Post on 10-Dec-2018
*Mestrando em Bens Culturais e Projetos Sociais pela FGV/CPDOC.
II JORNADA DISCENTE DO PPHPBC (CPDOC/FGV)
INTELECTUAIS E PODER
Simpósio 2 | Cinema e política cultural
A Idade da Restauração: família e memória na restauração
dos filmes da Coleção Glauber Rocha Marco Dreer Buarque*
Resumo:
O trabalho pretende verificar de que maneira o conjunto de filmes recentemente restaurados
de Glauber Rocha compõe, em um contexto global de boom de memórias, uma importante
ferramenta de propagação de memória do mais celebrado cineasta brasileiro. Também se
procurará observar o papel da família Rocha enquanto mantenedora da memória de Glauber
Rocha, sendo o Tempo Glauber espaço estratégico de monumentalização da obra do cineasta.
Outro objetivo será identificar a atuação majoritariamente feminina na guarda da memória
junto aos principais projetos de restauração de filmes no Brasil, partindo do caso da família
Rocha, em que mãe e filha do cineasta baiano estão à frente dos projetos de preservação e
restauração do seu legado artístico.
Palavras-chave: cinema, restauração, memória, Glauber Rocha
****
Não há na história do cinema brasileiro personagem tão influente e celebrado
quanto Glauber Rocha. Passados 28 de sua morte, ainda que seu legado não se revele
explicitamente nas telas de cinema através dos filmes das novas gerações de cineastas, ao
menos os reflexos de sua personalidade multifacetada, polêmica e – por que não – genial
ainda se fazem sentir com muita intensidade no cenário cultural brasileiro. Em 2009 Glauber
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completaria 70 anos, de modo que, no mês de março, uma série de atividades foi realizada no
Tempo Glauber para celebrar a vida e a obra do cineasta baiano.
Inaugurado em 1983, o Tempo Glauber é uma associação cultural coordenada por
membros da própria família Rocha – a se destacar a atuação militante de décadas a fio da mãe
do cineasta, d. Lucia Rocha, e mais recentemente da neta, Paloma Rocha, que, igualmente
cineasta, tratou por trabalhar com o legado do pai também através de suas obras audiovisuais.
Mesmo passando por uma ininterrupta via-crúcis no levantamento de financiamento para a
manutenção do centro, tanto no sentido de manter o corpo técnico e os equipamentos voltados
para a preservação do acervo quanto mesmo na própria manutenção estrutural da casa, o
Tempo Glauber é, espantosamente, o único centro no país, até a presente data, a abrigar o
conjunto documental de um cineasta brasileiro. E não por acaso se trata justamente de um
centro voltado para a memória do cineasta mais representativo do país, que se fez influenciar
não só propriamente pelos seus 10 longas-metragens, mas também por seus artigos, seus
livros, suas gravuras, sua incessante troca de correspondências, suas participações em
programas de TV, sua atuação política, em suma, em uma série de atividades que, em
conjunto, é definidora de um artista múltiplo e inquieto.
Ciosa e ciente da envergadura da herança representada pela obra de Glauber, os
membros da família não tardaram em procurar abrigo para o rico e numeroso acervo
produzido pelo cineasta baiano em sua curta trajetória de vida, fato que tomou maior vulto
quando da inauguração do Tempo Glauber, apenas dois anos após sua morte. O trauma
representado pelo falecimento precoce e inesperado de Glauber pareceu provocar, junto aos
seus entes mais próximos, uma busca sem demora para a manutenção da sua memória, como
se esta pudesse se pulverizar caso não ocorresse um ordenamento imediato do seu legado
documental.
O Tempo Glauber foi, portanto, uma maneira de manter viva a memória do
cineasta, no sentido mesmo de memória enquanto fenômeno dinâmico, palco de constantes
transformações, que dialoga com o passado mas que está sempre interagindo com o presente.
Poderíamos dizer, sem correr o risco do exagero, que o Tempo Glauber foi a melhor forma
que a família Rocha encontrou para manter Glauber vivo.
Pelo menos nos últimos dois anos, o empreendimento que mais teve repercussão
pública desenvolvido pelos herdeiros de Glauber foi o lançamento da Coleção Glauber Rocha,
a saber, um conjunto de quatro filmes de longa-metragem restaurados do cineasta baiano –
Barravento (1961), Terra em Transe (1967), O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro
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(1968) e A Idade da Terra (1980) – que recebeu tímida distribuição nos cinemas mas que
obteve maior repercussão quando do lançamento da versão em DVD. Desde sempre muito
debatidos, tanto no circuito cultural quando em âmbito acadêmico, os filmes de Glauber
Rocha obtiveram notoriedade à altura do seu criador, no entanto é enganoso considerar que se
tratam de filmes que receberam público minimamente expressivo; ao contrário, além de
contarem com baixo índice de espectadores quando de seus lançamentos nos cinemas, algo
característico à quase totalidade dos filmes pertencentes ao chamado Cinema Novo brasileiro,
é notório certo boicote que reiteradamente recebem dos canais de TV, sobretudo abertos, que
parecem se intimidar com uma suposta precariedade técnica dessas obras, vítimas que são de
certa exigência atual por determinados padrões estéticos.
Percebe-se, pelos depoimentos de Paloma Rocha, que ao reintroduzir essas obras
junto a um novo público haveria também uma tentativa tanto de sedimentar ainda mais seus
valores enquanto “clássicos” quanto de conquistar uma fatia maior de espectadores, de
maneira a ampliar a imagem de Glauber Rocha enquanto artista brasileiro seminal. A Coleção
Glauber Rocha, no entanto, não é fenômeno isolado, estando dentro de um amplo contexto de
cineastas brasileiros que, por volta do início da década de 2000, começaram a ter seus filmes
mais notórios restaurados, sejam recebendo um tratamento mais profissional e custoso, tendo
como destino as salas de cinema, ou seja até mesmo restritos às versões digitais em DVD,
voltados somente ao mercado doméstico.
Apesar de ser uma tendência com reflexos mundo afora, é patente o fato de,
sobretudo no caso brasileiro, serem muito poucos os cineastas contemplados por tais projetos
de restauração. Fazendo um sumário levantamento, é possível sem muito esforço identificar
de que extrato faz parte a grande maioria dos cineastas contemplados – via de regra, são
aqueles oriundos do movimento Cinema Novo, vivos ou não. Além de Glauber, cineastas
como Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos, Arnaldo Jabor,
Cacá Diegues, entre outros, estão tendo suas obras restauradas, sendo todos eles diretamente
envolvidos com o Cinema Novo. Se Glauber é certamente o cineasta brasileiro mais celebrado
da história do nosso cinema, o Cinema Novo é também a manifestação cinematográfica de
maior prestígio de todos os tempos no Brasil. Independente do público circunscrito que
tiveram seus filmes, não é de se negar a habilidade que esses cineastas tiveram em, ao longo
do tempo, acumular um respeitável capital cultural e também social.
E se não nos é complicado perceber o perfil médio dos cineastas cujos filmes vêm
sendo restaurados, do mesmo modo é facilmente constatável a origem principal da base de
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sustentação e de pressão para o alavancamento desses projetos. São exatamente suas famílias
quem têm tomado a iniciativa em promover as restaurações dos filmes, sendo também
perceptível a presença mais efetiva das mulheres no comando dos projetos. Tive a
oportunidade de, em poucos minutos, levantar na Internet grande parte dos projetos de
restauração de filmes brasileiros – uma vez que são extremamente reduzidos em número,
principalmente se considerando a quantidade de restaurações que são produzidas anualmente
em países de Primeiro Mundo. É admirável constatar a presença quase que total das mulheres
à frente dos projetos, em que mães, netas, viúvas e sobretudo filhas, ao batalharem pelas
muito custosas e trabalhosas restaurações dos filmes dos seus familiares, acabam cumprindo o
papel de “guardiães de memória”.
Este trabalho, portanto, pretende analisar os projetos de restauração de um
conjunto de filmes brasileiros, do início da década de 2000 até hoje, tomando como exemplo
parte da obra restaurada do cineasta Glauber Rocha – a chamada Coleção Glauber Rocha.
Tentaremos observar de que maneira tais obras restauradas vieram a se tornar importantes
ferramentas de propagação da memória dos cineastas brasileiros, e mais especificamente
Glauber Rocha, o mais celebrado deles. Analisaremos também, entre outros pontos mais
específicos, quais seriam os perfis das obras que mais vêm sendo contempladas por projetos
de restauração, notadamente aquelas que foram originalmente produzidas ao longo do período
do regime militar, sobretudo as pertencentes ao chamado Cinema Novo. Uma vez que os
herdeiros dos cineastas brasileiros que tiveram suas obras restauradas são os maiores
responsáveis pela montagem e captação de recursos dos projetos, uma investigação da suposta
influência dessas famílias junto à mídia e aos órgãos financiadores se fará necessária.
Em um trabalho que gira em torno de uma série de questões referentes à memória,
é necessário buscar subsídios em alguns autores importantes que publicaram trabalhos hoje
clássicos referentes ao tema. Três autores principais serão chave nesse sentido, mais
especificamente conceitos que cada um deles desenvolveu referente ao tema. Portanto, o
trabalho não visa se referendar pelos autores como um todo, o que seria tarefa de alto risco e
suscetível a muitas imprecisões. Busca-se aqui, ao contrário, alguns conceitos específicos
trabalhados por esses autores que, a meu ver, podem contribuir para desvelar algumas
questões colocadas ao longo do trabalho. Os autores em questão são Michael Pollack, Pierre
Nora e Andreas Huyssen. Outros autores, mais contemporâneos, também serão utilizados por
terem publicados trabalhos inspirados, que de certa forma também se tornaram referência
dentro das reflexões acerca da memória, e por possuírem, de uma maneira ou de outra, pontos
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de contato com os personagens, lugares e eventos aqui abordados.
Michael Pollack trabalha com o conceito de “enquadramento da memória”, que
reinterpreta continuamente o passado em função dos embates travados no presente e no
futuro, em função da identidade dos grupos detentores dessa memória. Segundo Pollack, a
referência ao passado tem o objetivo de manter a coesão de um dado grupo social ou de uma
instituição, de modo a definir seu lugar junto à sociedade. Mas o autor também chama atenção
para o fato de que o trabalho de enquadramento da memória deve ser pautado pela
credibilidade, sob risco da perda da identidade individual ou de grupo. Pautar-se por uma
credibilidade significa proferir discursos coerentes, de modo a manter a imagem do indivíduo
ou do grupo íntegra. O autor também destaca que o trabalho de enquadramento de memória
tem seus atores destacados, verdadeiros profissionais da memória responsáveis por resguardar
a boa uma imagem de um indivíduo ou grupo.
Podemos reconhecer tanto na mãe de Glauber Rocha quanto em seu filha atores
com papéis destacados na manutenção da sua imagem enquanto o grande cineasta brasileiro.
A mitificação em torno da imagem de Glauber pareceu ganhar maior vulto após a sua morte,
recebendo formas mais bem acabadas tanto com a atuação algo militante da sua mãe, d. Lucia
Rocha, a qual desde então sempre obteve espaço considerável junto aos meios de
comunicação, quanto pela filha, Paloma, seja coordenando junto coma a mãe o Tempo
Glauber, seja com seu próprio trabalho de cineasta, uma vez que o pai é objeto-fetiche de
todos os seus trabalhos. Um trecho de um depoimento de Paloma Rocha é revelador nesse
sentido, em que a cineasta fala da necessidade de revelar algo da “verdadeira” faceta de
Glauber Rocha, que teria sido fortemente abalada sobretudo em um episódio específico, mais
próximo da sua morte, em que o cineasta baiano considerou que o General Golbery seria “o
gênio da raça”. Paloma, ao dirigir Anabazys (2008), procurou, usando o termo de Pollack,
enquadrar a memória do pai, cuja imagem havia sido deturpada pelos menos em seus últimos
anos de vida.
Anabazys começa exatamente desta necessidade de reconstruir esse período de A Idade da Terra e a imagem de Glauber. Reconstruir toda uma história fragmentada do cinema e de colar estas partes todas. Uma necessidade muito minha, de reconstruir o discurso de meu pai e me reconstruir dentro do processo. (…) O filme vai muito no ponto dos nós dentro da compreensão dessa história de meu pai, do que eu considerava tabu, das acusações que ele sofreu, esse tipo de coisa que passei minha infância e adolescência inteiras ouvindo. Os ataques, toda a incompreensão sobre ele no Brasil, no processo da Ditadura, que foi muito o que eu vivi. Meu papel foi isso, de ir nesses pontos nevrálgicos e doloridos da história brasileira, que era por onde ele passava, de ele ter se vendido à direita brasileira, ter apoiado os militares, que a gente sabia que não era essa a verdade, e que eram também as
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minhas dores.
O enquadramento da memória do pai também fica clara quando Paloma fala do
relançamento de A Idade da Terra em Veneza, cujo público e juri do festival de cinema o
hostilizou quando da primeira exibição do filme em 1981, episódio que deixou cicatrizes
profundas na família.
Ele precisava voltar à cena e isto era mais forte. Quando fomos à Veneza apresentar o filme, que foi onde tudo aconteceu, foi a redenção tão desejada que estava se concretizando. Teve um jornalista que perguntou o que eu queria fazer. Eu disse: eu queria ressuscitar meu pai (risos). O máximo que eu podia fazer era deixar ele falar. Eu tinha essa necessidade.
O segundo autor a que iremos recorrer é Pierre Nora, que desenvolveu o célebre
conceito de “lugares de memória”, que são os arquivos, as bibliotecas, os dicionários, os
museus, os cemitérios e as coleções, assim como as comemorações, as festas, os monumentos,
santuários, associações, testemunhos de um outro tempo, “sinais de reconhecimento e de
pertencimento a um grupo” em uma sociedade onde tende-se a perder os rituais, a
dessacralizar as fidelidades particulares, onde se nivela por princípio e tende-se a reconhecer
apenas indivíduos iguais e idênticos. Uma vez que haveria uma percepção de que o passado
está se esfacelando cada vez mais rapidamente, os homens trataram de moldar lugares onde o
passado se refugia e se cristaliza, de modo a afastar a ameaça da perda de identidade.
A inauguração do Tempo Glauber é uma mobilização consciente dos familiares do
cineasta baiano de, por meio de uma quantidade considerável de documentos produzidos ou
relacionados ao artista, abrigar a sua memória o mais fidedignamente possível. O Tempo
Glauber talvez seja o “lugar de memória” mais bem organizado e acabado relacionado ao
cinema brasileiro, centro guardião do legado do maior dos seus cineastas. É interessante
relacionar o Tempo Glauber ao caso da Fundação Darcy Ribeiro, que foi objeto de
investigação de um excelente trabalho de Luciana Quillet Heymann. A autora destaca que a
criação de um centro nesses moldes faz parte de um
processo de monumentalização da memória de seu patrono, seja ele seu instituidor, como no caso em questão, seja a instituição produto da ação dos herdeiros, após a morte do titular. Nesse último caso, em geral, a justificativa manifesta da instituição é resgatar e divulgar a memória do personagem, constituindo-se em um espaço para a evocação de sua imagem e a atualização de sua trajetória, lembrada e ressignificada em trabalhos acadêmicos, exposições, eventos e comemorações. (Heymann, 2005: p. 50)
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É interessante notar, portanto, alguns pontos de contato tanto entre as
personalidades e as trajetórias de Darcy e Glauber, quanto também as semelhanças que
podemos identificar nas estratégias de construção e consolidação de suas respectivas
memórias, seja por atuação deles próprios (algo que em Darcy se deu de forma mais intensa),
seja pela presença dos herdeiros diretos (aqui o caso da família de Glauber é mais flagrante).
Parafraseando o termo cunhado por Darcy, poderíamos afirmar que, em função do caráter
grandioso e múltiplo dos seus legados, bem como de seus destacados papéis políticos (apesar
de Glauber não ser figura política stricto sensu), ambos foram personagens “fazedores”.
Cientes da envergadura da herança representada pela obra de Glauber, os
membros de sua família não tardaram em procurar abrigo para o rico e numeroso acervo
produzido pelo cineasta baiano em sua curta trajetória de vida, fato que tomou maior vulto
quando da inauguração do Tempo Glauber, apenas dois anos após sua morte. O trauma
representado pelo falecimento precoce e inesperado de Glauber pareceu provocar, junto aos
seus entes mais próximos, uma busca sem demora para a manutenção da sua memória, como
se esta pudesse se pulverizar caso não ocorresse um ordenamento imediato do seu legado
documental.
O Tempo Glauber foi, portanto, uma maneira de manter viva a memória do
cineasta, no sentido mesmo de memória enquanto fenômeno dinâmico, palco de constantes
transformações, que dialoga com o passado mas que está sempre interagindo com o presente.
Poderíamos dizer, sem correr o risco do exagero, que o Tempo Glauber foi a melhor forma
que a família Rocha encontrou para manter Glauber vivo.
Os primeiros projetos de restauração cinematográfica no Brasil eclodiram por
volta dos anos 1980, juntamente ao surgimento dos laboratórios voltados para esse campo. O
contexto era bastante favorável, em um momento histórico no qual se vivia um resgate do
valor da memória enquanto fator determinante para a cultura e para a política das sociedades
ocidentais. Segundo autores como Andreas Huyssen, a “febre de memória” se acelerou na
Europa e nos Estados Unidos a partir da década de 1980, impulsionada inicialmente pelos
debates cada vez mais constantes sobre o Holocausto. Em certo sentido o Holocausto passou a
ser modelo para outros discursos de memórias, chamando a atenção para experiências
traumáticas particulares:
No movimento transnacional dos discursos de memória, o Holocausto perde sua qualidade de índice do evento histórico específico e começa a funcionar como uma metáfora para outras histórias e memórias. O Holocausto, como lugar-comum
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universal, é o pré-requisito para seu descentramento e seu uso como um poderoso prisma através do qual podemos olhar outros exemplos de genocídio. (Huyssen, 2000: p. 13)
Tanto o surgimento do Tempo Glauber quanto à proliferação de projetos de
restauração de filmes em âmbito mundial parecem se relacionar a essa ânsia pela manutenção
da memória e – ao mesmo tempo e relacionado a ela – pelo temor crescente do esquecimento.
Quando fala em “febre de memórias”, Andreas Huyssen também está apontando para a
tendência de certa espetacularização das memórias, em que a preocupação com estas está
também muito relacionada a “modas” e fetichismos. A criação de bares temáticos com
motivos nazistas seria a radicalização distorcida dessa noção. É importante também chamar a
atenção para o fato de ser perceptível que a maioria dos filmes que vêm sendo restaurados dos
países subdesenvolvidos são aqueles produzidos em algum período de repressão política. No
caso brasileiro, são os filmes do movimento Cinema Novo que vêm recebendo projetos de
restauro, não só pelo já apontado prestígio e capital cultural das famílias dos cineastas, mas
também por terem sido obras gestadas durante o sufoco da ditadura militar.
Os filmes de Glauber, agora restaurados, sedimentam o seu papel de “objetos de
memória”, ou seja, de bens simbólicos que apontam para a trajetória e a afetividade que
marcam Glauber e seus herdeiros. Ganhando nitidez e resoluções novos, além de um melhor
balanceamento de cores e um maior contraste, os filmes reativam a sua importância enquanto
“objetos de memória”, dando maior sentido não só à família que é herdeira direta, mas
também como uma herança cultural brasileira.
E se apontamos os filmes de Glauber Rocha como sendo “objetos de memória”
não seria exagero afirmarmos que sua mãe, d. Lucia Rocha, seja tal qual d. Alzira Vargas, na
feliz expressão de Angela de Castro Gomes, uma “guardiã da memória”.
(...)seu relato, ao delinear o perfil do pai (…) instaurava uma imagem de Alzira sobre ela mesma, cuidadosamente conformada através do tempo: a de guardiã da memória. (Gomes, 1996: p. 20)
Podemos traçar uma série de paralelos entre a trajetória de uma e de outra,
principalmente quando ocorre a experiência da perda. Tanto d. Alzira quando d. Lucia
parecem canalizar praticamente todas as suas energias na tarefa de salvaguardar a memória
quando do falecimento dos seus familiares, de modo que suas trajetórias de vida sofrem
significativas transformações. D. Lucia, inclusive, com a morte de Glauber, ganhou uma
notoriedade pública que não tinha quando seu filho era vivo e atuante. Quanto mais a morte
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de Glauber foi se afastando no tempo, mais sua própria imagem enquanto personalidade
combativa e atuante passou a se confundir com à da mãe.
Antes de morrer, o Glauber me pediu para cuidar das coisas dele, para reunir seus filmes. Com tanta coisa que me aconteceu, depois de passar pelo sofrimento com a morte dos meus filhos e do meu marido, eu nem sei como resisti. (...) No início eu fui muito acusada, de que não ia conseguir. (…) Eu continuei, viajei muito, catei artigos no mundo todo. Não venci tudo porque a falta de dinheiro é a maior dificuldade. Mas ainda assim o “Tempo Glauber” está aí.
Um aspecto a ser ressaltado na trajetória de Glauber Rocha é a multiplicidade da
sua produção artística, em que seus filmes, apesar de serem os objetos de maior repercussão e
reconhecimento públicos, compõem apenas uma parte de um heterogêneo conjunto de
trabalhos. Além dos filmes, o legado de Glauber é composto de textos, entrevistas, desenhos,
poemas, romances, storyboards, rascunhos, receitas médicas, bilhetes, grafismos etc. Essa
espantosa produção é reflexo de uma personalidade múltipla e irrequieta, de modo que parecia
haver, por parte do artista baiano, uma urgência em produzir e publicar o máximo que fosse
possível em um curto espaço de tempo.
Glauber parecia prever uma existência meteórica e, em função disso, parecia
querer deixar, o quanto antes, um legado farto e solidamente construído. Isso é possível de ser
observado na constância em que o tema da morte surge ao longo de sua obra, seja em filmes,
seja em cartas. Mesmo na sua juventude, a morte e o sentido de posteridade já eram grandes
questões nos seus escritos e na sua produção como um todo, havendo de quando em vez um
tom apocalíptico e auto-destrutivo presente nas suas palavras. Suas correspondências em carta
datam de 1953 a 1981, cobrindo portanto dos seus 13 aos seus 42 anos, parte desse montante
reunido no já clássico Cartas ao mundo (Companhia das Letras). O título da publicação é
feliz ao deixar entrever o propósito e o espírito de Glauber ao trocar correspondências: nas
cartas, o cineasta baiano não se propunha somente a relatar sua intimidade e trocar
confidências, mas sobretudo havia uma necessidade da falar de si através do outro e, mais do
que isso, bradar ao mundo sobre a urgência da sua obra.
O estilo e o tom que Glauber dava aos seus escritos remetem àquilo que Michel
Foucalt chamava de “escrita de si”. Somadas às suas obras, as cartas de Glauber pareciam
constituir em um corpo completo, onde vida privada e figura pública constantemente se
misturavam, sendo esse um corpo racional e de ação. A militância de Glauber se fazia
presente nas linhas e entrelinhas dos seus escritos. Nas palavras de Foucault:
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O papel da escrita é constituir, com tudo o que a leitura constitui, um “corpo”. E é preciso compreender esse corpo não como um corpo da doutrina, mas sim (...) como o próprio corpo daquele que, transcrevendo suas leituras, delas se apropriou e fez a sua verdade delas: a escrita transforma a coisa vista ou ouvida “em forças e em sangue”. Ela se torna no próprio escritor um princípio de ação racional. (Foucault, 2006: p. 152)
Nas cartas, Glauber não pretendia se manter ao nível do íntimo e do privado, mas,
ao contrário, visava, através delas, tudo exteriorizar. Por ser o maior propagador e divulgador
do cinema brasileiro aqui e alhures, Glauber pretendia se fazer presente também por meio das
cartas, como uma presença imediata e com voz ativa. Conforme atesta Foucault, “escrever é
‘se mostrar’, se expor, fazer aparecer seu próprio rosto perto do outro.” Portanto, a carta seria
um modo de olhar sobre o destinatário e, ao mesmo tempo, ao falar sobre si, uma maneira de
se oferecer ao olhar do outro.
De acordo com Foucault, diante dessa intensa troca de olhares e experiências, as
cartas proporcionariam um encontro quase físico, face a face. Haveria na troca de
correspondências não apenas uma intenção de dar conselhos ou de oferecer ajuda de parte a
parte, mas sobretudo um sentido de atitude, de ação, em que um examina o outro, e ao mesmo
tempo se autoexamina. O trabalho que se opera no destinatário também acontece com o
próprio sujeito que envia a carta, mas devemos compreender essa operação menos como um
deciframento de si mesmo e mais como uma abertura ao outro sobre si próprio.
E Glauber Rocha parecia ter plena consciência dessa operação, pois seus escritos
tinham a intenção não só de revelar a si mesmo e ao outro, como a muitos outros, os quais não
se restringiam a um destinatário específico. Ao enviar uma carta a Darcy Ribeiro, por
exemplo, Glauber não estava apenas tratando de temas que eram comuns a remetente e
destinatário, não estava somente se debruçando sobre este e aquele tema, este ou aquele filme,
mas sobretudo proferindo algo cuja recepção haveria de ser ampla, de dimensões políticas.
Isso é perceptível desde sua primeira carta, aos 13 anos, na qual procura justificar
a apresentação de teatro que fez na escola a seu tio. Fora a erudição algo precoce para um
jovem dessa idade, é de se notar já naquele momento certa propensão a mobilizações e a
angariar capital cultural. E, por meio da “escrita de si”, também já está claramente
evidenciada a vaidade artística que seria uma das suas marcas registradas da sua maturidade:
Bem, deixaram o argumento a meu cargo. Que fiz? Vim para casa e lutei em busca de um assunto invulgar, um assunto que revolucionasse a “turma”. Precisamos entregar tudo no dia seguinte. Pensei, pensei e nasceu-me aquela idéia. Rápido minha pena desenhou no papel todo o enredo. (...) Aquela peça absolutamente não
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revela a minha personalidade (pois penso que um escritor deve escrever o que pensa e o que sente, enfim deve expressar a sua própria filosofia). (Bentes, 1997: p. 78)
O que vem à tona nas missivas é, muitas das vezes, uma indistinção entre seus
escritos e suas obras, uns tendo a tarefa de reafirmar e completar os outros reciprocamente,
mas sempre tendo como missão disseminar a produção de sua geração, bem como
eventualmente atacar os inimigos mais evidentes. Em carta de 1968 a Alfredo Guevara,
intelectual de prestígio e diretor à época da revista Cine Cubano, Glauber oferece, por
exemplo, um panorama exaltativo da produção brasileira recente, aproveitando para dar uma
demonstração de força política e coragem ao conseguir barrar uma tentativa de censura a um
de seus textos mais célebres:
[...] terei muito a fazer em nossa organização de Cinema Novo, que é, apesar de tudo, uma das raras coisas que ainda produz positivamente no Brasil, apesar de todas as dificuldades políticas de vários fronts. [...] Mas, apesar disto, o nosso grupo está se fortalecendo, Saraceni terminou seu último filme, Capitu (belíssimo), Gustavo Dahl terminou seu primeiro filme, O bravo guerreiro, fortíssimo, mostrando que é impossível conciliar com a burguesia para fazer revolução, Walter Lima Jr. está filmando Brasil Ano 2000 e Paulo Gil terminou Proezas de Satanás, Iberê Cavalcanti, A virgem prometida etc. Nossa distribuidora está ficando auto-suficiente e o público aumenta: mas a censura está feroz e estamos enfrentando guerras de todos os fronts. O Departamento de Polícia Política fez uma análise-processo do meu artigo “Estética da fome”, publicaram a acusação, eu enfrentei e agora já assumi publicamente minhas posições: é uma forma de se expor mais e encorajar outros. É uma pequena e insignificante revolução mas é mais positivo fazer estes filmes do que falar da revolução nos bares e nas praias (Bentes, 1997: p. 308).
É importante lembrar que o fato desse imenso conjunto de cartas ter sobrevivido e
ter sido devidamente bem preservado é sintomático de uma personalidade extremamente
preocupada e ciosa de sua memória, sobretudo aquela de natureza pública. Guardar
correspondências desde os 13 anos de idade não é prática usual e inocente. Ao contrário, já
parecia haver por parte de Glauber e de d. Lúcia Rocha – co-responsável pela preservação dos
documentos do filho – uma forte intuição da noção de posteridade, da necessidade imperiosa
de juntar os registros documentais de uma vida intensa e artisticamente relevante. A
insistência de Glauber no tema da morte parecia estar diretamente relacionada à urgência das
suas ações e da sua produção intelectual, de modo que a preservação criteriosa de seu legado
documental seria essencial para que sua glorificação futura fosse a contento. Construído logo
após seu falecimento, a inauguração do Tempo Glauber enquanto centro catalisador da
memória do cineasta foi a consolidação desse arranjo, uma maneira de sistematizar o seu
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conjunto documental, que se encontrava mais ou menos disperso.
Dentro do legado glauberiano, portanto, é tarefa ingrata tentar apartar rigidamente o
que seria propriamente produção escrita daquilo referente à sua produção filmográfica, uma
vez que ambos se intercomunicam, em uma espécie de processo de contaminação. É possível
identificar, nos escritos de Glauber, uma série de pistas daquilo o que é reiteradamente visto
nas telas, e, do mesmo modo, a urgência e a radicalidade propostas em seus filmes estão
presentes, em maior ou menor grau, tanto nos seus ensaios quanto nas suas trocas de
correspondências. Ismail Xavier, ao prefaciar o antológico Revolução do Cinema Novo, é
preciso ao apontar para tal indistinção entre texto e filme na produção de Glauber:
Foi dentro de um jogo político de larga amplitude que emergiram os textos reunidos em Revolução do Cinema Novo, uma coleção que reitera a defesa do cinema de autor e evidencia uma articulação entre reflexão crítica e criação estética que esteve presente desde os primeiros passos de sua crítica. Em 1958, ao resenhar o filme Raíces, do mexicano Benito Alazracri, Glauber já estava delineando o que seria a estética de Deus e o diabo na terra do sol. (Xavier, 2004: p. 16)
A intenção em se debruçar sobre a volumosa produção escrita de Glauber Rocha não
tem aqui apenas a função de cumprir o seu sentido tradicional enquanto fonte escrita, pois,
uma vez que estamos lidando com um artista que estabelece cruzamentos estéticos diretos
entre texto e tela, entender a linguagem glauberiana não é apenas assistir aos seus filmes mas
também estar atento aos seus escritos. Isto posto, toda a discussão conceitual sobre a
restauração dos seus filmes, dentro da chave da linguagem pretendida por este trabalho, deve
forçosamente partir também da produção escrita do cineasta, de modo a enriquecer e melhor
fundamentar o debate. Muito dos questionamentos a respeito das intervenções de restauro nos
filmes de Glauber pode e deve ser iluminado pelos próprios textos do cineasta, pois se este
teve como preocupação deixar um vasto e intenso legado escrito, onde suas questões estéticas
já estavam dadas, a própria discussão da ética da restauração deveria passar por uma
investigação apurada dessa produção não-fílmica.
Bibliografia:
ALBERTI, Verena. Manual de história oral. 2ª ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2004.
BENTES, Ivana (Org.). Glauber Rocha – Cartas ao mundo. São Paulo: Companhia das
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Letras, 1997.
FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). Entre-vistas: abordagens e usos da história oral. Rio
de Janeiro: Editora da Fundação Getulio Vargas, 1994.
FOUCAULT, Michel. A Escrita de Si. in: “Ética, sexualidade, política”. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2006. p. 144-162.
FRAIZ, Priscila. A dimensão autobiográfica dos arquivos pessoais: o arquivo de Gustavo
Capanema. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.11, n.21, 1998.
GOMES, Angela de Castro. A guardiã da memória. Acervo: Revista do Arquivo Nacional,
Rio de Janeiro, v. 9, nº 1-2, p.17-30, jan/dez 1996.
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International Centre for the Study of the Preservation and Restoration of Cultural Property
(ICCROM): www.iccrom.org
International Federation of Film Archives (FIAF): www.fiafnet.org
Library of Congress – Preservation: www.loc.gov/preserv