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Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes
A Ironia da Loucura em Teixeira de Pascoaes Lia Isabel Gomes Ribeiro de Bettencourt Gesta
M 2019
Lia Isabel Gomes Ribeiro de Bettencourt Gesta
A Ironia da Loucura em Teixeira de Pascoaes
Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes,
orientada pela Professora Doutora Maria Luísa Malato da Rosa Borralho Ferreira da Cunha
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Novembro de 2019
A Ironia da Loucura em Teixeira de Pascoaes
Lia Isabel Gomes Ribeiro de Bettencourt Gesta
Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes
orientada pela Professora Doutora Maria Luísa Malato da Rosa Borralho Ferreira da Cunha
Membros do Júri
Professora Doutora Rosa Maria Martelo Fernandes Pereira
Faculdade de Letras - Universidade do Porto.
Professora Doutora Maria Celeste Lopes Natário Alves dos Santos
Faculdade de Letras - Universidade do Porto
Professora Doutora Maria Luísa Malato da Rosa Borralho Ferreira da Cunha
Faculdade de Letras - Universidade do Porto
Classificação obtida: 16 valores
Não é a vida uma existência solitária nem definitiva.
Para esta dissertação, contei com os ralhetes dos meus pais, os bordados da minha avó, a
casa abandonada da Aninhas, a ansiedade das esperas atrás de um palco, a frustração de
um casamento, as palmas de gente anónima, a conversa com a Professora que mudou o
rumo da minha forma de pensar, o colo da mamã e das irmãs e o renascimento, dentro do
nascimento, de uma filha. Não foi escrita a quatro mãos, mas esta tese é, sem dúvida, uma
convergência com uma certa direção. Para onde? Sabê-lo-ei no último suspiro.
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Sumário
Declaração de honra 7
Agradecimentos 8
Resumo 9
Abstract 10
1. Loucura e Ironia 11
2. Que faces da Ironia? 18
Capítulo 1 - LOUCURA E INTERROGAÇÃO 22
Algumas reflexões biográficas 22
Capítulo 2. – LOUCURA E RECONHECIMENTO 45
A voz da razão 45
Capítulo 3. – LOUCURA E APARÊNCIA 75
Da Loucura física à metafísica 75
Capítulo 4. - LOUCURA E AUSÊNCIA 92
A ilusão da linguagem 92
Conclusão (ou Considerações finais) 111
Referências bibliográficas 118
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Declaração de honra
Declaro que a presente dissertação A Ironia da Loucura em Teixeira de Pascoaes é de
minha autoria e não foi utilizado previamente noutro curso ou unidade curricular, desta ou
de outra instituição. As referências a outros autores (afirmações, ideias, pensamentos)
respeitam escrupulosamente as regras da atribuição, e encontram-se devidamente indicadas
no texto e nas referências bibliográficas, de acordo com as normas de referenciação. Tenho
consciência de que a prática de plágio e auto-plágio constitui um ilícito académico.
Porto, 30 de Setembro 2019
Lia Isabel Gomes Ribeiro de Bettencourt Gesta
8
Agradecimentos
A quem me deu força e estímulo quando deixei de acreditar: a minha mãe, as
minhas irmãs, a minha filha.
Agradeço à minha Professora, meu eterno farol, porque a sua luz me impediu de ir
contra as rochas.
Agradeço a Luz de todas elas.
9
Resumo
Este estudo pretende refletir propedeuticamente sobre a complexidade do conceito
de Loucura na obra de Teixeira de Pascoaes. Na sua obra, a loucura é, fundamentalmente, a
nosso ver, uma ironia de valor retórico, porque finge ser o que não é: uma voz menor.
Incidiremos sobre a variabilidade da definição da “Loucura”, e que tipos específicos de
Loucura residem na sua poética, na sua obra literária, mas também não-literária. Desde logo
nas suas memórias, a loucura parece ocupar lugar de relevo: os loucos que povoam a sua
infância são seus mestres, ensinam a ver, mas também a criar. Mas a Loucura é também
personagem: determina um corpo que se move, e se fecha, de forma distinta dos demais. A
Morte surge como um tema indissociável da loucura: nos poemas alegóricos, a descrição do
amor que há entre a Loucura e a Morte vem adensar o pensamento de que o mundo
necessita de uma visão sensível – e não apenas intelectual, mecanicista ou científica – para
ser compreendido. Contextualizando a obra de Teixeira de Pascoaes, interessar-nos-emos
desde logo pela sua sustentação irónica, para perceber até que ponto uma poética/retórica
da loucura e morte é usada para sustentar um processo de transformação da arte em que a
razão não se opõe à emoção, o físico se concilia com o metafísico, a imitação com a criação
e o ético com o estético.
Palavras-chave: Teixeira de Pascoaes; Loucura; Ironia; Amor; Saudosismo;
10
Abstract
This study intends to reflect in its roots the complexity of the concept of Madness
in the work of Teixeira de Pascoaes. Madness is fundamentally, in our view, an irony of
rhetorical value, because it pretends to be what it is not: a small voice. We will focus on the
variability of the definition of Madness in Pascoaes, specifying several types of Madness
we can find in his poetics, in his literary, but also non-literary work. From the outset in his
memories, madness seems to occupy a prominent place: the madmen who populate his
childhood are his masters, they teach him to see, but also to create. Madness is also
character: it determines a body to move and close differently from others. Death emerges as
an inseparable theme of madness: in allegorical poems, the description of the love that
exists between Madness and Death thickens the thought that the world needs a sensitive –
and not just an intellectual, mechanistic or scientific – vision. We will be interested in the
ironic support of Pascoaes’ work, to see to what extent a poetic / rhetoric of madness and
death is a process of art transformation in which reason is not opposed to emotion, where
the physical is reconciled with the metaphysical, the imitation with the creation, and the
ethical with the aesthetic.
Keywords: Teixeira de Pascoaes; Madness; Irony; Love; Nostalgia;
11
Introdução
A LOUCURA COMO IRONIA: UMA ESTRATÉGIA RETÓRICA
Este trabalho deseja refletir sobre a complexidade do conceito de loucura no
pensamento de Teixeira de Pascoaes. Com efeito, pensamos que a loucura é um
engodo na sua poesia e na sua prosa. Ou melhor, uma ironia: o tema é uma estratégia
para dizer que não é importante o que é mais importante. Diz-nos: “não ligues: são
palavras de um louco”, mas para que leiamos: “liga ao que te digo: são palavras de
sabedoria”.
1. Loucura e Ironia
Nesta relação entre a loucura e a ironia, parece-nos útil entrar no tema pela
mão de um filósofo do séc. XX de nome Vladimir Jankélévitch (1903-1985). Este
pensador distancia-se de Teixeira de Pascoaes pelo seu agnosticismo, no que toca ao
carácter religioso, porém aproxima-se dele ainda enquanto pensador místico, no
sentido em que pensa uma vivência entrançada do divino com o profano. Este tipo de
vivência metafísica, de caráter transcendental, gera um saber, um conhecimento do
mundo obtido em experiências humanas que não se é capaz de exprimir por sentidos
literais, de forma concreta e objetiva.
De certa forma, o valor inefável de certas experiências humanas (como a
descrição de um pôr-do-sol, a audição de uma obra musical ou a leitura de um poema),
pela impossibilidade de o definir ou predicar, obriga-nos a admitir como complexas
estas interpretações que vão muito para além da capacidade sensorial de cada recetor.
As sensações, ainda que julgadas básicas, provocam sentimentos complexos e pedem
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palavras ambíguas. Estas experiências humanas, que são de facto baseadas na
realidade, sugerem, apesar da sua simplicidade, um entendimento que está além das
funções referenciais da linguagem, não só por se dizerem muitas vezes indizíveis e
inexprimíveis, mas também por admitirem um sem número de interpretações
subjetivas, nunca se conseguindo alcançar a totalidade de cada experiência. Por vezes,
evocam um campo transcendental que se expressa como mistério, um sentido definido
pela indefinição.
“[…] o homem, ao escutar o inefável, não sabe o que fazer para se elevar à altura do que
saboreia. [...] Deve-se, portanto, perdoar o ouvinte do Andante Spianato caso ele não saiba como
agradecer nem se colocar à altura daquilo que saboreia. Deve-se perdoá-lo caso ele celebre de modo
desmedido aquilo que é incomensurável a toda a celebração: pois só balbuciando abordamos o
inefável.” (Jankélévitch, 1964: 125)
A relação com a “religiosidade” na aceção latina de “re-ligação”, dá-se numa
revisitada ligação entre o homem e o mistério, transcendente e inefável, expressa por
Jankélévitch pela expressão “je-ne-sais-quoi”. A experiência vivida – que nunca se
entende na sua completude (porque tal é impossível) – é lida como uma amostra do
transcendente, para o ser que é tocado por ela: por ela, é-lhe possível intuir o que está
para além do sensível, ainda que sem ver os limites no seu esplendor. No que o
transcendente, tem que ver com o inefável existencial, e Jankélévitch liga esta
incapacidade linguística à assunção de uma certa forma de ignorância:
“[…] eis o próprio mistério do nosso destino, o nosso destino é, portanto, literalmente um
néscio quo e um nescio-unde; esse destino duro e mole consiste, ao mesmo tempo, em alcançar algo
sem saber o que seja, em saber que se é antes de saber quem se é […].” (Jankélévitch, 1964: 60)
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Esta citação pode ser reduzida a um “o-que-eu-sei, sei-que-não-sou; o-que-
não-sou, tudo-isso-sei”. O conhecimento não seria nunca completo e só através da
religação com o divino poderíamos ter um ínfimo vislumbre do nosso saber relativo.
Sendo o nosso trabalho sobre as funções da loucura na obra de Teixeira de
Pascoaes, a utilidade de referir o pensamento de Jankélévitch pode não parecer clara.
E, no entanto, a loucura referida nos seus textos não se compreende sem esta noção
comum de “inefabilidade” da descrição do mundo, devendo ela ser nomeada aqui,
desde logo para relativizar a razão humana. Para Jankélévitch, é obrigação do ser
humano tornar o infinito uma realidade linguística. Para Pascoaes, é obrigação do
poeta tornar dizível esse infinito. Para ambos, o ato da palavra (filosófico ou poético)
tem uma dimensão religiosa, mas na medida em que transcende a realidade sem a
retirar do contexto do discurso possível, parecendo de certo modo assumir a inversão
do processo de comunicação da linguagem. Não é a linguagem do inefável que
preenche a linguagem do ser humano. Mas a linguagem do ser humano que tem de
humanizar o inefável:
“O Homem está separado de Deus e unido. Todo o traço de separação é de união e vice-versa
– a ponte e o abismo. O homem e Deus! a razão e o absurdo! [...] Se Deus é um absurdo, o nosso maior
desejo é humanizá-lo, metê-lo dentro da nossa pele, revesti-lo da nossa fantasia. E ei-lo uma pessoa
transcendente, ornada dos mais belos atributos”. (Pascoaes, 1993: 65)
O nosso poeta não só tenta humanizar Deus como vê na Natureza o mesmo
valor transcendental atribuído ao ser humano. Todas as coisas contêm em si o
Universo.
“O ser é uma síntese das coisas, onde elas se convertem em sensações, recebidas e estudadas
à luz da consciência. É qual espelho reproduzindo as imagens e fundindo-as numa só imagem
espiritual.” (Pascoaes, 1993: 9)
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Teixeira de Pascoaes defende que o complexo está sintetizado no simples,
que dentro do nada há tudo e que, ao atingir essa unidade, estamos também a atingir a
divindade: uma divindade que está patente na imperfeição humana e na dúvida
existencial, em termos que podemos aproximar dos de Jankélévitch, sobre as
experiências sensoriais, descritas curiosamente pelo mesmo sentido do paladar (“o
homem, ao escutar o inefável, não sabe o que fazer para se elevar à altura do que
saboreia”, cf. supra):
“Há frutos que transcendem o nosso gosto. E uma flor, com o seu sorriso de sol, é um
instantâneo divino. O divino quando nos aparece é num relâmpago. Mas não guardamos, em nós, esse
relâmpago, à maneira de S. Paulo. O divino é efémero.” (Pascoaes, 1993: 82)
Se, para Pascoaes, “o destino do homem é ser a consciência do Universo em
ascensão perpétua [...]” (1993: 10), a base das coisas é de substância poética e não
científica porque, segundo ele, a realidade não podia ser mensurada num plano
científico nem material. Pascoaes renega os cientistas, mas porque julgam adquirir a
infinitude do conhecimento do mundo através de medições quantitativas. Segue
apontando a sua incapacidade de interpretar cabalmente os fenómenos que se limitam
a uma perceção do mundo material. Chega a ridicularizar quem se recusa a uma
experiência direta com essa “realidade” de onde gotejaria a essência do mundo e das
coisas. Apenas o poeta adquiriria a sua inspiração em total sintonia com o cosmos (e
por isso aqui o “poeta” surge como um artista que pode utilizar o som, o silêncio ou a
palavra).
Tal não é certamente a posição de Jankélévitch, que tem em vista a discussão
do pensamento filosófico. Mas há, em Pascoaes, uma sensibilidade irónica que o une a
Vladimir Jankélévitch, porque em ambos é pela ironia que é estimulada a dúvida,
ainda que com relações de estímulo bem diversas.
Para Pascoaes, é a consciência que vai exigindo diferentes graus de criação.
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Os minerais, os vegetais, os animais, os seres humanos, são feitos da mesma matéria.
Mas ainda que a tenham em comum, são incapazes, ou capazes, de diferentes graus de
consciência. Também para Jankélévitch, é a consciência que obriga a pensar não só o
próprio absoluto, mas também as diferenças entre o ser humano e o Divino. O ser
humano e Deus tornam-se, por um lado, cúmplices na partilha da consciência, mas,
por outro, distintos na questão da imortalidade. Sendo simultaneamente “a ponte” e “o
abismo” (retomamos aqui as metáforas de Pascoaes), resta ao ser humano fazer-se, à
semelhança de Deus, criador e não somente criatura. É, pois, o ato de criar um fator
que justifica a ligação estreita entre as duas entidades. O ser humano é compreendido a
partir da sua continuidade e descontinuidade com o Criador.
Em que medida a questão da ironia é aqui relevante? Para Vladimir
Jankélévitch, a ironia é uma espécie de boa consciência (e por isso ele a distingue da
hipocrisia), em que a cumplicidade e o humor são parte fulcral da alteração do nível de
consciência. A ironia é um lugar emaranhado de que são excluídos os ignorantes, os
pedantes, todos os que têm sobre o que “entendem” uma certeza absoluta e
inquestionável, e por isso também todos os que apenas utilizam a versão “à letra” do
significado das palavras e do discurso. Por isso Jankélévitch afirma que a ironia
pressupõe o culto da liberdade, e nessa liberdade radical se aproxima a ironia da
loucura. Quando tudo é questionado, quando se quer dizer o contrário do que se diz,
ou uma coisa diferente, os limites da verdade alargam-se infinitamente, estremecendo
só então, de forma clara, os alicerces dos paradigmas tidos como certos. As definições
são postas em causa e os dogmas estabelecidos são perturbados porque aí (na ironia ou
na loucura) começa uma reflexão sobre a certa incerteza. Acerca deste espaço que se
abre de repente, e sobre o tempo livre necessário a esta demanda reflexiva, escreve o
filósofo na sua obra sobre a Ironia:
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“Una vez que han tomado conciencia de su ignorância, un malestar inexplicable los
atormenta: un malestar que nace de la contradicción, y que, según el Platon de Ménon, prepara la
reminiscência.” (Jankélévitch, 1964: 14)
Mas nem só neste aspeto a ironia se aproxima da loucura, ou a loucura da
ironia. A loucura parece também escapar ao crivo moral pelo riso. O fator cómico não
é evidente, ainda que ele esteja pressuposto, já que é preciso um sentimento de
superioridade para que a ironia ‒ ou a loucura ‒ subvertam essa realidade com as
lentes refratoras em que o emissor diz o contrário do que quer dizer, cabendo ao
recetor interpretar essa distorção extrema. O momento irónico é, pois, um momento de
cumplicidade superior. Quando tal dimensão refratora interpela seletivamente o leitor/
recetor último, este sorri ao entrar no jogo. Ele sabe também que o que parece não é:
“La seriedade se define com respecto a una alegria siempre posible, así como la evidencia
designa el terreno ganado a la duda.” (Jankélévitch, 1964: 19)
Ainda segundo Jankélévitch, a ironia não tem unicamente uma importância
artística, literária (apesar de parecer necessitar de um tempo/ espaço de ócio), porque a
ironia tem necessariamente uma componente moral que a arte não possui como
necessária. Ora se a loucura é um discurso não-moral, ou melhor, não condicionável
pela moral porque colocado num patamar inimputável, poderíamos dizer que o
discurso do louco se aproxima do discurso irónico porque foge à responsabilidade de
dizer. Tudo o que a ironia diz pode ser negado.
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A ironia funciona assim como a loucura: é um instrumento de defesa e de
ataque simultaneamente. Afasta a tristeza e ridiculariza o perigo para amenizar a dor e
o sofrimento que a consciência provoca. É um jogo perigoso com um possível final
infeliz. O louco, como o que usa da ironia, diz o que não pode ser facilmente
entendível.
Resta saber quem sabe: quem percebe o jogo? Ingénuos e tolos serão, para
Teixeira de Pascoaes, todos os que permanecem iludidos pela linguagem literal. O
louco é, afinal, mais sábio que o vulgo, que tudo confunde.
“[…] o vulgo confunde tudo. Não distingue a Árvore das árvores, nem o Homem dos
homens. E não haveria árvores sem a Árvore, esse fantasma que é todo o ambiente vegetal. Que é a
nossa vida senão uma parte da vida que se concretizou e organizou?” (Pascoaes, 1993: 63)
Como Teixeira de Pascoaes, também Jankélévitch distende o pensamento de
forma a relaxar os limites que o oprimem, para que ele se reinvente e mantenha a sua
continuidade/ liberdade. Como se fora adolescente, com seu estilo interrogativo
impetuoso, Pascoaes gera afinal a mesma controvérsia que o filósofo russo quando
atribui a Sócrates a loucura da ironia, nas querelas com os charlatães atenienses, na
Grécia Antiga. A ironia, desde logo a socrática, tal como a loucura em Pascoaes,
parece servir para provocar exaltação, surpreender, espantar, ainda que o emissor
“ironicamente” se considere, ou seja considerado, um tolo ou um doido.
Por esse lado, a ironia é uma figura que interessa à loucura. Num conjunto de
figuras débeis, que dizem o que se não pode dizer, encontramos, com a mesma função
dos loucos, todos aqueles que são linguisticamente desconsiderados: os palhaços, as
crianças, os bêbedos, os doentes, os velhos, enfim, os moribundos da razão consciente,
encorajados a expressar o que nunca se expressa em voz alta; a trazer para fora, o que
está escondido, porque socialmente condicionado, por vezes alterando as posições
sociais, hierarquicamente instituídas:
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“[…] la conciencia es una especie de echarse atrás [...] la conciencia es un desquitarse del
objeto al que se aplica, y en este sentido es la fuerza del débil [...] En esto consiste la superioridade del
inferior, la fuerza de los débiles, la riqueza de los pobres: el pobre será a fortiori, más rico que el rico.”
(Jankélévitch, 1964: 20)
2. Que faces da Ironia?
Com o intuito de tentar alcançar o carácter imperscrutável da tensão entre
quem pergunta e quem responde, quem sabe (o que pergunta) e quem não sabe (o que
tenta responder), Pascoaes utiliza a loucura de uma forma irónica. Mas o que podemos
nós entender aqui por “ironia”?
Entre a abundante bibliografia sobre o assunto (e não podendo citar tudo sob pena
de nos perdermos em tipologias pouco abrangentes e/ou pouco consensuais, contrárias
entre si), pareceu-nos importante, uma obra de Pierre Schoentjes sobre a ironia,
Poétique de l’Ironie, de 2001. Trata-se, segundo Marie de Gandt (2002: s. p.), de um
estudo fundamental que acaba por preencher muitas das lacunas dos estudos parcelares
sobre o tema. Marie de Gandt não encontra outras obras teóricas com maior
abrangência de definições do termo. Com efeito, simplificando algumas considerações
de ordem histórica, são elencados, no quadro definido por Pierre Schoentjes, quatro
tipos distintos de ironia:
a) a ironia socrática, centrada na estratégia filosófica, em geral
exemplificada pela maiêutica de Sócrates. Trata-se de uma ironia de comportamento,
em que o orador toma a palavra num diálogo, diminuindo o valor da sua declaração,
mas colocando-se num nível humilde, em que pergunta ao outro interlocutor o que o
outro afirma saber, para acabar por contestar a certeza desse saber. O orador é um
Sophos eirôn, definido por Aristóteles como um “sábio que pergunta”.
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b) a ironia de situação, centrada no contexto, em geral exemplificada pela
situação trágica. Na ironia de situação, a narrativa acaba (por reconhecimento/
anagnórisis da verdade por parte do protagonista), por dar visibilidade ao que é
ocultado ou negado ao longo da sua construção.
c) a ironia aqui dita “verbal” (talvez a mais conhecida como figura de
retórica), existente numa afirmação que é a negação do que é dito. Esta ironia retórica
é, obviamente, a que mais cumplicidade exige entre os interlocutores pois, não
existindo ela, a comunicação não se verifica nos termos em que é projetada pelo
falante.
d) a ironia romântica, identificada desde F. Schlegel com o pensamento
filosófico-literário do século XIX, e muito especialmente com o conceito de “ironia
romântica”. Segundo Schoentjes, é ainda uma releitura da ironia socrática, agora
centrada na arte, muito especificamente na arte literária. O autor romântico, que
frequentemente toma a voz de um narrador, intromete-se na narrativa comentando-a,
minando a convenção literária, que tende a apresentar como verdadeiro o que é
narrado, levando o leitor a repensar a ilusão que para ele foi criada.
Demonstraremos, ou tentaremos demonstrar, que esta poliédrica visão irónica
da loucura de Teixeira de Pascoaes é suficientemente problemática para considerar na
sua obra estas quatro definições de ironia, sustentando a pertinência do nosso ponto de
vista crítico nesta dissertação. A loucura em Pascoaes inscrever-se-ia numa tetralogia
irónica: de índole filosófica, trágica, verbal/discursiva e ainda romântica.
A ironia socrática ou filosófica está presente quando a personagem faz
perguntas segundo o modelo de Sócrates. A ironia dos fracos expressa-se pela boca de
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uma criança, de um estrangeiro, de um louco. Como sucede em O Pobre Tolo, de
Teixeira de Pascoaes, a loucura pode exemplificar uma ironia filosófica. Considerando
o contacto pessoal e intelectual de Teixeira de Pascoaes com o fenómeno da Loucura,
consideraremos a sua potencialidade como Interrogação, e dela trataremos no capítulo
I desta dissertação: “Loucura e Interrogação: reflexões biográficas”.
De notar que a loucura é também, muitas vezes, uma ironia trágica: quando
as personagens se confrontam a si próprias e, ao julgar os outros, se tornam nos seus
próprios carrascos. Por exemplo, em Pascoaes, o louco exibe uma ironia trágica em O
Doido e a Morte: nota-se a ironia trágica onde alguém despreocupadamente e, sem
saber, está exatamente na situação oposta à que julga estar (a Morte). A Loucura é um
Reconhecimento. Essa dimensão da ironia será objeto do nosso segundo capítulo:
“Loucura e Reconhecimento: a voz da razão”.
Mas também a ironia verbal, ainda que não nos pareça dominante, vai marcar
a imagem da loucura: o leitor deve procurar entender o que quer o autor dizer, quando
diz o contrário do que ele espera ouvir-lhe. A loucura diz e desdiz o que diz, num
discurso do paradoxo que sempre seduziu leitores de Pascoaes tão distantes da sua
poética como, por exemplo, Mário de Cesariny. A Loucura é ainda um jogo de
aparências. Tentaremos compreender esta definição em Teixeira de Pascoaes
sobretudo no nosso terceiro capítulo, “Loucura e Aparência: da loucura física à
metafísica”.
Resta-nos, até na consequência das anteriores, a imagem da loucura como
ironia romântica. Poderemos nós entender a sua poética do Saudosismo como uma
questão retórica, em que a “saudade” é a melhor palavra para, no seu entender, criar
21
uma perceção da ilusão, criada desde logo pela literatura? Pode a Loucura ser a
estratégia da Ausência? A estas questões procuramos responder no quarto e último
capítulo desta tese, “Loucura e Ausência: a ilusão da linguagem”.
Parece-nos que Teixeira de Pascoaes é um dos poetas mais ricos da nossa
literatura que filosoficamente melhor justifica e alimenta a pertinência desta estratégia
retórica da loucura. As palavras do louco, registadas pelo autor de Sempre, são a sua
forma de sabedoria: ensinam a consciência do Amor e da Morte, entidades que se
fundem e confundem. Pretendemos refletir sobre a universalidade desta estratégia e
perceber como Teixeira de Pascoaes a encara e transforma numa gigantesca orquestra
cósmica.
Não temos conhecimento de que haja estudos neste sentido ou perspetiva,
incidindo sobre a obra de Teixeira de Pascoaes. Se existem, não as detetámos na nossa
pesquisa e disso nos penalizamos. Mas se existem, com eles pretendemos, com mais
tempo, revisitar o que escrevemos.
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Capítulo 1 - LOUCURA E INTERROGAÇÃO
Algumas reflexões biográficas
“Pascoaes foi sempre um homem, nunca foi criança,
tanto a falar como a brincar. [...] Pascoaes era diferente de
todos nós, em todos os aspetos de menino e de homem.”
(Maria da Glória Vasconcellos, Olhando para trás
vejo Pascoaes)
Há na obra, e desde logo no nome de Teixeira de Pascoaes, um declarado
indício da ligação ao local que mais amou: Pascoaes é uma toponímia, o sítio do solar
que ele habitou durante a maior parte da sua vida. Tendo por nome de batismo
Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos, assinava Teixeira “de Pascoaes”. Ainda que
tivesse nascido na vila de Amarante, supostamente a 2 de novembro de 1877, o solar
de Pascoaes proporcionar-lhe-ia uma infância marcadamente rural e aristocrática, entre
a proximidade da natureza e a proximidade das gentes humildes que na casa viam um
centro protetor.
“Vários incidentes da minha infância revelam-se numa luz misteriosa; adquirem um
significado transcendente, aquela alma, aquele nimbo remoto em que as mais pequenas coisas se
ampliam no vago e no infinito [...].” (Pascoaes, 2001: 41)
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A crer nas considerações de uma das suas irmãs que sobre ele escreveu,
Maria da Glória Teixeira de Vasconcelos, o poeta Teixeira de Pascoaes teria tido,
desde tenra idade, uma postura introvertida, ensimesmada, com forte tendência para a
observação da natureza e dos seres humanos. O dia em que nasceu acabaria também
por marcá-lo. Celebrava-se o seu aniversário no dia dos Defuntos, a 2 de novembro,
entre as idas ao cemitério e os festejos da casa, entre a celebração dos que tinham já
deixado a vida terrena e dos que entravam nela. Escreverá vários poemas em que a
simbologia deste dia é tida como indício daquele poeta em que se tornará. Em “Poeta”,
publicado em Sempre (1898), é possível ler-se explicitamente no seu nascimento a
celebração melancólica da morte:
“Quando a primeira lágrima aflorou
Nos meus olhos, divina claridade
A minha pátria aldeia alumiou
Duma luz triste, que era já saudade.”
(Pascoaes, 1997: 104)
Maria da Glória recorda, já depois da morte do irmão (a 14 de dezembro de
1952, ainda no solar de Pascoaes, em Gatão), o espírito curioso de Joaquim. E como
em criança costumava pedir à empregada Lucrécia que ela lhe narrasse um conto de
fantasmas, ora um que lhe suscitasse interesse, ora outro que lhe tolhesse a coragem:
“Foi nesta casa sombria, com o seu ar de abandono e as histórias trágicas da Lucrécia, que se
formou a alma de um grande poeta.” (Vasconcellos, 1996: 18)
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Nas suas palavras, Teixeira de Pascoaes “foi sempre um contemplativo”,
voltado tanto para o passado como para o futuro:
“Não era triste, era um silencioso. [...] Meu irmão não gostava – mesmo como criança – de
ouvir berrar, rir alto, nem sequer o atraía o ruído cantante da filarmónica [...] os ruídos metálicos
irritavam-no. Talvez para não despertar o sonho que já vivia na sua alma…” (Vasconcellos, 1996: 18)
Com cinco irmãos, imagina-se que nem sempre o silêncio fosse tarefa fácil.
Talvez por isso a índole introspetiva de Pascoaes fosse ainda mais notória. O próprio,
no Livro de Memórias, refere:
“Conviver com os mortos, divagar entre ruínas, é tudo para mim. Divago e reconstruo.
Disponho de uma substância da qual se extraem todos os materiais da Criação: a palavra, uma vibração
no ar e uma luz que reflete, em nós, a imagem das coisas e dos seres. Convivo e reconstruo, na solidão.”
(Pascoaes, 2001: 43)
Maria da Glória refere-se ao irmão mais velho como “Poeta”, com letra
maiúscula, como se, até para ela, este estatuto continuasse a criança diferente que ele
tinha sido e o adulto estranho em que se tornaria. Também em Amarante todos o
tratavam assim, para todos ele era “o Poeta”. Este estatuto acentuaria a sua
excecionalidade, que é também, inevitavelmente, uma forma de marginalidade:
“Nunca teve a nossa idade. Diferentes eram, pois, as suas brincadeiras. Caminhou sempre
sozinho. Primeiro em casa e depois no mundo.” (Vasconcellos, 1996: 22)
25
O Poeta, porém, não gostava da cor preta, nem de tons escuros. Mesmo as
situações de enterros ou outras celebrações ligadas à morte, era com o encarnado e o
azul que as festejava. Em vez da perspetiva da morte como lugar/tempo sombrio e
sorumbático, a morte era tida por ele como animada e colorida, oportunidade para
apreciar contrastes e deles fazer uma festa. A morte mergulhava, por um momento, na
sombra do esquecimento, mas através da lembrança e da memória Pascoaes
recuperava, como numa vitória, a ressurreição do ido.
“Vejo-te, minha aldeia, através do sorriso de Jesus e ouço zumbidos de insetos, cantos de
pássaros e um bulir de folhas verdes. [...] Vejo-a através dos mortos que eu amei e lhe emprestaram a
própria imagem transcendente, que se amoldou, por assim dizer, à configuração dos seus outeiros.”
(Pascoaes, 2001: 45)
No prefácio que escreveu a Olhando Para Trás Vejo Pascoaes de Maria da
Glória Teixeira de Vasconcellos, um dos principais investigadores de Pascoaes,
António Cândido Franco, refere-se igualmente a Pascoaes como alguém que vivia de
saudade e lembrança. Este apego à memória (da morte como da vida, sem que haja
entre elas uma fronteira distinta) é como que um instrumento que dá ânimo ao seu
pensamento, na medida em que a memória chega para trazer de novo à vida aqueles de
que se fazia o luto. A morte, assim lida como festa de aniversário, não seria um fim,
mas um acidente de percurso, sem carácter de finitude, mas antes de transição porque
“a lembrança ressuscitava tudo” e por vezes até com mais vivacidade. Memorizar
encerra em si a ação do desejo voltado para o futuro. Olhar, ver além do que é o
concreto, implicava passar para um outro nível visual ou, por outro lado, de cegueira.
Reconhecer o mundo, e assimilá-lo, acarretava ultrapassar o seu carácter concreto: isto
será o pano base onde se estenderá a saudade pelo não existe neste plano imediato:
uma memória do que foi e do que quer dizer, além do que é. O mesmo poema de
Sempre continua assim:
26
“Humildes, pobres cousas, como eu sou
Dor acesa na vossa escuridade…
Sou, em futuro, o tempo que passou
Em num, o antigo tempo é nova idade.”
(Pascoaes, 1997: 104)
A constante vontade do Poeta em divinizar o humano e humanizar o divino
seria também tida como herança de família, com relação direta a seu avô paterno,
médico da Casa Real, com o qual partilhava a mesma índole telúrica:
“Consigo ver-te e ouvir a tua voz, meu avô; mas a tua figura é uma quimera que só tem
realidade perante os deuses. [...] O corpo é que é tudo, embora sujeito à corrupção e a necessidades
ridículas, de envergonhar o Criador.” (Pascoaes, 2001: 39)
No primeiro terceto do mesmo soneto de Sempre, Teixeira de Pascoaes diz-se
já um ser plástico, húmus, misto de restos em deterioração que alimentam e dão forma
ao homem:
“Sou fraga da montanha, névoa astral,
Quimérica figura matinal,
Imagem de alma em terra modelada.”
(Pascoaes, 2001: 104)
27
No seu Livro de Memórias, ao narrar a permanência em Coimbra para estudar
Direito, ilustraria bem o encontro do seu lado sensível com os rituais do mundo da
ciência e da vida universitária:
“Neste meio académico e ruidoso, eu era um ser inverosímil. Não sabia as lições, nem traçar
a capa, nem trilhar as ruas da vila. O estudante metera-se em mim, como um intruso. Nunca me
conformei com ele, com essa capa e batina talhadas para outro corpo. [...] É o momento em que nos
separámos da natureza e nos adaptámos à sociedade. Essa transição do natural para o artificial é uma
tragédia em certos temperamentos enraizados no âmago da terra. É uma tragédia que vai até à morte.”
(Pascoaes, 2001: 87)
Não tendo sido um aluno brilhante, cedo intuiu os tópicos que mais tarde
seriam trazidos para o plano material, onde as premissas podem ser provadas e
testadas. Como prova dessa consciência, temos as palavras do próprio Teixeira de
Pascoaes. Apontamos estes versos do poema “Quinta da Paz”, dedicado a Guerra
Junqueiro:
“A minha infância!
Claridades misteriosas,
Recordações saudosas,
Tomam figura – vede! – na distância…”
(Pascoaes, 1997: 156)
28
Forma-se nele muito cedo a ideia da relatividade. Ver algo no presente, com
distância cronológica através da memória, reanima o evento. Ainda n’O Livro de
Memórias:
“Existo neste corpo que pesa sobre o mundo, e é um desafio do sonho à realidade; e vivo na
minha infância, que é uma lembrança original, a persistir, e um retrato defunto, num velho álbum
sepulcral. [...] Vejo, num outeiro florido, cabras e ovelhas. Pastam, há mais de trinta anos, uma erva
tenra e verde, à luz do Sol. E a pastora sentou-se, para sempre, naquela pedra, a fazer meia. É uma
rapariga de quinze anos.” (Pascoaes, 2001: 77)
A individualidade do Poeta assenta precisamente neste modelo material, “um
corpo que pesa sobre o mundo”, definido como dimensão espaciotemporal onde as
alusões a um certo evento, ou paisagem ou mesmo personagem, parecem já
purificadas, sancionadas, por um modo de olhar adquirido na infância e perseguido/
prosseguido na idade adulta, entendido como o único modo de olhar e receber o
mundo:
“A infância é uma recordação de Deus a materializar-se em jogos e brinquedos. [...] A
infância é uma recordação de Deus, e tão viva, que anima todas as coisas.” (Pascoaes, 2001: 65)
Ao invocar cada objeto, cada personagem, cada gesto, casa, parente ou riso,
o autor retoma a posse do mais íntimo de si, e em todas estas invocações está
subjacente um significado religioso e sagrado. É como se a sua própria infância
equivalesse à infância do mundo onde todas as coisas voltam à Luz Originária, onde
os deuses se manifestaram e criaram. No imaginário do Poeta, o Marão, a serra do seu
tempo de menino, é o lugar central, místico e mítico, a partir do qual se desdobram
outros lugares, reiterações dessa montanha divinizada. O caráter universal e as
preocupações filosóficas de Pascoaes estão presentes pela sua poesia fora. O poeta
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parece-nos ter o dom de conseguir exprimir de uma forma potenciada todas as
qualidades sentimentais e intelectuais do ser humano. E de entre todos os homens, diz
que o poeta é o mais habilitado para exprimir o drama humano, tanto na vertente
religiosa como sentimental, sempre saudosa. O poeta é tido, seja ele vate clássico ou
romântico, como se fosse uma espécie de guia, um eleito que apreende o real melhor
que ninguém:
“Mas o drama da vida, através da sua aparência social, é profundamente religioso. O destino
do homem é ser a consciência do Universo em ascensão perpétua para Deus.” (Pascoaes, 1993: 5)
A cosmogonia universal é um paradigma para o próprio ato de criação
poético: inicia-se com um esforço, intermitentemente realizado, com intenção de
convergir nesse illud tempus, num excesso de força e poder divinos. A Saudade de
voltar à origem é por isso uma saudade que podemos dizer “religiosa”: a aspiração de
poder voltar a viver num Mundo puro e virginal, em que fossem sensíveis as ligações
entre todas as coisas, religando-as a Criatura tal como tinham sido concebidas pelas
mãos do Criador. A nostalgia da Perfeição está na base do desejo de voltar ao Paraíso
e recuperar assim, pela Saudade, um passado mítico. Reviver esse Passado, seja a
nível individual ou cósmico, recuperando o peso simbólico nele implicado, é um ato
de construção de um Novo Mundo, de uma Nova Realidade, tão mítica e poderosa
como a existente no “passado”.
O conhecimento íntimo das coisas vem da intuição, não da razão. Como
Pascoaes escreve em O Homem Universal:
“A essência das coisas, essa verdade oculta na mentira, é de natureza poética e não científica.
Aparece ao luar da inspiração e não à claridade fria da razão.” (Pascoaes, 1993: 7)
30
E a sua poesia segue da própria experiência pessoal. Como recetor ativo e
passivo, ponte e abismo, o Poeta dialoga com a Natureza que o rodeia, e esse instante
de comunicação fica incorporado no Poeta, e ele passa a sê-lo.
“Na composição da minha obra, recorri sempre às minhas experiências emotivas. Fui
sincero.” (Pascoaes, 1993: 68)
Mas não basta sentir. Pascoaes gostava de cismar. Será esta a única forma de
aceder a esse núcleo, o longínquo profundo da essência das coisas. Desta forma se
entende que a poesia fosse para o escritor filosofia, conhecimento, religião, profecia. O
seu mundo poético é composto por uma multiplicidade de forças que muitas vezes se
mostram antagónicas. A busca contínua pela perfeição obrigava-o a trabalhar no duplo
ou triplo ou quádruplo sentido das coisas. Como diria Pedro Sinde, em O Velho da
Montanha:
“Eis o núcleo, o ponto central, o trono em torno do qual todas as paisagens se ordenam e
aquilo que era misto passa a ter uma hierarquia, aquilo que ocultava agora desvela: esta é a primeira
separação das águas em subtil e espesso.” (Sinde, 2000: 22)
A poesia de Pascoaes vive dessa oscilação, essa simultaneidade de universos
que lhe permite ir caminhando adiante, como que a seguir pistas, em direção à
verdade, sem nunca a ter por ponto de chegada. Assim, mais do que o poeta da
Saudade, ou da noite, ou das trevas, Pascoaes é o poeta da sombra, onde tudo se
define pela sua indefinição. É o que medeia entre o tudo e o nada, sem alternância,
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mas sempre coexistindo. Por isso, é comum receber da sua obra imagens que refletem
a indefinição e incerteza: enuncia as horas do crepúsculo como a aurora, a bruma e o
nevoeiro, as estações de transição como o Outono e a Primavera. Tal como a sombra,
estes são espaços indefinidos onde coincidem os contrários. Também na poesia de
Pascoaes se fazem sentir essas indefinições entre fronteiras de opostos, lugar onde
concorrem forças antagónicas que se tocam e se chegam a equivaler, tornando-se no
seu limite indiferenciadas. Deste jogo de contrastes, desprende-se um significado
simbólico que, muitas vezes, é paradoxal. Não é uma escolha inocente: o escritor,
recusando aceitar as questões interiores que o dilaceram, opta por fazer uma
representação plástica de coisas que se diluem e desfazem no espaço e no tempo, não
para se extinguirem, mas para, desta forma, prolongando-se e fundindo-se, lhes possa
proporcionar a imagem, a visibilidade, de uma continuidade, de algo que se há-de
transformar noutra coisa nova. Uma nova realidade que possa, quem sabe, responder à
espiral de dúvidas que fervem dentro de si.
Talvez seja por isso que o universo lexical do escritor está povoado de verbos
da mesma área semântica, do gasoso e do líquido, estados em que as coisas perdem
uma forma e passam a ter, quando muito, a do continente em que estão contidas:
esfumar, esbater, desvanecer, dissolver… Em “Canção Crepuscular”, inserido em
Terra Proibida, escreverá:
“Quando a tarde vem dos céus,
Rezemos então a Deus
A nossa melancolia:
Este vago sentimento
De abandono e sofrimento
Que o nosso ser anuvia…
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E, todo enevoado, cisma,
E, no seu nada, se abisma…”
(Pascoaes, 1997: 206)
A loucura não se pode ler sem realçar antes nela este jogo de dualidade.
Reconhece-a em algumas personagens que dependem das atenções da Casa. Conhece
também o desespero extremo, por que se mata aquele seu irmão, depois de humilhado
injustamente por um professor da Universidade.
Ele, que ciente já de algumas dúvidas, por volta dos dezassete anos, se separa
da família e ruma a Coimbra para estudar Direito, nunca vai ganhar verdadeiro gosto
pela vida boémia ou académica. Compõe a coletânea de poemas Sempre ainda em
Coimbra (1898), resultado de uma paixão frustrada que aí lhe acontece. Atinge neles
uma maturidade maior que em Embriões (1895), obra que renega, ou Belo (1896 e
1897). Em 1901, termina a Faculdade, certamente cumprindo o que é expectável.
Estabelece-se inicialmente como advogado em Amarante, e continua depois a sua
carreira judicial como juiz substituto em Amarante. Mas não tarda a abandonar a
profissão, pois usufruía de alguma liberdade financeira que lhe permitia viver sem
trabalhar. É possível antever que um género de vida mensurável, mundana, rotineira,
lhe causaria algum tipo de insatisfação. Não lhe bastaria esta escolha: salienta-se pela
verve retórica em causas perdidas: salva quem não espera já ser salvo, porque estava já
julgado em público e a lei obedece mais vezes do que parece à justiça medida pelos
conformes. A vida parece-lhe uma coisa fugidia, que não se apanha na lei física ou
jurídica. A vida não é, consonante as suas próprias palavras, apreensível nos
compêndios, mas por uma “experiência direta”, uma “sensibilidade vibrátil e
penetrante”. Os fenómenos são “tradução” da essência do mundo:
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“Certos cientistas de carreira julgam apreendê-la (a vida) nos compêndios; [...] Apenas
sabem ler nos livros, e os que sabem! São incapazes duma experiência direta, por míngua de
sensibilidade vibrátil e penetrante dos fenómenos em que a essência do mundo se traduz.” (Pascoaes,
1993: 8)
Recolhe ao solar de família em São João de Gatão, onde um regrado
isolamento lhe permite percecionar a realidade que o circunda e retirar dela o lado
mais abstrato e metafísico que lhe alimenta a inspiração. No casarão, recebe os fiéis
companheiros de ideais, como Raul Brandão, amigo de longa data, ou ainda os novos
poetas da segunda metade do século XX: Eugénio de Andrade, ou Mário Cesariny, já
referido. Com seus hóspedes perpetua o hábito contemplativo de admirar a serra do
Marão. Almada Negreiros, Federico Garcia Llorca, foram alguns dos poetas que
privaram com Pascoaes. Porém, o nosso autor recebia com agrado todos os
admiradores que o procurassem.
Em Na Sombra de Pascoaes, Maria José Teixeira de Vasconcelos, sua
sobrinha e secretária, refere-se à mãe do Poeta como sendo toda doçura. Foi talvez
através desta fonte, que Pascoaes bebeu a religiosidade e o espírito de religação
presentes na sua obra. Mas o carácter altruísta e religioso de Teixeira de Pascoaes
parece também ter sido bebido no exemplo da velha Tabarda, a ama do Poeta. E uma
ideia geral de fraternidade parece instalar-se no solar, diluindo as distinções entre
senhores e criados, ricos e pobres.
“Esta boa mulher deixou um filho, mendigo de profissão, a quem Pascoaes sempre tratou por
irmão e a quem dava uma boa mesada. Mas não queria que se soubesse para não prejudicar o pobre
homem, porque apesar de não precisar, ele não desistia de pedir esmola.” (Vasconcelos, 1993: 24)
Estas personagens que povoaram a infância de Teixeira de Pascoaes
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marcaram a sua escrita indelevelmente. Nas suas memórias, frequentemente, relaciona
cada personagem que reanima com estímulos do quotidiano:
“[...] mas quem aparece realmente não és tu, Maria; é uma luz que te surpreendi na face
magoada. Não és tu que aparece, ó Couta centenária; mas outra imagem, emanada do teu vulto, que me
cheira a côdea de milho e a cinza da lareira.” (Pascoaes, 2001: 55)
De entre estas personagens citadas, chama-nos a atenção as que de certa
forma estão relacionadas com a loucura. Além deste mendigo de profissão, filho da
ama do escritor, Maria José refere também o seu tio António, o irmão do poeta, que se
suicidou ainda tão jovem, com um tiro na cabeça.
Os livros que vai publicando têm uma sequência quase anual: Jesus e Pã
(1903), Para a Luz (1904), Vida Etérea (1906), As Sombras (1907), Senhora da Noite
(1909), a sua obra mais célebre, Marânus (1911), ou Regresso ao Paraíso (1912). A
bibliografia é conhecida e vasta, alarga-se a textos mais ensaísticos a partir de 1915
(ano em que publica A Arte de Ser Português) e até a algumas experiências
dramáticas, como as que partilhou com Raúl Brandão (como Jesus Cristo em Lisboa,
de 1926). Mas vai mudando de temas e formas. Com uma liberdade que muitas vezes
não é compreendida. A qualquer momento de vida, a loucura aflora e num momento,
se anula toda uma vida racional, com o insulto fácil de se ter alguém por louco.
Também Teixeira de Pascoaes foi apupado de louco quando colaborou com Raúl
Brandão na feitura do texto de Jesus Cristo em Lisboa, em 1927, e, no entanto, não lhe
bastou uma vida inteira dedicada à poesia e à busca pela Verdade Suprema. Viver é
estar sujeito a padecer mais que uma vez. A ironia da vida é a loucura ser, ela própria,
uma forma de vida.
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Sabe-se que Pascoaes, a determinada altura da vida, quase parou de escrever
versos para se dedicar à prosa. Escreveria ele:
“O Poeta morreu, a idade de ser Poeta passou. Voltei-me para a prosa, vingando-me,
massacrando-me os meus biografados.” (Vasconcellos, 1996: 53)
Nas “biografias” a que se dedicou, transparece ainda o seu génio apaixonado
reforçado pela sensibilidade que o acompanhou em todos as formas literárias a que se
entregou. A paixão toldava-lhe as sensações e tanto se apaixonava pela beleza de uma
mulher desconhecida, como pela personalidade da sua sobrinha afilhada. Se alguém
que admirava profundamente ou o surpreendia, é miticamente que a trata, sejam as
mulheres por que se apaixona sejam as vidas de São Paulo (1934), São Jerónimo e a
Trovoada (1936), Napoleão (1940) ou Camilo Castelo Branco, em O Penitente (1942).
Voltamos significativamente ainda ao último terceto do soneto incluído em Sempre, no
longínquo ano de 1898, relembrando esta loucura diluída com o conhecimento, desde
a sua raiz divina:
“Sou o homem de si mesmo fugitivo;
Fantasma a delirar, mistério vivo,
A loucura de Deus, o sonho e o nada.”
(Pascoaes, 1997: 104)
O tema da Loucura ‒ ainda que vá tendo espaçadas referências em toda a sua
obra, em verso ou em prosa ‒ parece-nos mais evidente a partir da publicação de O
Doido e a Morte, de 1913, estendendo-se até à biografia de Camilo, em 1942, e
passando pela publicação de O Pobre Tolo (de 1924).
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Pascoaes parece pelo menos intuir, de forma mais ou menos consciente, o que
o universo científico da época, com a emergência da psicanálise, procura demonstrar
racionalmente: que o mundo interno do homem, de uma forma generalizada, é
propício ao desenvolvimento da loucura. Não temos conhecimento das suas leituras
científicas, mas constatamos a sua obsessão pelo tema. Pascoaes não conseguirá talvez
conhecer essa loucura, estudá-la ou medi-la simplesmente, através da evolução das
ciências. Mas certamente crê na eficácia dos meios sensíveis. No entanto, o diálogo
entre a obra de Pascoaes e a ciência sobre essa imanente loucura no ser humano tem,
na sua época, possíveis interlocutores. Se consultarmos alguns escritos científicos
publicados na sua época, verificamos que, por exemplo, segundo E. Krestschmer,
autor de um livro sobre a estrutura do corpo e o carácter (1930), o estado de loucura
deve ser compreendido como “forma extrema de um temperamento e de um caráter
que se encontra na zona normal” (cf. Baudet, Péan, Gauquelin, 1970: 42). Outros
psicólogos e antropólogos das primeiras décadas do século XX procuraram também
entender essa passagem do estado “normal” (aceite pela sociedade) e um estado de
“loucura” (que não permitia a convivência social e levava ao internamento em
hospício) como processo evolutivo/ degenerativo que se viriam depois a revelar em
dois tipos de comportamento doentio: as psicoses maníaco-depressivas e as
esquizofrenias, delineadas, no final do século XIX, por Kraepelin. É sabida a
influência que nesses estudos teve a guerra química usada em grande escala na Grande
Guerra (1914-1918): os gaseados apresentavam, de forma mais ou menos permanente,
linguagens e comportamentos erráticos, identificados somente pelo conceito de
“loucura”. Ao longo do século XX, apesar das alterações das suas tipologias e dos
respetivos métodos terapêuticos, permaneceu nos estudos científicos essa divisão
básica de Kraepelin. Ainda que associada claramente a uma “doença” mais ou menos
incurável, a loucura passa a classificar duas situações tipificadas, entre a
“normalidade” da vida social e a sua impossibilidade total, que leva ao hospício-
prisão.
37
Nos estados bipolares das psicoses maníaco-depressivas, o doente alterna, ao
nível do comportamento, entre estados de abatimento e euforia e, ao nível do discurso,
entre a dispersão argumentativa e o silêncio. Nestes casos, a loucura é detetada entre a
extravagância dos gestos e das palavras e a ruminação de ideias pessimistas sobre o ser
humano e a vida em sociedade. Entre dois episódios consecutivos, o doente pode
apresentar um “comportamento normal” (Ibid: 43).
Só em casos mais extremos a loucura se apresenta como uma cisão entre o eu
e o mundo exterior. Mas, ainda nestes casos, de uma forma mais ou menos difusa. A
situação de “esquizofrenia”, derivada etimologicamente do verbo grego “skizein”
(fender), abarca um largo leque de sintomas e graus (Ibidem). O indivíduo encontra-se
dividido entre o amor e o ódio aos seus semelhantes, ainda mais claramente aos que
lhe são próximos. Vive para dentro, convencido da realidade dos seus sonhos e
fantasmas.
Torna-se assim possível, entre os finais do século XIX e o século XX,
classificar como “loucura”, ou atos de um “louco”, uma dilatada e difusa sensibilidade
aos estados ditos “não normais”, num indivíduo melancólico ou em rutura com o
mundo social. Passa a não existir um hiato claro entre o dito “louco” e o indivíduo dito
“normal”: “Indivíduos normais aparentavam-se então, nitidamente, pela sua maneira
de ser, a indivíduos que têm uma psicose” (Ibid: 45). A oscilação entre os dois mundos
(o interior e o exterior) criaria estados de tensão, mais ou menos conscientes pelo
próprio, que acabariam por desequilibrar o seu comportamento em sociedade, desde
logo porque esta identificaria melhor (ou exclusivamente) os sinais da sua doença, as
suas bizarrias mais ou menos graves.
A questão torna-se especialmente sensível para o retrato social que é feito dos
intelectuais, e muito especialmente para a imagem que é feita dos artistas, e também
pelos artistas. O Romantismo (sobretudo nas versões mais ultrarromânticas de finais
do séc. XIX) é uma corrente que dá particular relevo ao individualismo, valorizando a
rutura entre o poeta, criador de mundos próprios, e a sociedade, que o limita e
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despreza. Sobre este tópico do Romantismo, na edição revista da História da
Literatura Portuguesa de Óscar Lopes e A. J. Saraiva, refere-se:
“Como principais facetas literárias deste individualismo mencionam-se o culto da
originalidade pessoal, em oposição à teoria clássica da imitação emuladora; o tema da insaciedade
humana, da aspiração indefinida, a dor «cósmica» de simplesmente existir, a obsessão da morte, o
autobiografismo direto ou velado, a apologia do herói insociável e amoral ou fora da lei (o pirata, o
bandido, o proscrito, etc.). Este individualismo pode ir até ao extremo da autonegação, que se manifesta
no gosto do sonho ou devaneio passivos, ou de qualquer evasão imaginativa para alhures no tempo e no
espaço (historicismo, exotismo); no sentimentalismo amoroso indizível e irrealizável; [...] no
encarecimento de valores poéticos inerentes às lendas cristãs, ao culto católico e ao mais antigo viver
aristocrático feudal. [...] É típico sobretudo do romantismo alemão o senso de incomensurabilidade do
indivíduo: a dor cósmica (Weltschmerz) e uma ironia de algo que, em nós, se sente transcendente ao
mundo e, até, a qualquer expressão poética possível.” (Saraiva; Lopes, 2000: 654-655)
Na sua herança cultural e histórica, dentro do contexto psicossocial do
ambiente finissecular em que nasceu, Teixeira de Pascoaes é possuidor das
características românticas supracitadas: o Poeta pode assim ser lido como um produto
típico do seu tempo finissecular. Também por isso traz consigo um conflito inerente,
pois se, por um lado, o final do século XIX foi profícuo em descobertas científicas,
sendo nele inegável uma mitificação da Máquina e um endeusamento da Ciência, por
outro, está imbuído da descrença nesses mesmos valores, sendo igualmente inegável a
reação idealista do fim do séc. XIX. A Ciência não conseguia responder, pelo
esvaziamento de conteúdo humano que implicava, às mais íntimas questões do ser
humano subitamente afastado da Mãe-Natureza, o espaço onde, até à data, ele poderia
absolutamente ser. O poeta romântico exila-se nessa natureza bruta e também a
marginalidade de Pascoaes se revê na marginalidade do espaço rústico que ele habita,
como ele agreste e indomável:
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“Contemplar este espaço, é contemplar-me; é apropriar-me do meu ser, composto de alma e
terra – uma paisagem. A paisagem funde-se, por fim, nesse Marão fantasma, em altos píncaros
esquecidos.” (Pascoaes, 2001: 77)
Também Teixeira de Pascoaes defende o regresso à Natureza como meio de
colmatar o vazio a que o excesso de civilização levara o Homem a mergulhar. Não que
se oponha à razão científica, mas porque a crê limitada quando exclusiva. Pascoaes
releva no seu pensamento o papel da intuição, do inconsciente, o poder das forças
vitais, espirituais e morais. Não será o único, longe disso. É com valores similares que
o chamado neogarrettismo ou neorromantismo se afirma. Não lhe é alheio a
experiência lírico-espiritual de Antero de Quental (1842-1891) que espelha o
aperfeiçoamento moral e sistemático do Universo em constante aspiração ao Absoluto.
De Guerra Junqueiro (1850-1923) bebe a retórica declamatória, o panteísmo místico e
o evolucionismo espiritualista que transparece em Oração à Luz. De António Nobre
tem em comum o nacionalismo decadente e fatalista onde encontra o sentido que o faz
querer reavivar a memória de um antigo Portugal vigoroso. Em Verbo Escuro (1914),
Pascoaes salientou em António Nobre a “graça do dizer”, referindo-se a um jeito não
tão profundo e com um tom mais familiar e lúdico com metáforas extremamente
próximas da realidade material e psicológica. A este respeito escreveu Pascoaes sobre
Nobre:
“Moreno coveiro, tocando viola,
A rir e a cantar!
Empresta, bom homem, a tua sachola,
Eu quero cavar:
E o vento mia! e o vento mia!
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Que irá no mar!”
(cf. Nobre, 2000: 39)
Jacinto do Prado Coelho declara, no Preâmbulo de A Poesia de Teixeira de
Pascoaes, que Pascoaes acusava a influência da atualidade literária à época. Refere,
como seu principal modelo, António Nobre e “nas suas queixas de criança
envelhecida”, no seu apego à melancolia, na proximidade ao desejo de retorno à
infância, a espaços associados com as coisas simples da vida infantil e cristã, como se
nelas se guardasse o Jardim perdido. O poeta de Só tinha em comum com Pascoaes a
busca pela clausura desse Paraíso, etimologicamente esse “jardim fechado”, em que é
possível evitar o confronto violento com a vida urbana, levando-o a habitar em
espaços de ilusão alimentados pela memória da infância perdida. Também lhes era
comum, a Nobre e ao nosso poeta, aquele estar só rodeado de pessoas: preferiam a
solidão, a tristeza, o mundo ficcionado. Mas se António Nobre pode ter-se afastado da
vida social por motivo de doença (de resto demonstra na sua obra este desespero de
tentar e nunca conseguir alcançar a vida mundana), o mesmo não se passa com
Pascoaes. O autor de Sempre cultiva amorosamente este modus vivendi.
“Como eu vos amo, ó tardes de abandono
A vossa mágoa é irmã da minha mágoa.
Eu sou talvez – quem sabe? – um outro Outono,
Folhas mortas caindo… charcos de água...”
(Pascoaes, 1997: 107)
41
A origem destes pensamentos é elucidativa da vontade egocêntrica de se
querer colocar no cerne da vida sem se querer mostrar. Pascoaes não estava preso ao
mundo dos prazeres terrenos. Humano em si seria quase apenas o amor pela sua terra
natal. Amaria, apesar de todos os seus esforços, não uma mulher real, mas uma
“sombra de rapariga”.
“O verdadeiro amor de Pascoaes dirigia-se à natureza, ao silêncio, ao mistério, às alegrias do
inefável, aos mortos, aos fantasmas. O mundo fantástico era o seu mundo.” (Prado Coelho, 1945: 12)
É neste contexto, e co-texto, que Pascoaes, diretor da revista A Águia, foi
precursor do movimento literário denominado Saudosismo. Nesta revista, juntam-se-
lhe outros nomes de comum afeição: Lopes Vieira (1878-1946), Correia de Oliveira
(1879-160), Jaime Cortezão (1884-1960), com quem partilha algum apego ao valor
deste “casticismo” guardado nas lendas de moiras, nas histórias de fantasmas, nos
ditos populares, num mundo particular que por vezes não deixa ver a sua
universalidade. Em tempos de mudança, influenciados pelo contexto sociopolítico que
se sentia na altura, o tema da loucura é, por arrasto, revisitado. As particularidades dos
indivíduos, como as particularidades dos povos, parecem ficar abafadas por uma
globalização dos conflitos. Para isso, vimos já, contribuiu a Primeira Guerra Mundial
(1914-1918), quando os avanços tecnológicos potenciaram a letalidade das armas
químicas pela primeira vez utilizadas de uma forma maciça. Para além das mazelas
nos comportamentos ou na linguagem, este tipo de armas químicas deixou um novo
género de estropiados: os de alma. Muitos dos soldados gazeados desenvolveram
formas de demência, de exclusão ou de auto-exclusão, provocadas pela violência de
uma guerra que se tornou inesperadamente longa, até por causa dos químicos usados
nas lutas de trincheira, de lenta progressão. Apollinaire, na guerra, interessou-se por
estes fenómenos. Emanava deles uma espécie de linguagem desordenada segundo as
regras gramaticais, mas verosímil do ponto de vista simbólico. O espírito de cada
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indivíduo, o espírito de cada nação, onde ficam elas agora? Que fazer delas, quando
parecem frágeis, inúteis?
O início do século XX constituiu assim um meio propício ao
desenvolvimento das tipologias da loucura e à reflexão de que eram causa e efeito. Por
um lado, a evolução das ciências veio minimizar o erro; por outro lado, favoreceu o
estudo fervoroso das relações sensíveis, nem sempre eram tidas em conta.
Em que medida não é isto ainda a continuação de um pensamento romântico
finissecular? O nosso Poeta procurava encontrar os outros em si. O eu é um reflexo de
toda a humanidade. E o Marão, a sua aldeia, são o símbolo de Portugal e do Universo.
É nos outros que ele se descobre e desvenda. E o tópico da loucura, sob este aspeto, é
agora uma perceção da universalidade do particular, já não exclusiva do Poeta. Como
lemos no poema “Quinta da Paz”, o que interessa ao louco comum e ao Poeta é o
percurso, inconsciente ou consciente, por entre arquétipos e símbolos partilháveis:
“[…] a Doida que ficou sozinha, neste mundo,/ Julgando ver em todas as crianças,/ Os filhos
que perdeu…” (Pascoaes, 1997: 152)
Conhecemos assim pela sua pena muitas personagens que vivem a loucura
com a intenção de caminhar em busca da verdade. Na boca de um doido, a razão é
ameaçada e tudo conspira para alcançar o verdadeiro. Por isso, Pascoaes recusa a
distância ética concedida à loucura: ao contrário, ele aproxima-se dela porque a razão
já não se distingue da loucura. Reconhece-se nela, porque é anterior a ela. A loucura é
o cenário que distrai a consciência tranquila de uma razão segura de si mesma.
Foucault recorda aqueles tempos não muito longínquos da História da Loucura, em
que a loucura era interessante, porque reveladora de verdades ocultas:
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“Até o começo do século XIX, e até a indignação de Royer-Collard, os loucos continuam a
ser monstros — isto é, seres ou coisas que merecem ser mostrados.” (Foucault,1972: 158)
A partir do século XVIII, os loucos passaram a ser dirigidos para
estabelecimentos que se aproximavam da categoria de hospitais. De certa forma, isso
aproximava-os já da condição de doentes que a psicologia/ psicanálise vai acentuar.
Em A História da Loucura, Michel Foucault refere:
“Alguns hospitais irão testemunhar sobre a existência desse estatuto, através da era clássica e
até a época da grande Reforma. [...] é uma maneira, ainda de todo exterior, de abordar uma experiência
bastante positiva da loucura ‒ experiência que, retirando do louco a precisão de uma individualidade e
de uma estatura com as quais a Renascença o caracterizara, engloba-o numa nova experiência e lhe
prepara, para além do campo de nossa experiência habitual, um novo rosto: exatamente aquele em que a
ingenuidade de nosso positivismo acredita reconhecer a natureza de toda loucura.” (Foucault, 1972:
138)
Em Portugal, no século XIX, na aldeia em que cresce Teixeira de Pascoaes,
há vários tempos no tempo: a loucura não se esconde inteiramente e há ainda qualquer
coisa de profético no louco: a memória popular guarda melhor estes saberes que a
erudita. É algo para ser visto e ouvido com atenção. O louco já não é um monstro que
sobe do fundo de si mesmo, e a loucura é entendida como um conjunto de mecanismos
incompreensíveis que, por usufruírem de uma certa liberdade, dessa hesitação
racional, pode vagar para um universo verdadeiro, ainda que essa verdade seja do
domínio do fantástico. No período clássico, a razão nascia no espaço da ética. A ética,
como pensamento ordenado, funcionaria como oposição ao desatino. Mas entre a
loucura e a razão, há um movimento de escolha, de liberdade: para alcançar a razão, a
loucura tem de ser livremente excluída. Deixa, contudo, a sua sombra durante todo o
processo, uma espécie de perigo, pronto a reacender a qualquer momento. No Século
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XIX, frente à loucura, a razão tenderá a posicionar-se como uma necessidade positiva,
e não mais no espaço livre de uma escolha (cf. Foucault, 1972: 58). E todavia, a visão
de Teixeira de Pascoaes sobre a loucura permite-nos uma visão que uns poderão dizer
mais antiga, outros mais romântica, outros permanente, sem tempo:
“Cipriano, o doido que falava,/ Além do entendimento…/ Às vezes, com furor, gesticulava,/
cabelo desgrenhado e solto ao vento…/ E falando, lá ia, a sós, pelos caminhos,/ Cheios de sol e de
orações de pobrezinhos…” (Pascoaes, 1997: 153)
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Capítulo 2. – LOUCURA E RECONHECIMENTO
A voz da razão
“Jesus foi divinizado pela morte e D. Quixote
pelo ridículo. Não haverá parentesco entre a
morte e o ridículo? […] Deus criou o mundo
por ironia e ri nas estrelas da noite e nas
lágrimas da nossa dor.”
(Pascoaes, Livro de Memórias)
A hiperconsideração do Eu é a primeira marca de loucura esquizofrénica. É
devido a esta elevada autoconsideração que ele abraça o erro como verdade e vê a
mentira como sendo uma realidade. A loucura é consequentemente uma espécie de
sonho cujo acordar se receia, por se rebaixar a “auto-estima”. Esse pensamento
centrado na autoconsideração, quando levada ao seu limite, parece não ser compatível
com o pensamento filosófico, que metodicamente duvida das conclusões que lhe são
apresentadas, mas também daquelas a que o pensamento vai chegando. Michel
Foucault sintetiza:
“No percurso da dúvida, é possível desde logo pôr de lado a loucura, pois a dúvida, na
própria medida em que é metódica, é envolvida por essa vontade de despertar que, a todo momento, é
um desgrudar voluntário das complacências da loucura. Assim como o pensamento que duvida implica
o pensamento e aquele que pensa, a vontade de duvidar já excluiu os encantamentos involuntários do
desatino e a possibilidade nietzschiana do filósofo louco. Bem antes do Cogito, existe a arcaica
implicação da vontade e da opção entre razão e desatino.” (Foucault, 1972: 158)
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Para compreender as funções da loucura no pensamento de Teixeira de
Pascoaes, é importante perceber até que ponto existe algum tipo de colisão ou
interseção entre a dúvida e a certeza, ou alguma coincidência irónica entre o autor e a
personagem que se move no mundo imaginário do autor. Haverá algum diálogo entre
o enunciado do sujeito e a consciência distanciada da sua posição? Tal parece ocorrer
na criação literária, em que o autor se recria através de um intermediário, a
personagem. No texto literário, loucura e pensamento ficam colocados num plano de
equivalência, como se se validassem mutuamente. O pensamento de Foucault aponta
para uma assincronia cultural na história do Ocidente: a separação entre o logos e o
pathos, entre a filosofia e a literatura. Por ser retoricamente mais abrangente, por
existir numa posição de excesso pode inclui as estratégias excluídas pelo discurso da
filosofia. Por isso, em La Folie et la Chose Littéraire, Shoshana Felman escreve:
“La folie, c’est dès lors l’excédent: la littérature moins la philosophie. Sans qu’elle se
définisse elle-même en ces termes, l’histoire de la folie se dégage comme l’histoire de cet excédent, ou
de ce résidu littéraire.” (Felman, 1977: 50)
No entanto, em geral, o conhecimento filosófico ou psicológico da loucura,
continua a não aceitar esse contributo literário: a literatura funda-se numa catarse, num
espaço/ momento emotivo, em que um sujeito se apresenta como um outro, que é o
seu prolongamento e o seu antagonista, identidade em diálogo. A filosofia e a ciência
não aceitam a experiência lírica (mas também narrativa e dramática) que a literatura
pressupõe. Exaltando somente o poder do logos, elaboram numa rejeição desse
espaço/ momento em que a literatura se excede, em que o pathos é evocado. Para
Foucault, contar a história da loucura é contar a história desta obliteração do pathos. É
contar o caminho da loucura passando pela definição exclusiva de doença mental até
ao momento do alargamento de limites em que deixou de ser apenas o objeto mental
doente.
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“La folie, qui n’est pas maladie mentale, qui n’est pas objet, n’est rien d’autre que cet
‘éclatement lyrique’ et l’excès de ces ‘valeurs pathétiques’; cette capacité de déchirement, de
souffrance, de vertige et d’émotion, cette impuissante puissance de fascination littéraire: la folie, pour
Foucault, ne signifie rien d’autre que le pathos lui-même; la notion de folie est alors elle-même une
métaphore du pathos: du reste impensé de la pensée, de son excédent littéraire.” (Felman, 1978: 52)
Na literatura, a loucura serve de metáfora ao pathos. Como que o justifica.
Curioso é a loucura, ela mesma, estar presa num movimento ou estado patético, que
acaba por ser redundante ou de difícil validação. Por isso, falar de loucura, na
literatura, não é falar de razão nem de filosofia. No debate teórico sobre o estatuto da
loucura, vagamos entre o conceito da metáfora e entre a metáfora do conceito.
“Peut-être qu’après tout la folie de la philosophie et la philosophie de la folie ne sont que
figures l’un de l’autre? Ce qui ne veut nullement dire que les deux positions reviennent au même: mais
bien plutôt que si elles sont, toutes les deux, en position excentrique l’une par rapport à l’autre, eles sont
aussi, toutes les deux, en position excentrique par rapport à leur propre opposition, à la structure de leur
alternative.” (Felman, 1978: 54)
É o mesmo que dizer que a posição de quem diz (enunciador) não pode
coincidir com a posição do sujeito (paradoxalmente, é o mesmo de quem diz). Na
cultura popular: qual é o tolo que diz que é tolo? A loucura não pode ser lida como
conceito metafórico, enquanto a metáfora excluir a linguagem da metáfora. Se, por um
lado, a loucura tem de absorver o maior significado possível (como filosoficamente
lhe é pedido), por outro, ela terá de se exceder, de sair fora do corpo que a contém,
para “literariamente”, causar a maior ressonância possível. Esta indecisão do conceito
de loucura parece ser para Foucault uma consequência retórico-teórica, em que é
próprio da loucura não ser um conceito rigoroso e fechado:
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“[...] métaphore de la métaphoricité radicale qui régit les concepts en tant que tels; métaphore
de la littérature qui régit la philosophie à partir de son oblitération.” (Felman, 1978: 54)
Foucault refere ainda que a loucura não é mais que a ausência da obra. A
loucura produz obras que, no limite, sempre se transformam de forma a manterem-se
incognoscíveis, sem que se consiga perceber os limites da definição. São limites
incontroláveis porque estamos a falar num campo retórico e não temático. Quando a
«loucura» é invocada, há uma excentrificação do lugar da loucura (por ser uma
evocação retórica e não relativa ao seu centro conceptual rigoroso). A loucura é uma
questão infinita, que se nega e reescreve continuamente. Haja discernimento para a
saber ler, para a saber questionar mesmo quando, através do silêncio, somos nós os
questionados. Mesmo quando falarmos dela, é de nós que estamos a falar. Esta é uma
das mais irónicas vantagens da loucura.
No poema narrativo de Pascoaes O Doido e a Morte (de 1912), a Morte, que
cavalgava, a largo trote, numa noite fria de Natal, deparou-se com um estranho
viandante que se ri dela num primeiro momento. Encara-a, inicialmente despreza-a.
Perplexa, a Morte encanta-se pela loucura do Doido. Mas quando, no final do poema,
as duas personagens se separam, percebem que têm uma nova perceção do Mundo. Já
nada é como o sabiam. Diz a Morte:
“– Que hei-de fazer? Cumprir o eu fadário.
Antes de haver no mundo o teu delírio,
Eu existia já, tu compreendes?”
(Pascoaes, 1998: 288)
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O Doido prossegue o canto, agora já não de desprezo, mas de júbilo:
“Tive a morte nos braços, que alegria!
Que loucura!
Nas trevas encontrei a luz do dia,
Nas pedras, a ternura.”
(Pascoaes, 1998: 290)
No final do poema, como que se abrem os segundos olhos, os da Morte e os
do Doido: descobriram uma verdade que antes, à primeira vista, não conseguiam
perscrutar. Diz o Doido:
“E eu ri, de noite. E fiz mais:
Bebi o riso na origem,
Nesses lábios espectrais
Da morte virgem!
Vi o riso verdadeiro,
O riso desmascarado;
Não esse riso amortalhado
Em nevoeiro…”
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(Pascoaes, 1998: 291)
E a Morte diz:
“Ceifei; mas quero agora semear.
E já não murcha as flores o meu beijo,
Nem põe nódoas nos olhos das estrelas.”
(Pascoaes, 1998: 287)
Pascoaes, carregando a missão profética do Poeta, concentra-se em destapar
as coisas pequenas, indícios, desvelando o seu nível extraordinário. No apego
imaginário a si mesmo, tanto a Morte como o Doido fazem-se surgir, no final do
poema, um cenário novo e improvável. Por trás do símbolo da loucura, o Doido reflete
a imagem inicial do seu pressuposto. A loucura não tem tanto que ver com a verdade e
com o mundo, mas está intimamente relacionada com a verdade que o mesmo acredita
percecionar. A loucura está, portanto, conectada com o mundo moral:
“A razão é irracional, Deus humano, e sobrenatural a Natureza.” (Pascoaes, 1993: 9)
Não é por acaso que a cena se passa na noite de Natal. A ironia da situação
reside no facto de as personagens perceberem a discrepância entre a intenção e o
resultado da ação. Pascoaes define-se pelo desejo de recuperar o passado idílico,
paradisíaco, sagrado. Um reencontro com Deus, quase sempre inominável afinal.
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Talvez por isso, a poesia do autor tenha pontos em comum com as Sagradas
Escrituras: interessa-lhes um significado simbólico, nunca literal, ainda que centradas
nos aspetos concretos do real.
Sobre este assunto, diz Pierre Schoentjes:
“Les Évangiles aussi jouent régulièrement sur ce type de renversements et rebondissements et
ils transforment même en maxime l’idée de justice que véhicule ce genre d’anecdotes. […] Dans un
même ordre de pensée, tout le monde a en mémoire le principe de renversement selon lequel les
premiers seront les derniers, principe qui permet au Christ d’organiser son discours sur les Béatitudes.”
(Schoentjes, 2001: 51)
Na história do conceito de “ironia”, a ironia de situação seria uma expressão
bem mais recente que a utilização da ironia verbal. As palavras “irónico” e “ironia”
estariam intimamente ligadas a casos de ironia de situação, ou vulgarmente chamadas
“ironias do destino”. Na ironia de situação, o destino, o fatum não pode ser controlado,
é imprevisível e desvia o resultado do expectável. Como refere Pierre Schoentjes em
Poetique de l’Ironie:
“Confronté à un agencement particulier des faits dans lequel ce qui se produit est en
contradiction flagrante avec ce qu’il avait prévu ou avec ce qu’il considère comme l’ordre du monde,
l’homme éprouve toujours une surprise.” (Schoentjes, 2001: 50)
Schoentjes distingue as ironias de situação em duas categorias: as ironias
pictóricas ou figurativas e as ironias de situação, narrativas.
As ironias pictóricas ou figurativas encontram-se em situações mundanas e
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comuns, onde elementos aparentemente opostos coexistem em harmonia, de forma
íntima e inextrincável. Na Natureza, como na vida social, existem quadros onde a
beleza se acha lado a lado com o grotesco (as flores por cima do caixão prestes a entrar
na terra), ou o elemento ardente se conjuga com o gélido (o vulcão que explode para o
mar). Talvez essa coincidentia oppositorum faça parte do processo de equilíbrio que o
mundo precisa para se manter vivo, dinâmico. Mas as ironias de situação narrativas
não operam apenas com dois elementos contraditórios. São processos de
transformação de uma intriga que se desenrola durante um determinado período e que
se desenvolve independentemente da atenção do leitor. Este pode ser vítima de um
impedimento, não conseguindo visualizar por inteiro a situação, por não estar
consciente do jogo entre o ser e o parecer, entre a verdade e as suas aparências. O nó
está, por exemplo, no contexto: é ele que revela o que está ocultado. Ou na linguagem
o engana. Também através da palavra (que, por excelência é o veículo primeiro de
intercomunicação humana), a ironia se revela, com variabilidade e subtileza. A ironia
está na expressão da pluralidade do que é dito: há falsas sinonímias, homonímias,
imprevistas combinações possíveis de sons e sentidos. O pensamento fica dissimulado
por entre as palavras. Se normalmente o significado se adequa ao significante,
anormalmente, na ironia verbal, o corpo formal da palavra dissocia-se do seu
conteúdo, criando “realidades” antitéticas ou incompatíveis. Esta dissociação atinge o
seu extremo com a ironia, figura do discurso, quando a frase ‒ que deixou de exprimir
diretamente o que o pensamento quer – passou a significar o contrário do que se deseja
dizer. Na ironia, alcança-se a verdade pelo seu caminho negativo, virando-a do avesso.
Por vezes, só pela intuição se consegue aperceber a sua presença. Falando nos indícios
de ironia que o autor deixa ao leitor (nesse caso, na linguagem escrita), a ironia poderá
intuir-se pelo uso do itálico. Quando falamos de um ouvinte, a ironia é intuída pela
entoação. Mas, no limite, nenhum sinal é necessário.
Na ironia, não há leitores passivos ou ingénuos: o leitor é obrigado a tomar
uma posição ativa porque lhe é exigido um desdobramento lúdico para compreender
algo que se opõe à expressão linear/ literal do pensamento. Como diria Jankélévitch: a
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ironia não vem tanto para dizer mas mais para sugerir. Ou como diria Pascoaes: “há
distâncias que aproximam”.
Em todo o caso, a ironia assume-se como um discurso de rutura, e nisto se
aproxima do discurso da loucura pois o discurso de um louco já vem desgarrado da
realidade. Na loucura, há uma descontinuidade discursiva que é causa e efeito de
alheamento do real pelo louco. E, no entanto, a sua linha de pensamento permanece
presa por ténues fios de aranha à sua própria “verdade”, teia internamente coerente.
Há, de facto, uma coerência íntima nos loucos que rodeiam Pascoaes desde a infância
e que este faz questão de manter vivos, com a mesma idiotia, teimosia, retratada em
Lucrécia ou no filho da Viscondessa de Tardinhade:
“E o filho idiota do visconde, há mais de quarenta anos, a perseguir um inseto ideal que não
existe?” (Pascoaes, 2001: 135)
A ironia não se limita a sobrepor os princípios mais paradoxais. Ela interliga,
num esforço aberrante, linguagens heterogéneas para que, deste modo, possa alcançar
a imprevisibilidade, tirando partido do conflito entre significados e significantes.
Um louco e um irónico podem ter o mesmo discurso. Mas o irónico necessita
da consciência racional para formular a ironia porque domina o plano do real e possui
com ele a capacidade de manipular e subverter a linguagem por forma a sugerir novas
interpretações. Por outro lado, o louco não dispõe das mesmas armas (a dúvida, o
distanciamento da sua própria visão) e por isso não consegue manusear o discurso por
forma a dar-lhe uma nova intenção. O louco não tem domínio sobre a razão porque se
mantém no plano da inocência (qual é o louco que diz que é louco?). Utilizando a
ironia verbal, por exemplo, diz o falante irónico: Que bom violinista que ele é!
querendo dizer exatamente o contrário. No entanto, o louco pode ter o mesmo
discurso: Que belo som ele retira do seu violino!, quando na verdade, o som horrível
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se lhe configura como uma realidade em que ele acredita. Não há segundo plano na
intenção do seu discurso.
Então, o louco e o irónico podem ter o mesmo discurso, mas o louco não pode
ser irónico. Nem o irónico pode ser somente louco. É necessário na ironia haver um
sentido de exagero (desde logo nos indícios deixados ao recetor, nos itálicos ou na
entoação enfática): deve ser notável uma predisposição para hiperbolizar o que não é
real. Exagera-se para salientar a margem de dúvida. Isto é, o discurso irónico só é
certo quando não há margem de dúvida sobre o pensamento visado (quarenta anos a
perseguir um inseto parece exagerado e, todavia, tal frase não poderia ser dita por um
louco, que o consideraria um tempo normal). Na frase Que bom violinista!, o recetor
subtil ou informado, atento ao jogo de dissimulação, percebe que o violinista é mesmo
muito mau. Não é só um pouco mau, também pode não ser péssimo. A ironia é
sobretudo uma forma de enfraquecer a rigidez do real. A ironia vem instalar uma
dúvida entre o real e o exagerado. Poderá um louco ser irónico? Não cremos. Se um
louco pudesse ser irónico, rasgar-se-ia toda a possibilidade de ironia, já que o peso
ultrajante da ironia saindo da boca de um louco pressupõe a ponderação de uma
fronteira dúbia entre a verdade e o seu exagero. O violinista tem de facto de ser muito
mau para que até um louco se aperceba. Neste ponto,