Post on 27-Jan-2019
664
A FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE PORTUGUÊS: AS CONTRIBUIÇÕES DA POESIANA SUA CONSTRUÇÃO COMO AGENTE LETRADOR
Arlete de FALCO –Universidade Estadual de Goiás - UEG( Câmpus de Morrinhos )Eixo Temático : 1 - Formação inicial de professores da educação básica
Financiadora da pesquisa: UEGarletedefalco@gmail.com
1. Introdução
Bakhtin, refletindo sobre o signo linguístico, considera que ele “se torna a arena
onde se desenvolve a luta de classes.” A metáfora bakhtiniana da arena nos sugere
confrontos, embates, conflito de valores. Porém, apesar dos semas aparentemente
negativos contidos nessa ideia, ela nada tem de negativo; antes, é positivo o valor final, já
que, para ele
é este entrecruzamento dos índices de valor que torna o signo vivo emóvel, capaz de evoluir. O signo, se subtraído às tensões da luta social,se posto à margem da luta de classes, irá infalivelmente debilitar-se,degenerará em alegoria, tornar-se-á objeto de estudo de filólogos e nãoserá mais um instrumento racional e vivo para a sociedade. A memória dahistória da humanidade está cheia desses signos ideológicos defuntos,incapazes de constituir uma arena para o confronto dos valores sociaisvivos ( BAKHTIN, 2009, p. 47 )
Aceitando as ideias contidas na afirmação de Bakhtin, propomos um diálogo
com ela: a sala de aula é uma arena onde se desenvolvem e se confrontam vozes e
valores diferenciados, os quais se relacionam inexoravelmente com a formação do
aluno.
No trabalho ora em desenvolvimento, a “arena” considerada são duas salas de
aula de um curso de licenciatura em Letras de uma universidade pública estadual em
Goiás. A partir do olhar sobre essas duas turmas buscam-se alternativas para otimizar o
processo formação leitora desse profissional em construção.
O ensino de língua portuguesa está atravessando um momento de crise.
Inúmeros são os exemplos de que há um descompasso entre o que a sociedade espera
dos cidadãos escolarizados e o que vem sendo oferecido nas salas de aula de língua
portuguesa.
A situação agrava-se mediante a constatação de que na maioria das vezes não
se sabe que rumo tomar em prol de uma educação de qualidade. Em artigo em que
discute o ensino institucionalizado da língua portuguesa em sua relação com a variação
dialetal, Castilho afirma:
Houve uma fase, infelizmente ainda em vigor em alguns ambientes, emque a visão do fenômeno linguístico era bastante simplificadora.Dispunham-se em planos diferentes os canais da comunicação,
665
privilegiando-se a língua escrita como fonte do padrão. Identificava-sedeterminada variante diacrônica ou geográfica como o melhor português.Valorizava-se o registro refletido e se desconsideravam as interferênciasde uma variante em outra, tudo o que levava a uma visão rígida epreconceituosa da linguagem.Desse extremo simplificador despencamos para uma visão simplista,valendo ao ensino qualquer modalidade linguística, pois “tudo comunica”,posição demagógica e igualmente inoperante [...] ( CASTILHO, 2004, pp.28-29 )
O fato apontado por Castilho infelizmente ainda permeia muitas salas de aula do
Brasil. Como bem pondera o autor, as duas atitudes são simplistas e redutoras e,
consequentemente, ambas fáceis de se implantarem em uma sala de aula, já que
exigem pouco esforço do professor.
Já Guedes ( 2006 ) pondera que o professor de português vive uma grave crise
de identidade, tanto do ponto de vista de sua formação quanto do exercício da profissão,
uma vez que exercê-la lhe exige uma relação íntima e natural com uma língua que ele
muitas vezes não sente como sua nem como natural. Uma língua na qual ele quase não
fala e raramente se atreve a escrever, limitando-se ao uso da metalinguagem no seu
fazer em sala de aula.
Discutindo essa questão, Bagno (2013) responsabiliza a universidade e os
cursos de Letras por parte dessa crise. Segundo esse autor, em muitas universidades
brasileiras há acentuada relutância entre os professores desse curso de o enxergarem
como um curso formador de professor. Para ele, o equívoco já se anuncia a partir do
nome do curso, que sinaliza seu pendor para o lado artístico. Além disso, suas matrizes
curriculares estariam de disciplinas voltadas para as correntes linguísticas, diante das
quais o aluno é posto a partir do primeiro período, como se lhe fosse possível receber
eficientemente um texto científico de tamanha complexidade. Pondera ainda esse autor
que a maioria dos alunos dos cursos de licenciatura em Letras chega à universidade com
um grau mínimo de letramento. Muitos deles nunca leram um romance completo,
tampouco um texto mais complexo em toda a sua vida; só ali vão fazê-lo pela primeira
vez.
As pessoas que atuam em nossos cursos superiores de Letras, porém,fazem de conta que esses estudantes são ótimos leitores e redatores, edespejam sobre eles, logo no primeiro semestre, teorias sofisticadas, queexigem alto poder de abstração e familiaridade com a reflexão filosófica,junto com textos de literatura clássica, escritos numa língua que para elesé quase estrangeira. ( BAGNO, 2013, p. 31 )
O resultado, denuncia esse autor, é catastrófico. A maioria dos alunos se forma
sem dominar as teorias linguísticas vistas ao longo do curso, sem conhecer a tradição
gramatical e, o que é mais grave: sem conseguir escrever um texto que exija um relativo
grau de monitoramento e formalidade.
666
Assim, o que se busca com esse trabalho é contribuir com as reflexões sobre o
assunto, no sentido de buscar propostas e estratégias que possam otimizar a formação
do aluno de licenciatura em Letras, ampliando seu grau de letramento para que ele possa
atuar eficientemente como um agente letrador.
2. Metodologia
A pesquisa em foco caracteriza-se como uma pesquisa-ação, participativa
etnográfica, de natureza qualitativa. De acordo com Bortoni-Ricardo ( 2011, p. 49 ),
O objetivo da pesquisa qualitativa em sala de aula, em especial aetnográfica, é o desvelamento do que está dentro da “caixa-preta” no diaa dia dos ambientes escolares, identificando os processos que, porserem rotineiros, tornam-se invisíveis para os atores que dele participam.
As pesquisas voltadas para o interior da sala de aula costumam oferecer
dificuldades para sua execução. A dúvida sobre o que observar no desenrolar das ações
no seu interior, como descrever o que é observado, como transformar os resultados em
análises dotadas de objetivação tem levado muitos pesquisadores a agirem de maneira
precipitada, fixando-se mais em ausências do que no existente nesse espaço. De fato, a
transformação do espaço da sala de aula em objeto de estudo é um problema teórico; a
par de toda a história documentada que a escola apresenta, sendo uma instituição ou
aparelho do Estado, há todo um desenvolver histórico em seu interior que não é
documentado, conforme ponderam Rockwell; Ezpeleta(1989). Essas autoras ainda
apontam que
Diversas formas de racionalismo têm chamado a atenção para o perigode se perder na variedade e heterogeneidade infinita do individual, docotidiano, do conjuntural. Com isso tendem a relegar ao campo do “não-investigável” uma boa parte da realidade social, justamente esta quecoincide com o não-documentado.[...]
Historicamente, contudo, as fronteiras precisas das divisões dicotômicasda realidade em cognoscível e incognoscível modificaram-se juntamentecom o processo de construção teórica. (ROCKWELL; EZPELETA, 1989,p. 11 ) ).
Concordamos com as autoras que é possível tornar cognoscível essa realidade
não documentada. Em vista disso, propomos essa pesquisa, em que se busca uma
reflexão sobre as práticas cotidianas no interior da universidade, a partir do convívio,
apreciação, fruição e análise de poemas do poeta Donizete Galvão, o que se dará por
meio de atividades desenvolvidas em aulas dialógicas, alicerçadas em princípios teóricos
da estilística (PINHEIRO, 2015). Para tanto foram selecionadas duas obras: Mundo mudo
(2003) e Ruminações ( 1999 ), das quais selecionam-se poemas que são repassados aos
alunos. Optou-se por trabalhar com duas obras para se dispor de um leque maior de
667
poemas, o que favorece procedimentos de abordagens diversificados, incluindo saraus e
dramatizações de poemas. Procura-se, por meio de um trabalho conduzido de forma
sistemática, lúdica, direcionada e continuada, ampliar a capacidade leitora, bem como a
sensibilidade, o conhecimento geral e o grau de letramento do aluno de Letras, futuro
letrador em formação.
O espaço delimitado para essa pesquisa são duas salas de aula de um curso de
licenciatura em Letras, de uma universidade estadual de Goiás, onde atuo como
professora efetiva. Compõem a população da pesquisa os alunos de duas turmas do
curso de licenciatura em Letras dessa universidade. Esses alunos são em sua grande
maioria oriundos de escolas públicas, da própria cidade em que a universidade está
inserida ou das cidades circunvizinhas. A maioria vem de escolas regulares, mas grande
parte deles está há algum tempo sem estudar, o que aumenta a insegurança e
compromete a competência comunicativa e leitora desses sujeitos. E como será o olhar
que esses alunos têm sobre a literatura? Como a literatura pode contribuir para ampliar
esses olhares sobre o mundo? É o que discutiremos, sucintamente, na seção seguinte.
3.A literatura e o seu papel na formação do homem: algumas considerações
Na obra A formação do professor de português: que língua vamos ensinar?,
Guedes (2006) lança um olhar perscrutador e inquietante sobre o contexto educacional
brasileiro, focando sua atenção no professor de português em atuação, sem deixar de
estender sua preocupação àquele que se encontra em formação. Numa abordagem
clara, crítica e contundente, o autor traça um perfil desse profissional em diversas partes
do país, e denuncia a situação de carência linguística em que na maioria dos lugares ele
se encontra.
Um das principais responsáveis por esse quadro, na avaliação do autor, é o
progressivo processo de desvalorização que os profissionais da educação enfrentam no
país, o que vem provocando o desinteresse dos jovens estudantes pela carreira de
professor. Aquelas pessoas em condições de enfrentar um processo de seleção mais
competitivo optam por carreiras que julgam mais atraentes e promissoras. Poucos são os
estudantes que, dispondo de bagagem sólida de conhecimento, escolhem a docência
como profissão. E quem são os estudantes que escolhem os cursos de licenciatura?
Corroborando a opinião de outros pesquisadores (BAGNO, 2013; CASTILHO, 2004;
LUCCHESI, 2004; KLEIMAN, 2014; PINHEIRO, 2015, entre outros), Guedes (2006)
pondera que a grande maioria dos alunos que procuram o curso de licenciatura em
Letras vêm de famílias de médio ou baixo poder aquisitivo, oriundos, em grande parte, de
668
lares de pais analfabetos ou semianalfabetos. Conforme lembra Bagno (2013), muitos
desses alunos chegam à universidade sem nunca terem um livro completo.
É com base nesse contexto que Guedes (2006) aponta como alternativa o trabalho
com a literatura nos cursos de licenciatura em Letras. A proposta parece um tanto óbvia
quando se considera que a literatura faz parte da matriz curricular desses cursos. Mas a
proposta do autor vai mais além: ele defende que todo o trabalho de formação no curso
seja pautado pela literatura. E mais: que o aluno seja, desde o princípio do curso,
também um produtor de literatura e paralelamente a esse processo de produção literária
o aluno seria posto paulatina e gradualmente em contato com os clássicos de nossa
literatura, ficando sob a responsabilidade do professor estabelecer o diálogo profícuo
entre essas duas produções.
Conquanto seja inovadora e arrojada, a proposta do autor não nos parece
exequível. Num país continental como o Brasil, é temerária uma decisão desse porte,
que poderia comprometer a inserção desses futuros profissionais no mercado de
trabalho, pois, ainda que apresente aspectos promissores do ponto de vista do
amadurecimento de sua competência linguística, a decisão levaria a um não
cumprimento de parte da matriz curricular do curso. Além do mais, cremos que nos falta
a nós, docentes, uma maturidade profissional e uma independência intelectual suficientes
para tocar adiante tal proposta. Falta-nos ainda um longo caminho a trilhar. Porém não
deixa de ser sedutora a perspectiva de um trabalho dessa grandeza num contexto de
pouca ou nenhuma leitura.
De acordo com Antônio Cândido, quando se pensa no papel da literatura na
formação do ser humano, a primeira coisa que nos ocorre é uma função psicológica. De
acordo com esse autor,
A produção e a fruição desta [da literatura ] se baseiam numa espécie denecessidade universal de ficção e de fantasia, que decerto é coextensivaao homem, pois aparece invariavelmente em sua vida, como indivíduo ecomo grupo, ao lado da satisfação das necessidades mais elementares.E isso ocorre no primitivo e no civilizado, na criança e no adulto, noinstruído e no analfabeto. ( CÂNDIDO, 2012, pp.82-83 )
Enfatizando a grandeza da literatura, o autor indiretamente estabelece uma
negação do lado pragmático que insistimos em buscar nela quando a associamos ao
trabalho em sala de aula.
Falando também do papel da literatura, em especial da poesia, Eliot (1990) ressalta
que sua única grande função social é dar prazer. Ora, nesse ponto é possível
estabelecermos uma ligação entre esses dois aspectos aparentemente díspares: a
669
grandeza da literatura e a perspectiva de usá-la como uma possibilidade para
proporcionar ampliação da competência leitora de alunos; noutras palavras: a concepção
da literatura como um veículo de letramento.
De grande relevância para esse trabalho são as reflexões de Pinheiro ( 2015 ), que
ao tratar do trabalho com a literatura na sala de aula nos lembra que, num primeiro
momento, o objetivo principal não deve ser “priorizar a transmissão de um saber sobre a
literatura – histórico, estrutural, contextual”. O que deve dirigir nossas ações é o
compromisso de “formar leitores de literatura, e não críticos literários” ( PINHEIRO, 2015,
p. 145 ).
No tópico seguinte, procuraremos aprofundar um pouco mais essa discussão,
direcionando o foco das reflexões para o trabalho com a literatura em forma de poesia na
sala de aula como uma possibilidade de formar leitores.
4.A poesia na sala de aula: prazer e diferença
Como já se mencionou anteriormente, Eliot ( 1990 ) nega toda e qualquer função
social da poesia. Segundo ele, a poesia não exerceu papel social no passado e é
provável que não venha a fazê-lo no futuro. Ao afirmar isso, o poeta não está negando o
valor da poesia, óbvio. Para ele, as formas primitivas do gênero épico e a saga, pelo
lugar que ocuparam ao longo da história, e pelo tipo de verso que apresentavam entre
povos que ainda não dominavam a escrita, devem ter sido de grande utilidade para o
aperfeiçoamento da memória. Mas desenvolver e aprimorar a memória não é função da
poesia. Igualmente não é função da poesia passar informações. Como também não é sua
função ensinar, discutir princípios filosóficos ou religiosos. A função específica de cada
uma dessas poesias se relaciona ao assunto ao qual elas estão vinculadas, como a
didática, a filosofia ou a religião.
Para esse poeta e ensaísta, o compromisso da poesia, já o dissemos antes, é com
o prazer. Além disso, a poesia pode estabelecer uma diferença em nossas vidas. “Todos
compreendemos, creio eu, tanto a espécie de prazer que a poesia pode proporcionar
quanto a diferença que, para além do prazer, ela pode oferecer às nossas vidas” ( ELIOT,
1990, p. 29 ).
A proposta de trabalho intensivo com a poesia nas salas de aula de um curso de
Letras no interior de Goiás relaciona-se com o ponto de vista de Eliot. Os alunos que
compõem a população desse curso não se diferenciam daquele quadro apresentado
pelos estudiosos discutidos em seções anteriores. São, em sua grande maioria, pessoas
com pouco ou nenhum histórico de leitura, oriundos de lares igualmente sem esse
histórico. Consequentemente muitos deles não apresentam intimidade com qualquer tipo
670
de texto, não leem com fluência e, claro, não conseguem ter prazer nenhum na leitura; o
que se busca, então, é uma formação leitora por intermédio do prazer.
Claro que a educação básica tem sua grande parcela de culpa na manutenção
desse quadro. Um trabalho feito de forma eficiente poderia aproximar um pouco mais o
estudante do texto literário, quer em prosa quer em poesia. De acordo com Pinheiro
(2015), a escola tem falhado nessa sua missão. Quando se trata da leitura de poemas, a
situação é ainda mais séria:
Até há poucas décadas, os livros didáticos de língua portuguesa [...]traziam capítulos de teoria do verso, que eram aplicados de formatécnica, seca, independente de o aluno ter ou não uma experiência deleitura de poemas. Se por um lado a teoria do verso não perturba mais ojovem, por outro, a poesia no nível médio é estudada, no primeiro ano, apartir do gênero lírico, novamente pouco importando se o leitor tem ou nãovivência de leitura de poemas. Logo a seguir os poemas são retomadospara assimilação das características das escolas literárias, sempre emnúmero pouco significativo para comprovar determinada característica dopoeta e do estilo de época a que pertence (PINHEIRO, 2015, p. 144 ).
O autor aponta a necessidade de se buscarem alternativas metodológicas que
favoreçam mudanças no quadro ora vigente. Segundo ele, para que essa mudança
ocorra, é necessário “...que haja propostas que sinalizem para a vivência com o texto
literário capaz de formar leitores”( id., ib. ).
Defendemos que um trabalho com o texto literário capaz de formar leitores deve ser
aquele pautado no princípio do prazer, conforme propõe Eliot ( 1990 ). E é tomando esse
princípio como norte que se vem desenvolvendo o trabalho com o texto poético na
condução da pesquisa em foco.
O poeta escolhido para este trabalho foi o mineiro Donizete Galvão. Dono de uma
poesia densa e contundente, ao mesmo tempo que revestida numa linguagem
aparentemente simples, esse poeta tem todos os requisitos para agradar tanto ao leitor
maduro como àquele em formação. Em um artigo publicado no jornal A Tarde Cultural,
em 1996, ele expõe seu ponto de vista a respeito da literatura contemporânea e da força
da tradição sobre ela. Pondera que já virou lugar-comum dizer que não há romance
possível depois de Joyce ou que “Mallarmé levou a poesia a um reino de refinamento que
não pode ser alcançado”. Longe de negar a importância da tradição mencionada, Galvão
critica, porém, a insistência na valorização excessiva dessa tradição literária e aponta
perigos decorrentes da manutenção de mitos. Refletindo sobre a influência de Mallarmé,
Galvão afirma que “presos a essa corrente que faz do poema um artefato, e do poeta
uma máquina de fazer poemas, muitos giram em falso em sua esterilidade. Muitos tentam
imitar sua técnica, sem conseguir chegar à poética”. ( p. 10 ) O resultado é uma poesia
de recortes, em que, na ânsia de se tirar gorduras, muitos poetas cortam-lhe a carne e os
músculos. O medo do ridículo de parecer lírico tem levado ao excesso de brevidade e
671
concisão, o que, para Galvão, impede o grande salto que a poesia exige. Defende o autor
de Mundo Mudo que a concepção da arte como um produto divino tem provocado o
surgimento de um produto artificial, um bibelô estético.
Concebendo uma poesia que vai na contramão do “bibelô estético”, e assumindo
corajosamente que poesia é também inspiração - a que ele dá nome de visitação -, o
mineiro apresenta uma poesia que agrada ao leitor, mesmo àqueles com pouca ou
nenhuma vivência literária, como é o caso da população dessa pesquisa.
A estratégia para o trabalho com sua poesia tem sido aquela defendida por Pinheiro
(2015), que é tomar o texto como ponto de partida e ir penetrando no seu âmago,
dialogicamente. Para tanto segue-se à risca a proposta de Antonio Cândido, de se
fazerem leituras insistentes do poema; ler e ler incansavelmente, buscando em cada
verso, em cada palavra, o desvelamento de seus mistérios, a percepção de novos
sentidos. E à medida que se vai avançando nesse exercício, os sentidos vão sendo
construídos, quer oportunizados pelo ritmo, pela seleção e combinação de palavras ou
pelas imagens. O poema abaixo ilustra a poética desse autor:
ObjetosAgora,homens são coisas,badulaques penduradoscomo galinhas na peia, pelas feiras,de cabeça para baixoà espera de compradores.
Agora,mercadorias têm vida própriaSaracoteiam quinquilhariasdiante dos homens-coisasque continuamcom pés atadose bicos ávidos.( GALVÃO, Mundo mudo, 2003, p. 65 )
O primeiro passo para o trabalho com um poema é a sua fruição, por meio de uma
leitura compartilhada, o que fazemos várias vezes, sem pressa. É importante que a
primeira leitura, porém, seja feita pelo professor que, por sua vez já experimentou
solitariamente o poema, seu ritmo, sua composição interna, à busca do melhor tom. Uma
leitura apressada, sem esse preparo, pode comprometer a recepção do poema e afastar
o leitor em formação que se quer cativar. Esse gênero, mais que qualquer outro, exige
habilidade acentuada do leitor e isso só vem com muito trabalho.
A partir dessas leituras, vai –se construindo o diálogo com o grupo. Nesse ponto,
retomamos o ponto de vista de Pinheiro ( 2015, p. 145 ), segundo o qual nesse momento
“ o objetivo nuclear é o de formar leitores de literatura e não críticos literários; [...] o papel
672
do professor, nesta perspectiva, é o de mediador da leitura e, para tanto, terá que cultivar
a capacidade de ouvir o outro, de pôr em relevo sua fala...” Lembra o autor que essa
atitude não significa, porém, aceitar como definitivo tudo que se diz sobre o texto, mas
colocar em discussão as diferentes maneiras de recepção do poema.
Ao trabalharmos com o poema acima, percebemos uma certa surpresa no início. A
pouca vivência com o texto poético faz com que muitos ainda tragam uma memória de
poesia que difere dessa poética cultivada por Galvão. Acostumados com a ideia de que
poesia é derramamento sentimental e confessionalismo, sentem um certo estranhamento
diante de uma poesia envolvendo elementos prosaicos, pouco poéticos, como a imagem
de “galinhas na peia/pelas feiras”, colocada à guisa de esclarecimento da metáfora dos
“homens-coisas”, “badulaques”. Passado, porém, o primeiro impacto, vão percebendo os
sentidos que se insinuam. José Paulo Paes (1997) esclarece que esse é o papel da
metáfora: ocultar para em seguida desocultar. Numa brilhante imagem, esse autor
compara o emprego da metáfora com aquela brincadeira muito comum que se faz com
crianças pequenas de se esconder o rosto e perguntar “cadê”?, para pouco depois
mostrá-lo, exclamando “Achou!”. Segundo esse autor, a surpresa e a alegria da criança
ao ver o rosto desaparecido ressurgir é a mesma do leitor diante da descoberta de um
sentido até então oculto. Ressalta ainda o poeta e ensaísta que é preciso comedimento,
pois assim como a criança se desinteressa e procura outro brinquedo se houver demora
na desocultação do rosto, assim também o leitor se afastará de uma poesia
desmedidamente elaborada e hermética, ou, nas palavras de Galvão: um bibelô estético.
Assim, dialogicamente, os sentidos vão se definindo, à medida que se vão
observando os detalhes do texto. No caso do poema acima, até os aspectos formais
aparentemente mais ingênuos ganham força. A estrutura paralelística das duas estrofes
já não se mostra casual, tampouco a medida dos versos, mais longos na segunda
estrofe. Isso remeteria à supremacia da “coisificação” do homem no mundo
contemporâneo? A imagem final do poema não deixa dúvidas quanto à inexorabilidade
do nosso estar no mundo: homens-coisa, continuamos com pés atados e bicos ávidos,
expostos em feiras livres.
Cagiano (2004), ao falar sobre Mundo Mudo, afirma que, nesse livro, Galvão
consolida sua relação afetiva e poética com suas raízes, sem,contudo lançar uma visão piegas ou cair numa dicção rebarbativadas lembranças caóticas do passado. Mais do que afirmar oapreço pelas origens ou entender o que sugere um espaçogeográfico e social, Donizete demarca um território de reflexões,concentrando-se não apenas em desvelar o místico sentido da(con)vivência interiorana, demarcada por valores e signos. Vaialém, confrontando-se com seu estar no mundo numa perspectivauniversal ( CAGIANO, Jornal do Brasil, 2004 ).
673
Essa é uma das grandes marcas da poesia de Donizete Galvão e a razão principal
que nos motivou a tomá-lo para o desenvolvimento desse trabalho. Dono de uma escrita
contudente, ricamente elaborada a ponto de resultar aparentemente simples, o mineiro
traz para o leitor pedaços de suas raízes, elementos banais de suas memórias que, no
fim e ao cabo, reconhecemos como nossas pela universalidade que atingem.
O poema abaixo também gerou acirrada discussão entre os sujeitos da pesquisa,
sobretudo pelo salto que o poeta realiza do trivial de uma água de cisterna para a
densidade da existência humana.
CisternaÁgua parada de poço.Só um feixe de luz da luavem tocar-lhe a superfície.
Não mais se ouve a música da carretilha.Não mais se ouveo balde batendo nas paredes de tijolos
e a água a se derramar.Ninguém mais lava o rostoe a bebe com sofreguidão.
Água parada de poço: Ambos estamos estáticos,
Imersos no negrume da noite. ( GALVÃO, Mundo mudo, 2003, p. 17 )
Como se vê, a presença da memória é um traço marcante da poesia de Galvãol.
De acordo com Yakozawa (2015, p. 47), “... quando imagens da memória pessoal
comparecem de modo indeterminado, não estamos diante de uma poesia estrita do eu ou
de uma poesia autobiográfica stricto sensu”. Isso porque o poeta pode trabalhar esses
dados de modo a tirar deles as marcas estritamente pessoais, de forma que o texto
resulte despersonalizado, sem, contudo, perder a sua humanidade. E o trabalho com
essa pesquisa vem demonstrando o acerto da escolha desse poeta. Nas diversas etapas
em que o trabalho se desdobra – saraus, dramatizações ou simples leitura, fruição e
debate – a grandeza da poesia desse poeta sido reconhecida, o que nos leva a sonhar
com a possibilidade de estarmos, com ele, seduzindo e formando leitores.
5. Conclusão
Preocupados com a formação leitora dos alunos de Letras, a opção pela texto
poético se deu por razões diversificadas, mas a principal delas é a brevidade desse texto,
que favorece uma abordagem densa em espaços menores de tempo. Além disso, esse
gênero se abre a abordagens lúdicas tão necessárias numa etapa em que se busca em
primeiro lugar a sedução desse aluno. Retomamos Eliot ( 1990, p. 29 ), que defende que
674
a poesia tem apenas duas funções sociais: dar prazer e estabelecer diferença. A primeira
dessas funções é condição sine qua non para que o trabalho se efetive. Jamais se
formarão leitores de um gênero que causa desprazer. E esse objetivo os resultados
parciais da pesquisa mostram que vimos alcançando. O grau de envolvimento dos alunos
nas atividades e a adesão às propostas indiciam esse resultado positivo. E quanto à
segunda função? Como seria essa diferença?
Para esse poeta e ensaísta, todo povo deve ter sua poesia, porque isso faz
grande diferença para a sociedade, da qual se beneficiam mesmo aqueles que afirmam
não gostarem do gênero. Eliot ( 1990 ) lembra que, além de favorecer a manutenção da
identidade e independência de uma língua, a poesia influencia a capacidade de
sentimentos e expressão de emoções de um povo. E o que é melhor: essa diferença que
a poesia promove atinge a todas as pessoas, independentemente de sua classe social.
Para ilustrar a força da poesia sobre uma nação, Eliot usa a imagem de um avião que
cruza o céu. Afirma ele que se estivermos enxergando o avião desde o momento que ele
aparece no céu, seremos capazes de acompanhá-lo com o olhar até muito distante, até
onde outras pessoas que não o viram antes não o divisarão no espaço.
Tem sido esse nosso objetivo com a poesia: ampliar a formação leitora dos alunos
de forma que seus olhares se tornem mais perspicazes, capazes de perceber no espaço
que os cerca aquilo que os não leitores não conseguem.
Referências
BAGNO, M. Sete erros aos quatro ventos: a variação linguística no ensino de português.São Paulo: Parábola, 2013.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 16ª ed.São Paulo: Ed.Hucitec, 2009.
BORTONI-RICARDO, S.M. O professor pesquisador: Introdução à pesquisa qualitativa.São Paulo: Parábola, 2011.
CAGIANO, R. Cartografia das raízes. E.M. Caderno de Poesia, Jornal do Brasil, BeloHorizonte, 2004.
CÂNDIDO, A. O estudo analítico do poema. São Paulo: HumanitasPublicações/FFLCH/USP, 1996
____. A literatura e a formação do homem. In Palestras. Disponível em: periódicos.bc.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/, 2012. Acesso em 14.01,2015
CASTILHO, A.T. Variação dialetal e ensino institucionalizado da língua portuguesa. InBAGNO, M, ( Org. ) Linguística da norma. São Paulo: Loyola, 2004.
ELIOT, T.S. A função social da poesia. In ____. De poesia e poetas. São Paulo:Brasiliense, 1990
EZPELETA, J.; ROCKWELL, E. Pesquisa Participante. São Paulo: Cortez, 1989
675
GALVÃO, D. Mundo Mudo. São Paulo: Nankim Editorial, 2003
____. Ruminações. São Paulo: Nankim Editorial, 1999
____. Contra o bibelô estético. In A Tarde Cultural. Salvador: Bahia, out. 1996
GUEDES, P.C. A formação do professor de Português: que língua vamos ensinar? SãoPaulo: Parábola, 2006.
KLEIMAN, A. Letramento na contemporaneidade . Rev. Bathtiniana. São Paulo 9 ( 2 ): 72-91, Ago/Dez 2014
LUCCHESI, D. Norma linguística e realidade social. In BAGNO, M. Linguística da norma.São Paulo: Loyola, 2004, pp. 63-92.
PAES, J.P. Para uma pedagogia da metáfora. In PAES, J.P. Os perigos da poesia e
outros ensaios. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997
PINHEIRO, J.H. Contribuição da Estilística para o ensino da poesia. Rev. Via Atlântica.São Paulo, nº 28. 143 – 159, dez/2015
YOKOZAWA, S.F.C. Reconfigurações da memória na poesia brasileira contemporânea.In YOKOZAWA, S.F,C.; BONAFIM, A. ( Orgs.) Poesia brasileira contemporânea etradição. São Paulo: Nankim, 2015