Post on 08-Jun-2020
UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES
A IMPORTÂNCIA DO VAZIO NO DIÁLOGO EXPOSITIVO
Os Paradigmas do Vazio na Museologia
Miguel Ângelo Vieira dos Santos
Dissertação
Mestrado em Museologia e Museografia
Dissertação orientada pelo Prof. Doutor Jorge dos Reis
e pelo Prof. Mariano Piçarra
2017
RESUMO
No contexto museológico, a interpretação e o correto entendimento dos objetos expostos bem como da sua aura são de forma indubitável influenciadas pelo meio em que se inserem, pelo que se encontra em seu redor, ou pelo vazio existente no espaço. Patente em diversas culturas e eras, o vazio influencia a espiritualidade e a transcendência humana até aos dias de hoje, refletindo-se em aspetos estéticos nas diversas temáticas da arte. De modo a comprovar a importância do vazio no valor do diálogo expositivo, é feito um estudo interpretativo do diálogo expositivo, partindo de uma investigação acerca da perceção e da transcendência humana, considerando aspectos socioculturais de diversas épocas e culturas. Deste modo é possível encontrar uma leitura e compreensão universal para o discurso do acervo de uma exposição e contribuir para a inovação e desenvolvimento da musealização de novos espaços. Esta investigação teve como base fundamentos e conceitos considerados por alguns autores incontornáveis na história das disciplinas de Museologia, Museografia e mesmo da Filosofia, de relevância ontológica, metafísica, epistemológica e ética, considerando também estudos semióticos e da percepção do ser. Entre eles destacam-se Walter Benjamin, Johann Winckelmann, John Ruskin, Alois Riegl, Georg Hegel, Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre, Merleau-Ponty, Wassily Kandinsky, Rudolf Arnheim, Roland Barthes, John Cage, Fernando Pessoa, Susan Sontag e Gilles Lipovetsky, pela influência das suas obras. Respeitante a toda a obra de arte, esta reflexão denota que o vazio é um elemento de grande relevância para as disciplinas de Museologia e Museografia ao enumerar sete paradigmas que vivem deste conceito, vinculando cada um à Museologia. Para a concretização da presente dissertação foi essencial a compreensão de toda a envolvência que relaciona os valores do vazio com os valores da obra ou objeto musealizado no seu contexto expositivo, tendo como fim a total conservação preventiva do acervo.
Palavras-Chave:
Museologia, Vazio, Aura, Diálogo Expositivo, Transcendência
ABSTRACT
In the museological context, the interpretation and the correct understanding of the exhibited objects and it’s aura are undoubtedly influenced by the environment in which they are inserted, what is around them, or the void surrounding them. Present on several cultures and different eras, emptiness and void have influenced spirituality and human transcendence to this day, being reflected on the aesthetic of various art themes. In order to prove the importance of the void in the value of the exhibition, an interpretative study of the exhibition is made, starting with an investigation about human perception and transcendence considering sociocultural aspects of different times and cultures. Thus, in order to find a universal understanding for the collection display of an exhibition, contributing to the innovation and development of the musealization of new spaces. This research was based on foundations and concepts considered by some authors in the history of the disciplines of Museology, Museography as well as Philosophy with ontological, metaphysical, epistemological and ethical relevance, also considering semiotic studies and the perception of being. Among them Walter Benjamin, Johann Winckelmann, John Ruskin, Alois Riegl, Georg Hegel, Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre, Merleau-Ponty, Wassily Kandinsky, Rudolf Arnheim, Roland Barthes, John Cage, Fernando Pessoa, Susan Sontag and Gilles Lipovetsky stand out by the influence of their works. Related to the whole work of art, this reflection indicates that the emptiness is an element of greater importance for the disciplines of Museology and Museography by enumerating seven paradigms that live from this concept, associating each of them to the field of Museology. For the accomplishment of the present dissertation it was essential to understand all the surroundings that relate the values of the void to the values of the work or museum object in its exhibition context, aiming the complete preventive conservation of the collection.
Keywords:
Museology, Aura, Emptiness, Exhibition, Transcendence
Agradecimentos
Aos meus pais, por me proporcionarem não apenas a existência, mas
também tudo o que vivi. À família e amigos, bem como a todos os que de alguma
forma me ensinaram algo até aqui.
Catarina Chicau, por toda a força e apoio, Pedro Fonseca e Silva, pelas
tertúlias que por ciclos se uniram, Mestre Compositor Ricardo Ribeiro, pela
atenção e informação partilhada.
Ao meu Orientador, Professor Doutor Jorge dos Reis e Co-Orientador
Professor Mariano Piçarra, pelo acompanhamento essencial para este trabalho
e por tudo o que aprendi convosco.
1
Índice
Índice .................................................................................................................. 1
Índice de figuras ................................................................................................ 3
Siglas .................................................................................................................. 4
Introdução .......................................................................................................... 5Objetivo do estudo .................................................................................. 5
Metodologia e Processo .......................................................................... 6
Estado da Arte ......................................................................................... 7
Modelo Teórico ........................................................................................ 7
Quadro Conceptual ................................................................................. 8
Parte I ............................................................................................................... 101 Os Paradigmas da Ideia de Vazio ................................................... 10
1.1 Desmaterialização .................................................................... 17
1.2 Pureza ...................................................................................... 18
1.3 Silêncio ..................................................................................... 20
1.4 Ausência .................................................................................. 26
1.5 Aberto ....................................................................................... 27
1.6 Leveza ...................................................................................... 42
1.7 Branco ...................................................................................... 44
Parte II .............................................................................................................. 462 Vinculação dos Paradigmas da Ideia do Vazio na Museologia ....... 46
2.1 Desmaterialização na Museologia ........................................... 47
2.2 Pureza na Museologia ............................................................. 51
2.3 Silêncio na Museologia ............................................................ 57
2.4 Ausência na Museologia .......................................................... 63
2.5 Aberto na Museologia .............................................................. 67
2.6 Leveza na Museologia ............................................................. 73
2.7 Branco na Museologia ............................................................. 76
Conclusão ........................................................................................................ 80
2
Bibliografia ....................................................................................................... 83
Webgrafia ......................................................................................................... 87
Iconografia ....................................................................................................... 89
3
Índice de figuras
Figura 1 ............................................................................................................... 6
Figura 2 ............................................................................................................. 29
Figura 3 ............................................................................................................. 32
Figura 4 ............................................................................................................. 36
Figura 5 ............................................................................................................. 37
Figura 6 ............................................................................................................. 38
Figura 7 ............................................................................................................. 39
Figura 8 ............................................................................................................. 41
Figura 9 ............................................................................................................. 50
Figura 10 ........................................................................................................... 50
Figura 11 ........................................................................................................... 55
Figura 12 ........................................................................................................... 55
Figura 13 ........................................................................................................... 60
Figura 14 ........................................................................................................... 60
Figura 15 ........................................................................................................... 67
Figura 16 ........................................................................................................... 72
Figura 17 ........................................................................................................... 72
Figura 18 ........................................................................................................... 72
Figura 19 ........................................................................................................... 75
Figura 20 ........................................................................................................... 78
4
Siglas
ICOM — International Council of Museums/Conseil International de Musées
UNESCO — United Nations Educational, Scientific Cultural Organization
5
Introdução
O desenvolvimento de uma exposição deve ter determinadas
preocupações essenciais para a correta musealização de um espaço, de modo
a apelar à atenção do visitante. Esta investigação parte da evolução da
disposição das obras observada ao longo da história da museologia, desde os
gabinetes de curiosidades até às galerias da atualidade, considerando a
dispersão que se tem criado entre as obras. Propositada ou não, existe nesta
evolução uma marcante procura pelo vazio que passou ser vista como uma
preocupação de conservação preventiva. Agregar esta preocupação à
construção de um discurso expositivo como disciplina museológica é, portanto,
uma mais valia para a evolução expositiva, de modo a estimular novos interesses
para o visitante e libertar a aura de cada peça.
Objetivo do estudo
O presente trabalho pretende demonstrar a importância do vazio na
valorização de um diálogo expositivo, conseguindo uma melhor interpretação e
interação entre o observador e a obra. Para isto, a capacidade de transcendência
e de concentração em função do meio envolvente serão o foco desta
investigação.
A importância do vazio no diálogo expositivo é analisada através do estudo
de obras de diversos autores de onde emergem sete paradigmas. Aqui, as suas
ideias fundem-se, surgindo uma afiliação de cada autor com o vazio. Estes
conceitos serão apresentados em duas partes sendo que na primeira serão
analisados a Desmaterialização, a Pureza, o Silêncio, a Ausência, o Aberto, a
Leveza e o Branco. Na segunda parte, os mesmos conceitos serão analisados
no contexto museológico. Estes paradigmas do vazio na Museologia surgem
com a evolução sociocultural, notável na progressão dos valores estéticos nas
obras e na forma como são apresentadas, que tem vindo a ser beneficiada com
o auxílio e apropriação das novas tecnologias.
6
Metodologia e Processo
Este trabalho parte da exploração de diversos conceitos que unem o vazio
à perceção humana, à forma como este pode ser fundamental para a
compreensão de um discurso expositivo e outras questões consideradas
essenciais para uma comunicação eficaz. As questões associadas ao contexto
comportamental do objeto e do observador são não só semióticas e sonoras,
como cronológicas e espirituais, sendo por isso analisadas do ponto de vista de
diversas áreas de estudo, nomeadamente a filosofia, que permitem uma ligação
ao mundo da museologia. Assim, esta investigação terá a seguinte estrutura:
Figura1
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Estado da Arte
Diversos autores analisaram conceitos determinantes para que se possa
compreender a importância do vazio na museologia. Desde noções milenares
até a reflexões contemporâneas, destaca-se, por exemplo, o pensamento
ocidental budista. Também autores como Johann Winckelmann, Walter
Benjamin, Friedrich Hegel, Alois Riegl e Erwin Panofsky desenvolveram estudos
importantes para o desenvolvimento e organização das artes com grande
influência para a conservação preventiva das mesmas.
No âmbito das disciplinas relacionadas à ontologia e transcendência,
destacam-se Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre, Rudolf Arnheim e Wassily
Kandinsky, tendo os dois últimos sido essenciais para o desenvolvimento dos
estudos da perceção humana. Algumas referências relevantes para o estudo
deste tema são obras como Inside the White Cube (1986) de Brian O'Doherty,
La Chambre Claire (1980) de Roland Barthes, bem como Silence (1961) de John
Cage.
Modelo Teórico
Este trabalho está dividido em duas partes. A primeira parte passa pela
análise de conhecimento de diferentes obras, absorvendo alguns conceitos
essenciais para o tema inseridos em cada paradigma apresentado. Na primeira
parte, Os Paradigmas da Ideia de Vazio, são definidos os seguintes conceitos-
chave: Desmaterialização, Pureza, Silêncio, Ausência, Aberto, Leveza e Branco.
Aqui, são tratadas noções como a Aura, de Walter Benjamin, que é essencial
para o desenvolvimento desta investigação, o Zeitgeist, que Hegel define como
o espírito do tempo e o Kunstwollen, de Alois Reigle, relevante para a
compreensão e conservação preventiva da arte. São ainda referidos neste
trabalho estudos sobre a essência e a transcendência humana, e o “objeto-
essência”, baseado nos fundamentos de Kandinsky, Heidegger e Sartre, antes
de ser analisado na “Arte e Percepção Visual” de Arnheim.
Esta dissecação de conceitos é imprescindível para a investigação no
intuito de fundamentar na segunda parte, Vinculação dos Paradigmas do Vazio
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na Museologia, a forma como estes conceitos se associam à Museologia,
mantendo a sequência estrutural de capítulos da parte I e II, em que cada
paradigma se relaciona com a sua vinculação. Através de reflexões e
investigações científicas acerca da perceção humana que contribuem e
potenciam uma nova abertura entre a peça e o observador, são alcançadas
novas possibilidades de compreensão para uma linguagem universal.
Quadro Conceptual
Para uma boa compreensão desta investigação foi elaborado o seguinte
quadro conceptual que ajuda a clarificar certos conceitos que possam não ser
bem interpretados.
Aura — A aura faz parte do caráter do objeto, proporcionando-lhe uma
valorização divina referente à sua unicidade, autenticidade e história. Esta é a
essência do objeto, tratada por Walter Benjamin no seu ensaio A obra de arte na
sua reprodutibilidade técnica (1936) como uma realidade intocável, sendo aquilo
que se sente na presença de um objeto ou obra de arte. Este sentimento de
caráter transcendental é conseguido pela sensibilidade que quem o observa
sendo um valor pertencente ao objeto que se encontra entre a perceção e o
sentimento da sua presença.
Momento Aurático — Pode ser descrito como o momento em que a obra
atinge a sensibilidade do apreciador alcançando um êxtase emocional e
transmitindo um sentimento pela presença do seu “hic et nunc [aqui e agora,
N.d.T], a sua existência única no lugar em que se encontra.” (Benjamin. p.10) .
Ocorre quando o observador se deixa envolver pela aura do objeto e a
contempla, sentindo a sua essência, criando um diálogo único e particular entre
o ser e a obra. Neste momento o poder da monumentalidade da obra arrebata o
ser, monumentalidade esta que pode não ser referente à dimensão da obra mas
sim aos seus valores e características.
Vazio — O Vazio é aqui apresentado como um valor estético que distancia
aparições e momentos temporais, como um mito que para Fernando Pessoa “um
nada que é tudo” (Pessoa, 1972). O vazio, por vezes tratado como o Nada,
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coloca questões inerentes à transcendência humana e ao espaço que rodeia o
ser. Este conceito é por vezes utilizado no quotidiano para descrever a ausência
de algo.
Zeitgeist — Termo cunhado por Hegel com definição de espírito do tempo.
Representa a integração espiritual e cultural do mundo, em determinada época
ou período de tempo e pertence aos valores das diferentes culturas e civilizações
de cada época. Para Hegel a natureza de cada objeto pertence à época e cultura
em que foi reproduzido, fazendo parte dos valores de um objeto ou obra de arte.
Kunstwollen — Termo que Riegle entende como vontade de arte através
da forma e material do objeto, como uma energia interna da criatividade humana
que provoca uma conexão formal entre os acontecimentos de uma época. Riegle
concluiu que a forma evolui por si, dependendo de si mesma em função do
material ou técnica com que o objeto é trabalhado.
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Parte I
Os conceitos apresentados neste capitulo expressam a importância da
transcendência e perceção humana, bem como a sua compreensão e a evolução
cronológica através de novos conceitos que evoluíram e se têm vindo a
influenciar. São apresentadas diferentes ideias que desfragmentam diversas
componentes temáticas e que se refletem na musealização de um percurso.
Aqui, cada objeto é colocado de forma a preservar o seu próprio vazio e ir ao
encontro do sublime.
1 Os Paradigmas da Ideia de Vazio
O vazio, ou o nada, é um conceito complexo e subjetivo sobre o qual é
possível refletir. Podemos supor que antes da existência do nada existe algo, e
que pode haver nada dentro de nada. Assim, o nada deve estar dentro de algo.
O nada que existe antes de existir algo mais já é, só por si, alguma coisa, sendo
que esse nada deverá estar em algo, ou seja, é limitado por algo. Deste modo,
podemos questionar como proveio, do nada, algo, se este não era nada. É
possível propor a existência de um tudo antes do nada. O nada é, portanto, tudo.
Neste contexto, Hegel refere:
Cada uma das partes da filosofia é um todo filosófico, um círculo arredondado e completo por si
mesmo. Em cada uma dessas partes, no entanto, a ideia filosófica é encontrada numa
particularidade ou meio específico. O círculo único, porque é uma totalidade real, explode os limites
impostos pelo seu meio especial e dá origem a um círculo mais amplo. Toda a filosofia dessa
maneira se assemelha a um círculo de círculos. A ideia aparece em cada círculo único, mas, ao
mesmo tempo, toda a ideia é constituída pelo sistema dessas fases peculiares, e cada um é um
membro necessário da organização.1 (Hegel, 1830).
O Nada, ou vazio, são de grande importância na valorização de um diálogo
expositivo, influenciando a forma como os objetos se comportam e se destacam,
1 Traduzido de: “Each of the parts of philosophy is a philosophical whole, a circle rounded and complete in itself. In each of these parts, however, the philosophical Idea is found in a particular specificality or medium. The single circle, because it is a real totality, bursts through the limits imposed by its special medium, and gives rise to a wider circle. The whole of philosophy in this way resembles a circle of circles. The Idea appears in each single circle, but, at the same time, the whole Idea is constituted by the system of these peculiar phases, and each is a necessary member of the organisation.” (Hegel, 1830).
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fazendo com que cada objeto respire e deixe transparecer a sua Aura. Cada
objeto vive pela sua forma, cor e material, diz respeito a uma época e conta uma
história. Este necessita de um espaço físico que deixe respirar a sua essência,
a qual deve ser respeitada e conservada em qualquer contexto que a peça tome,
num diálogo expositivo.
A forma de apreciar a arte e o modo de observar a sua exposição têm vindo
a sofrer alterações ao longo dos tempos. Neste contexto, é proposta a
valorização de um diálogo expositivo através do papel do vazio. Com a análise
de vários estudos acerca da perceção do comportamento humano e social
perante a matéria procura-se mostrar que o vazio expositivo é importante na
transcendência da essência do objeto exposto ao público.
Partindo do pensamento de Lipovetsky, que nos fala de uma sociedade
narcisista onde o ser age de forma cada vez mais hedónica, compreende-se que
a sua independência e cultura pode partir de uma ostentação deste narcisismo
social. Esquecemos quem somos e o que realmente importa seguindo o boom
dos problemas sociais que surgem ao longo dos tempos. Assim, supõe-se que
o mesmo aconteça na forma como a arte é observada. O visitante entra numa
exposição indo, muitas vezes, diretamente ao encontro da obra, objeto ou tipo
de arte com a qual se identifica. Existe quase uma seleção prévia, uma ação
quase inconsciente do que se quer ver. A esta questão agrega-se ainda a
necessidade crescente de autopromoção nas redes sociais, sendo que, neste
contexto, para muitos, o importante deixa de ser apreciar a exposição, para ser
sim fotografado junto da peça que está na moda de modo a obter o máximo de
visualizações para exacerbar um sentimento narcísico.
Assim, começa a competir ao museólogo fazer com que os visitantes
prestem atenção às demais obras e não só às mais famosas e conhecidas,
seduzindo-os a investir em novas contemplações, fazendo com que os restantes
objetos tenham oportunidade de os chamar e ser independentes. Lipovetsky
refere que “a independência é um traço de carácter, é também uma maneira de
viajar segundo um ritmo seu, de acordo com os seus próprios desejos; construa
a «sua» viagem” (Lipovetsky, 1989, p. 19). Esta independência do objeto, terá
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sempre um significado e uma história que não poderá ser alterada ao
desmaterializar a coisa/objeto, pois pertence ao que viveu. A disposição de um
objeto musealizado no percurso expositivo pode ter diferentes interpretações
sendo que a forma como este é colocado pode alterar a história que tem para
contar, obstruindo a sua aura, desrespeitando o passado que lhe pertence e
destruindo o seu carácter.
A arte deve, assim, seduzir o espectador, tal como refere Lipovetsky:
Fazer da sedução uma «representação ilusória do não-vivido» (Debord) é reconduzir o
imaginário das pseudo-necessidades, a oposição moral entre o real e a aparência, um real
objetivo ao abrigo da sedução, quando se define, sobretudo, como processo de
transformação do real e do indivíduo. Longe de ser um agente de mistificação e de
passividade, a sedução é destruição do cool do social através de um processo de
isolamento, que já não surge administrado pela força brutal ou pelo quadriculado
regulamentar, mas através do hedonismo, da informação e da responsabilização
(Lipovetsky, 1989, p. 23).
Esta destruição do cool é essencial para combater a estandardização da
sociedade, pois embora a arte possa ser uma moda de um tempo, uma
exposição pretende mostrar esse tempo como história e cultura, sem que o seu
propósito seja alimentar uma tendência atual que pode desvalorizar e
desrespeitar obras de referência. Assim o afirma Debord:
Quando a arte tornada independente representa o seu mundo com cores resplandecentes,
um momento da vida envelhece e não pode ser rejuvenescido com cores resplandecentes.
Apenas pode ser evocado na memória. A grandeza da arte não começa a aparecer senão
no poente da vida.2 (Debord, 1970, p. 104).
Voltamos a referir o pensamento de Lipovetsky quando este refere que:
Num sistema desafectado, basta um acontecimento módico, um nada, para que a
indiferença se generalize e conquiste a própria existência. Atravessando sozinho o
deserto, carregando-se a si próprio sem qualquer apoio transcendente, o homem de hoje
caracteriza-se pela vulnerabilidade (Lipovetsky, 1989, p. 44).
2 Traduzido de: “When art which has become independent represents its world with dazzling colors, a moment of life has grown old and it cannot be rejuvenated with dazzling colors. It can only be evoked in memory. The greatness of art only begins to appear at the fall of life.” (Debord, 1970, p. 104)
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Assim, é importante vincar a importância do nada no contexto expositivo
para que o ser material conquiste a sua importância, destacando-se o valor da
obra de arte.
A existência da obra procura seduzir o observador, de forma que exista um
contacto entre o ser e a peça.
Existe um inevitável flirt para que a obra consiga o seu momento de
atenção, de contemplação, uma troca de energias, como o momento aurático da
obra de arte que nos fala Walter Benjamin. Este momento é algo que desperta o
subconsciente, conquistando o lado animal do ser humano através do seu
intelecto, do mesmo modo que a inteligência pode não ser o fator que suscita a
atração sexual, mas pode ser esse o fator que atrai para que haja oportunidade
de seduzir. Assim, a arte quer seduzir, estando aberta para receber o seu
observador, procurando constantemente um momento íntimo com o observador,
como uma ninfomania incansável por todo o ente. Este momento é, portanto,
uma necessidade de ser vista para que possa seduzir.
Tomemos como exemplo a Bíblia Sagrada. Podemos considerar que talvez
Adão e Eva não se tenham resistido por serem únicos um para o outro. Para
muitos, esta deve ser a primeira história erótica da humanidade, e para os que
não é, é possível observá-la como uma inevitabilidade. O desejo pelo
desconhecido é, talvez, das maiores atrações da humanidade, existindo no ser
humano um desejo constante de descobrir mais, provar algo novo. O instinto
leva-nos, assim, a explorar aquilo que está ao nosso alcance, e que nos é novo.
Por fim, se a obra for a única atração ao alcance de um ente observador, esta
irá decerto ter a sua atenção. Sontag, na sua obra a Estética do Silêncio, afirma
de forma clara esse aspeto:
A pornografia usa um tosco e reduzido vocabulário de sentimentos, sempre relacionado
às perspetivas de acção: sentimento que se gostaria de pôr em ação (luxúria), sentimento
que não se gostaria de pôr em ação (vergonha, medo, aversão) e que também na
pornografia o menos é mais (Sontag, 1987, p. 74).
Refere ainda também que a imaginação pornográfica expressa algo digno
de ser ouvido, algo que nos dá acesso à sensibilidade e personalidade individual.
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Lipovetsky define sedução como uma lógica que se desembrulha perante uma
socialização flexível empenhada na personalização-psicologização do sujeito,
surgindo de um clima que “distrai epidermicamente um público que está muito
longe de ser tão ingénuo e passivo como imaginam os actuais directores do
espetáculo” (Lipovetsky, 1989, pp. 21-25).
Conclui-se, assim, que o objeto expositivo se desmaterializa, mostrando
um propósito, colocando uma questão, contando uma história. A sua essência
vive de um poder esotérico vindo da mente do próprio homem desde os seus
primórdios, onde pequenas coisas são comuns a todos os povos e religiões. Em
vários pontos do mundo procurou-se fazer uma ligação do homem com uma
entidade divina através de uma «coluna sem fim»,
[…] a qual prolonga um tema mitológico já existente na Pré-História e que, por outro lado,
está muito espalhado por todo o mundo. A «coluna do céu» sustenta a abóbada celeste;
por outras palavras, é um axis mundi, da qual conhecemos numerosas variantes: a coluna
Irminsul dos antigos Germanos, os pilares cósmicos das populações norte-asiáticas, a
montanha central, a árvore cósmica, etc (Eliade, 1987, p. 147).
Tal como explica Marino ao salientar que os “universos imaginários
correspondem às estruturas simbólicas arquetipais, às imagens-modelos”, as
quais criam a plenitude dos “actos de criação o carácter ‘permanente’, ‘eterno’,
torna-os ‘universalmente acessíveis’ A ‘criação reintegra’ autenticamente um
arquétipo, entendido como uma potencialidade dinâmica.” (Marino, 1998, pp.
337,338). Citemos o autor a este propósito:
O simbolismo do axis mundi é complexo: o eixo que sustenta o céu e assegura,
simultaneamente, a comunicação entre a terra e o céu. Perto do axis mundi, supostamente
colocado no centro do mundo, o homem pode comunicar com os poderes celestes. A
concepção do axis mundi, enquanto coluna de pedra sustentando o mundo, reflecte, muito
provavelmente, as crenças características das culturas megalíticas (IV-III milénios a. C.)
(Eliade, 1987, p. 147)
Eliade exemplifica com a questão do feijoeiro, muito conhecido nos contos
de historias infantis. Referindo-o como uma Árvore-Cósmica. “A Katha-
15
Upanishad (VI,1) descreve-a assim: ‘Este Acvattha3 eterno, cujas raízes vão para
cima e os ramos para baixo, é o puro (sukram4), é o Brahman5, é o que se chama
não morte” (Eliade, 1987, p. 147). Todos os mundos tocam nele ‘A árvore
acvattha representa na totalidade da sua compreensão, “a manifestação do
Brahman no cosmos, quer dizer, a criação como movimento descendente.”
Assim como outros escritos dos Upanixades6 certificam e esclarecem esta
intuição do cosmos como árvore. “Os seus ramos são o éter, o ar, o fogo, a água,
a terra” (Eliade, 1987, p. 147).
Elucidando também que “quando sobe ao céu, no decurso da sua viagem
mística, o xamã trepa a uma árvore que tem nove ou sete degraus. A maior parte
das vezes, no entanto, realiza esta ascensão por um poste sagrado que também
tem sete degraus e que, naturalmente, se admite encontrar-se no centro do
mundo” (Eliade, 1987, p. 147). Também os deuses Altaicos prendem os cavalos
a este pilar cósmico, acontecendo o mesmo com outras culturas como:
Nos Escandinavos; Odhin prende o seu cavalo a Yggdrasil (lit. ‘Cavalo de Odhin’) Os
Saxónicos denominam Irminsul este pilar cósmico -universalis columna quasi sustinens
omnia. Os Indianos têm a mesma ideia de um eixo cósmico, representado por uma árvore
de vida ou pilar, situado no meio do universo. Na mitologia chinesa, a árvore miraculosa
cresce no centro do universo, no sítio onde deveria encontrar-se a capital preferida. Ela
reúne as Nove Nascentes aos Nove Céus. Chama-se ‘Pau Erguido (kieou-Mou) e diz-se
que, ao meio-dia, tudo o que se encontra perto dela e se mantém direito não pode dar
sombra. (...). É o ponto de apoio, por excelência. Por conseguinte, a comunicação com o
céu só pode ser feita em torno dela ou mesmo por intermédio dela» (Eliade, 1987, p. 147).
Todas estas estas ideologias culturais nos remetem para a questão do
vazio, de onde de alguma forma tudo surge, sendo que algumas culturas
assumiram o vazio como razão, como por exemplo culturas orientais e de origem
asiática. Tomando como exemplo os egípcios, cuja cultura teria origens asiáticas
3 Figueira Sagrada, “Os indianos por exemplo, veneram certa árvore chamada Acvattha; simplesmente, para eles a manifestação do sagrado nesta espécie vegetal é transparente, pois só para eles a Acvattha é uma hierofania e não apenas uma árvore” (Eliade, 2008, pp. 7,9). 4 “Sukram é outra expressão poética que implica pureza, suddha, puro” (Thakar, 2011). 5 Em sânscrito Brahman, é um conceito do hinduísmo cujo termo designa o principio do divino, uma força superior omnipresente. 6“Os Upanixades ou Upanissades são parte das escrituras Shruti hindus, que discutem principalmente meditação e filosofia, e são consideradas pela maioria das escolas do hinduísmo como instruções religiosas.” (dicionarioportugues.org/pt/upanixade, visto a 11/08/2017).
16
(Souto, 2016, p. 16): segundo a sua mitologia, antes de existir um mundo
organizado “existiam apenas águas cósmicas primordiais, o Nun uma massa
líquida fria, escura e em completa desordem. O Nun é silêncio, penumbra e
vazio, mas contém também um poder magnífico onde se encontra a essência da
criação” (Souto, 2016, p. 29).
Este vazio tão importante na cultura oriental e comprovado também pelos Sutras7
orientais, como o The Heart Sutra Prajnaparamita8 procuram a
desmaterialização quando referem que o vazio (sunyata9) é a chave para o
Budismo Mahãyãna. Aqui, o Sariputra, “Here, o Sariputra10, a forma é vazio e o
muito vazio é forma; vazio não se diferencia da forma, a forma não diferente de
vazio; tudo o que é forma, é vazio, tudo o que é vazio, é forma; o mesmo é
verdadeiro de sentimentos, percepções, impulsões e consciência”11 (Osho,
1978, p. 34).
Várias culturas procuram o freixo entre o céu e a terra. Esta poesia
mitológica que se tornou religião já era arte e neste sentido citemos Eliade ao
referir a obra de Brancusi:
Todo um conjunto de símbolos dizendo respeito à vida espiritual e, sobretudo, às
experiências extáticas e aos poderes, da inteligência é solidário com as imagens do
pássaro, das asas e do voo. O simbolismo do voo traduz uma ruptura efetuada no universo
da experiência quotidiana. A dupla intencionalidade desta ruptura é evidente:
simultaneamente, representa a transcendência e a liberdade que obtemos pelo «voo»
(Eliade, 1987, p. 149).
7“Budhism. Collections of dialogues and discourses of classic Mahayana Buddhism dating from the 2th to the 6th century A.D” (Makins, 1992, p. 1358) 8“Prajnaparamita significa "a meditação, a sabedoria do além (Osho, 1978, p.104) "a sabedoria do além, ou sangya, que significa percepção, sensibilidade ou vigyanam, que significa consciência" (Osho, 1978, p. 125) 9“A noção de sunyata, ou vazio, foi debatida por mais de dois mil anos por alguns dos maiores pensadores nas tradições budistas - incluindo o próprio Buda. Sunyata pode ser pensada como a Concepção da realidade final em certas seitas budistas " traduzido de: (Ando, 2013, p. 80) 10 Sariputra (também escrito por Sariputta ou Shariputra) foi um dos principais discípulos do Buda. (traduzido de:(O'Brien, 2015) 11 Traduzido de “Here, o Sariputra, form is emptiness and the very emptiness is form; emptiness does not differ from form, form does not differ from emptiness; whatever is form, that is emptiness, whatever is emptiness, that is form; the same is true of feelings, perceptions, impulses, and consciousness” (osho, the heart sutra, english discourse series,1978 p34)
17
Este mesmo freixo entre o céu e a terra assemelha-se ao ser e à
transcendência, e este vazio entre ambos é a essência da compreensão do valor
da arte. No espaço expositivo, o vazio abrange não apenas o espaço que o
objeto habita e onde o visitante circula, como também a musicalidade do
conjunto de objetos dispostos na sala e o encontro com a arquitetura do local
onde se insere, procurando o silêncio necessário para que exista uma harmonia
onde as auras não se sufoquem.
Usando um exemplo concreto, o Japão tem uma cultura milenar de grande
influência para muitos povos que tiveram contacto com a mesma. Na sua
filosofia, o vazio está presente como um importante elemento que se reflete no
seu quotidiano. Esta filosofia, denominada MA, é um dos mais importantes
conceitos na arte japonesa. Deste modo, este é o primeiro paradigma a ser
analisado.
1.1 Desmaterialização
O MA é uma noção de origem japonesa que representa o “entre espaço”
(Kenmochi, 1992), o vazio. Este pode ser visto como o intervalo de conexão com
o Divino na cultura Oriental, visto como um “quase-signo” (Kenmochi, 1992) que
faz parte do senso comum milenar de todos os japoneses. Esta filosofia está
presente em todos os elementos culturais, como na arquitetura, nas artes
plásticas, na música, nos jardins, nos teatros e na comunicação. Pode ser
considerada uma área vazia entre sons e formas.
Kenmochi (1992) salienta que “MA é um espaço vazio, mas não no sentido
de vácuo (...) preenche uma energia ki” (Kenmochi, 1992, p. 39).Bem como
Okano explica da seguinte forma:
O Ma, semioticamente, pode ser considerado como um estágio pré-sígnico, pertencente
à primeiridade peirciana, isto é, anterior à existência do objeto como fenômeno. Assim, no
momento em que ele se manifesta no mundo, e, portanto, adentra o reino da segundidade
peirciana, inúmeras espacialidades são construídas ao se agregarem outras semânticas,
como a do entre-espaço, conforme aponta o próprio caractere ideogramático que
representa o Ma na língua japonesa: � = � � � (portão + sol). (Okano, 2013, p. 151)
18
Ao transportar o pensamento de Kenmochi para a cultura ocidental é
possível associar esta energia à aura que todo o ser material possui por razão
da matéria, unicidade, espiritualidade, historicidade ou mesmo algo pessoal que
traz um acrescento de valor à sua essência física. Este conceito apresenta-nos
a procura da importância não material, o valor da essência através da exclusão
do que é físico, o valor do vazio (da pureza) em si.
1.2 Pureza
Entendemos por pureza, aquilo que é puro, algo que nada tem misturado à
sua composição. Encontrar a pureza leva à desmaterialização do ser, visto a
transcendência de cada um absorver uma realidade pessoal diferente. Deste
modo, a ideia de pureza deve ser fisicamente inalcançável. Tal como referido
anteriormente, a aura é o conceito com o qual os ocidentais estão familiarizados,
que mais se pode assemelhar ao MA. Esta pode ser vista como uma poesia
intocável inerente ao ser ou coisa, sendo este físico ou não. Perante esta
premissa, Walter Benjamin coloca a questão:
Que é, em suma, a aura? Uma trama singular de tempo e de espaço: aparição única de
um longínquo, por mais próximo que esteja. O homem que, numa tarde de Verão, se
abandona a seguir com o olhar o perfil de um horizonte de montanhas ou a linha de um
ramo que sobre ele deita a sua sombra — esse homem respira a aura dessas montanhas,
desse ramo (Benjamin, 2010, p. 10).
Benjamin define a aura como a “única aparição de uma realidade
longínqua, por mais próxima que ela possa estar” (Benjamin, 2010, p. 10). A aura
pode ser entendida como o poder de algo sobre nós e pode ser, por exemplo,
aquilo que um artista procura mostrar ao apresentar a sua obra. A noção de MA
da cultura japonesa acabou por influenciar escolas da cultura ocidental que
deixam transparecer algumas das suas características, tal como nas escolas
Gert J. van Tonder12 e Dhanraj Vishwanath13. Os mesmos fatores de perceção
implícitos nos manuais de jardinagem centenários do Japão são parcialmente
12 Laboratory of Visual Psychology, Department of Architecture and Design, Kyoto Institute of Technology 13 School of Psychology, University of St. Andrews, Scotland
19
incorporados nas ideias apresentadas pela Bauhaus, escola de psicologia
Gestalt e outros movimentos, quase um milénio mais tarde, estes conceitos de
design japonês entre os grandes projetos de paisagem do mundo, a arquitetura
e os jardins clássicos japoneses são de especial interesse, porque durante o
último milénio culminaram com um canone de efeitos de design para impor uma
ordem naturalista idealizada sobre elementos de design; A ordem em grandes
vistas naturalistas geralmente é recriada num espaço relativamente limitado. Ele
oferece uma visão valiosa sobre o que é uma forma natural boa e equilibrada e
como diferentes estruturas naturais e de origem humana podem ser
harmoniosamente combinadas (Vishwanath, 2017).
As mesmas características apresentadas nos antigos jardins do Japão,
podem ser vistas nas ideias retratadas pela Bauhaus, Gestalt School of
Psychology, entre outros movimentos, quase um milénio depois. O design
japonês mostra-nos uma visão valiosa sobre o que é uma boa forma, natural e
equilibrada, e como diferentes infraestruturas podem ser harmoniosamente
combinadas com a natureza. Bem como refere Arnheim:
O jardim japonês por excelência contrasta com os jardins da perspetiva barroca, como os
tribunais de Herrenhausen e Veitshöchheim. Essas estruturas impõem geometrias não
naturais e puras em elementos de design naturais, geralmente em grandes escalas
espaciais. O jardim barroco aparece como a continuação da geometria arquitetónica
humana no espaço exterior circundante, enquanto num jardim de rocha japonês clássico
a transição do design humano para a forma naturalista é mais enfatizada14 (Arnheim, 1966,
p. 123).
Johan Wagemans (2015) refere que o aumento do contacto entre o Japão
e o Ocidente nos finais do séc. XIX, teve grande influência na Bauhaus. O
minimalismo presente nas estampas de stencils woodblock e katagami utilizados
para o tingimento têxtil tiveram um forte impacto na evolução do Design gráfico
ocidental conduzindo para uma linha a clarificada e bem como para o destaque
14 Traduzido de: “The courts at Herrenhausen and Veitshöchheim. These structures impose non-naturalistic, pure geometries onto natural design elements, usually over large spatial scales. The baroque garden appears as the continuation of human architectural geometry into the surrounding exterior space, while in a classical Japanese rock garden the transition from human design to naturalistic form is more emphasized.” (Arnheim, 1966, p.123).
20
da representação não figurativa. Os stencils katagami eram conseguidos por
várias camadas que constituíam motivos com figuras percetíveis. No entanto,
cada folha separada, apresenta um design abstrato. Esses stencils,
desconhecidos na Europa até à época, tornaram-se muito populares entre os
membros da Secessão de Viena15, ao serem acidentalmente considerados
designs abstratos intencionais.
Wagemans menciona ainda o conceito de "natureza idealizada"
(Wagemans, 2015, p. 869), uma noção baseada no design japonês, que está de
acordo com as ideias ocidentais da teoria de arte no final do século XIX que
vieram a influenciar a art nouveau, a art deco, e a Bauhaus.
1.3 Silêncio
Uma fonte sonora que gera um som16 provoca um movimento ordenado
das moléculas do ar, propagando-o no espaço. A sua propagação no espaço
está dependente de diversas variáveis, entre elas os obstáculos com que se
depara, sendo a própria matéria um fator que influencia. Assim, um som emitido
numa sala desocupada propaga-se mais facilmente de forma ininterrupta quando
nenhum objeto obstrui a sua passagem. Isto pode ser extrapolado para uma
exposição em o espaço existente entre cada peça permite a fluidez deste
discurso. O respeito pelo respirar de cada uma produz uma musicalidade no
discurso expositivo onde os pormenores são marcados no tempo certo
conseguindo com este contraste um diálogo não monótono.
15 Movimento artístico da sociedade dos artistas austríacos do final do séc. XIX, liderado por Gustav Klimt, que protestava contra as normas tradicionais e artísticas da época. 16 Som: “Movimento vibratório de um corpo sonoro, que se propaga no ambiente e impressiona o órgão da audição: som agudo, som grave. Emissão da voz; voz. Quando um corpo sonoro é tangido, suas diferentes partes experimentam imediatamente um movimento de vibração. O ar que cerca os corpos participa desse movimento e forma em volta dele ondas que atingem o ouvido. O ar é, pois, o principal veículo do som, que se propaga com uma velocidade de cerca de 340 m por segundo (em temperatura normal). Os líquidos transmitem-no com mais rapidez: a velocidade dele na água é de 1.425 m por segundo; nos sólidos, a velocidade é ainda maior. O som não se transmite no vácuo, e sua intensidade aumenta ou diminui proporcionalmente à pressão do gás que o transmite. Quando as ondas sonoras encontram um obstáculo fixo, elas se refletem. É nesta propriedade que se fundamenta a teoria do eco. Os sons perceptíveis têm uma frequência compreendida entre 16 períodos e 15.000 períodos por segundo; os infra-sons têm uma frequência inferior a 16, e os ultra-sons uma frequência superior a 15.000.” (Dicio, 2017)
21
Tal como John Ruskin afirma “o talento do compositor não está na
monotonia, mas nas mudanças”17 (Ruskin, 2004, p. 35) lembrando também que
este “Deve suportar pacientemente a inflação da monotonia por alguns
momentos, para sentir o refresco da mudança” 18 (Ruskin, 2004, p. 35). Sobre
a importância do contraste à monotonia Sontag refere que “não há superfície
neutra, discurso neutro, tema ou formas neutras. Uma coisa é neutra apenas
com relação a algo mais — como uma intenção ou uma expectativa” (Sontag,
1987, p. 17). Assim, encontramos um discurso aberto entre as peças existentes,
detentor de contrastes e variações. Propõe-se que a atenção do visitante seja
captada pelo fluir de cada conjunto de peças onde a mais importante se destaca
pela forma como respira, pelo respeito existente com o espaço e pelo ecoar do
seu som. Quanto maior for a liberdade conseguida e o eco de determinada peça,
mais possibilidade terá de ser ouvida e mais tempo irá durar a sua nota, sendo
valorizada pela musicalidade do diálogo onde se insere. Assim, o eco de um
objeto é conseguido pelo vazio, pela ausência de obstáculos, fator essencial
para a captação de informação conseguida nos contrastes do espaço.
Segundo Cage: “um som tem quatro características: frequência, amplitude,
timbre e duração. O silêncio (ruído ambiente) tem apenas duração. Uma
estrutura musical zero deve ser apenas um tempo vazio 19” (Cage, 2002, p. 80).
O silêncio pode assim ser visto como um tempo vazio que possibilita a existência
de música e da sua transcendência, como Kandinsky refere em relação a uma
composição de Wagner:
Os violinos, os tons profundos dos baixos, e especialmente os instrumentos de sopro,
representavam para mim, naquele tempo, toda a potência daquela hora crepuscular. Eu
vi todas as cores no meu espírito; elas estavam de fronte dos meus olhos. Linhas
selvagens, quase loucas, estavam desenhadas à minha frente. Não me atrevi a usar a
expressão que Wagner tinha pintado musicalmente ‘a minha hora’ (Kandinsky, 1982, p.
362)
17 Traduzido de:“the talent of the composer is not in the monotony, but in the changes” (Ruskin, 2004, p. 35) 18 Traduzido de: "must bear patiently the infliction of the monotony for some moments, in order to feel the refreshment of the change" (Ruskin, 2004, p. 34) 19 Traduzido de:“a sound has four characteristics: frequency, amplitude, timbre and duration. Silence (ambient noise) has only duration. A zero musical structure must be just an empty time.” (Cage, 2002, p. 80)
22
Este estado de transcendência potenciado pela peça de Wagner pode ser
relacionado ao momento e o seu espírito, o Zeitgeist. Hegel fala-nos do espirito
do tempo, o qual define como Zeitgeist. Nesta matéria Wagner explica que a
ideia de Hegel assenta numa carência da ideia ser conceitualizada, devendo
este ser universal, e pela sua característica artística “superar a sua subjetividade,
exteriorizando-se” (Wagner, 2014, p. 24). Prevalecendo então o presente e a
historia para que este espírito se tenha desenvolvido. Na filosofia de Hegel
importa que o espírito seja “como única substância, o que supõe, assim, que a
história seja o espaço de realização e liberdade” (Wagner, 2014, p. 25).
Realização esta que atravessa o tempo de forma continua, com sentimentos,
com “conquistas, alegrias, sofrimentos, conflitos, guerras, etc.” (Wagner, 2014,
p. 25). Todas os períodos cronológicos têm uma nova reconstituição, com
diferentes compreensões de liberdade e afirmação da mesma, que terá
inevitavelmente o seu reflexo nas artes e nos meios de comunicação. Este
espirito do tempo provem da forte importância da filosofia da historia para a
estética hegeliana. Assim Wagner salienta que:
Hegel percebe que a história apresenta um sentido, um significado específico para a
evolução do espírito, que adquire conhecimento próprio do que se apresenta como real.
Ele apresenta o sentido da história como o espaço da emancipação da humanidade. A
ideia de o espírito transitar pela história é a ideia de uma razão concreta. A realidade
adquire a forma sensível do Belo artístico, determinando o Ideal do Belo artístico. A arte,
segundo Hegel, é a manifestação concreta do Espírito e da Verdade na história da
humanidade, o que difere da ideia platônica do Belo. Para Platão, a Ideia do Belo, como a
da Verdade e do Bem, é abstrata, atemporal e não histórica. Hegel também critica
Aristóteles sobre a imitação da natureza (Wagner, 2014, p. 25).
É coerente salientar este adágio no presente trabalho, visto a essência do
objeto estar diretamente ligada a toda a sua história, o que é imprescindível para
compreender o significado do mesmo. Por conseguinte, é de maior valor
considerar o Zeitgeist enquanto instrumento aplicável ao discurso expositivo, não
apenas a nível cronológico, mas também transcendente. Ou seja, este deve ser
ponderado no que diz respeito à época do objeto no seu contexto expositivo,
bem como na forma como o visitante o irá interpretar no aqui e agora. Isto está
associado à dimensão temporal.
23
A existência do tempo talvez possa ser negada, pois este não é mais do
que uma transcendência, tal como uma imagem. Só existe consciência do tempo
porque o homem necessita de uma forma de controlar e gerir a vida, dando-se
conta desta dimensão que manipula e domina a ação humana, tão eterna como
a liberdade. É algo que não tem fim. O tempo é uma abstração que tudo controla.
O ser não existe no tempo, o tempo existe no ser, pois este pode não passar de
uma transcendência. Deste modo, Husserl refere:
Através da análise fenomenológica não se pode encontrar a mínima porção de tempo
objectivo. O «campo temporal originário» não é um fragmento do tempo objectivo, o agora
vivido, tomado em si mesmo, não é um ponto do tempo objectivo, etc. Espaço objectivo,
tempo objectivo e, com eles, o mundo objectivo das coisas e processos reais — tudo isto
são transcendências. Bem entendido, espaço e realidade não são transcendentes num
sentido místico, como «coisas-em-si», mas justamente o espaço fenoménico, a realidade
fenoménica espácio-temporal, as formas espacial e temporal que aparecem (Husserl,
1994).
Assim, o tempo é uma dimensão, uma unidade de medida da nossa
transcendência. Esta ideia é reforçada por Santo Agostinho quando diz:
Nenhuns tempos Vos são coeternos porque Vós permaneceis imutável, e se os tempos
assim permanecessem, já não seriam tempos. Que é, pois, o tempo? (...) vós sois, antes
de todos os tempos, o eterno Criador de todos os tempos. Estes não podem ser coeternos
convosco, nem nenhumas outras criaturas, ainda que haja algumas que preexistem aos
tempos (Agostinho, 1981, pp. 14-30).
Assim como o tempo permanece puro, imutável, também as formas têm um
distanciamento temporal entre si, mediante a forma como são apresentadas
criando uma musicalidade expositiva, um silêncio entre elas. Assim como afirma
Kandinsky:
As formas das tendências construtivas em pintura podem dividir-se em dois grupos
principais: 1.º A composição simples, submetida a uma forma clara e simples, é
denominada composição melódica. 2.º A composição complexa, na qual se combinam
várias formas, as quais se submetem a uma principal pode, por seu lado, resultar de difícil
localização e isolamento exterior. A base da composição recebe então uma sonoridade
particular. É a composição denominada sinfónica (Kandinsky, 1912, p. 121).
A diferença das formas surge de uma dissociação entre ambas. Esta
pluralidade converge na medida em que todas são formas, e para que exista
24
uma comparação é necessário haver um plural. Destacar um ponto é isolá-lo,
torna-lo único, podendo rodeá-lo de dissociações para que isso aconteça.
Segundo Kandinsky “a forma, mesmo quando abstracta e geométrica, possui o
seu próprio som interior; ela é um ser espiritual, dotado de qualidades idênticas
a essa forma. Um triângulo (agudo, obtuso ou isósceles) é um ser” (Kandinsky,
1912, p. 64). Bem como perante um objeto a apreciação estética do observador
altera consoante a cor aplicada à sua forma, ou o cheiro e a forma de um
alimento irão remeter quase automaticamente a um sabor, do mesmo modo que
a forma do objeto poderá para alguns ter um som. Segundo Kandinsky a forma
do objeto é tratada a partir desta citação:
Emana um perfume espiritual que lhe é próprio. Associado a outras formas, este perfume
diferencia-se, enriquece-se de nuances – como um som das suas harmonias --, mas no
fundo permanece inalterável. Tal como o perfume da rosa que nunca se poderá confundir
com o da violeta. (...). É assim que vemos claramente a interacção entre a forma e a cor.
Um triângulo totalmente preenchido a amarelo, um círculo a azul, (...). As cores agudas
têm uma maior ressonância qualitativa nas formas pontiagudas, (como, por exemplo, o
amarelo num triângulo). As cores que se podem classificar de profundas são reforçadas
nas formas redondas (o azul num círculo, por exemplo). É evidente que a dissonância
entre a forma e a cor não pode ser considerada uma desarmonia. Pelo contrário, pode
representar uma possibilidade nova e, portanto, uma causa de harmonia” (Kandinsky,
1912, pp. 64,65).
É então possível compreender que a cada transcendência é única,
possuindo características que não podem ser comparadas, sejam elas cheiros,
formas ou sons. O ruído nunca é eliminado na sua totalidade sendo que o
silêncio só existe perante a morte. Como John Cage descreve:
Comecei a ouvir os sons antigos, aqueles que eu pensei desgastados, desgastados pela
intelectualização, comecei a ouvir os sons antigos como se eles não estivessem
esgotados. O silêncio, como a música, é inexistente. (...). Há sempre sons, isto é, se
alguém está vivo para os ouvir. Obviamente eles não são. Se eu os faço ou não, há sempre
sons para serem ouvidos e todos eles são excelentes. Nós cozemos um bolo (...) e verifica-
se que o açúcar não era açúcar, mas sal20 (Cage, 2002, p. 152).
20 Traduzido de: “I begin to hear the old sounds, the ones I had thought worn out, worn out by intellectualization, I begin to hear the old sounds as though they are not worn out. Silence, like music, is non-existent. (…) There always are sounds. That is to say if one is alive to hear them. Obviously, they are not. Whether I make them or not there are always sounds
25
É, no entanto, possível ocultar todos os outros sons através da combinação
de todas as frequências do som, o white noise. Lipovetsky dá-nos uma perceção
do white noise ao referir o seguinte:
Neutralizar o mundo pela força do som, fechar-se em si próprio, descarregar e sentir o
corpo aos ritmos dos amplificadores, eis que hoje os ruídos e vozes da vida se
transformaram em parasitas: é preciso que o indivíduo se identifique com a música e
esqueça a exterioridade do real (Lipovetsky, 1989, p. 71).
Esta perceção pode surgir, por exemplo, ao ver uma exposição cheia de
gente. Aqui o ruído torna-se neutro e o ser é afetado apenas com a peça que
atrai a sua atenção. Então, segundo Lipovetsky podemos entender que a
perceção e compreensão das obras é individual “torna-se uma experiência
estética «não amarrada» (Kandinsky), polivalente e fluida. Com a arte moderna,
já não há espectador privilegiado, a obra plástica deixa de ter que ser
contemplada de um ponto de vista determinado, o observador dinamizou-se, é
um ponto de referência móvel” (Lipovetsky, 1989, p. 95). Este poderá ter de se
afastar de si mesmo para alcançar a compreensão da obra que poderá não ser
evidente. Como perante um quadro cubista em que o observador tem de se
desfragmentar para absorver toda a dinâmica pictórica representada. Deste
modo “A percepção estática exige de quem olha um percurso, uma deslocação
imaginária ou real através da qual a obra é um percurso, uma deslocação
imaginária ou real” (Lipovetsky, 1989, p. 95) onde a obra é reinterpretada,
podendo receber uma nova reorganização em função das faculdades e
transcendências do observador. Lipovetsky afirma o seguinte:
A arte moderna é aberta, requer a intervenção manipuladora do utente, as ressonâncias
mentais do leitor ou do espectador, a atividade combinatória e aleatória do intérprete
musical. Esta participação real ou imaginária, doravante constitutiva da obra, ligar-se-á,
como pensa Umberto Eco, ao facto de a ambiguidade, a determinação, a equivocidade,
se terem transformado em valores, em novas finalidades estéticas? «É preciso evitar que
uma interpretação inequívoca se imponha ao leitor», escreve U. Eco21: se todas as obras
de arte se prestam a uma multiplicidade de interpretações, só a obra moderna seria
to be heard and all of them are excellent. We bake a cake (…) and it turns out that the sugar was not sugar but salt.” (Cage, 2002, p. 152) 21 (Eco, 1965, p. 22)
26
construída intencionalmente tendo em vista signos não unívocos, só ela buscaria
expressamente o vago, o fluido, a sugestão, a ambiguidade. Estará de facto, aqui o
essencial? (Lipovetsky, 1989, pp. 95-96)
Todas as obras têm uma sonoridade. Contudo, talvez seja o silêncio a
maior transcendência do som.
1.4 Ausência
A ausência ou a não existência faz com que algo seja, pois uma não vive
sem a outra. Cada elemento procura o seu bem-estar para ser bem sentido, para
que a sua presença seja total. Ao estar presente o ser expressa uma vontade.
Alois Riegl (1858-1905), historiador de arte do século XIX impulsionou o
formalismo ao comparar o artefacto ao objeto artístico, defendendo que ambos
possuem Kunstwollen, termo que Riegl entende como “vontade da arte” (Riegl,
1966, p. 12) através da forma do objeto, como uma energia interna da
criatividade humana que provoca uma conexão formal entre os acontecimentos
de uma época. Riegl concluiu que a forma evolui por si, em função de si mesma,
dependendo do material ou técnica com que o objeto é trabalhado. Este conceito
riegliano aparenta frisar as tentativas de delinear diferentes intenções na arte.
Estudar um objeto deve, portanto, ter implícita a interpretação do seu
Kunstwollen, para que possamos entender o comportamento do mesmo e sua
vontade. A sua aparência, forma e material exigem um determinado modo de
exposição pois é possível presumir que cada objeto se comporta de maneira
diferente consoante o espaço que ocupa e aquilo que o rodeia. Deste modo,
citemos Geraldo a propósito deste conceito:
O conceito de Kunstwollen teve importantes desdobramentos na história de arte do século
20, introduziu na história uma ideia de uma “força supra-individual”, objetiva, que se
manifesta na atividade de grupos de pessoas. Foi sobretudo interpretado por Erwin
Panofsky, para quem o Kunstwollen se caracteriza como um sentido eminente que a
crítica, no final de um processo de interpretação, decifra nos fenómenos artísticos. «Nessa
ótica o sentido de necessidade ou pulsão, que o historiador de arte acredita conhecer no
desenvolvimento de um estilo, não é a realização de uma essência ao longo da sucessão
de obras, mas a expressão de coerência de sentidos que a interpretação do historiador
liberta nos fenômenos. Não tem um caráter psicológico, tem um caráter transcendental,
27
percebendo a arte em sua essência própria e não em função de fatores exteriores
(circunstâncias históricas, pressupostos psicológicos, analogias estilísticas). O conceito,
lido por Panofsky, define a partir de categorias ou conceitos fundamentais, a priori, que se
referem não ao fenómeno em si, mas às condições de seu ser-em-si, e de seu ser-como»
(Geraldo, 2017, p. 83).
Então, através a ausência do objeto ou o seu não-aparecimento encontra-
se uma separação entre a sua forma física e o seu significado, sendo este último
subjacente à sua tipologia. Como consequência dos estudos de Riegl referidos
anteriormente, foram desenvolvidas por Panofsky investigações e filosofias a
nível iconográfico onde este referia que “a iconografia é o ramo da história da
arte que se preocupa com o tema e significado das obras de arte, em oposição
à sua forma”22 (Panofsky, 1972, p. 3). O autor fez uma distinção entre a forma e
o significado do objeto, que considerou de maior importância iconográfica. A
iconografia é, por fim, um registo organizado através da imagem, uma linguagem
visual simbólica e representativa que vive da comparação, do mesmo modo que
Hegel separa os objetos através de uma organização cronológica.
1.5 Aberto
Partindo da ideia desenvolvida anteriormente, também Agamben procura a
separação do Homem e do seu ser físico, sendo apenas humano aquele que
“transcende e transforma o animal antropóforo que o sustém, e apenas porque
através da acção que nega é capaz de dominar e eventualmente destruir a sua
própria animalidade” (Agamben, 2015, p. 23).
Deste modo a abertura do homem é conseguida pela transcendência do
ser pensador, que tem a capacidade de sentir o que vem do seu exterior. Este
sentimento implica a perceção de um ponto, para que se possa abrir à sua
interpretação perante o mesmo.
Kandinsky, na sua obra Ponto, Linha, Plano, apresenta-nos o ponto como
marcação não apenas sintática e temporal, mas também como uma forma, e
22 Traduzido de: “Iconography is that branch of the history of art which concerns itself with the subject matter of meaning of works of art, as opposed to their form.” (Panofsky, 1972, p. 3).
28
pelo modo como surge e se comporta. O autor explica-nos que o ponto apresenta
uma capacidade multifacetada de ser o embrião de todas as formas e de
simultaneamente conter em si todas essas formas.
Kandinsky começa por situar o ponto no quotidiano e como ele surge física
e iconograficamente nas nossas vidas, dando-nos a forma criada pelo senso
comum à sua realidade abstrata. É-nos explicado pelo autor que:
O ponto geométrico é, segundo a nossa conceção, a última e única união do silêncio e da
palavra. Eis por que o ponto geométrico encontrou em primeiro o seu lugar na escrita –
ele pertence à linguagem e significa o silêncio (Kandinsky, 1970, p. 35)
Sabe-se, assim, que o ponto é um símbolo respeitado e que, por norma, é
este que determina e que inicia uma ação não apenas na escrita como também
no desenho que é, por sua vez, a base da forma e da tridimensionalidade. Como
nos diz Kandinsky:
[…] encontramos pontos em todas as artes e o artista torna-se cada vez mais consciente
da sua força intrínseca.” [deste modo] “não devemos subestimar a sua importância. Bem
como na (…) escultura e na arquitetura, o ponto é resultante da intersecção de vários
planos é, por um lado, o resultado de um ângulo espacial e, por outro, está na origem
desses planos; os planos devem dirigir-se para um ponto e desenvolver-se a partir dele
(Kandinsky, 1970, pp. 47,48).
O autor diz-nos que toda a matéria está em constante mudança. Isto pode
ser observado, por exemplo, na ampliação de um ponto em que passamos a
distinguir a sua circunferência e o seu interior, que é só por sim um plano, que
por sua vez contém um conjunto de pontos. Este é um ciclo que se pode repetir
infinitamente, ou seja: ao marcar um ponto numa folha em branco, num programa
de edição gráfica (como por exemplo o Ilustrador), e aumentar este ponto iremos
obter um círculo. Tanto a sua circunferência como superfície delimitada pela
mesma são compostos por outros pontos aglomerados. É possível selecionar
qualquer um desses pontos e repetir este processo de ampliação infinitas vezes.
Este ciclo mostra-nos o comportamento da matéria. Kandinsky esclarece,
referindo que: “A matéria não deve ser um fim em si, mas deve servir a
composição (fim) como qualquer outro elemento (meio), senão produz-se uma
29
dissonância interior e os meios transportá-la-ão para o fim” (Kandinsky, 1970, p.
57).
Como foi anteriormente referido, o ponto “é única união do silêncio e da
palavra” (Kandinsky, W., 1970, p.35). Ao ser visto deste modo, o silêncio pode
ser considerado como um vazio sonoro que transcende o poder de qualquer som
pois este é dissonante de todo o som, sendo o ponto onde este nasce e onde se
dissipa. É a pureza de qualquer nota. Considerando o que nos é dito pelo autor,
é possível propor que o silêncio é o vazio criado pela modelação dos espaços
ocupados, num discurso expositivo. O ponto a que Kandinsky se refere como
pausa é silêncio e, tal como o vazio num discurso expositivo, marca o tempo,
muda o sentido de uma frase, e é como um espaço em branco entre sons num
diálogo. Transpondo para o espaço físico, o vazio marca da mesma forma o
tempo e manipula o sentido de um local. O ponto é uma inquietação do vazio e
o vazio é um ponto (uma paragem sonora ou física entre dois corpos). Não
podemos, então, dissociar um do outro.
A forma como o diálogo expositivo é modelado permite salientar os pontos
a destacar, devendo ter em consideração que esse destaque acontece em
Figura2
30
função do vazio que está em seu redor (Figura 2). Enquanto Kandinsky nos fala
do ponto como silêncio, o qual define a marcação sintática de um diálogo, uma
respiração, de um outro ponto de vista, Martin Heidegger refere que “A arte não
é mais do que uma palavra a que nada de real já corresponde. Pode valer como
uma ideia coletiva na qual reunimos aquelas coisas que da arte somente são
reais: as obras e os artistas” (Heidegger, 1977, p. 11). A arte, ao ser considerada
como uma transcendência, não é mais do que aquilo que é sentido quando esta
é vivida. Esta reunião entre obras e artistas, da qual Heidegger fala, é o conjunto
físico de um conceito, ou seja, a parte que materializa um diálogo expositivo. O
referido diálogo é a arte da exposição, sendo este criado a partir das obras e
artistas que nela são referidos, onde a troca de auras e épocas é sentida no
vazio que as complementa. É nesse vazio que o visitante circula e onde é
atingido pela essência das obras que o rodeiam. O papel do vazio no discurso
expositivo pode ser associado ao que é referido por Heidegger:
Tudo o que se queira entrepor entre nós e a coisa como concepção e enunciado sobre a
coisa deve ser afastado. Só então podemos abandonar nos à presença não mascarada
da coisa(...) no que nos vem na vista, no ouvido, no tacto, nas sensações da cor, do
som(...) deste conceito. (Heidegger, 1977, p. 18)
Quando Heidegger fala da coisidade da coisa e do seu caráter coisal refere-
se à mesma como “a experiência fundamental grega do ser e do ente”
(Heidegger, 1977, p. 16) sendo “o que é perceptível nos sentidos da
sensibilidade através das sensações”. (Heidegger, 1977, p. 18) A coisa é
também interpretada pela sua materialidade, ou seja, a coisa enquanto matéria.
Vemos então que uma obra exposta não é vista apenas como objeto, sendo
detentora de uma poesia que vai para o além do seu estado físico, aquilo a que
Walter Benjamin chama de Poder Aural em A obra de Arte na sua
Reprodutibilidade Técnica.
Ao retirar a Aura ou a essência de um objeto, este irá perder o seu valor, a
sua verdade enquanto obra de arte. Mostrar a verdade de uma peça não se
prende apenas pela colocação de um enunciado ou de uma legenda acerca da
sua história. Para transmitir a verdade de uma peça esta tem de se mostrar como
tal, pois, tal como o autor refere: “Verdade quer dizer desde há muito, a
31
concordância do conhecimento com o objeto” (Heidegger, 1977, p. 41). A
verdade existe na obra mesmo sem enunciado, ou descrição pois a sua essência
existe em si mesma, faz parte da obra, “faz parte do acontecimento da obra. A
essência do criar determinamo-la de antemão a partir da sua relação com a
essência da verdade, enquanto desocultação do ente.” (Heidegger, 1977, p. 45).
A obra é a tradução de um sentimento ou conceito, a abertura de um ente. Para
que este possa existir como único e pertencente a uma peça, esta deve repousar
e respirar sem que a sua aura seja obstruída, não ocultando assim a sua
verdade.
“A abertura de um ente acontece na obra” (Heidegger, 1977, p. 54) a qual
salvaguarda a verdade do saber, do seu criador e do seu tempo. Heidegger
refere, de seguida, que o saber não consiste na mera representação de algo, ou
seja, podemos representar o que sabemos acerca de algo, mas esta
representação não irá chegar para traduzir o nosso saber na sua totalidade, e
quem sabe verdadeiramente o ente, sabe o que quer no meio do ente. Heidegger
explica que este querer não determina de antemão o saber, “concebe-se a partir
da experiência fundamental do pensar em Ser e Tempo. O saber que permanece
um querer e o querer que permanece um saber é a inserção ecstática do homem
existente na desocultação do ser” (Heidegger, 1977, p. 54). Assim, a obra liberta
o homem da sua essência através da sua existência, sendo que nada lhe pode
retirar o saber com que foi feita para alcançar a sua forma. Esta libertação reflete
uma vontade: “Querer é a sóbria decisão do ir-além-de-si-mesmo existente, que
se expõe à abertura do ente como ao que se pôs em obra. Assim, a instância
vem à lei, a salvaguarda da obra é, enquanto saber, a sóbria persistência no
abismo de intranquilidade da verdade que acontece na obra” (Heidegger, 1977,
p. 54). Em relação à obra, Heidegger salienta que:
A Obra de arte é o templo, ali de pé, abre um mundo e ao mesmo tempo repõe-no a terra
que, só então, vem à luz como solo pátrio (heigmaltlich Grund). Porém, jamais sucede que
os homens e os animais, as plantas e as coisas estejam aí e, reconhecidos como objetos
imutáveis, forneçam de seguida, acessoriamente, a ambiência adequada ao templo, que
um dia se acrescenta ao que lá está. Aproximamo-nos muito mais do que é, se pensarmos
tudo isso de modo inverso, com a condição, evidentemente, de sabermos ver, antes de
32
mais, como tudo se nos apresenta de outro modo. A simples viragem (Umkerhren),
efectuada por si mesma, não há nada (Heidegger, 1977, p. 33).
Após esta triangulação de conceitos podemos propor a seguinte hipótese:
tal como não é possível dissociar o ponto do vazio também não é possível
dissociar o vazio de cada objeto que o ocupa, pois, este vazio é inerente não
apenas ao corpo, mas também à aura que o transcende.
A Figura apresenta o objeto (representado a preto) e as respetivas auras
como circunferência referente de cada um (Figura 3). Como é visível, os objetos
juntos tendem a consumir-se. Ao sufocar o objeto a aura não irá respirar
deixando assim de ter uma aura individual, para passar a ter uma aura global,
pertencente ao conjunto dos objetos. Desta forma, o objeto perde totalmente a
sua aura própria, sendo que a sua capacidade de transcender será alterada.
Perde-se, assim, a pureza do objeto.
Quanto à essência dos objetos, Ferrier cita Brancusi quando este nos diz-
nos que “Não é a forma exterior que é real, mas a essência das coisas. A partir
desta verdade, é impossível, a qualquer um, expressar algo real, imitando
apenas a superfície externa das coisas” (Ferrier, 1995, p. 539). A essência do
objeto permanece de forma intemporal, não importando a forma física da obra
ou o seu estado, conseguindo transportar o observador a um nível de êxtase,
seduzindo-o para um momento aurático. Cada objeto tem a capacidade de nos
contar uma história e cada pessoa é atingida consoante o saber que detém da
mesma. Naturalmente, cada um o interpreta e sente de forma diferente. Poderá
então a essência estar não no objeto, mas sim no observador? Sartre afirma que
Figura3
33
somos aquilo que vivemos e a dimensão da nossa imaginação, sendo tudo
transcendência.
O conjunto "objeto-essência" constitui um todo organizado: a essência não está no objeto,
mas é o sentido do objeto, a ·razão da série de aparições que o revelam. Mas o ser não é
nem uma qualidade do objeto captável entre outras, nem um sentido do objeto. O objecto
não remete ao ser como se fosse uma significação: seria impossível, por exemplo, definir
o ser como uma presença - porque a ausência também revela o ser, já que não estar aí é
ainda ser (Sartre, 2007, p. 8).
Para Sartre, o ser é um fenómeno transcendental no qual a sua essência é
aquilo que é sentido em relação a esse ser, a imagem criada na mente. Visto
que o conhecimento não pode tornar-se um ser em si, todo o ser tem se ser
transfenomenal. Isto não significa que o ser se esconde por detrás de
fenómenos. O autor desenvolve esta ideia: “O que mede o ser da aparição é,
com efeito, o facto de que ela aparece. E, tendo limitado a realidade a este
fenómeno, podemos dizer que este fenómeno é tal como aparece” (Sartre, 2007,
p. 9).
A compreensão da consciência assume-se como um importante fator para
saber a forma como o ser irá interpretar uma exposição. Sobre este tema Sartre
refere que:
O prazer não deve dissolver-se detrás da consciência que tem (de) si: não é uma
representação, é um acontecimento concreto, pleno e absoluto. Não é de maneira alguma
uma qualidade da consciência (de) si, assim como a consciência (de) si não é uma
qualidade do prazer. Não há antes uma consciência que recebesse depois a afecção
"prazer", tal como se colore a água — do mesmo modo como não há antes um prazer
(inconsciente ou psicológico) que recebesse depois a qualidade de consciente, como um
feixe de luz (Sartre, 2007, p. 13).
Com esta premissa, Sartre afirma também que não se deve entender que
a consciência se extrai do nada, não havendo possibilidade de haver nada de
consciência antes da consciência. Sabendo que não se pode prever uma
transcendência, pois ao prever esta transcendência, o ser já está a transcendê-
la, “antes da consciência só se pode conceber plenitude de ser, em que nenhum
elemento pode remeter a uma consciência ausente” (Sartre, 2007, p. 14). Esta
34
plenitude de ser onde o ser se encontra a si como ser aparece perante si mesmo,
pois:
Para haver nada de consciência é preciso uma consciência que haja sido e não é mais, e
uma consciência-testemunha que coloque o nada da primeira consciência para uma
síntese de reconhecimento. A consciência é anterior ao nada e "se extrai" do ser.23 (…) A
consciência nada tem de substancial, é pura "aparência", no sentido de que só existe na
medida que aparece. Mas, precisamente por ser pura aparência, um vazio total (já que o
mundo inteiro se encontra fora dela), por essa identidade que nela existe entre aparência
e existência, a consciência pode ser considerada o absoluto (Sartre, 2007, p. 14).
Absoluto este que tem a capacidade de transcender, bem como a questão
do Dasein, onde o ser começa a questionar a razão da sua própria existência
O ser transfenomenal da consciência não pode fundamentar o ser transfenomenal do
fenômeno. Eis o erro dos fenomenistas: tendo reduzido, com razão, o objeto à série
conexa de suas aparições, acreditaram ter reduzido seu ser à sucessão de suas maneiras
de ser, e por isso o explicaram por conceitos que só podem ser aplicados a maneiras de
ser, pois designam relações em uma pluralidade de seres já existentes. (…) Sem dúvida,
pode-se ter consciência de uma ausência. Mas esta ausência aparece necessariamente
sobre um fundo de presença. Pois bem: como vimos, a consciência é uma subjetividade
real, e a impressão é uma plenitude subjetiva. Mas esta subjetividade não pode sair de si
para colocar um objeto transcendente conferindo-lhe a plenitude impressionável. Assim,
se quisermos, a qualquer preço, que o ser do fenômeno dependa da consciência, será
preciso que o objeto se distinga da consciência, não pela presença, mas por sua ausência,
não por sua plenitude, mas pelo seu nada. (…) “Mas de onde vem o nada? E se é a
condição primeira da conduta interrogativa, de toda indagação filosófica ou científica em
geral, qual será a primeira relação entre o ser humano e o nada, qual a primeira conduta
nadificadora? (Sartre, 2007, pp. 17,28)
Sartre, na obra O Ser e o Nada, refere que o ser determinado como nada
transpõe-se para o seu contrário “Esse ser puro — escreve Hegel na Lógica
menor — é a abstração pura e, por conseguinte, a negação absoluta, a qual,
tomada também em seu momento imediato, é o não-ser.” (Sartre, 2007, p. 29).
23 “Não significa de modo algum que a consciência seja fundamento de seu ser. Ao contrário, como veremos adiante, há uma contingência plenária do ser da consciência. Queremos apenas indicar: 1 º, que nada é causa da consciência; 2º, que ela é causa de sua própria maneira de ser” (Sartre, 2007, p. 14).
35
Deste modo tanto o ser como o nada, são algo, bem como em seguida o autor
salienta que:
Com efeito, não é o nada simples identidade consigo mesmo, completo vazio, ausência
de determinações e conteúdo? O ser puro e o nada puro são, portanto, a mesma coisa.
Ou melhor, são diferentes, para dizer a verdade. Mas, «como aqui a diferença ainda não
está determinada, pois ser e não-ser constituem o momento imediato, essa diferença, tal
como neles se acha, não poderia ser mencionada: é apenas um simples modo de
pensar»24. Isso significa, mais concretamente, que «não há nada no céu e na terra que
não contenha em SI» 25 (Sartre, 2007, p. 29).
Explicando o fundamento do espaço como uma exterioridade recíproca em
que o ser é aquilo que é, o autor define o seu lugar presente como um para si
indiferente aos demais seres, afirmando esta indiferença como própria
identidade.
Sarte refere também que “O espaço é o nada de relação captado como
relação por um ser que é sua própria relação” (Sartre, 2007, p. 175). Da mesma
maneira que, para o ser humano, é impossível olhar diretamente para os próprios
olhos sem ser por meio de um reflexo, o vazio é uma transcendência. Nada pode
realmente limitar o vazio, podendo apenas criar uma interrupção visual que não
impede a noção de existência de algo mais, e o desejo de ver para além desse
limite. Assim, apesar de o vazio não poder ser observado este pode sim ser
disposto da forma desejada pelo observador. Logo, nós somos o limite da nossa
transcendência. Sobre este propósito Sartre salienta que:
Mas, por outro lado, quer ser o objeto no qual a liberdade do outro aceita perder-se, o
objeto no qual o outro aceita encontrar, como sua segunda facticidade, o seu ser e sua
razão de ser; quer ser o objeto-limite da transcendência, aquele rumo ao qual a
transcendência do Outro transcende todos os outros objetos, mas ao qual não pode de
modo algum transcender (Sartre, 2007, p. 291).
24 Hegel: P. c. - E. 988. 25 Hegel: Lógica maior, capítulo 1. [N. do T. = In Enciclopédia das Ciências Filosóficas (Editorial Atena, São Paulo).]
36
O autor desenvolve: “o objeto sagrado, com efeito, é um objeto do mundo
que indica uma transcendência para-além do mundo. A linguagem revela-me a
liberdade daquele que me escuta em silêncio, ou seja, sua transcendência”
(Sartre, 2007, p. 296). Podemos, assim, ver o vazio como estado puro da
ausência de qualquer transcendência, pressupondo que a transcendência parte
da aparição de uma realidade, um objeto, um ser ou uma presença. Definir o
vazio é como ocultar o tempo no espaço, como um congelamento ou uma
interrupção no raciocínio. O vazio é inalcançável num contexto psicológico pois
como Sartre refere “o nada não se nadifica” (Sartre, 2007, p. 36). O simples facto
de existir leva à negação do vazio pois perante a existência de pensamento e a
existência de um ser pensador não é possível negar a transcendência. Tal como
defendia René Descartes, “penso, logo, existo” (Descartes, 2005, p. 34). O ser
pode, talvez, ser considerado o limite do vazio, da própria transcendência e da
forma em que o vazio existe até ao próximo limite, que será a próxima aparição
ou obstáculo que encontra. Ao encontrar este limite, vê e sente algo, realizando
e imaginando de uma determinada forma. Se existir, e o ser apenas se observa
por reflexo, o seu próprio estado físico pode ser uma transcendência de si
mesmo. Voltando assim a delimitar a ausência de qualquer presença, a
consciência do ser é tudo no nada.
O objeto continua a ter necessidade de respirar para que não seja
interrompido pelo que o espaço dado à essência do objeto é essencial para que
o objeto continue a ser um momento único na nossa capacidade de
transcendência (Figura 4).
Nesta sequência explicativa da importância do vazio no diálogo expositivo,
Rudolf Arnheim apresenta um pensamento proveniente da teoria da Gestalt:
Figura4
37
Uma disciplina psicológica — A palavra Gestalt, substantivo comum alemão, usada para
configuração ou forma tem sido aplicada desde o início do nosso século a um conjunto de
princípios científicos extraídos principalmente de experimentos de percepção sensorial.
Admite-se, geralmente, que as bases de nosso conhecimento atual sobre percepção visual
foram assentadas nos laboratórios dos psicólogos gestaltistas, e meu próprio
desenvolvimento formou-se nos trabalhos teóricos e práticos desta escola (Arnheim, 2005,
p. 12).
Em relação à perceção visual, Rudolf Arnheim (1974) mostra-nos também
a estrutura oculta de um quadrado onde é percetível uma circunferência que não
está centrada (Figura 5).
Considerando a figura 5, Arnheim refere que:
Tais induções perceptivas diferem das inferências lógicas. Inferências são operações
mentais que acrescentam algo aos fatos visuais dados, ao interpretá-los. Induções
perceptivas são às vezes interpolações que se baseiam em conhecimento adquirido
previamente. Caracteristicamente, contudo, são conclusões derivadas espontaneamente
durante a percepção de determinada configuração do padrão (Arnheim, 2005, p. 22).
Em relação à figura 5, Arnheim diz-nos que esta é e não é,
simultaneamente, vazia. O centro desta figura pode ser visto como uma
complexa estrutura oculta para onde as forças se dirigem, como se de um campo
magnético se tratasse, e o disco como se fossem limalhas de ferro. Ao colocar o
disco em alguns lugares dentro do quadrado, irá parecer que este está
completamente estático, enquanto há outras posições em que irá dar a noção
de impulso para uma direção definida.
Figura5
38
Perante estas comparações, Arnheim mostra-nos a Figura 6 onde
podemos reparar que o disco é atraído para o canto superior direito. Ao alterar a
distância, este efeito enfraquece e ou acaba por se inverter.
[...] pode-se ver o disco atraído pela borda direita. Se a distância foi alterada, este efeito
se enfraquece ou toma-se até reverso. Pode-se encontrar uma distância na qual o disco
parece «demasiadamente próximo», dominado pela urgência de ultrapassar a borda.
Neste caso o intervalo vazio entre a borda e o disco parecerá comprimido, como se mais
espaço fosse necessário. Para qualquer relação espacial entre objetos há uma distância
«correta», que o olho estabelece intuitivamente” (Arnheim, 2005, p. 22).
Assim, é possível assimilar que:
Todo padrão visual tem uma qualidade dinâmica que não pode ser definida intelectual,
emocional ou mecanicamente, através de tamanho, direção, forma ou distância. Esses
estímulos são apenas as medições estáticas, mas as forças psicofísicas que
desencadeiam, como as de quaisquer outros estímulos, modificam o espaço e ordenam
ou perturbam o equilíbrio26 (Dondis, 1976, p. 36).
É possível aferir então que tudo possui uma força que causa um efeito no
espaço que habita, e a sua disposição em relação ao espaço tem, do mesmo
modo, um efeito em si. Arnheim na Figura 7, que aqui reproduziu o seu propósito
refere o seguinte:
As explorações informais mostram que o disco sofre influência não apenas das bordas e
do centro do quadrado, mas também da estrutura em cruz formada pelos eixos vertical,
horizontal e pelas diagonais (...) O centro, o principal lugar exato de atração e repulsão,
26 Traduzido de: “Cada pattern visual tiene un carácter dinâmico que no puede definirse intelectual, emocional o meccánicamente por el tamaño, la dirección, el contorno o la distancia. Estos estímulos son solamente la mediciones estáticas, pero las fuerzas psicofísicas que ponen en marcha, como las de cualquier estímulo, modifican, disponen o deshacen el equilíbrio” (Dondis, 1976, p. 36).
Figura6
39
se estabelece através do cruzamento destas quatro principais linhas estruturais. Outros
pontos das linhas são menos fortes do que o centro, mas exercem atração da mesma
forma. O padrão esquematizado (...) será chamado esqueleto estrutural do quadrado.
Mostrar-se-á posteriormente que estes esqueletos variam de figura para figura (Arnheim,
2005, p. 23).
Um efeito desagradável resulta das localizações nas quais as atrações são
tão equívocas e ambíguas que o olho não pode decidir se o disco pressiona em
uma direção em particular. Tal oscilação torna a afirmação visual obscura
interferindo no juízo perceptivo do observador. Em situações ambíguas o padrão
visual cessa de determinar o que se vê, entrando em jogo fatores subjetivos do
observador, como o foco de atenção ou preferência por uma direção em
particular. A menos que o artista pretenda ambiguidades deste tipo, elas induzi-
lo-ão a uma procura de arranjos mais estáveis (Arnheim, 2005, p. 7).
Segundo o autor, o nosso subconsciente formaliza uma nova perceção de
movimento entre limites desenvolvendo certas ilusões que enganam o olho
humano pela localização de um objeto perto de determinado limite. Aqui, o
Kunstwollen está presente na medida em que a atração de um objeto ou o seu
posicionamento no espaço irá depender da vontade do material, do
comportamento do objeto e da sua essência no espaço.
A pureza de um ser perante si mesmo não está oculta no seu estado físico
pois apenas este transporta a sua essência, embora “em termos ideais, as
formas visuais não devem ser propositalmente obscuras; devem harmonizar ou
Figura7
40
contrastar, atrair ou repelir, estabelecer relação ou entrar em conflito”27 (Dondis,
1976, p. 42) como nos diz Donis A. Dondis. O corpo que carrega a aura deve,
portanto, conseguir uma melhor leitura e uma melhor relação com o espaço
contingente. Em caso de conflito, este pode também ser criado
propositadamente tornando-se uma mais valia para situações em que o diálogo
pretende a mostrar uma comparação ou separação de qualidades atribuídas a
uma obra ou objeto. Esta relação é descrita por Arnheim quando refere que se
deve ir além do quadro em preto e branco desenhado no papel. Explicando que
o quadro e a estrutura oculta que este provoca “é mais do que uma gelosia de
linhas.” (Arnheim, 2005, p. 8) Conforme a Figura 7, ao tratar a perceção como
“um campo contínuo de forças”. O Autor afirma ainda que nesta “paisagem
dinâmica” (Arnheim, 2005, p. 8), as linhas são verdadeiros cumes elevados que
divergem em ambas as direções. Estes cumes são centros de forças atrativas e
repulsivas os quais influenciam os seus arredores, dentro e fora dos limites da
figura, não ficando nenhum ponto da figura livre. “Aceita-se como verdadeiro a
existência de pontos estáveis, mas sua estabilidade não significa ausência de
forças ativas. O centro morto não está morto. Nenhum impulso para qualquer
direção se faz sentir quando atrações em todas as direções se equilibram”
(Arnheim, 2005, p. 8). Para a sensibilidade visual o equilíbrio destes pontos é
“animado de tensão” (Arnheim, 2005, p. 8).
Resumindo, da mesma forma que não se pode descrever um organismo vivo por um
relatório de sua anatomia, também não se pode descrever a natureza de uma experiência
visual em termos de centímetros de tamanho e distância, graus de ângulo ou
comprimentos de onda de cor. Estas medições estáticas definem apenas o estímulo, isto
é, a mensagem que o mundo físico envia para os olhos. Mas a vida daquilo que se percebe
- sua expressão e significado — deriva inteiramente da atividade das forças perceptivas.
Qualquer linha desenhada numa folha de papel, a forma mais simples modelada num
27 Traduzido de: “Idealmente, las formas visuales no deberían ser nunca deliberadamente oscuras; deberían armonizar o contrertar, atraer o repeler, relacionar o chocar” (Dondis, 1976, p. 42).
41
pedaço de argila, é como uma pedra arremessada a um poço. Perturba o repouso,
mobiliza o espaço. O ver é a percepção da ação (Arnheim, 2005, p. 9).
Quando Arnheim coloca a questão dos dois discos num quadrado, refere
que os dois se atraem mutuamente confundindo-se com uma só coisa e, quando
se encontram demasiado próximos, rejeitam-se (Figura 8). Ainda assim, “a
distância na qual estes efeitos ocorrem depende do tamanho dos discos e do
quadrado, bem como da localização daqueles dentro deste.” (Arnheim, 2005, p.
10)
Arnheim explica também como o posicionamento dos objetos se pode
equilibrar mutuamente e como dois pontos inseridos no mesmo quadrado,
simetricamente localizados, formam um par pela sua proximidade, dimensão e
configuração. O par poderá parecer desequilibrado quando deslocado para outra
posição assimétrica. Assim, “como membros de um par nossa tendência é
percebê-los simétricos; isto é, eles têm valor e função iguais no todo. Este juízo
perceptivo, contudo, conflita com um outro, resultante da localização do par”
(Arnheim, 2005, p. 10).
A figura 8 mostra que até “o mais simples padrão visual é
fundamentalmente afetado pela estrutura do espaço circundante, e que o
equilíbrio pode ser perturbadoramente ambíguo quando a configuração e a
localização espacial entram em contradição” (Arnheim, 2005, p. 11). Deste
modo, é necessário ter como preocupação o equilíbrio e a forma como este irá
influenciar a transcendência e as diversas disposições dos objetos no espaço.
Figura8
42
O equilíbrio na disposição de obras de arte, embora seja subjetivo e
variável, é essencial sendo crucial saber-se como consegui-lo. Porque deve o
equilíbrio ser uma qualidade para os padrões visuais? Arnheim esclarece:
Para o físico, equilíbrio é o estado no qual as forças, agindo sobre um corpo, compensam-
se mutuamente. Consegue-se o equilíbrio, na sua maneira mais simples, por meio de duas
forças de igual resistência que puxam em direções opostas. A definição é aplicável para o
equilíbrio visual (…) Com exceção das configurações mais regulares, nenhum método de
cálculo racional conhecido pode substituir o sentido intuitivo de equilíbrio do olho. De
nossa suposição anterior, segue-se que o sentido da visão experimenta equilíbrio quando
as forças fisiológicas correspondentes no sistema nervoso se distribuem de tal modo que
se compensam mutuamente (Arnheim, 2005, p. 12).
Nesta obra, o autor refere que equilíbrio físico de uma tela é o ponto em
que esta se equilibra na ponta de um dedo e que, para descobrir o de uma
escultura é necessário amarrar-se uma corda para se perceber como o peso do
seu volume será distribuído. Por exemplo, o equilíbrio de uma tela é diferente do
de uma escultura por estar na vertical (numa parede) sendo que o da escultura
é influenciado por estar assente num plano ou no vazio. Dependendo sempre do
espaço que a rodeia, a verticalidade da peça é o fator de maior importância pois
o seu impacto varia conforme é apresentada no chão ou num plinto, estando
sujeita à relação entre a forma do plinto, da peça e da sala. Assim, “o equilíbrio
é o estado de distribuição no qual toda a ação chegou a uma pausa” (Arnheim,
2005, p. 30). Sendo também o equilíbrio pictórico indispensável, Arnheim refere
lembrar:
A energia potencial do sistema, diz o físico, atingiu o mínimo. Numa composição
equilibrada, todos os fatores como configuração, direção e localização determinam-se
mutuamente de tal modo que nenhuma alteração parece possível, e o todo assume o
caráter de «necessidade» de todas as partes. Uma composição desequilibrada parece
acidental, transitória, e, portanto, inválida. Seus elementos apresentam uma tendência
para mudar de lugar ou forma a fim de conseguir um estado que melhor se relacione com
a estrutura total (Arnheim, 2005, pp. 13,14).
1.6 Leveza
O conceito de leveza remete à ideia de peso e massa, sendo que o objeto
que for possuidor desta característica possui uma força seja ela física ou
43
referente ao seu valor. Arnheim, na sua obra Art and Visual Perception refere a
importância desta força referindo:
O peso para além de influenciar as forças de distribuição num plano, também pode
apresentar forças de relevância, destaque e importância “o peso é sempre um efeito
dinâmico, mas a tensão não é necessariamente orientada ao longo de uma direção dentro
do plano pictórico. O peso sofre influência da localização. (...). Um outro fator que
influencia no peso é a profundidade espacial. Ethel Puffer observou que as "vistas" que
levam o olhar para o espaço distante têm grande força para contrabalançar. Esta regra,
provavelmente, pode ser generalizada como segue: quanto maior for a profundidade
alcançada por uma área do campo visual, maior será seu peso. (...) O peso depende
também do tamanho. Os outros fatores sendo iguais, o maior objeto será o mais pesado.
(...). Quanto à cor, o vermelho é mais pesado do que o azul, e as cores claras são mais
pesadas do que as escuras (Arnheim, 2005, p. 16).
É possível propor que a direção é indicada pelo movimento. O autor refere
também que:
O peso conseguido através da cor pode ser contrabalançado pelo peso através da
localização. A direção da forma pode ser equilibrada pelo movimento em direção a um
centro de atração. A complexidade destas relações contribui grandemente para a
vivacidade de uma obra (Arnheim, 2005, p. 20).
Na obra de Bernini O Rapto de Proserpina, deparamo-nos com um exemplo
em que a direção e o movimento conseguidos pelo escultor são essenciais para
a perceção da ação. Aqui, é possível notar que Plutão agarra Proserpina,
levantando-a com o seu braço esquerdo, num movimento de rotação para a sua
direita onde o eixo central se encontra sobre a sua perna fletida. Um movimento
contrastante mostra-nos que Proserpina não quer ser levada, quando vemos que
a deusa tenta fugir empurrando a cara de Plutão, inclinando o seu corpo para
fora da cena. Esta obra exemplifica o compromisso entre os conceitos de
equilibro, peso e movimento.
A cor é, do mesmo modo, uma propriedade relevante para influência do
equilibro, pelos pesos diversos e comportamentos distintos que apresentam
consoante o meio onde se encontram. Ao observarmos a pintura de Seurat e a
técnica de pontilhismo utilizada no seu percurso, é-nos exposto um modelo do
comportamento das cores. A questão do ponto, em que Kandinsky nos elucida
44
que o ponto apresenta uma capacidade multifacetada de ser o embrião de todas
as formas e de simultaneamente conter em si todas essas formas, como já
referido anteriormente, é aqui apropriada a uma técnica de pintura que surge
após descobertas cientificas do séc. XIX através da decomposição prismática.
1.7 Branco
O branco é a representação pictórica que ilumina todas as cores, possuidor
da força da luz, sendo um dos elementos que desperta com facilidade a
sensibilidade humana. Para além desta, existem contrastes que atraem com
maior facilidade o olhar, como é o caso das cores quentes e frias. Kandinsky diz-
nos que “o calor ou o frio de uma cor entendem-se pela sua tendência geral para
o amarelo ou para o azul” (Kandinsky, 1912, p. 78). Segundo os estudos de
Kandinsky28 sabemos que numa mesma superfície “o calor tende a aproximar-
se do espectador, enquanto o frio o afasta”. No entanto, nem sempre é utilizada
cor e contrastes acentuados, uma vez que o artista pode ser um pintor/escultor
monocromático. Ao retirar a existência da cor da realidade visual aquilo que irá
afetar a perceção visual serão apenas reflexos e sombras. Consideremos o preto
e o branco cores que formam o quadro dos quatro tons fundamentais. Para cada
cor existem “quatro sons principais: I. quente e 1) claro ou 2) escuro; II. frio, e
simultaneamente, 1) claro ou 2) escuro” (Kandinsky, 1912, p. 78) onde o
movimento já não é dinâmico, mas estático, tanto no branco como no preto.
Assim sendo, é possível propor que uma sombra não é mais que um reflexo
da escuridão, assim como um reflexo uma sombra da luz. Ambos vivem e se
comportam da mesma forma, com maior ou menor intensidade, não existindo
um sem o outro.
Tendo assumido que a sombra é o preto e a luz é o branco, apenas as duas
juntas nos dão a tão vasta escala de cinzas que irá causar o êxtase de observar
a plasticidade do mundo físico. Podemos então observar a sombra como uma
mera perspetiva diferente de um reflexo. É importante o respeito pela cor, mas
28 Kandinsky, do espiritual na arte
45
para esta existir terão sempre de estar presentes, à priori, luz e sombra, fatores
que devem ser os pilares principais a considerar na forma como se constrói um
diálogo, assim como numa obra de arte. O vazio concede a sombra assim como
a profundidade e compor um espaço é como esculpir uma peça, sendo uma
constante procura pelo vazio até chegar à forma. Neste sentido citemos Arnheim:
Visualmente, uma estátua e o espaço circundante podem ser considerados como dois
volumes contíguos — se na verdade desejarmos considerar o ambiente como um volume,
ao invés de mero vazio, uma vez que a estátua parece monopolizar todas as qualidades
da figura. A estátua é o volume limitado, menor, e tem textura, densidade e solidez. A
estas qualidades preceptivas praticamente toda escultura em toda a história da arte
acrescentou convexidade (Arnheim, 2005, p. 247).
Qualidades estas que também vivem na ausência a cor, sendo importantes
para a perceção da totalidade das características da peça, das quais nasce a
monumentalidade da peça independentemente do seu tamanho. O transpirar do
objeto faz com que este se torne sublime, através da verdade do seu material e
da técnica aplicada pelo autor. Esta vida que a peça ganha pode ser observada
apenas pela luz. Bem como Sampayo salienta que “A luz, pelo reflexo, transmite
a imagem dos corpos, e pelo reflexo, e refracção, os faz ver de diferentes Cores”
(Sampayo, 1787, p. XI). Tendo achado dois princípios para as cores:
Primeiro princípio: O Negro he huma cor positiva, na qual o Vermelho, o Azul, o Verde, e
o Amarello se achaõ intimamente unidos, e em quantidades quasi iguaes.
Segundo princípio: O Branco he huma cor igualmente positiva, onde o Vermelho, o Azul,
o Verde, e o Amarello se achaõ extremamente divididos, athe o ponto de íè fazerem
invisíveis (Sampayo, 1787, pp. 13,14).
46
Parte II
A vinculação dos paradigmas da ideia de vazio na museologia pretende
mostrar o comportamento dos conceitos apresentados no capítulo anterior
concentrados no espaço museológico. Este capítulo expõe a forma como estes
conceitos são aplicados a nível prático, a influência que têm no espaço e o valor
que acrescentam ao diálogo expositivo.
2 Vinculação dos Paradigmas da Ideia do Vazio na Museologia
Para que as Vinculações dos paradigmas apresentados na primeira parte
deste trabalho sejam tratadas de um ponto de vista Museológico, é essencial
salientar que a Museografia pode ser considerada toda a prática implementada
pelo conceito museológico apresentando toda a operação interna e
sistematização do museu, mostrando-se como porta-voz das tendências
ideológicas e artísticas determinadas. A museografia é uma intervenção flexível
entre o âmbito teórico que atua sobre o terreno, preferindo os métodos mais
eficazes, anulando proposições incompatíveis a situações concretas e
selecionando o material cientificamente calculado pela museologia (Leon, 2000,
pp. 106,109)
Assim, a Museologia tem como objetivo:
O estudo sistemático, a classificação ordenada e selecionada e a exposição clara e
precisa dos fundos do museu, adaptando o edifício às necessidades museográficas e
introduzindo métodos eficazes para a sua compreensão. Toma na sua dimensão artística,
oferece um dos pontos mais essenciais para a estética, a arte, a sensibilidade e a
museologia. Qualificada como arte desde o momento em que não só manipula sobre o
campo artístico como os seus princípios mais primários tendem à inspiração, à criação e
interpretação, educação e sensibilidade, a promoção de novas vivências e emoções
através dos métodos expositivos para esses fins (Leon, 2000, p. 109).
Segundo o ICOM, (Conselho Internacional de Museus, organismo da
UNESCO) um museu é uma instituição ao serviço da sociedade, e para além de
adquirir, conserva, estuda, comunica e expõe. Este tem, portanto, a função de
Recolher/Documentar; Conservar/Restaurar; Investigar/Interpretar;
Expor/Divulgar; Administrar/Gerir. Esta investigação pode apresentar a sua
47
importância em cada função, sendo aplicada a partir da sua documentação para
a conservação preventiva dos objetos. Sabendo que a forma como é exposta irá
influenciar os aspetos de valor da peça, bem como a sua interpretação, todas
estas disciplinas obrigam a administração e gestão museológica, bem como os
paradigmas referidos anteriormente poderão influenciar a forma como um
espaço é musealizado. A sua importância é assim aplicada nos diferentes
campos temáticos dos museus, de arte; arqueologia/história; ciência e técnica e
etnografia/antropologia.
O conceito de ciência museológica não surge até ao séc. XX, quando se
expande a necessidade de confrontar o público dos museus, sendo que a
museografia sofreu constantes alterações consoante as épocas e modas de
cada momento histórico. As vinculações dos paradigmas apresentados não têm
qualquer preocupação no que diz respeito a modas, mas sim na interpretação e
perceção humana de um ponto de vista sociocultural e sensorial, com base nos
estudos apresentados na primeira parte desta tese.
2.1 Desmaterialização na Museologia
Ao compreender o que existe em comum entre diversas culturas, é possível
encontrar uma forma de conquistar a atenção e compreensão de um maior
espectro de visitantes de uma exposição. O vazio é, assim, um elemento a
considerar, não apenas no contexto semiótico, mas também na conservação e
preservação dos valores de um objeto. As obras de site-specific, por exemplo,
residem segundo o crítico Douglas Crimp numa condição de receção e
deslocamento da atenção do observador para o local onde o objeto ou evento
se encontram e não apenas para as características específicas das mesmas. Se
uma destas obras for deslocada para outro local haverá algo errado com a peça
pois esta deve estar integrada no seu contexto ambiental sendo dirigido pelo
mesmo. Quando um trabalho é concebido exclusivamente para um local torna-
se dependente das características específicas desse espaço e, por isso, o
significado da obra não está somente no objeto, mas também no espaço físico e
contexto onde este se insere. Buren (1970) afirma que:
48
Se o lugar onde o trabalho é mostrado imprime e marca esse trabalho, seja ele qual for,
ou se o trabalho em si é diretamente – conscientemente ou não – produzido para o museu,
qualquer trabalho apresentado nessa estrutura, se não examinar explicitamente a
influência desse formato sobre si mesmo, cai na ilusão de auto-suficiência – ou idealismo29
(Know, 2002, pp. 13,14).
Segundo Miwon Kwon, neste caso, o trabalho deve ser inseparável do seu
local visto fazerem parte um do outro, o que exige a presença física do
espectador para que a obra seja concluída. Esta é uma arte relacionada com a
realidade do local, o que supera todos os meios tradicionais, dando-se uma
substituição do objeto-arte pela contingência contextual, deslocando o sujeito
para o fenómeno. Isto acontece pois determinados objetos são feitos para um
local com o propósito de serem vistos e sentidos no mesmo, alguns com milhões
de anos, outros contemporâneos, mas ambos com o mesmo problema: a perda
do espaço do objeto. No entanto, nem sempre é possível preservar o objeto no
local, principalmente no caso de vestígios arqueológicos. Em certos casos pode
dar-se a musealização desse espaço, mas em caso de impossibilidade será
possível dar o mesmo valor a uma peça numa exposição fora do seu contexto
original? Um objeto criado para determinadas circunstâncias, com um propósito
definido, ou para o seu local específico pode não perder o seu impacto ao ser
deslocado, pois encontra nesse novo contexto novos significados. Mas, neste
caso, a peça nunca voltará a ser interpretada como era suposta, nem irá
transmitir o sentimento que originalmente transparecia. Ao perder o seu lugar irá
inevitavelmente perder parte da sua aura. Não é, por exemplo, suposto que um
objeto de culto com 50.000 anos ou um site-specific encontrem um novo
significado, perdendo o seu valor inicial para o qual foi concebido. Aqui, mais
uma vez, a manipulação museográfica é imprescindível para que não se perca
a leitura destas peças, devendo sempre fazer alusão ao local específico onde
pertenciam. Neste caso, a perda do local obriga à colocação do objeto num vazio
eterno, onde apenas esse poderá conter o que resta da essência do objeto,
29 Traduzido de:“Whether yhe place in which the work is shown imprints and marks this work, whatever it may be, or whether the work itself is directly – consciously or not- produced the Museum, any work presented in that framework, if it does not explicity examine the influence of the framework upon itself, falls into the ilusiono f self-sufficiency – or idealism” (Know, 2002, pp. 13,14)
49
preservando uma leitura concisa. Talvez apenas o respeito por este espaço que
a essência do objeto ocupa irá conseguir que esta tenha uma interpretação
correta.
O conceito japonês MA, que representa o vazio ou “entre espaço” (Okano,
2013, p. 150), trouxe para o Ocidente uma influência não só para as formas
desenvolvidas nas artes, como também para a filosofia contemporânea. Esta
noção veio reorganizar o modo de observação dos espaços assim como a
disposição dos mesmos, deixando-os respirar e tornando-os mais harmoniosos.
A harmonia e a prática da meditação são grandes pilares da cultura oriental.
Em latim, meditare significa voltar para o centro, um método que permite que
uma pessoa se desligue do mundo exterior. No Oriente, a arte e a arquitetura
têm esta prática no seu cerne, o que pode ser observado nos antigos jardins
japoneses onde existe uma procura do vazio no ruído, nas pessoas e até mesmo
no pensamento.
A filosofia do MA pode ser associada à museologia no sentido em que a
leitura de uma peça pode ser influenciada consoante a encenação em que se
insere. A narrativa da exposição pretende passar uma mensagem cujo
significado pode ser manipulado pela sua museografia. É possível utilizar a
mesma peça em múltiplos conceitos de exposições com múltiplas leituras e em
inúmeros casos, mas será ética a apropriação de uma obra de arte para ilustrar
um conceito? Considerando que o meio em que uma peça se insere e a sua
disposição afetam a sua leitura, é possível que a verdadeira essência e
significado da mesma se percam. É, portanto, necessário encontrar o espaço
que cada elemento deve ocupar considerando a sua presença física bem como
a sua essência. Tanizaki (1933) faz a comparação entre o Oriente e o Ocidente
na obra Elogio da Sombra, afirmando que:
Se depuserem agora sobre um prato para bolos lacado esta harmonia colorida que é um
yõkan30
, o mergulharem numa sombra tal que faça com que mal se lhe distinga a cor, ele
tornar-se-á ainda mais propício à contemplação. E quando por fim levarem à boca essa
30 “Yôkan – Guleseima de consistência gelatinosa feita com pasta de feijão vermelho, açúcar e ágar, e perfumada com aromas de frutos como, por exemplo, castanha ou ameixa. Geralmente vendidos sob o formato de cubos, os yõkan são comidos à fatia” (Tanizaki, 2016, pp. 29,30).
50
matéria fresca e lisa, a sentirem fundir na ponta da língua como uma parcela de escuridão
da sala, solidificada numa massa açucarada, esse yõkan ao fim de contas bastante
insípido reencontrará uma estranha profundidade que lhe realça o sabor. De certeza que
todos os países do mundo procuram encontrar a concordância de cores entre iguarias, a
loiça e até mesmo as paredes; ainda assim, a cozinha japonesa, se for servida num local
demasiado iluminado, em loiça predominantemente branca, perde metade do seu atrativo
(Tanizaki, 2016, pp. 29,30).
Aqui, é possível observar que a cultura oriental evidencia a encenação
adequada para criação de um momento de êxtase. Na arquitetura do Museu
Chichu em Naoshima, por exemplo, o arquiteto Tadao Ando trabalha o volume
da infra-estrutura de forma apenas interior, criando aberturas geométricas e
minimalistas no rochedo onde este se situa (Figura 9). Todo o interior desta
construção é um entre espaço onde se rasgam entradas de luz que criam um
ambiente estático e vazio que iluminam de forma contrastante a frieza
monocromática das suas paredes de betão. Neste ambiente as peças destacam-
se ecoando pela serenidade deste lugar (Figura 10).
Como exemplo, ainda na instalação de Walter de Maria Time/Timeless/No Time
(2003-2004) (Figura 10) encontra-se numa sala onde todo o chão é preenchido
de degraus. No seu centro pode ser vista uma esfera de granito preto, que
absorve a energia dos ângulos retos da sala, bem como o reflexo contrastante
dos blocos retangulares folheados a ouro que o artista colocou nas paredes em
redor. Estes são iluminados consoante a luz que entra pelo corte no teto.
Figura9 Figura10
51
O trabalho de Tadao Ando mostra assim um vazio evidente entre a matéria e a
forma, tal como a sua arquitetura e a natureza, onde a luz domina perante as
formas retas das suas infraestruturas.
2.2 Pureza na Museologia
Deixar que um ser material transmita o que é puro em si implica deixar este
corpo físico viver por si. A forma inadequada em que uma peça é disposta e
posicionada pode levar o observador ao engano, podendo confundir um objeto
com outro semelhante, como também tornar a sua leitura errada no que diz
respeito à sua utilidade. O objeto deve, portanto, ser preservado conforme a sua
função inicial e a posição para o qual tenha sido concebido, de forma a respeitar
a aura do mesmo. Retirar a função a um objeto é como apagar a intenção de
uma fotografia, o que faz com que este perca o seu valor. Não devemos, por
exemplo, apresentar um objeto preso à parede cuja função original obrigava a
estar pousado em cima de uma mesa, como é o caso de um pisa-papéis ou de
uma caixa de jóias. Ao desrespeitar o significado do objeto estamos a interferir
com a sua aura.
O conceito de aura apresenta uma forte ligação com a cultura e a religião,
devendo existir um respeito pela mesma na musealização de um objeto destes
âmbitos. Susan M. Pearce, na sua obra Interpreting Objects and Collections,
fala-nos de objetos mortos, ou seja, objetos para fins fúnebres ou específicos
para cultos de morte, que podem ser considerados possuidores de um vazio
natural visto que pertencem ao outro mundo. A colocação destes objetos de culto
fora do seu contexto (bem como as obras site specific) pode levar a uma
alteração do seu significado cultural e histórico, o que pode destruir a aura
genuína, impossibilitando a sua pureza de transparecer. Como refere o autor
José Carlos Pereira, “os espaços e o tempo sagrado são sinais externos de
grande valor (…) que têm dimensão subjectiva de grande significado. Sinais que
se reflectem nos objectos de culto” (Pereira J. C., 2004, p. 67). Deste modo,
podemos considerar que, na sua musealização, os símbolos da morte devem
ser analisados e expostos de forma diferente dos demais pois são objetos de
52
culto pertencentes a uma cultura, objetos mudos, que devem pertencer e fazer
parte desse mundo para sempre.
Assim, a essência destes objetos contém o Zeitgeist dos mortos, possuindo
um paralelismo inalcançável para quem os vê do mundo dos vivos. Em
determinadas culturas, os mortos eram sepultados junto com os seu pertences.
Existe uma aura que envolve o corpo e os seus objetos e que deve ser respeitada
na musealização dos mesmos, não apenas por questões éticas, mas também
pelo simbolismo que os envolve. Uma múmia e as peças que a acompanham,
por exemplo, não podem ser considerados meros objetos. Estes encerram um
significado, sendo destinados para a vida após a morte e não para estar em
exposição.
Existem, também, objetos de culto criados para os vivos como é o caso dos
retábulos e painéis religiosos. A sua exposição deve considerar a leitura que
teriam na função inicial, bem como o modo de observação e de interpretação
das obras na época. As obras da arte antiga, por exemplo, eram de leitura
destinada ao povo para que “ao contemplá-las, possam ler, pelo menos nas
paredes, aquilo que não são capazes de ler nos livros” (Gregorii, 1982, p. 874).
A leitura do retábulo ou do vitral não era feita da mesma forma que seria
hoje, dependendo da cultura ou da religião a que a peça estivesse associada.
Assim, o estudo e investigação dos princípios de uma obra permite expor a peça
de modo a que seja conseguida uma leitura adequada da mesma, respeitando a
sua origem sem que exista alteração da sua história e significado. Para que isto
aconteça a importância de cada objeto deve ser evidenciada sempre dando a
monumentalidade devida a cada qual.
O modo de exposição de um objeto diz respeito não apenas ao diálogo
expositivo construído, mas também à conservação do valor histórico,
sentimental, monetário, iconográfico e religioso. Não existe nenhum valor imune
à forma como é exposto, sendo que a sua exposição está dependente do
ambiente onde se insere, das peças que a rodeiam, do suporte utilizado para a
sua apresentação e do destaque que recebe.
53
Uma peça de maior valor deve, portanto, beneficiar de uma posição de
destaque no diálogo expositivo, como se edificasse um novo espaço dentro do
percurso da exposição. Este destaque pode ser conseguido através de um
estudo de cor, de um contraste de movimento no percurso da sala, ou mesmo
do avanço da parede em relação às restantes (no caso de uma pintura) o que
pode evidenciar a peça, elevando-se na sua proximidade com o visitante aos
restantes limites do olhar, como um plinto horizontal. Plus cita Diderot referindo
a intenção do plinto como a conquista da monumentalidade, desenvolvendo:
É preciso que um pedestal seja sólido: entre todas as figuras regulares, será escolhida
aquela que oponha mais a superfície à terra, é um cubo. Esse cubo será mais firme ainda
se as suas faces se inclinarem: elas serão inclinadas. Mas inclinando as faces do cubo
destruir-se-á a regularidade do corpo, e com ela as relações de igualdade: voltar-se-á a
elas através do plinto e das molduras. As molduras, os filetes, os contornos, os plintos, as
cornijas, os painéis etc. não são senão meios sugeridos pela natureza para se afastar da
relação de igualdade e para voltar a ela insensivelmente (Plus, 2006, p. 142).
Até ao séc. XX a escultura era, por norma, apresentada sobre um plinto
pois este suporte aumentava a aura do objeto, elevando-o ao seu esplendor.
Esta valorização é perdida quando o escultor Anthony Caro 31 tira a escultura do
pedestal e passa a colocar a obra diretamente no chão. A partir deste momento,
o espectador deixou de olhar a peça de baixo, passando a envolver-se com a
mesma. Caro obrigou o público a deslocar-se em torno das suas peças para as
observar de diferentes ângulos, convidando o observador a entrar nas suas
peças. Nesta era contemporânea o homem passa a habitar a escultura, vive-a e
interage com ela. Isto ocorre também em diversas obras de site-specific onde a
escultura é por si só colossal, monumentalizando-se pela forma como intervém
na ação do homem e da natureza. Na pintura, do mesmo modo que muitos
escultores deixaram de apresentar as suas obras num plinto, muitos quadros e
peças bidimensionais deixaram de requerer uma moldura, de onde é possível
31 “escultor abstrato, ficou em parte conhecido como o artista que retirou a escultura do plinto – o elemento que atestava ainda o lastro de continuidade entre a estatuária e a escultura moderna. Desempenhou assim um papel fundamental na escultura do século XX, nomeadamente através da sua libertação espacial” (Rato, 2017) .
54
compreender que a moldura está para pintura assim como o plinto para a
escultura.
A aura de uma obra tem um papel fundamental na sua musealização o que
pode ser constatado quando Barthes nos diz que “tudo o que podemos dizer de
melhor é que o objecto fala, induz, vagamente, a pensar (...) a Fotografia é
subversiva, não quando aterroriza, perturba ou mesmo estigmatiza, mas quando
é pensativa” (Barthes, 1984, p. 62). Isto indica que cada objeto transmite algo,
pois ao ser criado pelo homem pretende expressar algo, e ao partir da natureza
é parte da hyle (a matéria em estado puro, em grego) que pode ser apropriada
para a criação. O Museógrafo deve trabalhar esta questão sabendo que o valor
de cada obra deve ser evidenciado de forma adequada em relação às restantes,
independentemente da sua beleza, sendo cada um destes elementos um
punctum na exposição. Barthes refere este conceito como sendo aquilo que o
toca e estimula, referindo que “esse punctum agita em mim uma grande
benevolência, quase um enternecimento. Todavia, o punctum não leva em
consideração a moral ou bom gosto” (Barthes, 1984, p. 71).
A preocupação com o destaque da obra de arte só surgiu, no entanto, após
o período helenístico, entre 336 a.C. e 30 a.C., no qual ocorreu a difusão da
civilização grega no mundo mediterrânico e no Oriente. Durante esta época de
multiculturalismo foram feitos desenvolvimentos a nível filosófico, religioso,
económico, científico e também artístico, tendo surgido o gosto pela coleção de
arte em todas as casas nobres. Após séculos de domínio cultural por sociedades
clássicas e medievais, a cultura do helenismo expandiu-se trazendo uma total
renovação para o colecionismo, assim como o Renascimento trouxe valor
formativo e científico para o homem, educando-o para apreciar a obra de arte.
Contudo, até aos finais do século XVII as coleções de arte eram privadas, sendo
abertas ao público apenas em eventos e festas, mantendo-se distantes e não
oferecendo nenhum tipo de ensino às classes sociais mais baixas.
55
É possível observar na Figura 11 “O Museu-Jardim de J. Galli em Roma
(Gravura de Heemskerck, 1532-36) O gosto pela Antiguidade e o clássico é
evidente na escolha de peças abundantes em relevos, esculturas clássicas,
ornamentos com motivos ornamentais, apresentados sem rigor científico ou
ordenação racional”32 (Leon, 2000, p. 28).
Na Figura 12 observamos “a galeria em 100 Pal-Mall (Aquarela de
Mackenzie, circa 1787-1854, Victoria and Albert Museum, Londres). O princípio
tradicional da simetria, o empilhamento de telas e a ausência de rigor sistemático
no ordenamento das peças”33 (Leon, 2000, p. 29).
Os gabinetes de amador eram como pequenas pinacotecas com salas
cheias de “obras-primas como se fossem papel de parede” (O´Doherty, 2002, p.
3), sufocando-se umas às outras. As pinturas de maior dimensão iam para o
topo, por serem mais fáceis de ver à distância e por vezes com o devido
afastamento da parede para manter o plano do observador. Os quadros de
excelência encontravam-se na zona central enquanto os mais pequenos
preenchiam a zona inferior e os restantes espaços da parede. Como refere o
32 Traduzido de: “El Museo-Jardin de J. Galli en Roma (Grabado de Heemskerck, 1532-36.) El gusto por la Antiguedad y lo clásico se patentiza en la eleccíon de piezas abundantesen relieves, esculturas clásicas, flentes con motivos ornamentales, presentadas sin rigor cientifico ni ordenación racional” (Leon, 2000, p. 24). 33 Traduzido de: “la galeria en el 100 del Pal-Mall (Acuarela de Mackenzie, hacia 1787-1854, Victoria and albert Museum, Londres.) El principio tradicional de la simetría, el amontonamiento de lienzos y la ausencia de rigor sistemático en la ordenacíón de las piezas (Leon, 2000, p. 25).
Figura12 Figura11
56
autor Brian O´Doerty, “o trabalho perfeito de pendurar quadros resulta num
mosaico engenhoso de molduras sem que se veja uma nesga de parede
desperdiçada” (O´Doherty, 2002, p. 6). Sem qualquer espaço para deixar a sua
aura respirar, a obra deixa de ser vista como uma só, perdendo a sua dignidade
sendo apenas mais uma peça que cobre o resto visível da parede. A
impossibilidade de ser a única distração no campo de visão faz da peça poluição
visual para as restantes, independentemente do seu valor e qualidade. O autor
explica a necessidade de isolamento visual para a apreciação absoluta da obra:
«Entra-se» decididamente num quadro desses ou se plana sem esforço, conforme sua
tonalidade e sua cor. Quanto maior for a ilusão, maior a atracão para o olho do espectador.
O olho é abstraído do corpo estático e projeta-se dentro do quadro como um procurador
em miniatura, para viver e verificar as interações de seu espaço. Para que isso ocorra, a
estabilidade da moldura é tão imprescindível quanto um tanque de oxigénio para um
mergulhador (O´Doherty, 2002, p. 10).
Consequentemente, a moldura pode ser vista como o limite entre a
representação e a realidade, pois, talvez Zêuxis possa ter enganado os pássaros
com a sua natureza morta, mas com a presença da moldura, dificilmente
Parrhasius teria enganado Zeuxis (Elsner, 1996, p. 184). O´Doerty põe também
em questão quanto espaço necessitará uma obra de arte “para “respirar”? Se as
pinturas manifestam implicitamente suas condições de ocupação, torna-se difícil
ignorar o resmungar um tanto aflito de uma com a outra. O que fica bem junto, o
que não fica?” (O´Doherty, 2002, p. 21)
No século XIX, a parede passou a ser participante da arte em vez de um
mero suporte passivo. Mas porque haveria uma peça respirar dentro de um
tanque de oxigénio? Talvez O´Doerty pretenda mostrar que a peça está
submersa, e a moldura é um meio de salvação para que não morra. Ainda assim,
a peça continua a não ser livre, respirando com um limite, do mesmo modo que
o mergulhador tem o seu tempo limitado ao tanque de oxigénio. Neste sentido o
autor refere que:
Quando se sabe que um trecho da paisagem representa uma resolução de excluir tudo o
que o circunda, percebe-se muito pouco o espaço fora da pintura. A moldura torna-se num
parêntese. (…) No século XIX se examinava o tema — não suas margens. Vários campos
eram analisados dentro de seus limites evidentes, A análise, não dos campos mas de seus
57
limites, e a definição desses limites com o fim de ampliá-los são um costume do século
XX. Temos a ilusão de que o campo aumenta ampliando-o lateralmente, e não penetrando
nele, no estilo correcto de perspectiva, como se diria no século XIX. Até mesmo os
especialistas de ambos os séculos possuem uma percepção claramente diversa de
margem e profundidade, de limites e definição. A fotografia aprendeu rápido a deixar de
lado as molduras pesadas e montar uma cópia num cartão. Deixava-se uma moldura
circulando o cartão após um intervalo neutro. A fotografia iniciante reconhecia a margem,
mas retirou-lhe a retórica, atenuou sua presença absoluta e a transformou em uma zona,
ao contrário do reforço que ela constituiria mais tarde. De qualquer modo, a margem, como
convenção inabalável que encerrava o tema, tornara-se frágil (O´Doherty, 2002, pp.
10,11).
2.3 Silêncio na Museologia
A música só é possível pela existência do som organizado, o qual é
formado pela reorganização do ar no espaço físico. É pertinente falar de música
aplicada ao discurso expositivo, considerando a sua importância na fluidez entre
o espaço vazio e aquele ocupado por cada objeto. Imagine-se uma situação
hipotética em que o interior de um instrumento de sopro é uma sala, no qual a
porta é o bocal, e no final deste percurso expositivo encontramos uma saída de
ar. Cada elemento colocado neste percurso irá influenciar o som conseguido por
um sopro, consoante o seu volume forma e material. Assim, é possível propor
que todo o espaço apresenta uma musicalidade conforme a sua ocupação. É
possível sentir uma harmonia e ritmo pelas variações de espaço entre cada
objeto. Acerca da música Ethel D. Puffer refere: “Os dois grandes fatores da
música são o ritmo e a sensação do tom, de entre os quais o ritmo parece ser o
mais fundamental. Em geral o ritmo é definido pela repetição de uma serie de
intervalos de tempo”34 (Puffer, 1905, p. 157).
Propõe-se que a captação da atenção do visitante é conseguida de forma
mais eficaz através de um respirar dissonante de cada conjunto de peças, onde
a mais importante se destaca pela forma como o discurso flui, pelo respeito
mostrado pelo seu espaço e pelo ecoar do seu som. Quanto maior for a liberdade
34Traduzido de:"The two great factors of music are rhythm and tone-sensation, of which rhythm appears to be the more fundamental. Rhythm is defined in general as a repeating series of time intervals " (Puffer, 1905, p. 175).
58
conseguida por uma peça e mais eco tiver, mais esta será ouvida e mais longa
será a sua nota, valorizando-a na musicalidade do diálogo onde se insere. Este
eco conseguido pelo vazio é essencial para a captação de informação
conseguida nas diferenciações deste espaço de forma mais prolongada no
tempo.
O Zeitgeist, como foi referido anteriormente, é considerado o espírito do
tempo e deve ser ponderado no discurso expositivo respeitando a época do
objeto no seu contexto expositivo, assim como na forma como o visitante o irá
interpretar no momento.
Na segunda metade do século XVIII, Winckelmann propôs um conceito de
desenvolvimento coerente dos estilos artísticos que preservava a relação entre
a produção artística e o respetivo contexto histórico, estabelecendo novos
critérios para a história de arte, no qual defendia que:
Uma história da arte deve remontar até à sua origem, seguindo os seus progressos e
mudanças, até à sua decadência e seu fim. Ela deve dar a conhecer o estilo diferente dos
povos, dos tempos, e dos artistas, atribuir-lhe as características e justificar, sempre que
possível, por meio de obras que ainda existam. Pois o resto não passa de conjectura. (...)
A descrição de uma estátua deve indicar em detalhe suas belezas, defeitos, estilo, etc. É
preciso então conhecer a arte e haver estudado e examinado suas partes, antes de se
encontrar em condições de bem julgar suas produções (Winckelmann, 2017, p. 2).
A classificação de obras de arte por estilos artísticos proposta por
Winckelmann acrescentava valor sistemático e contextual da peça para a sua
compreensão a nível expositivo nos museus de arte. Assim sendo, a separação
de momentos cronológicos é essencial para a purificação da leitura da peça. O
tempo é contínuo, mas um silêncio deve separar as diferentes épocas
encontrando uma descontinuidade e um corte no ressalto das gerações e estilos
artísticos. Nas suas investigações, Winckelmann incluiu técnicas mais objetivas
desde a comparação até às noções de conexão, acabando por influenciar a
posterioridade da história de arte com aspetos mais concretos e materiais
“relegando para um segundo plano os elementos estéticos e obliterando os
aspectos funcionais e simbólicos” (Roque, 2017, p. 74). Relativamente a este
ponto Friedrich Hegel acaba por defender que toda a obra de arte pertence ao
59
seu próprio tempo, ao próprio povo e ambiente, dependendo de noções e
intenções históricas, consequentemente “o conhecimento no campo da arte
exige uma grande riqueza de fatos históricos e, de fato, muito detalhados, uma
vez que a natureza individual da obra de arte está relacionada a algo individual
e requer necessariamente conhecimento detalhado para sua compreensão e
explicação”35 (Hegel, 1975, p. 14).
Esta necessidade de individualizar a arte faz com que a obra se queira
afirmar como única querendo ser compreendida, acabando por se atribuir um
estilo à peça, com fundamento na sua escola e autoria.
Os vários tipos de julgamento não devem ser considerados como estando um ao lado do
outro, cada um com o mesmo valor; Em vez disso, eles devem ser vistos formando uma
sequência de estágios, e a distinção entre eles depende do significado lógico do
predicado. Podemos realmente encontrar isso já no nosso senso comum, na medida em
que, sem hesitação, atribuímos apenas um poder de julgamento muito inadequado a
alguém que habitualmente enquadra apenas julgamentos como * "Este muro é verde",
"Este forno é quente" e, portanto, em contraste, dizemos que alguém realmente entende
como julgar apenas quando os seus julgamentos se tratam de uma determinada obra de
arte ser bonita, seja uma ação boa, e assim por diante. No caso de julgamentos do primeiro
tipo, o conteúdo é apenas uma qualidade abstrata, cuja presença pode ser
adequadamente decidida pela perceção imediata, enquanto que, para dizer que uma obra
de arte que é bela, ou se uma ação que é boa, os objetos em questão devem ser
comparados com O que deveriam ser, ou seja, com o conceito deles36 (Hegel, 1991, p.
249).
35 Traduzido de: "Further, every work of art belongs to its own time, its own people, its own environment, and depends on particular historical and other ideas and purposes; consequently, scholarship in the field of art demands a vast wealth of historical, and indeed very detailed, facts, since the individual nature of the work of art is related to something individual and necessarily requires detailed knowledge for its understanding and" (Hegel, 1975, p. 14). 36 Traduzido de: “The various types of judgment must not be regarded as standing beside one another, each having the same value; instead, they must be seen as forming a sequence of stages, and the distinction between them rests on the logical significance of the predicate. We can indeed find this already in our ordinary consciousness, in that we unhesitatingly ascribe only a very inadequate power of judgment to someone who habitually frames only such judgments as *("This wall is green," "This oven is hot," and so on; in contrast, we say that someone genuinely understands how to judge only when his judgments deal with whether a certain work of art is beautiful, whether an action is good, and so on. In the case of judgments of the first kind, the content is only an abstract quality, the presence of which can be adequately decided by immediate perception; whereas, to say of a work of art that it is beautiful, or of an action that it is good, the objects in question must be compared with what they ought to be, i.e., with their concept” (Hegel, 1991, p. 249).
60
A cidade de Lisboa é uma referência para este conceito, pela cidade
romana nela subterrada. Como se pode ver na (Figura 13), a reconstituição do
local onde se encontra um teatro romano que é um dos núcleos do Museu de
Lisboa. Nesta cidade, não só podem ser visitas algumas ruínas do grande
Império Romano, como também vestígios milenares tal como uma estela do séc.
VII a.C, onde se vêm caracteres de escrita fenícia (Figura 14).
Este vestígio possui um silêncio evidente por todo o tempo que este viveu
sem se manifestar e um silêncio que se mantém para quem olha sem uma
tradução, não só linguística, mas também de significado espiritual, do tempo e
da cultura do mesmo. Este acrescenta valor à cultura da cidade sendo detentora
da história dos povos que por ela passaram, e do espirito em que o objeto viveu
no seu tempo, que não é o presente. A essência do tempo que este possui
suscita o espirito da sua temporalidade (Pereira G. , 2016).
Através do silêncio é possível atribuir um som a uma correspondência
visual (um desenho), criando um código. Efetivamente, a própria caligrafia é um
código criado para que se possa comunicar verbalmente de forma gráfica. Uma
cor quente pode, por exemplo, ser associada a um som grave, ou uma cor fria a
um som agudo. Tanto a cor como o som transmitem sensações, podendo o
ambiente ser manipulado através do estudo sensorial dos observadores. Criando
um espaço com uma cor quente seguido de uma cor fria ou uma sequência de
Figura13 Figura14
61
quadros quentes e frios, consegue-se um tipo de musicalidade expositiva não só
no espaço que cada objeto ocupa, mas também com a sua tonalidade. Assim,
“o ruído, sozinho, nada diz ao espírito; os objetos devem falar para se fazerem
compreender; em qualquer imitação é preciso que uma espécie de discurso
venha sempre suprir a voz da natureza” (Rousseau, 2008, pp. 157,158). É
possível manipular o discurso através de paleta cromática, como refere
Kandinsky:
As cores claras atraem o olhar e retêm-no. As claras e quentes fixam-no ainda com mais
intensidade; tal como a chama que atrai o homem com um poder irresistível, também o
vermelhão atrai e irrita o olhar. O amarelo limão vivo fere os olhos. A vista não o suporta.
Dir-se-ia um ouvido dilacerado pelo som estridente de uma trombeta. O olhar pestaneja e
abandona-se às calmas profundezas do azul e do verde. (...) Fala-se correntemente do
“perfume das cores”, ou da sua sonoridade. Esta sonoridade é de tal maneira evidente,
que ninguém pode encontrar uma semelhança entre o amarelo-vivo e as notas baixas de
um piano ou entre a voz de um soprano e o vermelho lacado de escuro (Kandinsky, 1912,
pp. 58,59).
Esta semelhança entre o som e a cor, já referida anteriormente é aqui
sublinhada. O amarelo-vivo e o vermelho lacado escuro, são assim cores
dissonantes. Desta forma façamos alusão a Schoenberg quando este nos diz:
(…) entendo que a compreensibilidade da dissonância é equivalente à compreensibilidade
da consonância. (…) tratando a dissonância como consonância é a maneira de renunciar
à supremacia do centro tonal37. Evitando o estabelecimento de uma tonalidade,
ultrapassamos a noção da modulação (…) (Schoenberg, 1989).
Schoenberg, ao renunciar estes dois propósitos à supremacia do centro
tonal, encontra um vazio harmónico que nega qualquer som. Desta forma cria
um silêncio abstrato, “uma harmonia nova, rica em cores (…).” (Schoenberg,
1989)
Este silêncio é como “um ‘nada’ sem possibilidades, um ‘nada’ morto depois
do Sol morrer, como um silêncio eterno, sem esperança de futuro, eis a
ressonância interior do preto. A sua correspondência na linguagem musical é a
37 Nota de referencia para uma escala musical. Tonalidade, “a presença de uma chave musical numa composição. (…) O esquema geral de cores e tons numa pintura.” Traduzido de (Makins, 1992, p. 1420).
62
pausa” (Kandinsky, 1912, p. 86). Como um ponto final na literatura, o qual é o
fim incerto do que virá, “provavelmente será seguido de qualquer outra coisa – o
nascimento de um outro mundo” (Kandinsky, 1912, p. 86). Esta pausa é o
abismo, onde o solo termina sem mais para onde se andar. Kandisnky compara
também o preto de uma fogueira apagada, “consumida, imóvel e insensível como
um cadáver indiferente a tudo. É como o silêncio que se apodera do corpo depois
da morte, o fim da vida. Exteriormente é a cor mais desprovida de ressonância”
(Kandinsky, 1912, p. 86). Desta forma, qualquer cor que não esta, por mais fraco
que seja o seu som “adquire, quando colocada neste fundo neutro, uma
sonoridade mais viva e uma nova força” (Kandinsky, 1912, p. 86).
Seguindo esta lógica, o conceito de Dark Box transmite uma
resplandecência ao acervo, encontrando o “total” silêncio que elimina mais
aprofundadamente o ruído da sala. Em relação à perceção do vazio, John Cage
refere:
Não há tal coisa como um espaço vazio ou um tempo vazio. Há sempre algo para ver, algo
para ouvir. Na verdade, mesmo que tentemos fazer um silêncio, não conseguimos. (...).
Para certos fins de engenharia, é desejável ter uma situação tão silenciosa quanto
possível. Tal quarto é chamado de uma câmara anecoica, são seis paredes de material
especial, uma sala sem ecos. Eu entrei numa na Universidade de Harvard há vários anos
e ouvi dois sons, um alto e um baixo. Quando os descrevi para o engenheiro responsável,
ele informou-me que o alto era o meu sistema nervoso em operação, e o baixo que meu
sangue a circular. Até eu morrer, haverá sons. E continuarão a seguir minha morte. Não é
preciso ter medo do futuro da música.38
(Cage, 2002, pp. 7,8).
O autor continua passando a explicar que neste espaço a posição de um
som particular depende de cinco determinantes: frequência ou inclinação,
amplitude ou intensidade, estrutura ou timbre, duração e morfologia (como o som
38 Traduzido de: "There is no such thing as an empty space or an empty time. There is always something to see, something to hear. In fact, try as we may to make a silence, we cannot. (...) For certain engineering purposes, it is desirable to have as silent a situation as possible. Such a room is called an anechoic chamber, its six walls nlade of special material, a room without echoes. I entered one at Harvard University several years ago and heard two sounds, one high and one low. When I described them to the engineer in charge, he informed me that the high one was my nervous system in operation, the low one my blood in circulation. Until I die there will be sounds. And they will continue following my death. One need not fear about the future of music" (Cage, 2002, pp. 7,8).
63
começa, continua e desaparece). “Com a alteração de qualquer um desses
determinantes, a posição do som no som-espaço muda” (Cage, 2002, p. 9).
Assim, ao alterar as suas qualidades “qualquer som em qualquer ponto neste
espaço sonoro total pode se mover para se tornar um som em qualquer outro
ponto”39 (Cage, 2002, p. 9).
Desta forma podemos concluir que o som nunca será nulo, não é possível
eliminar a totalidade do som do mesmo modo que é feito com a luz, manipulando
a arquitetura de um espaço para conseguir o domínio total da iluminação de
forma artificial. Segundo esta reflexão de John Cage é possível compreender
que uma Dark Box, proporciona um maior proveito do domínio museográfico não
eliminando, no entanto, o som próprio40 produzido por cada indivíduo presente.
Este som pode, talvez, ser abafado, do mesmo modo que um elemento se perde
no meio de uma multidão, e uma nota se funde num acorde. Introduzindo uma
densa quantidade de frequências, esses sons próprios perdem-se. Inserindo um
som na exposição, mais concretamente um white noise41, é possível neutralizar
todos os outros, deixando que o som próprio do diálogo expositivo domine. Estas
diferentes frequências acabam por se abafar mutuamente, chegando ao ponto
nulo de perceção de qualquer nota. A musicalidade sonora envolvente pode,
assim, aproximar-se da sonoridade nula deixando sobressair a musicalidade dos
objetos em que a atenção se deve focar. O objetivo é, por fim, a procura da
musicalidade visual que deixe transparecer as peças na sua forma mais pura.
2.4 Ausência na Museologia
Num contexto museológico, a ausência é o vazio do percurso da exposição
onde o ser observador deixa o objeto libertar-se da sua forma física,
39 Traduzido de: “By the alteration of anyone of these determinants, the position of the sound in sound-space changes(...) Any sound at any point in this total sound-space can move to become a sound at any other point” (Cage, 2002, p. 9). 40 Som que pertence à matéria ou objeto. 41 Um músico pensa em um ruído branco como um som com igual intensidade em todas as frequências dentro de uma banda larga. Alguns exemplos são o som do trovão, o ruido de um motor a jato e o ruído de um porta-moedas Traduzido de (Kuo, 1996, p. 1).
64
transcendendo-se. Aqui, o meio envolvente influencia a forma como este se
afirma.
Como referido anteriormente, Kunstwollen é entendido como sendo a
vontade da arte através da forma do objeto, como uma energia interna da
criatividade humana que provoca uma conexão formal. Isto pode ser
compreendido ao analisarmos o abecedário. A cada desenho de letra é
associado um som e é através da diferença de sons das várias letras que somos
capazes de formar palavras e registá-las de forma universal. Podemos mesmo
comparar o abecedário a uma partitura musical. O facto de a forma de cada letra
representar um som confere a cada letra uma unicidade do mesmo modo que a
classificação da arte por estilos proposta por Winckelmann, acentua a
singularidade de uma obra. A ambos os casos é possível atribuir o Zeitgeist de
Hegel, individualizando cada uma para que esta possa ser única. Sem estes
conceitos não seria possível compreender que cada forma tivesse o seu
Kunstwollen, a sua vontade própria. A dicotomia entre tempos é essencial para
que uma peça consiga mostrar o seu hit et nunc42 alcançando o seu eidos, a sua
essência. É importante que exista um corte na linha de tempo para que, perante
um vazio, cada forma se destaque formalizando uma linguagem clara e
respeituosa.
A pintura de Monet é apresentada pelo pintor da forma mais pura, nua do
suporte da moldura de modo a destacar a verdade da sua obra, apenas com “o
apropriamento de um espaço raso literal contendo formas inventadas,
diferentemente do antigo espaço ilusório, que continha formas “reais” exerceu
mais pressão sobre a borda” (O´Doherty, 2002, pp. 11,13). Theo Angelopoulos,
diretor de cinema grego, refere a necessidade de libertar a imaginação do público
para que possam entrar no que visualizam, ao afirmar que, “o poder da sugestão
é exercido dinamicamente de modo a libertar a imaginação da audiência, para
42 Hic et nunc significa “aqui e agora”, em latim.
65
que esta possa criar para si uma imagem dentro de uma imagem”43
(Angelopoulos, 2001, p. 73). Deste modo, Aurora Leon refere que:
Já em 1933 Monet expunha que o particularismo estético conduzia a uma impotência
criativa e que a solução para a crise que o panorama artístico vivia consistia na realização
de uma arte que surgia a partir da emoção coletiva e que colocasse a beleza na existência
do quotidiano, tendo que ser resolvido em confrontos constantes de atitudes coletivas,
com valores éticos e estéticos que seriam a vida em vez de morte lenta para museus 44
(Leon, 2000, p. 55)
O’Doherty refere, acerca da pintura de Monet, que a ausência de
características marcantes faz com que o olho relaxe para fixar qualquer lugar.
Monet capta tudo aquilo que um olhar desconcentrado iria ver, do mesmo modo
que Seurat, ao aplicar nas suas obras a técnica do divisionismo. Com um jogo
de pontos coloridos aglomerados as margens da sua pintura dispersam para
dentro com o intuito de destacar e apontar o motivo da obra. Também Matisse
“compreendeu melhor que ninguém o dilema da superfície pictórica e sua
tendência de estender-se para fora (...). Diante das pinturas amplas de Matisse,
raramente nos consciencializamos da moldura. Ele solucionou o problema da
expansão lateral e da contenção com grande sensibilidade” (O´Doherty, 2002, p.
16).
Segundo O´Doherty, a estrutura robusta das obras de Matisse não exige
nenhum espaço desmesurado na parede vazia, as suas pinturas são fáceis de
pendurar com um cuidado decorativo que as torna autónomas. O autor refere
também que a partir de Courbet as convenções do ato de pendurar foram
esquecidas explicando que:
O modo de apresentar quadros une suposições sobre o que se quer apresentar. A
colocação interfere nas questões de interpretação e de valor e sofre uma influência
inconsciente do gosto e da moda (…). Deve ser possível correlacionar a história das
43 Traduzido de: “the power of suggestion is exercised dynamically in order to free the imagination of the audience, so they can create for themselves a picture inside a picture” (Angelopoulos, 2001, p. 73). 44 Traduzido de:“Ya en 1933 Monet exponía que el particularismo estético conducía a una impotencia creadora y que la solución a la crisis que pasaba el panorama artístico radicaba en la realización de un arte que surgiera de la emoción colectiva y que situase la belleza en la existencia cotidiana, lo habría que resolver en constantes confrontaciones de actitudes colectivas, con valoraciones éticas y estéticas que serian la vida y no a muerte lenta para los museos” (Leon, 2000, p. 55).
66
pinturas em si com a história externa de como elas eram penduradas. Podemos iniciar a
pesquisa não por um meio de exposição aprovado socialmente (como Salão), mas pelas
excentricidades pessoais - com aqueles quadros de colecionadores dos séculos XVII e
XVIII dispostos elegantemente em meio a seu patrimônio (O´Doherty, 2002, pp. 15,16).
O´Doherty supõe ainda que a primeira ocasião recente em que um artista
radical expôs os seus quadros foi “A Mostra Individual do Salon de Refusés”, de
Courbet, que ocorreu em simultâneo com a exposição de 1855. Esta foi a
primeira vez que um artista moderno teve de criar o contexto em que a sua obra
se inseria, desenvolvendo assim um diálogo expositivo. Tal como O’Doherty
afirma, o pintor teve de “interferir no seu valor. (…). Ainda que as pinturas tenham
sido radicais, o emolduramento e o modo de pendurá-las no início geralmente
não eram. A interpretação do que uma pintura transmite de seu contexto é
sempre, podemos admitir, atrasada” (O´Doherty, 2002, p. 17).
Nesta época, a obra e o espectador têm uma nova aproximação com a
evolução da museologia e as obras passam a ter um diálogo aberto com
espectador respeitando a vontade das obras. Não se refere o conceito de ciência
museológica até ao séc. XX, quando se expande a necessidade de confrontar o
público dos museus, sendo que a museografia sofreu constantes alterações
consoante as épocas e modas de cada momento histórico.
Uma componente essencial na Museologia para a compreensão das
diferentes épocas e diferentes culturas, é a iconografia. Esta, é uma linguagem
visual que estuda a origem e a formação das imagens. Através dos registos
iconográficos é possível conhecer a história e saber o conhecimento de
determinada época, possibilitando a recriação de um espaço de acordo com os
diversos períodos bem como entender a função dos objetos. A iconografia
permite, através de registos visuais, apurar a história dos diferentes povos, o seu
modo de vida e a sua evolução, como é o caso das as pinturas rupestres ou da
tipografia. É também a partir desta linguagem que é possível saber as diferentes
interpretações e apreciações sobre a arte. Como explica Benjamin:
Uma estátua antiga da Vénus, por exemplo, situava-se num contexto tradicional diferente,
para os Gregos, que a consideravam um objecto de culto, e para os clérigos medievais
67
que viam nela um ídolo nefasto. Mas o que ambos enfrentavam da mesma forma era a
sua singularidade. Por outras palavras a sua aura (Benjamin, 1992, p. 81).
Assim, a iconografia distingue de forma visual as temáticas e
conhecimentos existentes.
Ao querer expressar a ausência, Yves Klein em 1958 criou a exposição La
spécialisation de la sensibilité à l'état matière première en sensibilité picturale
stabilisée: Le Vide ( A especialização da sensibilidade ao estado da matéria-
prima na sensibilidade pictórica estabilizada: o vazio) na qual esvaziou toda a
sala da exposição, e pintou todas as superfícies de branco, colocando nesta
apenas a sua presença (Figura 15). Com esta intervenção Klein propunha que
ao ter um espaço vazio apenas com a sua presença, a aura do seu corpo se
destacasse, bastando como obra de arte.
2.5 Aberto na Museologia
A abertura apresentada por um objeto musealizado em relação ao seu
observador está dependente da liberdade concedida ao seu Kunstwollen. Se isto
ocorrer, o objeto apresenta recetividade ao ambiente em que é colocado,
transcendendo o limite do espaço em que se encontra. Para isto, o espaço
habitável diante do objeto musealizado deve ser superior ao campo de visão total
do visitante, considerando não só o volume da sala, mas também do seu acervo
para evitar falhas na perspetiva bem como interrupções no campo aurático das
Figura15
68
obras. O campo aurático pode ser considerado todo o espaço ocupado não
apenas pela matéria do objeto, mas também pela sua essência. Para que este
campo exista, o objeto deve ser capaz de respirar não sendo sobreposta por
outras obras, tanto física como auráticamente. Este vazio protege as peças das
demais, tal como António Guerreiro refere, “destruída a distância que protege as
imagens e os objectos de culto, estes oferecem-se sem pudor à concupiscência
alheia” (Guerreiro, 1990, p. 60).
Assim sendo, é proposto que o espaço expositivo deva admitir não só a
dimensão física das obras que o habitam como a dimensão da sua essência,
considerando também o espaçamento imprescindível entre as várias peças. A
descomedida repetição de curtas pausas entre peças pode causar uma
monotonia no percurso tornando-se cansativa para o espectador. Se não existir
este vazio essencial, a atenção do visitante não se prende na obra que pretendia
contemplar. Como refere Dondis:
Todo padrão visual tem uma qualidade dinâmica que não pode ser definida intelectual,
emocional ou mecanicamente, através de tamanho, direção, forma ou distância. Esses
estímulos são apenas as medições estáticas, mas as forças psicofísicas que
desencadeiam, como as de quaisquer outros estímulos, modificam o espaço e ordenam
ou perturbam o equilíbrio45 (Dondis, 1976, p. 36).
Apesar da relação poética entre objetos na mesma sala estes não devem
perder o seu valor e singularidade perante a essência dos objetos mais próximos.
Cada objeto deve ser valorizado isoladamente dentro do discurso expositivo.
Como recurso para suscitar a atenção do público, o isolamento das peças é
justificado, em determinados casos. Neste caso, como deveria ser feita com uma
exposição em que estão reunidas na mesma sala duas obras icónicas, por
exemplo, As Meninas de Velázquez e Ronda de Noche de Rembrandt? Ambas
são motivo de atração de multidões, o que pode dificultar a leitura não apenas
destas peças, mas também das restantes que, provavelmente, nem seriam
observadas por grande parte dos visitantes. Um exemplo real deste fenómeno
45 Traduzido de: “Cada pattern visual tiene un carácter dinâmico que no puede definirse intelectual, emocional o meccánicamente por el tamaño, la dirección, el contorno o la distancia. Estos estímulos son solamente la mediciones estáticas, pero las fuerzas psicofísicas que ponen en marcha, como las de cualquier estímulo, modifican, disponen o deshacen el equilíbrio” (Dondis, 1976, p. 36).
69
pode ser observado no Museu do Louvre onde se encontra a Gioconda, de
Leonardo da Vinci. Este pode ser considerado talvez o quadro mais icónico e
conhecido do mundo. Na mesma sala onde se encontra esta obra, estão
presentes outras de grandes mestres que por vezes acabam por não ser
observadas com a mesma atenção por parte dos visitantes.
A escultura, arte do volume, requer um espaço tridimensional para ser vista
na totalidade sendo que neste tipo de obras não faz sentido retirar a visibilidade
de nenhum ângulo em seu redor, pois é uma peça concebida para ser vista de
todos as perspetivas. É importante que a relação obra-espaço e obra-obra
respeite a proporção das peças com os respetivos suportes, quando existentes.
Esta relação mantém os diversos espaços planos e vazios e zonas côncavo-
convexos com um ritmo estético ou com a centralização da imagem no espaço
detentor de uma multiplicidade de pontos de vista que contribui para que a
escultura ofereça todas as características que psicossomatizam o espectador. A
este propósito citemos Dondis:
Quando as soluções estratégicas não são boas, o efeito visual final será ambíguo. Os
juízos estéticos que se valem de termos como "beleza" não precisam estar presentes
nesse nível de interpretação, mas devem ficar restritos ao âmbito dos pontos de vista mais
subjetivos. A interação entre propósito e composição, e entre estrutura sintática e
substância visual, deve ser mutuamente reforçada para que se atinja uma maior eficácia
em termos visuais. Constituem, em conjunto, a força mais importante de toda comunicação
visual, a anatomia da mensagem visual.46 (Dondis, 1976, p. 100)
A interpretação do discurso expositivo procura uma organização lógica no
espaço, e assim a anatomia da mensagem visual pode refletir-se em qualquer
tipo de transcendência visto que:
Tanto a abstração quanto a realidade, no entanto, estão envolvidas naquela dimensão
sagrada do século XX, espaço. (...) Se a arte possui uma referencia cultural (além de ser
“cultura”), esta certamente se encontra na definição do nosso espaço e tempo. (…) O
46 Traduzido de: “Com malas decisiones estratégicas, el efecto visual último es ambíguo. Los juicios estéticos que usan palabras como “beleza” no tienen por qué verse envueltos en este nivel de interpretación. La interacción entre prop´sito y composición, entre estrutura sintática y sustância visual, debe ser mutuamente fortalecedora para resultar visualmente efectiva. En conjunto, estos factores constituyen la fuerza más importante de toda la comunicación visual, la anatomia del mensaje visual” (Dondis, 1976, p. 100).
70
espaço moderno redefine a condição do observador, mexe com sua autoimagem. (…) O
espaço é hoje apenas o lugar onde as coisas acontecem; as coisas fazem o espaço existir.
(…). Quando nos encontramos no recinto da galeria, será que, numa inversão peculiar,
nós não acabamos dentro do quadro, olhando para um plano opaco exterior que nos
protege de um vazio? (O´Doherty, 2002, pp. 36,37)
Compreende-se assim que o espaço existente tem uma energia importante
para a leitura de uma exposição. Os objetos e o meio envolvente influenciam-se
simultaneamente, sendo que o olhar do público sobre as peças irá variar
conforme o ambiente em que se encontra, ou seja, a transcendência das obras
é diferente em função do espaço onde se encontram. Desta forma, é possível
observar que o meio tem a capacidade de definir a condição do observador.
Em relação aos efeitos das peças sobre o público, no final dos anos 60 e
70, O’Doherty afirma que, “os objectos, por mais diminutos, sempre provocaram
percepções não só visuais. Embora o que estivesse lá se revelasse
instantaneamente para o olho, era preciso verificar melhor” (O´Doherty, 2002, p.
52).
Isto pode ser observado, por exemplo, na abertura sentida numa sala de
exposição sem percurso definido. Aqui, há uma sensação de leveza sobrenatural
que leva o visitante para diante de cada peça, sendo comandado pelo que o
atrai. Cada diálogo expositivo manipula o observador de forma diferente, sendo
que cada um fará o seu próprio percurso, sendo atraído e tocado por questões
diferentes. Pode ainda ocorrer uma inquietação no sentido de orientação do
observador em que este perde a perceção do que o rodeia e o seu olhar dirige-
se para a obra, focando-se apenas nela.
As seguintes reflexões de O’Doherty complementam o estudo da essência
e transcendência humana podendo ser considerados para aplicação
museológica:
A parede imaculada da galeria, embora um produto evolutivo delicado de natureza
bastante específica, é impura. Ela subsume comércio e estética, artista e público, ética e
oportunismo. Ela está na imagem da sociedade que a mantém, então é uma superfície
perfeita para repelir as nossas paranoias. Não se deve cair nessa tentação. O cubo branco
não deixou o prosaísmo passar porta adentro e permitiu ao modernismo pôr um ponto-
final em sua mania inabalável de se autodefinir. (…). O cubo branco é geralmente visto
71
como um emblema do afastamento do artista de uma sociedade à qual a galeria também
dá acesso. É um gueto, um recinto remanescente, um proto museu com passagem directa
para o atemporal, um conjunto de situações, uma postura, um lugar sem local, um reflexo
de uma parede nua, uma câmara mágica, uma concentração mental, talvez um equívoco
(O´Doherty, 2002, pp. 90,91).
Este lugar sem local, que nos remete para o conceito de não-lugar de Marc
Augé, dá-nos a perceção de um local onde tudo acontece, mas ninguém vive.
Locais estes que o autor descreve como espaços públicos, como por exemplo,
estações de metro ou aeroportos, onde o visitante apenas está de passagem.
Augé descreve estes não-lugares como lugares onde “um viajante estrangeiro
se pode sentir em casa, mesmo estando num país desconhecido” (Augé, 1995,
p. 120), visto que estes espaços são todos idênticos. O que aqui acontece
poderá ter uma interpretação, dependendo da consciência de quem observa.
Arnheim refere também que a mente funciona sempre como um todo,
absorvendo todas as pluralidades do meio em que se insere sendo que tudo
influencia a forma que se imagina ou que se raciocina em determinado espaço
e tempo. Arnheim prossegue afirmando que “toda a percepção é também
pensamento, todo o raciocínio é também intuição, toda a observação é também
invenção” (Arnheim, 2005, p. 13). A observação do mundo exige uma interação
entre o sujeito observador, a sua natureza e as propriedades daquilo que é o
objeto observado. “O ato de olhar o mundo provou exigir uma interação entre
propriedades supridas pelo objeto e a natureza do sujeito que observa”
(Arnheim, 2005, p. 13).
Esta perceção requer uma abertura total entre a obra e o observador, um
modo de viver a peça, fazendo da mesma um local. Esta abertura pode ser
sentida na “Turbin Hall”, no Tate Modern, um local aberto que se transforma em
obra. Este espaço recebe obras de site-specific que o tornam outro lugar,
conseguindo ser um vazio monumental pronto a receber obras que transcendem
os limites do seu volume. Obras como “Shibboleth” (2007), de Doris Salcedo,
(Figura 16) em que o artista abre uma fenda no amplo chão de cimento, levam o
72
visitante a percecionar que há mais para além daquele espaço, um abismo que
amplia a ideia de abertura do local.
Esta abertura pode ser vista não apenas com esta obra, mas pelo local em
si. Este é um espaço que existe com o propósito de ser aberto a receber todo o
tipo de instalações, e a sua dimensão monumental dispõe de um comprimento
de 155m, 23m de largura e 35m de altura. Neste espaço hibrido já figuraram
instalações dignas de transportar o visitante para outra realidade. Tais como
“The Weather Project” de Olafur Eliasson (2003) onde o artista simulou o sol e
um ambiente sublime dentro da infraestrutura (Figura 17).
Também Marsyas (2002) de Anish Kapoor, confunde a noção do espaço
envolvente ao criar esta instalação monocromática em pvc a uma escala onde a
perceção do visitante se perde, deixando de ter noção dos limites da sala e da
peça (Figura 18).
É possível, então, compreender que este espaço, para além de ser aberto
para intervenções, faz com que a sua função nos transponha para outra
realidade mesmo estando vazio, e a sua dimensão tenha um peso sobre o
visitante pela sua imponente arquitetura.
Figura17 Figura16 Figura18
73
2.6 Leveza na Museologia
A leveza é aqui referida como a algo que, no seu estado físico, possui uma
energia que supera o seu corpo. No contexto museológico, o peso de uma peça
vai para além da força gravitacional que exerce, estando associada ao valor que
ostenta.
As qualidades da observação humana são instáveis e todos os fatores que
rodeiam o observador influenciam a sua visão já que um objeto nunca é passível
de ser observado de forma totalmente isolada, o que pode afetar a perceção do
peso de uma peça. Existem fatores que participam ou influenciam a visualização
de uma peça tais como a escala, cor, material, iluminação, distância. Arnheim
refere que a experiência visual é dinâmica, visto que:
O que uma pessoa ou animal percebe não é apenas um arranjo de objetos, cores e formas,
movimentos e tamanhos. É, talvez, antes de tudo, uma interação de tensões dirigidas.
Estas tensões não constituem algo que o observador acrescente, por razões próprias, a
imagens estáticas. Antes, estas tensões são inerentes a qualquer percepção como
tamanho, configuração, localização ou cor. Uma vez que as tensões possuem magnitude
e direção pode-se descrevê-las como "forças" psicológicas (Arnheim, 2005, p. 21).
Puffer descobriu que o interesse pessoal influencia o peso de uma
composição. Este irá depender do valor que cada representação ou objeto tem
para o observador. “Um fragmento de pintura pode prender a atenção do
observador ou devido ao assunto — por exemplo, o lugar ao redor do Menino
Jesus numa Adoração — ou devido à sua complexidade formal, complicação ou
outras peculiaridades” (Arnheim, 2005, p. 16).
Nestes casos em que o interesse por uma peça ou fragmento afeta o peso
compositivo, por exemplo, é necessário um vazio maior para que outras em seu
redor não sejam obstruídas pelo seu peso. Este peso assemelha-se ao punctum
de Roland Barthes, referido anteriormente, considerado um interesse de caráter
pessoal que varia de pessoa para pessoa, associado a detalhes que tocam o
observador de forma emocional, estimulando-o. Arnheim propõe a possibilidade
de o volume de espaço vazio na frente de uma parte distante do cenário ter peso,
afirmando que isto pode ser notado mesmo em objetos tridimensionais. Arnheim
prossegue, referindo que o isolamento favorece o peso. “O sol ou a lua num céu
74
vazio pesa mais do que um objeto de aparência semelhante rodeado por outras
coisas. No teatro, o isolamento é uma técnica já estabelecida para se conseguir
ênfase” (Arnheim, 2005, p. 17). Por esta razão os restantes elementos do elenco
mantêm uma distância coerente durante as cenas importantes. Distância esta
muitas vezes sublinhada pela manipulação da luz em palco, que por vezes incide
apenas no foco de atenção do momento. Também na escultura, em toda a sua
história
Há uma distinção clara entre o bloco sólido e o espaço vazio circundante. A figura está
limitada por superfícies planas ou convexas, e os vazios que separam os braços do corpo
ou uma perna da outra não prejudicam a compacidade do volume principal (Arnheim,
2005, p. 217).
O vazio pode ser fisicamente definido pelos obstáculos que o modelam,
sendo este, pela mesma lógica, a razão da existência da forma. A forma apenas
existe na ausência do vazio, pois a matéria ocupa o seu espaço.
Numa exposição, dificilmente é observada a mesma perspetiva exata mais
do que uma vez, de onde se pode deduzir que existe um olhar para cada
momento. Isto é possível, no entanto, com o auxílio de um instrumento de
precisão, assinalando uma coordenada ou um ponto de referência para que se
possa observar exatamente da mesma perspetiva. Assim, cada espectador
observa pela sua perspetiva do momento, nunca sendo afetado de forma igual à
anterior ou à dos demais. Como Hegel menciona, cada indivíduo é o espelho do
momento presente, do seu tempo sendo que em cada momento as suas
perceções serão diferentes. Mas o destaque de um ponto importante pode ser
evidenciado, como no teatro, ou na escultura, pois cada mostra que cada peça
procura ser o alcance do espectador a partir da sua forma, segundo Arnheim:
O volume vazio como um elemento legítimo da escultura levou a trabalhos nos quais o
bloco de material é reduzido a uma concha circundando um corpo central de ar. A obra
“Helmet” de Moore, uma cabeça vazia, ofereceria a um visitante do tamanho de um
camundongo a experiência de estar dentro de uma escultura. Mais recentemente, os
escultores tentaram proporcionar tais experiências aos observadores adultos. A
arquitetura, naturalmente, sempre se relacionou com interiores vazios. A concavidade das
abóbadas e arcos faz o espaço interno assumir a função de figura positiva como se fosse
75
uma poderosa extensão do visitante humano, que então se sente capaz de ocupar a sala
com uma presença que se eleva e se expande (Arnheim, 2005, p. 248).
Isto leva a crer que o contraste de texturas entre cada elemento da
exposição transmite profundidade e esta remete-nos para o material, sendo que
cada um possui uma luz própria.
Ao ser referida a obra de Henry Moore, observamos a peça Helmet I (1950),
(Figura 19) o primeiro de 33 capacetes que escultor realizou, baseando-se em
antigos capacetes ingleses e gregos e nas armaduras que o autor estudou. A
sua abordagem varia entre o “retrato do capacete como uma carapaça que
protege uma forma interior ou como uma mão que transporta o filho no útero, e
o capacete como protecção da cabeça” (Lewison, 2008, p. 69) evocando
também memórias de vítimas da Primeira Guerra Mundial. Esta peça guarda o
peso da intenção do autor, bem como o seu peso histórico que pode ser também
reforçado pelo peso do seu material. No caso de Helmet I, Moore preferiu que
esta fosse em chumbo, talvez não apenas por ser um material utilizado desde a
antiguidade, mas também talvez para se apropriar da densidade e peso físico do
mesmo. Assim, conseguiu que nesta obra se destaque a forma através do vazio
que a completa física e emocionalmente, de modo a quem observa esta
escultura consiga alcançar a leveza que supera o seu material.
Figura19
76
2.7 Branco na Museologia
Para que o branco exista ou prevaleça sobre as restantes cores, é
necessário criar sombra ou escuridão (pois uma não existe sem a outra), bem
como criar reflexos para que a profundidade seja percecionada. Esta modelação
é a razão da perceção visual mesmo sem a invocação de qualquer cor, sendo
que esta surge da luz e que encontra o seu contraste através da escuridão ou
da sombra. A musealização de um acervo deve, assim, esculpir o seu percurso
considerando a importância destes contrastes.
Ao analisar estas circunstâncias, Arnheim questiona o grau de claridade
das coisas, explicando como tem sido frequentemente observado que “um lenço
à meia-noite parece branco como um lenço ao meio-dia, embora talvez ele envie
menos luz aos olhos do que um pedaço de carvão sob o sol de meio-dia”
(Arnheim, 2005, p. 295). Nesta situação, não se pode responder às
circunstâncias, referindo que:
A respeito da "constância" de claridade, certamente não no simples sentido de afirmar que
os objetos são vistos "tão claros quanto realmente são". A claridade que vemos depende,
de um modo complexo, da distribuição de luz na situação total, dos processos ótico e
fisiológico nos olhos e sistema nervoso do observador, e da capacidade física de um objeto
em absorver e refletir a luz que recebe. Esta capacidade física é chamada luminância ou
qualidade refletiva. É uma propriedade constante de qualquer superfície. Dependendo da
força da iluminação, um objeto refletirá mais ou menos luz, mas sua luminância, isto é, a
percentagem de luz que ele reflete, permanece a mesma (Arnheim, 2005, p. 295).
O autor dá como exemplo o pedaço de veludo preto que absorve muito da
luz que recebe pode, sob intensa iluminação, emitir tanta luz quanto um pedaço
de seda branca pouco iluminado, que reflete a maior parte da energia. De um
ponto de vista cognoscível, a possibilidade direta de distinção entre o poder
refletivo e a iluminação é inexistente, visto que “o olho recebe apenas a
intensidade resultante da luz, mas nenhuma informação sobre a proporção na
qual os dois componentes contribuem para este resultado” (Arnheim, 2005, p.
295).
Podemos, deste modo, aferir que uma incorreta manipulação da luz poderá
por em causa a leitura do material do objeto e levar a uma perceção errada da
77
distância entre objetos, fazendo com que as luzes próprias de cada um se
encandeiem. O objeto vizinho corre o risco de absorver o reflexo de outro
material. É necessário ter também em consideração que determinadas obras
foram produzidas para serem observadas com determinada iluminação, como é
o caso das pinturas reproduzidas à luz das velas pertencentes a uma época
anterior à eletricidade, que devem ser olhadas à luz das velas, e ao alterar esta
condição na sua musealização, a intenção do autor e da sua obra podem ser
alteradas. A criação de um diálogo expositivo é como tecer uma trama de
texturas de forma harmoniosa. Assim, em cada textura surge um novo ciclo.
Citemos Arnheim a este propósito:
Não só a forma dos objetos, mas também a dos intervalos entre eles, é dinâmica. O espaço
vazio que separa os objetos ou partes deles entre si na escultura, pintura e arquitetura é
comprimido pelos objetos e por sua vez os comprime. Segundo leis ainda inteiramente
inexploradas, esta dinâmica depende não apenas do tamanho, forma e proporção dos
próprios intervalos, mas também daqueles dos objetos vizinhos. Dado um conjunto de
janelas de uma dimensão e forma especiais, os espaços das paredes entre elas parecerão
demasiadamente grandes e portanto opressivos, excessivamente pequenos e portanto
comprimidos, ou de tamanho adequado (Arnheim, 2005, p. 404).
Quanto mais profundo é o vazio, mais destaque terá aquilo que se salienta.
A criação de um relevo implica afastar a matéria para que o ponto mais alto seja
o principal e quanto menor for o excesso, mais evidente será a forma procurada,
pois esta também vive do vazio que a rodeia. Tal como afirma Fernando Pessoa,
“o ambiente é a alma das coisas. Cada coisa tem uma expressão própria, e essa
expressão vem-lhe de fora. Cada coisa é a intersecção de três linhas, e essas
três linhas formam essa coisa: uma quantidade de matéria, o modo como
interpretamos, e o ambiente em que está” (Pessoa, 2014, p. 72).
Não existindo um cuidado com o ambiente em que as peças se inserem e
o espaço essencial para que as suas formas sejam evidenciadas, a aura dos
objetos é facilmente quebrada, pois não será observada de forma uniforme,
podendo mesmo ser invisível. Tal como Merleau-Ponty refere em relação à
pintura, “essência e existência, imaginário e real, visível e invisível, a pintura
confunde todas as nossas categorias carnais, de semelhanças eficazes entre
significações mudas” (Merleau-Ponty, 2015, p. 32) Também um discurso
78
expositivo deve deixar transpassar estes aspetos, devendo ser aberto a diversas
reflexões, ao mostrar e explicar de forma clara o seu diálogo expositivo, deixando
uma tela em branco para qualquer visitante ir pintando para casa, ou seja, para
que saia desta exposição, mas a sua mente nela continue. Pois a arte tal como
a beleza da natureza, por exemplo, é impossível de ser expressada na sua
totalidade como uma representação pictórica, escultórica ou mesmo verbalizada,
falhando sempre na transmissão da essência na sua realidade. Tal como
Fernando Pessoa afirma, “tudo o que fazem na arte ou na vida, é cópia imperfeita
do que pensamos em fazer” (Pessoa, 2014, p. 244) pois “nada pode traduzir
exactamente o que alguém sente” (Pessoa, 2014, p. 223). Sobre a capacidade
e perceção visual, Merleau-Ponty refere:
É necessário compreender o olho como «a janela da alma». «O olho...pelo qual a beleza
do universo é revelada à nossa contemplação, é de uma tal excelência que quem se
resignasse à sua perda privar-se-ia de conhecer todas as obras da natureza com as quais
a vista faz permanecer a alma contente na prisão do corpo, graças aos olhos que lhe
apresentam a infinita variedade da Criação: que os perde abandona esta alma numa
obscura prisão, onde cessa toda a esperança de rever o sol, luz do universo.» (Merleau-
Ponty, 2015, p. 65)
A arquitetura do Panteão em Roma (Figura 20), por exemplo, apresenta-se
como uma comparação entre interior do templo e um globo ocular que olha o
céu, deixando penetrar a luz que ilumina o seu interior pelo seu óculo, a abertura
em círculo perfeito no centro da cúpula. Esta obra arquitetónica foi criada de
Figura20
79
forma a que a luz domine o espaço interior onde, consoante a hora do dia, um
freixo de luz aponta um local da sala circular.
No seu interior existiam esculturas de deuses e de imperadores
santificados que eram iluminados por este foco apenas em determinadas alturas
do dia, destacando-se de tudo o resto, tal como um holofote no teatro para
destacar uma personagem.
Na Dark Box referida anteriormente, é criado um contraste em que apenas
o objeto é iluminado, o que permite que um vazio essencial surja, captando a
atenção do observador. Um fenómeno semelhante pode ser observado na
pintura de Caravaggio onde os seus retratos são destacados por fundos
tenebrosos, sendo que Velásquez herda deste mestre “o tratamento da luz por
sombras cortantes, mas acrescentou-lhe o senso do espaço, a magia da
atmosfera e a firmeza da própria carne.” (Yacubian, 1984, p. 5) Deste modo,
consegue-se um contraste luminoso em que o objeto é o principal ponto de
destaque no seu ambiente, onde o vazio é essencial para atrair toda a atenção
do observador para o objeto exposto.
80
Conclusão
A presente dissertação foi desenvolvida com intuito de investigar e abordar
a importância do vazio na valorização de um diálogo expositivo. Para isto foi
realizada uma análise cuidada de alguns conceitos que suportam este estudo,
consolidando não só a ideia do vazio, mas também a perceção humana e a
evolução da museologia. Neste contexto, é significativo salientar que a
Museologia enquanto disciplina tem como propósito recolher, investigar, divulgar
e gerir um acervo, considerando que um diálogo expositivo deve respeitar estas
funções de modo a ser bem conseguido e a assegurar o valor das peças a
vigorar na mostra. É ainda necessário, desenvolver estudos para a compreensão
da perceção humana vista pelas diferentes culturas, de modo a respeitar a
origem de cada objeto e ajudar na sua interpretação. Para que esta ampla
compreensão seja conseguida é apresentada a ideia do vazio de forma a criar
um discurso coerente.
A partir do levantamento de dados socioculturais foi possível aferir que o
vazio está implícito em culturas milenares que foram influenciando o ser humano
até à atualidade, sendo este conceito essencial para a multiculturalidade do
contexto museológico, cujo objetivo é captar a atenção e compreensão dos
visitantes.
Assim, este trabalho foi organizado em duas partes, sendo que na primeira
foram analisados a Desmaterialização, a Pureza, o Silêncio, a Ausência, o
Aberto, a Leveza e o Branco. Na segunda parte, os mesmos conceitos foram
analisados em relação ao contexto museológico. Ao longo desta investigação é
apresentada a evolução da história da Museologia e a forma como estes
conceitos foram determinantes para o seu desenvolvimento, apresentando a
progressão dos valores estéticos das obras e a forma como estas são
apresentadas. São ainda referidos alguns benefícios que contribuíram para a
evolução desta disciplina como a apropriação de investigações científicas e o
apoio das novas tecnologias, considerando a evolução da arquitetura, o domínio
da luz, a insonorização de espaços e o domínio do som.
81
Durante esta investigação, a procura de uma ligação entre o observador e
o objeto conduz-nos ao conceito de Aura, de Walter Benjamin, e o milenar MA,
que influenciou o Ocidente na Bauhaus, onde foram desenvolvidos importantes
estudos e teorias na área da perceção visual. Neste sentido, esta investigação
analisou ainda os conceitos de Zeitgeist e Kunstwollen, bem como o
desenvolvimento da iconografia, evidenciando a importância do vazio e a sua
relevância para o desenvolvimento da Museologia. Os estudos de Kandinsky
foram igualmente significativos para esta tese, associando-se ao pensamento
sobre a transcendência de Heidegger e Sartre, considerando ainda o papel
essencial de Rudolf Arnheim para o desenvolvimento da compreensão da
perceção humana. Ao abordar o comportamento dos paradigmas do vazio na
museologia foi também referida a musicalidade do discurso expositivo que
permite sentir o ritmo e harmonia pelas variações do espaço. Isto leva-nos à
proposição de John Cage de que haverá sempre som enquanto existir vida,
considerando que o silêncio apenas se encontra após a morte.
Na Parte II foi feita a vinculação dos paradigmas do vazio na Museologia
onde, pela mesma ordem, cada paradigma se associa diretamente à sua
vinculação. Aqui, foi explicada a forma como cada paradigma se comporta e é
influente na Museologia, a partir dos exemplos que foram apresentados. Estas
vinculações acompanhadas de exemplos vêm salientar a relevância dos
paradigmas referidos na importância do vazio no diálogo expositivo e forma
como estes podem contribuir para a compreensão total do observador.
Após uma investigação cuidada destes conceitos é possível propor que
compete à museografia deixar respirar o acervo da exposição com a correta
disposição de objetos no espaço, deixando que o vazio faça fluir a sua
musicalidade. Partindo do pressuposto que o som nunca é nulo, é proposta a
conceção de uma Dark Box que, associada à utilização de white noise, irá
absorver o ruído sonoro e visual do espaço expositivo prendendo a atenção do
visitante para os objetos expostos, conseguindo assim uma valorização
exponencial da exposição.
82
Este trabalho poderá ser o ponto de partida para futuras investigações
relacionadas não só com a Museologia e Museografia, mas também com a
Filosofia e as Artes visto que estas se relacionam ou têm uma forte ligação com
os 7 paradigmas mencionados na dissertação. A partir deste estudo é possível
desenvolver novas técnicas expositivas, através da exploração do silêncio no
diálogo expositivo, do estudo da cor e forma associados aos diferentes campos
temáticos da Museologia, e até mesmo dar continuidade a novos avanços
tecnológicos no campo expositivo, como disciplinas de luz e arquitetura. Com
base nesta investigação podem ser realizadas exposições que colocam em
prática a teoria aqui analisada através da convergência dos 7 paradigmas. Cada
paradigma enaltece o caráter do espaço e do seu acervo beneficiando a
perceção e transcendência do ser. O desenvolvimento destes estudos da
perceção e transcendência humana na área da museologia é essencial para
ajudar a resolução de alguns problemas de comunicação que possam surgir num
diálogo expositivo, podendo esta investigação ser tomada como base para esse
efeito. Desta forma, a presente dissertação pretende contribuir para a evolução
das disciplinas de Museologia e Museografia, destacando a importância do vazio
para as mesmas.
83
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Iconografia
Figura 5
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São Paulo: Pioneira Thomson Learning.
Figura 6
Arnheim, R. (2005). Arte e percepção visual: uma psicologia da visão
criadora. São Paulo: Pioneira Thomson Learning.
Figura 7
Arnheim, R. (2005). Arte e percepção visual: uma psicologia da visão
criadora. São Paulo: Pioneira Thomson Learning.
Figura 8
Arnheim, R. (2005). Arte e percepção visual: uma psicologia da visão
criadora. São Paulo: Pioneira Thomson Learning.
Figura 9
http://benesse-artsite.jp/en/art/chichu.html/recuperado a 15 de Outubro de
2016
Figura 10
http://benesse-artsite.jp/en/art/chichu.html/ recuperado a 15 de Outubro de
2016
Figura 11
Leon, A. (2000). El Museo, Teoría, praxis y utopia. Madrid: Ediciones
Cátedra (Grupo Anaya, S. A.).
Figura 12
Leon, A. (2000). El Museo, Teoría, praxis y utopia. Madrid: Ediciones
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Figura 13
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Figura 14
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Figura 16
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Figura 17
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Figura 18
https://www.pinterest.pt/pin/482307441326026425/visual-
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Figura 19
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Figura 20
http://www.radionz.co.nz/news/national/274449/astronomers-show-
ancient-rome%27s-sun/ recuperado a 15 de Outubro de 2016