Post on 05-Jul-2015
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa
Doutoramento em Estudos Portugueses
2009/2010
Problemáticas em Estudos Portugueses
A sombra da claridade
n’ A Invenção do Dia Claro
Joana Lima de Oliveira
Nº 20545
“Quando tu me beijavas, o sol não doía tanto na minha pelle!”1
Almada Negreiros
1 José de Almada Negreiros, A Invenção do Dia Claro, Assírio & Alvim, Lisboa, 2005, p. 27.
2
Partindo da premissa de Antero de Quental feita epígrafe n’ A Invenção do
Dia Claro de Almada Negreiros – “descerrar o escuro” -, este trabalho propõe-se a
desenvolver acerca da ideia de claridade, bem como acerca da ideia de sombra
inerente à poesia que atravessa A Invenção do Dia Claro. Para tal, inicia por pensar
em questões primárias que comecem a desvelar o sentido da obra referida – o seu
género e o seu tema. O trabalho realizado para o seminário de Metodologias em
Estudos Portugueses (intitulado “A Invenção do Livro n’ A Invenção do Dia Claro”)
tratou precisamente destes tópoi, e, embora não seja objectivo deste texto repetir
ideias da investigação a que me dediquei para outro seminário, parece relevante
estabelecer as conclusões retiradas acerca destes assuntos. Esta será uma obra de
difícil classificação2, na medida em que, tendo uma forte componente teatral e de
performance, foi lida como uma conferência em 1921 na Liga Naval lisboeta, e é
constituída por uma narrativa não-linear escrita em prosa poética. Apesar de hibridez
do género, é possível achar um tema relativamente lato que permite o princípio da
reflexão acerca de obra aparentemente tão hermética. Esse tema é a poesia,
afigurando-se A Invenção do Dia Claro como uma arte poética de Almada Negreiros.
Numa primeira reflexão sobre o pensamento poético de Almada, ainda no
referido trabalho, analisei a concepção que este tem de “livro”, “livraria”, “palavras”,
“filosofia”, e “tratado”. A partir desse estudo, este trabalho dedica-se a aprofundar a
questão do pensamento poético em Almada, e em particular uma dualidade conceptual
que perpassa em todos os pequenos textos d’ A Invenção do Dia Claro, dualidade que
parece ser a base da arte poética que a obra em questão constitui. Para tal, inicia por
denotar os vários binómios que são apresentados – “a metade masculina e a metade
2 Graça Videira Lopes desenvolve acerca do assunto: “A invenção do dia claro será certamente o texto
de Almada mais difícil de classificar. Como se sabe, no Verão de 1921, Almada anuncia uma
conferência com este título, que teve efectivamente lugar na Liga Naval, perante um público que,
certamente no rasto das suas célebres performances modernistas anteriores, acorreu em massa (e que
passou das gargalhadas iniciais ao aplauso final em pé, como mais tarde Almada orgulhosamente
recorda). O texto desta “conferência” saiu em seguida em edição própria, com capa do autor (como a
maior parte dos anteriores textos referidos, aliás). A partir daqui, a edição do texto não tem sido
evidente. Só para dar uma ideia, na edição das obras completas da Editorial Estampa, A invenção do
dia claro vem incluída no volume Poesias.” – Graça Videira Lopes, “ O Olhar do Pintor na Obra
Narrativa de Almada Negreiros (A Invenção do Dia Claro)”,
http://www2.fcsh.unl.pt/docentes/gvideiralopes/index_ficheiros/olhar_do_pintor.pdf, p. 7.
3
feminina”3 da humanidade, a Terra e o Sol, “as duas grandes alas da humanidade”4, a
luz e a sombra, o “licor bonito”5 e a “água simples”6, o “verbo ganhar”7 e o “verbo
desinchar”8. Esta ideia de binómio surge a partir do excerto de Almada que serve de
premissa a este trabalho, e que foi lembrado por Graça Videira Lopes quando chama
“a atenção para uma citação de um verso de Antero de Quental, que aparece num dos
fragmentos das «Confidências»”9:
“Bem nos tinham dito! - Espérem! foi o que nos tinham dito.
E nós esperámos. Ah! que sempre tive a certeza
que havia de chegar «o descerrar do escuro»! (ANTHERO, Sonetos.)”10
A esta constatação pertinente, a autora acrescenta que “o próprio título desta
«conferência» parece ser uma resposta a esta expressão de Antero (que, em «Arte e
Artistas», Almada considera um dos três «mais ilustres e notáveis da Terra Portuguesa
dos últimos anos» – os outros sendo Mouzinho de Albuquerque e Soares dos Reis).
Lido a esta luz anteriana, o título, de pessoal, passa a ser todo um programa - ou todo
contra-programa, se preferirmos.”11. Percepcionando-se A Invenção do Dia Claro
como arte poética, interessa então pensar na dualidade que existe entre claridade e
escuridão como “programa” ou “contra-programa”, a fim de desvelar em que consiste
3 José de Almada Negreiros, A Invenção do Dia Claro, Assírio & Alvim, Lisboa, 2005, p. 17.
4 José de Almada Negreiros , op. cit., p. 22.
5 José de Almada Negreiros , op. cit., p. 32.
6 Idem, Ibidem.
7 Idem, Ibidem.
8 José de Almada Negreiros , op. cit., p. 33.
9 Graça Videira Lopes, op. cit., p. 11.
10 José de Almada Negreiros , op. cit., p. 38.
11 Graça Videira Lopes, op. cit., p. 11.
4
o “Dia Claro”, promessa de invenção no título desta obra. Iniciada por um prólogo
(“O Livro”) em que são estabelecidos vários conceitos metaliterários (analisados no
referido trabalho do seminário de Metodologias em Estudos Portugueses), A Invenção
do Dia Claro tem como centro a narrativa de uma viagem tripartida na véspera da
viagem, na viagem em si, e no regresso da viagem, e construída através de uma
linguagem ingénua que oculta um pensamento poético mais obscuro.
Para o princípio da sua desocultação, atente-se no início de “Andaimes e
Vésperas”, o primeiro capítulo ou acto d’ A Invenção do Dia Claro:
“Mulheres e homens são as duas metades da humanidade--a metade masculina e a metade
feminina.
Ha coisas inteiras feitas de duas metades e aonde não se pode cortar ao meio para separar
essas duas metades. Exemplo: a humanidade com a metade masculina e a metade feminina.
São duas metades que deixam, cada uma, de ser uma metade se não houver a outra metade.
A linha que passa por entre estas duas metades é parecidissima com o ar por dentro de uma
esponja do mar, sêca.”12
Com o título de “A Conferencia Improvisada”, Almada estabelece imediatamente um
facto de que a audiência deverá estar ciente a fim de compreender a mensagem da
obra geral - o binómio de que é constituída a humanidade – a fim de enunciar a
génese de qualquer tipo de binómio. Afirmando que “ha coisas inteiras feitas de duas
metades e aonde nao se pode cortar ao meio para separar essas duas metade”, como a
humanidade feita de homens e mulheres, que deixaria de o ser se uma dessas metades
deixasse de ser metade, cria uma ideia de equilíbrio que rege todas as coisas, e, assim
também, a poesia.
Saliente-se que a esta dualidade ontológica antecede uma epígrafe que
anuncia e explica, ainda que de uma forma naturalmente hermética, esta ideia de
tensão de contrários que equilibra:
12 José de Almada Negreiros, op. cit., p. 17.
5
- O pequeno é como o grande.
- O que está em cima é analogo ao que está em baixo.
- - O interior é como o exterior das coisas.
- Tudo está em tudo.”13
O autor de tais princípios alquímicos foi Hermes Trismegisto, concretização de um
sincretismo que terá existido na Antiguidade entre o deus egípcio Tot e o grego
Hermes, ambos deuses da escrita nas respectivas culturas, e o “livro” em que estas
frases terão sido inscritas a Tabula Smaragdina, mais conhecida como A Tábua de
Esmeralda. Para além de anunciar imediatamente a relação de Almada Negreiros com
a sabedoria egípcia e grega, este excerto hermético explicita a ideia de unidade
cósmica através da sua própria fragmentação, da sua própria divisão. O pequeno é
como o grande porque, embora mais pequeno do que o grande, é metade do grande, e
deixa “de ser uma metade se não houver a outra metade”, o grande. Assim é também a
relação entre “o que está em baixo” e “o que está em cima”, entre o “interior” e o
“exterior”. E entre o homem e a mulher, que Almada refere na “Conferencia
Improvisada”.
Estabelecido o tom de filosofia pré-clássica do texto, é dado lugar à narração
que continua a arte poética iniciada em “O Livro”. Três “oleografias”, uma “casa”,
um “Deserto”, um “cavallo”, um “arabe”, uma “menina loira”, uma “palmeira”, uma
“esmeralda”, um “anel”, um “menino verdadeiro” são os elementos que constroem
uma história em que Almada, narrador, se implica a si e à grande ouvinte invisível d’
A Invenção do Dia Claro, a “Mãe”. Esta história poderia assemelhar-se a um
exercício de anamnese em que o autor se vai recordando progressivamente de
episódios desconjuntos temporalmente onde todos estes elementos vão aparecendo,
acontecendo, numa dinâmica de luz e sombra, que, ora os ilumina, ora os enubla. Esta
ideia de fragmentação literária é reforçada quando Almada afirma que há palavras
13 José de Almada Negreiros , op. cit., p. 14.
6
“que se vao embora”14 mas “voltam depois”15, “voltam sempre, e mudadas de cada
vez”16, numa “tournee maravilhosa que nos poe a cabeça em agua até ao dia em que já
sômos nós quem dá corda ás palavras para ellas estarem a dançar”17. Esta dança das
palavras que viajam é a dança do devir de Heraclito de Éfeso, segundo o qual tudo
flui, pantha rei, tudo no universo é fragmento e unidade – porque sendo fragmento é
parte e permite a totalidade, como uma metade da humanidade permite a outra
metade, permitindo a humanidade, como o que está em cima permite que algo esteja
em baixo, como o interior permite haver exterior.
Sob a forma de metáfora que aponta para uma “sofisticação da
simplicidade”18 do seu pensamento, como diria Jorge de Sena, Almada Negreiros
sugere que as palavras dançam e viajam, e cria uma narrativa em que as palavras
dançam e viajam dentro de uma viagem caótica, fragmentária e progressiva como o
próprio universo e a própria poesia, uma narrativa que nasce de “uma poesia universal
progressiva19, concepção poética inscrita quando, em “Valor das Palavras” afirma
que:
“Cada palavra é um pedaço do universo. Um pedaço que faz falta ao universo.
Todas as palavras juntas formam o Universo.” 20
Apesar de estar tripartida, esta narrativa de viagem não tem princípio, não
tem meio, não tem fim. Tem resto, tem rasto, e tem rumor. Embora seja possível
14 José de Almada Negreiros , op. cit., p. 19.
15 Idem, Ibidem.
16 Idem, Ibidem.
17 Idem, Ibidem.
18 Jorge de Sena, apud Celina da Silva, A Busca de Uma Poética da Ingenuidade ou a (Re)Invenção da
Utopia (Reflexão Sistematizante acerca da Produção Literária de José de Almada Negreiros, Porto,
Faculdade de Letras, 1992.
19 Philippe Lacoue-Labarthe, Jean-Luc Nancy, Anne Marie Lang, «Fragment 116», L'Absolu
Littéraire: Théorie de la Littérature du Romantisme Allemand, Paris, Seuil, 1978, p. 112.
20 José de Almada Negreiros, op. cit., p. 20.
7
enunciar logicamente os acontecimentos que vão sendo “lembrados”, o que surge
como interessante é a forma intermitente e labiríntica como nos é dada, iluminada
pela linguagem simples de criança que relembra episódios à sua mãe, e ocultada pela
falta de linearidade da narração e dos elementos míticos, religiosos, e simbólicos que
nela participam. Apesar de existirem vários binómios nesta obra, o que está sempre
presente é o de claridade e sombra. Embora Almada pretenda o programa ou contra-
programa de “descerrar o escuro”, não nos oferece um livro claro, antes um livro de
sombra, com inúmeros problemas hermenêuticos, um livro onde a claridade é
atenuada pela interposição de um corpo entre ela e o objecto luminoso. Este corpo é
poético, é a “linha que passa por entre estas duas metades”21 da humanidade que
Almada anunciara no início da conferência-poema, que as define como metades, não
as separando, contendo-as.
Este corpo parece ser o que permite a poesia:
“As mulheres e os homens estavam espalhados pela Terra. Uns estavam maravilhados, outros
tinham-se cançado. Os que estavam maravilhados abriam a bocca, os que se tinham cançado
tambem abriam a bocca.Ambos abriam a bocca.
Houve um homem sósinho que se poz a espreitar esta diferença - havia pessoas maravilhadas
e outras que estavam cançadas.
Depois ainda espreitou melhor: Todas as pessoas estavam maravilhadas, depois não sabiam
aguentar-se maravilhadas e ficavam cançadas.
As pessoas estavam tristes ou alegres conforme a luz para cada um - mais luz, alegres - menos
luz, tristes.
O homem sósinho ficou a pensar n'esta diferença. Para não esquecer fez uns signaes n'uma
pedra.
Este homem sósinho era da minha raça - era um Egypcio!
Os signaes que elle gravou na pedra para medir a luz por dentro das pessôas, chamaram-se
hieroglifos.
Mais tarde veiu outro homem sósinho que tornou estes signaes ainda mais faceis. Fez vinte e
dois signaes que bastavam para todas as combinações que ha ao Sol.
Este homem sósinho era da minha raça - era um Phenicio!
21 José de Almada Negreiros , op. cit., p. 17.
8
Cada um dos vinte e dois signaes era uma lettra. Cada combinação de lettras uma palavra.”22
Em “Historia das Palavras”, Almada narra outra história dentro da história que é
relembrada em tom confidencial (“Confidencias”) – a história da escrita, que teria
nascido de um binómio. Este consistiria na distinção entre pessoas “maravilhadas” e
pessoas “cançadas”. O autor salienta que no início todas estavam maravilhadas, mas
que, entretanto, o cansaço afectou algumas, facto que modificou o sentimento de
maravilha e que gerou a distinção – umas teriam “mais luz”, e consequentemente
estariam “alegres”, outras teriam “menos luz”, estando “tristes”. É precisamente da
curiosidade que esta diferença sugere que surge a necessidade de um “Egypcio” “não
esquecer” esta diferença, de testemunhar. É da necessidade de testemunhar a luz e a
sombra que surge a escrita, gravação de “signaes” “na pedra para medir a luz por
dentro das pessôas”, sob a forma hieroglífica. Depois de identificado o binómio que
dá a escrita à luz de que ela própria é feita, Almada indica o desenvolvimento da
escrita, desde os hieróglifos egípcios ao alfabeto fenício, com as suas 22 letras, que
têm o poder de, sendo fragmentos, poderem representar a totalidade do universo,
“todas as combinações que ha ao Sol”.
Almada é um estudioso da Antiguidade Pré-Clássica e Clássica, como muitos
dos seus textos evidenciam. Embora haja probabilidades de o futurista português ter
bebido estas ideias directamente das fontes gregas, Gustavo Rubim salienta uma
“afinidade (...) de Almada com Nietzsche”23, adivinhando-se a apropriação do
binómio claridade/sombra presente n’ A Invenção do Dia Claro a partir de O
Nascimento da Tragédia, onde o filósofo alemão constrói, a partir de bases filológicas
díspares, uma dualidade que, feita crer existir de uma forma clara na Antiguidade, terá
maior consistência se for pensada a partir do culto órfico24. Tensão de contrários
22 José de Almada Negreiros , op. cit., p. 19.
23 Gustavo Rubim, "Palcos de palavras: a cena da escrita na poesia de Almada Negreiros",
Colóquio/Letras nº 149/150, Jul./1998, p. 53.
24 O especial interesse órfico pelos dois deuses está representado numa peça perdida de Ésquilo, As
Bassárides, na qual Orfeu é retratado como um devoto do Sol, metáfora de Apolo, para raiva de
Dioniso, que envia Ménades para o assassinarem, e onde desponta a ideia de antítese entre os dois
deuses. Acerca deste assunto, leia-se SILK&STERN, Nietzsche on Tragedy, Cambridge, Cambridge
9
donde brota o equilíbrio, Apolo e Dioniso são as premissas mitológicas para a tese em
tom de antítese acerca da metafísica do artista que Nietzsche expõe n’ O Nascimento
da Tragédia, impulsos primordiais que “acasalados (…) acabam por gerar a obra de
arte, tão dionisíaca como apolínea, da tragédia ática”. Conquanto que não se pretenda
fazer paralelismos entre a tragédia ática, considerada obra de arte perfeita por
Nietzsche (contendo a luz e a música de que Apolo é metáfora, bem como a sombra e
a sabedoria que Dioniso representa) e A Invenção do Dia Claro, este binómio parece
ser o fio condutor de toda a sua fragmentariedade.
E continua, quando, inscrevendo-se na ideia romântica da escrita fragmentária,
Almada assume ter agarrado “uma mancheia de palavras”25 espalhando-as
arbitrariamente. No meio deste acaso, uma parábola gerando mais binómios:
“A humanidade abriu alas - as duas grandes alas da humanidade. Uma á direita, a outra á
esquerda. Em baixo a Terra, em cima o Sol.
Vae acontecer qualquer coisa - os que passam vão mais depressa, os outros já estão á espreita.
As duas grandes alas da humanidade lá estão as duas em frente uma da outra. Não levantem
os braços! não virem as cabeças!
Em baixo a Terra, em cima o Sol!”26
A humanidade dividida em “duas grandes alas”, a Terra sendo o que está “em baixo e
o Sol o que está “em cima” (como na Tábua de Esmeralda) são os binómios, é certo.
Resta saber o que está no meio, a “linha” que os divide, que os permite. Sendo a
sombra ou a falta de luz o resultado do atropelo da luz por um dado objecto, essa
“linha” terá de ser um obstáculo entre o Sol e a Terra, o obstáculo que produz a
sombra. Almada chama a essa divisão, a esse ponto de divisão, “o Christo de pedra”27.
E estabelece assim um paralelismo entre “A Parabola” e o início do prólogo “O
Livro”, desenvolvendo acerca do erro com que os homens procuram a salvação.
U.P., 1981.
25 José de Almada Negreiros , op. cit., p. 22.
26 Idem, Ibidem.
27 José de Almada Negreiros , op. cit., p. 23.
10
Enquanto que em “O Livro” o autor ironiza levemente acerca das “pessoas todas
muito bem vestidas de quem precisa salvar-se”28 entram numa livraria buscando
salvação e sabedoria em livros de filosofia que não terão tempo de ler devido à
miséria física de que a humanidade, perecível, é feita, nesta parábola a violência
ocupa o seu lugar:
“«Em vez de ter morrido n'uma cruz, por ti, antes tivesse pegado na lança que me abriu o
peito, para com ella te rasgar os olhos da cara. Para deixar entrar claridade para dentro de ti
pelos buracos dos teus olhos rasgados.
Tudo quanto eu te disse ficou escrito e é tudo ainda hoje tenho para te dizer. Se me fiz
crucificar para t'o dizer porque não te deixas crucificar para sabêres como eu t'o disse?
Não posso, por mais que tente, livrar uma das mãos, pregaram-m'as bem, como se prega um
crucificado; não posso, por mais que tente, livrar uma das mãos, para te sacudir a cabeça
quando viéres ajoelhar-te aqui aos pés da minha cruz.»”29
E o “Christo de pedra” arrepende-se de se ter deixado crucificar pela humanidade, de
não lhe ter dado claridade ainda que para isso fosse necessário o crime, rasgando-lhe
“os olhos da cara”. O que à primeira leitura aparenta ser uma crítica à religião cristã
revela-se uma crítica à fé dos homens, a uma busca cega (sem clareza) de salvação
que, ajoelhada aos pés da sua cruz, revela a sua hipocrisia quando não é capaz de se
deixar crucificar para saber a verdade escrita nas “frases que hao-de salvar a
humanidade”30 e que “ja estavam todas escritas”31, como Almada afirma no prólogo d’
A Invenção do Dia Claro. Tanto a leitura de “O Livro” como de “Parabola” sugere
esta crítica aos homens que não sabem viver, por oposição aos que sabem viver, os
Mestres (D. Duarte em “O Livro” e Cristo em “Parabola”) que terão escrito um
tratado que põe “sciencia” na vida dos homens (O Leal Conselheiro e A Bíblia,
28 José de Almada Negreiros , op. cit., p. 11.
29 José de Almada Negreiros , op. cit., p. 23.
30 José de Almada Negreiros , op. cit., p. 13.
31 Idem, Ibidem.
11
respectivamente). A novidade em “Parabola” é, para além da violência que contrasta
com o tom de menino que fala com a sua “Mãe” de que Almada dota esta obra, a ideia
de a claridade ser dada através dessa mesma violência. E até do crime.
Logicamente, fisicamente, se um olho for rasgado, cega. Porém, nesta
parábola, o crime dá claridade aos olhos, a claridade que lhes falta. Apesar do
binómio e da consequente dicotomia claridade/sombra que constrói A Invenção do
Dia Claro, semelhante à nietzschiana de apolíneo/dionisíaco (sinónima de lei/crime,
como está representada n’ As Bacantes), este momento do texto de Almada sugere
uma ideia de associação entre estas “duas metades”. Segundo a tese de Nietzsche,
apesar da dualidade, também na Antiguidade a associação entre os dois deuses era
grande, desenvolvendo-se no século V a. C. um processo de sincretismo pelo qual se
confundiam as duas divindades, à custa de uma justaposição de cultos32 em Delfos, o
omphalós, umbigo do mundo, centro de Apolo por excelência, gerada por uma
expansão em tom de epidemia da ânsia febril pelo culto dionisíaco por toda a Grécia.
No parágrafo 2 d’ O Nascimento da Tragédia, Nietzsche afirma que “o deus délfico
(…) tirou as armas de destruição do seu poderoso antagonista”33, vertendo-se daqui o
reconhecimento e posterior regulação que Apolo fizera do culto de Dioniso,
estancando a sua “epidemia”, e retirando todo o perigo de um êxtase regulado,
exercendo o seu poder de protecção sobre uma dada comunidade. O auge desta teoria
foi suscitado em 100 d.C. por Dio Crisóstomo ao afirmar que “alguns dizem que
Apolo, o Sol, e Dioniso são um só”.
Da mesma forma, o “Christo de pedra”, simbolizado pelo Sol na tradição
cristã, à imagem de tantos deuses pagãos que também nasceram na altura do solstício
de Inverno, tradicionalmente representando uma ideia de ordem, aparece como um
32 Alguns testemunhos deste sincretismo – um vaso do século V a.C. representando Apolo e Dioniso de
mãos dadas diante do omphalos, rodeados por sátiros e ménades, e, ainda, esculturas no templo de
Apolo em Delfos que narram a mesma situação, confirmando a informação dada por Plutarco,
sacerdote de Apolo, acerca da ligação dos dois cultos nesta cidade. Segundo o historiador, nos três
meses de Inverno soaria o ditirambo dionisíaco, reaparecendo Apolo na Primavera, e haveria espaço
para orgias em que bacantes vagueavam frenéticas pelas montanhas com tochas acesas, donde se
depreende a institucionalização do culto.
33 Friedrich Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, Relógio d’Água, Lisboa, 1997.
12
novo Apolo para ensinar aos homens que não sabem viver a domar a sua loucura, a
saberem viver com o seu instinto dionisíaco, com a sombra:
“«Não tenhas mêdo de estares a ver a tua cabeça a ir directamente para a loucura, não tenhas
mêdo! Deixa-a ir até á loucura! ajuda-a a ir até á loucura. Vae tu tambem pessoalmente, co'a
tua cabeça até á loucura! Vem ler a loucura escripta na palma da tua mão. Fecha a tua mão,
com força. Agarra bem a loucura dentro da tua mão!
Senão... se tens mêdo da duvida e te pões a fugir d'ella por môr da loucura que já está á vista,
se não começas desde já a desbastar a fantasia que cresceu no logar marcado para ti, lá em
baixo na terra; se não pretendes transformar essa fantasia em imaginação tranquilla e
creadora...
... um dia a loucura virá plo seu proprio pé bater á tua porta, e tu, desprevenido, e tu sem mãos
para a esganar, porque a loucura já será maior do que na palma da tua mão, porque a loucura
será maior do que as tuas mãos, porque a loucura poderá mais do que tu com as tuas mãos; e
ella fará de ti o pior de todos, por não teres sabido servir-te d'ella como tu devias sabe-lo
querer!»”34
Pedindo coragem face à loucura criativa (de que Dioniso é símbolo na concepção
nietzschiana, a par da sabedoria), este “Christo” renega a sua luz e incita os homens à
sombra, a conhecerem-se, a provarem o fruto da Árvore do Bem e do Mal, a lerem e a
agarrarem a loucura que está escrita nas palmas das suas mãos, e a transformarem
essa mesma loucura “em imaginação tranquilla e creadora”, associando assim
violência a efeito criativo. Embora esta confusão entre a claridade que Cristo
simboliza e a claridade que Cristo pede conseguida através do crime, e, assim, da
sombra, possa ter um intuito desafiador, crítico, e essa seja uma tese fácil de defender
dado o pendor de manifesto e crítica de toda a obra de Almada Negreiros, convém
lembrar o equilíbrio das coisas que Hermes Trismegisto, epigrafado n’ A Invenção do
Dia Claro, sugere através do sincretismo existente em todos os binómios, em todas as
aparentes antinomias. Sob essa perspectiva, o “Christo de pedra”, luz, é como a
sombra, e a sombra é como a luz.
34 José de Almada Negreiros , op. cit., p. 24.
13
Ainda que a partir do Iluminismo as luzes tenham passado a simbolizar
verdade, a concepção de claridade de Almada parece não subscrever tal simbologia.
Para além destes exemplos de harmonização entre claridade e sombra, em que só a
segunda possibilita a primeira, o autor prossegue associando fingimento a claridade:
“Mãe! As estrellas estão a mentir. Luzem quando mentem. Mentem quando luzem.
Estão a luzir, ou mentem?
Já ia a cuspir para o ceu!
Mãe! a minha estrella é doida! Coube-me nas sortes a Estrella-doida!”35
É assim num firmamento nocturno, de penumbra, que a claridade, metaforizada nas
“estrellas”, nele contrasta e mente, lembrando o Apolo de Nietzsche. Este é o Apolo
dos sonhos, da ilusão, da aparência, da arte visual. Esta criação, frequentemente
entendida como mera invenção nietzschiana que satisfaz uma tese forçosamente
antitética, tem fortes hipóteses de se cimentar no mito do nascimento de Apolo,
recriado por Calímaco no Hino a Apolo Délio. Filho de Leto e Zeus, ainda feto dentro
da barriga de sua mãe, Apolo conduzia-a para um local seguro não alcançável pela ira
da traída Hera, para que a ninfa pudesse finalmente dar à luz. A aflição e as peripécias
poéticas são notáveis e, contudo, o que reluz no hino é a capacidade profética de
Apolo, e o elemento que poderá sustentar a tese do deus enquanto símbolo da ilusão,
pelo jogo de luz e sombra: uma pequena ilha que voga errantemente pelo mar.
Frequentemente invisível, iludindo Hera, esta última acolhe Leto e Apolo, fazendo
com que aí o deus veja pela primeira vez a luz solar. A partir de então, é atribuído um
nome à ilha - Délos, a ilha então tanto visível como da aparência, justificando o
mundo imagético apolíneo de Nietzsche onde sonho, ilusão e arte visual se
entrelaçam.
Desta intermitência luminosa de estrelas que mentem quando luzem e que
luzem quando mentem decorre um certo despeito de Almada para com o Sol, que o
faz querer “cuspir para o céu”, e que o abandona, sem sombra:
35 José de Almada Negreiros , op. cit., p. 26.
14
“Depois o Sol começou a ficar muito encarnado e cada vez maior por detraz das dunas, muito
encarnado, e deixou-me sósinho em cima do muro.”36
Abandonado à luz, conhecerá a dor de estar ao Sol, apenas sarada pela sombra que há
num beijo materno, interposto entre a claridade e Almada, menino:
“Lembro-me exactamente! Quando tu me beijavas, o sol não doía tanto na minha pelle!”37
A partir da ideia de o Apolo nietzschiano, que Almada terá lido, simbolizar a
aparência e a arte visual, atente-se no subtítulo d’ A Invenção do Dia Claro, e
especialmente em Ensaios para a iniciação de portuguezes na revelação da pintura,
“desde logo, um excelente, ainda que algocríptico, resumo do texto que se segue e do
papel central que a pintura aí desempenha”38. Este parece ser chave da invenção. A
claridade é a aparência que existe na pintura, e a invenção do dia claro afigura-se
como a invenção de uma forma conferencial, ensaística e poética de escrever a pintura
que afinal parece não ser suficiente para Almada Negreiros, concretizada na narração
de uma “oleografia” em eterno devir. Ainda que o autor se tenha distinguido pela sua
vasta e rica obra visual, revelou possuir sempre a necessidade da escrita, de
testemunhar as diferenças com “signaes”, como o “Egypcio”. E assim inventa a
claridade, para permitir a sombra que não existe no escuro mas apenas com e na luz,
como a claridade do “Christo de pedra” que só existe com e no crime dionisíaco
remetendo imediatamente para um mundo de sombra, numa dinâmica hermética e
sincrética. A sombra que a pintura permite que os “signaes” e, assim, a escrita sejam.
Sendo metade da claridade, compreende-se assim o facto de a ideia de
sombra ser poucas vezes mencionada por Almada – a sua evidência ontológica não
força a sua afirmação, a sombra está latente na claridade, enquanto simetria e rumor.
António Cândido Franco, a propósito de magia e poesia enquanto rumor, afirma que
36 José de Almada Negreiros , op. cit., p. 25.
37 José de Almada Negreiros , op. cit., p. 27.
38 Graça Videira Lopes, op. cit., p. 3.
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“a Magia, como ‘ciência’ das relações análogas, sempre foi sensível a este rumor
intersticial da linguagem verbal, sopro fundador de uma língua vinda de regiões
anteriores ao próprio nascimento do homem e da sociedade, língua não normativa e
imprópria para conversar, e certos pentáculos mágicos, ainda hoje conhecidos, têm no
seu centro inscrições verbais, que não podem ser entendidas à luz de nenhuma língua
sensate, mas apenas de um sentido ultimo de sugestão ou excesso”39. Estas inscrições
mágicas, como as de Hermes Trismegisto que Almada tão firmemente epigrafa, são
“fórmulas quase demenciais (…) que desmultiplicam a linguagem, arrancando-lhe o
seu estatuto referencial, reiterativo e lógico”40. Para além da fragmentação temporal d’
A Invenção do Dia Claro (Almada está sempre a “lembrar-se!”, em jeito de narrativa,
de coisas que ainda não viajou, imiscuindo-se o Futuro no Passado e no Presente, e
destruindo assim qualquer noção temporal lógica) esta desmultiplicação da linguagem
está contida numa fórmula demencial, de quem é surrealista antes do tempo:
“E uma das raparigas pôz-se a cantar o succedido ás tangerinas a rolar pró mar:
tam
tam-tam
tanque
estanque
tangerina bola
tangerina boia
tangerina ina
tangerininha
pacote rôto
batuque nú
quintal da nóra
e o dique
e o Duque
39 António Cândido Franco, Poesia Oculta, Vega, Lisboa, 1995, p. 115.
40 António Cândido Franco, op. cit., p. 116.
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e o acqueducto
do Cúco
Rei Carmim
e tamarindos
e amarellos de
Mahomet
alli
e lá
e acolá
...”41
Canção que relembra a sombra, a loucura, e o rumor que há na poesia de Ângelo de
Lima, a canção da rapariga às tangerinas parece um bom exemplo “de um sopro que
inviabiliza, pelo que nele se insinua de resto ou de desconhecido, o sentido mais
vulgar da linguagem, da sua sensação de cheio”42. O sentido vulgar da linguagem
parece não ter lugar nesta invenção que se ocupa de harmonizar a ilusão que a pintura
oferece com a sabedoria que os “signaes” oferecem, e que o faz à imagem das
fórmulas demenciais que apenas os magos, os poetas, e as crianças criam (saliente-se
que o narrador desta história parece ser Almada menino), e que, no mesmo sentido em
que Paul Celan viria a pensar (“Diz verdade quem fala de sombra”), encontra na
sombra um sinónimo para verdade:
“Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!”43
Parecendo existir, de facto, uma reactualização “da palavra primordial, pensamento e
acção consubstanciados no verbo, reunião de poesia e profecia”, em que a
41 José de Almada Negreiros , op. cit., p. 27.
42 António Cândido Franco, op. cit., p. 117.
43 José de Almada Negreiros , op. cit., p. 28.
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“modernidade, posicionamento crítico, patenteia-se pela ânsia de absoluto na
expressão, na qual a memória (re)assume o seu cariz de matriz sapiental que o mito,
ab initio, lhe conferia"44, esta palavra primordial aparece como “a cifra da verdade, o
corpo e o transporte de tal emoção”45, como a sabedoria que o culto dionisíaco
possibilita.
Desta ideia de reactualização primordial feita através da vanguarda, e não
querendo este estudo ater-se na concepção nietzschiana de claridade, convém salientar
o esforço de Almada em ser vanguarda, e uma vanguarda como um movimento que
quer iluminar o caminho dos outros, posicionando-se avant-vague, à frente do seu
tempo. Na contracapa de O Que É o Contemporâneo?, de Agamben, estabelece-se
que “contemporâneo é o que recebe em pleno rosto o feixe de trevas que provém do
seu tempo”, imagem que pode ajudar a desocultar o que até agora aqui parece envolto
em mitologia clássica. Assim, ser contemporâneo não é estar na sua época como se
nada da sua época lhe seja estranho, mas antes pertencer a uma época com uma certa
estranheza. Do mesmo modo, Silvina Rodrigues Lopes afirma que “na nossa não-
contemporaneidade, no nunca pertencermos ao nosso tempo, radica a aliança entre a
saudade e o desejo (cantada com tanta veemência por Pascoaes), que faz do presente o
tempo do mistério. A equação que nos exibe a vida como mistério não permite
soluções, mas exige resposta: lançados no hiato entre um passado a (re)inventar e um
futuro que nos figuramos em promessa, a nossa existência é resposta.”46 Assim,
Almada, balançando entre a vanguarda (o desejo) e uma tradição antiga (a saudade),
traduz a sua própria dualidade criadora e a sua “não-contemporaneidade”, num
Presente que não é um tempo, já que, como defende a ideia de cascatas de
modernidade de Gumbrecht, aí existem vários presentes, onde coisas que estavam já
em potência poderão ser actualizadas. Esta actualização é feita poliedricamente, já
que “o tempo da literatura, cultura, e arte não tem um limiar. A criação prossegue e
trezentos anos depois temos outra produção que repesca aquela e lhe dá uma
configuração diferente. A leitura e cultura faz-se intermitentemente”47 – como as
estrelas que luzem quando mentem e que mentem quando luzem.
44 Celina Silva, op. cit., pp. 300-301.
45 Fernando Cabral Martins, “Lendo «A Invenção do Dia Claro»”, Colóquio/Letras nº 149/150, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, Jul./1998, p. 86.
46 Silvina Rodrigues Lopes, “Marcas do Desespero”, Românica 5, 1996, p. 19.
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E essa actualização toma em Almada Negreiros a forma do Orfismo. À
imagem de Delaunay, na sua busca pela fragmentação da forma através de planos de
cor e luz, o poeta d’Orpheu cria uma narrativa circular onde a forma fragmentada e os
seus contornos revelados entre a luz e a sombra afasta a necessidade de uma lógica
narrativa espácio-temporal para fundamentar a palavra, sendo a própria palavra o
motivo, o cerne, o fim. E o lugar ou não-lugar. Gustavo Rubim recorda as palavras de
Almada:
“A Poesia passa sem aonde”48.
Assim, a poesia, na sua pertença “ao espaço de uma criação essencialmente
inconclusa, ou seja, uma criação cuja essência é não dar origem ao seu próprio fim,
como um acto que apenas se cumpre na reiteração que o impede de estar
definitivamente cumprido”49, é o beijo materno, é o corpo que está entre a claridade e
a sombra, gerando a segunda, é o sincretismo entre Apolo e Dioniso a que Nietzsche
chama perfeição e outros chamam de tragédia ática, passando e exitindo num ponto
indeterminado em que as antinomias deixam de o ser porque são afinal metades de
outras metades, fragmentos do universo que permitem a totalidade do universo. É a
actualização de um rumor primitivo poético e da sabedoria contida nos escritos
herméticos egípcios, e nos testemunhos que o alfabeto fenício permitiu ao longo da
história literária, através de uma vanguarda literária, possivelmente consciente da sua
inscrição futura no cânone da literatura. Esta ideia de passagem num “aonde” onde os
binómios que perpassam toda A Invenção do Dia Claro se unem, entre a claridade e a
sombra, parece expressa quando anuncia conclusivamente:
“Fiz todas as horas do Sol e as da sombra. Ao chegar a noite estive de accordo com o Sol no
que houve desde manhã até ser bastante a luz por hoje. Depois veiu o somno. E o somno
chegou a horas. Antes do somno ainda houve uma imagem - um leão a dormir!”50
47 Claudio Guillén, “Las Configuraciones históticas: historiología”, Entre lo Uno y lo Diverso.
Introduccíon a la Literatura Comparada, Barcelona, Editorial Crítica, 1985, pp. 362-431.
48 José de Almada Negreiros, apud Gustavo Rubim, op. cit., p. 55.
49 Gustavo Rubim, op. cit., p. 52.
50 José de Almada Negreiros , op. cit., p. 35.
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Se a palavra é “a chave de toda a imagem”51, o sono deste leão, esta imagem, parece
ser a chave de toda a palavra, consubstanciando-se aqui a força do binómio
claridade/sombra. Eduardo Lourenço explica que “é o poema mesmo que cria
realidade que nós tocamos depois de o ter lido. Não é descrição, nem comentário, nem
alusão, nem símbolo, nem mesmo sugestão. [...] A poesia não vem depois do mundo,
imagem tranquila, desesperada ou sublime desse mundo. O mundo que há é esse que
o poema faz existir ou inexistir”52. O “leão a dormir” é mundo. Se “a Poesia aparece
sob a espécie de obra absoluta, inexorável, edificada pelo «homem» mas mãe do
próprio homem, que «edifica a sua obra não importa onde em toda a parte» porque o
«único onde da obra fica fora do Tempo e do Espaço, no eterno presente do
homem»”53, A Invenção do Dia Claro propõe-se como a invenção de um aonde onde
a estética da pintura (pela vanguarda) e o rumor de verdade da poesia (pela
antiguidade e tradição) se fundem poliédrica e hermeticamente, numa oleografia-
poesia que é símbolo do binómio claridade/sombra, em que há lugar para a luz que
Cristo significa tradicionalmente e onde cabe uma “Mãe” sempre transformada em
cada mudança que acontece na tela da invenção, como a própria poesia sempre em
devir que é “mãe do próprio homem”.
Assim, três “oleografias” são o tríptico donde emana a claridade pictórica
que bate poliedricamente numa “casa”, num “Deserto”, num “cavallo”, num “arabe”,
numa “menina loira”, numa “palmeira”, numa “esmeralda”, num “anel”, e num
“menino verdadeiro”, criando a sombra, e, assim, a poesia. Cada “oleografia” é dada
como uma tábua de esmeralda onde se inscrevem e escrevem verdades ou o rumor de
verdades. Tendo feito “todas as horas do Sol e as da sombra”, Almada Negreiros “ao
chegar a noite” esteve “de accordo com o Sol no que houve desde manhã até ser
bastante a luz”, e, inventando a narração de uma oleografia tripartida, transfigurando
o Orfismo pictórico em “signaes”, e para isso reactualizando uma tradição antiga, fez-
se aquilo que tinha dito querer-se:
51 José de Almada Negreiros, apud Gustavo Rubim, op. cit., p.
52 Eduardo Lourenço, Tempo e Poesia, Porto, Inova, 1974, p. 167, apud Gustavo Rubim, op. cit., p. 58.
53 Gustavo Rubim, op. cit., p. 53.
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“ponte”54.
Bibliografia
ALEXANDRIAN, Sarane, Histoire de la Philosophie Oculte, Paris, Seuil, 1972.
54 “Aforismático, paradoxal, sentencioso, inventor de uma portugalidade verdadeira demais para ser
real e caber no quadrilátero, pinta com a linguagem escrita uma alacridade, um donaire, uma agudeza
oral dir-se-iam “vicentinas” se não viessem do mesmo antiquíssimo caldo de cultura popular para
depois se projectarem património perpétuo. Ele, Almada (disse um dia, em entrevista), quis-se ponte.”
– Vítor Silva Tavares, “À primeira vista”, Colóquio/Letras nº 149/150, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, Jul./1998, p. 13.
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