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A Igreja Primitiva
Paulo, perfil do homem e do apóstolo
25 de Outubro de 2006
Queridos irmãos e irmãs!
Concluímos as nossas reflexões sobre os doze Apóstolos chamados directamente por Jesus
durante a sua vida terrena. Iniciamos hoje a aproximar as figuras de outras personagens
importantes da Igreja primitiva. Também elas dedicaram a sua vida ao Senhor, ao Evangelho e
à Igreja. Trata-se de homens, e também de mulheres que, como escreve Lucas no Livro dos
Actos, "expuseram as suas vidas pelo nome de Nosso Senhor Jesus Cristo" (15, 26).
O primeiro deles, chamado pelo próprio Senhor, pelo Ressuscitado, para ser também ele um
verdadeiro Apóstolo, é sem dúvida Paulo de Tarso. Ele brilha como estrela de primeira
grandeza na história da Igreja, e não só da primitiva. São João Crisóstomo exalta-o como
personagem superior até a muitos anjos e arcanjos (cf. Panegirico, 7, 3). Dante Alighieri na
Divina Comédia, inspirando-se na narração de Lucas feita nos Actos (cf. 9, 15), define-o
simplesmente "vaso de eleição" (Inf. 2, 28), que significa: instrumento pré-escolhido por Deus.
Outros chamaram-no o "décimo terceiro Apóstolo" e realmente ele insiste muito para ser um
verdadeiro Apóstolo, tendo sido chamado pelo Ressuscitado ou até "o primeiro depois do
Único". Sem dúvida, depois de Jesus, ele é o personagem das origens sobre a qual estamos
mais informados. De facto, possuímos não só a narração que dele faz Lucas nos Actos dos
Apóstolos, mas também um grupo de Cartas que provêm directamente da sua mão e sem
intermediários nos revelam a sua personalidade e o seu pensamento. Lucas informa-nos que o
seu nome originário era Saulo (cf. Act 7, 58; 8, 1, etc.), aliás em hebraico Saul (cf. Act 9, 14.17;
22, 7.13; 26, 14), como o rei Saul (cf. Act 13, 21), e era um judeu da diáspora, estando a cidade
de Tarso situada entre a Anatólia e a Síria. Tinha ido muito cedo a Jerusalém para estudar
profundamente a Lei moisaica aos pés do grande Rabi Gamaliel (cf. Act 22, 3). Tinha aprendido
também uma profissão manual e áspera, era fabricante de tendas (cf. Act 18, 3), que
sucessivamente lhe permitiu sustentar-se pessoalmente sem pesar sobre as Igrejas (cf. Act 20,
34; 1 Cor 4, 12; 2 Cor 12, 13-14).
Para ele foi decisivo conhecer a comunidade dos que se professavam discípulos de Jesus. Por
eles tinha sabido a notícia de uma nova fé um novo "caminho", como se dizia que colocava no
seu centro não tanto a Lei de Deus, quanto a pessoa de Jesus, crucificado e ressuscitado, com
o qual estava relacionada a remissão dos pecados. Como judeu zeloso, ele considerava esta
mensagem inaceitável, aliás escandalosa, e por isso sentiu o dever de perseguir os seguidores
de Cristo também fora de Jerusalém. Foi precisamente no caminho para Damasco, no início
dos anos 30, que Saulo, segundo as suas palavras, foi "alcançado por Cristo" (Fl 3, 12).
Enquanto Lucas narra os factos com riqueza de pormenores de como a luz do Ressuscitado o
alcançou e mudou fundamentalmente toda a sua vida ele nas suas Cartas vai directamente ao
essencial e fala não só da visão (cf. 1 Cor 9, 1), mas de iluminação (cf. 2 Cor 4, 6) e sobretudo
de revelação e de vocação no encontro com o Ressuscitado (cf. Gl 1, 15-16). De facto, definir-
se-á explicitamente "apóstolo por vocação" (cf. Rm 1, 1; 1 Cor 1, 1) ou "apóstolo por vontade
de Deus" (2 Cor 1, 1; Ef 1, 1; Col 1, 1), para realçar que a sua conversão não era o resultado de
um desenvolvimento de pensamentos, de reflexões, mas o fruto de uma intervenção divina,
de uma imprevisível graça divina. A partir daquele momento, tudo o que antes constituía para
ele um valor tornou-se paradoxalmente, segundo as suas palavras, perda e lixo (cf. Fl 3, 7-10).
A partir daquele momento todas as suas energias foram postas ao serviço exclusivo de Jesus
Cristo e do seu Evangelho.
Agora a sua existência será a de um Apóstolo desejoso de "se fazer tudo em todos" (1 Cor 9,
22) sem reservas.
Isto constitui para nós uma lição muito importante: o mais importante é colocar no centro da
própria vida Jesus Cristo, de modo que a nossa identidade se distinga essencialmente pelo
encontro, pela comunhão com Cristo e com a sua Palavra. À sua luz todos os outros valores
são recuperados e ao mesmo tempo purificados de eventuais impurezas. Outra lição
fundamental oferecida por Paulo é o alcance universal que caracteriza o seu apostolado.
Vendo a agudeza do problema do acesso dos Gentios, isto é dos pagãos, a Deus, que em Jesus
Cristo crucificado e ressuscitado oferece a salvação a todos os homens sem excepções,
dedicou-se totalmente a dar a conhecer este Evangelho, literalmente "boa notícia", isto é,
anúncio de graça destinado a reconciliar o homem com Deus, consigo mesmo e com os outros.
Desde o primeiro momento ele tinha compreendido que esta era uma realidade que não dizia
respeito só aos judeus ou a um certo grupo de homens, mas que tinha um valor universal e se
referia a todos, porque Deus é o Deus de todos.
O ponto de partida para as suas viagens foi a Igreja de Antioquia da Síria, onde pela primeira
vez o Evangelho foi anunciado aos Gregos e onde também foi cunhado o nome de "cristãos"
(cf. Act 11, 20.26), isto é, de crentes em Cristo. Dali ele dirigiu-se primeiro para Chipre e depois
várias vezes para as regiões da Ásia Menor (Pisídia, Licaónia, Galácia), depois para as da Europa
(Macedónia, Grécia). Mais relevantes foram as cidades de Éfeso, Filipos, Tessalônica, Corinto,
sem contudo esquecer Beréia, Atenas e Mileto.
No apostolado de Paulo não faltaram dificuldades, que ele enfrentou com coragem por amor
de Cristo. Ele mesmo recorda ter agido "pelos trabalhos... pelas prisões... pelos açoites, pelos
frequentes perigos de morte... três vezes fui açoitado com varas, uma vez apedrejado; três
vezes naufraguei... viagens sem conta, exposto a perigos nos rios, perigos de salteadores,
perigos da parte dos meus concidadãos, perigos na cidade, perigos no deserto, perigos no mar,
perigos entre os falsos irmãos; trabalhos e fadigas, repetidas vigílias com fome e sede,
frequentes jejuns, frio e nudez! E além de tudo isto, a minha obsessão de cada dia: cuidado de
todas as Igrejas" (2 Cor 11, 23-28). De um trecho da Carta aos Romanos (cf. 15, 24.28)
transparece o seu propósito de chegar até à Espanha, às extremidades do Ocidente, para
anunciar o Evangelho em toda a parte, até aos confins da terra então conhecida. Como não
admirar um homem como este? Como não agradecer ao Senhor por nos ter dado um Apóstolo
desta estatura? É claro que não lhe teria sido possível enfrentar situações tão difíceis e por
vezes desesperadas, se não tivesse havido uma razão de valor absoluto, perante a qual
nenhum limite se podia considerar insuperável. Para Paulo, esta razão, sabemo-lo, é Jesus
Cristo, do qual ele escreve: "O amor de Cristo nos impulsiona... para que, os que vivem, não
vivam mais para si mesmos, mas para Aquele que por eles morreu e ressuscitou" (2 Cor 5, 14-
15), por nós, por todos.
De facto, o Apóstolo dará o testemunho supremo do sangue sob o imperador Nero aqui em
Roma, onde conservamos e veneramos os seus despojos mortais. Assim escreveu acerca dele
Clemente Romano, meu predecessor nesta Sede Apostólica nos últimos anos do século I: "Por
causa dos ciúmes e da discórdia Paulo foi obrigado a mostrar-nos como se obtém o prémio da
paciência... Depois de ter pregado a justiça a todo o mundo, e depois de ter chegado até aos
extremos confins do Ocidente, sofreu o martírio diante dos governantes; assim partiu deste
mundo e chegou ao lugar sagrado, que com isso se tornou o maior modelo de perseverança"
(Aos Coríntios, 5). O Senhor nos ajude a pôr em prática a exortação que nos foi deixada pelo
Apóstolo nas suas Cartas: "Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo" (1 Cor 11, 1).
Paulo, a centralidade de Jesus Cristo
8 de Novembro de 2006
Queridos irmãos e irmãs!
Na catequese precedente, há quinze dias, procurei traçar os aspectos essenciais da biografia
do apóstolo Paulo. Vimos como o encontro com Cristo pelo caminho de Damasco revolucionou
literalmente a sua vida. Cristo tornou-se a sua razão de ser e o motivo profundo de todo o seu
trabalho apostólico. Nas suas cartas, depois do nome de Deus, que aparece mais de 500 vezes,
o nome que é mencionado com mais frequência é o de Cristo (380 vezes). Por conseguinte, é
importante que nos apercebamos de quanto Jesus Cristo possa incidir na vida de um homem e
portanto também na nossa própria vida. Na realidade, Jesus Cristo é o ápice da história
salvífica e, desta forma, o verdadeiro ponto discriminante também no diálogo com as outras
religiões.
Olhando para Paulo, poderíamos formular assim a pergunta fundamental: como acontece o
encontro de um ser humano com Cristo? E em que consiste a relação que dele deriva? A
resposta de Paulo pode ser compreendida em dois momentos. Em primeiro lugar, Paulo ajuda-
nos a compreender o valor absolutamente fundante e insubstituível da fé. Eis quanto escreve
na Carta aos Romanos: "Pois estamos convencidos de que é pela fé que o homem é justificado,
independentemente das obras da lei" (3, 28). E também na Carta aos Gálatas: "O homem não
é justificado pelas obras da Lei, mas unicamente pela fé em Jesus Cristo; por isso, também nós
acreditámos em Cristo Jesus para sermos justificados pela fé em Cristo e não pelas obras da
Lei; porque pelas obras da Lei nenhuma criatura será justificada" (2, 16). "Ser justificados"
significa ser tornados justos, isto é, ser acolhidos pela justiça misericordiosa de Deus, e entrar
em comunhão com Ele, e por conseguinte poder estabelecer uma relação muito mais
autêntica com todos os nossos irmãos: e isto com base num perdão total dos nossos pecados.
Pois bem, Paulo diz com muita clareza que esta condição de vida não depende das nossas
eventuais boas obras, mas de uma mera graça de Deus: "Sem o merecerem, são justificados
pela sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus" (Rm 3, 24).
Com estas palavras São Paulo expressa o conteúdo fundamental da sua conversão, o novo
rumo da sua vida que resultou do seu encontro com Cristo ressuscitado. Paulo, antes da
conversão, não tinha sido um homem afastado de Deus e da sua Lei. Ao contrário, era um
observante, com uma observância fiel até ao fanatismo. Mas à luz do encontro com Cristo
compreendeu que com isso tinha procurado edificar-se a si mesmo, à sua própria justiça, e que
com toda essa justiça tinha vivido para si mesmo. Compreendeu que era absolutamente
necessária uma nova orientação da sua vida. E encontramos expressa nas suas palavras esta
nova orientação: "E a vida que agora tenho na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus que me
amou e a si mesmo se entregou por mim" (Gl 2, 20).
Por conseguinte, Paulo já não vive para si, para a sua própria justiça. Vive de Cristo e com
Cristo: entregando-se a si mesmo, não mais procurando e construindo-se a si mesmo. Esta é a
nova justiça, a nova orientação que o Senhor nos deu, que a fé nos deu. Diante da cruz de
Cristo, expressão extrema da sua autodoação, não há ninguém que possa vangloriar-se a si, à
própria justiça feita por si e para si! Noutra carta Paulo, fazendo eco a Jeremias, expressa este
pensamento escrevendo: "Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor" (1 Cor 1, 31 = Jr 9, 22s);
ou: "Quanto a mim, porém, de nada me quero gloriar, a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus
Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo" (Gl 6, 14).
Reflectindo sobre o significado de justificação não pelas obras mas pela fé, chegamos ao
segundo aspecto que define a identidade cristã descrita por São Paulo na própria vida.
Identidade cristã que se compõe precisamente por dois elementos: este não procurar-se por
si, mas receber-se de Cristo e doar-se com Cristo, e desta forma participar pessoalmente na
vicissitude do próprio Cristo, até se imergir n'Ele e partilhar quer a sua morte quer a sua vida. É
quanto escreve Paulo na Carta aos Romanos: "fomos baptizados na sua morte... fomos
sepultados com Ele na morte... estamos integrados n'Ele... Assim vós também: considerai-vos
mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus" (Rm 6, 3.4.5.11). Precisamente
esta última expressão é sintomática: para Paulo, de facto, não é suficiente dizer que os cristãos
são baptizados ou crentes; para ele é de igual modo importante dizer que eles são "em Cristo
Jesus" (cf. também Rm 8, 1.2.39; 12, 5; 16, 3.7.10; 1 Cor 1, 2.3, etc.). Outras vezes ele inverte
as palavras e escreve que "Cristo está em nós/vós" (Rm 8, 10; 2 Cor 13, 5) ou "em mim" (Gl 2,
20). Esta mútua compenetração entre Cristo e o cristão, característica do ensinamento de
Paulo, completa o seu discurso sobre a fé. A fé, de facto, mesmo unindo-nos intimamente a
Cristo, realça a distinção entre nós e Ele. Mas, segundo Paulo, a vida do cristão tem também
um componente que poderíamos dizer "místico", porque obriga a uma nossa identificação
com Cristo e de Cristo connosco. Neste sentido, o Apóstolo chega até a qualificar os nossos
sofrimentos como os "sofrimentos de Cristo em nós" (2 Cor 1, 5), de modo que "trazemos
sempre no nosso corpo a morte de Jesus, para que também a vida de Jesus seja manifesta no
nosso corpo" (2 Cor 4, 10).
Devemos inserir tudo isto na nossa vida quotidiana seguindo o exemplo de Paulo que viveu
sempre com este grande alcance espiritual. Por um lado, a fé deve manter-nos numa atitude
constante de humildade perante Deus, aliás, de adoração e de louvor em relação a ele. De
facto, o que nós somos como cristãos devemo-lo unicamente a Ele e à sua graça. Dado que
nada nem ninguém pode ocupar o seu lugar, é preciso portanto que não tributemos a nada
nem a ninguém a homenagem que a Ele prestamos. Ídolo algum deve contaminar o nosso
universo espiritual, porque neste caso, em vez de gozar da liberdade adquirida cairíamos de
novo numa espécie de escravidão humilhante. Por outro lado, a nossa pertença radical a Cristo
e o facto que "existimos n'Ele" deve infundir-nos uma atitude de total confiança e de imensa
alegria. Para concluir, de facto, devemos exclamar com São Paulo:"Se Deus está por nós, quem
pode estar contra nós?" (Rm 8, 31). E a resposta é que ninguém "poderá separar-nos do amor
de Deus que está em Cristo Jesus, Senhor nosso" (Rm 8, 39). Por conseguinte, a nossa vida
cristã baseia-se na rocha mais estável e segura que se possa imaginar. E dela tiramos toda a
nossa energia, como escreve precisamente o Apóstolo: "De tudo sou capaz naquele que me dá
força" (Fl 4, 13).
Enfrentemos portanto a nossa existência, com as suas alegrias e com os seus sofrimentos,
amparados por estes grandes sentimentos que Paulo nos oferece. Fazendo deles experiência
poderemos compreender como é verdadeiro o que o próprio Apóstolo escreve: "sei em quem
acredito e estou persuadido de que Ele tem poder para guardar, até aquele dia, o bem que me
foi confiado" (2 Tm 1, 12) do nosso encontro com Cristo Juiz, Salvador do mundo e nosso.
Paulo, o Espírito nos nossos corações
15 de Novembro de 2006
Queridos irmãos e irmãs!
Também hoje, como nas duas catequeses precedentes, voltamos a São Paulo e ao seu
pensamento. Estamos diante de um gigante não só a nível do apóstolo concreto, mas também
da doutrina teológica, extraordinariamente profunda e estimulante. Depois de ter meditado
na semana passada sobre o que Paulo escreveu acerca do lugar central que Jesus Cristo ocupa
na nossa vida de fé, vemos hoje o que ele diz sobre o Espírito Santo e sobre a sua presença em
nós, porque também aqui o Apóstolo tem algo muito importante para nos ensinar.
Conhecemos o que São Lucas nos diz do Espírito Santo nos Actos dos Apóstolos, descrevendo o
evento do Pentecostes. O Espírito pentecostal traz consigo um vigoroso estímulo a assumir um
compromisso da missão para testemunhar o Evangelho pelos caminhos do mundo. De facto, o
Livro dos Actos narra uma série de missões realizadas pelos Apóstolos, primeiro na Samaria,
depois ao longo da Palestina, e depois, em direcção à Síria. São narradas sobretudo as três
grandes viagens missionárias realizadas por Paulo, como já recordei num precedente encontro
de quarta-feira. Mas São Paulo, nas suas Cartas fala-nos do Espírito também sob outra
perspectiva.
Ele não se detém a ilustrar apenas a dimensão dinâmica e operativa da terceira Pessoa da
Santíssima Trindade, mas analisa também a presença na vida do cristão, cuja identidade é
marcada por ele. Em outras palavras, Paulo reflecte sobre o Espírito expondo a sua influência
não só no agir do cristão, mas também no seu ser. De facto, ele diz que o Espírito de Deus
habita em nós (cf. Rm 8, 9; 1 Cor 3, 16) e que "Deus enviou aos nossos corações o Espírito do
seu Filho" (Gl 4, 6).
Portanto, para Paulo o Espírito conota-nos até às nossas profundezas pessoais mais íntimas.
Em relação a isto, eis algumas das suas palavras de importante significado: "A lei do Espírito
que dá a vida libertou-te, em Cristo Jesus, da lei do pecado e da morte... Vós não recebestes
um Espírito que vos escravize e volte a encher-vos de medo; mas recebestes um Espírito que
faz de vós filhos adoptivos. É por Ele que clamámos: Abbá, ó Pai!" (Rm 8, 2.15), porque somos
filhos, podemos chamar "Pai" a Deus. Portanto, vemos bem que o cristão, ainda antes de agir,
já possui uma interioridade rica e fecunda, que lhe é concedida nos sacramentos do Baptismo
e da Confirmação, uma interioridade que o estabelece num relacionamento objectivo e
original de filiação em relação a Deus.
Eis a nossa grande dignidade: a de não ser apenas imagem, mas filhos de Deus. Trata-se de um
convite a viver esta nossa filiação, a estarmos cada vez mais conscientes de que somos filhos
adoptivos na grande família de Deus. É um convite a transformar este dom objectivo numa
realidade subjectiva, determinante para o nosso pensar, para o nosso agir, para o nosso ser.
Deus considera-nos seus filhos, tendo-nos elevado a uma tal dignidade, mesmo se não é igual,
à do próprio Jesus, o único Filho em sentido pleno. Nele é-nos dada, ou restituída, a condição
filial e a liberdade confiante em relação ao Pai.
Assim descobrimos que para o cristão o Espírito já não é apenas o "Espírito de Deus", como se
diz normalmente no Antigo Testamento e se continua a repetir na linguagem cristã (cf. Gn 41,
38; Êx 31, 3; 1 Cor 2, 11.12; Fl 3, 3; etc.). E também não é apenas um "Espírito Santo"
entendido em sentido genérico, segundo o modo de expressar-se do Antigo Testamento (cf. Is
63,10.11; Sl 51, 13), e do próprio Judaísmo nos seu escritos (Qunram, rabinismo).
De facto, pertence à especificidade da fé cristã a confissão de uma original partilha deste
Espírito por parte do Senhor ressuscitado, o qual se tornou Ele mesmo "Espírito que dá vida" (1
Cor 15, 45). Precisamente por isso São Paulo fala directamente do "Espírito de Cristo" (Rm 8,
9), do "Espírito do Filho" (Gl 4, 6) ou do "Espírito de Jesus Cristo" (Fl 1, 19). É como se quisesse
dizer que não só Deus Pai é visível no Filho (cf. Jo 14, 9), mas que também o Espírito de Deus se
expressa na vida e nas acções do Senhor crucificado e ressuscitado!
Paulo ensina-nos também outra coisa importante: ele diz que não existe verdadeira oração
sem a presença do Espírito em nós. De facto, escreve: "O Espírito vem em auxílio da nossa
fraqueza, pois não sabemos o que havemos de pedir como é verdade que não sabemos como
falar com Deus! ; mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis. E aquele
que examina os corações conhece as intenções do Espírito, porque é de acordo com Deus que
o Espírito intercede pelos santos" (Rm 8, 26-27). É como dizer que o Espírito Santo, isto é, o
Espírito do Pai e do Filho, é como a alma da nossa alma, a parte mais secreta do nosso ser, de
onde se eleva incessantemente a Deus um dístico de oração, da qual nem sequer podemos
esclarecer as palavras.
De facto, o Espírito sempre activo em nós, supre às nossas carências e oferece ao Pai a nossa
adoração, juntamente com as nossas aspirações mais profundas. Naturalmente isto exige um
nível de maior comunhão vital com o Espírito. É um convite a ser cada vez mais sensíveis, mais
atentos a esta presença do Espírito em nós, a transformá-la em oração, a ouvir esta presença e
a aprender assim a rezar, a falar com o Pai como filhos no Espírito Santo.
Há também outro aspecto típico do Espírito que nos foi ensinado por São Paulo: é a sua ligação
com o amor. De facto, São Paulo escreve: "A esperança não engana, porque o amor de Deus
foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado" (Rm 5, 5). Na minha
Carta encíclica "Deus caritas est" citei uma frase muito eloquente de Santo Agostinho: "Se vês
a caridade, vês a Trindade" (n. 19), e prossegui explicando: "O Espírito é aquela força que
harmoniza seus corações [dos crentes] com o coração de Cristo e leva-os a amar os irmãos
como Ele os amou" (ibid.). O Espírito insere-nos no próprio ritmo da vida divina, que é vida de
amor, fazendo-nos pessoalmente partícipes dos relacionamentos existentes entre o Pai e o
Filho. Não é sem significado que Paulo, quando elenca as várias componentes da frutificação
do Espírito, coloque em primeiro lugar o amor: "O fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, etc."
(cf. Gl 5, 22).
E dado que por definição o amor une, isto significa antes de tudo que o Espírito é criador de
comunhão no âmbito da comunidade cristã, como dizemos no início da Santa Missa com uma
expressão paulina: "... a comunhão do Espírito Santo [ou seja, a que é realizada por ele] esteja
com todos vós!" (2 Cor 13, 13). Mas, por outro lado, é também verdade que o Espírito nos
estimula a estabelecer relacionamentos de caridade com todos os homens. Dado que, quando
amamos damos espaço ao Espírito, permitimos que se expresse em plenitude. Compreende-se
assim por que Paulo coloca na mesma página da Carta aos Romanos as duas exortações:
"deixai-vos inflamar pelo Espírito" e "não pagueis a ninguém o mal com o mal" (Rm 12, 11.17).
Por fim, o Espírito segundo São Paulo é um penhor generoso que nos é dado pelo próprio Deus
como antecipação e ao mesmo tempo como garantia da nossa herança futura (cf. 2 Cor 1, 22;
5, 5 Ef 1, 13-14). Aprendemos assim de Paulo que a acção do Espírito orienta a nossa vida para
os grandes valores do amor, da alegria, da comunhão e da esperança. Compete a nós fazer
deles experiência quotidiana acompanhadas pelas sugestões interiores do Espírito, ajudados
no discernimento pela orientação iluminadora do Apóstolo.
Paulo, a vida na Igreja
22 de Novembro de 2006
Queridos irmãos e irmãs!
Completamos hoje os nossos encontros com o apóstolo Paulo, dedicando-lhe uma última
reflexão. De facto, não podemos despedir-nos dele, sem considerar uma das componentes
decisivas da sua actividade e um dos temas mais importantes do seu pensamento: a realidade
da Igreja. Devemos antes de tudo constatar que o seu primeiro contacto com a pessoa de
Jesus se realiza através do testemunho da comunidade cristã de Jerusalém. Foi um contacto
conturbado. Tendo conhecido o novo grupo de crentes, ele tornou-se imediatamente um seu
orgulhoso perseguidor. Ele mesmo o reconhece nas suas três Cartas: "Persegui a Igreja de
Deus", escreve (1 Cor 15, 9; Gl 1, 13; Fl 3, 6), quase como a apresentar este seu
comportamento como o pior dos crimes.
A história mostra-nos que se alcança normalmente Jesus através da Igreja! Num certo sentido,
isto verificou-se, dizíamos, também para Paulo, o qual encontrou a Igreja antes de encontrar
Jesus.
Mas este contacto, no seu caso, foi contraproducente, não causou a adesão, mas uma violenta
repulsa. Para Paulo, a adesão à Igreja foi propiciada por uma intervenção directa de Cristo, o
qual, tendo-se-lhe revelado no caminho de Damasco, se identificou com a Igreja e lhe fez
compreender que perseguir a Igreja era perseguir o Senhor. De facto, o Ressuscitado disse a
Paulo, o perseguidor da Igreja: "Saulo, Saulo, porque me persegues?" (Act 9, 4). Perseguindo a
Igreja, perseguia Cristo. Então Paulo converteu-se, ao mesmo tempo, a Cristo e à Igreja. Disto
compreende-se depois porque a Igreja tenha estado tão presente nos pensamentos, no
coração e na actividade de Paulo. Em primeiro lugar, porque ele fundou literalmente muitas
Igrejas nas várias cidades onde foi para evangelizar. Quando fala da sua "solicitude por todas
as Igrejas" (2 Cor 11, 28), ele pensa nas várias comunidades cristãs suscitadas de cada vez na
Galácia, na Iónia, na Macedónia e na Acaia. Algumas daquelas Igrejas também lhe deram
preocupações e desgostos, como aconteceu por exemplo nas Igrejas da Galácia, que ele viu
seguir "outro Evangelho" (Gl 1, 6), ao que se opôs com firme determinação. Contudo ele
sentia-se ligado às Comunidades por ele fundadas de maneira não fria nem burocrática, mas
intensa e apaixonada. Assim, por exemplo, define os Filipenses "meus caríssimos e saudosos
irmãos, minha coroa e alegria" (4, 1). Outras vezes compara as várias Comunidades com uma
carta de apresentação única no seu género: "A nossa carta sois vós, uma carta escrita nos
nossos corações, conhecida e lida por todos os homens" (2 Cor 3, 2). Outras vezes ainda
mostra em relação a eles um verdadeiro sentimento não só de paternidade mas até de
maternidade, como quando se dirige aos seus destinatários interpelando-os como "Meus
filhos, por quem sinto outra vez as dores de parto, até que Cristo se forme entre vós!" (Gl 4,
19; cf. também 1 Cor 4, 14-15; 1 Ts 2, 7-8).
Nas suas Cartas Paulo ilustra-nos a sua doutrina sobre a Igreja como tal. Portanto, é muito
conhecida a sua original definição da Igreja como "corpo de Cristo", que não encontramos
noutros autores cristãos do I século (cf. 1 Cor 12, 27: Ef 4, 12; 5, 30; Cl 1, 24). A raiz mais
profunda desta surpreendente designação da Igreja encontrámo-la no Sacramento do corpo
de Cristo. Diz São Paulo: "Uma vez que há um único pão, nós, embora muitos, somos um só
corpo" (1 Cor 10, 17). Na mesma Eucaristia Cristo dá-nos o seu Corpo e faz-nos seu Corpo.
Neste sentido São Paulo diz aos Gálatas: "todos sois um em Cristo" (Gl 3, 28). Com tudo isto
Paulo faz-nos compreender que existe não só uma pertença da Igreja a Cristo, mas também
uma certa forma de equiparação e de identificação da Igreja com o próprio Cristo. Portanto, é
daqui que deriva a grandeza e a nobreza da Igreja, ou seja, de todos nós que a ela
pertencemos por sermos membros de Cristo, quase uma extensão da sua presença pessoal no
mundo. E daqui se origina, naturalmente, o nosso dever de viver realmente em conformidade
com Cristo. Daqui derivam também as exortações de Paulo a propósito dos vários carismas
que animam e estruturam a comunidade cristã. Todos eles reconduzem a uma única fonte,
que é o Espírito do Pai e do Filho, sabendo bem que na Igreja ninguém está desprovido dele,
porque, como escreve o Apóstolo, "a cada um é dada a manifestação do Espírito, para proveito
comum" (1 Cor 12, 7). Mas é importante que todos os carismas cooperem juntos na edificação
da comunidade e não se tornem ao contrário motivo de dilaceração. A este propósito, Paulo
pergunta rectoricamente: "Estará Cristo dividido?" (1 Cor 1, 13). Ele sabe bem e ensina-nos
que é necessário "manter a unidade do Espírito, mediante o vínculo da paz. Há um só Corpo e
um só Espírito, assim como a vossa vocação vos chamou a uma só esperança" (Ef 4, 3-4).
Sem dúvida, realçar a exigência da unidade não significa afirmar que se deva uniformizar ou
nivelar a vida eclesial segundo um único modo de agir. Noutro texto Paulo ensina a "não
apagar o Espírito" (1 Ts 5, 19), isto é, a dar generosamente espaço ao dinamismo imprevisível
das manifestações carismáticas do Espírito, o qual é fonte de energia e de vitalidade sempre
nova. Mas se há um critério do qual Paulo não prescinde é a mútua edificação: "que tudo se
faça de modo a edificar" (1 Cor 14, 26). Tudo deve concorrer para construir ordenadamente o
tecido eclesial, não só sem estagnação, mas também sem fugas ou excepções. Depois, há
outra Carta paulina que chega a apresentar a Igreja como esposa de Cristo (cf. Ef 5, 21-33).
Com isto retoma-se uma antiga metáfora profética, que fazia do povo de Israel a esposa do
Deus da aliança (cf. Os 2, 4.21; Is 54, 5-8): com isto pretende-se dizer quanto sejam íntimas as
relações entre Cristo e a sua Igreja, quer no sentido de que ela é objecto do amor mais terno
da parte do seu Senhor, quer também no sentido de que o amor deve ser recíproco e que, por
conseguinte também nós, como membros da Igreja, devemos demonstrar fidelidade
apaixonada em relação a Ele.
Definitivamente, está em jogo a relação de comunhão: a vertical entre Jesus Cristo e todos
nós, e também a horizontal entre todos os que se distinguem no mundo pelo facto de "invocar
o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo" (1 Cor 1, 2). Esta é a nossa definição: nós pertencemos
àqueles que invocam o nome do Senhor Jesus Cristo. Portanto compreende-se bem quanto
seja desejável que se realize o que o próprio Paulo deseja ao escrever aos Coríntios: "Mas se
todos começarem a profetizar e entrar ali um descrente qualquer ou simples ouvinte, há-de
sentir-se tocado por todos, julgado por todos; os segredos do seu coração serão desvendados
e, prostrando-se com o rosto por terra, adorará a Deus, proclamando que Deus está realmente
no meio de vós" (1 Cor 24-25). Assim deveriam ser os nossos encontros litúrgicos. Um não
cristão que entra numa assembleia nossa, no final deveria poder dizer: "Verdadeiramente
Deus está convosco". Peçamos ao Senhor que sejamos assim, em comunhão com Cristo e em
comunhão entre nós.
Timóteo e Tito os colaboradores mais estreitos de Paulo
13 de Dezembro de 2006
Queridos irmãos e irmãs!
Depois de ter falado longamente sobre o grande apóstolo Paulo, hoje tomamos em
consideração os seus dois colaboradores mais estreitos: Timóteo e Tito. São dirigidas a eles
três Cartas tradicionalmente atribuídas a Paulo, das quais duas são destinadas a Timóteo e
uma a Tito.
Timóteo é um nome grego e significa "que honra Deus". Enquanto Lucas nos Actos o menciona
seis vezes, Paulo nas suas cartas faz referência a ele dezassete vezes (além disso encontrámo-
lo uma vez na Carta aos Hebreus). Deduz-se que aos olhos de Paulo ele gozava de grande
consideração, mesmo se Lucas não considera que deva narrar tudo o que lhe diz respeito. De
facto, o Apóstolo encarregou-o de missões importantes e viu nele quase um alter ego, como
resulta do grande elogio que dele traça na Carta aos Filipenses: "É que não tenho ninguém
com igual disposição (isópsychon), que tão sinceramente se preocupe pela vossa vida" (2, 20).
Timóteo tinha nascido em Listra (cerca de 200 km a nordeste de Tarso) de mãe judia e de pai
pagão (cf. Act 16, 1). O facto que a mãe tivesse contraído um matrimónio misto e não tivesse
feito circuncidar o filho deixa pensar que Timóteo tenha crescido numa família não
estrictamente observante, mesmo se foi dito que conhecia as Escrituras desde a infância (cf. 2
Tm 3, 15). Foi-nos transmitido o nome da mãe, Eunice, e também o da avó, Loide (cf. 2 Tm 1,
5). Quando Paulo passou por Listra no início da segunda viagem missionária, escolheu Timóteo
como companheiro, porque "era muito estimado pelos irmãos de Listra e de Icóneo" (Act 16,
2), mas fê-lo circuncidar "por causa dos judeus existentes naquelas regiões" (Act 16, 3).
Juntamente com Paulo e Silas, Timóteo atravessou a Ásia Menor até Tróade, de onde passou à
Macedónia. Além disso, estamos informados de que em Filipos, onde Paulo e Silas foram
envolvidos na acusação de espalhar desordens públicas e foram aprisionados por se terem
oposto à exploração por parte de alguns indivíduos sem escrúpulos de uma jovem mulher
como maga (cf. Act 16, 16-40), Timóteo foi poupado. Depois, quando Paulo foi obrigado a
prosseguir até Atenas, Timóteo alcançou-o naquela cidade e ali foi enviado à jovem Igreja de
Tessalónica para ter notícias e para a confirmar na fé (cf. 1 Ts 3, 1-2). Foi ter depois com o
Apóstolo em Corinto, levando-lhe boas notícias sobre os Tessalonicenses e colaborando com
ele na evangelização daquela cidade (cf. 2 Cor 1, 19).
Reencontramos Timóteo em Éfeso durante a terceira viagem missionária de Paulo. Dali
provavelmente o Apóstolo escreveu a Filemon e aos Filipenses, e nas duas cartas a Timóteo
resulta co-autor (cf. Fm 1; Fl 1, 1). De Éfeso, Paulo enviou-o à Macedónia juntamente com um
certo Erasto (cf. Act 19, 22) e depois também a Corinto com o cargo de levar uma carta, na
qual recomendava aos Coríntios que o acolhessem calorosamente (cf. 1 Cor 4, 17; 16, 10-11).
Encontrámo-lo ainda como co-autor da Segunda Carta aos Coríntos, e quando de Corinto Paulo
escreve a Carta aos Romanos une nela, juntamente com as dos demais, as saudações de
Timóteo (cf. Rm 16, 21). De Corinto o discípulo partiu de novo para alcançar Tróade na
margem asiática do Mar Egeu e ali aguardar o Apóstolo que ia para Jerusalém na conclusão da
terceira viagem missionária (cf. Act 20, 4). A partir daquele momento sobre a biografia de
Timóteo as fontes antigas dão-nos apenas uma referência na Carta aos Hebreus, na qual se lê:
"Sabei que o nosso irmão Timóteo foi posto em liberdade. Se vier depressa, irei ver-vos com
Ele" (13, 23). Em conclusão, podemos dizer que a figura de Timóteo sobressai como a de um
pastor de grande relevo. Segundo a posterior História eclesiástica de Eusébio, Timóteo foi o
primeiro Bispo de Éfeso (cf. 3, 4). Algumas das suas relíquias encontram-se desde 1239 na
Itália na Catedral de Termoli no Molise, provenientes de Constantinopla.
Depois, quanto à figura de Tito, cujo nome é de origem latina, sabemos que era grego de
nascença, isto é, pagão (cf. Gl 2, 3). Paulo levou-o consigo a Jerusalém para o chamado Concílio
apostólico, no qual foi solenemente aceite a pregação aos pagãos do Evangelho, que libertava
dos condicionamentos da lei moisaica. Na Carta a ele dirigida, o Apóstolo elogia-o definindo-o
"meu verdadeiro filho na fé comum" (Tt 1, 4). Depois da partida de Timóteo de Corinto, Paulo
enviou Tito a essa cidade com a tarefa de reconduzir aquela indócil comunidade à obediência.
Tito restabeleceu a paz entre a Igreja de Corinto e o Apóstolo, que lhe escreveu nestes termos:
"Deus, porém, que consola os humildes, consolou-nos com a chegada de Tito, e não só com a
sua chegada mas também com a consolação que ele tinha recebido de vós.
Contou-nos ele o vosso vivo desejo, a vossa aflição, a vossa solicitude por mim... Foi por isso
que ficámos consolados" (2 Cor 7, 6-7.13). Tito foi enviado de novo a Corinto por Paulo que o
qualifica como "meu companheiro e colaborador" (2 Cor 8, 23) para ali organizar a conclusão
das colectas em favor dos cristãos de Jerusalém (cf. 2 Cor 8, 6). Ulteriores notícias
provenientes das Cartas Pastorais qualificam-no como Bispo de Creta (cf. Tt 1, 5), de onde, a
convite de Paulo, alcançou o Apóstolo em Nicópoles no Éfiro (cf. Tt 3, 12). Não possuímos
outras informações sobre os deslocamentos seguintes de Tito e sobre a sua morte.
Para concluir, se consideramos Timóteo e Tito unitariamente nas suas duas figuras,
apercebemo-nos de alguns dados significativos. O mais importante é que Paulo se serviu de
colaboradores para o desempenho das suas missões. Ele permanece certamente o Apóstolo
por antonomásia, fundador e pastor de muitas Igrejas. Contudo é evidente que ele não fazia
tudo sozinho, mas apoiava-se em pessoas de confiança que partilhavam as suas fadigas e as
suas responsabilidades. Outra observação refere-se à disponibilidade destes colaboradores. As
fontes relativas a Timóteo e a Tito põem bem em realce a sua disponibilidade para assumir
vários cargos, que muitas vezes consistiam em representar Paulo também em ocasiões não
fáceis.
Numa palavra, eles ensinam-nos a servir o Evangelho com generosidade, sabendo que isto
obriga também a um serviço à própria Igreja. Por fim, aceitemos a recomendação que o
apóstolo Paulo faz a Tito na carta a ele dirigida: "desejo que tu fales com firmeza destas coisas,
para que os que acreditaram em Deus, se empenhem na prática de boas obras, pois isso é bom
e útil para os homens" (Tt 3, 8). Mediante o nosso compromisso concreto devemos e podemos
descobrir a verdade destas palavras, e precisamente neste tempo de Advento sermos nós
também ricos de obras boas e assim abrir as portas do mundo a Cristo, o nosso Salvador.
Estêvão, o Protomártir
10 de Janeiro 2007
Queridos irmãos e irmãs!
Depois do tempo das festas voltamos às nossas catequeses. Eu tinha meditado convosco sobre
as figuras dos doze Apóstolos e de São Paulo. Depois começámos a reflectir sobre as outras
figuras da Igreja nascente e assim hoje desejamos reflectir sobre a pessoa de Santo Estêvão,
festejado pela Igreja no dia seguinte ao Natal. Santo Estêvão é o mais representativo de um
grupo de sete companheiros. A tradição vê neste grupo o germe do futuro ministério dos
"diáconos", mesmo se é preciso ressaltar que não se encontra esta denominação no Livro dos
Actos. A importância de Estêvão resulta contudo do facto que Lucas, neste seu livro
importante, lhe dedica dois capítulos inteiros.
A narração de Lucas parte da constatação de uma subdivisão no interior da Igreja primitiva de
Jerusalém; ela era, sem dúvida, totalmente composta por cristãos de origem hebraica, mas
alguns deles eram originários da terra de Israel e eram chamados "hebreus", enquanto outros
de fé hebraica veterotestamentária provinham da diáspora de língua grega e eram chamados
"helenistas".
Eis o problema que se estava a delinear: os mais necessitados dos helenistas, especialmente
as viúvas privadas de qualquer apoio social, corriam o risco de serem descuidadas na
assistência para o sustentamento quotidiano. Para resolver esta dificuldade os Apóstolos,
reservando para si a oração e o ministério da Palavra como sua tarefa principal, decidiram
encarregar "sete homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria" para que
desempenhassem a tarefa da assistência (Act 6, 2-4), ou seja, do serviço social caritativo. Para
esta finalidade, como escreve Lucas, a convite dos Apóstolos os discípulos elegeram sete
homens. Deles conhecemos também os nomes. Eles são: "Estêvão, homem cheio de fé e do
Espírito Santo, Filipe, Prócuro, Nicanor, Timão, Parmenas e Nicolau de Antioquia. Foram
apresentados aos Apóstolos que, depois de orarem, lhes impuseram as mãos" (Act 6, 5-6).
O gesto da imposição das mãos pode ter vários significados. No Antigo Testamento o gesto
tem sobretudo o significado de transmitir um cargo importante, como fez Moisés com Josué
(cf. Nm 27, 18-23), designando assim o seu sucessor. Nesta continuidade também a Igreja de
Antioquia utilizará este gesto para enviar Paulo e Barnabé em missão aos povos do mundo (cf.
Act 13, 3). A uma análoga imposição sobre Timóteo, para lhe transmitir um cargo oficial, fazem
referência as duas Cartas paulinas a ele dirigidas (cf. 1 Tm 4, 14; 2 Tm 1, 6). Que se tratava de
uma acção importante, a ser realizada depois do discernimento, deduz-se de quanto se lê na
Primeira Carta a Timóteo: "Não imponhas as mãos a ninguém precipitadamente, nem te
tornes cúmplice de pecados alheios" (5, 22). Por conseguinte vemos que o gesto da imposição
das mãos se desenvolve no seguimento de um sinal sacramental. No caso de Estêvão e
companheiros trata-se certamente da transmissão oficial, da parte dos Apóstolos, de um cargo
e ao mesmo tempo da imploração de uma graça para o exercer.
O mais importante que se deve fazer notar é que, além dos serviços caritativos, Estêvão
desempenha também uma tarefa de evangelização em relação aos concidadãos, dos
chamados "helenistas"; com efeito, Lucas insiste sobre o facto de que ele, "cheio de graça e de
fortaleza" (Act 6, 8), apresenta em nome de Jesus uma nova interpretação de Moisés e da
própria Lei de Deus, relê o Antigo Testamento à luz do anúncio da morte e da ressurreição de
Jesus. Esta releitura do Antigo Testamento, releitura cristológica, provoca as reacções dos
Judeus que compreendem as suas palavras como uma blasfémia (cf. Act 6, 11-14). Por esta
razão ele é condenado à lapidação.
E São Lucas transmite-nos o último discurso do santo, uma síntese da sua pregação. Dado que
Jesus tinha mostrado aos discípulos de Emaús que todo o Antigo Testamento fala dele, assim
Santo Estêvão, seguindo o ensinamento de Jesus, lê todo o Antigo Testamento em chave
cristológica.
Demonstra que o mistério da Cruz está no centro da história da salvação narrada no Antigo
Testamento, mostra que Jesus, o crucificado e ressuscitado, é realmente o ponto de chegada
de toda esta história. Portanto, mostra também que o culto do templo terminou e que Jesus, o
ressuscitado, é o novo e verdadeiro "templo". Precisamente este "não" ao templo e ao seu
culto provoca a condenação de Santo Estêvão, o qual, neste momento diz-nos São Lucas
fixando o olhar no céu viu a glória de Deus e Jesus que estava à sua direita. E vendo o céu,
Deus e Jesus, Santo Estêvão disse: "Olhai... eu vejo os Céus abertos e o Filho do Homem de pé,
à direita de Deus" (Act 7, 56). Segue-se o seu martírio, que de facto é modelado sobre a paixão
do próprio Jesus, enquanto ele entrega ao "Senhor Jesus" o próprio espírito e reza para que o
pecado dos seus algozes não lhes seja atribuído (cf. Act 7, 59-60).
O lugar do martírio de Estêvão em Jerusalém é tradicionalmente colocado um pouco fora da
Porta de Damasco, a norte, onde surge agora precisamente a Igreja de Saint-Étienne ao lado
da famosa École Biblique dos Dominicanos. O assassínio de Estêvão, primeiro mártir de Cristo,
foi seguido por uma perseguição local contra os discípulos de Jesus (cf. Act 8, 1), a primeira
que se verificou na história da Igreja. Ela constituiu a ocasião concreta que levou o grupo dos
cristãos judaico-helenistas a fugir de Jerusalém e a dispersar-se. Expulsos de Jerusalém, eles
transformaram-se em missionários itinerantes: "Os que tinham sido dispersos foram de aldeia
em aldeia, anunciando a palavra da Boa Nova" (Act 8, 4). A perseguição e a consequente
dispersão tornam-se missão. O Evangelho propagou-se assim na Samaria, na Fenícia e na Síria
até à grande cidade de Antioquia, onde segundo Lucas ele foi anunciado pela primeira vez
também aos pagãos (cf. Act 11, 19-20) e onde se ouviu pela primeira vez o nome de "cristãos"
(Act 11, 26).
Em particular, Lucas anota que os apedrejadores de Estêvão "depuseram as capas aos pés de
um jovem chamado Saulo" (Act 7, 58), o mesmo que, sendo perseguidor, se tornará apóstolo
insigne do Evangelho. Isto significa que o jovem Saulo certamente ouviu a pregação de
Estêvão, e portanto conhecia os conteúdos principais. E São Paulo estava provavelmente entre
os que, seguindo e ouvindo este discurso, "se encheram intimamente de raiva e rangeram os
dentes contra Estêvão" (Act 7, 54). A este ponto podemos ver as maravilhas da Providência
divina. Saulo, adversário obstinado da visão de Estêvão, depois do encontro com Cristo
ressuscitado no caminho de Damasco, retoma a leitura cristológica do Antigo Testamento feita
pelo Protomártir, aprofunda-a e completa-a, e assim torna-se o "Apóstolo das Nações". A Lei
cumpre-se, como ele ensina, na cruz de Cristo. E a fé em Cristo, a comunhão com o amor de
Cristo é o verdadeiro cumprimento de toda a Lei. É este o conteúdo da pregação de Paulo. Ele
demonstra assim que o Deus de Abraão se torna o Deus de todos. E todos os crentes em Jesus
Cristo, como filhos de Abraão, se tornam partícipes das promessas. Na missão de São Paulo
cumpre-se a visão de Estêvão.
A história de Estêvão diz-nos muitas coisas. Por exemplo, ensina-nos que nunca se deve
separar o compromisso social da caridade do anúncio corajoso da fé. Era um dos sete
encarregados sobretudo da caridade. Mas não era possível separar caridade e anúncio. Assim,
com a caridade, anuncia Cristo crucificado, até ao ponto de aceitar também o martírio. Esta é a
primeira lição que podemos aprender da figura de Santo Estêvão: caridade e anúncio
caminham sempre juntos.
Sobretudo, Santo Estêvão fala-nos de Cristo, do Cristo crucificado e ressuscitado como centro
da história e da nossa vida. Podemos compreender que a Cruz permanece sempre central na
vida da Igreja e também na nossa vida pessoal. Na história da Igreja nunca faltarão a paixão, a
perseguição. E precisamente a perseguição torna-se, segundo a célebre frase de Tertuliano,
fonte de missão para os novos cristãos. Cito as suas palavras: "Nós multiplicamo-nos todas as
vezes que somos ceifados por vós: o sangue dos cristãos é semente" (Apologetico 50, 13:
Plures efficimur quoties metimur a vobis: semen est sanguis christianorum). Mas também na
nossa vida a cruz, que jamais faltará, se torna bênção. E aceitando a cruz, sabendo que ela se
torna e é bênção, aprendemos a alegria do cristão também nos momentos de dificuldade. O
valor do testemunho é insubstituível, porque a ela conduz o Evangelho e dela se alimenta a
Igreja. Santo Estêvão ensina-nos a valorizar esta lição, ensina-nos a amar a Cruz, porque ela é o
caminho pelo qual Cristo vem sempre de novo entre nós.
Barnabé, Silvano, Apolo
31 de Janeiro 2007
Queridos irmãos e irmãs!
Prosseguindo a nossa viagem entre os protagonistas das origens cristãs, dedicamos hoje a
nossa atenção a alguns dos outros colaboradores de São Paulo. Devemos reconhecer que o
Apóstolo é um exemplo eloquente de homem aberto à colaboração: na Igreja ele não quer
fazer tudo sozinho, mas serve-se de numerosos e diversos colegas. Não nos podemos deter
sobre todos estes preciosos colaboradores, porque são muitos. É suficiente recordar, entre
outros, Epafras (cf. Cl 1, 7; 4, 12; Fm 23), Epafrodito (cf. Fl 2, 25; 4, 18), Tíquio (cf. Act 20, 4; Ef
6, 21; Cl 4, 7; 2 Tm 4, 12; Tt 3, 12), Urbano (cf. Rm 16, 9), Gaio e Aristarco (cf. Act 19, 29; 20, 4;
27, 2 Cl 4, 10). E mulheres como Febe (cf. Rm 16, 1), Trifena e Trifosa (cf. Rm 16, 12), Pérside, a
mãe de Rufo da qual São Paulo diz: "Também é minha mãe" (cf. Rm 16, 12-13) sem esquecer
casais como Prisca e Aquila (cf. Rm 16, 3; 1 Cor 16, 19; 2 Tm 4, 19). Hoje, entre esta grande
multidão de colaboradores e colaboradoras de São Paulo dirigimos o nosso interesse a estas
três pessoas, que desempenharam um papel particularmente significativo na evangelização
das origens: Barnabé, Silvano e Apolo.
Barnabé significa "filho da exortação" (Act 4, 36) ou "filho da consolação" e é sobrenome de
um judeu-levita originário de Chipre. Tendo-se estabelecido em Jerusalém, ele foi um dos
primeiros a abraçar o cristianismo, depois da ressurreição do Senhor. Com grande
generosidade vendeu um campo de sua propriedade entregando a quantia aos Apóstolos para
as necessidades da Igreja (cf. Act 4, 37). Foi ele quem se fez garante da conversão de Saulo
junto da comunidade cristã de Jerusalém, a qual ainda desconfiava do antigo perseguidor (cf.
Act 9, 27). Tendo sido enviado a Antioquia da Síria, foi buscar Paulo a Tarso, onde se tinha
retirado, e transcorreu com ele um ano inteiro, dedicando-se à evangelização daquela
importante cidade, em cuja Igreja Barnabé era conhecido como profeta e doutor (cf. Act 13, 1).
Assim Barnabé, no momento das primeiras conversões dos pagãos, compreendeu que tinha
chegado a hora de Saulo, o qual se retirara para Tarso, sua cidade. Foi ali procurá-lo. Assim,
naquele momento importante, quase restituiu Paulo à Igreja; deu-lhe, neste sentido,
novamente o Apóstolo das Nações. Da Igreja antioquena Barnabé foi enviado em missão
juntamente com Paulo, realizando o que classifica como primeira viagem missionária do
Apóstolo. Na realidade, tratou-se de uma viagem missionária de Barnabé, sendo ele o
verdadeiro responsável, ao qual Paulo se juntou como colaborador, chegando às regiões de
Chipre e da Anatólia centro-meridional, na actual Turquia, com as cidades de Attalia, Perge,
Antioquia de Psídia, Listra e Derbe (cf. Act 13-14). Juntamente com Paulo foi depois ao
chamado Concílio de Jerusalém onde, depois de um aprofundado exame da questão, os
Apóstolos com os Anciãos decidiram separar a prática da cincuncisão da identidade cristã (cf.
Act 15, 1-35). Só assim, no final, tornaram oficialmente possível a Igreja dos pagãos, uma Igreja
sem circuncisão: somos filhos de Abraão simplesmente pela fé em Cristo.
Os dois, Paulo e Barnabé, entraram depois em contraste, no início da segunda viagem
missionária, porque Barnabé tinha em mente assumir como companheiro João Marcos, mas
Paulo não queria, tendo-se separado o jovem deles durante a viagem anterior (cf. Act 13, 13;
15, 36-40). Portanto, também entre santos existem contrastes, discórdias, controvérsias. E isto
parece-me muito confortador, porque vemos que os santos não "caíram do céu". São homens
como nós, com problemas também complicados. A santidade não consiste em nunca ter
errado ou pecado. A santidade cresce na capacidade de conversão, de arrependimento, de
disponibilidade para recomeçar, e sobretudo na capacidade de reconciliação e de perdão. E
assim Paulo, que tinha sido bastante rude e amargo em relação a Marcos, no final encontra-se
com ele. Nas últimas Cartas de São Paulo, a Filemon e na segunda a Timóteo, precisamente
Marcos aparece como "o meu colaborador". Portanto, não é o facto de nunca ter errado que
nos torna santos, mas a capacidade de reconciliação e de perdão. E todos podemos aprender
este caminho de santidade. Em todo o caso Barnabé, com João Marcos, partiu para Chipre (cf.
Act 15, 39) por volta do ano 49. Daquele momento em diante perdem-se os seus vestígios.
Tertuliano atribui-lhe a Carta aos Hebreus, ao que não falta a plausibilidade porque,
pertencendo à tribo de Levi, Barnabé podia ter interesse pelo tema do sacerdócio. E a Carta
aos Hebreus interpreta-nos de modo extraordinário o sacerdócio de Jesus.
Outro companheiro de Paulo foi Silas, forma grecizada de um nome hebraico (talvez sheal,
"pedir, invocar", que é a mesma raiz do nome "Saulo"), do qual resulta também a forma
latinizada Silvano. O nome Silas é confirmado só no Livro dos Actos, enquanto que o nome
Silvano se encontra apenas nas Cartas paulinas. Ele era um judeu de Jerusalém, um dos
primeiros que se fez cristão, e naquela Igreja gozava de grande estima (cf. Act 15, 22), sendo
considerado profeta (cf. Act 15, 32). Foi encarregado de levar "aos irmãos de Antioquia, Síria e
Cilícia" (Act 15, 23) as decisões tomadas no Concílio de Jerusalém e de as explicar.
Evidentemente ele era considerado capaz de realizar uma espécie de mediação entre
Jerusalém e Antioquia, entre judeus-cristãos e cristãos de origem pagã, e desta forma servir a
unidade da Igreja na diversidade de ritos e de origens. Quando Paulo se separou de Barnabé,
assumiu precisamente Silas como novo companheiro de viagem (cf. Act 15, 40). Com Paulo ele
alcançou a Macedónia (com as cidades de Filipos, Tessalónica e Berea), onde permaneceu,
enquanto Paulo prosseguiu para Atenas e depois para Corinto. Silas alcançou-o em Corinto,
onde cooperou na pregação do Evangelho: de facto, na segunda Carta dirigida por Paulo
àquela Igreja, fala-se de "Jesus Cristo, aquele que foi por nós anunciado entre vós, por mim,
por Silvano e por Timóteo" (2 Cor 1, 19). Explica-se assim por que é que ele resulta como co-
destinatário, juntamente com Paulo e Timóteo, das duas Cartas aos Tessalonicenses. Também
isto me parece importante. Paulo não age "sozinho", como indivíduo, mas juntamente com
estes colaboradores no "nós" da Igreja. Este "eu" de Paulo não é um "eu" isolado, mas um "eu"
no "nós" da Igreja, no "nós" da fé apostólica. E Silvano no final é mencionado também na
Primeira Carta de Pedro, na qual se lê: "por Silvano, a quem considero um irmão fiel, escrevo-
vos" (5, 12). Assim vemos também a comunhão dos Apóstolos. Silvano serve Paulo, serve
Pedro, porque a Igreja é uma e o anúncio missionário é único.
O terceiro companheiro de Paulo, que desejamos recordar, é chamado Apolo, provável
abreviação de Apolónio ou Apolodoro. Mesmo tratando-se de um nome de tipo pagão, ele era
um fervoroso judeu de Alexandria do Egipto. Lucas no Livro dos Actos define-o "homem
eloquente e muito versado nas Escrituras... cheio de fervor" (18, 24-25). A entrada de Apolo no
cenário da primeira evangelização acontece na cidade de Éfeso: tinha ido ali para pregar e ali
teve a ventura de encontrar o casal cristãos Priscila e Áquila (cf. Act 18, 26), que o
introduziram a um conhecimento mais completo do "caminho de Deus" (cf. Act 18, 26). De
Éfeso passou para a Acaia alcançando a cidade de Corinto: ali chegou com o apoio de uma
carta dos cristãos de Éfeso, que recomendavam aos Coríntios que o acolhessem bem (cf. Act
18, 27). Em Corinto, como escreve Lucas, "pela graça de Deus, prestou grande auxílio aos fiéis;
pois refutava energicamente os judeus, demonstrando pelas Escrituras que Jesus é o Cristo"
(Act 18, 27-28), o Messias. O seu sucesso naquela cidade teve um aspecto problemático,
porque haviam alguns membros daquela Igreja que em seu nome, arrebatados pelo seu modo
de falar, se opunham aos outros (cf. 1 Cor 1, 12; 3, 4-6; 4, 6). Paulo na Primeira Carta aos
Coríntios expressa apreço pela obra de Apolo, mas reprova os Coríntios por dilacerarem o
Corpo de Cristo dividindo-se assim em fracções contrapostas. Ele tira um importante
ensinamento de toda a vicissitude: quer eu quer Apolo diz ele mais não somos do que
diakonoi, isto é, simples ministros, através dos quais alcançastes a fé (cf. 1 Cor 3, 5). Cada um
tem uma tarefa diferenciada no campo do Senhor: "Eu plantei, Apolo regou, mas foi Deus
quem deu o crescimento... Pois, nós somos cooperadores de Deus, e vós sois a seara de Deus,
o edifício de Deus" (1 Cor 3, 6-9). Tendo regressado a Éfeso, Apolo resistiu ao convite de Paulo
para voltar imediatamente a Corinto, adiando a viagem para uma data posterior por nós
desconhecida (cf. 1 Cor 16, 12). Não temos outras notícias suas, mesmo se alguns estudiosos
pensam nele como possível autor da Carta aos Hebreus, da qual, segundo Tertuliano, seria
autor Barnabé.
Estes três homens brilham no firmamento das testemunhas do Evangelho por um aspecto
comum além das características próprias de cada um. Em comum, além da origem judaica, têm
a dedicação a Jesus Cristo e ao Evangelho, juntamente com o facto de os três terem sido
colaboradores do apóstolo Paulo. Nesta original missão evangelizadora eles encontraram o
sentido da sua vida, e como tais estão diante de nós como modelos luminosos de abnegação e
de generosidade. E, no final, voltemos mais uma vez a esta frase de São Paulo: tanto eu como
Apolo somos ministros de Jesus, cada um a seu modo, porque é Deus que faz crescer. Esta
palavra também é válida hoje para todos, quer para o Papa, quer para os Cardeais, os Bispos,
os sacerdotes, os leigos. Todos somos humildes ministros de Jesus. Servimos o Evangelho na
medida do possível, segundo os nossos dons, e rezamos a Deus para que faça crescer hoje o
seu Evangelho, a sua Igreja.
Os cônjuges Priscila e Áquila
7 de Fevereiro 2007
Queridos irmãos e irmãs!
Dando um novo passo nesta espécie de galeria de retratos das primeiras testemunhas da fé
cristã, que iniciámos há algumas semanas, tomamos hoje em consideração um casal de
esposos. Trata-se dos cônjuges Priscila e Áquila, que se colocam na órbita dos numerosos
colaboradores que gravitam em volta do apóstolo Paulo, dos quais já falei brevemente na
quarta-feira passada. Com base nas notícias que possuímos, este casal desempenhou um papel
muito activo no tempo das origens pós-pascais da Igreja.
Os nomes Áquila e Priscila são latinos, mas este homem e esta mulher são de origem hebraica.
Pelo menos Áquila provinha geograficamente da diáspora da Anatólia setentrional, diante do
mar Negro na actual Turquia enquanto Priscila, cujo nome se encontra por vezes abreviado em
Prisca, era provavelmente uma judia proveniente de Roma (cf. Act 18, 2). Contudo, foi de
Roma que eles partiram para Corinto, onde Paulo se encontrou com eles no início dos anos 50;
lá associou-se a eles porque, como narra Lucas, exerciam a mesma profissão de fabricantes de
tendas ou toldos para uso doméstico, e foi acolhido até na sua casa (cf, Act 18, 3). O motivo da
sua ida a Corinto tinha sido a decisão do imperador Cláudio de expulsar de Roma os Judeus
residentes na Cidade.
O historiador romano Suetónio diz-nos sobre este acontecimento que tinha expulso os Judeus
porque "provocavam tumultos por causa de um certo Cresto" (cf. Vita dei dodici Cesari,
Claudio", 25). Vê-se que não conhecia bem o nome em vez de Cristo escreve "Cresto" e tinha
apenas uma ideia muito vaga de quanto tinha acontecido. Contudo, haviam discórdias no
interior da comunidade judaica sobre a questão se Jesus era o Cristo. E estes problemas eram
para o imperador o motivo para simplesmente expulsar de Roma todos os Judeus. Disto se
deduz que o casal tinha abraçado a fé cristã já em Roma nos anos 40, e agora tinham
encontrado em Paulo alguém que não só partilhava com eles esta fé que Jesus é o Cristo mas
que também era apóstolo, chamado pessoalmente pelo Senhor Ressuscitado. Por conseguinte,
o primeiro encontro dá-se em Corinto, onde o recebem em casa e trabalham juntos na
fabricação de tendas.
Num segundo momento, eles transferem-se para a Ásia Menor, para Éfeso. Ali tiveram uma
parte determinante em completar a formação cristã do judeu alexandrino Apolo, do qual
falámos na quarta-feira passada. Dado que ele conhecia apenas superficialmente a fé cristã,
"Priscila e Áquila, que o tinham ouvido, tomaram-no consigo e expuseram-lhe, com mais
clareza, o Caminho do Senhor" (Act 18, 26). Quando de Éfeso o Apóstolo Paulo escreve a sua
Primeira Carta aos Coríntios, junta explicitamente às suas saudações também as de "Áquila e
Prisca, com a comunidade que se reúne na sua casa" (16, 19). Assim chegamos ao
conhecimento do papel importantíssimo que este casal desempenha no âmbito da Igreja
primitiva: isto é, o de receber na própria casa o grupo dos cristãos locais, quando eles se
reuniam para ouvir a Palavra de Deus e para celebrar a Eucaristia. É precisamente aquele tipo
de reunião que em grego se chama "ekklesìa" a palavra latina é "ecclesia", a italiana "chiesa"
que significa convocação, assembleia, reunião.
Portanto, na casa de Áquila e Priscila reúne-se a Igreja, a convocação de Cristo, que celebra os
Mistérios sagrados. E assim podemos ver o nascimento precisamente da realidade da Igreja
nas casas dos crentes. De facto, os cristãos até finais do século III não tinham lugares próprios
de culto: foram estas, num primeiro tempo, as sinagogas judaicas, até quando a originária
simbiose entre Antigo e Novo Testamento se dissolveu e a Igreja das Nações foi obrigada a
dar-se uma própria identidade, sempre profundamente enraizada no Antigo Testamento.
Depois desta "ruptura", os cristãos reunem-se nas casas, tornam-se assim "Igreja". E por fim,
no século III, surgem verdadeiros e próprios edifícios de culto cristão. Mas na primeira metade
do século I e no século II, as casas dos cristãos tornam-se verdadeira e própria "igreja". Como
disse, lêem juntos as Sagradas Escrituras e celebram a Eucaristia. Acontecia assim, por
exemplo, em Corinto, onde Paulo menciona "Gaio, que me recebe como hóspede, assim como
a toda a igreja" (Rm 16, 23), ou em Laodiceia, onde a comunidade re reunia na casa de uma
certa Ninfa (cf. Cl 4, 15), ou em Colossos, onde o encontro se realizava em casa de um certo
Arquipo (cf. Fm 2).
Tendo sucessivamente regressado a Roma, Áquila e Priscila continuaram a desempenhar esta
preciosíssima função também na capital do Império. De facto, Paulo escrevendo aos Romanos,
envia esta saudação: "Saudai Priscila e Áquila, meus colaboradores em Cristo Jesus, pessoas
que, pela minha vida, expuseram a sua cabeça. Não sou apenas eu a estar-lhes agradecido,
mas todas as igrejas dos gentios. Saudai também a igreja que se reúne em casa deles" (Rm 16,
3-5). Que extraordinário elogio do casal nestas palavras! E quem a faz é precisamente o
Apóstolo Paulo. Ele reconhece explicitamente neles dois verdadeiros colaboradores do seu
apostolado. A referência ao facto de ter arriscado a vida por ele deve relacionar-se
provavelmente com intervenções em seu favor durante algum seu aprisionamento, talvez em
Éfeso (cf. Act 19, 23; 1 Cor 15, 32; 2 Cor 1, 8-9). E que à própria gratidão Paulo associe até a de
todas as Igrejas das Nações, mesmo considerando a expressão talvez bastante hiperbólica,
deixa intuir como é vasto o seu raio de acção e, contudo, a sua influência em benefício do
Evangelho.
A tradição hagiográfica posterior conferiu um realce muito particular a Priscila, mesmo se
permanece o problema de uma sua identificação com outra Priscila mártir. Contudo, aqui em
Roma temos quer uma igreja dedicada a Santa Prisca no Aventino quer as Catacumbas de
Priscila na via Salária. Deste modo perpetua-se a memória de uma mulher, que certamente foi
uma pessoa activa e de muito valor na história do cristianismo romano. Uma coisa é certa:
juntamente com a gratidão daquelas primeiras Igrejas, das quais fala São Paulo, deve juntar-se
também a nossa, porque graças à fé e ao compromisso apostólico dos fiéis leigos, de famílias,
esposos como Priscila e Áquila o cristianismo chegou à nossa geração. Podia crescer não só
graças aos Apóstolos que o anunciavam. Para se radicar na terra do povo, para se desenvolver
vivamente, era necessário o compromisso destas famílias, destes esposos, destas comunidades
cristãs, de fiéis leigos que ofereceram o "húmus" ao crescimento da fé. E sempre, só assim a
Igreja cresce. Em particular, este casal demonstra como é importante a acção dos casais
cristãos. Quando eles são amparados pela fé e por uma forte espiritualidade, torna-se natural
um seu compromisso pela Igreja e na Igreja. A comunhão quotidiana da sua vida prolonga-se e
de certa forma sublima-se na assunção de uma responsabilidade comum em favor do Corpo
místico de Cristo, mesmo que fosse de uma pequena parte dele. Assim era na minha geração e
assim será com frequência.
Do seu exemplo podemos tirar outra lição que não devemos descuidar: cada casa pode
transformar-se numa pequena igreja. Não só no sentido de que nela deve reinar o típico amor
cristão feito de altruísmo e de solicitude recíproca, mas ainda mais no sentido de que toda a
vida familiar, com base na fé, está chamada a girar em volta da única senhoria de Jesus Cristo.
Não é ocasionalmente que na Carta aos Efésios Paulo compara a relação matrimonial com a
comunhão esponsal que existe entre Cristo e a Igreja (cf. Ef 5, 25-33). Aliás, poderíamos
considerar que o Apóstolo modele indirectamente a vida da Igreja inteira sobre a da família. E
a Igreja, na realidade, é a família de Deus. Por isso honramos Áquila e Priscila como modelos
de uma vida conjugal responsavelmente comprometida ao serviço de toda a comunidade
cristã. E encontramos neles o modelo da Igreja, família de Deus para todos os tempos.
As mulheres ao serviço do Evangelho
14 de Fevereiro 2007
Amados irmãos e irmãs
Hoje chegámos ao fim do nosso percurso entre as testemunhas do cristianismo nascente, que
os escritos neotestamentários mencionam. E usamos a última etapa deste primeiro percurso
para dedicar a nossa atenção às diversas figuras femininas que tiveram um papel efectivo e
precioso na difusão do Evangelho. O seu testemunho não pode ser esquecido, de acordo com
o que o próprio Jesus pôde dizer da mulher que lhe ungiu a cabeça pouco antes da Paixão: "Em
verdade vos digo: em qualquer parte do mundo onde este Evangelho for anunciado, há-de
também narrar-se, em sua memória, o que ela acaba de fazer" (Mt 26, 13; Mc 14, 9). O Senhor
quer que estas testemunhas do Evangelho, estas figuras que deram uma contribuição a fim de
que aumentasse a fé nele, sejam conhecidas e a sua memória seja viva na Igreja. Podemos
historicamente distinguir o papel das mulheres no Cristianismo primitivo, durante a vida
terrena de Jesus e durante as vicissitudes da primeira geração cristã.
Jesus certamente, sabemo-lo, escolheu entre os seus discípulos doze homens como Pais do
novo Israel, escolheu-os para "estarem com Ele e para os enviar a pregar" (Mc 3, 14). Este
facto é evidente mas, além dos Doze, colunas da Igreja, pais do novo Povo de Deus, são
escolhidas no número dos discípulos também muitas mulheres. Apenas brevemente posso
mencionar aquelas que se encontram no caminho do próprio Jesus, a começar pela profetisa
Ana (cf. Lc 2, 36-38), até à Samaritana (cf. Jo 4, 1-39), à mulher sírio-fenícia (cf. Mc 7, 24-30), à
hemorroíssa (cf. Mt 9, 20-22) e à pecadora perdoada (cf. Lc 7, 36-50). Não me refiro sequer às
protagonistas de algumas parábolas eficazes, por exemplo a uma dona de casa que amassa o
pão (cf. Mt 13, 33), à mulher que perde a dracma (cf. Lc 15, 8-10), à viúva que importuna o juiz
(cf. Lc 18, 1-8). Mais significativas para o nosso assunto são aquelas mulheres que
desenvolveram um papel activo no contexto da missão de Jesus. Em primeiro lugar, o
pensamento dirige-se naturalmente à Virgem Maria que, com a sua fé e a sua obra materna,
colaborou de modo único para a nossa Redenção, tanto que Isabel pôde proclamá-la "bendita
és tu entre as mulheres" (Lc 1, 42), acrescentando: "Feliz de ti que acreditaste" (Lc 1, 45).
Tornando-se discípula do Filho, Maria manifestou em Caná a confiança total nele (cf. Jo 2, 5) e
seguiu-o até aos pés da Cruz, onde recebeu dele uma missão materna para todos os seus
discípulos de todos os tempos, representados por João (cf. Jo 19, 25-27).
Há depois várias mulheres, que a diversos títulos gravitam em volta da figura de Jesus, com
funções de responsabilidade. São exemplo eloquente disto as mulheres que seguiam Jesus
para o assistir com os seus bens e das quais Lucas nos transmite alguns nomes: Maria de
Magdala, Joana, Susana e "muitas outras" (cf. Lc 8, 2-3). Depois, os Evangelhos informam-nos
que as mulheres, diversamente dos Doze, não abandonaram Jesus na hora da Paixão (cf. Mt
27, 56.61; Mc 15, 40). Entre elas, sobressai em particular Madalena, que não só presenciou a
Paixão, mas foi também a primeira testemunha e anunciadora do Ressuscitado (cf. Jo 20, 1.11-
18). Precisamente a Maria de Magdala S. Tomás de Aquino reserva a singular qualificação de
"apóstola dos apóstolos" (apostolorum apostola), dedicando-lhe este bonito comentário:
"Como uma mulher tinha anunciado ao primeiro homem palavras de morte, assim uma mulher
foi a primeira a anunciar aos apóstolos palavras de vida" (Super Ioannem, ed. Cai 2519).
Também no âmbito da Igreja primitiva a presença feminina não é de modo algum secundária.
Não insistamos sobre as quatro filhas não nomeadas do "diácono" Filipe, residentes em
Cesareia Marítima e todas elas dotadas, como nos diz São Lucas, do "dom da profecia", ou
seja, da faculdade de intervir publicamente sob a acção do Espírito Santo (cf. Act 21, 9). A
brevidade da notícia não permite deduções mais precisas. Aliás, devemos a São Paulo uma
mais ampla documentação sobre a dignidade e sobre o papel eclesial da mulher. Ele parte do
princípio fundamental, segundo o qual para os baptizados não só "não há judeu nem grego,
não há escravo nem livre", mas também "não há homem nem mulher". O motivo é que "todos
somos um só em Cristo Jesus" (Gl 3, 28), ou seja, todos irmanados pela mesma dignidade de
fundo, embora cada um tenha funções específicas (cf. 1 Cor 12, 27-30). O Apóstolo admite
como algo normal que na comunidade cristã a mulher possa "profetizar" (1 Cor 11, 5), isto é,
pronunciar-se abertamente sob o influxo do Espírito, contanto que isto seja para a edificação
da comunidade e feito de modo digno. Portanto, a sucessiva, bem conhecida, exortação para
que "as mulheres estejam caladas nas assembleias" (1 Cor 14, 34) deve ser antes relativizada.
Deixemos aos exegetas o consequente problema, muito discutido, da relação entre a primeira
palavra as mulheres podem profetizar na assembleia e a outra não podem falar da relação
entre estas duas indicações aparentemente contraditórias. Não se pode discuti-lo aqui. Na
quarta-feira passada já encontrámos a figura de Prisca ou Priscila, esposa de Áquila, que em
dois casos é surpreendentemente mencionada antes do marido (cf. Act 18, 18; Rm 16, 3): de
qualquer maneira, ambos são explicitamente qualificados por Paulo como seus sun-ergoús,
"colaboradores" (Rm 16, 3).
Outros relevos não podem ser descuidados. É necessário reconhecer, por exemplo, que a
breve Carta a Filémon é na realidade endereçada por Paulo também a uma mulher chamada
"Ápfia" (cf. Fm 2). Tradições latinas e sírias do texto grego acrescentam a este nome "Ápfia" o
apelativo de "irmã caríssima" (Ibidem) e deve-se dizer que na comunidade de Colossos ela
devia ocupar um lugar de relevo; de qualquer forma, é a única mulher mencionada por Paulo
entre os destinatários de uma sua carta. Noutro lugar, o Apóstolo menciona uma certa "Febe",
qualificada como diákonos da Igreja de Cêncreas, a pequena cidade portuária a leste de
Corinto (cf. Rm 16, 1-2).
Embora o título naquele tempo não tenha um específico valor ministerial de tipo hierárquico,
ele expressa um verdadeiro e próprio exercício de responsabilidade desta mulher em favor
daquela comunidade cristã. Paulo recomenda que seja recebida cordialmente e assistida "nas
actividades em que precisar de vós"; depois, acrescenta: "Pois também ela tem sido uma
protectora para muitos e para mim pessoalmente". No mesmo contexto epistolar, o Apóstolo
recorda com traços de delicadeza outros nomes de mulheres: uma certa Maria, depois Trifena,
Trifosa e a "querida" Pérside, além de Júlia, das quais escreve abertamente que "se afadigaram
por vós" ou "que se afadigaram pelo Senhor" (Rm 16, 6.12a.12b.15), ressaltando assim o seu
forte compromisso eclesial. Depois, na Igreja de Filipos deviam distinguir-se duas mulheres
chamadas "Evódia e Síntique" (Fl 4, 2): a exortação que Paulo faz à concórdia recíproca deixa
entender que as duas mulheres tinham uma função importante no interior daquela
comunidade.
Em síntese, a história do cristianismo teria tido um desenvolvimento muito diferente, se não
houvesse a generosa contribuição de muitas mulheres. Por isso, como pôde escrever o meu
venerado e querido Predecessor João Paulo II na Carta Apostólica Mulieris dignitatis, "a Igreja
rende graças por todas e cada uma das mulheres... A Igreja agradece todas as manifestações
do "génio" feminino, surgidas no curso da história, no meio de todos os povos e nações;
agradece todos os carismas que o Espírito Santo concede às mulheres na história do Povo de
Deus, todas as vitórias que deve à fé, à esperança e à caridade das mesmas: agradece todos os
frutos de santidade feminina" (n. 31). Como se vê, o elogio diz respeito às mulheres ao longo
da história da Igreja, e é expresso em nome de toda a comunidade eclesial. Também nós nos
unimos a este apreço, dando graças ao Senhor porque Ele conduz a sua Igreja, de geração em
geração, valendo-se indistintamente de homens e mulheres, que sabem frutificar a sua fé e o
seu baptismo, para o bem de todo o Corpo eclesiástico, para maior glória de Deus.
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