susan — e acabamos de saber o que está acontecendo com os elfos.
— Não julgue Atlendor mal, ele está sob pressão — disse Albanac. — Mas Susan nos
deu esperanças. Estou com a Marca de Fohla aqui.
Cadellin olhou para Susan.
— Fico... contente... — disse. — É muito generoso de sua parte, Susan. Mas será uma
decisão sábia? Vocês sabem que estou preocupadíssimo com a destruição dos elfos. Mas a
Morrigana...
— Já falamos nela — apressou-se a esclarecer Albanac. — O bracelete não vai ficar
muito tempo comigo, e não acho que a rainha das bruxas venha tão ao sul por enquanto.
Ela vai ter que estar muito mais forte antes de ousar aparecer tão aberta mente, e ainda não
se sente segura nem para sair de Minith
Bannawg, se é que a história de Uthecar Hornskin é verdadei ra. Por que estaria mudando
de forma para se disfarçar de pedra, se não estivesse com medo de ser perseguida?
— Tem razão — concordou Cadellin. — Talvez eu esteia exagerando nos meus
cuidados. Mas o fato é que não gosto nada de ver estas crianças trazidas ao limiar do
perigo dessa maneira. Não, Susan, não fique zangada comigo. Não é por causa de sua
idade que eu me preocupo, mas por causa de sua humanidade. É contra minha vontade
que vocês estão aqui agora.
— Mas por quê? — exclamou Susan.
— Por que acha que os homens só nos conhecem nas lendas? Nós não temos que evitá-
los para preservar nossa segurança, como no caso dos elfos. Mas pela de vocês mesmos.
Não foi sempre assim. Já houve um tempo em que todos vivemos próximos. Mas pouco
antes de que os elfos fossem expulsos, vocês mudaram. Acharam que o mundo era mais
fácil de dominar se só usassem as mãos. Assim, para vocês, as coisas passaram a valer
mais do que os pensamentos. E os homens ainda chamaram isso de Idade da Razão. Só
que, para nós, a verdade é justamente o contrário. Por isso, nos nossos assuntos, o ponto
mais fraco de vocês é exatamente onde deviam ser mais fortes. O perigo para vocês não
vem apenas do mal, mas de outras coisas com que lidamos. Podem não ser maléficas em si,
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mas são forças selvagens, descontroladas, que podem destruir quem não estiver
acostumado com elas.
Continuou explicando:
— Por todas essas razões, nós nos afastamos da humanidade. Ficamos sendo apenas
uma lembrança. Com o passar do tempo, viramos uma superstição, um monte de espíritos
e terrores em que se fala numa noite de inverno. E, ultimamente, estamos sendo motivo de
zombaria e descrença. Por tudo isso é que tenho de ser tão severo com vocês. Deu para
entender?
— Acho que sim — respondeu Susan. — Em linhas gerais, pelo menos.
— Mas se vocês cortaram qualquer contato conosco, por completo, há tanto tempo,
como é que falam do mesmo jeito que a gente? — quis saber Colin.
— Mas não falamos — disse o mago. — Só estamos usando a Língua Comum agora,
porque vocês estão aqui. Entre nós há muitas outras línguas. E não repararam que, para
alguns de nós, a Língua é mais difícil e mais estranha do que para outros? Os elfos são os
que mais têm evitado os homens, quase completamente. Falam a Língua de um modo mais
parecido com o que ouviram pela última vez, antigamente, e mesmo assim não falam bem.
O resto de nós — eu, os anões, e alguns outros — a temos ouvido pelos anos afora, e a
conhecemos mais do que os elfos, muito embora não consigamos dominar a rapidez com
que vocês falam agora nem seu jeito abreviado. Albanac é quem mais encontra os homens,
e até ele de vez em quando fica completamente perdido, mas como acham que é maluco,
não faz diferença.
Colin e Susan não demoraram muito na caverna. A atmosfera daquela noite não os
deixava muito à vontade, e era evidente que Cadellin tinha muitas outras coisas na cabeça,
além do que tinha dito. Pouco depois das sete, subiram pelo túnel mais curto, que levava
da caverna ao Poço Sagrado. O mago tocou a rocha com seu cajado e o penhasco se abriu.
Uthecar acompanhou os meninos por todo o caminho, até a fazenda, só os deixando
quando chegaram ao portão. Colin e Susan perceberam que os olhos dele não paravam,
vasculhando a escuridão, de um lado para outro, para lá e para cá.
— O que é? — perguntou Susan. — O que está procurando?
— Uma coisa que espero não encontrar — disse Uthecar.
— Vocês devem ter notado que o bosque não estava vazio esta noite. Estávamos perto
do Brollachan, e tomara que agora já esteja bem longe daqui.
— Mas como é que você podia vê-lo, ou ver qualquer outra coisa? — perguntou Colin.
— Está escuro feito breu.
— Vocês devem saber que os olhos de um anão nasceram para enxergar no escuro —
disse Uthecar. — Mas até vocês veriam o Brollachan se ele aparecesse, mesmo que a noite
estivesse mais negra do que a goela de um lobo. É que, por mais negra que esteja a noite,
Brollachan ainda é mais negro.
Com isso, a conversa parou pelo resto da jornada. Mas quando chegaram a Highmost
Redmanhey, Susan perguntou:
— Uthecar, desculpe, mas qual é o problema com os elfos? Não quero parecer mal-
educada, mas... bem, sempre achei que eram... bem, os "melhores" do povo de vocês.
— Ah! — exclamou Uthecar. — Na certa iam concordar com você! E pouca gente
discordaria deles. Devem julgar por vocês mesmos. Mas uma coisa eu posso dizer so bre os
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lios-alfar: são impiedosos, sem nenhuma gentileza, e existem mui tas coisas
incompreensíveis neles.
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• 5 •
"Para uma mulher que estava com estupor"
pouco menos de um quilômetro de Highmost Redmanhey, depois da lombada da
colina Clinton, há uma antiga pedreira escavada no chão, que ficou sem uso e foi
inundada. Quando as margens não são penhascos, são barrancos abruptos,
cobertos de árvores. Uma bomba de ar, quebrada, range de vez em quando. Um caminho
esquecido se perde pelo meio dos espinhos sem levar a lugar nenhum. À luz do sol, é um
local desolado, tão desolado quanto apenas uma maquinaria abandonada consegue ser.
Mas quando o sol vai baixando, o ar fica carregado com uma atmosfera diferente. A água
escurece, sombria, no fundo das encostas dos penhascos e as árvores se amontoam,
inclinadas, para beber água. A bomba geme. Um lugar solitário, esverdeado, escuro.
Mas tranqüilo, pensava Susan. E isso não é pouco. Não houvera muita paz na fazenda
desde que os dois tinham voltado. Já tinham passado dois dias, cheios da conversa de
Colin e dos silêncios pesados do casal Mossock. É que Bess e Gowther sabiam do
envolvimento das crianças com a Magia, ocorrido no passado, e ficavam tão preocupados
com essa mistura de mundos quanto Cadellin.
O tempo também não ajudava. O ar estava parado, úmido, quente e pesado demais
para o começo do inverno.
Susan sentia que precisava dar uma volta e relaxar um pouco. Por isso, nessa tarde,
saíra sozinha, sem Colin, e fora até a velha pedreira. Sentou-se na beirada de uma laje que
se projetava sobre a água e se distraiu, vendo as sombras cinzentas dos peixes. Por muito
tempo, ficou ali sentada, desligando-se pouco a pouco das tensões dos últimos dias. De
repente, um barulho fez com que levantasse a cabeça.
— Oi, quem é você?
Um pequeno pônei preto estava parado na margem da agua, do outro lado da
pedreira.
— O que é que você está fazendo aqui? O pônei sacudiu a crina e
relinchou.
— Vem cá! Vem, rapaz!
O pônei olhou fixo para Susan, sacudiu a cauda, depois se virou e desapareceu pelas
árvores.
— Bem, deixa pra lá... Que horas serão?
Susan subiu o barranco e se afastou da pedreira, entrando no campo. Rodeou o
bosque pelo outro lado, e assobiou, mas não aconteceu nada:
— Oi, vem cá! Aqui, garoto, vem! Bom, se não quiser vir, eu já... epa!
O pônei estava bem ao seu lado.
A
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— Você me assustou. Onde é que tinha se metido?
Enquanto falava com o animal, a menina acariciava as orelhas dele. Parecia que o
pônei estava gostando, porque encostou a cabeça no ombro dela e fechou os olhos de
veludo negro.
— Calma, assim você me derruba...
Durante alguns minutos, ficou fazendo carinho no pescoço dele. Depois, relutante, o
empurrou.
— Agora tenho de ir embora. Mas amanhã volto para te ver de novo.
O pônei saiu trotando atrás dela.
— Não, volte. Você não pode vir comigo.
Mas o pônei foi atrás de Susan por todo o campo, empurrando-a de leve com o
focinho e soprando junto à sua orelha. E quando ela ia subir na cerca que separava aquele
campo do seguinte, ele se meteu entre ela e a cerca, empurrando-a de lado com sua barriga
brilhante.
— O que é que você quer? Um empurrão.
— Não tenho nada para lhe dar. Outro empurrão.
— O que é?
Mais um empurrão.
— Ah, já sei! Está querendo que eu monte, é? É isso, não é? Entendi. Então fique
parado. Assim, como um bom menino. Pronto. Agora... epa! Fique quieto! Calma!
No momento em que Susan acabou de montar, o pônei se virou e saiu no maior galope
em direção à pedreira. Susan agarrou a crina com as duas mãos, gritando:
— Não! Pare!
Galopavam a toda velocidade em direção à cerca de arame farpado que havia no alto
do penhasco, em cima da parte mais funda da pedreira.
— Pare! Pare!
O pônei virou a cabeça para trás e olhou para ela. Seus beiços espumavam, curvados
num sorriso maléfico. O veludo de seus olhos desaparecera: no fundo de cada pupila havia
uma chama vermelha.
— NÃO! — gritou Susan.
Iam cada vez mais rápido. A beirada do penhasco se destacava, numa linha nítida
contra o céu. Susan tentou pular do pônei e se jogar no chão, mas seus dedos pareciam
presos na crina, suas pernas estavam coladas nas costelas no animal.
— NÃO! NÃO! NÃO! NÃO!
O pônei saltou sobre a cerca e mergulhou. "Splash!" O barulho ecoou entre os
paredões de pedra, algumas ondas bateram no rochedo, houve algumas bolhas. Logo, a
pedreira ficou silenciosa debaixo do céu carregado.
• • •
— Não vou esperar mais — disse Bess. — Susan que esquente a janta sozinha quando
chegar.
— Então vamos comer logo — concordou Gowther. — Ainda tem uma ou duas coisas
que preciso fazer antes da chuva, que pelo visto não demora. Do jeito que está abafado,
acho que vai cair um toró.
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— Tomara mesmo — disse Bess. — Não estou nem conseguindo respirar. Susan disse
se ia chegar tarde?
— Não — respondeu Colin. — Mas você sabe como ela é. E nem ao menos levou um
relógio.
Sentaram-se à mesa, e comeram em silêncio. Os únicos sons eram os da respiração de
Bess e Gowther, do tique-taque do relógio, do zumbido idiota de duas moscas zonzas que
ficavam girando sem parar em volta da lâmpada. O céu parecia que estava se abaixando
em cima da casa, apertando as pessoas lá dentro como se fossem maçãs numa prensa.
— Vai ser um aguaceiro, a qualquer momento — disse Gowther. — E é bom Susan
andar ligeiro, se não quiser ficar ensopada. Já devia ter chegado. Onde é que ela foi, Colin?
Epa! O que deu nele?
Scamp, o cachorro dos Mossock, tinha começado a latir, agitado, bem ali perto.
Gowther pôs a cabeça para fora da janela:
— Ei, chega! Sossega aí! Depois voltou para a mesa:
— O que é mesmo que eu estava dizendo? Ah, sim, Susan... Você sabe aonde ela foi?
— Disse que ia até a pedreira descansar um pouco, que lá é bem tranqüilo. Disse que
eu estava dando nos nervos dela.
— O quê? Foi à pedreira Hayman? Você devia ter nos dito isso antes, Colin. Aquele
lugar é muito perigoso. Ai, que cachorro irritante! Ei, Scamp! Chega! Não me ouviu falar?
— Minha nossa! — exclamou Bess. — O que aconteceu com você? Por onde andou?
Susan estava parada na porta, pálida e com um ar aparvalhado. O cabelo dela estava
grosso de tanta lama, e uma poça d'água se formava a seus pés, de tanto que escorria.
— A pedreira! — gritou Gowther. — Ela deve ter caído lá dentro! O que deu em você,
Susan, para fazer uma coisa dessas?
— Primeiro, um bom banho e uma cama quente — disse Bess. — Depois a gente
conversa. Coitadinha!
Segurou no braço de Susan e a levou para dentro.
— Só Deus sabe o que aconteceu — contou Bess ao voltar, meia hora depois. — Estava
com o cabelo cheio de areia e de mato. Mas não consegui arrancar nem uma palavra dela.
Paroce que está apatetada, sei lá. Na certa precisa dormir. Pus umas bolsas de água quente
na cama, e ela estava com jeito de quem ia apagar em um minuto.
A tempestade sacudia a casa, enchia os quartos de correntes de ar, fazia as lâmpadas
darem estalos. Tinha começado logo ao anoitecer, trazendo um alívio da tensão. A casa
agora era um refúgio, não uma prisão. Colin, depois de ter diminuído a ansiedade mais
imediata relacionada a Susan, instalou-se com seu livro favorito para ler até a hora de
dormir.
Era um livro-caixa antigo e meio mofado, com uma capa de couro castanho. Uns cem
anos antes, um dos párocos de Alderley tinha copiado nele uma série variada de
documentos ligados à vida da paróquia. O livro estava na família de Gowther havia tanto
tempo que ele nem sabia mais quanto, e, embora nunca tivesse tido paciência para tentar
decifrar os garranchos daquelas páginas, guardava o livro como um tesouro, um vínculo
que o ligava a um tempo passado. Mas Colin era fascinado pelas historinhas que o livro
contava, pelos detalhes dos litígios nos tribunais, os casos acontecidos na paróquia, os
relatos das grandes mansões, e as histórias de família que o enchiam. Sempre havia
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alguma coisa absurda e engraçada para se achar, para quem tinha o senso de humor de
Colin.
A página que ele estava olhando agora começava assim:
EXTRATO DAS CONTAS DO GUARDIÃO DA IGREJA, 1617
Prestação de contas exata e perfeita de todas as Somas de Dinheiro que eu, John Henshaw de Butts, Guardião
da Igreja de Neither Alderley e da paróquia de Alderley, recebi e da mesma forma desembolsei, desde que pela
primeira vez fui investido neste
Cargo até o atual dia em que escrevo, aos 28 de maio, do Ano do Senhor de 1618.
£ s. d.
Pagamento da cerveja para 0 3 2
os sineiros e para nós mesmos
Quantia para John Wych, sua conta 0 2 0
por uma nova lâmina de machado
Quantia para um homem que teve 0 0 2
a língua cortada pelos turcos
Quantia para Philip lá, metade de 0 1 6
sua conta pela caminhada
Quantia para um pretenso 0 1 3
cavalheiro irlandês
Quantia gasta em linhas para fazer redes 0 1 8
Quantia para uma mulher que 0 0 6
estava com estupor
Quantia gasta quando eu fui à cidade 0 0 4
para avisar às pessoas que tinham que
trazer o lixo que tinham esquecido de
trazer no dia de enterrar o lixo
Quantia dada a um Major que 0 1 0
tinha sido levado pelos franceses
e foi roubado por eles
Quantia paga ao Sr. Hollinshead 0 0 8
pelo mandato para punir as
imoralidades dos meninos
Mas o registro seguinte acabou com a gargalhada e a cara de riso de Colin. Ele leu e releu.
Depois chamou: — Gowther!
— Que é?
— Ouça isto aqui. Faz parte das contas do tesoureiro da igreja em 1617: "Quantia paga
nos Confins das Ruas quando o Sr. Hollinshead e o Sr. Wright estiveram em Paynes para
confinar o diabo que foi encontrado na Cervejaria quando estavam colocando o novo can o
e ele quebrou no Buraco".
Levantando os olhos do livro, Colin perguntou:
— Você acha que é aquele buraco lá no Trafford? Gowther franziu a testa.
— Eu acho que sim, com essa conversa de cano, e tudo o mais. Aquela região de
Alderley antigamente se chamava Confins das Ruas, e eu ouvi dizer que havia um bar por
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lá, antes que construíssem o Trafford. Isso é de 1617, não é? Então não pode fazer parte
das minas. Elas só começaram há uns duzentos anos, quando abriram a Mina do Oeste.
Quer dizer, então parece mesmo que foi o poço desse bar antigo, hein?
— Mas não pode ser — disse Colin. — Estão chamando de Buraco e, pelo jeito, não
sabiam que estava lá. Então, o que pode ser?
— Sei lá, não me pergunte... — disse Gowther. — E quem são esses tais de Hollinshead
e Wright?
— Toda hora se fala neles no livro — disse Colin. — Acho que eram os padres em
Alderley e Wilmslow. Mas eu gostaria de saber mais coisas sobre esse "diabo".
— Se fosse você, não dava muita importância a isso — disse Gowther. — Eram
supersticiosos pra burro naquele tempo. Pra falar a verdade, ainda ontem eu estava
conversando com Jack Wrigley — o sujeito que bateu com a picareta na fenda — e ele disse
que, quando estava olhando para ver o que era, ouviu um barulho meio de bolhas, que o
deixou com a pulga atrás da orelha, mas acabou achando que tinha alguma coisa a ver com
a pressão do ar. Pode ser que seja isso o que o velho padre achou ser o Capeta.
— Não estou gostando nada disso — comentou Bess, acabando de descer a escada. —
Susan não falou nada até agora, e está gelada que nem um sapo. E não consigo entender de
onde é que vem tanta areia. Mesmo depois do banho tomado, o cabe lo dela ainda está todo
areiento. E continua encharcada, de torcer, nem parece que se enxugou toda. Mas pode ser
que seja porque está suando, com aquelas duas bolsas de água quente. Só que tenho
certeza de que tem alguma coisa muito errada. Está lá deitada, com os olhos esbugalhados,
dum jeito muito esquisito, olhando o vazio.
— Acha que é bom eu ir chamar o médico? — perguntou Gowther.
— O quê? Numa chuvarada destas? E já são quase dez horas... Não, deixe, ela não está
assim tão mal. Mas, se de manhã não tiver melhorado, a gente chama.
— Será que ela não levou uma pancada na cabeça? Ou coisa parecida... — insistiu
Gowther.
— Acho que parece mais que teve um choque — disse Bess — porque não tem
nenhuma marca de pancada, nem machucado, nada inchado. E, de qualquer modo, está no
melhor lugar para ela. O médico não ia gostar nem um pouco de você trazê-lo até aqui
numa noite destas. Vamos ver como é que ela fica depois de um bom descanso e uma boa
noite de sono.
Como muitas mulheres do campo de sua geração, Bess não se livrava de um
inexplicável medo de médico.
• • •
Colin nunca soube o que o despertou. Ficou deitado de costas, contemplando o luar.
Tinha acordado de repente e completamente, sem nenhuma sonolência ou preguiça. Seus
sentidos estavam bem aguçados, atentos a todos os detalhes do quarto, como se as zonas
de luz e escuridão gritassem com ele.
Levantou-se da cama e foi até a janela. Era uma noite clara, com ar fresco e límpido
depois da tempestade. O luar lançava suas sombras em vários pontos da fazenda. Junto à
porta do celeiro, Scamp estava deitado, com a cabeça entre as patas. E, de repente, Colin
percebeu que alguma coisa se movia. Só viu rapidamente, com o canto do olho, e num
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instante já tinha desaparecido. Mas não havia a menor dúvida: uma sombra ti nha
deslizado entre a casa e o portão que levava aos Riddings, os campos que cobriam a colina
íngreme atrás do quintal.
— Ei! Scamp! — sussurrou Colin, mas o cachorro nem se mexeu. — Scamp! Acorde!
O animal se espreguiçou devagar e deu um latido abafado.
— Pega! Vamos!
Scamp se espreguiçou de novo, depois saiu rastejando, com a barriga quase
encostando no chão, e foi para dentro do celeiro.
— Que é isso? Ei!
Mas Scamp não voltava.
Colin então resolveu vestir a camisa e as calças bem depressa, por cima mesmo do
pijama, e calçou os sapatos rapidamente, antes de ir acordar Gowther. Mas, quando passou
em frente ao quarto de Susan, parou. E nem mesmo sabendo por que, abriu a porta. A
cama estava vazia. A janela, aberta.
O menino desceu a escada na ponta dos pés e foi até a porta. Ainda estava trancada
por dentro. Será que Susan tinha pulado de uma altura de três metros, em cima de um
chão de cascalho? Abriu as trancas, deu um passo para fora e, enquanto olhava em volta,
viu uma silhueta magra passando, recortada contra o céu, nos Riddings.
Subiu o morro correndo, o mais rápido que podia. Mas levou algum tempo até
descobrir o vulto outra vez, agora subindo a colina Clinton, a uns quatrocentos metros
dali.
Colin correu mais ainda. E, quando chegou ao lado do morro, já tinha conseguido
reduzir à metade a vantagem que Susan levava. Porque era Susan, sem dúvida alguma.
Estava de pijama e parecia deslizar sobre o solo, dando a estranha impressão de que
corria, embora seus movimentos fossem de quem caminhava. Bem à frente dela, viam -se as
massas escuras das copas das árvores da pedreira.
— Sue! — gritou ele. Mas pensou: "Não, não posso fazer isso, é muito perigoso. Está
sonâmbula, não pode ser acordada de repente. Mas está indo para a pedreira..."
Colin nunca tinha corrido tanto. Quando desceu do morro, o terreno acidentado
escondeu Susan, mas ele sabia qual era a direção geral. Chegou até a cerca que ficava na
beirada do penhasco mais alto e parou para olhar em torno, enquanto re cuperava o fôlego.
A lua mostrava toda a encosta do morro e grande parte da pedreira. A bomba de ar
brilhava, e as pás do cata-vento giravam. Mas não se via Susan em lugar nenhum. Colin se
encostou num dos esteios da cerca. Devia estar dando para ver a menina. Não era possível
que a tivesse ultrapassado, ela já devia ter chegado. Procurou com os olhos por toda a
pedreira. Olhou bem para o espelho liso e preto da água. Estava assustado. Onde é que ela
podia estar?
E, então, ele deu um grito que botou para fora todo o medo que estava sentindo,
quando uma coisa pegajosa passou por cima de seu sapato e agarrou seu tornozelo. Teve
um sobressalto, deu um passo atrás e olhou para baixo. Era uma mão. Uma faixa estreita
de terra, de poucos centímetros de largura, se estendia do outro lado da cerca, poucos
palmos abaixo da superfície da pedra. Depois, era uma queda abrupta até a água escura. A
mão agora agarrava a beirada do rochedo.
— Sue!
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O menino se esticou por cima do arame farpado. Ela estava bem abaixo dele,
equilibrada na faixa de terra, encostada no penhasco, e com o rosto pálido virado para
cima, em sua direção.
— Agüente aí, segure firme!
Colin deitou no chão, passou o braço em volta do esteio da cerca, segurando com
firmeza. Deslizou o outro braço por baixo do arame e agarrou a mão. Mas levou um susto:
o aspecto era de mão, mas a sensação era de casco.
O arame rasgou a manga do menino, no momento em que ele gritou e retirou o braço.
Em seguida, quando o rosto de Susan apareceu, subindo pela beirada do penhasco, a um
palmo do seu, e ele viu a luz estranha que brilhava nos olhos dela, Colin perdeu a razão,
esqueceu qualquer pensamento. Saiu disparado, para longe dali, tropeçando, correndo,
voando. Só olhou para trás uma vez, e teve a impressão de que uma sombra sem forma se
erguia da pedreira em direção ao céu. Atrás dele, as estrelas se apagaram, mas em lugar
delas apareceram duas vermelhas, bem juntas, como brasas, que não cintilavam.
Colin foi correndo pelo morro abaixo, saltando cercas, jogando-se pelo meio de
moitas, mergulhando pelos Riddings até chegar em casa. Enquanto tentava abrir a porta, a
lua se escondeu e a escuridão se esgueirou por cima das paredes brancas. Coli n se virou:
— Esenaroth! Esenaroth! — gritou.
Nem sabia de onde veio essa palavra, arrancada de seus lábios independentemente de
sua vontade. Ouviu-as a distância, como se tivessem saído de outra boca. Queimavam
como uma fogueira de prata dentro de seu cérebro, lugar de asilo no meio do negrume que
enchia o mundo.
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• 6 •
Mal Antigo
cho que a gente vai ter mesmo de chamar o médico — disse Bess. — Ela está
encharcada outra vez — não pode fazer bem pra saúde. E essa maldita areia! O
cabelo dela ainda está cheio...
— Isso mesmo — concordou Gowther. — Vou botar os arreios no Príncipe, e vou logo
chamá-lo.
Colin tomava o café da manhã automaticamente. As vozes de Bess e Gowther
passavam por ele. Tinha que fazer alguma coisa, mas não sabia o quê.
Tinha sido acordado com as lambidas da língua quente de Scamp em seu rosto.
Deviam ser umas seis da manhã. Estava todo encolhido na soleira da porta, duro de frio.
Ouviu Gowther descendo para a cozinha. Ficou pensando: será que devia contar a ele o
que tinha acontecido? Mas não sabia, nada estava claro em sua cabeça. Precisava algum
tempo para pensar. Escondeu o pijama e foi acender os lampiões para ordenhar as vacas.
Depois do café, Colin ainda não tinha chegado a nenhuma conclusão. Subiu para o
quarto e mudou de roupa. A porta do quarto de Susan estava escancarada. O menino se
obrigou a entrar. Lá estava ela, deitada na cama, com os olhos entreaber tos. Quando viu
Colin, deu um sorriso.
Ele desceu até a cozinha, e a encontrou vazia. Bess dava comida às galinhas, enquanto
Gowther cuidava de Príncipe. Colin estava sozinho dentro de casa com... o quê? Precisava
de ajuda e Fundindélfia era sua única esperança. Saiu para o quintal, assusta do,
desesperado, e quase soluçou de alívio, pois Albanac se aproximava, descendo pelos
Riddings, com o sol batendo em suas fivelas de prata e na espada, a capa inflada às suas
costas pelo vento.
Colin correu em direção a ele e o encontrou no sopé da colina.
— Albanac! Albanac!
— O que aconteceu? Colin! Você está bem?
— É Sue!
— O quê?
Albanac segurou Colin pelos ombros e olhou firme dentro de seus olhos.
— Onde está ela?
— Não sei... quer dizer... está na cama... não... ai, você precisa ouvir...
— Estou ouvindo, mas não entendo. Conte-me o que está errado.
— Desculpe — disse Colin.
A
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Fez uma pausa e começou. Enquanto falava, o rosto de Albanac foi ficando tenso e
cheio de rugas, seus olhos pareciam dois diamantes azuis. Quando Colin começou a
descrever como seguira Susan até a pedreira, Albanac o interrompeu.
— Dá para nos verem da janela dela?
— Não... quer dizer... talvez. É aquela última janela da frente.
— Então é melhor sair daqui.
Deram a volta até chegar a um lugar onde não podiam mais ser vistos de janela
nenhuma.
— Continue.
Quando a história acabou, Albanac deu uma risada amarga:
— Então era isso... tão pertinho, afinal de contas. Mas venha, temos de agir antes que a
oportunidade passe.
— Por quê? O quê...?
— Escute: dá para entrar na casa sem sermos vistos da panela?
— D-d-á...
— Ótimo. Acho que não tenho poder suficiente para fazer o que tem de ser feito, mas
temos de pensar em Susan, antes de mais nada. Agora, muita atenção: não podemos falar
quando nos aproximarmos da casa. Leve-me até o quarto. Não vou fazer nenhum barulho,
mas você deve andar naturalmente, como se não estivesse acontecendo nada. Vá até a
janela e abra. Então, vamos ver.
• • •
Colin pousou a mão na maçaneta e olhou por cima do ombro. Albanac estava parado
no alto da escada e fez um sinal com a cabeça. Colin abr iu a porta.
Susan continuava deitada, com o olhar fixo. Colin foi até a janela e a abriu. Ouvindo o
barulho, Albanac entrou no quarto: na mão, segurava a Marca de Fohla, aberta. Susan
grunhiu, esbugalhou os olhos e jogou os cobertores longe, mas Albanac se lançou através
do quarto por cima da cama, atingindo o queixo de Susan com o ombro e prendendo o
braço dela debaixo do corpo dele, enquanto fechava o bracelete em torno do pulso da
menina. Depois, com a mesma rapidez, saltou de volta para a porta e puxou a espada.
— Colin! Rápido! Saia!
— O que foi que você fez? — perguntou o menino. — O que está acontecendo?
A mão de Albanac segurou seu ombro e o empurrou para fora do quarto. Em seguida,
também pulou para fora e fechou a porta, batendo-a.
— Alban...
— Quieto! — ordenou Albanac, numa voz duríssima. — Quando ela ficar livre, temos
que ter o maior cuidado. Só espero é que o bracelete cause tanta dor que a fuga seja mais
importante que a vingança.
Ficaram imóveis, rígidos. O único barulho que se ouvia era a cama de Susan ranger.
Depois parou. Silêncio.
— Albanac! Olhe!
Um rolo negro de fumaça escorria por baixo da porta. Foi rolando para a frente, por
cima do assoalho, e depois se recolheu, numa pirâmide instável, que foi começando a
crescer.
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— Se quiser ficar vivo — sussurrou Albanac —, não desgrude de mim.
A pirâmide já estava com um metro de altura. Perto do vértice, brilhavam dois olhos
vermelhos. Perto da base, ficava algo que podia ser uma boca sombria, ou um bico raso.
Depois a coisa começou a crescer. Crescia em muitas direções, como um balão, e crescia em
espasmos, com intervalos de descanso.
Albanac ergueu a espada e falou numa voz firme e clara:
— Poder do vento tenho eu sobre vós. Poder da ira tenho eu sobre vós. Poder do fogo
tenho eu sobre vós. Poder do trovão tenho eu sobre vós. Poder do raio tenho eu sobre vós.
A essa altura, a pirâmide enchia a casa toda. Não era mais uma pirâmide, era tudo —
uma escuridão universal na qual havia dois discos chatos da cor de sangue, e uma fita de
fogo azul que era a espada de Albanac.
— Poder das tempestades tenho eu sobre vós. Poder da lua tenho eu sobre vós. Poder
do sol tenho eu sobre vós. Poder das estrelas tenho eu sobre vós.
Os olhos vazios cresciam e se aproximavam, agora grandes, do tamanho de pratos , e a
escuridão começou a pulsar. Colin agarrou a capa de Albanac como se fosse um homem se
afogando, pois a pulsação seguia o ritmo das batidas de seu coração, e não dava para saber
onde ele acabava e a escuridão começava.
— Poder... dos céus... e dos mundos... tenho... eu... sobre... vós... Poder... poder... não
está dando para segurar, não agüento mais!
Albanac ergueu a espada sobre a cabeça com as duas mãos, e em seguida golpeou a
escuridão no meio dos olhos.
— Eson! Eson! Emaris!
Houve um clarão de luz, e um barulho de algo se rasgando. A casa tremeu, a porta se
abriu para dentro, um vento forte sacudiu o quarto e tudo ficou quieto. Albanac e Colin,
devagar, levantaram as cabeças do chão e se ergueram. Cada um encos tou num lado do
batente da porta.
O quarto estava revirado, os móveis todos espalhados, a esquadria da janela se soltara
da parede. A espada de Albanac estava em pedaços. Só Susan estava tranqüila: deitada,
serena, respirando pausadamente, num sono profundo. Colin foi até a cama e olhou par a
ela.
— Sue... É mesmo Sue, agora?
Albanac fez um gesto com a cabeça, confirmando.
Ouviram-se vozes lá fora, no quintal, e passos pesados subindo a escada. Num
instante, Gowther estava parado na porta do quarto.
— O quê...?
Bess logo apareceu atrás dele.
— Quem...? Minha nossa! Ai! Meu Deus! Ai!
— Chega de barulho, mulher — disse Gowther. Vendo Albanac, perguntou:
— Agora, senhor, o que significa isso?
— Isso, fazendeiro Mossock, era o Brollachan.
— O quê?
— Isso mesmo, e temos muita coisa para fazer, e depressa. Embora eu duvide muito
de que a gente consiga seguir o rastro... Tenho de ir até Fundindélfia, mas volto. Deixem
Susan dormir, e cuidado para que o bracelete fique sempre no pulso dela, deixando -a
segura.
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— Eu estava indo chamar o médico — explicou Gowther.
— Não! Nada disso — disse Albanac. — Deixe que Cadellin a veja primeiro.
— Mas...
— Confie em mim! Pode não ser bom para ela. Este assunto não é para os homens.
— Não? Você pode ter razão. Ela está com um aspecto melhor, isso é verdade. Tudo
bem, vamos esperar um pouco. Mas é bom você se apressar.
— Obrigado, fazendeiro Mossock.
Albanac saiu correndo, e todos ficaram olhando enquanto ele se afastava,
atravessando os Riddings. E ninguém disse uma palavra.
• • •
Mas muitas palavras foram ditas mais tarde. Bess e Gowther ouviram a história de
Colin, e acreditaram nela. Tinham de acreditar. O quarto destruído era uma prova
evidente.
Tinham passado várias horas consertando o que podiam, e remendando o resto.
Durante todo esse tempo, Susan dormia sem parar. Para Bess, era esse o único consolo do
dia. Era um sono tranqüilo, de quem descansa, e não aquele estado anterior, morto,
retirado, próximo a um coma, que tinha perturbado Bess muito mais do que pudesse
admitir. Susan ainda eslava pálida, mas agora era uma palidez sadia, comparada com a de
antes.
• • •
A batida na porta foi tão de leve que, se não estivessem todos em silêncio, sentados à
mesa diante de um lanche tardio, não teriam ouvido.
— Não acham que alguém bateu? — perguntou Gowther.
— Acho que sim — disse Bess. — Mas não tenho certeza.
— Quem é? — perguntou Gowther.
— Albanac.
— Ah! — exclamou ele, indo até a porta. — Entrem... Albanac entrou na cozinha,
seguido por Uthecar e Cadellin.
O mago se encolheu debaixo das vigas de madeira. Quando se levantou, a cabeça estava
tão no alto que nem dava para ver.
— Não querem sentar? — convidou Gowther.
— Obrigado — disse Cadellin. — Como vai Susan?
— Ainda está dormindo. Não tentamos acordá-la, já que Albanac tinha dito que era
melhor deixar que descansasse. Mas está com um aspecto muito melhor... senão, já
tínhamos chamado o médico para dar uma olhada nela, isso eu garanto.
— Ainda está dormindo? — repetiu Cadellin.
— Vocês não tiraram o bracelete do pulso dela, tiraram? — perguntou Albanac,
preocupado.
— Não.
— Eu gostaria de vê-la, por favor — disse Cadellin.
— O que está acontecendo? — perguntou Colin. — Por que é que vocês estão com
essas caras tão tristes?
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— Espero que não esteja acontecendo nada — disse o mago. — Albanac chegou a
tempo, e isso foi ótimo. O Brollachan não costuma deixar um corpo espontaneamente, a
não ser que já esteja além de qualquer esperança. Susan conseguiu escapar — e eu espero
que sem maiores conseqüências —, mas seria bom se pudéssemos ir vê-la.
— Escutem aqui — disse Bess, que estava sentada com ar preocupado desde que vira
o mago —, eu não vou fingir que estou entendendo nada disso, mas se Susan precisa de
cuidados, quem tem de tratar dela é o médico. Estou dizendo isso o tempo todo.
— É isso mesmo — concordou Gowther. — Você pode ir dar uma olhada nela, se
quiser, mas é só. Depois do que essa menina andou passando, quanto menos confusão,
melhor. Amanhã a gente vai chamar o médico, para examiná-la com cuidado, e pronto.
— Hummmm... — foi o único comentário de Cadellin. Subiram. Susan ainda dormia.
Cadellin olhou-a.
— Pode acordá-la, fazendeiro Mossock. A menina não tem nenhum machucado no
corpo, e já descansou bastante.
Bess se curvou sobre a cama e sacudiu Susan com carinho:
— Vamos, querida, acorde... Você já dormiu bastante, meu amor.
Susan não se moveu. Bess a sacudiu com mais força:
— Ande, menina, acorde!
Mas Susan não dava o menor sinal de pretender acordar, por mais que Bess tentasse.
— Senhora Mossock... — disse Cadellin, suavemente. — Posso tentar?
Bess recuou um pouco e o mago segurou o pulso da menina, procurando os
batimentos. Depois, levantou a pálpebra de Susan e examinou. Em seguida, apoiou a mão
esquerda na testa dela e fechou os olhos. Passou-se um minuto, e depois mais outro.
— Ela está bem? — perguntou Colin.
O mago não respondeu. Aliás, mal parecia respirar.
— Cadellin! — insistiu Colin.
— Ei! O que está acontecendo? — perguntou Gowther, fazendo um gesto para agarrar
o braço de Cadellin.
Mas Albanac se meteu na frente e não deixou.
— Por favor, fazendeiro Mossock, é melhor não interferir. Quando acabava de dizer
essas palavras, Cadellin abriu os olhos e disse:
— Ela não está aqui. Está perdida para nós.
— O quê? — exclamou Colin. — O que quer dizer isso? Ela não morreu, não pode ter
morrido! Vejam! Está respirando... Só está dormindo...
— Apenas o corpo dela está dormindo — disse Cadellin. — Vamos deixá-la em paz.
Há uma coisa que vocês precisam saber.
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• 7 •
Antiga Magia
rollachan não tem forma — disse Albanac. — Precisa então tomar a forma dos
outros. Mas nenhuma estrutura mortal consegue agüentá-lo Por muito tempo, é um
morador selvagem demais. Em pouco tempo, o corpo vai mudando, se estica, se
enche de caroços, torna-se uma forma errada. Depois se encolhe, se esfarela, vai virando pó,
e o Brollachan o abandona, como a serpente larga para trás sua pele, e vai em busca de
outro corpo. Chegamos a tempo no caso de Susan. Senão, ela teria murchado como uma
açucena debaixo da geada. Ela agora está segura — só temos é que encontrá-la.
— Tem certeza de que é Sue quem está lá em cima? — perguntou Colin. — Ontem à
noite, quando toquei a mão dela, bem... estava diferente... não parecia nada com uma mão.
— Não se preocupe — disse Cadellin. — Na certa foi a lembrança de uma forma
anterior, essas coisas acontecem com o Brollachan, fica uma espécie de assombração
pairando, a memória dele demora a assumir a mudança. Você nunca ouviu falar em gente
que perde um membro e tem a sensação de sentir dor ou coceira num pé ou mão que não
está mais lá?
— Mas aonde é que isso tudo vai nos levar? — perguntou Gowther. Susan está lá em
cima deitada, e ninguém consegue que ela acorde. A gente tem de fazer alguma coisa.
O mago suspirou:
— Eu não sei qual é a resposta, fazendeiro Mossock. O Brollachan levou a menina
embora do corpo dela, e não consigo ver onde ela está agora. Está além da minha mágica.
Vamos chamar outros poderes para encontrá-la, e, até que isso aconteça, ela tem que ficar
aqui deitada, e o bracelete de Angharad Mão-de-Ouro não deve nunca sair de seu pulso.
— Quem me dera que nunca tivesse saído... — suspirou Albanac. — Eu trouxe de
volta no instante em que Atlendor me devolveu, mas já era tarde.
— Só tem uma coisa — disse Gowther — que eu ainda quero saber: quanto tempo vai
durar essa história?
— Não é um negócio rápido — disse o mago. — Semanas... meses... tomara que não
sejam anos... Ela está muito longe.
— Então vou chamar o médico, agora mesmo — disse Gowther. — Chega dessa
história toda.
— Fazendeiro Mossock, isso é a mesma coisa que jogar água no óleo fervente! —
exclamou o mago. — Será que você ainda não entendeu? Isso não é assunto para os
B
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mortais. Sabe o que aconteceria? Ela nos escaparia. E nossa tarefa ia ficar cinco vezes mais
difícil.
— É, mas o lugar dela é no hospital, se vai ficar desse jeito. Para começar, vai precisar
de alimentação especial.
— Não, nós cuidamos dela, pode deixar. Conosco, ela está segura. Fazendeiro
Mossock, a pior coisa que podem fazer é isso que você está ameaçando. O perigo aumenta
muito, para Susan e para nós, se não nos deixar tratar disso à nossa maneira. Gowther
olhou para o mago, com ar preocupado.
— Não gosto nada disso, mas já o conheço bastante para saber que dessas coisas você
entende. Então, vamos fazer um trato. No meio-termo. A não ser que Susan piore, não faço
nada nos próximos três dias.
— Três dias! — disse Cadellin. — Não se pode fazer muita coisa em três dias.
— Não sei, não entendo disso — disse Gowther. — Mas é o prazo máximo.
— Então temos que aceitar, e torcer para dar certo — disse o mago, levantando-se da
cadeira. — Colin, você pode estar na Pedra Dourada amanhã ao meio-dia? Há uma coisa
de que Susan vai precisar.
• • •
Colin saiu da estrada, tomando a trilha que seguia pela lateral do bosque. À sua
esquerda, havia pinheiros e carvalhos. À direita, campos e colinas.
Chegou ao bloco de arenito cinzento que ficava na beirada da trilha e e ra chamado de
Pedra Dourada. Tinha uma forma tão rude que poucas pessoas notavam que era cheio de
marcas de ferramentas, e não era apenas mais uma das muitas protube râncias da Borda,
mas tinha sido colocado ali em alguma época, com um propósito determinad o e já
esquecido. Uthecar e Albanac estavam sentados, com as costas encostadas nele.
— Sente aqui, Colin — disse Albanac. — Está seco. Como está Susan?
— Na mesma. Vocês acharam alguma coisa que possa ajudar?
— Nada — disse Uthecar. — Apesar de não termos dormido nem descansado um
instante desde que saímos de lá.
— Cadellin está usando todo seu poder — disse Albanac —, mas nem ele consegue ver
onde ela está. Porém não desanimem. Não vamos desistir, e outros estão nos ajudando.
Acabamos de chegar de Redesmere: a Dama do Lago está lhes mandando isto aqui. Vocês
não precisam mais se preocupar com comida.
Entregou a Colin uma garrafinha de couro.
— O vinho da mesa de Angharad Mão-de-Ouro tem muitas virtudes.
— Obrigado — disse Colin. — Mas vocês vão encontrar Sue, não vão? É só uma
questão de tempo, não é? E em que tipo de lugar ela está? Como é que pode estar em outro
lugar, se está ali deitada na cama?
— Não vou mentir para você — disse Albanac. — A Susan que está ali é só
Comprimento, Largura e Altura. A verdadeira Susan não é nada disso. Vocês sempre
conheceram as duas como se fossem uma só, mas o Brollachan as separou co mo se fosse
um gravetinho que a gente quebra na hora de acender o fogo.
— Estou achando... — disse Uthecar. — Estou achando que Cadellin não vai encontrar
essa menina.
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— Tem de encontrar, e vai encontrar — disse Albanac. — Nunca pensei que você fosse
ficar com medo tão depressa.
— Você está enganado, não é medo. Estou é achando que a Alta Magia é afiada demais
para uma empreitada dessas.
— Não estou entendendo.
— Você pensa muito, mas às vezes não é esperto. Eu expli co — disse Uthecar. — Pense
bem: diz-se que a espada que está ao lado do Adormecido, em Fundindélfia, é capaz de
dividir em dois um fio de cabelo dentro d'água, ou de tirar sangue do vento. Mas você
usaria uma têmpera dessas para derrubar esta árvore aqui? Pois é a mesma coisa. O
Brollachan faz parte do Velho Mal, não circula por esses lugares etéreos que Cadellin
conhece. Contra o Velho Mal, seria melhor a Antiga Magia. Contra um exército de mil
bravos, pode me dar a espada do rei. Mas para abater este carvalho, prefiro o machado do
lenhador.
— Eu não tinha pensado nisso... — concordou Albanac. — Mas você pode ter razão. E
não podemos deixar de buscar todas as possibilidades. Mas que Antiga Magia ainda existe
hoje em dia? Toda ela está dormindo, e não deve ser acordada.
— Não sei, eu não tenho cabeça para essas coisas, infelizmente — disse Uthecar. —
Bem que eu perguntei aos lios-alfar, mas eles jamais olhariam tão para baixo.
— Mas então, o que é que a gente pode fazer? — exclamou Albanac, com uma
animação nova, como se as palavras de Uthecar lhe tivessem dado um outro ânimo, que
contagiava até Colin, apesar de toda a preocupação do menino.
— Não sei, não conheço muito essas coisas, mas andei pensando em qual seria o
encantamento mais forte para todos os momentos dos piores males e tenho a impressão de
que seria a Mothan — disse Uthecar. — Mas onde ela pode crescer nestas terras planas do
sul? Não faço a menor idéia.
— A Mothan! — disse Albanac. — Já ouvi falar nela! Mas é uma planta mágica,
dificílima de achar... E só temos três dias.
— Contem-me tudo sobre ela — pediu Colin. — Vou achá-la.
Uthecar olhou para ele.
— Conto. O que mais se precisa para poder achá-la é essa determinação que estou
vendo em você. É uma planta caprichosa, que só cresce nas alturas da velha trilha reta, e
só floresce na noite de lua cheia.
— Amanhã é noite de lua cheia! — exclamou Colin. — Onde é essa trilha?
A essa altura, ele e Albanac já estavam de pé, mas Uthecar continuava onde estava.
— Não é uma só, são várias, mas todas se perderam. Eu sei de duas, para lá de Minith
Bannawg, mas nem mesmo um elfo seria capaz de chegar lá a tempo. Porém pode haver
outras por aqui. Se você estiver parado na velha trilha reta, bem na hora em que a lua
cheia se levanta ao longo dela, então consegue ver. O resto do tempo, está escondida.
— Tem alguma por aqui? — perguntou Colin a Albanac.
— Não sei. Mas, uma vez, ouvi falar nelas. Porém foram feitas num tempo muito
antigo, antes dos anões e antes dos magos. Fazem parte da Antiga Magia, embora não
saibamos para que servem. E as coisas mortas se mexem quando ela se move.
— Escutem! Eu tenho que achar essa trilha! Tem de haver um jeito. Por que vocês iam
me falar dela se não fosse servir para nada?
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— Bom, eu estava imaginando se haveria alguma trilha conhecida por aqui... — disse
Uthecar. — Porém, infelizmente, pelo jeito não há. Mas não perca a coragem, Colin. É a
Antiga Magia, simples, cálida. A fé e a força de vontade podem tocar o coração dela. Se for
possível achar a Mothan, você vai achar, embora eu não faça a menor idéia de onde ela
possa estar.
— Mas como é que eu começo a procurar? — perguntou Colin.
— Tenha fé e virá alguma ajuda. Procure. Tente. Pense em Susan. Nunca perca a
esperança nem a coragem. Volte aqui amanhã a esta mesma hora. Pode ser que tenhamos
alguma notícia melhor.
Colin caminhou de volta a Highmost Redmanhey sem nem prestar atenção à
paisagem. A velha trilha reta: a velha trilha reta. Só isso, tão vago. A velha trilha reta. E,
no entanto, tinha certeza de que já ouvira falar nisso antes de Uthecar mencioná-la, o que
era ridículo, porque, afinal de contas, como é que ele podia saber alguma coisa sobre uma
magia que mesmo quem vivia com ela só conhecia vagamente? Mas, quanto mais ele pen -
sava, mais atrás a memória voltava, e mais ele tinha certeza de que seria capaz de
responder à pergunta se conseguisse lembrar.
De volta à fazenda, Colin fez uma refeição triste. Desistira de procurar a velha trilha
reta e estava preocupado com Susan, pensando nela. Os Mossock também comiam em
silêncio, com uma expressão aflita no rosto.
De repente, como muitas vezes acontece quando a cabeça da gente deixa de lado um
problema, a cena que estava escapando de Colin apareceu completinha, pelo meio dos
pensamentos dele.
— Já sei! — exclamou.
Deu um salto da cadeira e subiu a escada correndo, até seu quarto. Pulou por cima da
cama e tirou da prateleira o tal livrão antigo de Gowther, encapado de couro marrom. Em
algum lugar, no meio daquelas quatrocentas e cinqüenta páginas, havia uma referência à
velha trilha reta. Ele sabia que tinha visto. Estava bem nítida na sua cabeça. Ficava em
frente a uma página cheia de anotações heráldicas: havia o desenho de um brasão, com um
cabrito entre três cabeças de javali. Mas, mesmo lembrando tão bem, Colin estava em tal
estado que teve de folhear página por página duas vezes, até conseguir achar. E depois,
quando releu, o estilo seco das anotações do pastor ficava tão distante da excitação da
Magia que o menino ficou em dúvida.
"Hoje eu andei pelo traçado de uma trilha antiga, bem reta, feita por nossos rudes
antepassados (sou levado a crer), antes da chegada dos antigos romanos a estas plagas.
Segui esse caminho de Mobberley até a Borda. Foi construído — se é que se pode
empregar esse termo — numa época tão remota que não existe registro algum de sua
existência, salvo os freqüentes montículos e pedras erigidos para indicar o caminho. Entre
esses, o Farol e a Pedra Dourada são os mais notáveis, ao longo da Borda. A partir do
último, onde terminei minha excursão, parecia que a trilha se alinhava com o pico do Tor
Brilhante, que fica a cerca de quatorze quilômetros em direção a Buxton.
É impossível deixar de maravilhar-se com a capacidade desses arquitetos
desconhecidos, que, embora ignorantes de todo das artes da ciência..."
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Colin fechou o livro. A animação desaparecera. Mas tinha que tentar. Onde mais
poderia encontrar uma pista? Era a única coisa que tinha.
— Tudo bem com você, garoto? — perguntou Bess quando ele desceu. — Está com
cara de quem perdeu um dinheirão e achou um dinheirinho.
— Não, tudo bem, desculpe — disse Colin. — Foi uma coisa de que me lembrei, no
livrão velho. Você sabe onde fica o Farol, na Borda?
— Sei — disse Gowther. — É a parte mais alta da Borda. Sabe, quando a gente vai pelo
caminho do alto, da Pedra do Castelo até o Ponta das Tormentas? Pois bem, logo antes de
virar à esquerda, o Farol é aquele morrinho redondo logo acima da gente, à direita. N ão dá
pra se enganar. Antigamente tinha uma casinha de pedra no alto, e ainda dá para ver as
fundações.
— Posso ir até lá dar uma olhada hoje de tarde?
— Claro que pode — disse Bess. — Nada como um bom exercício, para distrair as
idéias.
— Obrigado, não demoro.
Gowther tinha razão. Não dava para se enganar com o Farol. Era um morro com uma
superfície lisa, evidentemente artificial, e ficava bem visível, longe das árvores, no ponto
mais alto da Borda. Parecia um túmulo.
Colin andou de um lado para outro sobre a elevação, mas a única trilha visível era
moderna, e não tinha nada de reta.
A partir do Farol, Colin foi andando por entre as árvores até a Pedra Dourada, que
ficava a uns 400 metros, mas não dava para perceber que estivesse caminhando por trilha
alguma. Ao chegar lá, continuou em linha reta depois da pedra, por cima de uma ligeira
elevação no terreno, até que chegou à beira do bosque, logo adiante, a poucos metros. A
partir daí, do outro lado dos campos, ficava o perfil do alto dos Peninos e, em determinado
ponto, bem em frente de Colin, a linha dos morros se elevava num pico não muito alto,
mas francamente nítido. E, de novo, nem sinal de trilha nenhuma.
Na certa, era o Tor Brilhante, pensou Colin. Bom, pelo menos as anotações estavam
certas. É melhor contar a Albanac. É tudo o que temos como pista, a não ser que ele tenha
descoberto alguma coisa.
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• 8 •
O Tor Brilhante
ode ser... — disse Albanac. — Pode muito bem ser... Apesar de a gente
sempre associar a Pedra Dourada ao mundo dos elfos, já ouvi dizer que
eles a encontraram aqui quando fizeram a estrada.
— "Pode ser..." — remedou Uthecar. — Você era capaz de duvidar que um lobo tem
dentes, enquanto eles não estivessem rasgando a sua garganta. "Pode ser..." Francamente!
É! É! É claro que é! A Antiga Magia veio atender a nossa necessidade e nos mostrou o
caminho para seu coração — a velha trilha reta a partir do morro do Farol. É lá que você
tem que estar hoje à noite, Colin, e aproveitar a oportunidade que parecer, seja qual for.
— Pois é disso mesmo que não gosto — disse Albanac. — Dizem que aconteceram
coisas muito estranhas no Farol.
— E daí? Vou estar lá com você, Colin, e minha espada vai te defender.
O resto do dia pareceu se arrastar para Colin. Conferiu na agenda e no jor nal a hora
em que a lua cheia ia nascer. Depois, de repente, ocorreu-lhe uma dúvida aflitiva: e se
fosse uma noite nublada? Faria diferença? Então, saiu lendo todas as previ sões da
meteorologia, e subiu os Riddings três vezes para olhar o céu. Mas não pre cisava ter-se
preocupado. Era uma noite de céu limpo quando ele finalmente escapuliu da casa da
fazenda e se dirigiu ao bosque.
Encontrou Uthecar na Pedra Dourada e foram andando juntos pela escuridão
tranqüila.
— Será que a lua vai nascer na trilha? — disse Colin.
— É a nossa esperança — respondeu Uthecar. — Mas acho que vai. Se não nascer, não
nos resta muita coisa.
— E como é que eu vou conhecer a Mothan? Nunca vi uma planta dessas, nem
desenhada.
— Cresce isolada, entre as pedras. Tem folhas de cinco pontas e raiz vermelha. E
reflete a lua. Pode deixar, que você vai reconhecer assim que a vir.
Subiram no morrinho onde antes ficava o Farol. No alto, havia um espacinho cheio de
areia, e uns blocos de arenito. Sentaram-se nos blocos e esperaram. O anão tinha a espada
repousada por sobre os joelhos.
— O que é que eu faço com a Mothan quando a encontrar? — perguntou Colin.
— Pegue a flor, e algumas folhas — disse Uthecar — e leve para Susan. Mas tome
cuidado para não machucar a raiz, nem tirar todas as folhas.
—P
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Continuaram sentados, em silêncio. Colin não queria falar. Não conseguia impedir
que sua voz tremesse, e toda hora ficava sem fôlego. De repente, depois de olhar
repetidamente o relógio, Colin se levantou e começou a andar para a frente e para trás no
alto do monte. Olhava atentamente para a escuridão, tentando distinguir alguma coisa.
Nada se mexia nem se mosliava. Finalmente, o menino sentou numa pedra e pôs a cabeça
entre as mãos.
— Não adianta — disse, desanimado. — A lua já devia ter nascido há cinco minutos.
— Não desista ainda — disse Uthecar. — A lua vai ter que subir de trás dos morros.
Levante-se, Colin. Fique preparado.
O anão se afastou ligeiramente de Colin, deixando-o sozinho no topo do morro.
Houve um momento de silêncio, e então Colin disse:
— Ouça! Está ouvindo?
— Só o barulho da noite. Mais nada.
— Ouça! É música! Como se fossem vozes chamando. E sininhos de gelo! E olhe ali! Lá
está a trilha!
De repente, pelo meio das árvores e por cima do morro do Farol, fluía uma linha
cintilante, uma meada de fios de prata, todos vivos, faiscantes. Colin tinha visto algo
levemente parecido antes, uma única vez, numa manhã muito rara em que o sol cortara um
caminho pelo meio de um tapete invisível de teias de aranha cobertas de orvalho, cobrindo
os campos. Mas nada se comparava à beleza do que estava vendo agora. A trilha pul sava,
fulgurante, sob seus pés e ele olhava para ela como se esti vesse num encantamento.
— Corra! — lembrou Uthecar. — Não perca tempo!
— Para que lado? Ela se estende à direita e à esquerda, até onde a vista alcança!
— Para o leste! Para as montanhas! Ligeiro! A trilha vai se perder quando a lua passar.
Depressa! Corra! E que a sorte te acompanhe!
Colin deu um pulo e foi correndo pela colina abaixo, e seus pés tinham asas de prata.
As árvores eram vagas manchas à sua volta, houve um momento em que sentiu a dureza
da Pedra Dourada debaixo de si, e num instante ele saía do bosque, e lá esta va a velha
trilha reta seguindo em frente, mergulhando e fluindo sobre os campos arredondados, e
subindo mais adiante, pela encosta das colinas, até o pico do Tor Brilhante, e por trás dele
o disco largo da lua, branco como um escudo dos elfos.
Em frente, em frente, em frente, cada vez mais rápido, mais rápido... A trilha o
puxava, fluía através dele, enchia seus pulmões, seu coração e sua mente de fogo, lançava
centelhas a partir de seus olhos, escorria de seus cabelos, e os sininhos e a música e as
vozes faziam parte dele, e a Antiga Magia cantava-lhe, das profundezas da terra e das
cavernas do céu azul-noite.
Depois a trilha se ergueu na sua frente, e de repente Colin estava nas colinas. A lua
estava clara e nítida, sobre o Tor Bri lhante. E enquanto ele subia o paredão do pico do alto
penhasco, o caminho se dissolveu como um véu de fumaça. O peso tomou conta de seu
corpo e o puxou para baixo, do alto do morro. Mas Colin deu um grito altíssimo e esticou
o braço para agarrar o pico. Os sinos se perderam em meio aos soluços de sua respiração,
às batidas de tambor de seu sangue.
Abriu os olhos. Uma pedra áspera apertava sua bochecha, rochedo cinzento ao luar.
Pelo meio de seus dedos, que agarravam a pedra, saíam umas folhas, de cinco pontas. E no
oco da palma de sua mão, havia um pálido brilho de luar.
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• • •
Sobre a região do Wildboarclough, o cone de Shuttlingslow se destacava das longas
serras, como uma torre de sentinela, velando sobre a planície que se estendia como um
mar, do Pico Rivington até as elevações de Moel Fammaw. Mas Colin não via nada disso.
Seus olhos e todo o seu ser estavam voltados para a delicada Mothan que guardava nas
mãos em concha.
Tinha pegado a flor e duas folhas. As pétalas faiscavam, com uma luz fria, de vaga -
lume, e os finos pêlos das folhas eram de prata. Passaram-se alguns minutos. Depois, Colin
dobrou a Mothan com cuidado e a guardou numa bolsinha de couro que Uthecar tinha lhe
dado especialmente para esse fim. Em seguida, olhou em volta.
A velha trilha reta desaparecera, mas abaixo do Tor Bri lhante a estrada de Buxton
iniciava as curvas de sua descida para Macclesfield. Colin caminhou ao longo da beirada
até o final do penhasco, e foi escolhendo por onde ia pisar, por cima do chão acidentado e
cheio de mato, até a estrada.
Era meia-noite. A estrada estava esquisita, fria, macia sob seus pés depois dos tocos,
buracos e pedras do Tor Brilhante. E depois que o pique da excitação passou — e passou
rápido, com a queda do morro — ele começou a se sentir exausto. E cada vez menos à
vontade. A noite estava tão parada, a estrada tão deserta ao luar... Mas então lembrou-se
de Susan, deitada na cama em Highmost Redmanhey, e da Mothan guardada no bolso, e
das maravilhas daquela noite, e seus passos ficaram mais leves.
Passos leves. Era tudo o que podia ouvir. Atrás dele, parou e escutou. Nada. Olhou.
Estrada deserta. Devia ser um eco, pensou, e começou a andar de novo. Mas agora estava
consciente de estar ouvindo, e logo começou a suar.
Ouvia seus próprios passos, firmes na estrada, e depois deles ouvia um eco, que vinha
do paredão de pedra seca e do morro. E entre seus passos e o eco ouvia um som, "pate -
pate-pate", de pés. Pelo ruído, pés descalços.
Parou. Nada. Olhou. Estrada deserta. Mas a lua lançava sombras.
Colin cerrou os dentes e andou mais depressa. Passo. Eco. Passo. Eco. Passo. Eco.
Passo. Eco. Respirou fundo. Nervos! Nada além de... "pate-pate-pate". Colin virou-se. Uma
sombra se moveu?
— Quem está aí? De quem é esse andar? — gritou.
— Ar! Ar! Ar! — respondeu a colina.
— Estou vendo você!
— Ê! Ê! Ê!
Conta ponto para Colin ele não ter corrido. Estava quase entrando em pânico. Mas
engoliu em seco e obrigou o cérebro a pensar. A que distância estaria de Macclesfield? Uns
seis quilômetros? Então não adiantava sair correndo. Virou-se e começou a andar. E
embora não conseguisse dar dez passos sem olhar para trás, continuou firme, e foi se
afastando do Tor Brilhante. Não via nada. Mas os passos que não eram exatamente um eco
continuavam a acompanhá-lo.
Depois de uma meia hora, Colin já estava achando que talvez conseguisse chegar à
cidade, porque a coisa que o seguia — fosse lá o que fosse — parecia contentar-se apenas
com isso, porque nunca diminuía a distância entre eles. De repente, quando se aproximou
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de uma curva mais fechada, Colin ouviu algo que fez seu sangue gelar. Era um so m novo,
e vinha da frente: cascos. O som de um cavalo que vinha andando bem devagar.
Olhou para trás. Nada ainda. Mas não podia voltar. E fora da estrada era tudo
desconhecido demais. Mas por que deveria ter medo desse novo som? Colin estava tão
tenso que teria medo de sua própria voz. Não conseguiu tomar uma decisão: estava
encurralado.
Seus olhos estavam fixos na estrada, que sumia de vista como uma língua negra. O
"ploque-ploque" suave dos cascos de cavalo parecia continuar, sem fim. A estrada
continuava deserta...
Era um cavalo preto, e o cavaleiro vinha envolto numa capa e usava um chapéu de
abas largas.
— Albanac!
Colin saiu correndo para ele, rindo. Um toque de realidade — ainda que fosse uma
realidade daquelas — bastava para mudar toda a cena. Colin viu a si mesmo com outros
olhos. Era uma bela noite enluarada, entre colinas tranqüilas, e Susan es tava esperando
que ele a levasse a Mothan. Desde que saíra do Farol até esse instante, tinha estado em
outro plano da existência. Era demais para sua imaginação.
— Albanac!
— Colin! Bem que eu achei que ia te encontrar em algum ponto desta estrada.
Conseguiu pegar a Mothan!
— Consegui!
— Então, venha. Vamos levá-la para Susan.
Albanac se abaixou, pegou Colin e o ajeitou na sela à sua frente. Depois, fez meia -
volta com o cavalo, em direção a Macclesfield.
— Mas, Colin, você está molhado, tremendo... Alguma coisa deu errado?
— Não. É só que tudo é tão estranho... Passei por maus momentos...
— Estou vendo.
Enquanto ele dizia isso, o cavalo virou a cabeça e olhou para trás, para o fundo da
estrada. Relinchou e colou as orelhas na cabeça.
Albanac se retorceu na sela. Colin, meio enrolado na capa dele, não podia ver o que
havia na estrada lá atrás, mas sentiu o corpo de Albanac enrijecer e ouviu a respiração dele
assoviando por entre os dentes. Em seguida, as rédeas se sacudiram no pescoço do cavalo
e o animal saiu a galope com toda a fúria de seu sangue mágico. A velocidade da corrida
bloqueava qualquer pergunta na garganta de Colin. E a noite enchia seus ouvidos, e a capa
estalava ao vento.
Albanac não parou enquanto não chegaram aos Riddings e viram lá embaixo
Highmost Redmanhey, com seu telhado e suas madeiras se recortando ao luar, e uma luz
na janela do quarto onde Susan estava deitada.
— Por que aquela luz está acesa? — perguntou Colin.
— Está tudo bem — disse Albanac. — Cadellin está esperando por nós.
O quartinho estava cheio de gente. Quando Colin abriu a porta, Bess exclamou:
— Onde você se meteu? Devia ter nos...
— Calma, menina — disse Gowther, suavemente. — Conseguiu o que queria, Colin?
— Consegui.
— E está tudo bem com você?
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— Sim.
— Bom, isso é o que importa. Vamos ver o que se pode fazer agora.
Colin pegou a flor e as folhas da bolsinha.
— Você fez tudo direitinho — disse Uthecar. — É mesmo a Mothan. Agora, dê a sua
irmã.
— Aqui está — disse Colin, entregando a planta a Cadellin.
Mas o mago sacudiu a cabeça.
— Não, Colin. Isso faz parte da Antiga Magia. Não vai respeitar a minha mente. É
melhor que Uthecar cuide disso. Ele tem mais habilidades nessa área.
— De modo algum, Cadellin Argentesta — disse o anão. — Comigo também não vai
funcionar. A necessidade não é minha. Só vai agir por intermédio de Colin. Dobre a flor
dentro das folhas e ponha tudo na boca da menina.
Colin foi até a cama. Dobrou a Mothan bem apertada e abriu a boca de Susan o
suficiente para que aquela bolinha vegetal passasse por dentro dos dentes dela. Deu um
passo atrás e ficou esperando. Para todos, o silêncio parecia uma faixa de aço apertando a
cabeça. Passaram-se três minutos. Não aconteceu nada.
— Isso é uma besteira! — disse Bess.
— Cale a boca! — repreendeu Uthecar, grosseiro. Outro silêncio comprido. Colin
achou que ia desmaiar.
Suas pernas tremiam com o esforço da concentração.
— Ouçam! — exclamou Albanac.
Muito longe e, se é que estava em algum lugar, acima deles, ouviram uns latidos
abafados, como se fossem de cachorros acuando uma presa numa caçada, e o sopro
profundo de uma trompa de caça. Os latidos se aproximaram, e agora já se ouvia também
o tinido de uns arreios. A trompa soou de novo — estava bem perto, do lado de fora da
janela. E Susan abriu os olhos.
Olhou fixo em volta, de um modo descontrolado, como se tivesse sido acordada no
meio de um sonho. Depois sentou, fez uma careta, e levou a mão à boca. Mas Uthecar deu
um salto, atravessando o quarto e bateu com força no meio das costas dela, com a palma
da mão.
— Engula!
Susan não conseguiu evitar. Com o golpe, deu um soluço e engoliu a Mothan. Então
deu um pulo para fora da cama. Correu até a janela e a abriu tão descuidadamente que o
lampião caiu no quintal lá embaixo e explodiu num clarão de parafina. Susan pendurou -se
para fora da janela e Colin atravessou o quarto escuro correndo e a agarrou pelos ombros,
pois parecia que ela estava determinada a fazer alguma coisa que não a deixava lem brar
do perigo.
— Celemon! — gritava ela. — Celemon! Fique comigo! Colin a puxou para trás do
peitoril e teve que agarrar a esquadria para não cair, pois o choque do que viu no céu por
cima da fazenda o deixou de pernas bambas.
Não era capaz de dizer se eram estrelas, ou o que eram. O céu era uma espécie de
neblina de luar e no meio dessa neblina parecia que as estrelas formavam novas
constelações, que se mexiam, ganhavam vida e adquiriam uma forma, desenhando nove
moças montadas a cavalo, gigantescas, enchendo os céus. Giravam em torno da fazenda,
com falcões pousados nas mãos, e entre elas saltavam galgos de caça, com olhos faiscantes
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e coleiras cobertas de jóias. As amazonas vestiam túnicas curtas e seus cabelos brilhavam
contra o céu. Depois a trompa de caça soou novamente, os cavalos empinaram e saíram
galopando pela planície. E a noite lançou uma chuvarada de estrelas cadentes sobre o céu
do oeste.
Só Colin vira isso. Quando se voltou para dentro do quarto, Bess aparecia na porta
com outro lampião. Susan continuava olhando lá para fora da janela, com lágrimas
escorrendo pelo rosto. Mas quando a luz encheu o quarto, ela relaxou e suspirou.
— Como você está se sentindo, Susan? Ela olhou para ele.
— Cadellin. Bess. Gowther. Uthecar. Colin. Albanac. Mas o que era aquilo, então? Eu
tinha esquecido de vocês.
— Sente-se na cama — disse Cadellin. — Conte pra gente o que você sabe desses
últimos dias. Mas antes de mais nada, senhora Mossock, a senhora não quer trazer alguma
coisa para Susan comer e beber? É o que ela está precisando agora, para se sentir melhor.
Num instante, já estava tudo providenciado. E enquanto comia, Susan contou sua
história. Hesitava ao falar, como se estivesse tentando descrever algo para si mesma, mais
do que para qualquer outra pessoa.
— Lembro de ter caído na água — disse — e aí tudo escureceu. Prendi o fôlego
enquanto agüentei, mas depois começou a doer e tive de soltar, mas bem nessa hora a água
se afastou de mim na escuridão e então... bem... quer dizer, o escuro conti nuava o mesmo,
mas eu estava em outro lugar, flutuando... não era nenhum lugar específico, era só um
lugar, para a frente e para trás, dando voltas no nada. Sabem, quando a gente está na cama
de noite e imagina que ela está girando, ou o quarto está escorregando? Era assim.
Continuou:
— Não era terrível, mas eu não gostava dos barulhos. Tinha guinchos e som de
alguma coisa arranhando, por todo lado em volta de mim... vozes... não, não eram bem
vozes... eram só uns sons confusos, mas vinham de gargantas. Alguns estavam bem perto,
outros vinham de longe. Continuaram por muito tempo, e eu não estava gostando. Mas
não fiquei assustada, nem preocupada com o que ia me acontecer... apesar de ficar
assustadíssima agora, quando penso nisso! Eu não gostava de estar onde estava, mas ao
mesmo tempo não conseguia pensar em nenhum outro lugar onde quisesse esta r. E depois,
de repente, senti uma mão agarrar meu pulso e me puxar para cima. Houve uma luz, ouvi
alguém gritando — agora acho que era Albanac — e comecei a me mexer mais depressa do
que nunca. Tão depressa que fiquei tonta, e a luz ficou cada vez mais fo rte, não fazia a
menor diferença se eu fechasse os olhos. Depois, comecei a ir devagar de novo, e o brilho
não incomodava tanto, e conseguia ver o contorno da mão que estava me segurando. E
então, parecia que eu estava rompendo uma película, feita de luz, e eu estava numa água
rasa, na beira do mar, e em pé junto a mim havia uma mulher, vestida de vermelho e
branco, e segurávamos os pulsos uma da outra, e nossos brace letes estavam presos um no
outro... e Cadellin! Só agora estou me dando conta disso! O bracelete dela era igual ao
meu... ao que Angharad me deu!
— Provavelmente era mesmo — disse o mago, rapidamente. — Não pense nisso.
Continue.
— Bom, então ela abriu o seu bracelete e o soltou do meu, e saímos andando juntas
pela praia. Ela disse que se chamava Celemon e que íamos para Caer Rigor. Não achei que
precisasse fazer nenhuma pergunta. Aceitava tudo o que vinha, como a gente faz nos
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sonhos. Mais adiante, nos reunimos às outras, que estavam nos esperando num platô
rochoso, e saímos cavalgando sobre o mar, para Caer Rigor, e todo mundo estava muito
animado, falando em voltar para casa. E de repente, senti um gosto amargo na boca, e todo
mundo sentiu também, e por mais que a gente fizesse força para cavalgar, não
conseguíamos sair do lugar. Celemon disse que íamos ter que voltar, e voltamos, então
fiquei tonta outra vez, e o gosto amargo na boca foi ficando mais forte, achei que ia
vomitar, não conseguia me equilibrar, e caí do cavalo, lá do alto, fui caindo, caindo, dentro
do mar, ou da neblina, sei lá o que era. Fiquei horas caindo, então bati numa coisa dura.
Tinha fechado os olhos para ver se não enjoava, e quando abri estava aqui. Mas onde está
Celemon? Não vou mais vê-la?
— Com certeza, vai — disse o mago. — Algum dia vai encontrá-la de novo, e irão a
cavalo sobre o mar até Caer Rigor, e não haverá nenhum gosto amargo que impeça a
jornada, mas só quando chegar a hora. Cada coisa a seu tempo. Agora você precisa é
descansar.
Deixaram Susan com Bess e desceram para a cozinha.
Colin estava meio zonzo, de exaustão e maravilhamento. Descendo as escadas, tentou
descrever o que tinha visto quando puxara Susan da janela. Mas ninguém prestou atenção,
exceto Cadellin, que pareceu encarar seu relato como a confirmação de seus próprios
pensamentos.
— Caer Rigor... — repetia o mago. — Caer Rigor... Hum, estamos em águas muito
profundas agora. Caer Rigor... Que bom que você encontrou a Mothan a tempo, Colin,
porque se Susan tivesse chegado lá, nem a Alta Magia nem a Antiga Magia seriam capazes
de trazê-la de volta.
"Três vezes o total de Prydwen nos levou:
Exceto sete, de Caer Rigor ninguém retornou."
É assim que a canção fala de lá. Ah... não é sempre que a Antiga Magia consegue fazer
tanto bem...
— Como assim? — perguntou Colin. — Não é Magia
Negra, é? Por favor, explique. E o que aconteceu com Sue?
— É difícil explicar — disse o mago. — Melhor deixar para quando estivermos mais
descansados. Mas se faz muita questão, eu conto — embora no fim você possa estar
entendendo ainda menos do que agora. É o seguinte, Colin: a Antiga Magia não é Magia
Negra, mas tem sua própria vontade, só faz o que quer. Pode funcionar de acordo com a
sua necessidade, mas não segundo as suas ordens. E, além disso, há lembranças da Antiga
Magia que surgem quando ela funciona. E não é que sejam um mal em si, mas são
caprichosas, e erradas para nossa época.
— É isso mesmo — confirmou Albanac. — O Caçador estava na estrada.
— Você o viu? — perguntou Cadellin, severo.
— Vi. Ele veio com Colin, de seu leito no Tor Brilhante. Na certa queria saber o que o
tinha despertado.
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— O quê? — perguntou Colin. — Quem é? Na estrada? Ouvi alguém me seguindo, ou
pensei que tinha ouvido, mas depois, quando encontrei você, fiquei achando que t inha
sido uma bobagem.
— Talvez fosse.
— Ei, de que é que vocês estão falando?
— Uma velha lembrança — disse o mago. — Não trouxe mal algum, mas não se
precisa falar mais nisso. É melhor agora eu explicar o que foi que Susan acabou de nos
contar. Isso, sim, é algo que pode afetar todos nós.
— Não me diga que está levando a sério essa história toda! — disse Gowther. — Foi só
um sonho. Ela mesma confirmou.
— Ela disse que parecia um sonho — observou Cadellin.
— E eu bem que gostaria de poder encarar assim, deixando de lado. Mas acontece que é a
verdade. Acho que ainda há muito mais do que ela se lembra. O Brollachan a carregou
desse nível do mundo em que os homens nascem, e a levou para a escuri dão e a vida
informe, que os magos chamam de Abred. De lá foi transportada para o Limiar das
Estrelas de Verão, que fica tão além desse mundo de vocês como o Abred fica abaixo dele.
Muito poucos até hoje conseguiram ir tão longe. Desses, ainda muito menos conseguiram
voltar. E nenhum deles deixou de mudar tanto. Ela cavalgou com As Brilhantes, As Filhas
da Lua, e que vieram em sua companhia, desde muito além do vento do norte. Agora ela
está aqui. Mas As Brilhantes não se afastaram de Susan por livre e espontânea vontade,
porque, através dela, podem despertar seu poder neste mundo — a Antiga Magia, que se
foi daqui há muito, muito tempo. É uma magia que escapa a nosso controle. Uma magia do
coração, não da cabeça. Pode ser sentida, mas não conhecida. E nisso não vejo bem algum.
Todos ouviam atentos, e Cadellin prosseguiu: — E Susan não foi vítima do Brollachan por
acaso. Havia um elemento de vingança nisso. Ela foi salva, e está protegida, apenas por
causa da Marca de Fohla — que é a bênção dela, mas também sua maldição, pois o
bracelete não só a protege contra o mal que pode esmagá-la, mas também a leva para
muito além dos caminhos da vida humana. Quanto mais usá-lo, mais vai precisar dele. E
agora já é tarde demais para tirá-lo. Será que tudo isso já não bastava? Seria ainda
necessário despertar a Antiga Magia que dormia? Meu coração estaria bem mais leve se eu
pudesse ter certeza de que aquilo que vocês despertaram esta noite poderia voltar a
descansar com a mesma facilidade com que acordou.
Colin ficou desperto com todos os acontecimentos daquele dia e daquela noite
girando em sua cabeça, depois que o mago foi embora. Havia ainda tanta coisa sem
resposta, tanta coisa que não fora entendida, tanta coisa que fora conquistada. Apesar de si
mesmo, sentia: tinha sido apenas um instrumento. Mas Susan estava salva, Susan estava...
De repente, Colin teve um sobressalto e sentou-se na cama. Embaixo da janela, ouvira
um som leve e familiar. "Pate-pate-pate-pate-pate". Saltou da cama e se arrastou até a
janela.
A casa lançava uma sombra sobre o quintal. Colin prestou atenção, mas não ouviu
nada. Olhou em volta... e não conseguiu conter o grito que brotou em sua garganta. A
sombra do telhado lançava uma linha reta sobre o pé do muro que corta va o quintal. E
acima dessa linha dava para ver a sombra de um par de chifres curvos, orgulhosos — a
galhada de um veado.
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Com o barulho do grito, a sombra se moveu e se perdeu. "Pate-pate-pate". E depois
que os passos morreram na distância, a noite ficou silenciosa.
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• 52 •
Os Cavaleiros de Donn
a manhã seguinte, Susan não parecia ter sido afetada por tudo o que lhe
acontecera. Estava com bom aspecto e se sentia bem. Mas Bess insistiu para que
ela ficasse na cama, e chamou o médico. Pareceu meio desapontada quando ele
disse que não havia nada errado com Susan.
Passaram-se alguns dias. As crianças passavam a maior parte do tempo discutindo
sobre o que cada uma tinha visto ou feito. Susan descobriu que estava esquecendo
rapidamente tudo o que lhe acontecera entre a queda na pedreira e o momento em que
engoliu a Mothan. Era como num sonho. Primeiro, mais nítido e mais real do que qualquer
outra coisa. Mas logo se perdia, com o fluxo mais tangível de impressões depois de acorda-
da. Tinha muito pouco a acrescentar ao breve relato que fizera poucos minutos após sua
volta.
Estava mais preocupada com as experiências de Colin com o Brollachan. E embora ele
só lhe tivesse dado um resumo do que acontecera, foi o suficiente para que ela perdesse o
sono por várias noites.
Colin quis ser mais detalhado quando tentou descrever o que tinha visto no céu
depois que puxou Susan da janela, mas percebeu que estava além de sua capacidade. O
quadro mais próximo que conseguia pintar era comparar as amazonas e seus cães a figuras
num mapa de constelações que vira numa velha enciclopédia , em casa, em que as estrelas
faziam parte de um desenho feito por um artista, para mostrar que a pipa de Orion na
verdade era três quartos de um gigante, e o W de Cassiopéia era uma mulher sentada
numa cadeira. Mas nada disso combinava com o que Susan lembrava. Para ela, Celemon
tinha sido uma pessoa normal, tão sólida em seu estado de existência quanto Colin era
agora. E não conseguia entender o resto.
E nenhum dos dois conseguia decifrar o que poderiam ser os passos que Colin ouvira.
E Gowther não ajudou nada, quando os dois lhe perguntaram se havia veados na Borda.
— Não, que eu saiba — disse ele. — No tempo de Lord Stanley, havia alguns em
Alderley Park, mas já se acabaram há muitos anos.
Mas o que deixou Susan mais fascinada foi a narrativa de como Colin tinha achado a
velha trilha reta, e toda a jornada do menino por ela até encontrar a Mothan. Assim, num
dia em que eles voltavam do Poço Sagrado já bem tarde e viram o monte do Farol bem
escuro acima deles, à luz das estrelas, ela simplesmente não conseguia passar por ali
indiferente.
N
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Os dois tinham ido a Fundindélfia, a pedido de Albanac, para descobrir o que
Atlendor conseguira fazer com o bracelete de Susan. Era uma resposta curta. Não tinha
feito nada. O poder não passava para ele. A visita acabou levando a uma discussão prolon-
gada, sobre se Susan devia ir para o norte com Atlendor, e todo o tempo a conversa girava,
indo dos elfos para o Brollachan, já que ambos eram as maiores preocupações de Albanac
no momento.
— É que eu não quero sair daqui — explicara ele — e deixar vocês para trás, com o
Brollachan solto por aí. Ele não tem aparecido, mas temos de encontrá -lo, porque não
temos a menor pista de onde ele pode estar escondido. E muito em breve os lios-alfar vão
partir, e eu tenho de ir com eles. É uma escolha que eu não gostaria de ter que fazer.
Tinha sido uma discussão cansativa, que não levou a conclusão alguma. Mas, agora, lá
estava o Farol.
— Vamos até lá — propôs Susan.
— Está bem — disse Colin. — Mas não tem muita coisa pra se ver.
— Eu sei. Mas de qualquer modo, gostaria de ver a lua nascer. Imagino que não tenha
muita chance de ver a trilha, mas eu quero estar lá, saber como foi que você se sentiu. Se é
que não parece bobagem...
— Espere aí... — disse Colin.— E Bess e Gowther? Já está tarde, e ainda falta uma meia
hora para a lua nascer.
— Eles sabem onde a gente está — disse Susan, por cima do ombro, enquanto se
adiantava. — E não acho que Gowther vá ligar. Vamos!
Colin seguiu Susan pela encosta nua do Farol, e lá em cima os dois se sentaram nos
blocos de pedra. Ele apontou para a linha da trilha, com a maior exatidão que conseguia
lembrar. Depois, era só uma questão de esperar a lua e, em pouco tempo, os dois estavam
entediados e com frio.
— Você não tem fósforos? — perguntou Susan.
— Acho que não.
— Procure.
Colin virou os bolsos pelo avesso e, no fundo de um deles, entre migalhas e restos de
papel de bombom, encontrou um fósforo, daqueles que não precisam de caixa para
acender.
— Será que é seguro acender uma fogueira aqui? — perguntou Colin.
— Deve ser. Não tem nenhuma árvore por perto. E com essa areia em volta, o fogo não
se espalha.
As crianças então juntaram uns gravetos e, entre as árvores ao pé da colina, acharam
um pinheiro seco, caído havia algum tempo, já sem folhas e liso.
— Não faça uma fogueira fechada demais — disse Susan —, senão demora muito a
acender.
Num instante, o fogo pegou, do fósforo ao graveto, do graveto ao galho, até que a
madeira ficou em brasa. As chamas subiam, altas, e em segundos a pilha toda estava acesa.
Colin e Susan jogaram na fogueira toda a madeira que tinham recolhido, mas quanto mais
jogavam, mais depressa tudo queimava.
— Chega! — disse Colin. — Se a gente não tomar cuidado, vai escapar ao controle.
Acho que essa madeira está com resina demais.
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Mas Susan estava empolgada com a fogueira. Correu de novo até o pinheiro caído e
começou a puxar um galho mais pesado.
— Vem cá, Colin, dê uma ajuda! Com esse galho, vai!
— Não! — a voz de Colin, de repente, estava tensa. — Não ponha mais lenha. Alguma
coisa está errada. Estou com frio.
— É só o vento — disse ela. — Vamos, depressa! Para não apagar!
Ela jogou todo o peso puxando o galho e levou um tombo quando ele se quebrou do
tronco. Depois, começou a puxar a lenha morro acima.
Colin correu até perto dela e agarrou-a pelo braço.
— Sue! Você não está percebendo? A fogueira não está esquentando nada!
— Quem é que agora está trazendo fogo ao monte, na véspera de Gomrath? —
perguntou uma voz fina e gélida, bem atrás deles.
Colin e Susan se viraram.
As chamas formavam uma cortina escarlate entre o morro e o céu, e dentro delas,
fazendo parte delas, havia três homens. No primeiro momento, duas formas altas e seus
rostos disformes dançavam e se misturavam com os galhos ardentes do pinheiro, mutáveis
como todas as figuras que a imaginação vê nas sombras de uma fogueira. Mas enquanto as
crianças olhavam, eles foram ficando mais sólidos, mais definidos, independentes das
chamas por entre as quais tinham surgido. E, de repente, eram reais. E terríveis.
Estavam inteiramente vestidos de vermelho. Vermelhas eram suas túnicas, vermelhas
suas capas. Vermelhos eram seus olhos, vermelhas as longas cabeleiras presas atrás em
anéis de ouro vermelho. Três escudos vermelhos às costas, três lanças vermelhas nas mãos.
Três cavalos vermelhos entre as pernas, todos com arreios vermelhos. Tudo
completamente vermelho, armas, roupas e pêlos, tanto nos homens como nos cavalos.
— Quem... quem são vocês? — murmurou Colin. — O que desejam?
O cavaleiro do meio ficou em pé na sela, e ergueu uma lança brilhante sobre a cabeça.
— Ei, meu filho, grandes notícias! Bem despertos estão os corcéis que cavalgamos, os
corcéis do antigo monte. Bem despertos estamos nós, os Cavaleiros de Donn, os Guardas
dos Deuses da Caçada Selvagem, conhecidos como os Einheriar do Herlathing. Ei, meu
filho!
E arremessou a lança bem alto no ar. Ela faiscou quatro vezes, e ele a apanhou de
volta e a brandiu à sua frente. Em seguida, os três cavaleiros se levantaram devagar,
saindo da fogueira, e as chamas se espalharam pelo chão, escorrendo como se fossem
mercúrio vermelho. E os três se recortavam, escuros, contra o clarão do alto da colina, mas
farrapos da barba da luz ainda brincavam nas pontas de suas lanças.
— Corra! — gritou Colin para Susan.
Mas antes que conseguissem alcançar as árvores, houve um tropel de cascos, um
barulho de capas esvoaçando, e Colin e Susan foram levantados do chão por braços com
tendões de aço, e jogados de través sobre pescoços de cavalos que se arre messaram pela
noite como se o fim do mundo estivesse em seus calcanhares.
• • •
Quando o bracelete de prata foi dado a Susan por Angharad Mão-de-Ouro, a menina
ficou sabendo que, mesmo que ela não soubesse qual era o segredo de seu poder, ele
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jamais lhe falharia numa hora de necessidade. Por isso, agora, quando pelo meio do som
do sangue que latejava em suas têmporas e da trovoada que os cascos de cavalo faziam
junto a seus ouvidos, ela de repente vislumbrou o brilho do metal à luz da lua nascente.
Susan começou a bater no cavalo e no cavaleiro com o braço que tinha o bracelete. Mas não
fez o menor efeito. O cavaleiro agarrou o pulso dela e olhou o bracelete com a maior
indiferença. Depois, levantou-a com uma das mãos e a fez montar ereta no cavalo, bem à
sua frente. Não receava que ela se perdesse, porque galopavam a tamanha velocidade que
Susan agarrava a crina do animal com as duas mãos, e nem podia pensar em fugir ou em
dar mais golpes.
Em direção ao sul, lá se foram eles, passando pelo bosque do Moinho de Vento e pelo
bosque de Bent, pela Casa Alta e por Jenkins Hey, quase sete quilômetros pela noite afora,
descendo pelos fundos da Borda. Depois chegaram a um terreno aberto, largo, que parecia
um parque, e na frente deles erguia-se um morro, e no alto havia um grupo fechado de
pinheiros.
Os cavaleiros puxaram as rédeas e os dois que carregavam Susan e Colin
emparelharam com o chefe. De repente, a noite estava inteiramente silenciosa. Fiapos de
neblina pairavam no ar, e o morro se erguia, escuro, por entre eles.
O que ia à frente avançou até o sopé do morro, ergueu a lança e a atirou entre as
árvores. Com a velocidade, ela pegou fogo, a partir das chamas que corriam ao longo das
bordas da lâmina. Resvalou no tronco do pinheiro mais próximo e arremeteu de volta, bem
rápida, para a mão vermelha que a enviara.
As chamas do dardo se apagaram. Mas agora as árvores estavam em brasa. O fogo
rugia e se erguia, como tinha feito no Farol, e mais uma vez não esquentava nada, nem
parecia consumir as árvores. A voz do cavaleiro era uma espada, cortando a cadência
profunda das chamas:
— Bem despertos estejam os filhos de Argatron! Bem despertos Ulmrig, Ulmor,
Ulmbeg! Cavalguem, Guardas dos Deuses da Caçada Selvagem, os Einheriar do
Herlathing!
Uma brisa agitou a neblina, formando faixas que dançavam. As chamas tremeram.
Parecia que havia um movimento dentro delas, e vozes:
— Cavalguemos! Cavalguemos! A galope! A galope! E do fogo saíram três homens.
Suas capas eram brancas, presas com fechos de ouro, e cada um tinha na mão um
chicote. Seus cabelos eram amarelos, encaracolados como a cabeça de um carneiro. E seus
cavalos eram alvos como a primeira neve do inverno na montanha negra quando sopra o
vento do norte.
Assim que apareceram, os cavaleiros vermelhos se viraram e continuaram a galopar
pela noite adentro. Colin, pendurado por cima do pescoço do último cavalo, conseguia ver
as capas brancas que os seguiam, em fila.
Foi uma cavalgada curta, poucas centenas de metros pelo parque e pelo bosque até
Fernhill, a Colina das Samambaias, que tinha três pinheiros eretos bem no topo. Mais uma
vez a lança voou, mais uma vez as árvores arderam, mais uma vez a voz cha mou:
— Bem desperto esteja o filho de Dunarth, o rei do norte, o rei do monte! Desperte
Fiorn em sua colina! Cavalguemos, Guardas dos Deuses da Caçada Selvagem, os Einheriar
do Herlathing!
— Cavalgo! Cavalgo! A galope! A galope!
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Uma figura solitária surgiu do meio das árvores. Seu rosto era severo, com a testa
franzida, a barba bem aparada, dividida em duas. A cabeleira era negra, tremenda,
majestosa. Usava uma túnica de pêlo áspero, sem capa nem manto. Trazia um escudo
redondo, com cinco círculos de ouro e rebites de bronze branco, pendurado no pescoço. Na
mão, carregava um mangual de ferro, com sete correntes, enroladas três vezes, com três
quinas, e cada uma tinha na ponta sete nós cheios de pregos pontudos. Seu cavalo era
negro, de crina dourada.
E saíram todos cavalgando, os cavaleiros vermelhos, os brancos, e o rei selvagem,
pela Floresta dos Monges, e daí a uns dois quilômetros chegaram à Corcova d o Soldado,
com seu anel de pinheiros, onde se diz que em certas noites de inverno há estranhas luzes
que se movem. Mas agora havia uma única luz, e era vermelha.
— Bem desperto esteja Fallowman, o filho de Melimbor! Bem desperto esteja Bagda, o
filho de Toll! Cavalguemos, os Guardas dos Deuses da Caçada Selvagem, os Einheriar do
Herlathing!
— Cavalguemos! Cavalguemos! A galope! A galope! Cabeças redondas, de cabelos
negros, esses tinham um comprimento só, na nuca e na testa. Seus olhos brilhavam na
escuridão. Usavam hábitos pretos, de capuzes compridos, e tra ziam espadas de ranhuras
largas, bem equilibradas para dar golpes. Os cavalos eram completamente negros, até as
línguas.
Por bosques, vales e riachos eles se foram, por campos, sebes e alamedas, por
Capesthorne e Whisterfield, por mais de uma légua, Windyharbour, Withington,
Welltrough, e lá estava o Morro Largo, o velho Tunsted, e seus pinheiros se acenderam ao
toque da lança.
— Bem despertos estejam os filhos de Ormar! Bem despertos Maedoc, Midhir,
Mathramil! Cavalguemos, os Guardas dos Deuses da Caçada Selvagem, os Einheriar do
Herlathing!
— Cavalguemos! Cavalguemos! A galope! A galope! Suas capas eram azuis, como o
céu lavado pela chuva, suas cabeleiras amarelas se espalhavam sobre seus ombros.
Azagaias de cinco pontas traziam nas mãos, e em cada um de seus escu dos tinham
cinqüenta nós de ouro queimado, e o relevo de pedras preciosas. Brilhavam na noite como
se fossem raios do sol.
Os cascos de seus cavalos eram de bronze polido e o pêlo deles parecia tecido de ouro.
Agora os Einheriar estavam completos. Tomaram a direção de Alderley e do morro do
Farol, e por muito tempo os rastros dos cavalos ficaram sobre o capim e as pedras,
tamanha a fúria com que cavalgaram. E o ar por onde passavam ficava brilhante, de tantas
faíscas.
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• 10 •
O Senhor do Herlathing
olin achou que fosse morrer. Ondas de arrepio percorriam-no, cortando
momentaneamente a dor que cantava em sua cabeça e o ferimento em que se trans -
formara todo o seu corpo. E não conseguia mais chorar, pois os nervos e músculos
pareciam estar tão abalados que ficavam além de toda e qualquer coordenação, e limitava -
se a engolir em silêncio, como um peixe.
Para Susan, essa jornada ao Farol foi menos dura, mas sua cabeça estava entorpecida
pela velocidade e pelo choque, até que o clarão da fogueira começou a aparecer por entre
as árvores.
Os cavaleiros se aproximaram do Farol sem diminuir a velocidade. Quando chegaram
lá, fizeram um círculo em volta do monte, e puxaram as rédeas dos cavalos, de maneira
abrupta. O chefe subiu lentamente até o topo do monte e entrou na fogueira. Esticou a
lança para baixo e tocou o chão com a ponta dela. E Susan realizou seu desejo. A velha
trilha reta escorreu da lança, como uma faixa de aço derretido escorre de uma fornalha.
Mas não era mais um caminho prateado de luar, como
Colin vira, e sim um rio caudaloso, de ondas de chamas rubras, precipitando -se pelo meio
do bosque até se perder de vista. O cavaleiro levantou os dois braços e jogou a cabeça para
trás:
"Desperte aquele que está na Colina da Madrugada!
Desperte para a chama do Goloring!
Do calor do sol, do frio da lua, Venha, Garanhir! Gorlassar!
Venha, Senhor do Herlathing!"
Silêncio. Ninguém se mexeu. Depois, ao longe, da distância, veio uma voz, clara,
como uma mistura de árvores e vento, rios e luz de estrelas. Cada vez mais perto, mais
perto, cantando, selvagem:
"E não sou eu aquele que chamam de Gorlassar?
Não sou eu um príncipe das trevas?
Garanhir, o tormento da batalha!"
"Onde estão meus Ceifadores, com seus cantos de guerra
C
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e o tremor dos massacres em lanças e dardos?
Onde o estrondo dos escudos no clamor das espadas,
a mordida das lanças azuladas na carne,
a sede das flechas da ira, que bebem fundo,
vorazes e rubras nas lutas mortais?"
E por entre as árvores, surgiu a figura de um homem. Vinha trotando em direção ao
Farol pela velha trilha reta, e a luz brincava nos músculos de seu corpo, em padrões
ondulados de vermelho e preto. Era imenso e poderoso, mas tinha a graça de um animal.
Era alto, quase dois metros e meio, e corria sem esforço. Sua cara era comprida e fina, de
nariz pontudo e narinas frementes. Sobrancelhas da noite, olhos escuros como rubis,
voltados para o alto. Os cabelos eram cachos vermelhos. Entre os cachos, crescia a galhada
de um veado. O cavaleiro respondeu:
"Velozes os cascos, livre o vento!
Despertos estamos todos diante das chamas do Goloring!
Do calor do sol, do frio da lua,
Viva Garanhir! Gorlassar!
O Senhor do Herlathing!"
Depois, recuou devagar e se afastou da fogueira. E quan do o recém-chegado veio até o
círculo e subiu, marchando, até o alto do monte, todos os cavalos se ajoelharam e os
cavaleiros ergueram os braços em silêncio.
Susan olhou para ele e não teve medo. Sua razão não podia aceitá -lo, mas algo
profundo, bem dentro dela, o aceitava. Entendia o que fizera com que os cavalos se
ajoelhassem. Estava diante do coração de todas as coisas selvagens. Diante do trovão, do
raio, da tempestade. Do ritmo lento das marés e das estações, do nascimento e da morte,
da necessidade de matar e da necessidade de construir. Os olhos dele estavam sobre ela, e
ela não tinha medo.
Ele ficou de pé no meio das chamas frias, sozinho e imóvel, e elas o contornavam e
tomavam sua forma, de tal maneira que ele era desenhado em sangue, e línguas escarlates
jorravam para cima, das pontas de seus chifres. Era como se atraísse para si a luz da
fogueira. Esta se encolhia e as chamas afundavam como se estivessem sendo puxadas para
dentro da carne dele. E crescia, não em tamanho, mas em poder, até que finalmente a única
luz ficou sendo a da lua, e ele estava em pé diante dela, negro.
Então, falou:
— Faz muito tempo desde a última vez que uma fogueira se acendeu no Goloring para
celebrar. Que homens se lembraram da véspera de Gomrath?
Os dois cavaleiros que levavam as crianças se adiantaram.
Colin sentiu que uns olhos profundos o varriam, e, sem fôlego, teve uma sensação de
euforia que levou embora qualquer dor de seu corpo.
— É bom acordar assim, com a lua na colina.
Havia em sua voz alguma coisa próxima ao riso, e ele se inclinou para endireitar Colin
em cima do pescoço do cavalo. Depois, virou-se para Susan, e ia dizer alguma coisa,
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quando o cavaleiro ergueu o braço da menina e mostrou a Marca de Fohla, alva, no braço
dela. Brilhava mais do que reflexos de prata, e os caracteres pretos gravados nela tremiam
como se tivessem vida.
Leve, ligeira e sem dizer uma palavra, a majestade escura se ajoelhou e a mão de
Susan foi tomada e posta em uma testa fria. Depois, ele se ergueu e levantou Colin e Susan
dos cavalos, depositando-os no topo do monte. Em seguida, virou-se.
— Cavalguem, Einheriar do Herlathing! A galope!
— Cavalguemos! Cavalguemos! A galope!
Tufos de capim, levantados pelos cascos, respingaram nas crianças. Por um instante, a
noite foi um tumulto de escuridão correndo, e em seguida os meninos ficaram sozinhos.
Sentaram-se nas pedras e se olharam.
— Isso... isso foi o que eu vi no quintal — disse Colin. — Foi o que me seguiu.
— Eles nem ligaram para o que nos acontecia — disse Susan, espantada. — Não
estavam a mínima interessados na gente.
— Ele me seguiu até a fazenda.
— Mas talvez tenha sido melhor assim — disse Susan. — Acho que não teríamos
muitas esperanças se achassem que a gente estava no caminho deles.
— Não foi muito bem-feito tudo isso?
Colin e Susan deram um pulo quando ouviram uma voz dizendo isso. Olharam na
direção de onde o som viera e viram um anão parado no meio das árvores.
— Uthecar! — gritou Colin, enquanto os dois corriam morro abaixo para encontrá-lo.
— Uthecar?
— Quem é você? — perguntou Susan. O anão olhou para eles.
— E agora? Como é que desmanchamos isso? — perguntou ele.
Estava vestido de negro, com uma espada na cintura, com punho dourado. Tinha
cabelos e barbas bem cortados, uma postura orgulhosa e voz firme, numa atitude que
exalava tanta autoridade que nem se podia imaginar que suas palavras fossem alguma
repreensão zangada.
— Desculpe... — disse Colin. — Mas o que fizemos de errado? Tudo isso foi culpa
nossa?
— Como não foi? Só mesmo uns tolos acenderiam uma fogueira no monte a qualquer
hora. Mas fazer isso justamente nesta noite, entre todas as noites do ano... E queimar lenha
de pinheiros... Onde é que Cadellin está com a cabeça para deixar vocês longe das vistas
dele? Mas venham, temos de ver o que esses seus amigos vão fazer. Pode ser que não seja
tarde demais para levá-los de volta aos montes.
— Nunca vamos conseguir alcançá-los! — exclamou Susan. — Saíram galopando como
o vento.
— Acho que não foram muito longe — disse o anão. — Vamos ver.
Saiu correndo e os meninos correram para acompanhá-lo.
— Mas afinal, o que é isso? — perguntou Colin. — Quem são eles? E quem é... ele?
— A Caçada Selvagem. O Herlathing. Foi isso que vocês soltaram em cima da gente.
Já não chegava ter despertado o Caçador... Só ele já daria um trabalhão. Mas agora que os
Einheriar cavalgam com ele, vamos ter de agir rapidamente, ou muitos serão aqueles que
vão dormir com luz nos olhos — e só os corvos saem ganhando com isso. Mas agora,
silêncio. Acho que estamos chegando perto deles.
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Tinham chegado ao alto de um penhasco sobre um vale. O anão rastejou até a borda e
olhou para baixo. Colin e Susan juntaram-se a ele, mas embora pudessem ouvir
movimento no sopé do penhasco, não conseguiam ver nada, pois a rocha era salien te em
relação ao chão lá embaixo. Foram rastejando até um ponto em que o penhasco dava lugar
a uma encosta mais suave, e dessa encosta puderam ver com clareza.
Estavam no Poço Sagrado, o segundo portão da Fundindélfia. Ao longo do caminho
que passava pelo poço, os Einheriar estavam enfileirados. E no poço, com o alto dos chi -
fres quase no mesmo nível que o rosto das crianças, estava Garanhir, o Caçador. Segurava
uma taça de algum metal branco e os cavaleiros a tomavam, um depois do outro, bebendo
concentrados. Depois, a levantavam e derramavam as últimas gotas sobre a cabeça, e
seguiam adiante.
Para cada cavaleiro, o Garanhir se adiantava e tornava a encher a taça c om a água do
poço. E a água brilhava, do mesmo leito que a velha trilha reta tinha brilhado com a lança,
e todo o pântano abaixo brilhava, vermelho.
O anão recuou da borda e fez um sinal para que as crianças o seguissem. Fez a volta
com eles pela cabeceira do vale e os levou até o lado oposto, onde podiam ver as silhuetas
dos Einheriar recortadas contra a penumbra.
— Chegamos tarde demais — disse o anão. — Agora que já beberam água do poço,
isso é tarefa para um mago. Pelas barbas do Dagda! Será que vamos ter de ficar
conversando até que tudo o que já dormiu desperte de novo? E bem que isso pode
acontecer, porque quando a Antiga Magia começa a se mexer, vai fundo — mesmo se não
tiver uma fogueira de pinheiros para ajudar!
Virou-se para Susan e perguntou:
— Escute: está vendo onde é que estamos? Os portões de ferro estão bem em cima
daquela fenda atrás de nós... Você tem como abri -los?
— Eu... acho que sim... — disse ela.
— Então vá avisar Cadellin. Diga a ele que os Einheriar estão cavalgando. Nós
ficamos de vigília.
— Está certo.
Susan desapareceu e poucos minutos depois a terra estremeceu debaixo deles,
enquanto o céu sobre a fenda se tingia de azul. Colin virou-se para olhar o Poço Sagrado.
Embora não houvesse muita luz, dava para ver que os cavaleiros estavam s e reunindo, e
dava para ouvir o som de cascos inquietos.
— Acho que eles já vão... — disse o menino. — O que fazemos agora?
Um barulho seco, de metal, foi a resposta. Ele olhou por cima do ombro e viu a lua
pálida se refletindo na espada de punho dourado, e também nos olhos atrás da espada.
— Vamos andando — disse o anão.
• • •
Quando entrou no túnel, Susan achou que tinha ouvido Colin gritar, mas o barulho da
rocha e dos portões abafou sua voz, se é que era mesmo a voz dele. Quando o eco
desapareceu, só havia o silêncio pulsando nos ouvidos dela. Susan hesitou. Esticou o braço
para tocar nos portões novamente. Mas disse a si mesma que, se alguma coisa tivesse
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começado a acontecer, havia ainda mais necessidade de que encontrasse Cadellin o quanto
antes. Então virou-se e saiu correndo pelo túnel.
Era o caminho mais comprido para a caverna do mago. Para chegar lá, tinha de passar
por todo o labirinto de Fundindélfia, e ela logo percebeu que não sabia o caminho. Nos
túneis, seus passos e sua respiração a envolviam, em ondas, mas por mais irritante que
isso fosse, não era nada perto da infinidade de cavernas numa névoa azul.
Finalmente, ela teve de parar para descansar. E enquanto se recostou, tremendo, numa
parede de caverna, sua razão foi maior que a urgência, e a partir de então começou a usar
os olhos. Mesmo assim, já tinha passado cerca de uma hora desde que deixara Colin ,
quando finalmente Susan encontrou um túnel que conhecia, e ainda levou uns dez minutos
para chegar até a caverna.
Uthecar e Albanac estavam com o mago.
— O que houve, Susan? — perguntou Albanac, levantando-se de um salto.
— Einheriar! Einheriar! O Caçador!
— Os Einheriar? — exclamou Cadellin. — Como é que você sabe?
Levantou-se e saiu correndo, subindo pelo túnel que levava ao Poço Sagrado.
— Espere! — gritou Susan. — Eles estão lá fora!
O mago nem lhe deu atenção, e logo depois dele corria Albanac, pouco adiante de
Uthecar. Quando Susan chegou ao poço, estavam todos parados no caminho, o anão
examinando o chão, e Cadellin vasculhando a planície com os olhos. A luz já sumira da
água e os bosques estavam silenciosos.
Mas então Uthecar disse:
— Eles estiveram aqui.
— E beberam água do poço — disse Albanac.
— Temos de encontrá-los — disse Cadellin. — Mas não sei se irão para os montes. A
coisa está feia.
— Pior do que isso — disse Uthecar. — Estou me lembrando de que hoje é a véspera
de Gomrath, e sinto cheiro de uma fogueira de pinheiros.
— Não é possível! — exclamou o mago.
— É... acho que a culpa foi nossa... — disse Susan. — Acendemos uma fogueira no alto
do Farol. Foi como tudo começou. Eles saíram do fogo.
— E por que cargas dágua vocês foram se meter a acender uma fogueira lá? —
perguntou Cadellin numa voz que deixou Susan com vontade de sair correndo.
—Estávamos esperando a lua nascer... e... estávamos com frio.
O mago sacudiu a cabeça.
— A culpa é minha — disse para Albanac. — Eu devia ter sido mais firme. Vamos,
estamos perdendo tempo. Temos de encontrar o rastro deles.
— Colin deve saber para onde foram — disse Susan. — Eles ficaram vigiando o que
acontecia aqui, estavam do outro lado do vale.
— Eles? — repetiu o mago.
— É... Ele e o anão. Estão junto aos portões de ferro.
— Que anão? — perguntou Uthecar. — Não há nenhum outro anão por aqui.
— Há, sim... — disse Susan. — Está vestido de preto e...
— Depressa! — interrompeu Uthecar. — Leve-nos até lá e não perca tempo falando.
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Susan sentiu um frio no coração. Partiu pelo caminho, e não disse uma palavra até
chegar ao lugar onde deixara Colin.
— Cadê eles? — perguntou, mesmo sabendo que não adiantava. — O que aconteceu?
— Vestido de preto, hein? — disse Uthecar. — E com uma espada de punho dourado?
— Isso mesmo. E o cinto e as tiras debaixo do joelho também eram de ouro.
— Você o conhece? — perguntou Cadellin.
— Se conheço? Se conheço aquela víbora? Conheço, e muito! Só não consigo é
imaginar o que o terá trazido de Bannawg, mas garanto que boa coisa não é. Porque uma
coisa eu lhe digo: pode procurar em todas as terras banhadas pelos sete mares, e nunca vai
encontrar um anão pior do que Pelis, o Falso.
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• 11 •
O Morrote de Goyt
á uma mente maligna agindo contra estas crianças — disse Cadellin. —
Podem ter certeza. Tinham voltado à caverna do mago e estavam
sentados em volta da longa mesa. Atlendor se juntara a eles.
— Mas o que podemos fazer? — perguntou Susan.
— Pensar e ter esperanças — disse Cadellin.
— Eu preferiria procurar e encontrar — disse Uthecar. — Invoque sua mágica,
Cadellin Argentesta, mas pode ser que agora haja mais necessidade de olhos e lâminas.
Pelis não está aqui. E onde ele estiver, é onde devo estar. Porque estou achan do que a
morte dele está guardada aqui na minha espada.
— Então vá — disse Cadellin. — Mas cuidado com a noite.
O anão se levantou e já ia entrar no túnel quando Atlendor falou:
— Uthecar Hornskin, seu Pele-de-Chifre, você não vai sozinho. Eu o acompanho.
— Como queira — disse Uthecar, e o anão e o elfo saíram juntos.
— A espada de um vai acabar entre as orelhas do outro, se o perigo não fizer que se
unam — disse Cadellin. — E você, Susan, fique aqui um pouco. Vou ter de sair. Mas
Albanac fica.
— Mas não posso! — disse Susan. — Tenho de fazer alguma coisa para encontrar
Colin.
— Se Atlendor e Uthecar não conseguirem encontrá-lo — disse o mago —, então você
também não conseguirá. Nesse caso, só nos resta recorrer à magia.
— Não posso ficar aqui parada, sem fazer nada!
— Susan! Parece que você não está entendendo! Lá fora está muito perigoso. Você tem
de ficar em Fundindélfia.
— Mas Bess vai enlouquecer.
— Que bom que você se lembrou dela — disse Cadellin.
— Viu só o sofrimento que vocês causam quando se misturam com o nosso mundo?
Vou falar com o fazendeiro Mossock agora, e digo a ele que você não volta para casa
enquanto este assunto não estiver completamente encerrado. Não posso garan tir que vai
ser fácil convencê-lo, mas você não me deixa outra escolha.
E apesar de todos os argumentos de Susan, Cadellin ficou firme. Quando, afinal, saiu
da caverna, os dois estavam zangados.
— Não posso ficar presa aqui dentro! — exclamou Susan.
— Tenho de sair e encontrar Colin!
—H
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Albanac enxugou o rosto com a mão. Parecia exausto.
— Não podemos fazer nada, Susan. Pode ser que a gente venha a precisar de todas as
nossas forças mais tarde, então é melhor dormir agora. Eu, por mim, sei que estou moído.
— Mas tenho de sair!
— E quanto tempo faz que está se roendo toda, louca para entrar? — disse Albanac. —
Vamos, tente dormir. Se não conseguir, sente-se e converse um pouco.
Susan se jogou sobre a cama de peles, e durante alguns minutos estava tão furiosa e
frustrada que nem conseguia conversar. Mas tinha muitas perguntas na cabeça, e daí a
pouco começou a falar.
— Albanac, quem é o Caçador? E o que foi que fizemos?
— Ele faz parte da Antiga Magia. E mesmo que Cadellin não concorde, acho que o que
vocês fizeram não foi por acaso. A Antiga Magia foi despertada, e se moveu para dentro
de vocês, e acho que foi ela que os levou até o Farol. Há muito, muito tempo, antes que ela
caísse no sono, esta era a noite em que ficava mais forte, a véspera de Gomrath, uma das
quatro noites do ano em que se fundem o Tempo e a Eternidade. E nesse tempo se acendia
uma fogueira de pinheiros no Goloring — onde hoje é o Farol — para trazer os Einheriar
dos montes e o Caçador do Tor Brilhante. Porque a Antiga Magia é magia da lua e do sol, e
é também magia do sangue, e é aí que reside o poder (e também a necessidade) do
Caçador. Ele vem de um tempo muito cruel no mundo. Os homens mudaram muito desde
a época em que o cobriam de honras.
— Você diz a toda hora que a Antiga Magia foi despertada — disse Susan—, mas se
ela é assim tão forte, como é que morreu?
— Por obra de Cadellin — disse Albanac. — Para os magos, e sua Alta Magia, de
pensamentos e encantamentos, a Antiga Magia era um obstáculo, um poder sem forma
nem ordem. Então, tentaram destruí-la. Mas não podia ser destruída — no máximo, foi
dormir. E nesta temporada chamada de Gomrath, que dura sete noites, o sono dela é muito
leve.
— Então não tem nada de mau com ela — disse Susan. — Só está atrapalhando.
— Tem razão. Pode-se até dizer que os magos não tinham o direito de fazer o que
fizeram. Mas à medida que o tempo passa, o mundo muda. E acontece que, realmente, a
Antiga Magia ficou errada para estes tempos. Não se encaixa com os padrões atuais de
bem e mal.
— Mas é mais natural que todos esses encantamentos — disse Susan. — Acho que a
entendo melhor do que essas coisas todas aqui.
Albanac olhou para ela.
— Pode ser. Porque também tem outra coisa: é uma magia de mulher. E quanto mais
vejo, mais percebo que a Marca de Fohla faz parte dela.
— O que é que o Caçador faz? Para que serve?
— Faz? Susan, ele não faz, ele é. Basta isso. Essa é a diferença entre as duas magias. A
Alta Magia baseia-se na razão. A Antiga Magia faz parte das coisas. Não serve a nenhum
propósito.
Susan podia sentir que o que Albanac dizia era verdade, embora não pudesse
entender exatamente. Pensou de novo em Colin. Ela devia ter parado quando ouviu o grito
dele. Pelis, o Falso.
— Albanac?
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— Hummm?
Ela se virou para olhar. Albanac estava sentado, com a cabeça descansando sobre os
braços.
— Nada...
A menina ficou ouvindo a respiração de Albanac, cada vez mais regular e mais
profunda. Ele estava dormindo.
E não há mais ninguém aqui, pensou. O túnel vai direto ao Poço Sagrado. Como era
mesmo? Emalagra?
Rodeou a mesa em silêncio, prestando atenção em cada passo, até que chegou à
parede atrás do poço. Pôs a mão na fenda comprida, sobre a pedra, e disse a palavra que
tinha o poder.
O ranger da pedra ecoou pelo túnel e Susan forçou a passagem pela abertura assim
que houve espaço para seu ombro. Depois, saiu correndo.
• • •
Uthecar e Atlendor estavam sentados ao luar, no banco de madeira da Pedra do
Castelo, uma elevação que se destacava das árvores, acima da planície.
— Ele não está no bosque — disse Uthecar. — E fora daqui, é o vasto mundo.
— Se não está no bosque — disse Atlendor —, será que pode estar embaixo dele?
— Não é que o lios-alfar é esperto? — disse Uthecar. — Pois é exatamente isso que
Pelis, o Falso, é capaz de fazer... Ele sabe que vamos procurar, e podemos ir longe atrás
dele. Que lugar melhor para se esconder do que onde foi visto pela últi ma vez? Há alguns
lugares perto de Saddlebole, bem perto dos portões de ferro... Vamos, depressa!
Saíram correndo pelos bosques, passaram o Poço Sagrado, passaram o lugar onde
Colin e o anão tinham desaparecido, passaram os portões de ferro e chegaram a um oco,
bem por cima de uma encosta escura, coberta de faias. Lá havia muitos recessos, cavernas
e túneis espremidos por entre as pedras. Atlendor sacou a espada e se aproximou de um
dos túneis. Estava tão bloqueado na entrada que até ele tinha de rastejar para entrar.
— Deixe disso! — falou Uthecar. — Seus olhos não servem para isso. Se ele estiver aí
dentro, o seu destino é a morte gelada.
— Mas tenho nariz para isso! — disse Atlendor. — A caverna onde se esconde um
anão é inconfundível.
— Então, vamos a ela!
Uthecar deu um passo atrás, com os olhos brilhando ferozes, e ficou vendo os quadris
do elfo deslizarem para dentro da abertura.
— Ela afunda um bocado para dentro do morro — disse Atlendor —, e não há espaço
para desembainhar uma espada. Sem dúvida, o ar é muito fedorento, mas duvido que ele
esteja aqui.
Uthecar xingou e se virou, com raiva. E quando fez isso, vislumbrou uma boca cheia
de presas, rosnando, e olhos de fogo verde montados numa cabeça larga, com orelhas
curtas saindo do alto achatado de um crânio, para os lados, e umas garras bran cas
apontadas para ele, e tudo isso vindo a toda velocidade pelo ar. Sem nem pensar, seus
braços protegeram o rosto, e ele caiu no chão, derrubado por um golpe violento. Quando
tentava se equilibrar, Uthecar viu que não era o objetivo imediato do ataque, pois o vulto
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peludo já estava metido até a metade na abertura pela qual Atlendor tinha passado. Nem
havia tempo de puxar a espada. Uthecar saltou para adiante, e assim conseguiu agarrar
com ambas as mãos a cauda curta e felpuda, enquanto os flancos desapareciam lá dentr o.
Era como se estivesse segurando uma mola meio solta, com uma força irresistível.
Uthecar plantou uma perna de cada lado do buraco e se jogou para trás. As patas de trás o
escoiceavam, mas ele conseguiu evitá-las. Pulando de um lado para outro, conseguiu
evitar que elas ganhassem terreno. Isso era o suficiente para empatar um pouco a luta, mas
ele sabia que não conseguiria agüentar por muito tempo. E a voz abafada de Atlendor,
reclamando lá de dentro, não ajudava muito. Evidentemente, ele não fazia idéia do que
estava acontecendo.
— Seu pêlo de chifre de um olho só! O que é que está bloqueando o buraco?
— Se esta porcaria de rabo se partir — gritou Uthecar... — a sua... garganta... fica
sabendo... num instantinho!
Parecia que os ombros de Uthecar iam se soltar das costas dele, e sentia que os pulsos
estavam perdendo a capacidade de agarrar. Não veio nenhuma resposta de Atlendor.
De repente, o corpo à sua frente esperneou, e ficou mole. E antes que ele pudesse se
preparar, toda a resistência desapareceu e caiu para trás, puxando um peso morto, que
veio por cima dele.
Uthecar se levantou e olhou o corpo a seus pés. Era um gato selvagem, imenso, de
mais de um metro, que tinha sido esfaqueado na garganta. Junto à saída do túnel,
Atlendor estava de pé, limpando o sangue da espada num tufo de capim.
— Um palugue... — disse Uthecar. — Então era isso. Estou achando que nestes bosques
há coisa demais que veio de muito além de Bannawg.
• • •
Toda vez que Colin tropeçava, a espada cutucava suas cos telas. Não era fácil manter a
velocidade que o anão exigia, num terreno daqueles, e de noite.
Nem o anão deixava que ele falasse. Um empurrão extra era a resposta cada vez que
Colin abria a boca.
Quando chegaram à Ponta das Tormentas, o anão parou e assobiou baixinho. Uma voz
respondeu do outro lado das pedras. O som dela deixou a pele de Colin arrepiada. Era
fria, aguda, e difícil de identificar, não dava nem para saber se era animal ou não. Depois,
na beirada das árvores, alguma coisa se mexeu e começou a vir em direção a Co lin e o
anão. Era um gato selvagem. Atrás dele vinham muitos outros. Cada vez mais, vinham
saindo das árvores, e daí a pouco o chão estava inteiramente tomado por eles, até parecia
que estava coberto por um casaco de pêlos arrepiados.
Os gatos ficaram girando em torno de Colin e começaram a encará-lo. O menino
estava cercado por pedras de luz verde, brilhando. O anão embainhou a espada. Uma
parte dos gatos se agrupou do lado de Colin, como se fosse uma escolta. Aperta vam-se e
estavam bem próximos, mas não o tocaram. Os outros se dispersaram e desapareceram por
entre as árvores, separando-se para ir à caça.
A partir da Ponta das Tormentas, Colin correu até que saí ram do bosque. Não tinha
escolha. Ou melhor, tinha, mas cada vez que diminuía o passo, os sil vos atrás dele e os
olhos que o encaravam faziam com que rapidamente escolhesse correr. Mas depois que
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chegaram aos campos, o anão relaxou um pouco, e passou a caminhar. O andar deslizante
dos gatos selvagens tornou-se então um tapete macio em movimento.
Viajaram para o leste a noite toda, sob a lua minguante. Passaram por Adder's Moss,
por Withenlee e pela Colina das Lebres, por Tytheringston e depois pelos morros que
ficam acima de Swanscoe, subindo e descendo sulcos que pareciam ondas — Kerridge e
Lamaload, Nab End e Oldgate Nick, desceram o brejo do Hoo e subiram o Morrote de
Goyt, quilômetros e quilômetros de terra sem árvore nenhuma, quebrada apenas por
paredões de arenito. E finalmente, bem no fundo do pântano, chegaram a uma colina
pequena e arredondada, coberta de moitas de rododendro, bem fechadas. E em volta dessa
colina, subia uma trilha curva.
Seguiram a trilha pelo rododendro azaléias adentro. Distante, lá embaixo à direita,
ouvia-se um riacho cantar. No alto da trilha havia algo que parecia umas ruínas, de uns
terraços ajardinados, mas com muito mato, abandonado. Colin, cujo medo zangado já
tinha sido, há muito tempo, substituído pela exaustão, foi ficando cada vez mais
preocupado. Havia algo nesse lugar, nesse jardim todo planejado no meio das montanhas,
que decididamente não era nada bom.
A trilha se dividiu e os gatos fizeram Colin ir pelo lado da esquerda. Durante alguns
metros, andaram no plano, e depois havia uma curva fechada. Ao fazer a curva, Colin
parou, apesar dos gatos.
Bem à sua frente, no meio de um platô gramado, estava uma casa — grande, feia,
pesada, feita de pedra. A lua brilhava, pálida, sobre ela. Mas a luz que saía das janelas em
arco e da porta aberta também parecia ser luar.
— Chegamos — disse o anão.
Foi a primeira coisa que ele falou em horas. Os gatos se adiantaram e nesse instante uma
nuvem deslizou sobre a lua.
— Fiquem! — gritou o anão.
Mas Colin já tinha parado por conta própria. Porque quando a lua desapareceu, a luz
de dentro da casa se apagou. Mal dava para ver a casa contra a colina atrás dela. Mas o
que dava para ver fez Colin ficar olhando, espantado. Podia ser um truque da escuridão,
mas de alguma forma a construção perdera sua forma, se dissolvera. Claro, dava para ter
certeza de que era o céu o que via por uma das janelas, dava para distinguir uma estrela. E
então a nuvem passou, a lua brilhou sobre a casa, e as janelas voltaram a lançar luz sobre o
gramado. O anão puxou a espada.
— Agora corra — disse, empurrando Colin para a casa. Os gatos se lançaram para a
frente, levando-o com eles pela porta.
Colin se achou numa saleta de entrada, fria, naquela luz sem sombras. Em frente dele,
havia uma escadaria de pedra, larga. E do alto da escada, falou uma voz rouca.
— Seja muito bem-vindo. Nossos dentes já estavam enferrujando de tanto ansiar por
sua carne.
Colin reconheceu a voz. Não precisava nem olhar para a mulher que estava descendo
a escada, para reconhecer que era a Morrigana.
Era robusta e atarracada, de cabeça larga enfiada nos ombros, e sua boca larga era tão
cruel quanto os olhos. Vestia uma túnica azul tão escura que parecia preta, amarrada com
um cordão escarlate. Os gatos abriam-lhe caminho, e se esfregavam nela, enquanto a
mulher caminhava em direção a Colin.
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— Fique tranqüilo. Fica por nossa conta garantir que nem um pedacinho de você vai
escapar do lugar para o qual você veio — a não ser o que os pássaros carregarem em suas
garras.
Dizendo isso, esticou o braço para passar a mão num dos gatos. E Colin viu que ela
usava um bracelete. Era igualzinho ao de Susan, mas as cores eram ao contrário: as letras
eram pálidas, de prata, e o bracelete era negro.
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• 12 •
O lago
thecar e Atlendor estavam sentados na caverna do mago, limpando os ferimentos.
— Eu é que vou lá fora esta noite — disse o anão. — Se Susan tiver passado por
esses portões, então não há nenhum pedacinho dela para a gente achar. Ou se há,
nem vale a pena achar. Tem um palugue em cada árvore! Tivemos de matar uns vinte para
conseguir chegar de Saddlebole até o portão.
— Tanto ele como o elfo estavam cobertos de arranhões profundos, e com as roupas
em farrapos.
— Ela tem a Marca, pode ser que isso a proteja — disse Albanac. — Mas tenho que ir
atrás dela.
— Mas você não tem a Marca — disse Uthecar. — Se Susan ainda estiver viva,
mostrou que não precisa da gente. Se você quiser mesmo ir atrás dela, é melhor esperar
que amanheça. Se sair agora, os dentes de um palugue vão se regalar no seu pescoço.
• • •
O barulho da rocha se abrindo fizera Susan perder o controle, de tão nervosa. Achou
que Albanac vinha logo atrás dela, e saiu correndo, às cegas, mesmo sem ter a menor idéia
de onde deveria procurar Colin. Não reparou no caminho nem na dis tância. Em algum
ponto, no meio do bosque, parou para recuperar o fôlego. O tempo todo a urgência a
empurrava, como se cada passo estivesse apenas a uma fração de segundo ou a um
centímetro adiante de uma mão que fosse apanhá-la. Quando parou, sentiu que o ar
sossegou em sua volta, como se tivesse perdido a corrida. Quase dava para ouvir o som
dele parando de repente. Mas não era imaginação: houvera mesmo um movimento que
cessara de repente e virara silêncio. Susan agora tinha a impressão de que tudo na noite
convergia para um único ponto. E o ponto era ela.
Tentava raciocinar, mas era inútil, porque sua razão lhe dizia que não tinha a menor
possibilidade de encontrar Colin. A concentração no ar vibrava, como cordas de um
instrumento que alguém tivesse tangido. Susan olhava em volta, procurando, com tanta
força, que parecia que aquele negrume estava com manchinhas de luz, floquinhos verdes.
E depois notou que, em vez de irem mudando para uns padrões de arco -íris, como essas
luzes sempre fazem quando a gente força os olhos no escuro, desta vez elas não mudava m
de cor — e ainda se agrupavam, aos pares, bem junto ao chão. Eram olhos! Estava cercada
por um campo de olhos verdes, duros, que não piscavam. E todos esta vam fixos nela.
U
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Os gatos se aproximaram. Agora Susan podia distingui-los individualmente. Havia
duas ou três dúzias de gatos, que andavam de pernas duras e com os pêlos eriçados. Susan
estava assustada demais para se mexer, mesmo vendo que eles se aproxi mavam, até que
um deles assobiou e a atacou com suas garras.
Antes que tivesse tempo de perceber que o golpe não iria atingi-la, Susan já tinha
pulado na direção oposta. E então os gatos recuaram e abriram-lhe uma passagem verde. A
intenção deles ficou evidente. Podia se mover com toda liberdade, desde que fosse para
onde eles queriam que fosse. Mas se ela se desviasse dessa linha, ou tentasse parar, logo
mostravam suas garras.
Ela sabia que esses gatos faziam parte do tal perigo que Cadellin tanto temia, fosse ele
qual fosse. Havia inteligência demais em seus movimentos, para que fossem animais
comuns — e esse era apenas seu aspecto menos estranho.
E assim, durante algum tempo, exatamente como acontecera anteriormente com Colin,
Susan foi tocada pela floresta, como se fosse um rebanho e o pastor a levasse. Os gatos não
encostavam nela, mas andavam muito perto e a faziam correr. E foi justamente essa pressa
que acabou revelando a Susan a arma que tinha contra eles.
Estava tropeçando quase a cada passo que dava ao luar, mas de repente torceu o
tornozelo de mau jeito e perdeu o equilíbrio. Esticou o braço para se proteger com a mão
na queda — e os gatos pularam para trás, evitando aquela mão como se fosse car vão em
brasa. Susan ficou encolhida, de joelhos, olhando o círculo de gatos. Levou algum tempo
para se dar conta, conscientemente, daquele fato novo. Estendeu o pulso para a frente, e
eles se jogaram para trás, cuspindo. Tinham medo da Marca! Então ela se levantou, tirou o
bracelete do pulso e o agarrou de jeito que formasse uma faixa em torno dos nós dos
dedos. Depois deu um passo à frente, balançando a mão diante de si, num arco lento. Os
gatos cederam, apesar de rosnarem, sacudirem a cabeça de um lado para o outro e a
fuzilarem com os olhos, de puro ódio.
Susan não tinha a menor idéia de onde estava. Mas a melhor direção a seguir devia ser a
que a fizesse voltar por onde viera. Devagar, virou-se e começou a andar. Os gatos a deixa-
ram passar, embora continuassem tão grudados nela como antes. A diferença era que
agora a escolha era dela.
Passou a ser uma questão de lutar passo a passo, porque os gatos não cediam um
milímetro por conta própria. Se Susan tivesse conseguido manter as forças e enfrentar
mentalmente tudo o que se concentrava contra ela, sem dúvida teria chega do a
Fundindélfia sã e salva. Mas, embora a compulsão física que a pressionava tivesse
diminuído, a maldade continuava a mesma e corroía sua vontade. E ela estava muito
assustada e sozinha. A exaltação do primeiro momento de triunfo logo baixou. Entendia
agora que Cadellin tinha muito mais razão do que ela pensava.
A menina conseguiu agüentar talvez por uma meia hora — e nesse tempo só avançou
cerca de um quilômetro e meio. Não era muito, nem chegara muito longe. Era pressão
demais. Exibindo a Marca à sua frente, seguia adiante, sem nenhum ou tro objetivo além de
escapar imediatamente daqueles olhos que a perseguiam. E, é evidente, não conseguiu. Os
gatos continuavam em volta dela, não mais girando em círculos, mas cada vez mais perto,
quase a guiando, para qualquer lugar, não importava onde, desde que foss e cada vez mais
depressa, mais depressa, às cegas, por entre o bosque, até que chegasse sua hora. E ela
chegou.
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Susan estava correndo tão atarantada que só por sorte não tinha caído. Mas de repente
chegou ao alto de um barranco e o chão faltou debaixo de seus pés. Caiu de pouco mais do
que sua própria altura, e num caminho largo. Mas caiu de mau jeito. E com a força da
corrida, caiu de cabeça. A Marca escapou de sua mão e rolou pela areia até a beirada mais
distante do caminho.
Susan pulou para agarrá-la, mas já era tarde demais. Na beirada do caminho, a
encosta descia íngreme até a planície, numa mistura de areia, cascalho e pedras, e o
bracelete já ganhava velocidade e rolava cada vez mais rápido ladeira abaixo. Susan olhou
por cima dos ombros e não parou. Os gatos estavam a uns dez metros dela, e algo neles lhe
dizia que até já tinham esquecido seu objetivo original e só queriam se vingar. Ela pulou
pela encosta, atrás do bracelete, e foi descendo a toda velocidade, sem nem pensar no
quanto era íngreme. Depois de alguns passos, seu próprio peso a empurrava. Suas pernas
davam saltos, cada um maior que o outro, os pés pesando como pêndulos. A menina
tentou se inclinar para trás, diminuir, mas não conseguia controlar o corpo. E a Marca de
Fohla seguia à sua frente, se afastando, mais depressa que ela, cada vez mais rápida,
dançando por cima das pedras. E, de repente, a pulsei ra bateu numa pedra maior e pulou
no ar. Lá no alto, parou e ficou suspensa, girando, mas não caiu.
Primeiro, o bracelete era uma faixa clara de prata, refletindo a lua, mas depois
começou a engrossar, virando uma espécie de fogueira branca. O fogo foi crescendo e em
pouco tempo não havia mais bracelete, só um disco de luz com um miolo preto redondo,
onde antes ficava o espaço cercado pela pulseira. E esse disco cresceu, cresceu, até que
ocupou toda a visão de Susan. E quando desapareceram as últimas beiradas da noi te,
parecia que as bordas de fogo chegavam mais perto dela, e o miolo preto se afastava,
embora não diminuísse de tamanho. Mas agora, em vez de um disco, era um túnel que
girava, e Susan estava correndo para dentro dele, sem conseguir parar.
O chão fugia a seus pés, e ela continuava em disparada, ainda sem controle, mas o
peso oscilante desaparecera de suas pernas. O túnel girava em torno dela, e por isso tinha
a impressão de estar de vez em quando correndo também no teto e nas paredes. Perdera a
noção do tempo que durava aquela corrida desenfreada, mas o círculo preto lá adiante,
que chamava para si toda a perspectiva e, portanto, devia ser o fim do túnel, ia aos poucos
aumentando de tamanho. E seu pretume não era mais tão uniforme, mas começava a se
manchar de cinzento. O contraste com o círculo foi aumentando, as cores começaram a
emergir, e daí a pouco Susan estava distinguindo árvores, água e a luz do sol. Depois o
círculo ficou maior do que o anel de fogo e logo já era uma paisagem completa, meio
enevoada, cercada de prata. Tudo foi ficando mais fino, como a neblina da manhã, e Susan
saiu do túnel, ainda correndo, em cima de um gramado. Parou, sem fôlego, e olhou em
volta.
Logo reconheceu onde estava: numa ilha cheia de árvores, no meio de Redesmere, um
laguinho que ficava a uns sete quilômetros ao sul de Alderley. Mas era dia, e pelo calor do
ar, o brilho da água, os passarinhos cantando, e o verde das árvores do outro lado do lago,
era claro que também era verão.
Algo igualmente estranho já a trouxera a essa mesma ilha antes, e foi naquela ocasião
que pusera o bracelete no braço pela primeira vez. Seu coração ficou mais leve, enquanto
olhava em volta, procurando a pessoa que sabia que iria achar — Angharad Mão-de-Ouro,
a Dama do Lago. E lá estava Angharad, sentada entre as árvores, alta, esbelta, vestida
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numa túnica longa, com seus cabelos cor de ouro, sua pele alva como a neve de uma noite,
suas faces suaves e rosadas como as flores da dedaleira. E na mão dela estava o bracelete
de Susan.
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• 13 •
O bodaque
ngharad sorriu:
— Já é hora de você saber melhor qual é seu lugar nisto tudo... — disse, enquanto
prendia o bracelete em volta do pulso de Susan. — Venha comigo.
Pegou Susan pela mão e foram por entre as árvores até uma clareira, onde se
sentaram.
Enquanto Angharad falava, Susan sentia o alívio de não ter mais de carregar o peso da
solidão. Angharad sabia tudo o que tinha acontecido, não era pre ciso explicar nada a ela.
— Muito pouco disso tudo aconteceu por acaso — disse ela. — Nem as coisas boas,
nem as más. E tomara que possa ficar sobre seus ombros.
— Nos meus ombros? — repetiu Susan. — Por quê?
— Em primeiro lugar é bom saber que todo o perigo que ameaça vocês vem da
Morrigana.
— A Morrigana?
— Ela mesma. Está por aqui, e seu coração está cheio de vingança. Vai custar muito a
recuperar todo o seu antigo poder, mas mesmo assim é uma ameaça ao mundo, e está
inteiramente voltada contra você. Nesse momento, Colin está nas mãos dela. E pretende
usá-lo para destruir você, se puder. Porque a Marca de Fohla é uma proteção contra ela,
embora não vá ser assim para sempre.
— Mas por que eu? Que importância tenho? Não entendo nada de magia. Por que é
que você ou Cadellin não podem cuidar dela?
— Quando você usa a Marca, está vestindo um destino — disse Angharad. — Era isso
que Cadellin temia. E a esta altura, só por seu intermédio é que nós podem os atuar.
Porque, você entende, esta magia é da lua, e nós fazemos parte dela.
Mostrou o pulso e Susan viu nele um bracelete branco.
— Nosso poder cresce e diminui, com a lua. O meu é o da lua cheia, o de Morrigana é
o da lua velha. Agora estamos na lua velha, então quem está forte é ela.
— E onde é que entro nisso? — perguntou Susan.
— Você é jovem e seu bracelete é da lua jovem. Então você pode ser mais do que a
Morrigana, se tiver coragem. Posso botar você no caminho agora, e ajudá-la a se proteger
contra a Morrigana enquanto a lua está velha, mas não posso fazer mais do que isso. O que
acha? Está disposta a ajudar?
A
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— Claro que estou. Não tenho escolha, afinal de contas... — disse Susan. — Ela vai
continuar me perseguindo, aconteça o que acontecer. E Colin não tem a menor chance de
se salvar se eu não ajudar.
— É isso mesmo — disse Angharad. — O desejo de vingança dela é imenso. Mas agora
ela sabe que você está usando a Marca, se é que não sabia antes. A lua nova sempre lhe
causa medo, principalmente nesta época, porque é a lua de Gomrath, quando nossa magia
era a mais forte do mundo e ainda pode vir a ser. Por isso, a Morrigana vai tentar destruí-
la antes que você ganhe o poder. Vai ter de travar uma guerra com ela, e ven cê-la. Se
conseguir, pode ser que nunca mais nos ameace. Se falhar, pode ser que cresça tanto, que
nada mais a detenha.
Em seguida, Angharad deu uma faixa de couro a Susan. Nela estava pendurado uma
cornetinha curva, branca como marfim, com embocadura e bordos de ouro.
— Tome isto. Ela, com sua arte, vai chamar outras potências. Você tem muito pouca
coisa. Por isso, leve esta corneta. É a terceira coisa mais valiosa que existe e se chama
Anghalac. Moriath deu-a a Finn, Finn a Camha, e Camha a mim. Toque esta corneta se
tudo estiver perdido, mas apenas nesse caso. Porque quando Anghalac soar, pode ser que
você nunca mais tenha paz, nem no círculo do sol, nem às escondidas da lua. Não se
esqueça: só se tudo estiver perdido.
— Vou lembrar — disse Susan.
A magia estava acabando. A ilha se afastava dela e ia para a terra do sono. As últimas
palavras de Angharad vieram de muito longe, e ficaram ecoando na cabeça da menina. Ela
não conseguia ficar acordada. Sua mente ia afundando na escuridão, muito além do
alcance dos sonhos.
Durante muito tempo, antes de abrir os olhos, Susan ouviu o barulho da água. Foi
esse o som que a acordou de mansinho. Depois, ela se virou de costas e ficou olhando as
estrelas. Estava na margem de um rio, que corria pelo fundo de um vale, entre colinas altas
e ermas. Mas perto havia um portão de pedra. Além dele, uma estrada levava para dentro
de um renque de árvores.
Havia outra estrada, seguindo o rio. Mas Susan foi atraída pela que se metia entre as
árvores. Estrada, vale, céu, nada disso tinha vida. Mas o portão era estranho, além do
simples fato de já estar ali, num lugar daqueles. Examinou-o de perto. Era de ferro,
fechado com corrente e cadeado, e tudo estava enferrujado.
Susan subiu, pulou o portão e começou a andar pela estradinha. À esquerda, um
riacho descia até o rio. Alguns metros adiante, moitas de rododendro se fechavam. A
estrada era reta, e dava para ver que já fora larga um dia, mas os rododendros
proliferavam, abandonados, e agora a passagem se reduzia a uma faixa de areia, que
refletia muito de leve o amarelado da lua meio torta.
Ouvia a água gargarejando entre as moitas, e esse era o único ruído, que ia ficando
cada vez mais fundo, à medida que o caminho subia sobre a trincheira que o riacho cortara
entre as pedras. E por toda parte, os rododendros sufocavam o vale. Era uma massa que
pendia sobre Susan, como uma ameaça. Ela sentia que aqueles milhões de folhas, todas
elas acres, peludas, respirando, vivas, se juntavam para formar um grande corpo de
células verdes, e que em conjunto tinham uma consciência que era animal. Podia ser
apenas imaginação, mas o efeito sobre ela era aguçar seus sentidos, e movia -se com a
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delicadeza de uma criatura selvagem, evitando gravetos e pedras soltas quase ins -
tintivamente, sem duvidar nem por um instante que estava perto de Colin.
Por duas vezes o caminho cruzou o riacho, e nesses pontos havia pontes de pedra,
com balaústres meio soltos, quase caindo. A segunda dessas pontes ficava a quase um
quilômetro do portão e, ao alcançá-la, Susan estava no auge de sua sensibilidade aguda.
Seus olhos aproveitavam o menor fiapo de luz, e ela conseguia ver tudo o que havia no
caminho, e tudo o que os rododendros permitiam, nas bordas. A segunda ponte ficava
numa encruzilhada do vale: havia uma colina coberta de arbustos e o riacho e outro
riozinho fluíam em volta, cada um por um lado, juntando-se na ponte. O caminho seguia
pelo lado esquerdo do vale. E de pé, junto à ponte, à sombra dos rodo dendros, imóvel,
havia um vulto que parecia um homem.
Ele estava segurando uma lança e um escudo redondo, pequeno. A luz batia no alto de
sua cabeça, e tocava seu peito e ombros, mas todo o resto estava na sombra. E estava tão
quieto que Susan nem podia ter certeza de que não era uma estátua esquisita.
A menina ficou olhando, por alguns minutos, mas ele não fez o menor movimento,
não mostrou o mínimo sinal de vida que a ajudasse a decidir. Ela não podia nem pensar
em voltar. Sabia que tinha de ir em frente, de qualquer jeito, e que o risco de passar pelo
vulto na ponte era grande demais.
Não adiantava tentar forçar uma passagem pelo meio do mato. O único jeito era ir
pelo riacho, que nesse ponto não ficava muito abaixo do caminho. Susan recuou até ficar
fora da vista da ponte, e depois se abaixou pela margem e entrou na água.
Era um riacho bem rasinho, mas muito cheio de pedras, e de vez em quando tinha uns
poços mais fundos, em que a água batia na sua cintura. Não dava para andar em silêncio,
mas o rumor da água correndo sobre as pedras cobria qualquer barulho que fizesse, e ela
teve o cuidado de ficar bem grudada na margem, onde as sombras eram mais espessas. A
ponte foi a pior parte. Era baixa, com o ar fedendo a limo, e Susan a toda hora caía sobre
coisas que se mexiam e se afastavam dela na escuridão.
Depois de passar pela ponte, descobriu que as margens ficavam mais altas e íngremes,
mas continuou por mais uns cem metros antes de ousar sair da água. A margem aí era um
barranco quase vertical, de terra e húmus molhado. Oito ou nove vezes Susan meteu as
unhas lá em cima, na obra de sustentação que segurava o caminho, para logo em seguida
despencar, em meio a um desmoronamento. Mas finalmente acabou conseguindo botar os
ombros na estradinha, e a partir daí foi mais fácil acabar de subir.
Nesse ponto, a estrada tinha sua largura original e, pouco adiante, saía dela um
desvio em curva para a direita. Susan parou, sem saber se devia continuar subindo, mas
depois resolveu explorar o desvio, pelo menos até depois da curva.
Continuava se movendo em silêncio e com cuidado, mas toda sua atenção não
impediu que exclamasse quando viu o que vinha depois da curva.
O caminho margeava um platô gramado, para o qual desciam uns degraus, e no
gramado havia uma mansão de pedra, construída no pesado estilo italiano do século
passado. Todas as janelas brilhavam com uma luz que era mais forte do que o luar, mas da
mesma qualidade, sem vida.
Susan sabia que era isso o que devia encontrar. Era o coração do mal. A Morrigana
estava ali — e Colin também. Susan começou a andar em direção a casa, e depois se
deteve. "Não", pensou. "Não sei onde procurar, nem o que fazer. E ela provavelmente vai
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prender nós dois. Tenho que dar um jeito de avisar a Cadellin que ela está aqui. Ele é
quem poderá cuidar dela."
Em cima da porta havia uma torre quadrada. Como se fosse para conf irmar os
pensamentos de Susan, um vulto apareceu numa das janelas em arco da torre. Era a
Morrigana. Ficou olhando para o gramado lá embaixo e, embora Susan estivesse na
sombra, sentia como se uma luz forte se lançasse sobre ela, e foi preciso recorrer a todo seu
controle para ficar quieta enquanto a Morrigana espreitava a noite. Finalmente, quando ela
saiu da janela, Susan esgueirou-se de volta pelo caminho.
A casa a assustara. "Por que eu?", pensava. "Por que Angharad não podia contar a
Cadellin? A Morrigana devia saber. 'Tomara que possa ficar sobre seus ombros', foi isso o
que ela disse. Bem, podia ter me dito muito mais. Eu não sei nada de magia, e todos os que
sabem ficam apavorados com a Morrigana, então não ia ter muita coisa que eu pudesse
fazer lá dentro. Tenho de encontrar Cadellin."
Susan chegara à encruzilhada. Podia virar para a esquerda, em direção ao vale, ou
continuar subindo para a direita. Não queria passar de novo por aquela situação da ponte,
porque agora tinha certeza de que o que estava guardando a passagem não era uma
estátua. Mas onde estaria? Em que direção ficava Alderley? Orientou-se pelas estrelas: o
caminho que subia ia em direção ao oeste. "O que é o caminho certo, se eu estiver nos
Peninos", pensou, "mas não me adianta nada se eu estiver no País de Gales. Mas se estiver
no País de Gales, estou a uns setenta qui lômetros de Alderley, então é melhor que eu esteja
nos Peninos". E começou a subir a colina.
O caminho continuava como antes, mas não por muito tempo. O emaranhado de
rododendros acabou, e na frente de Susan estava um portal vazio num muro de pedras. Do
outro lado, um terreno aberto descia suave por uma boa distância, até uma cordilheira
arredondada, como o lombo de uma baleia, que fazia tudo parecer pequeno perto dela . Só
de olhar, Susan sentiu a cabeça girando e as pernas bambas. Mas do outro lado daquela
serra, Susan esperava, haveria uma planície e lá estaria Alderley — pelo menos, não havia
mais rododendros.
Susan passou pelo portal e, quando fez isso, alguém se destacou da sombra do muro.
Agora, em pleno luar, dava para ver bem, fosse ou não o mesmo que antes guardava a
ponte. Não chegava a ser da altura de Susan. Era careca, de orelhas pontudas, com olhos
brilhantes em forma de amêndoa e tinha um nariz pontudo e curvo. Sua lança parecia uma
folha, e seu corpo estava coberto de uns cachos de pêlos achatados, densos como escamas.
Susan ficou paralisada com o choque e não conseguiu se mexer nem mesmo quando o
homem esticou a mão e agarrou seu braço. Mas o grito que em seguida saiu daquela
bocarra soltou os músculos da menina. Porque no momento em que ele a tocou, a Marca
dardejara fogo, e uma chama branca correu pelo braço dela e bateu como uma chicotada na
mão que a agarrava. O homem caiu encostado no muro, e não se mexeu mais.
Susan saiu correndo pelo descampado, porém mal tinha conseguido chegar ao sopé da
montanha quando ouviu um grito. Olhou em volta e viu outro homem armado, pulando o
muro e vindo em sua perseguição.
Mas seria mesmo um homem? Havia algo errado com seu jeito de correr. Era rápido
como um lagarto por cima do capim. Suas pernas se remexiam para a frente meio aos
saltos, como se cada passo fosse uma bicada. Parecia que a articulação do joe lho era ao
contrário, que a perna era fina debaixo do joelho, e que os pés tinham saltos.
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Susan levava uma vantagem de uns 50 metros, mas estava subindo, enquanto o outro
descia ladeira abaixo. Ela tropeçava na subida, tentando deixar alguma energia de reserva,
mas era empurrada pela necessidade de escapar.
Uma lança zuniu junto a ela, e se fincou no chão. O perseguidor não ia se arriscar a um
contato mais próximo. Susan ainda pensou em pegar a arma e usá-la contra o dono, mas
não conseguia encará-lo, nem mesmo a usar a arma ou tocá-la. Então continuou correndo,
sem parar, aumentando a vantagem enquanto sabia que a lança ia sendo recuperada, e
esperando o próximo ataque.
Chegou a um grupo de árvores mortas, amontoadas na encosta, e foi passando por
elas, se escondendo de tronco em tronco, agradecida por essa ligeira proteção. Mas estava
tão exausta que, quando tropeçou, não conseguiu levantar. Retorceu-se, encostou numa
árvore, e instintivamente enfrentou o perigo.
A criatura estava chegando às árvores, correndo com a lança levantada. Hesitou por
um momento, procurando no meio da pouca luz, depois prosseguiu. E quando passou pela
primeira árvore, foi como se um pedaço de um galho torto se soltasse e se levantasse à sua
frente — um raio de luz comprido de repente o atingiu e sumiu debaixo de suas costelas.
O vulto gritou e caiu.
— Então agora são os bodaques! — exclamou uma voz, zangada e enojada — Nunca vai
ter fim esse lixo de Bannawg?
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• 14 •
A Caçada Selvagem
thecar virou-se para Susan:
— No começo desta noite, Cadellin achou que você tivesse morrido. Será que você
vai provar que ele estava errado?
— Uthecar! — exclamou Susan. — Como é que você chegou até aqui?
— Não basta estar aqui? — disse o anão, ajudando Susan a se levantar. — Afinal, o
bodaque gosta de terreno íngreme, mais até do que uma lebre da montanha. A morte de
ferro estaria agora em você — e ainda pode chegar... afinal, um bodaque morto, e não muito
tranqüilamente... Seria melhor levar a cabeça dele, mas esse seu bodaque é muito rápido em
atirar a lança, e vai ser difícil e demorado cortar a garganta dele, que é dura feito couraça
de touro...
Uthecar e Susan começaram a subir a colina juntos. Iam caminhando, porque Uthecar
sabia que ainda havia uns trezentos metros de terreno aberto diante deles e, se alguém os
perseguisse, não ia ser uma corrida que os salvaria.
Do descampado não dava para ver a casa, e, à medida que subiam, o vale de
rododendros se encolhia, virava uma linha escura, e depois se escondeu atrás da curva da
colina.
Uthecar fez Susan contar a ele o que tinha visto, antes de lhe dar qualquer explicação
sobre sua presença entre as árvores mortas.
— Mas como é que você descobriu onde a Morrigana estava? — perguntou Susan,
afinal. — Você foi muito rápido.
— Não tanto quanto você imagina — disse ele. — Foi na noite passada que Colin foi
levado.
— Não pode ser! — disse Susan. — Tudo aconteceu tão depressa! Só faz umas quatro
ou cinco horas...
— Não. Você estava num encantamento, na ilha de Angharad Mão-de-Ouro. Lá o
tempo da Terra não conta, podiam ter passado anos. Foi só a magia da Dama que fez com
que fossem apenas um dia e uma noite... Mas conto o que aconteceu comigo, é simples.
Depois que a lua nasceu, Pelis, o Falso, veio até Fundindélfia, parou diante dos portões e
disse que se você não estivesse pronta para ir com ele amanhã, e seu bracelete entregue a
ele, iam nos devolver Colin — um pedacinho de cada vez. Primeiro, tive vontade de
derramar o orgulho dele em ondas escuras pelo chão, mas isso vai ter de esperar. Primeiro,
temos de eliminar a vantagem deles. Então, Albanac ficou distraindo Pelis, deixando que
falasse, e eu saí pelo Poço Sagrado, dei a volta, me escondi, e quando ele foi embora eu o
segui. Mas aquele vale está cheio de horrores, e muitos deles não respon dem a uma
U
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espada. Por isso, o melhor é a gente trazer Cadellin. Enquanto ele trata da Morrigana, vou
testar a natureza de Pelis, o Falso, nem que tenha de atravessar um mar de bodaques para
chegar até o coração dele.
Já estavam no alto da montanha: o mundo estava deserto.
Susan e Uthecar se moviam pelo meio do mato, eram manchinhas na luz embaçada.
— E o que são esses... bodaques! — perguntou Susan.
— A escória de Bannawg — respondeu ele. — São meio aparentados com os goblins,
mas têm mais garra — não vou dizer que seja coragem. A única coisa que amam é o grito
das lâminas, e se houver muitos deles em volta da Morrigana, não vai ser nada fácil salvar
Colin. Não dá para você subir mais depressa?
Havia uma ponta de algo estranho em sua voz quando fez a pergunta.
— Por quê? Algum problema?
— Olhe para trás — disse o anão.
Mas Susan não viu nada, a não ser os fundos do morro, e o charco do outro lado, em
volta do Morrote de Goyt, como se fosse a barriga de uma represa, monstruosamente
imóvel.
— Não estou vendo nada. Onde?
— Ali, e ali, e ali, e ali, e mais ali, pelo meio do mato. Então ela viu. Línguas em
movimento avançando sobre o chão pantanoso, para a frente e para trás, para dentro e
para fora, lá embaixo da colina, de olhos verdes.
— São os batedores — disse Uthecar. O que temos de temer não são tanto os palugues,
mas o bodaque que vem atrás. Gostaria de deixar muito vento entre nós e eles.
Susan e Uthecar apertaram o passo, embora ainda não estivessem correndo. Os gatos
passaram a persegui-los abertamente, agora que tinham sido vistos, e começaram a chamar
uns aos outros, em uivos pela montanha abaixo, numas vozes que eram dor e desolação da
alma.
A quantidade deles assustou Uthecar. Não imaginara que houvesse tantos. Num
minuto o sufocariam e podiam até neutralizar o bracelete durante um tempo suficiente
para que Susan fosse morta — se fosse esse seu objetivo.
Mas os palugues não atacaram, e Susan e Uthecar chegaram ao alto da serra. Um muro
de pedra corria pelo topo, que à esquerda subia ligeiramente, e decaía à direita num
pequeno platô, que depois levantava-se num pico mais adiante. Em frente havia um vale, e
mais colinas, mas do outro lado delas estava a planície. Estavam a uns quatorze
quilômetros de Alderley.
Passaram por cima do muro e estavam a ponto de começar a descer para o vale,
quando viram uma linha de bodaques atravessando o platô para dentro do vale, com
intenção de cortar seu caminho. Só lhes restava subir o morro da esquerda. Prosseguiram
junto ao muro, onde o terreno era mais macio e havia trilhas de carneiros, e os palugues os
iam tangendo, alguns do outro lado do muro andando um pouco à sua frente.
A encosta era bem suave, dava para Susan e Uthecar correrem, porém cada passo
tinha de ser medido. Mas acabaram caindo na armadilha. Logo estavam no alto do morro,
e o alívio que tiveram por não ter mais de subir foi logo cortado pelo penhasco que se
despencava à sua frente. Quando viraram as costas, perceberam que os palugues que iam
correndo na frente estavam em cima do muro e tinham formado um semicírculo junto com
os que os seguiam. O penhasco não era de uma altura impossível de pular, mas o chão lá
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embaixo era só um pouquinho menos íngreme, e cheio de espinheiros e pedras. Mais
abaixo, uma estrada serpenteava por entre as colinas.
— Nem pense em pular — disse Uthecar. — la quebrar todos os ossos. Aqui, pelo
menos, nem um palugue nem um bodaque vão estar em nossos pescoços. Embora eu ache que
isso não faz muita diferença: veja só.
Já dava para ver mais de uns vinte bodaques. Um grupo de três deles já estava chegando
no alto, bem na frente dos outros. Pararam na beirada do semicírculo formado pelos
palugues, apoiaram-se nas lanças, com satisfação maligna, decidindo qual deles teria o
prazer de matar, já que não havia muito a temer de uma menina e de um anão caolho
armado de espada.
— Atrás de mim, e bem abaixada... — sussurrou Uthecar. — Estou pensando numa
coisa para esses três. Se não der certo, dê um pulo e confie na Dama.
— Eu tenho esta cornetinha — disse Susan. — Não é melhor tocar?
— Acho que é melhor guardar para alguma ocasião ainda pior — disse ele.
Mas antes que ele pudesse dizer qualquer outra coisa, um dos bodaques se destacou das
fileiras de palugues, com o escudo levantado e a lança preparada. E enquanto ganhava terre-
no entre Uthecar e os palugues, o anão jogou a espada para a frente, num arco de baixo para
cima. Pegou o bodaque na barriga e o derrubou. Com o ímpeto do golpe, Uthecar tinha ido
em seguida, atrás da espada, e chegou ao bodaque antes que esse atingisse o capim do chão.
No mesmo movimento, arrancou o escudo do braço do bodaque, e se ajoelhou protegido por
ele, enquanto as lanças dos outros dois bodaques vinham em sua direção. Elas morderam o
escudo, e saíram do outro lado, mas não acertaram Uthecar. Em seguida, o anão agarrou
sua espada e a lança do bodaque moribundo e se jogou para trás, voltando para junto do
penhasco antes que os dois bodaques tivessem tempo de reunir suas forças e pular sobre ele.
Aí já estava tarde demais para a coragem deles. Cada palugue via sua própria morte naquela
espada, e suas mentes não eram suficientemente espertas para perceber qual era a
estratégia do anão.
Uthecar empurrou o escudo brilhante e a lança nos braços de Susan e saltou de volta,
pelo meio dos gatos, num contra-ataque. Em quatro grandes passadas, foi por cima deles
sem que o tocassem, e caiu sobre os bodaques indefesos. Duas vezes sua espada rebrilhou, e
num instante Uthecar estava no meio dos gatos com dois escudos nos braços. Mas desta
vez os gatos estavam mais preparados. Parecia que ele estava tentando atra vessar a vau
pelo meio de uma correnteza negra que lhe vinha até a cintura. Corpos arranhavam os
escudos na altura de sua cabeça, e sua espada era uma faísca de relâmpago girando em
volta de seus pés. Mas conseguiu abrir caminho e se reuniu a Susan na beira do penhasco.
Quando a força principal dos bodaques chegou ao alto da colina, encontrou uma menina
e um anão, armados, de pé numa língua protuberante de pedra, de um jeito tal que só
podiam ser atacados de frente e por um só agressor.
Não chegou a ser uma luta. Durante algum tempo, os bodaques zanzaram pelo alto do
morro, tentando encontrar um ponto de vantagem. Depois, frustrados, começa ram a atirar
as lanças. Mas quando viram que o mais provável era que mais tarde as armas fossem
usadas contra eles, ou se perdessem lá embaixo do precipício, tentaram avançar sobre o
anão. Mas cinco mortes rápidas os detiveram, e eles recuaram, raivosos, s acudindo a
cabeça.
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Os palugues não podiam ajudar. Seu forte eram ataques em matilhas. Lances
individuais não eram sua especialidade. Houve várias escaramuças envolvendo sangue,
quando fizeram uma tentativa de se lançar contra a espada de Uthecar.
Assim, após alguns minutos, a situação parecia ter chegado a um impasse.
— Se conseguíssemos resistir até o amanhecer, seríamos vencedores — disse Uthecar.
— Nem os palugues nem os bodaques gostam do sol. Mas que notícia já terá chegado até a
Morrigana a esta altura? E se ela vier, bom... só resta mesmo dar boa-noite.
Uthecar tinha visto cabeças de palugues de costas, na direção do Morrote de Goyt. Sabia
bem o que isso significava. E o tempo todo, gatos e goblins estavam saindo do vale,
apinhando-se no alto do morro.
— Se ficarmos aqui, não vamos ver o sol nascer — disse. — Não sei o que nos resta.
— Você sabe onde estamos? — perguntou Susan. — Tem uma estrada lá embaixo.
— Ah, isso eu sei. Isto aqui é o Tor Brilhante. Entre os seus pés é onde crescia a
Mothan apanhada por Colin, e aqui é onde o Caçador dormia.
— O quê? Aqui? Aqui mesmo neste lugar?
Ficou tão surpresa que tirou os olhos dos bodaques e olhou em volta, àquela ponta de
pedra destacada, com os pensamentos cheios da luz que tinha recebido, vinda do meio das
chamas do Farol a se apagar. E de repente, uma dor, fria como uma navalha, golpeou o
pulso da menina, fundo, até o osso.
— Ai! Me acertaram! — exclamou Susan, agarrando o pulso.
Mas quando olhou, não havia sangue nem ferimento. Porém a Marca de Fohla
brilhava com um fogo branco, e as letras pretas gravadas nela pareciam flutuar sobre a
superfície do metal, e agora conseguia ver a palavra de poder.
— Uthecar! Posso ler o que está escrito no bracelete!
— Então diga o que é!
— Está escrito "TROMADOR"...
A colina toda tremeu quando ela disse essa palavra. O ar pulsou numa nota que nem
dava para se ouvir, e a teia do céu balançou, fazendo as estrelas dançarem, e o brilho delas
ecoava "tromador, tromador", pela noite afora. E desse som nasceu um vento.
Foi um vento que nunca ninguém imaginara: pulou nas costas de Susan e a jogou
sobre a pedra. Os dedos dela se seguravam em todas as frestas e seu corpo estava tão
encostado que a rocha até palpitava. Porque era um vento capaz de arrancar os pêlos de
um cavalo e os tufos de capim de um campo. Era capaz de arrancar as moitas de um morro
e um salgueiro da raiz. Era capaz de arrancar o topo de um rochedo e de separar a águia
dos filhotes. E foi esse vento que veio uivando enraivecido por cima dos picos de arenito,
em centelhas de fogo brilhante.
Os bodaques e palugues se amontoaram junto ao muro, e o vento os prendeu por lá. O
capim se mexia como se fosse a cabeleira do morro.
Depois, do mesmo jeito que chegou, o vento foi embora. Susan e Uthecar levantaram o
rosto, e procuraram as lanças, porque os escudos tinham sido levados como se fossem
folhas no outono. Mas não chegaram a tocar nas armas, porque doze homens a cavalo
estavam bem perto do lugar onde estavam deitados. Imóveis como a morte. E na frente
deles estava um homem que tinha uma galhada de chifres de sete pontas, no alto da
cabeça, recortando-se cruel contra o céu.
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Esse cavaleiro da frente era vermelho e portava uma lança. Ergueu-a e sua voz cortou
o ar como se fosse uma lâmina:
"Há um grito no vale,
Não é aquele que fura?
Há um grito na montanha,
Não é aquele que fere?
Há um grito na floresta,
Não é aquele que conquista?
O grito de cada jornada sobre a planície!
O grito de cada vale perdido!"
Os três cavaleiros vermelhos, os Cavaleiros de Donn, levantaram suas lanças na
mesma altura. As capas brancas dos filhos de Argatron se abriram e três chicotes curvos
ficaram visíveis. O soturno Fiorn, rei do norte, rei do monte, apoiou seu mangual sobre o
ombro e as sete correntes se entrechocaram, num barulho maligno. Fallowman, o filho de
Melimbor, desembainhou sua espada negra, que silvou na bainha como se fosse uma
víbora. A espada de Bagda estava erguida. Os filhos de Ormar prepararam os dardos por
detrás dos escudos de prata, e os cascos de seus cavalos eram luas em brasa.
Garanhir, o Caçador, sacudiu a cabeça. Sua voz ecoou, selvagem como a de um
animal.
— Cavalguem, Einheriar do Herlathing!
— Vamos cavalgar! Cavalgar! A galope!
Os palugues tinham começado a se esgueirar para trás, orelhas coladas às cabeças,
olhos apertados de medo, quando o cavaleiro falou. Mas no momento em que a voz do
Garanhir atroou sobre eles, ficaram enlouquecidos, como se aquele som tocasse uma nota
que os fizesse perder a razão. Pularam por cima do mato, em fuga. Mas os bodaques se
desvencilharam da montoeira em que o vento os tinha jogado e se ajoelharam atrás dos
escudos, um bem juntinho do outro, apoiando no chão os cabos das lanças, com as pontas
voltadas na direção dos peitos dos cavalos. Mas dardo, mangual, chibata, espada e lança
estavam sobre eles antes que conseguissem dar seu golpe, quando os Einheriar os
varreram como uma onda, rolando suas cabeças como cascalho no fundo do leito de um
rio.
Garanhir avançou pelo meio das fileiras dos bodaques: agarrou-os pelos pescoços,
juntando suas cabeças.
— Cavalgar, Einheriar do Herlathing!
— Vamos cavalgar! Cavalgar! A galope!
As fileiras partidas se espalharam e o Herlathing prosseguiu sua cavalgada pela
colina, cortando, chicoteando, expulsando os goblins e os gatos de volta para o vale.
Susan olhava maravilhada, espantada com o vigor do massacre feito pelos cavaleiros.
Garanhir estava escuro até a cintura, e tinha umas tiras penduradas nos chifres. Mas
Uthecar a puxou para fora do rochedo, guiando-a para a ponta do penhasco.
— Não vamos ficar por aqui — disse. — A Caçada Selvagem nos salvou. Você agora
está querendo esperar a Morrigana?
— Mas veja! Eles estão se divertindo com o que estão fazendo.
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— Se divertindo? Menina, você invocou a Caçada Selvagem... Não é nenhuma magia
de brincadeira... Dê graças a Deus porque não é a sua cabeça que está rolando morro
abaixo.
Os dois saíram do meio das pedras e desceram até a estrada, mas Uthecar não quis
seguir por ela. Escolheu uma linha reta para Alderley, evitando os descampados sempre
que possível, e manteve o passo apertado durante toda a noite. Em pouco tempo, o
barulho do massacre foi sossegando.
Quando amanheceu, Uthecar e Susan encontravam-se num campo no alto da Borda,
junto à beirada de uma tripa de bosque. A lua estava baixa no céu. Susan estava sem
fôlego, exausta, mas Uthecar parecia mais tranqüilo do que em qualquer outro momento
daquela noite.
— Estamos chegando — disse. — Dentro do bosque, junto à Pedra Dourada, uma
velha estrada de elfos vai até Fundindélfia. Vai ser uma espécie de escudo para nós,
porque nem mesmo a Morrigana pode caminhar sem dor por uma estrada de elfos. E
problemas menores simplesmente não conseguem andar por ela.
— Então, vamos — disse Susan. — Vamos correr.
De repente, ficara preocupada: uma sombra passara por seu espírito, vindo do leste.
Mas antes que conseguissem dar um passo, ouviram uma voz chamar atrás deles:
— Imorad! Imorad! Surater!
Foi como se o gelo trancasse seus músculos. Uthecar gritou, e em seguida ficou
imóvel. Mas Susan, embora parecesse que suas juntas estavam se cristalizando, conseguiu
forçar os membros a se mexer. Virou a cabeça e viu a Morrigana saindo do meio de
algumas árvores do outro lado do campo. Trazia uma longa espada e sua mão direita
estava esticada em direção a Susan e Uthecar. Com o punho fechado, e os dedos mínimo e
indicador apontados para a frente.
— Tem de... correr... — sussurrou Susan.
Conseguiu andar, mas cada passo era uma travessia pesada. O corpo pesava, morto,
como chumbo. Parecia estar tentando correr num pesadelo. Mas Uthecar só conseguia
mexer o olho.
— Tentar... correr... — disse Susan.
A garganta dela estava dormente, congelada. Estendeu a mão para o anão e fechou os
dedos em volta do pulso dele, desajeitada, para puxá-lo. Mas no momento em que o tocou,
Uthecar sentiu a vida cintilar em seus ossos e, pondo toda sua energia nesse esforço,
conseguiu balançar as pernas, empurrando os quadris para a frente, com os braços girando
longe do corpo, como se estivesse nadando. Desse modo, Susan e Uthecar mexeram-se
juntos em direção ao bosque, que nesse ponto era muito estreito, e a Morrigana veio atrás
deles, com a espada pronta.
— Estrada... estrada... ali... — disse Uthecar. Apontou com a cabeça para a esquerda, e
Susan viu uma trilha, margeada por paredes de pedra, que seguia pelo outro lado do
bosque. Os dois se jogaram com toda sua força naquela trilha, porque a Morrigana agora
estava tão perto que eles podiam ouvir sua respiração. Lançaram-se sobre o pequeno muro
de pedra e caíram lá dentro, na estrada dos elfos. Na mesma hora, sumiu o que os estava
paralisando.
— Solte meu braço e me dê a mão — disse Uthecar. — Quem tem poder contra ela é
você, mas eu prefiro ter a espada livre. Ela não vai ser detida por muito tempo.
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Foram correndo pela trilha, e a Morrigana seguia pelo outro lado da mureta,
acompanhando o passo deles. Apesar de seu tamanhão, podia se mexer muito depressa.
Mas eles notaram que ela olhava para o céu, como se estivesse ansiosa. Já chegava perto da
Pedra Dourada quando tropeçou e parou.
— Fique aqui — disse Uthecar. — Ela não está à vontade, tome cuidado!
A Morrigana estava parada, ofegante, a menos de vinte metros deles.
— Que caia sobre você tudo o que meu coração deseja, anão! — berrou ela.
Uthecar se jogou no chão, levando Susan com ele, gritando com todas as forças:
— Que caia sobre aquela pedra cinzenta tudo o que o seu coração deseja, megera!
Ouviu-se um barulho no ar, por cima da cabeça de Susan, como se fosse um rufar de
asas, e a Pedra Dourada rachou-se de alto a baixo. Pedaços de pedra voaram para todo
lado, uns fragmentos grudaram na pele de Susan, e quando ela olhou de novo a Morrigana
não estava mais lá.
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• 85 •
Errwood
e eu os tivesse encontrado antes que bebessem no poço — disse Cadellin —,
poderiam ser empurrados de volta para os montes. Mas a água os
confirmou aqui, e isso vai durar sete noites. Durante esse tempo, quem
pode dizer o que eles não serão capazes de fazer?
— Eu me preocuparia muito menos com o Herlathing do que com a Morrigana —
disse Uthecar.— Porque ele eu fiquei contente de ver, e ela nunca pode estar
suficientemente longe de minha vida. A Pedra Dourada que o diga!
— Não consigo entender — disse Susan. — Ela estava bem em cima da gente, e de
repente olhou para o céu, quebrou a Pedra Dourada, e sumiu.
— Onde estava a lua? — quis saber Cadellin.
— Não reparei.
— Estava quase se pondo — disse Uthecar. — Você acha que foi isso que meteu medo
nela?
— Pode ser... — disse Cadellin. — É na lua que reside o seu poder. Porém não fica
impotente quando a lua se põe. Que carga especial haveria em cima dela, para conseguir
não ficar?
— Bom... — disse Susan — se ela estiver indo para casa, Albanac podia segui-la a
cavalo — não deve ter chegado nem na metade do caminho ainda —, e então podíamos
saber o que há de errado.
— Ela pode mudar de forma e chegar lá muito antes de meu cavalo — disse Albanac.
— Mas eu vou, se Uthecar for comigo para mostrar o caminho.
— Não! — disse Uthecar. — Duas espadas não fazem diferença. Leve Susan com você.
Porque uma espada, um cavalo e a Marca podem servir, à luz do dia.
— Vocês não iam me deixar sozinha, iam? — perguntou a menina, olhando para
Cadellin.
— Acho que Angharad Mão-de-Ouro se engana — disse o mago —, mas você está tão
longe do seu mundo que é melhor eu não piorar as coisas ainda mais, me metendo agora.
Vá com Albanac. Mas lhe imploro: não se arrisque.
Susan e Albanac desceram a uma das cavernas inferiores, onde o cavalo de Albanac
estava estabulado, junto com os cavalos dos lios-alfar. Depois, saíram de Fundindélfia pelos
portões de ferro e cavalgaram em direção à Pedra Dourada. Vigiavam todas as árvores,
mas não viram nenhum gato, e assim que chegaram aos campos, o cavalo disparou e eles
seguiram a toda velocidade para o Tor Brilhante. Cachorros latiam nas fazendas, homens
—S
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olhavam nos campos, mas Albanac não tinha tempo para tomar precauções de não ser
visto. Quando subiram as colinas, a terra já estava deserta.
Aves carniceiras brigavam pelo meio do mato, no alto do Tor Brilhante, e voaram em
nuvens quando Susan e Albanac passaram por eles. O cavalo agora marchava, e Albanac
estava atento, olhando o céu e o pântano, com uma mão apoiada na espada, na bainha.
Cavalgaram ao longo do muro quase até o platô, depois viraram à direita e desceram
para o vale. O dia estava parado. Nada se mexia.
Detiveram-se junto ao monte de árvores mortas, mas não havia sinal do bodaque. E os
rododendros não deixavam ver nada no vale.
— De qualquer modo, não dava mesmo para ver a casa daqui — disse Susan. — Fica
no outro lado daquele morrinho redondo, na boca do vale.
— Vamos mais perto, então — disse Albanac. — Mas não estou gostando do que estou
vendo, mesmo a esta distância.
Quando chegaram ao portal, o cavalo de Albanac virou as orelhas para trás, colando-
as na cabeça, mas foi em frente sem hesitar, pisando macio.
Mesmo à luz do dia, o lugar era assustador. Moitas, ruínas de pedra, tudo úmido,
verde, cheio de mato pelo caminho, o riacho absorvendo qualquer barulhinho, de modo
que a toda hora sentiam calafrios, com medo de que alguém se aproximas se sem ser
ouvido. E por cima da cabeça, as paredes do vale se estreitando.
Susan apontou o caminho da esquerda, na encruzilhada:
— É logo depois da curva — sussurrou.
Albanac assentiu, com a cabeça. Seguiram em frente, com cuidado. O cavalo parecia
saber o risco. Albanac puxou a espada quando se aproximaram da curva, e Susan deu um
grito que assustou os pássaros, fazendo-os sair em bando, voando por entre as árvores.
Porque, diante do caminho, se abria o platô com o gramado. Mas onde Susan antes
vira um pequeno lago ornamental, agora havia um montinho de junco. A casa alta,
brilhante e com uma torre, agora era uma pilha de madeira velha e paredes caí das, com
espinhos e samambaias crescendo por entre o entulho, sombrio, com os arcos vazados das
janelas.
— Isso está morto há muito tempo — disse Albanac.
— Mas ainda ontem à noite era uma casa! — exclamou Susan. — E a Morrigana estava
aqui. Eu vi!
— Não duvido — disse Albanac. — Aqui tem feitiçaria. Vamos.
Deu meia volta no cavalo e voltou pelo caminho a galope.
Sentia uma necessidade urgente de estar de novo no vale aberto, como se o perigo
tivesse bocejado a seus pés e eles estivessem pulando para trás por instinto, enquanto suas
mentes tentavam rapidamente entender o que estava acontecendo. Mas quando chegaram
à encosta descampada, grande parte do pavor foi embora e Albanac diminuiu o passo do
cavalo.
— O que fez a casa cair? — perguntou Susan, numa voz fraquejante.
— Não, Susan. O que você viu ontem foi obra da Morrigana. Temos de encontrar
Cadellin, porque acho que estou vendo uma luz no meio disso tudo, e podemos levar
vantagem sobre ela.
— Como?
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— Vamos primeiro perguntar a Cadellin. Ele é quem sabe julgar direito essas coisas.
Mas acho que Colin está mais seguro agora do que antes, e que, esteja ele onde estiver, a
Morrigana não pode alcançá-lo antes de você ou de mim.
— Você tem certeza?
— Não. Mas vamos perguntar a Cadellin.
Esporeou o cavalo, e subiram o flanco do Tor Brilhante como uma bandeira ao vento.
Pois aquele era Melynlas, o potro de Caswallawn, um dos três Cavalos de Alta Linhagem
de Prydein.
Estavam começando a descer do outro lado do morro, em direção a Thursbitch, abaixo
do Tor do Gato, quando viram um pastor e seu cão, caminhando por uma trilha de
ovelhas. O cachorro correu para eles, latindo, mas bastou um assobio e vol tou para junto
do homem. Albanac virou Melynlas para o lado, e deteve o animal.
— Há uma casa num vale do outro lado da colina — disse. — Está em ruínas e
invadida pelo mato. O senhor sabe o que é?
O pastor olhou para Susan e Albanac só com um pouco de curiosidade.
— Deve ser Errwood Hall.
— Há quanto tempo ninguém mora lá?
— Não sei. Só sei que foi demolida quando eu era criança.
— Justamente o que pensei — disse Albanac. — Muito obrigado.
— De nada — disse o pastor. — Meio fora de época para uma festa à fantasia, não?
Onde é?
— Festa? — disse Susan. — Que festa?
— Muito obrigado, e bom dia — disse Albanac, puxando a rédea de Melynlas.
— É... não é sempre que a gente vê duas pessoas fantasiadas por aqui. Por isso eu logo
vi que tinha uma festa.
— Mas eu não estou... — disse Susan.
— Duas? — Albanac puxou a rédea, abrupto. — Quem mais o senhor viu?
— Uma mulher passou por mim há uma meia hora, lá pra baixo de Thursbitch, no
caminho de Errwood. Nunca vi ninguém andando tão depressa! Estava toda arrumada, de
saia comprida e tudo, mas nem falei com ela, só vi de longe.
— Há meia hora? O senhor tem certeza?
— Digamos... uns vinte minutos...
— Mais uma vez, muito obrigado! — exclamou Albanac, e Melynlas avançou a toda
em direção a Alderley, e os tufos de capim que seus cascos arrancavam voavam como
bandos de andorinha antes da chuva.
— Acho que desta vez a pegamos! — disse Albanac pelo meio do barulho do galope.
— Ela chegou lá pouco antes de nós, mas já era tarde demais para ela, embora desse para
chegar suficientemente perto para nos ver. Só que ela não nos atacou — quer dizer, não
ousou atacar. Acho que a pegamos!
A cavalgada de volta a Alderley foi a mais rápida que Susan já vira, mais rápida até
que a do Herlathing para o Farol, na noite vermelha de fogo. Não pararam nem para
deixar Melynlas no estábulo, mas entraram em Fundindélfia pelo Poço Sagrado, direto
para a caverna do mago.
— Temos de agir logo — disse Cadellin, quando contaram sua história. — Parece que
ela ainda não está bastante forte para te atacar sem se preparar, a não ser que consiga
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carregar-se com a lua. Tudo isso é magia da lua. Ela a usou para construir a lembrança da
casa, na firmeza das pedras, e tenho a impressão de que a mansão só existe quando a lua
velha brilha. Se não chegar até a casa antes da lua se pôr, então fica impedida de entrar até
de noite, e se Colin estiver lá, está seguro durante algum tempo. Temos de conseguir ficar
entre ela e a casa enquanto há luz, e quando a luz surgir, temos de mantê-la fora de casa
até libertar Colin.
— Então vamos precisar de ajuda — disse Albanac. — Só três ou quatro não vão
conseguir guardar aquela casa. Vamos ter de falar com Atlendor.
Foram todos juntos, apesar das objeções de Uthecar a se confiar em elfos. Nas
cavernas mais profundas de Fundindélfia, os lios-alfar estavam sentados em seus
banquinhos, em ordem e em silêncio. O único barulho era um espasmo de tosse que
irrompia de quando em quando em diferentes partes da caverna. Susan não pôde deixar de
se assustar um pouco com aquela imobilidade.
Foram até Atlendor, sozinho no extremo mais distante da caverna, e contaram a ele o
que iam fazer.
— Será que os lios-alfar podem nos ajudar nisso? — perguntou Albanac. — É só por
uma noite, e no meio das montanhas. A doença da fumaça não pode atacá-los em tão
pouco tempo.
Atlendor se levantou. Seus olhos brilhavam.
— Não pode? Tem certeza? Mas não importa. Os lios-alfar partem daqui a três noites,
para longe de tudo isso. Já ajudamos a perseguir o Brollachan. Esta história de magia da
lua não é da nossa conta. Não temos nada a ver com isso. E você prometeu ir conosco,
Albanac, embora eu esteja vendo quebra de promessa no seu coração.
— Meu senhor Atlendor — disse Albanac —, está para ser dito que os lios-alfar não
lutarão contra um problema quando o encontrarem?
— Isso mesmo. Porque é um problema dos homens. E os homens acabam trazendo a
morte para o meu povo, quase sempre. Vamos embora daqui a três noites, Albanac, e você
vai conosco.
Estava virando as costas, como se o assunto estivesse encerrado, quando a voz de
Susan o deteve:
— Se você não nos ajudar a tirar Colin daquela casa — disse ela —, vamos logo ficar
sabendo até que ponto a magia da lua não tem nada a ver com vocês. E meu bracelete?
Esqueceu dele?
Num piscar de olhos, uma expressão de alarme quebrou a pose de Atlendor.
— Você também prometeu que ia nos ajudar — disse, frio.
— E acha mesmo que vou dar qualquer ajuda se Colin não estiver seguro?
— Promessa quebrada não vale nada.
— Pois então não vale... O que eu quero saber é... vocês vão ou não vão ajudar?
— Vocês terão cinqüenta cavaleiros e vou chefiá-los, mas só depois do pôr-do-sol —
disse Atlendor. — E se tudo isso não estiver resolvido na terceira noite, os cinqüenta e
Albanac ficam, e levo o resto do meu povo para Bannawg.
Albanac respondeu rapidamente:
— É muito nobre de sua parte, e satisfaz nossa necessidade.
— Não. É muito tolo, e foi conseguido pela força — disse Atlendor.
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• 89 •
O uivo de Ossar
u
s
an e Uthecar escolheram cavalos na manada dos lios-alfar, e Susan também
pegou uma espada e um escudo. Mas ficou sem armadura, porque entre as co tas de
malha que os elfos tinham nenhuma servia nela. Subiram com os cavalos até a caverna
do mago.
— Não tem um cavalo para você? — perguntou Susan.
— Não vou com vocês — disse Cadellin.
— Não vai? Mas você tem de ir!
— Pensei muito nisso — disse Cadellin. — Meu dever é ficar aqui, guardando os
Adormecidos. Só eu posso acordá-los. Se fosse morto, teria traído minha missão, e só em
Fundindélfia posso ter certeza de vida. E, Susan, embora a Morrigana esteja lutando, e
Colin esteja em poder dela, os Adormecidos estão à espera de alguém cuja sombra vai
matar a sede do mundo, e não posso faltar a eles.
— É verdade — disse Albanac. — Estamos próximos demais da ameaça para ver com
clareza. É melhor que a Morrigana triunfe agora, do que acontecer que os Adormecidos
nunca acordem.
— Mas, e a magia dela? — disse Susan. — A gente não entende disso.
— É um risco a correr — disse Cadellin. — Mas você não estará desamparada lá. E se
estivesse, Susan, não podia se queixar. Vocês procuraram isso porque quiseram. Eu fiz o
que pude para manter você a distância.
— Não adianta ficar conversando mais — disse Uthecar. — Não sobra muito tempo de
dia para fazermos o que tem de ser feito. A não ser que a gente queira virar um presente
para a Morrigana.
— Tem razão, vamos — disse Susan.
Foi uma despedida esquisita. Susan e Uthecar, embora admitissem a lógica das
palavras de Cadellin, tinham emoção demais em suas naturezas para tomarem uma
decisão daquelas. Quando estavam saindo de Fundindélfia, Albanac segurou a mão de
Cadellin, e só ele viu a expressão de dor do mago e a luz que havia por detrás dos olhos
dele.
Cavalgaram depressa, e com facilidade.
— A espada e o escudo são para os palugues — disse Uthecar. — Nem tente enfrentá-
los com uma lança de bodaque. Deixe isso conosco.
S
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— Mas a Caçada Selvagem não acabou com eles?
— Não ouso esperar tanto — disse Uthecar. — Alguns devem ter escapado, mas
quantos? Quando o sol baixar, vamos ficar sabendo.
Era meio-dia quando chegaram a Errwood. Aproximaram-se com menos cautela do
que antes, e Uthecar passou a cavalo por entre as ruínas, para decidir como poderiam se
preparar melhor para a noite.
— Não vai ser simples montar guarda na casa — disse, quando voltou. — Estes três
lados são planos e abertos, mas atrás é perigoso. O espaço entre as paredes e a colina é
pequeno, e em alguns lugares a pedreira foi cortada e muitas moitas cresceram na frente.
A Morrigana pode estar muito perto sem que a gente saiba. É por ali que temos de
começar.
Foi para os fundos da casa e começou a cortar as moitas de rododendro, para longe da
parede de pedra. Albanac fez o mesmo, partindo de um ponto mais adiante e os dois foram
trabalhando, um em direção ao outro, até limparem o morro, numa faixa de uns dez
metros de largura.
Susan empurrou os galhos e arbustos cortados, e os amon toou em pilhas apertadas, ao
longo da beirada do platô em que ficava a casa, entre os dois braços do riacho e por cima
deles.
Isso tudo levou quatro horas, e o resto da luz do dia foi dedicado a limpar o máximo
possível do mato que crescia nas margens íngremes debaixo do platô. Depois, o mato
cortado foi amontoado no meio do gramado.
Em nenhum momento aconteceu nada que lhes fizesse sentir que estavam em perigo.
Uma ou duas vezes, Susan teve a impressão de ter escutado os uivos de um cão, ao longe,
e Albanac achou que tinha ouvido também. Parava de trabalhar, escutava, e depois voltava
a cortar as moitas, sacudindo o corpo todo com os golpes, como se estivesse lutando pela
vida.
— É bom não ficar no vale até que os lios-alfar cheguem — disse Uthecar, no
crepúsculo. — Agora, tudo quanto é palugue e bodaque que ainda houver por lá vai sair de
baixo das pedras e de dentro dos buracos, e, se estivermos perto, não vamos ter muito
tempo para respirar. No descampado, o perigo deles não é tão grande.
— E a Morrigana? — disse Susan. — Achei que estávamos aqui para impedir que ela
se aproxime.
— A lua ainda não vai nascer. Até lá, ela não vai se mostrar muito — disse Uthecar.
Mas vamos acender o fogo, rapidamente, antes de sairmos. Tem bastante lenha para ficar
acesa a noite inteira, e nem bodaques nem palugues são muito chegados a uma fogueira.
Albanac tirou um isqueiro de pedra e um pavio de dentro da capa e acabaram
conseguindo umas faíscas, que acenderam nuns tufos de capim seco, e esses foram
transferidos com cuidado para gravetos e folhas secas, e depois para os montes de ar -
bustos. Havia mais de uma dúzia, e todos estavam acesos quando a noite caiu.
Então montaram a cavalo e galoparam pela estrada até o descampado, onde pararam,
protegidos de um ataque de surpresa.
— Quanto tempo os elfos vão levar para chegar até aqui? — perguntou Susan.
— Não devem demorar — disse Albanac. — Devem ter saído de Fundindélfia assim
que começou a escurecer. E os seus cavalos são tão ligeiros quanto Melynlas, quando é
preciso.
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Atravessaram o riacho, em direção a uma campina plana, onde os cavalos tinham
melhor pasto. O céu estava amarelo, as nuvens negras da noite se aproximavam, deixando
o vale totalmente imóvel. Mas essa sensação foi quebrada com um choque que fez os
cavalos recuarem, quando um cachorro uivou bem perto.
— Onde foi isso? — perguntou Albanac.
— Ali! — disse Uthecar. — No alto da colina!
E lá, junto às árvores mortas onde Uthecar tinha matado o bodaque, destacava-se a
forma de um cachorro preto. Era do tamanho de um bezerro, e tão indistinto contra as
árvores, sob aquela luz, que parecia de fumaça. Jogou a cabeça para trás, e se us uivos
ecoaram solitários. Depois, esgueirou-se pelo meio dos troncos, e não o viram mais.
Albanac ficou sentado, de cabeça baixa, sem dizer nada, por muito tempo depois que
a voz tinha sumido. Uthecar olhou para ele, mas não se mexeu. Dava para Susan se ntir o
peso que baixara sobre eles.
Albanac deu um suspiro fundo.
— O uivo de Ossar — disse.
Mas bem quando ele falou, ouviram um barulho surdo no ar, ficando cada vez mais
alto, e o horizonte foi quebrado por um movimento, como se um exército estivesse se
levantando do mato. E da direção do Tor Brilhante, vieram descendo os lios-alfar, a galope,
com suas espadas nuas nas mãos, as lâminas flamejantes.
Pararam, uma multidão agitada, depois da disparada pelo morro, mas não falaram
nada. Nem mesmo entre eles.
— Viemos — disse Atlendor a Albanac. — Onde está a Morrigana?
— Ainda não a vimos, mas deve estar bem perto. Saímos da casa neste minuto. Está
cercada de fogueiras, e o terreno está limpo, embora num dos lados seja muito arriscado
para nós. Não achamos nenhum bodaque nem palugue.
— Sinto o cheiro deles — disse Atlendor. — Não demoram a aparecer. Mas vamos
para a casa, e lá esperamos pelo que deve acontecer. Porque também sinto cheiro de
sangue.
Seguiram pelo caminho, em fileiras de três. Os cavalos marchavam, os escudos
estavam erguidos, prontos, pois a esta altura a última luz tinha sumido.
Era impossível que tantos se aproximassem da casa em silêncio. Mas ninguém falava
nem fazia o menor barulho que pudesse ser evitado. A luz das espadas dos elfos no ar
úmido formava um halo que se refletia friamente no aveludado das folhas de rododendro.
Quando chegaram à encruzilhada, Albanac ergueu a mão para deter a coluna. Algo
estava errado. Todos podiam sentir. Então os elfos passaram adiante, para fazer a curva a
galope. A casa estava na escuridão. As fogueiras que tinham deixado mi nutos antes
haviam sido apagadas. Os montes de lenha se erguiam em volta da casa, negros, e o ar
estava carregado, com um cheiro acre de coisa queimada.
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• 92 •
A marca da bruxa
s elfos não hesitaram. Cavalgaram enfileirados e num instante tinham feito um
cordão em volta da casa. Alternavam-se: um virado para dentro, outro para fora.
— Depressa! — gritou Uthecar para Albanac. — Precisamos de fogo!
Pulou do cavalo, agarrou um tufo de capim seco, mas o ar estava tão carregado de
umidade que o capim não acendia. Quanto mais se apressavam, mais se atrapalhavam e
mais sentiam o perigo. Mas quando finalmente conseguiram uma chama, a madeira logo se
acendeu de novo, porque ainda estava quente.
— O vento teria acendido mais, em vez de apagar — disse Albanac. — E a água teria
deixado muita fumaça. Esta lenha está seca. A Morrigana faz o que pode, antes que a lua
surja.
— E não é pouco — disse Uthecar. — Precisamos de luz, porque nem todos aqui têm
olho de anão. Mas só temos nossas mãos para nos defender.
— Estamos ganhando mais do que perdendo — disse Albanac. — Senão, por que a
Morrigana ia apagar o fogo? Até que a lua nasça, ela não pode fazer muito mais do que
nos encher de medo e pavor. Pelo que o pastor contou, eu diria que ela não está nem
conseguindo mudar de forma. Está só sentada em algum lugar, esperando a lua.
— É? E daí? — disse Atlendor, que cavalgara até junto deles. — Temos de mostrar
nossa força. Assim, pode ser que não precisemos medi-la contra a dela. Venha comigo —
disse a Susan.
E cavalgaram até o meio do gramado, onde ele parou e levantou o pulso da menina
sobre a cabeça dela.
Este era o primeiro momento em que Susan estava consciente de seu bracelete desde o
aparecimento dos Einheriar no Tor Brilhante, e ficou surpresa ao ver que não conseguia
mais ler a palavra de poder. A inscrição, que então se destacara com tanta clareza no
metal, agora voltara a ser tão ininteligível como sempre.
Um por um, os elfos vieram até Susan. Tocavam o bracele te com as flechas e espadas,
e voltavam ao anel de fogo. Quando o último elfo voltou a seu posto, o braço de Susan
doía até o osso, mas Atlendor ainda o erguia bem alto. Quando o círculo finalmente se
completou, ele falou numa voz que foi muito além da luz:
— Aqui está sua desgraça! Aqui está uma praga para sua carne! Venha, esta mos
prontos!
Bateu sua própria espada contra o bracelete, e deixou cair o braço de Susan. Mas
quando Atlendor fez isso, ouviu-se uma exclamação de um dos elfos que estavam embaixo
O
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da muralha da pedreira, e ele deslizou por cima do pescoço do cavalo até o c hão, com uma
lança entre os ombros.
— Uma vida para salvar um homem — disse Atlendor, calmamente.
Mas antes que qualquer um fizesse o menor movimento, uma voz falou, vinda da
colina atrás das ruínas:
— Estamos indo, tenha paciência, estamos indo...
— É a Morrigana! — disse Susan.
— Onde está ela, Pele-de-Chifre? — perguntou Atlendor.
— Atrás das moitas — disse Uthecar. — Não consigo ver.
— Não era melhor entrarmos, ficarmos dentro das paredes? — perguntou Susan —
Aqui somos alvos perfeitos e parados.
— E o que nos aconteceria se a lua nascesse sem que reparássemos? — disse Albanac.
— Ficaríamos esmagados pelas pedras. Mas se formos para a frente da casa, estaremos a
salvo das lanças, porque só na colina dos fundos é que eles podem chegar suficientemente
perto para atirar.
Os lios-alfar agora estavam todos virados para fora. Aqueles que ainda não tinham
vestido a cota de malha, como o que morrera, rapidamente as desenrolavam.
Susan, Uthecar e Albanac estavam abaixados no gramado, junto de onde tinha sido a
entrada principal da casa.
— É bom saber onde ela está — disse Uthecar. — Vocês acham que se encostarmos
nossas espadas no bracelete, ficamos à prova da magia dela?
— A espada não vai matar — disse Albanac —, mas a virtude do bracelete pode
corromper e irritar as feridas feitas pela espada, e acho que as flechas podem impedir que
ela tente entrar na casa mudando de forma.
— Se a casa aparecer com a lua — disse Uthecar —, Susan e eu vamos lá dentro
procurar Colin. Você toma conta da porta, aqui, Albanac.
Esperaram que as horas se passassem, até a lua nascer. Atlendor tomava conta das
fogueiras. Não houve nenhum movimento para apagá-las — até pelo contrário. Parecia que
elas queimavam mais depressa do que azevinho, e Atlendor estava tendo uma trabalheira
para manter o fogo alto. A pilha de lenha sobre o gramado foi diminuindo. A essa
velocidade, não ia durar muito tempo. De repente, Atlendor parou no meio de um gesto
que vinha repetindo, de jogar mais um galho nas chamas. A Morrigana quase tinha
vencido. Apressou-se em juntar algumas fogueiras, sacrificando uma sim, uma não,
pensando nas horas em que a noite ia durar. Mas, depois disso, tudo indicava que a
Morrigana se contentava em esperar. O fogo era normal, nenhum bodaque jogou lanças.
A lua nasceu muito tempo antes de poder ser vista, e de repente brilhou, alta, do meio
de uma nuvem, uma faixa feia de amarelo, surpreendendo os que estavam de vigília. E
embora a luz fosse fraca, sem nem se comparar à das fogueiras, no momento em que tocou
as ruínas, elas tremeram como se estivessem numa onda de calor, e se dissolveram para
cima, formando uma casa. As janelas lançavam para fora sua luminosidade morta sobre a
grama, criando poças de branco nas chamas.
— Agora! — gritou Uthecar.
Susan e ele se precipitaram contra o barranco, correndo, e arremessando todo o seu
peso sobre a porta. Ela se abriu facilmente, e eles caíram lá dentro, por cima da soleira.
Enquanto Susan caía, uma lança passou por cima de sua cabeça e atraves sou o vestíbulo.
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Uthecar chutou a porta, e a madeira repicou, sob um impacto feito por vários golpes
separados, dados ao mesmo tempo. Pontas de bronze a atravessavam, destacando -se como
dentes. Mas a porta estava fechada. E enquanto o eco dos golpes ainda estava ressoando,
Uthecar e Susan já subiam as escadas correndo.
— Ele não vai estar perto do chão — disse Uthecar. — E temos que andar depressa,
porque deve estar bem guardado, e a esta altura o fogo e nossa presença já são evidentes
para qualquer um.
Foram de quarto em quarto, escancarando as portas, mas todos estavam vazios. O
barulho da busca tomava conta da casa.
Chegaram ao fim de um patamar e Susan ia se jogar sobre uma porta, quando Uthecar
a deteve:
— Espere! Não estou gostando disto.
Apontou para um painel no alto da porta. Nele havia um desenho, em preto, com
umas letras estranhas agrupadas em volta.
— É uma marca de bruxa — disse Uthecar. — Vamos embora.
— Nada disso — disse Susan. — É a primeira coisa que a gente encontra. Vou olhar.
Experimentou a maçaneta com cuidado. A porta se abriu e Susan entrou num quarto
imenso. Estava sem mobília, e tão vazio quanto qualquer um dos outros que já tinham
visto, mas no chão havia um círculo desenhado, de uns seis metros de diâ metro. Tinha
uma margem dupla, em volta da qual estavam desenhados mais caracteres semelhantes
aos do painel. Dentro do círculo havia um losango e, nele, uma estrela de seis pontas perto
de cada ângulo. No centro do losango estava uma garra fa bojuda e de gargalo comprido,
com uma substância preta que se mexia como se estivesse fervendo, embora a rolha esti-
vesse lacrada com cera. E dentro da garrafa nadavam dois pon tos de luz vermelha que
mantinham sempre a mesma distância entre si.
Susan se aproximou do círculo e as fagulhas vermelhas pararam de se mexer e
grudaram no vidro. A menina sentiu um impulso de pegar a garrafa, mas quando chegou
ao círculo, o quarto todo se encheu de um zumbido, como se houvesse enxames de
abelhas, e as margens do círculo começaram a fumegar. Rapidamente, ela recuou, e ao
mesmo tempo Uthecar a agarrou pelo ombro e a empurrou para fora do quarto, batendo a
porta.
— O Brollachan! Ela o prendeu aí dentro!
— Aquilo? Então temos de impedir que ela entre aí, senão vai soltá -lo!
— Não me admira que ele tenha sumido — disse Uthecar.
— Ouça! — sussurrou Susan. — Vem vindo alguém! Havia uma porta que eles ainda
não tinham aberto, no final do patamar. Era menor que as outras. Por trás dela, apro-
ximavam-se passos.
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— Chegue para trás! — mandou Uthecar. — Deixe espaço para as espadas!
Afastou as pernas, e ficou em posição de saltar em cima de alguém ou de atacar. Os
passos que corriam se aproximaram, a porta se abriu e Uthecar deu um grito de alegria,
porque emoldurado pelo marco da porta estava Pelis, o Falso, de espada na mão,
paralisado pela surpresa.
Uthecar saltou, mas Pelis foi tão rápido quanto ele, e a espada só mordeu a porta, que
tinha sido batida na cara de Uthecar. Ele a abriu, e saiu correndo pela passagem a que ela
levava. Na outra extremidade, Pelis estava desaparecendo, esca da acima, aos pulos.
— Não me siga! — gritou Uthecar para Susan. — Fique de guarda aqui!
A escada não era comprida, e no alto havia uma única porta. Pelis estava pondo uma
chave na fechadura, mas não teve tempo de abrir antes que Uthecar o alcançasse.
Não era covarde. Ficou ali sem escudo, segurando a espada com ambas as mãos, de
costas para a porta, e não houve um golpe ou avanço de Uthecar que não fosse enfrentado
ou revidado. Mas a vantagem do escudo começou a fazer diferença e Uthecar foi
empurrando Pelis para longe da porta em direção à escada. Chegando lá, teve de ceder.
Susan ouvia o barulho do ferro batendo, e as respirações ofegantes, sons que o poço
da escada aumentava. Tentava convencer a si mesma de que era capaz de fazer uso da
espada.
Quando Uthecar e Pelis surgiram em seu campo de visão, ela se encostou na parede, e
ficou observando o jogo brilhante das lâminas, enquanto elas se batiam, se empurravam e
faiscavam em volta dos dois anões, com uma beleza cruel que tinha a exatidão de uma
dança.
— Para o quarto lá de cima! — exclamou Uthecar quando chegou no degrau de baixo.
Susan assentiu com a cabeça e começou a se esgueirar para passar pela luta. Uthecar
aumentou o ataque, mas, mesmo assim, Pelis conseguiu dar um corte maligno em direção a
Susan, quando ela correu para a escada. A menina ergueu o escudo e o golpe resvalou na
beirada dele, deixando uma marca comprida na pedra da parede. Mas não a tocou e ela
conseguiu passar.
Susan viu a chave na fechadura. Será que Uthecar queria que ela abrisse? Examinou a
madeira, mas não havia marcas nem inscrições visíveis. Então, virou a chave, e chutou a
porta, para que se abrisse.
Era mais uma cela do que um quarto. Sem janelas, vazia, sem nenhum conforto, como
o resto da casa. E de pé, encostado na parede à sua frente, estava Colin.
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• 96 •
O golpe doloroso
elis, o Falso, batia rijo no escudo de Uthecar, que já estava trincado em dois lugares.
Se conseguisse inutilizá-lo, tinha mais chance de conseguir deter aquela retirada
lenta pelo corredor abaixo. Como espadachim, não ficava nada a dever a Uthecar.
Mas aquela desvantagem fazia com que fosse quase impossível atacar e, embora tivesse
conseguido passar uma vez pela guarda de Uthecar, o ferimento causado foi leve. Ele
próprio estava perdendo forças, devido a um golpe que levara no ombro. A menina
sozinha não seria obstáculo, em matéria de armas, embora ele ainda desconfiasse do
bracelete dela. Mas tinha que acabar logo com aquele anão, ou a luta perderia seu
propósito.
Por isso, quando viu Susan aparecer atrás de Uthecar, com Colin apoiado em seu
braço, Pelis não hesitou, mas recuou para a escada que descia até o vestíbulo. Sabia que
não iria longe, se virasse as costas e saísse correndo.
Chegou ao alto da escada e, com habilidade, enfrentou Uthecar de tal maneira que
parecia estar perdendo as forças rapidamente. Assim, quando fraquejou e abriu a guarda,
Uthecar achou que chegara o momento e deu um golpe, jogando todo seu peso num
balanço do braço. Mas Pelis tirou o corpo fora, rolou por cima do corrimão e se jogou lá
embaixo no vestíbulo, enquanto Uthecar perdia o equilíbrio e caía pela escada.
Pelis saiu correndo. Mas não para a porta da frente, e sim para outra porta que saía do
vestíbulo. Passou e a fechou de novo, antes que Uthecar conseguisse s e recuperar. Susan
foi a primeira a chegar lá e quando abriu a porta viu Pelis por um instante, recortado
contra uma janela que ia do chão ao teto, e através da qual dava perfeitamente para ver o
clarão do fogo no gramado. Depois, o anão se agarrou na esquadria, balançou-se e
desapareceu no meio de uma cascata de vidro quebrado.
— Volte — chamou Uthecar. — Se os lios-alfar não o agarrarem agora, é porque a vida
dele é encantada. Vamos sair pela porta.
— Colin, você consegue correr?
— Consigo — disse Colin. — Eu estou bem. Só não comi nem bebi nada desde que
cheguei, e estava um pouco tonto, mas já passou.
— Você está machucado?
— Não. Eles só me prenderam ali dentro e me deixaram. Imagino que você já saiba
que é a Morrigana.
P
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— Sei, cruzamos com ela. Mas depois a gente conta. Susan, segure a mão de Colin e
quando eu abrir a porta, corra junto à parede para perto de Albanac. Ele não pode estar
longe. Cuidado com o descampado. Prontos?
Abriu a porta e, na mesma hora, agarrou o braço de Susan.
— Esperem!
— O que houve? — perguntou Colin.
Uthecar não respondeu, mas atravessou o vestíbulo e correu até o quarto de onde
Pelis escapara. Quando as crianças chegaram lá, viram que Uthecar estava parado junto à
janela quebrada, olhando a noite, que estava tão silenciosa e impene trável quanto as
cavernas de uma mina.
— A lua se escondeu — disse Uthecar.
— Mas a casa não fica aqui a não ser que a lua esteja bri lhando em cima dela — disse
Susan —, e ela ainda está aqui.
— É... mas onde é este "aqui"? — disse Uthecar. — Para o vale, esta casa está "aqui"
quando a lua velha brilha nela, e não nas outras ocasiões. Mas para a casa, o vale só está
"ali" sob a lua. Por isso, estou perguntando o que está "ali" agora, e não estou querendo
saber a resposta. Vamos esperar a lua voltar, e depois vamos sair por esta janela o mais
rápido que pudermos.
Enquanto esperavam, Uthecar fez várias perguntas a Colin, mas não havia muita coisa
a contar. A Morrigana não fizera nada com ele. Tinha sido levado direto para aquele
quarto e trancado lá dentro.
— Sua hora ia chegar — disse Uthecar. — Susan era o principal alvo e usaram você de
isca para trazê-la até aqui. E a trouxeram, mas não do jeito que queriam!
— Mas por que foi que Pelis não me trouxe logo, em vez de trazer Colin?— perguntou
ela.
— Ele não sabia quanto do poder guardado em você já tinha se revelado. Se fosse um
pouco maior, ele nem podia sonhar em trazê-la à força, pela espada.
— Por que ele está fazendo isso tudo? — perguntou Colin. — Nós nem hesitamos em
confiar nele, quando vimos que era um anão.
— Ah, e isso para vocês bastava! — exclamou Uthecar. — Por que é que estou aqui, se
não for porque gosto de confusão?
É da natureza dos anões procurar encrenca — e ele tem mais prazer em causá-la do que em
curá-la.
Mas antes que pudessem dizer qualquer coisa mais, a escuridão vibrou e apareceram
luzes difusas, que se condensaram em fogueiras. Com a luz, vieram barulhos — patadas de
cavalos, choques de armas.
Uthecar pôs o escudo à sua frente e pulou pela janela. As crianças o seguiram e os três
caíram juntos num caminho que havia entre a casa e o gramado. Uthecar ajoelhou -se atrás
do escudo, para avaliar a situação.
Os elfos mantinham seu círculo, enfrentando os gatos e os goblins. Se algum conseguia
atravessar o círculo, não era perseguido, mas abatido com flechas. E pelo número de
corpos no chão, a luta já durava bastante tempo.
Os elfos estavam em inferioridade numérica, pelo menos, de dois para um. Havia
gatos por toda parte, um tormento para os cavalos e morte certa para qualquer elfo que
fosse derrubado.
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Apesar de sua opinião sobre os lios-alfar, Susan admirava a coragem deles. Eram
rápidos como falcões, porém calmos em sua velocidade, e nem gritavam nem berravam.
Deviam ter olhos na nuca, pensou Susan.
— Não estou vendo Albanac — disse Uthecar. — Vamos procurá-lo.
Correram até o canto da casa e encontraram Albanac guardando a porta.
— Como estão as coisas? — perguntou Uthecar.
— Eles atacaram com a lua, mas estamos resistindo. E como foi com vocês?
— Colin está aqui, e não está ferido — disse Uthecar. —
E o Brollachan está lá dentro... então, temos de mantê-los aqui fora.
— O Brollachan?
— É... fechado num quarto de magia negra.
— Quando a gente tiver tempo para pensar, você me conta. Agora, mal dá para
trabalhar tentando ficar vivo.
Mas embora Albanac não tivesse exagerado o perigo, a luta estava amainando. Os
palugues tinham pouca determinação. E os bodaques, percebendo que tinham perdido o
ímpeto do ataque, estavam poupando vidas. Acabaram se ret irando, na esperança de que
os lios-alfar os perseguissem, mas nenhum elfo saiu de onde estava.
— Esta calma não vai durar muito — disse Albanac. — Colin, você precisa de armas, e
receio que vá ter de usá-las.
Atravessou o gramado, andou pelo meio das fogueiras e, quando voltou, trazia um
escudo e uma espada idênticos aos que Susan estava usando.
Colin prendeu o escudo no braço e testou o peso da espada.
— Lembrem-se — disse Uthecar —, são para os gatos, os palugues. Não se metam a
lutar com os bodaques.
— Seria muito melhor se tivéssemos armas de fogo — disse Colin.
— Seria mesmo? — disse Uthecar. — É nisso que nos distinguimos dos homens. Eu
sei, você pode olhar para nós aqui e achar que estamos metidos num massacre. Mas
sabemos o preço de cada morte, porque olhamos nos olhos aqueles que estamos mandando
para a escuridão, e vemos o sangue em nossas mãos, e cada morte é sempre como se fosse
a primeira. Posso lhe garantir: nessa hora, a vida é verdadeira, e seu valor fica muito claro.
Mas matar a distância é matar sem saber, e essa é a destruição do homem. Você vai
descobrir nos arcos dos lios-alfar muita coisa que explica a natureza deles, que não foi
sempre como é agora.
O final das palavras de Uthecar se misturou a uma agitação que tinha começado na
curva do caminho e agora se espalhava por toda parte. Em vez de atacar por todos os lados
ao mesmo tempo, os bodaques e palugues tinham feito uma formação na estrada, e avançavam
em bloco. Conseguiram furar o círculo e já estavam quase chegando a casa antes que se
soubesse direito o que acontecia. Mas os elfos reagiram com rapidez e se fecharam
novamente, junto às paredes.
A luta agora era desesperada, já que os elfos não podiam manobrar. Mas defendiam
seu terreno, usando apenas as espadas. Os cavalos recuavam e escoiceavam.
Uthecar e Albanac guardavam a porta, as crianças ao lado. As instruções do anão,
para só lutarem com os palugues, não podiam ser seguidas, porque gatos e goblins
amontoavam-se diante deles, e teria sido fatal se tentassem discriminar.
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O pior momento para Colin e Susan foi quando o ataque estava chegando, a segundos
deles, e sabiam que iam ter de erguer a espada e depois abatê-las sobre seres vivos. Colin
lembrou de brincadeiras de lutas, anos antes. Mas a lâmina agora era como limo, a po nta
parecia orvalho. No entanto, quando viu os dentes e garras que avançavam contra ele e
mais ninguém, golpeou instintivamente, e a partir daí, o desejo de viver assu miu o
controle.
Os bodaques atacavam com suas lanças, e pulavam alto com seus pés de garras afiadas,
enquanto os palugues somavam sua maldade à luta.
Porém mais uma vez a paciência fria levou a melhor sobre a raiva e os bodaques
recuaram, os elfos foram avançando passo a passo com a retirada deles, e o círculo original
acabou se formando novamente.
Albanac ficou com as crianças junto a casa, e eles se sentaram no chão, exaustos. Mas
Uthecar ainda estava no calor da briga, e ia além dos elfos, até o limite da fogueira,
jogando fora o escudo cada vez que ficava pesado demais com as lanças q ue se enfiavam
nele, e pegando outro nos montinhos que coalhavam o gramado.
Parecia que finalmente ele tinha esfriado um pouco, a ponto de começar a voltar,
quando de repente deu um grito, olhando para a estrada:
— Então ainda está vivo, e bem longe da briga! Mas eu o vejo! E minha espada está
louca para fazer a festa em você!
— Volte! — gritou Albanac. — Se acha que consegue viver saindo deste círculo, é
porque perdeu a razão, carregada pelos fantasmas da montanha.
Mas Uthecar girava a espada sobre a cabeça, preparando-se para atacar.
— Corram, bodaque! Abram caminho! Porque quando eu saltar sobre vocês, por mais
numerosos que sejam, como saraivada de granizo ou folhas de capim, podem ter certeza
de que suas cabeças e crânios vão se juntar às estrelas do céu! E seus ossos, esmagados por
mim, vão virar pó e se espalhar pela terra!
E seguiu em frente, numa fúria incontrolável, passando pelas fogueiras , mergulhando
numa penumbra de gritos e golpes de lâminas.
Ficou enfurecido! — exclamou Albanac. — Quando o sangue dele esfriar, vai querer
estar bem longe dali, mas vai ser tarde demais...
O barulho agora parecia ainda maior do que quando a casa estava s itiada — uma
gritaria, um pandemônio terrível, de que não se destacava som algum. Albanac montou em
Melynlas, e cavalgou até a beirada do círculo.
— Uthecar!
— Que é?
A voz não estava nítida.
— Como vão as coisas?
— Tem... uma chuva... de lanças no lugar... onde eu estou... Não sei... mas acho que
vou ter de recuar...
— Vou te ajudar!
— Seu idiota! — respondeu o anão.
Mas Albanac foi num trote até junto da casa, deu meia-volta em Melynlas, e avançou a
pleno galope pela estrada. Uma fileira de bodaques estava ajoelhada no limite da escuridão,
mas Melynlas passou a toda sobre eles e, enquanto apoiavam o cabo das lanças no chão de
cascalho, saltou sobre suas cabeças pelo luar adentro, para onde as crianças não
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conseguiam ver, ofuscadas pelo clarão das fogueiras. Em seguida, só dava para ouvir os
barulhos.
E, depois, Melynlas veio crescendo e voltando da noite, espumando, com os cascos
vermelhos. Ao lado de Albanac, cavalgava Uthecar, ainda cortando o ar para todo lado.
Mas Albanac estava caído sobre a cabeça do cavalo, e uma espada com punho de ouro
estava pendurada no lado do seu corpo.
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• 101 •
Os filhos de Dann
elynlas parou e Uthecar pulou no chão, ajudando Albanac a descer da sela. O
cavaleiro despencou nos braços do anão, fazendo-o perder o equilíbrio. Mas
Atlendor acudiu do outro lado e os dois acabaram levando o ferido a um ponto
mais protegido, no platô abaixo do gramado. Com muito cuidado, Uthecar retirou a
espada do ferimento. Albanac abriu os olhos, azuis e claros.
— Eu tinha a esperança de que não fosse tão cedo, esta noite — murmurou.
— Descanse até a batalha acabar — disse Uthecar. — Então você vai estar em
segurança.
— Eu estou em segurança... aqui... em qualquer lugar... O uivo de Ossar... não se pode
fazer nada quando ele chama.
Um grupo de elfos apeou, e fez uma maca com as espadas, levantando Albanac.
— Nós tomamos conta dele — disse Atlendor, e o levaram a um lugar abrigado, entre
duas paredes altas da casa.
Colin e Susan queriam segui-lo, mas Uthecar meneou a cabeça.
— Ele estará melhor em companhia deles. Têm prática dessas coisas... E nós somos
necessários aqui.
Enquanto falava, tinha se ouvido uma gargalhada, vinda das moitas do lado de fora
do círculo, e completada por gritos e vaias. E quando Uthecar mostrou que ouvira, a risada
se transformou em palavras de zombaria:
— Para onde foi aquela valentia toda? Bem que se diz que nenhuma espada é tão fiel a
seu dono quanto as esporas... Hornskin, seu Pele-de-Chifre, não quer vir me trazer minha
espada?
Era assustador ver o ódio que essa voz despertara em Uthecar. Saiu correndo até o
meio do gramado, e espetou a espada dourada no chão.
— Venha agora, com seus bodaques, Pelis, o Falso! Venha pegar sua espada — gritou. —
A passagem está livre. Mas se quando você for embora eu ainda estiver vivo, os arcos dos
lios-alfar vão cantar para você. E se eu estiver morto, então ninguém atrapalha sua ida. Aqui
está sua espada. Pegue!
Houve um minuto de silêncio. Mas depois se ouviu um barulho de passos pelo
caminho, e uma figura preta e dourada surgiu sob a luz, passando entre dois dos lios-alfar,
que olharam mas não ergueram suas armas. Trazia um escudo e andava com passos firmes
pelo gramado.
M
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Pelis, o Falso, pegou a espada, arrancou-a do chão e encarou Uthecar sem dizer uma
palavra. Uthecar também não disse nada e os dois ficaram cara a cara, como dois touros ou
dois veados quando vão brigar. O ar tremia em volta.
Uthecar estava num frenesi para atacar, porque sentia a dor da culpa por Albanac ter
sido ferido e estava louco de raiva. No começo, levou vantagem. Mas estava lutando mais
com o coração do que com a cabeça, enquanto Pelis se controlava e não desperdiçava suas
forças.
Não se passou muito tempo até que a paixão deixasse Uthecar e a exaustão se
instalasse. Suas armas pesavam, seus músculos doíam com cãibras, e Pelis, o Falso,
continuava a rebater cada um de seus golpes. Não apenas isso, mas passou a comandar os
movimentos das lâminas, e era o escudo de Uthecar que fazia barulho. Começou a recuar
pelo gramado, sentindo que sua vida se despedia, e então Pelis furou sua guarda e enfiou
a espada no ombro dele, acima das costelas.
A dor limpou a mente de Uthecar de qualquer cansaço. Viu que se não aproveitasse
aquele instante, não haveria outro. Jogou o escudo longe e deu um pulo no ar, retorcendo-
se como um salmão, por cima de Pelis, caindo sobre o braço dele. A espada se cravou em
Pelis até o punho e os dois anões caíram juntos — um desmaiado e o outro, morto.
Colin e Susan tinham ficado olhando desde a beira do gramado e correram juntos,
pegaram Uthecar e o carregaram de novo para junto da parede. Colin rasgava tiras da
túnica de Uthecar para fazer ataduras e Susan limpava o ferimento da me lhor maneira que
podia.
— Consegui matar? — perguntou Uthecar.
— Conseguiu — disse Colin.
— O incrível é eu não estar também ali, caído no chão — disse Uthecar. — Era o que
eu merecia, com tanta fúria. Você se machucou?
— Só uns arranhões — disse Susan.
— E Albanac?
— Não sei.
— Vá ver como ele está. Mas tome cuidado.
Colin e Susan foram seguindo pelo lado da casa, para o canto onde os elfos estavam
com Albanac. Mas não tinham ido muito longe quando ouviram um som que deixou seus
pés pregados no chão — o uivo de um cão, muito perto da casa, na frente deles. As notas
subiram e desceram numa tristeza que varreu a mente das crianças com imagens de
paisagens isoladas de pedra, e montanhas vermelhas, e buracos cheios de água e pouca
luz, e chuva caindo em véus sobre os picos, e muito além, na distância, um brilho frio no
mar. E, nessa distância, a voz sumiu como um eco, e Atlendor veio em direção às crianças,
saindo das sombras da casa.
— Albanac não está aqui.
— Não está aqui? — repetiu Colin. — Mas estava muito ferido. Para onde foi?
— Foi cuidar do ferimento. Depois volta.
— E por que não falou conosco? — perguntou Susan.
— Não houve tempo, ele foi chamado. É sempre assim com os Filhos de Danu, já que
faz parte do destino deles nunca chegar ao fim do que realizam. Ajudam, mas não podem
salvar.
— Quando é que ele volta? — perguntou Colin.
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— Os Filhos de Danu raramente demoram — disse Atlendor.
— E nós já vamos. Cumpri o que prometi e mantive minha palavra. Agora, vamos
embora.
— Mas não podemos ir! — disse Susan. — E a Morrigana? E o Brollachan lá dentro? Se
ela o soltar, não se sabe o que pode acontecer...
— O que sei é que foi uma promessa muito cara — disse Atlendor.
Olhou para Colin e acrescentou:
— Para salvarmos uma vida pagamos com trinta. Estamos indo embora com nossos
cavalos. Aprontem-se.
Atlendor virou-se e caminhou para o canto, para onde os elfos tinham carregado
Albanac ferido.
— Como é que ele pode deixar tudo assim desse jeito? — exclamou Susan. — Não é
seguro. E não podemos deixar a Morrigana entrar de novo na casa. Será que ele não
entende?
— Mas ele tem razão — disse Colin. — Não se pode pedir que se disponha a perder
ainda mais, por uma coisa que nem é importante para ele.
— Não é? — perguntou Susan.
Quando se aproximaram de Uthecar, viram que Melynlas montava guarda junto a ele.
Vendo as crianças, o cavalo ficou de orelha em pé, e chegou o focinho ao ombro de Colin.
— Como é que ele está? — perguntou Uthecar.
— Não o vimos — disse Colin. — Dizem que se foi. E os elfos também estão indo.
— Ele sabia que seria esta noite — disse Uthecar. — Não tínhamos como prendê-lo
aqui.
— Mas como é que pode ir? — perguntou Colin. — E por que deixou o cavalo para
trás?
— Não precisa mais dele — explicou Uthecar. — Vocês podem ter achado que era um
homem estranho, mas Albanac era muito mais do que isso. Era um dos Filhos de Danu,
que vieram para esta terra quando tudo era verde. Era o melhor de todos os homens.
— Ele está morto? — perguntou Colin.
— Não como vocês imaginam — disse Uthecar. — Digamos que neste mundo mudou
sua própria vida. Os Filhos de Danu nunca estão longe de nós, e todos os seus dias são
dedicados a nossa causa, mas há uma maldição sobre eles: é que nunca verão seu trabalho
completo, pois isso oxidaria o ouro de sua natureza e transformaria seu poder num
objetivo egoísta. Quando se aproxima a hora da partida, o Mastim de Conaire lhes aparece,
como vocês ouviram e viram. O uivo de Ossar paira sobre suas vidas como uma sombra.
— Não posso acreditar — disse Colin. — Faz tudo parecer tão sem sentido...
— Ele não esperava mais do que isso — disse Uthecar — e nele não havia lugar para a
tristeza. Porém ele voltará. Mas... e os elfos? Vocês disseram que eles também estão indo?
— Estão fugindo — disse Susan.
— Então minha opinião a respeito deles melhora — disse Uthecar.
— Você? — exclamou ela. — O que está acontecendo com todo mundo? Você não pode
deixar a Morrigana vencer.
— E eu lá posso detê-la? — disse Uthecar. — Ouça. Recuperamos Colin, e não
podemos fazer mais nada por aqui, já que o Brollachan está preso num círculo de magia.
Matamos muitos bodaques e liquidamos os palugues. Quando eu estava lá lutando, vi que só
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restavam uns doze. E quando eles se acabarem, a Morrigana vai ter de vir em pessoa — e
aí não é hora para eu ficar por aqui. Eu tenho muito medo dela, e não me en vergonho
disso. E também, do jeito que estou ferido, não estou especialmente adorand o a idéia de
enfrentar um bodaque, nem a morte, nem suas aflições medonhas, nem o choque daquelas
lanças azuis.
— Pois então, fico sozinha.
— Não fica, não — disse Uthecar, e começou a caminhar pelo gramado, em direção ao
ponto onde Pelis tinha caído.
Voltou com a espada dele.
Os lios-alfar estavam desmanchando o círculo e formando uma coluna, com os feridos
no meio, amarrados às selas.
— Como é que eles souberam que estavam indo embora? — perguntou Colin. —
Nunca ouvi nenhum deles falar, com exceção de Atlendor.
— Faz parte da esquisitice deles — disse Uthecar. — Eles se falam com o pensamento.
E pelas caras que eu já vi, são capazes de ouvir coisas que não passaram por meus lábios.
Relutante, Susan montou. Colin cavalgava Melynlas, que parecia tê -lo adotado. E se
reuniram à coluna dos elfos, com Uthecar.
As fogueiras estavam se apagando, por falta de atenção. O chão estava coalhado de
corpos e armas largadas. A casa continuava à espera. Susan olhou em volta, contemplando
o cenário de seu fracasso — era assim que estava encarando a situação. No começo, achara
que Colin era seu único objetivo. Fizera coisas impossíveis, por amor a ele. Mas agora
sentia que tudo isso fora apenas o primeiro passo de sua missão, que estava dei xando
interrompida.
Os lios-alfar saíram a galope pela estrada e, se não fosse por suas espadas e pela vista
aguda de Uthecar, não teriam conseguido manter a velocidade, e as lanças que choveram
sobre eles teriam atingido muitos mais. Mesmo assim, três dos cava los tinham perdido
seus cavaleiros quando finalmente chegaram ao descampado.
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• 20 •
A última cavalgada
velocidade dos lios-alfar em direção ao Tor Brilhante lembrava um vento de
inverno, já que a lua brilhava sem obstáculos e eles estavam acostumados com sua
luz. Mas quando mal estavam começando a subir a encosta da colina, a sensação
de que aquilo estava errado começou a pesar demais para Susan.
— Esperem! — gritou.
Os elfos se detiveram e todos os olhares se dirigiram a ela.
— Temos de voltar. Nunca estaremos seguros desta maneira. A Morrigana precisa ser
mantida fora daquela casa.
— Não temos obrigação nenhuma — disse Atlendor. — Venha.
— Uthecar, você vai comigo?
— A única coisa que sei fazer é lutar com a espada, e isso agora me está negado —
disse Uthecar. — E tenho mais medo da Morrigana do que da desonra. Vamos embora.
— Colin?
— O que é que há, Sue? Você sabe perfeitamente que não podemos fazer mais nada.
— Está bem — disse ela, dando meia-volta e avançando a toda em direção a Errwood.
— Susan! — gritou Uthecar.
— Ela vai voltar quando perceber que não a estamos seguindo — disse Colin.
Mas Susan nem olhou para trás. Foi até a colina redonda que havia no alto do vale e,
em vez de seguir pela estrada, do lado direito da colina, resolveu se aproximar da casa por
uma picada estreita que ia pela esquerda.
— Ela está indo mesmo! — disse Colin, e esporeou Melynlas para ir atrás dela.
Mas Melynlas não saiu do lugar. Quanto mais Colin tentava, mais o animal o
ignorava. Não era a teimosia natural de um cavalo. Ele estava tran qüilo e dócil. Mas não
saía do lugar.
Colin apeou de Melynlas e desatou a correr. Xingando, Uthecar tentava segui -lo, mas
Melynlas deu um coice em seu cavalo e lhe mostrou os dentes. O animal não ousou se
mexer. Uthecar sabia que estava fraco demais para confiar nas próprias pernas. Os lios-alfar
continuaram imóveis.
A picada era cheia de mato e escorregadia. Bem lá embaixo, o riacho corria sobre
pedras. O rosto de Susan era chicoteado pelos galhos, mas isso não era nada, em
comparação com o frio que tomava conta de seu pulso.
A picada terminou. Ela estava diante da casa. E bem ali, na estrada, informe em suas
túnicas, cercada por bodaques e palugues, estava a Morrigana.
A
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Susan puxou as rédeas e, ao vê-la, os bodaques e palugues berraram, pois, para eles, ela
estava transformada. Seus corações tremeram e eles fugiram. Mas o encanto do bracelete
não estava agindo sobre a Morrigana. E ela levantou a mão.
Então Susan sentiu todo o peso do perigo que corria, quando olhou no fundo daqueles
olhos luminosos como os de uma coruja, e viu que lá dentro a escuridão girava como um
redemoinho chamando para as profundezas. A lua transmitia tamanho poder à Morrigana
que quando ela levantou a mão até mesmo o barulho do riacho tremeu, e o ar amoleceu de
medo.
— Vermias! Eslevor! Frangam! Beldor!
Alguma coisa parecida com um relâmpago negro saiu da mão da Morrigana,
dardejando em direção a Susan, que levantou o braço para se proteger. Ao fazer isso, viu a
palavra de poder se destacando da Marca. E embora não fosse a mesma palavra que tinha
visto no Tor Brilhante, a menina pronunciou-a bem alto, com toda sua vontade:
— HURANDOS!
E da Marca jorrou uma lança de chama, que encontrou o raio negro da Morrigana a
meio-caminho do alvo, e as duas forças se entrelaçaram, estalando e se retorcendo como
duas serpentes.
— Salibat! Reterrem! — gritou a Morrigana.
O raio negro se encheu de ondas, engrossou, e devagar foi empurrando o branco de
volta ao bracelete.
Susan ergueu-se sobre os estribos e, sem que olhasse o bracelete, as palavras
começaram a jorrar de seus lábios. Palavras que nunca tinha sabido ou ouvido:
— . . . per sedem Baldery et per gratiam tuam habuisti...
A luz branca cresceu de novo, mas a Morrigana respondeu. Susan sentiu que estava
enfraquecendo. O negrume a estava envolvendo como se fosse um tentáculo.
— Não devia ser eu. Por que eu?
E então o poder da Morrigana a alcançou. Susan caiu do cavalo e mergulhou no nada.
Quando Susan abriu os olhos, viu a Morrigana de pé, de costas para ela, de frente
para a casa. A Morrigana tinha confiado demais em seu poder, desprezado demais o
bracelete de Susan, e o que deveria ter destruído ficou apenas entorpecido. Mas Susan
achou que não podia fazer mais nada. Tentara e falhara. Agora era seu dever avisar
Cadellin ou Angharad Mão-de-Ouro. Eles que cuidassem da situação.
— Besticitium consolatio veni ad me vertat Creon, Creon, Creon, cantor aludem omnipotentis et non
commentur...
A Morrigana cantava sem tom, com os braços estendidos.
— ... principiem da montem et inimicos o prostantis vobis...
Susan foi se arrastando até o cavalo, que estava parado, como se estivesse encantado,
e o alcançou no momento em que a voz da Morrigana chegava ao clímax:
— ... passium sincisibus. Fiat! Fiat! Fiat!
Houve um barulho de trovão na casa, e começou a escorrer uma fumaça de uma das
janelas do segundo andar. Depois, toda a parede da frente explodiu, e uma nuvem se
espalhou, derramando-se da casa. E nessa nuvem havia duas poças vermelhas.
Susan não esperou mais nada. Pulou de qualquer jeito sobre o cavalo, e ele ganhou
vida sob seu corpo. Enquanto se afastavam a toda velocidade, ela ouviu a Morrigana
gritar, mas logo virou a curva e estava na picada que seguia por cima do riacho.
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O Brollachan crescia sobre Errwood, forte por seu próprio poder, e pelo poder da lua,
e mais o poder de sua guardiã. E via o cavalo correndo no vale, e os elfos no alto da colina,
e se preparou para cobrar pelos longos séculos em que tinha ficado preso nas mãos deles.
Susan sentiu o céu ficar negro em cima dela. Olhou para o alto e só via a noite.
Levantou a Marca de Fohla, mas a prata não brilhava e as palavras não apareciam. A
colina tinha desaparecido. Não conseguia ver nada. O ar batia no ritmo de seu sangue e a
noite nadava para dentro de seu cérebro. O mundo todo ia sumindo. E então Susan ouviu
uma voz, urgente, a voz de Angharad Mão-de-Ouro, gritando:
— A cornetinha com a guirlanda de ouro no aro! Todo o resto está perdido!
Susan foi rasgando tudo, em busca da faixa em sua cintura, com dedos que resistiam à
sua vontade. E levou a cometa aos lábios.
Sua nota era música, como o vento nas cavernas de gelo. Da distância, lá longe nesse
gelo, vinha um tropel de cascos e vozes gritando: Vamos cavalgar! Vamos cavalgar! E a
escuridão se derreteu. Junto a Susan, surgiu um homem em cuja cabeça crescia uma
imponente galhada de veado-rei, e ele vinha correndo com a mão apoiada no pescoço do
cavalo. E em volta, por toda parte, apareciam capas infladas ao vento, vermelhas, azuis,
brancas e pretas, e cristas que voavam no ar. E ela foi varrida por elas, levada como se
fosse palha.
E na distância, como se andassem sobre um campo, vieram a seu encontro nove
mulheres, com falcões pousados nos punhos e galgos que as acompanhavam, em coleiras.
A alegria desse momento carregou Susan para longe, limpando de sua cabeça todos os
pensamentos, exceto a lembrança de Celemon, filha de Cei, que o gosto amargo da Mothan
lhe tinha arrancado.
Esporeou o cavalo para que corresse mais e encontrasse aquela celebração de boas -
vindas, que cantava pelo meio da noite e libertava os cavaleiros de seu cativeiro nos
montes escuros... Mas a voz de Angharad falou de novo:
— Deixem-na! Ela ainda está com os poderes muito verdes! Ainda não está pronta!
Então o Caçador soltou a mão de Susan e foi se afastando lenta mente, enquanto ela
prosseguia sua cavalgada. E foi como se a menina estivesse despertando de um sonho que
desejara por muito tempo, e acordasse numa manhã fria, num mundo vazio demais para se
suportar. Mais do que viver, o que ela queria era participar do triunfo que estava por toda
parte, à sua volta.
Os Einheriar empalideceram, foram sumindo, suas formas ficaram rarefeitas, virando
ar e luz, e subiram para os céus.
— Celemon!
Mas não adiantou. Susan ficou para trás, foi deixada, espuma sobre a colina. E uma
voz chegou até seus ouvidos, vinda dos distantes contornos das estrelas:
— Ainda não está pronta! Vai estar! Mas ainda não!
E morreu o fogo dentro de Susan, e estava mais uma vez sozinha no descampado, o
vento da noite em seu rosto, alegria e angústia misturadas em seu coração.
•••
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Colin estava chegando à colina quando viu o Brollachan crescer por cima das árvores
no mesmo momento em que Susan surgia, vindo do vale. E ficou olhando, impotente, sem
poder fazer nada.
O Brollachan fazia a colina parecer pequenina e se aproximava de Susan a tamanha
velocidade que parecia que ela estava galopando para trás. A nuvem se ergueu e formou
uma ponta como se fosse a raiz de um redemoinho, que girou bem baixo sobre a cabeça de
Susan e, então, golpeou. A massa toda do Brollachan se abateu sobre aquele único ponto.
Os ouvidos de Colin ficaram momentaneamente surdos com uma explosão que o jogou no
chão. A parte da colina onde estava Susan deslizou para dentro d'água e o Brollachan ficou
pairando por cima.
Mas à medida que sua mente foi clareando, Colin ouviu outro som, tão bonito que
nunca mais o esqueceu: o som de uma corneta, belo como o luar na neve. Pelo meio do
Brollachan correram relâmpagos de prata. E ouviu barulho de cascos galo pando, e vozes
chamando:
— Vamos cavalgar! A galope! A galope!
E a nuvem inteira virou prata, brilhando tanto que ele não podia olhar.
O som do galope se aproximava e a terra tremia. Colin abriu os olhos. Agora a nuvem
corria sobre o solo e se partia em glórias separadas, que murmuravam e se aguçavam em
brilhos de estrelas. E nelas havia cavaleiros, e na frente deles havia um que era pura
majestade, coroado com uma galhada magnífica, imponente como o sol.
Mas quando estavam cruzando o vale, um dos cavaleiros ficou para trás. Colin viu
que era Susan. Ela foi perdendo terreno, embora continuasse com a mesma velocidade. A
luz que a formava foi se apagando, e em seu lugar ficou apenas um vulto menor e sólido,
parado, abandonado, acordando na claridade da cavalgada.
Os cavaleiros subiram pela encosta da colina e continuaram se elevando, pelo ar
acima, cada vez mais vastos no céu, e a seu encontro vieram nove mulheres de cabelos de
vento. E juntos eles se afastaram, cavalgando pela noite, sobre as ondas, além das ilhas, e a
Velha Magia estava livre para sempre. E a lua era nova.
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