Post on 25-Sep-2015
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
DEPARTAMENTO DE HISTRIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
A FAMLIA BEIJA-FLOR
LUIZ ANSELMO BEZERRA
NITERI
2010
1
LUIZ ANSELMO BEZERRA
A FAMLIA BEIJA-FLOR
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Histria da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para a obteno do
Ttulo de Mestre em Histria.
Eixo cronolgico: Histria
Contempornea.
Linha temtica: Poder e Sociedade.
Orientador: Prof. Dr. Marcos Alvito Pereira de Souza
NITERI
2010
2
Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat
B574 Bezerra, Luiz Anselmo. A famlia Beija-Flor / Luiz Anselmo Bezerra. 2010.
243 f.
Orientador: Marcos Alvito Pereira de Souza.
Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Histria, 2010.
Bibliografia: f. 243.
1. Escola de samba - Rio de Janeiro (RJ). 2. Jogo do bicho. 3. Ditadura militar - Brasil, 1964-1979. 4. Poder. 5. Famlia - Aspecto poltico. I. Souza, Marcos Alvito Pereira de. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo.
CDD 394.25098153
3
LUIZ ANSELMO BEZERRA
A FAMLIA BEIJA-FLOR
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Histria da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para a obteno do
Ttulo de Mestre em Histria.
Aprovada em agosto de 2010.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
Prof. Dr. MARCOS ALVITO PEREIRA DE SOUZA
PPGH UFF
___________________________________________
Profa. Dra. ADRIANA FACINA GURGEL DO AMARAL
PPGH UFF
___________________________________________
Profa. Dra. KARINA KUSCHNIR
PPGSA UFRJ / IFCS
___________________________________________
Profa. Dra. SIMONI LAHUD GUEDES (SUPLENTE)
PPGA UFF
___________________________________________
Profa. Dra. LEILA MARIA DA SILVA BLASS (SUPLENTE)
PEPGCS PUC / SP
NITERI
2010
4
Ao amigo Daniel Madruga, de conselheiro amoroso a anjo da guarda (in memoriam)
5
AGRADECIMENTOS
A gratido tema central no universo da famlia Beija-Flor. E se o ato de agradecer
tem sempre um carter impositivo e custoso, espero, no entanto, manifest-lo da forma mais
espontnea possvel, do fundo do meu corao.
uma satisfao poder dizer a meus pais que valeu a pena toda a dedicao que
tiveram pela minha educao ao longo desses anos, eles sentiram de perto o drama dos
ltimos momentos na elaborao do trabalho, e com muita compreenso, na certeza de que a
transmisso de tudo aquilo que aprendi ser a sua maior compensao. E da mesma forma,
acredito que tenha sido com minha querida irm e meu cunhado-irmo.
Foi um prazer imenso conhecer pessoas to interessantes ligadas ao mundo do samba e
que estavam aqui pertinho sem que eu me desse conta. Espero, humildemente, poder retribuir
o tanto que aprendi fazendo alguma coisa pelo samba e pelo carnaval, j que at hoje s foi
beneficirio do envolvimento com essas maravilhas do povo brasileiro.
Para evitar esquecimentos, quero deixar registrado o meu agradecimento ao conjunto
da famlia que no pequena , para todos do ramo dos Bezerra, dos Batista, dos Pereira,
dos Nascimento e dos Teixeira. Apenas um agradecimento especial ao Pedro Jr., que foi
decisivo na minha passagem do rock and roll para o samba.
E sem os amigos eu no teria chagado ao trmino da luta, so tantos... Agradeo ao
pessoal da rua onde me criei e aos colegas dos outros pedaos de Nilpolis que costumo
frequentar que todos fiquem aqui representados pelo Luciano, pelo Eduardo, pelo Marcos
(teacher), pelo Antnio Carlos, pelo Nelsinho, pelo Fabiano, pela Filomena, pelo Mrio
Quintana, pelos Luses, pelo Marcelo, pelos Andrs e pelo Alberto. Quero lembrar a galera da
UFF atravs dos diferentes grupos de amigos que giram em torno do Cadu e do Rafael, do
Douglas, do Guilherme, do Jonas e do Fabrcio, da Sabrina e do Vincius, e da dona AP.
A Ela e outras mulheres, meu eterno carinho.
Aos professores da banca examinadora quero agradecer pelo tanto que suas sugestes
contriburam para evoluo do trabalho. O curso de antropologia urbana da professora Karina
Kuschnir, alm das timas amizades que me proporcionou, apontou o caminho da dissertao.
As observaes dos professores Marcelo Badar e Adriana Facina foram fundamentais para o
maior embasamento do trabalho em pontos mais relacionados s suas respectivas linhas de
pesquisa, e isso deu realmente muita riqueza dissertao.
A excelncia do PPGH UFF assegurou timas condies para a realizao da
pesquisa, sou muito grato bolsa CAPES com a qual fui contemplado. Espero ter cumprido as
6
metas do programa com a qualidade do trabalho, que foi fruto de muita dedicao. Atravs da
Silvana, quero manifestar minha gratido a todos os funcionrios da Ps. E aproveito para
lembrar dos colegas que deram a maior fora no trabalho com as transcries: Morgana,
Fernanda, Paulo, Lucinha e Leonardo.
Reservo um agradecimento especial professora Leila Blass, ao nosso grande amigo
tricolor sem palavras! e professora Maria Lcia Montes, esta pessoa queridssima que
luxo s e, informalmente, teve um papel essencial na minha orientao.
Ao meu querido mestre e amigo Marcos Alvito quero manifestar o reconhecimento do
quanto que tem sido importante para mim dentro e fora do campo cientfico. Nos ltimos
anos, foi ele a pessoa com quem aprendi as melhores jogadas, e embora seja um grande
apaixonado pelo samba, foi seu estilo Bob Dylan sempre se transformando na rea de
pesquisa uma das maiores inspiraes que tive ao longo dos anos na UFF.
Agradeo ao que faz parte de tudo e de todos, porque acredito na existncia de uma
fora maior que nos guia.
7
ela, Maravilhosa e soberana, De fato nilopolitana. Enamorada deste meu pas ela, A deusa da passarela Razo do meu cantar feliz. ela, Um festival de prata em plena pista, o sorriso alegre do sambista, Ao ecoar do som de um tambor... Beija-flor minha escola, Minha vida, meu amor
A deusa da passarela, samba-exaltao de autoria de Neguinho da Beija-Flor
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RESUMO
O trabalho apresenta uma anlise das relaes institucionais entre jogo do bicho e escola de
samba enquanto suporte do esquema de poder familiar montado no municpio de Nilpolis
durante a ditadura militar e que se encontra em pleno vigor ainda nos dias atuais. Abordamos
num primeiro momento vises macro-polticas que relacionam a projeo dos dois ramos do
poder familiar interferncia militar na Baixada Fluminense. Entretanto, o estudo aprofunda a
reflexo sobre a adeso ao regime por parte das lideranas das famlias Sessim e Abrao na
medida em que se assenta nos pressupostos de um modelo epistemolgico atento relevncia
de dados fragmentrios, ou seja, indcios soltos que foram identificados no exame de fontes
jornalsticas, de arquivo e fontes orais, estas produzidas mediante a realizao de entrevistas
de acordo com a metodologia da histria oral. Em funo disso, a pesquisa aponta para um
conjunto mais amplo de fatores que teriam contribudo para a consolidao, pelas referidas
famlias, de uma tradio de atuao poltica baseada no lugar. A relao dos chefes do
esquema com setores da comunidade local tratada considerando-se a dimenso simblica do
sistema de trocas que se centralizou na figura do banqueiro do bicho e presidente de hora da
Beija-Flor, Ansio Abrao David, e foi estruturado atravs da organizao carnavalesca na
forma de uma economia do dom. Portanto, o universo simblico do esquema poltico
analisado no trabalho com a demonstrao de que se compe tambm pela interligao de
elementos da memria dos imigrantes de origem libanesa estabelecidos na localidade e de um
conjunto de valores incorporados do sistema do jogo do bicho. Seguindo a proposta
etnogrfica do olhar de perto e de dentro, tomamos a viso de antigos moradores de Nilpolis
vinculados Beija-Flor acerca do contexto em que esto inseridos e das prticas que
desenvolvem como ponto de partida para explicao dos mecanismos que articulam as redes
sociais responsveis pela sustentao da estrutura de poder estudada. Em sntese, argumenta-
se que a vitalidade do esquema familiar est associada capacidade de articulao
desenvolvida por suas lideranas atravs do controle de organizaes que permitem a
manuteno, e reproduo, de vnculos estabelecidos tanto nas redes de sociabilidade de
mbito local quanto em setores externos esfera do municpio e ao mundo do samba.
Palavras-chave: escola de samba; jogo do bicho; poder familiar; ditadura militar.
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ABSTRACT
The paper presents an analysis of the institutional relations between jogo do bicho and
samba school as part of the support of the family power scheme set up in Nilpolis during the
military dictatorship, which fully works until the present time. To begin with, it is going to
present macropolitician views which link up the projection of the two realms of the family
power with the military interference in Baixada Fluminense. Nevertheless, the study goes
deeper into the reflection about Sessim and Abrao family leaders sticking to the military
regimen according to the tenets of an epistemological pattern concerned to the relevence of
fragmentary data, that is, unattached clues identified in jornalistic sources, files and interviews
as well. The latter were produced according to the oral history metodology. Because of this,
the study indicates a larger number of factors which may have contributed to the
consolidation of the political tradition of the referred families in the locality. The relation of
the scheme leaders with the local community sectors is treated considering the symbolic
dimension of the exchange system which has been centered in the figure of jogo do bicho
leader and also honorary president of Beija-Flor samba school, Ansio Abrao David. This
exchange system was structured through the carnavalesque organization under the form of the
gift economy. Therefore, the symbolic universe of the political scheme is analysed in this
paper with the demonstration that it is also compounded by the interconnection of Lebanese
immigrant memory elements locally settled and a group of values incorporated in the jogo do
bicho system. Following the ethnografic proposal of a close and inner look, we collected
opinions from ancient Nilopolis dwellers linked to Beija-Flor about the context in which they
are inserted and about the activities they develop as a starting point to explain the mechanisms
that articulate the social nets responsible for the support of the power structure studied here.
In short, it is discussed that the family scheme vitality is associated with the capacity of
articulation developed by its leaders through the organization control which allow the
maintenance and reproduction of established links both of the local sociability nets and of
sectors out of the city and the samba world.
Key words: samba school; jogo do bicho; family power; military dictatorship.
10
Sumrio
Introduo 12
Captulo I
1. A Interferncia militar na Baixada Fluminense e seus desdobramentos em Nilpolis 21
2. Os negcios do jogo do bicho em Nilpolis antes e depois do golpe de 1964 31
3. A Escola de Samba Beija-Flor e a ditadura militar 46
4. Abertura poltica e aumento da concorrncia no espao poltico-partidrio 57
Captulo II
1. Uma tradio familiar de ajuda ao semelhante 65
2. O universo simblico dos jogos em Nilpolis 82
3. A Beija-Flor dos anos de sacrifcio 85
4. Os Abrao David e os tempos de sucesso da Beija-Flor 93
5. O luxo e a grandiosidade da Beija-Flor 97
6. Al, papai! A famlia Beija-Flor te ama! 103
Captulo III
1. Nilpolis e seus centros de sociabilidade 120
2. Bloco Associao Carnavalesca Beija-Flor 123
3. Escola de Samba Beija-Flor 126
4. As demais associaes carnavalescas nilopolitanas na rede local de lazer 130
5. A Escola de Samba Beija-Flor como uma alternativa de lazer 132
6. A aproximao dos Abrao David com a Escola de Samba Beija-Flor 140
7. Voltando questo dos enredos de exaltao do regime militar 149
8. A contratao do carnavalesco Joosinho Trinta 151
9. O samba-enredo e a quadra 158
10. A dimenso espetacular dos desfiles da Beija-Flor 178
11. O barraco 183
12. Toma l, d c 194
11
13. Os projetos assistenciais da Beija-Flor de Nilpolis 204
14. As festas religiosas promovidas por Ansio 209
Concluso 222
Fontes 226
Bibliografia 229
Anexos
1. Os carnavais da Beija Flor de Nilpolis 234
2. Os compositores campees 237
3. As letras dos sambas-enredo de 1973 a 1978 239
4. Listagem dos prefeitos de Nilpolis 241
5. Genealogia dos ramos do poder familiar 242
6. Mapa das principais ruas e avenidas do municpio de Nilpolis 243
12
Introduo
A Beija-Flor se destaca entre as escolas de samba do Rio de Janeiro por ser
considerada uma espcie de domnio familiar. No entanto, o incio de sua histria em muito
antecede a direo dos Abrao David, comea pela fundao como bloco carnavalesco em 25
de dezembro de 1948. A passagem condio de Grmio Recreativo Escola de Samba veio
em 1954, e, segundo relatos de antigos componentes, teria resultado da iniciativa de uma das
lideranas mais importantes da poca, o compositor Silvestre David dos Santos, popularmente
conhecido como Cabana. Foram muitos carnavais no sobe e desce caracterstico das
pequenas escolas, transitando entre os trs grupos definidos pela antiga diviso dos desfiles
carnavalescos, at o retorno definitivo ao grupo de elite do carnaval carioca, o Grupo 1,
com a apresentao dos chamados enredos de exaltao da ditadura nos carnavais de 1973, 74
e 75, estando a escola nesse momento sob a presidncia de Nelson Abrao David. No entanto,
foram as conquistas de 1976, 77 e 78 que se constituram atravs da memria no marco de
uma nova fase associada atuao dos irmos Nelson e Aniz Abrao David, o Ansio. Com a
permanncia da escola junto s grandes do carnaval carioca ficando assegurada pelo
primeiro tricampeonato, passou-se a conferir aos Abrao David o status de verdadeiros
donos da Beija-Flor.
certo que a escola de samba faz parte, de uma forma ou de outra, da vida de quase
todos aqueles que tm residncia em Nilpolis, mesmo que s se lembrem disso por conta da
proximidade do carnaval. Eu no saberia dizer se foi exatamente a pesquisa das minhas
origens nilopolitanas o que levou realizao deste trabalho. Embora nascido e criado em
Nilpolis, as influncias da famlia de imigrantes nordestinos contriburam muito para me
deixar meio que distante do povo do samba, e por essa razo creio que nos primeiros
momentos da pesquisa realmente no estivesse observando algo to familiar.
O desejo de explorar o universo da Beija-Flor s se confirmou no momento em que
finalmente me dei conta do objeto de estudo que estava relativamente prximo de mim e que
traria a oportunidade de abordar temas interessantssimos carnaval, poltica, jogo do bicho,
religio e grande aprendizado numa primeira experincia de pesquisa. No fosse a
oportunidade do curso Samba, Festa e Cultura Popular, ministrado pelo professor Marcos
Alvito na graduao em Histria da UFF no ano de 2001, e que teve como uma das leituras o
artigo da professora Maria Lcia Montes sobre a questo do erudito e do popular no contexto
do carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro, no qual ela se refere a toda uma
13
experincia de campo no barraco da Beija-Flor na poca em que Joosinho Trinta era
carnavalesco da escola1, o impulso para o trabalho talvez no tivesse surgido. Ora, deixou-me
bastante intrigado o fato de uma pesquisadora residente na cidade de So Paulo saber tanto
sobre a escola, e eu, morando a dez minutos da quadra, quase nada! Essa situao de certa
forma vergonhosa para um rapaz nilopolitano recm formado em Histria me levou a buscar
orientaes com os referidos professores para no perder a chance de aventurar a pesquisa.
As primeiras entrevistas visando a realizao do trabalho foram feitas em 2005. Como
eu no tinha vnculo com pessoas da Beija-Flor nem experincia em pesquisa de campo, e,
alm disso, sentia um medo tremendo de ser interrogado sobre as intenes do estudo, a sada
foi recorrer aos contatos de conhecidos meus com pessoas que pertencessem escola ou
tivessem feito parte dela em um dado momento. De incio, as entrevistas aconteceram
justamente com ex-componentes da escola, algo que me ajudou a desfazer o receio em tratar
de certos temas nas conversas e acabou se tornando uma preparao para o contato com
antigos componentes que conheci a partir da. No total, foram quinze entrevistados entre ex-
componentes e componentes ativos da Beija-Flor, sendo que seis deles no mais participavam
da escola no momento em que decidiram colaborar com o trabalho. Outros cinco
colaboradores alm desses foram: um descendente libans e sua esposa brasileira, um ex-
artista do barraco que no era exatamente componente da escola, um antigo morador de
Nilpolis e militante partidrio de esquerda e um sambista da regio que no faz parte da
Beija-Flor. Atravs desses contatos, passei a acompanhar atividades desenvolvidas na quadra
de ensaios ao longo do ano e tambm alguns momentos do processo de confeco do desfile
no barraco da Cidade do Samba.
Tendo como proposta de pesquisa abordar a escola de samba enquanto ponto de
articulao do esquema de poder montado pelas famlias Sessim e Abrao em Nilpolis,
permaneci durante um bom tempo acreditando que as informaes obtidas atravs das
entrevistas e observaes de campo eram muito superficiais, principalmente no tocante s
relaes entre a escola de samba e o jogo do bicho. Somente atravs de referncias terico-
metodolgicas adequadas foi possvel entender que, mesmo apresentando-se de forma
dispersa, os dados disponveis poderiam dar embasamento a uma anlise consistente. Em
primeiro lugar, destaco a relevncia do pressuposto fundamental do chamado paradigma
indicirio, que apresento aqui nas palavras do historiador Carlo Ginzburg:
1 Montes, Maria Lcia Aparecida. O erudito e o popular, ou as escolas de samba: a esttica negra de um espetculo de massa. In: Revista USP, 32 (1996-1997): 6-25.
14
[...] Se as pretenses de conhecimento sistemtico mostraram-se cada vez mais como veleidades, nem por isso a ideia de totalidade deve ser abandonada. Pelo contrrio: a existncia de uma profunda conexo que explique os fenmenos superficiais reforada no prprio momento em que se afirma que um conhecimento direto de tal conexo no possvel. Se a realidade opaca, existem zonas privilegiadas sinais, indcios que permitem decifr-la. 2
A partir do momento em que me dei conta que os prprios atores sociais poderiam
estar fornecendo indicaes para a reconstituio de uma profunda conexo capaz de
explicar o funcionamento da estrutura de poder familiar, pereceu-me muito apropriado adotar
como proposta metodolgica o modelo etnogrfico denominado por Jos Guilherme Magnani
como olhar de perto e de dentro. Isto no tem a ver necessariamente com a fundamentao do
estudo atravs de uma pesquisa de observao participante com o intuito de trazer tona
detalhes escondidos, mesmo porque sustenta esse autor que o mtodo etnogrfico no se
reduz a uma tcnica, ele pode usar e se servir de vrias, de acordo com as circunstncias de
cada pesquisa. Na perspectiva de Magnani a etnografia seria:
... antes um mtodo de acercamento e apreenso do que um conjunto de procedimentos. Ademais, no obsesso pelos detalhes que caracteriza a etnografia, mas a ateno que se lhes d: em algum momento, os fragmentos podem arranjar-se num todo que oferece a pista para um novo entendimento. Em suma: a natureza da explicao pela via etnogrfica tem como base um insight que permite reorganizar dados percebidos como fragmentrios, informaes ainda dispersas, indcios soltos, num novo arranjo que no mais um arranjo nativo (mas que parte dele, leva-o em conta, foi suscitado por ele) nem aquele com o qual o pesquisador iniciou a pesquisa. Este novo arranjo carrega as marcas de ambos: mais geral do que a explicao nativa, presa s particularidades de seu contexto, pode ser aplicado a outras ocorrncias; no entanto, mais denso do que o esquema terico inicial do pesquisador, pois tem agora como referente o concreto vivido.3
Nesse sentido, atravs de um exame atencioso que possibilitou a reorganizao de uma
srie de indcios acerca da interferncia militar na Baixada Fluminense como fator
determinante para a montagem do esquema de poder das duas famlias desenvolveu-se a
abordagem macro-poltica que deu origem ao primeiro captulo. Nele, entram em cena como
principais personagens os membros do crculo de deciso do poder familiar, que so os
representantes dos Sessim e dos Abrao com atuao no campo poltico-institucional e os
banqueiros do jogo do bicho ligados a este ltimo ramo de parentesco.
2 Ginzburg, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e histria. Trad. de Federico Carotti. So Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 177. 3 Magnani, Jos Guilherme Cantor. De perto e de dentro: notas para uma antropologia urbana. In: Revista Brasileira de Cincias Sociais, vol 17, n 49, So Paulo, junho de 2002: 11-29. p. 17.
15
No segundo captulo que o conjunto dos atores sociais envolvidos na trama passa a
fazer parte efetivamente da anlise, a comear pelo trabalho de interpretao dos valores que
tomam como referncia para descrever em seus prprios arranjos o universo social em que
atuam. Nessa perspectiva assumimos definitivamente a proposta do olhar de perto e de
dentro, e no sentido de analisar o poder familiar considerando a viso nativa a seu respeito.
A categoria famlia est associada ao conjunto de imigrantes libaneses que se
estabeleceram como comerciantes em Nilpolis, serve como referncia para que os antigos
componentes descrevam a Escola de Samba Beija-Flor enquanto espao de socializao em
sua primeira fase e tambm como smbolo da estrutura de poder chefiada por Ansio, da a
escolha do ttulo do trabalho. E a partir dela procuramos identificar outras categorias nativas
que fazem parte do conjunto de valores dos atores sociais inseridos no universo de pesquisa
para compreend-lo como uma totalidade, conforme prope Magnani:
Assim, uma totalidade consistente em termos de etnografia aquela que, experimentada e reconhecida pelos atores sociais, identificada pelo investigador, podendo ser descrita em seus aspectos categoriais: para os primeiros, o contexto da experincia, para o segundo, chave de inteligibilidade e princpio explicativo. Posto que no se pode contar com uma totalidade dada a priori, postula-se uma a ser construda a partir da experincia dos atores e com a ajuda de hipteses de trabalho e escolhas tericas, como condio para que se possa dizer algo mais que generalidades a respeito do objeto de estudo. 4
A categoria do familiar e todas as outras que surgiram interligadas a ela amizade,
respeito, honra, generosidade, lealdade foram definidas nos termos do pesquisador a partir
de escolhas tericas, e nesse sentido as consideraes de Pierre Bourdieu acerca da teoria do
dom ocuparam um lugar central na construo do segundo captulo.
Contudo, tais categorias so construes que correspondem a determinadas relaes
sociais, e foi no sentido de explicit-las que teve desenvolvimento o terceiro captulo do
trabalho. Nessa etapa foi possvel demonstrar como so organizadas redes sociais atravs da
estrutura de uma escola de samba, o que nos permite compreender porque ocorre a ampliao
da influncia social dos banqueiros do jogo do bicho na medida em que se relacionam com as
agremiaes carnavalescas.
Alguns esclarecimentos importantes precisam ser feitos ainda nessa etapa introdutria.
As entrevistas realizadas no mbito da pesquisa seguiram o modelo da chamada histria de
vida, entretanto, havendo uma conduo para o relato de experincias acerca da trajetria de
cada um dos colaboradores na Beija-Flor. Apenas no caso daqueles que no so componentes
4 idem, p. 20.
16
da escola nem ligados ao mundo do samba adotou-se um foco especfico, como por
exemplo, a memria dos desdobramentos da interferncia militar em Nilpolis, ou ento do
estabelecimento das famlias de imigrantes libaneses na localidade.
A questo da memria central no trabalho, a comear pelas prprias referncias
temporais definidas pelos atores sociais que j revelavam interpretaes sobre o passado: a
Beija-Flor dos anos de sacrifcio no seria a mesma dos anos de sucesso. Mas antes de
qualquer apropriao em meio s diversas categorias propostas para a memria convm
reconhecermos a sua condio primordial de fenmeno social. Michael Pollak observa,
sobretudo, o fato da memria se caracterizar como um fenmeno construdo coletivamente e
submetido a flutuaes, transformaes, mudanas constantes5. Nessa linha de raciocnio,
uma definio pertinente aparece na sntese elaborada por Ciro Cardoso no tocante ao
conceito de memria coletiva:
Em primeira aproximao, poder-se-ia definir a memria coletiva como um conjunto de elementos estruturados que aparecem como recordaes, socialmente partilhadas, de que disponha uma comunidade sobre sua prpria trajetria no tempo, construdas de modo a incluir no s aspectos selecionados, reinterpretados e at inventados dessa trajetria como, tambm, uma apreciao moral ou juzo de valor sobre ela. Em ambos os nveis, tais ingredientes se modificam no tempo segundo mudem as solicitaes que, em diferentes situaes histrico-sociais, faam ao passado as instncias organizadoras da conscincia social. 6
Na verdade, como o ato de recordar prprio de cada pessoa, lidamos propriamente
com conjuntos heterogneos de memrias, sendo todas elas de alguma forma mediadas.
Portelli observou muito bem como que a noo de memria dividida deve ser empregada em
sentido amplo, evitando a persistncia do raciocnio baseado na simples oposio entre uma
memria oficial marcada por intenso trabalho de organizao, e uma memria dos dominados,
esta, dotada de espontaneidade, como se estivesse num estado de pureza.7 Interessaria, no
entanto, o trabalho de subverso de memrias subterrneas num silncio imposto por
circunstncias que as impedem de aflorar, mas isto sem desconsiderar que os prprios
dominados compartilham valores e referncias temporais com os dominantes.8
5 Pollak, M. Memria e identidade social In: Est. Hist., Rio de Janeiro, vol. 5, n10, 1992: 200-212. p. 201. 6 Cardoso, C. F. Um historiador fala de teoria e metodologia: ensaios. Bauru, SP: Edusc, 2005. p.17. 7 Portelli, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de junho de 1944): mito poltica e senso comum. In: Ferreira, Marieta. M. e Amado, Janana. (coords.) Usos e Abusos da Histria Oral. Rio de Janeiro: FGV, 1998. p. 126-127. 8 Pollak, M. Memria, esquecimento, silncio In: Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol.2, n 3, 1989: 3-15. p. 4.
17
As citaes de trechos das entrevistas realizadas no mbito da pesquisa aconteceram
de acordo com alguns critrios: primeiro, para explicitar que determinadas informaes
apresentadas no trabalho no so afirmaes do pesquisador; segundo, quando o entrevistado
descreve uma determinada situao que perderia a riqueza da narrativa caso fosse reelaborada
nas palavras do autor; e por fim, para indicar como as categorias nativas so articuladas na
argumentao do discurso dos atores sociais.
A preocupao em manter preservada a identidade dos entrevistados me obrigou a
utilizar nomes fictcios para todos, ficando mantidos apenas os nomes das personalidades
pblicas envolvidas no contexto da pesquisa. Procurei apresentar o mnimo possvel de
informaes pessoais sobre os colaboradores do trabalho, tentando mencionar apenas os
papis que desempenham ou desempenharam na agremiao carnavalesca (compositor,
baiana, diretor, arteso, artista ou profissional do barraco). Todavia, a omisso de certas
informaes a seu respeito ou a no citao de determinadas falas trariam um prejuzo
considervel para o trabalho. Lidamos com a investigao de universos sociais em que as
relaes se estabelecem face-a-face, isto imps a necessidade de adotarmos um esquema
metodolgico que defende justamente a aproximao com os atores.
Embora no tenha entrevistado representantes do crculo de poder das famlias Abrao
e Sessim, apostei na anlise de fontes jornalsticas em que so publicadas entrevistas
concedidas por eles e textos cuja autoria costuma ser atribuda aos mesmos. Basicamente, so
os materiais oficiais de imprensa da Escola de Samba Beija-Flor, e antes de apresent-los cabe
um esclarecimento importante sobre a grafia dos nomes dos principais personagens da
pesquisa. Em primeiro lugar, Ansio foi como o banqueiro do jogo do bicho e presidente de
honra da Beija-Flor, Aniz Abrao David, ficou popularmente conhecido em Nilpolis, antes
mesmo de se tornar contraventor. Optei por utilizar a primeira forma ao longo do texto, sendo
que nas citaes dos materiais de imprensa de Beija-Flor e outras fontes jornalsticas podem
aparecer tambm as seguintes grafias: para o nome popular, Anzio; e para o sobrenome da
famlia, Abro ou Abraho. S mesmo verificando o documento de identidade de Ansio ou
de um de irmos para se saber a grafia correta...
E em relao aos materiais oficiais de imprensa da Beija-Flor, trata-se de duas
publicaes, uma delas o jornal O Beija-Flor, que passou a ser reeditado em julho de 2009.
O projeto teve incio em dezembro de 2004, com a distribuio mensal e gratuita dos nmeros
do jornal sendo feita atravs do barraco da Cidade do Samba e do Centro Social da Beija-
Flor, sempre em tiragem de dez mil exemplares. Entre meados de 2008 e junho de 2009
houve uma interrupo da produo. A equipe de redao do jornal composta por
18
profissionais especializados, que possuem trajetria tambm no mundo do samba. No so,
porm, os mesmos representantes da equipe responsvel pela segunda das publicaes a que
estamos nos referindo, pois um outro grupo de profissionais j est envolvido desde 2002 com
a edio anual da revista Beija-Flor de Nilpolis uma escola de vida, tendo assumido papel
mais significativo na construo de uma certa imagem mtica de Ansio.
Convm observar que em ambas publicaes as inmeras menes ao nome de Ansio
jamais fazem qualquer associao de sua pessoa s atividades da contraveno. Em vista da
qualidade da produo grfica da revista, que tem tiragem de 60 mil exemplares, podemos
supor um alto investimento na realizao do projeto. A distribuio ocorre no perodo do
Carnaval, de forma gratuita, e se d em alguns setores do Sambdromo no dia do desfile da
Beija-Flor; depois, uma certa quantidade de exemplares fica disponvel aos visitantes do
barraco. Se pensarmos na popularidade que a Beija-Flor conquistou nos ltimos anos, e
considerando o espetculo das escolas de samba como um evento turstico internacional,
compreende-se que o alcance da revista muito amplo, o que potencializa de maneira
extraordinria o trabalho de promoo pessoal dedicado a Ansio.
Capa do jornal O Beija-Flor, fevereiro de 2010
19
Capa da Revista Beija-Flor, fevereiro de 2007
A proposta editorial da revista contm dois pontos bsicos, alm do tema principal que
desenvolvido em funo de alguma data comemorativa no mbito da agremiao
carnavalesca. Em primeiro lugar, os editores afirmam que a revista tem como meta principal
modernizar o relacionamento da Beija-Flor com a sociedade, tentando ampliar a famlia
Beija-Flor com a conquista de novos simpatizantes e, por outro lado, fortalec-la mediante a
valorizao dos componentes annimos, na promoo do que seria um resgate de suas
memrias.9 O segundo ponto diz respeito divulgao dos trabalhos assistenciais realizados
atravs da escola de samba com o patrocnio de seu presidente de honra.
H uma estrutura bsica definida em funo das sees permanentes que compem o
corpo da revista e das falas de personagens centrais. Aps o editorial, rigorosamente, vem
uma mensagem de Ansio, como se estivesse dando as boas vindas ao pblico do desfile, e em
seguida, depois do ndice, vem a fala de Farid Abrao David, irmo mais novo de Ansio e
atual presidente administrativo da Beija-Flor de Nilpolis. Depois disso que se apresenta um
longo texto explicativo do tema de enredo a ser desenvolvido no desfile carnavalesco do
respectivo ano, intercalando-se uma srie de propagandas.
Uma fala tambm especial, e que est presente em todas as edies, a do deputado
federal Simo Sessim. Essa no aparece numa posio fixa, s vezes vem logo no comeo da
revista, em outras vem mais pelo final. Sempre assume a forma de um pronunciamento na
tribuna da Cmara Federal, ressaltando-se a relevncia do tema de enredo da Beija-Flor e seu
papel, assim como das escolas de samba em geral, enquanto smbolo de brasilidade.
9 Revista Beija-Flor uma escola de vida. Fev. 2007.
20
H uma seleo de textos distribudos de forma mais flexvel, aparecendo espalhados
no corpo da revista, sendo de autoria de jornalistas e pesquisadores convidados que colaboram
no tratamento de assuntos relativos histria do carnaval. Artigos e reportagens
especialmente dedicados escola de samba so quase sempre preparados pelos prprios
membros da equipe de comunicao, e nesse sentido ganha destaque uma seo voltada para
divulgao dos projetos assistenciais mantidos por Ansio.
Mesmo que sejam fontes indiretas, produzidas a partir de todo um trabalho
institucional, elas so ricas na medida em que apresentam as lideranas do poder familiar da
forma como desejam aparecer publicamente. Portanto, os materiais de imprensa produzidos
oficialmente em nome da diretoria da escola de samba so uma base para identificarmos os
valores que fazem parte do universo dos Sessim e dos Abrao e que, de certa forma, so
compartilhados por aqueles que esto vinculados s famlias.
21
Captulo I
1. A interferncia militar na Baixada Fluminense e seus desdobramentos em Nilpolis
O autor de um relevante estudo sobre a histria recente da Baixada Fluminense
considera o caso do municpio de Nilpolis como modelo mais bem acabado de controle
poltico baseado na conjuno entre poder militar, poder familiar e contraveno.10
Em seu trabalho, o socilogo Jos Cludio Alves observa a situao poltica do
municpio a partir da reestruturao promovida pela ditadura nas relaes de poder que
prevaleciam at o momento na regio. De um modo geral, a interferncia militar teve como
diretriz a supresso, com enfraquecimento ou cooptao, das formas de oposio existentes e
daquelas que se apresentassem apenas como futura ameaa. E para tanto, um conjunto de
aes bem definidas foram realizadas: cassaes de prefeitos e vereadores, fechamento e
ocupao de cmaras e prefeituras, imposio de interventores e presso para o ingresso no
partido governista.11
De fato, as aes associadas interferncia militar e seus desdobramentos no plano
macro-poltico constituem os primeiros elementos para uma abordagem da estrutura de poder
montada sob o comando dos membros da primeira gerao de descendentes das famlias de
origem libanesa Sessim David e Abrao David, estabelecidas em Nilpolis desde o incio da
dcada de 1930. Contudo, se faz necessrio avaliar at que ponto a interferncia teve suas
determinaes, e assim saber se a adeso ao situacionismo aps o golpe de 1964 explica por
completo a ascenso poltica das famlias.
As vises que sero apresentadas em debate neste captulo so basicamente
formulaes de autores consultados em meio bibliografia existente sobre as relaes de
poder na Baixada Fluminense durante a ditadura militar. No entanto, alguns dos antigos
moradores de Nilpolis que concederam entrevistas no mbito desta pesquisa constroem
tambm um ponto de vista acerca da ascenso das referidas famlias na poltica local a partir
de uma associao com o advento do golpe. E por essa razo, foram selecionados alguns de
seus relatos nos quais se destacam comentrios sobre a trajetria dos atores que chefiam, ou
chefiavam, os tipos de organizaes em foco nesta primeira parte do estudo (diretrios locais
de partidos, jogo do bicho, escola de samba, agncias de servios, rgos pblicos).
Provavelmente, pelo fato de terem sido pessoas de militncia atravs da poltica partidria ou
10 Alves, Jos Cludio Souza. Dos bares ao extermnio: uma histria da violncia na Baixada Fluminense. Duque de Caxias-RJ: APPH,CLIO, 2003. p.104 11 ibid., p.101
22
da atuao em movimentos sociais e no campo da cultura, os entrevistados imprimem tal
enfoque na construo de seus discursos.
Algumas fontes jornalsticas tambm tero relevncia, posto que a proposta de
anlise no se prende ao carter de denncia que tais fontes geralmente assumem, mas
procura detectar a partir de situaes de crise no seio do poder familiar quase sempre com
ampla repercusso pblica informaes que possam ser teis no trabalho de elucidao de
certos aspectos do funcionamento da estrutura de poder investigada.
Uma breve reconstituio do quadro poltico nilopolitano anterior interferncia
militar revela a projeo de certas lideranas diretamente envolvidas com o processo de
emancipao que fez com que Nilpolis, em 1947, deixasse de ser distrito de Nova Iguau.
Por exemplo, o ento deputado Lucas de Andrade Figueira foi considerado o principal
articulador desse processo, ficando conhecido como o libertador de Nilpolis, e assim
passou a contar com grande prestgio e exercer influncia sobre o eleitorado na cidade.12
O primeiro prefeito eleito do municpio, Joo Moraes Cardoso Jnior13, havia sido o
primeiro vereador distrital por Nilpolis na Cmara Municipal de Nova Iguau, em 1937.
Portanto, na poca da emancipao j tinha uma certa trajetria, e pelo que se percebe de
informaes disponveis acerca de sua atuao possvel considerar sua forte influncia na
localidade, tanto que veio ser eleito prefeito mais duas vezes, em 1954 e 1967.
Alm de Lucas Figueira, dois polticos que iniciaram a carreira atravs de mandatos
no legislativo municipal se tornaram deputados influentes, sendo o primeiro Egdio Mendona
Thurler, vereador na primeira legislatura, de 1947 a 1950, prefeito entre 1951 e 1955, e
deputado por trs legislaturas consecutivas pelo PTB at se tornar Secretrio de Viao e
Obras Pblicas no governo de Badger Silveira em 1962. Jarbas Lopes foi vereador na segunda
legislatura, de 1951 a 1954, e provavelmente se tornou deputado pelo PSD em 1958, tendo
depois desempenhado alto cargo na Cia. Transportes da Baa da Guanabara, no governo de
Badger Silveira, assim como Egdio Mendona. Ambos foram chefes de seus partidos em
Nilpolis durante a existncia do antigo estado do Rio.
A concepo acerca da atividade poltico-partidria no municpio que aparece em
relatos sobre o perodo anterior ao golpe revela uma atitude de condenao moral s correntes
prticas de corrupo eleitoral e intercmbio de favores, dando a entender que seriam traos
caractersticos de uma cultura poltica da regio, alm da pistolagem.
12 A maioria das informaes sobre os polticos influentes em Nilpolis antes do golpe de 64 foram obtidas em Arajo, Raimundo. Figuras e fatos de Nilpolis. Rio de Janeiro: Revista Continente Editora, 1964. 13 Cf. Anexo 4 (pg. 241).
23
Miranda, antigo morador que veio ainda menino para Nilpolis nos anos 40, fala com
indignao sobre a forma fraudulenta como os processos eleitorais transcorriam na localidade
no perodo anterior ao golpe. O tom de sua fala talvez seja justificado pela idia de que os
aspectos considerados negativos da prtica poltica venham sendo ao longo do tempo
mantidos e reforados pelas lideranas partidrias que se sucedem. Ele recorda uma ttica
ilegal de campanha utilizada nas eleies municipais em benefcio de um dos polticos
anteriormente mencionados e de um vereador tambm conhecido na poca:
[...] Egdio Mendona Thurler foi o grande lder do PTB em Nilpolis. Esse camarada, logo quando chegou aqui, trabalhava na cancela [era fiscal de barreira] que tinha entre Nilpolis e Anchieta. Tinha cancela dos dois lados, porque l era o estado da Guanabara, era Distrito Federal, e aqui era estado do Rio. Ele trabalhava ali e se elegeu vereador em Nilpolis trazendo gente de fora. Antigamente buscavam as pessoas, isso trazia voto. Tinha vereador, como o Jernimo, que morava na Piedade, ele transferia l da Piedade 400, 300 votos e se elegia aqui. O Egdio trazia caminhes de Porcincula com gente pra votar em Nilpolis, e se elegia vereador aqui. Tinha gente que trazia de favela do Rio de Janeiro 200, 300 pessoas, pra votar aqui na poca. [...] Havia realmente muita corrupo em campanha. 14
Contando com a eleio para a segunda legislatura municipal (1951/54), Jernimo
Moreira da Rocha exerceu o mandato de vereador por trs vezes consecutivas15. A prtica em
larga escala do transporte de eleitores, para alm de ser indicativa do alto grau de corrupo
existente na poca, aponta tambm para a ideia dos deputados influentes em Nilpolis at
1960 no tirem sua votao exatamente concentrada no municpio.
Havendo, portanto, lideranas articuladas de tal forma para o controle do eleitorado,
supe-se que a ascenso de polticos concorrentes fosse algo bastante difcil. No entanto, em
1962, um membro da famlia Sessim, o doutor Jorge David, conseguiu se eleger deputado
estadual no antigo estado do Rio pela UDN, partido sem grande representao em Nilpolis16.
A profisso de mdico teria favorecido seu ingresso na carreira poltica, na medida em que
conquistou popularidade trabalhando numa regio que apresentava enorme precariedade nos
servios de sade, e isto em associao com um estilo de fazer poltica baseado no
intercmbio de favores atendendo as pessoas sem cobrar.
Contudo, at os primeiros desdobramentos do golpe de 64 no poder local no se tinha
uma concepo acerca das famlias Sessim e Abrao enquanto um grupo poltico - o que se
14 Entrevista concedida ao autor a 17 de jan. de 2009. 15 Arajo, op. cit., p. 11 e 12. 16 O breve perfil que Raimundo Arajo traa em seu livro para cada uma das figuras polticas que atuaram em Nilpolis entre a emancipao e o golpe de 64 leva a crer que havia uma representatividade menor na localidade de polticos ligados a UDN frente a polticos de outros partidos, como o PTB, o PSD e mesmo o PTN do deputado Lucas de Andrade Figueira.
24
passou a perceber com facilidade dos anos 70 para c. A identificao dos Sessim com as
foras que apoiaram a ditadura o que constitui a base para a construo de uma certa
memria que atribui famlia a fora de um grupo poltico que estava emergindo.
O marco inicial da interveno militar em Nilpolis se d com a cassao, ainda em
64, do prefeito Eracydes Lima de Carvalho, que embora no tivesse tendncia poltica
esquerdista, como recorda um dos colaboradores desta pesquisa, viu-se obrigado a deixar o
cargo. Com isso, ocupou a vaga o ento Procurador Geral de Nilpolis, Joo Batista da Silva,
que ficou frente da prefeitura entre 1964 e 1966. At o fim do mandato em 1967, assumiram
o vice Zlio Sabino Barbosa, e ainda em 66 o interventor Francisco Gonalves Filgueiras.
No dispomos de mais informaes institucionais acerca dessas mudanas no principal cargo
do executivo municipal, portanto, no h como tirar concluses a partir da sobre possveis
interferncias dos polticos identificados com as foras do golpe.17
Contudo, atravs das entrevistas com antigos moradores do municpio tivemos
relatos de situaes a partir das quais constroem uma argumentao no sentido de relacionar a
ascenso poltica das lideranas da famlia Sessim antes mesmo dos representantes do ramo
dos Abrao com os desdobramentos da interferncia militar.
Retomando a entrevista de Miranda, num dado momento aps falar da influncia das
antigas lideranas polticas da localidade, ele comenta:
A famlia deles s comeou a ter ascenso poltica depois que os polticos de antes foram cassados. Quando veio a revoluo, cassaram o Lucas Figueira, o Jarbas Lopes, que na poca acho que era presidente das Barcas; ele foi nomeado, era do PSD. E o Egdio Mendona Thurler era do PTB de Joo Goulart, chegou a ser o primeiro secretrio de governo que teve o estado do Rio sendo de Nilpolis; depois, o segundo secretrio de governo do Rio sendo de Nilpolis, foi Gouveia Filho, secretrio do Brizola. Mas o primeiro que teve, de Nilpolis, foi Egdio Mendona Thurler, que era do PTB, Secretrio de Obras no governo do irmo do Roberto Silveira, Badger Silveira. Ento, depois que esse pessoal foi cassado que houve a ascenso poltica deles.
Observa-se aqui o quanto que a operao limpeza atravs de cassaes teve
impacto sobre Nilpolis ao afastar do cenrio poltico os representantes do legislativo estadual
que tinham na localidade importante reduto eleitoral. Lembrando-se que a capital do antigo
estado do Rio era Niteri, compreende-se a projeo que esses polticos haviam alcanado em
vista dos cargos que ocuparam em setores estratgicos de governo. Portanto, ficava
consideravelmente reduzida a concorrncia contra os situacionistas.
17 Oliveira, Cludio. Nilpolis. In: Torres, Gnesis (Org.). Baixada Fluminense: a construo de uma histria: sociedade, economia, poltica. So Joo de Meriti, RJ: IPAHP Ed., 2004. p. 170. Cf. na seo dos anexos da dissertao a reproduo da listagem dos prefeitos de Nilpolis entre 1947 e 2004.
25
Outras duas vises que sero apresentadas aqui sobre a ascenso poltica das famlias
Sessim e Abrao tm a ver com a atuao de seus principais representantes como
colaboradores dos militares na perseguio aos inimigos polticos do regime.
Na entrevista que me foi concedida por Machado, professor aposentado que
trabalhou na rede pblica de ensino na Baixada Fluminense durante os anos 60 e 70, ele
atribui o papel de delatores a figuras como o ento deputado estadual Jorge David, o professor
Simo Sessim, irmo do deputado, e o professor Ruy Queiroz, filho da proprietria do
Colgio Anacleto de Queiroz, que funcionou em Nilpolis de meados da dcada de 40 at os
anos 80. Machado inicia a fala remontando o quadro poltico da poca:
Veja bem, essa minha viso uma viso, e sendo particular, pessoal, deve ser unilateral, sei l... Mas vamos ver o que acontece em 64. Nilpolis sempre foi um municpio de situao na Baixada Fluminense, vamos chamar assim. Vou rotular, tudo bem? Nunca foi de oposio. Nilpolis sempre esteve com o poder, sobretudo com o poder militar, com o poder daqueles anos de chumbo que ns vivemos de 64 pra c. De Nilpolis saram vrios interventores, que at nem eram pessoas muito bem preparadas pra isso, estavam muito longe disso. Na realidade, foram oportunistas que serviram naquele momento aos interesses, inclusive, ao poder que se instituiu, que se imps populao de uma maneira geral. Ento, voc tem em Nilpolis aquele ncleo que girava em torno do Simo Sessim, do Ansio. E o Ansio nem muito, porque ele sempre foi envolvido com banca de bicho, esse tipo de coisa. Ento, ele era uma figura que quase no saa, s saa de noite. Contraventor era uma figura que s saa de noite, se no a polcia pegava e achacava. Hoje, no. Eles namoram modelos, tomam ch com o presidente, aparecem em carros alegricos. Inclusive, eles usaram a escola de samba at pra pode sair daquela forma de clandestinidade em que eles viviam. Mas o Simo Sessim, o Jorge David, o Ruy Queiroz... A famlia do Ruy Queiroz sempre foi envolvida com isso, tanto que ele foi interventor em Nova Iguau. Eles eram muito ligados ao pessoal dos rgos de represso, ao DOPS, ao Servio Nacional de Informao do Exrcito ali da Vila Militar. Essa gente toda era ligada. [...] Eles eram dedos-duros. A gente chama de dedos-duros, eles eram pessoas que comeavam a apontar e fazer cartrio de quem era comunista e quem no era...18
Pelo retrospecto que foi feito neste trabalho, partindo do momento anterior mais
prximo do golpe de 64, possvel assegurar que as principais lideranas locais estavam
vinculadas ao ento governador do antigo estado do Rio, o trabalhista Badger Silveira. Com a
mudana poltica, a tendncia foi para a projeo de polticos que se identificavam com as
foras do golpe ou ento procuraram se alinhar de forma oportunista a elas. Tanto que, para
os entrevistados Machado e Miranda, a partir da que surgem os sinais da formao de um
ncleo de poder em Nilpolis sendo articulado pelos membros da famlia Sessim, enquanto
colaboradores do regime. E cabe observar a partir do prprio relato de Machado, quando ele
faz meno ao envolvimento de Ansio com o ncleo, que a prpria condio clandestina da
18 Alves, op. cit., p. 104.
26
organizao do jogo do bicho que estava se formando assim como a fragilidade do ponto de
vista financeiro em que se encontrava no momento logo posterior ao golpe deixavam o
contraventor sob grande dependncia da influncia que havia sido conquista pelos Sessim
atravs de sua projeo profissional e poltica.
E ao que tudo indica, a adeso dos Sessim ao situacionismo se deu sem a necessidade
de qualquer imposio, posto que foram partidrios de primeira hora do regime militar. No
trabalho de Alves, o autor assinala a proximidade do deputado Jorge David com a autoridade
militar responsvel pelas articulaes que levaram s principais aes nos municpios da
Baixada durante a interferncia militar, o comandante da 1 Companhia de Polcia do
Exrcito, o capito Jos Ribamar Zamith, da Vila Militar, em Deodoro19.
No que se refere atuao do ento deputado Jorge David como colaborador dos
militares nos assuntos polticos relativos ao municpio, Pedro, outro morador entrevistado por
mim, relata uma situao que vivenciou na condio de militante estudantil:
Bom, quando fazamos aqui o cientfico, foi fundada a Associao Municipal dos Estudantes Secundrios de Nilpolis. E a associao tinha uma atuao bastante razovel porque ela discutia poltica. Havia uma articulao com a UNE, ento, os estudantes aqui ficavam sempre atualizados com a questo poltica... Ns podemos dizer que foi um perodo em que se lia muito, e se procurava se atualizar em relao questo poltica, a questo social. [...] Ento, a associao atuou nesse sentido, quer dizer, havia eleies, tudo direitinho, era um processo democrtico interessante... Mas quando houve o golpe militar, a associao foi perseguida. Foi fechada! No princpio, se no me engano, houve uma interveno; e o estudante que entrou como interventor, a primeira declarao dele que saiu no jornal local, A voz dos municpios fluminenses, dizia que a associao, dali pra adiante, teria um carter recreativo e cultural, no sentido de esportes, essa coisa... Mas que associao de estudante no era pra ficar discutindo poltica! [...] Quando houve interveno aqui, frente disso estava o doutor Jorge David. E ele [o estudante], me parece que era ligado ao doutor Jorge David ou ficou ligado, n. Ele, ento, tinha um pensamento mais direita tambm. Ento, as coisas se fundiram. A primeira declarao dele foi aquela, e realmente ali a associao se acabou. [...] O doutor Jorge David j era deputado estadual. Naquela poca, o estado do Rio era um estado, e a Guanabara era outro. Ento ele era de Niteri, deputado, e ficava l na Assemblia de Niteri. Com a interveno na associao, o ento presidente que tentou resistir, embora o presidente fosse uma pessoa muito querida entre os estudantes, ele no era propriamente, digamos assim: estudante de esquerda. Havia na associao, realmente, outros grupos que se reuniam parte. Havia cursos de formao, havia todo um aprendizado no marxismo. Alguns grupos, mas no o presidente. O presidente no participava desse tipo de discusso. A questo poltica era discutida, mas ele no chegava a ponto de um alinhamento ideolgico, vamos dizer: marxista. Enquanto que outros estudantes, no grupo que eu estava, fizeram toda uma formao nessa rea. E ele, quando houve a interveno, foi preso, apanhou, foi pra delegacia aqui, depois ia ser remetido l para o Exrcito... E ele recebeu l muita pancada na delegacia, n. Ele apanhou muito! E a gente no tinha muito o que fazer. Ento a gente recorreu a um advogado da poca que era alinhado com o nosso grupo, que era o doutor J.C., que procurou aliviar, e tal... E
19 Entrevista concedida ao autor a 20 de set. de 2009.
27
ele acabou sendo solto, porque no representava assim um perigo... Ele era um estudante, n? Que presidia a associao dos estudantes, mas no tinha nenhuma conotao maior que representasse um perigo a para os golpistas. Como eles estavam prendendo todo mundo, ento que dizer, ele foi.20
Primeiramente, entende-se que havia uma iniciativa para organizao dos estudantes
no municpio antes do golpe, e embora estivessem distantes do Centro do Rio e de Niteri,
eles dispunham de um canal de contato com a Unio Nacional dos Estudantes que, juntamente
com o investimento em formao por parte de alguns membros da associao criada em
Nilpolis, fazia com que ficassem atualizados em relao ao debate das questes estudantis e
de carter poltico mais amplo. Assim, a viso de uma localidade isolada, sem movimentao
poltica dos jovens, deve ser compreendida como uma construo decorrente das relaes de
poder que passaram a prevalecer aps o golpe.
A perseguio sobre a associao com a mudana poltica se desenvolveu em etapas
para promover um esvaziamento poltico da mesma. O ento deputado Jorge David aparece
como o principal articulador da presso contra a organizao estudantil, e teria sido hbil ao
adotar primeiramente uma estratgia de cooptao de uma liderana dos estudantes afinada
como seu perfil poltico. A proposta para que a associao assumisse um carter esportivo e
cultural mostrava, para o entrevistado, a inteno de enquadrar a militncia dos estudantes. E
esse novo papel atribudo associao era bem condizente com as atividades a que o
deputado estava ligado, pois teve todo um envolvimento com associaes esportivas na sua
juventude, tanto que chegou a ter um programa transmitido por alto-falante chamado
Nilpolis Esportivo entre os anos 1942 e 1952, foi fundador do time de futebol de vrzea
Central de Nilpolis, mdico do Esporte Clube de Nova Cidade e da Seleo de Nilpolis,
chegando mesmo a ser mdico do time de corao do falecido contraventor Castor de
Andrade, o Bangu Atltico Clube, que foi campeo carioca de 196621.
O relato ressalta diferenas de posicionamento entre os membros da associao, e
isto teria sido explorado na interveno articulada pelo deputado, certamente na tentativa de
dar algum tipo legitimidade a sua ao. Contudo, diante da resistncia dos estudantes
contrrios interveno, partiu-se para a presso violenta que resultou no fechamento da
associao. E mesmo que o antigo presidente tenha sido liberado aps ter sido preso e vtima
de agresses fsicas, sua punio certamente passou a ser concebida como exemplo do que
20 Entrevista concedida ao autor a 16 de set. 2009. 21 Informaes sobre Jorge David foram obtidas em Freitas, Valter. Famlias ilustres nilopolitanas. s.d. 2000.
28
poderia acontecer com outros tipos de insubordinao aos colaboradores do regime militar na
localidade.
O fato de Nilpolis ter sido sempre um municpio de menor expresso em relao ao
de Nova Iguau fez com que muitos professores da regio atuantes no hoje chamado ensino
mdio procurassem trilhar suas carreiras em escolas iguauanas. Segundo informaes que
me foram passadas por Machado, depois que realizamos sua entrevista, houve um grupo de
professores de Nilpolis que tinha muitas afinidades profissionais e polticas entre si e deste
grupo fizeram parte Simo Sessim, que foi diretor do Colgio Estadual Aydano de Almeida,
em Nilpolis, Armando Arosa, um dos antigos proprietrios do Colgio Olindense, localizado
no bairro de Olinda, tambm em Nilpolis, e o professor Ruy Queiroz, cuja famlia era dona
do Colgio Anacleto de Queiroz, como foi dito anteriormente. Machado conta que Rui
Queiroz foi o primeiro do grupo a ingressar como professor no Instituto Rangel Pestana, em
Nova Iguau, importante centro de formao de professores que hoje funciona ao lado da sede
da Coordenadoria da Secretaria de Educao do Estado responsvel pela maior parte dos
municpios da Baixada.
Filiado UDN entre 1962 e 1965, logo que passou a vigorar o bipartidarismo Simo
Sessim se tornou membro do partido da situao.22 Fazendo uma suposio sobre sua
projeo profissional, bastante provvel que o fato de seu irmo Jorge David ter sido j
naquela poca deputado pelo antigo estado do Rio tenha influenciado para que assumisse
entre 1964 e 1969 a direo do Instituto de Educao Rangel Pestana. Sabemos que para se
assumir a direo de escolas estaduais geralmente se faz necessrio algum tipo de mediao
poltica, e naquele momento ainda no havia acontecido a fuso dos dois estados, o que
deixava o deputado Jorge David com um poder de interferncia ainda maior nos assuntos da
Baixada.
Em 1969, Simo assumiu a Secretaria Municipal de Educao de Nova Iguau onde
ficou at 1970, deixando o cargo para subir posio de Chefe do Gabinete Municipal de
Nova Iguau. Foi justamente nesse perodo que esteve frente do governo municipal, como
interventor, o professor Rui Queiroz, com quem Simo tinha amizade alm de afinidades
profissionais e polticas. Desse modo, podemos compreender a fala de Machado quando diz
que saram vrios interventores de Nilpolis. Alm dos dois que tiveram passagem pelo
22 PORTAL DA CMARA DOS DEPUTADOS. Simo Sessim PP / RJ. (biografia, mandatos eletivos, filiaes partidrias, atividades partidrias, atividades profissionais e cargos pblicos, estudos e graus universitrios, atividades parlamentares, condecoraes, obras publicadas, misses oficiais. Documento produzido em 17/11/2009. Disponvel em: http://www.camara.gov.br. Acesso em: 15 de junho de 2010.
29
governo deste municpio23, o nilopolitano Ruy Queiroz, afinado com autoridades militares,
teve grande projeo poltica em Nova Iguau.
E como veremos no terceiro captulo, em consideraes especficas sobre a atividade
de Simo Sessim como parlamentar, por conta de todo esse passado profissional ele criou uma
forte ligao com questes ligadas rea de educao. Professores da rede estadual em
Nilpolis comentam que, h um certo tempo, era comum que profissionais de educao
buscassem apoio do deputado para agilizar transferncias de unidades escolares e obteno de
licenas, ou ento apoio na indicao para cargos de direo nas escolas.
Um episdio da poltica nilopolitana em 1970 pode ser tomado como marco da
conjuno de interesses entre o ramo dos Sessim e o ramo dos Abrao. Trata-se do processo
de impeachment do prefeito Joo Cardoso, poltico muito influente na localidade e que havia
sido eleito para o cargo pela terceira vez em 1967. Naquele momento, dois representantes das
famlias exerciam mandatos polticos pela Arena: Jorge David, no legislativo estadual; e
Miguel Abrao, o irmo mais velho de Ansio Abrao, no legislativo municipal. Uma das
fontes indicadas no trabalho de Alves24, o jornal Correio da manh de abril de 1970, traz uma
reportagem sobre o afastamento de Joo Cardoso. O fato se deu mediante votao da Cmara
Municipal de Nilpolis, sustentado pela acusao de que o prefeito estaria praticando atos
lesivos ao errio da municipalidade. O trecho da reportagem diz:
Por 14 votos contra trs, a Cmara de Vereadores de Nilpolis decidiu, na madrugada de ontem, pelo impeachment do prefeito Joo Cardoso, acusado pelo promotor da Comarca, Sr. Hugo Gonalves Roma, de praticar atos lesivos ao errio da municipalidade. (...) A denncia est fundamentada no excesso de funcionrios que recebiam sem trabalhar e aponta o filho do prefeito, Roberto de Morais Cardoso, como um funcionrio que acumulava cargos na secretaria de finanas no gabinete do prprio prefeito e na superintendncia de servios externos da prefeitura. Do documento consta ainda que ele, usando material da municipalidade e mo-de-obra de servidores, construiu um prdio na Rua Lcio Tavares. O ex-funcionrio Ansio David Abrao, irmo do 1 Secretrio da Cmara, Miguel Abrao, e primo do deputado Jorge David, presidente do Diretrio da Arena local, declarou, no depoimento, que sempre recebeu da prefeitura sem trabalhar, fato que tambm ocorria com cem outros servidores. J o vereador Antonio Porto, compadre do prefeito renunciou comisso especial para a qual foi indicado, alegando que muita gente recebeu dois pagamentos inclusive o chefe da diviso administrativa, arrolado como testemunha no processo, tambm deveria ser punido. 25
23 Cf. Anexo 4 (pg. 241). 24 Op. cit., p. 104. 25 NILPOLIS afasta prefeito Cardoso. Correio da Manh, Rio de Janeiro, 6 fev. 1970. p. 10.
30
A informao de que a votao pelo afastamento do prefeito tenha acontecido na
madrugada nos leva a crer na existncia de uma ao conspiratria. Mas pela indicao de
que a denncia foi encaminhada atravs de um agente da Justia envolvendo testemunhas e o
apoio de polticos que assegura a existncia de uma ao bem articulada. No cabe aqui nos
preocuparmos com a comprovao das denncias, mas apenas assinalarmos que os indcios de
desvio de dinheiro pblico, emprego de parentes como funcionrios fantasmas e o uso de
bens pblicos em funo de interesses particulares eram prticas que s aconteciam mediante
o controle das principais fontes de recursos na esfera municipal. Da o empenho dos Sessim
em conjunto com os Abrao para afastarem do cenrio poltico concorrentes que no haviam
sido retirados pela interferncia militar.
E pode parecer estranha a meno declarao de Ansio sobre o fato de ele mesmo
ter admitido receber salrios sem trabalhar quando estava empregado na Prefeitura. No
entanto, sua motivao em depor contra o prefeito assumindo participao no esquema pode
ser pensada a partir de um simples descontentamento em razo de uma possvel demisso, ou
ento, das garantias oferecidas pelos polticos da famlia em vista dos riscos que correria ao
confirmar uma das acusaes contra Joo Cardoso. Acredito que esta segunda opinio, sem
descarte da primeira, tenha sido o verdadeiro motor em virtude da conjuno de interesses
entre os Sessim e os Abrao. A fala atribuda a um dos aliados do prefeito aponta para o
envolvimento de uma outra testemunha que teria sido beneficiria do esquema. Certamente,
esta talvez estivesse ao lado do grupo emergente, que, logo depois do fato, passaria a contar
com aliados frente do principal cargo do executivo, como foi o caso do emedebista Gilberto
Rodrigues suas relaes pessoais com o poder familiar se sobrepuseram questo partidria
e o interventor estadual Reinaldo Doyle Maia. Tanto foi assim que o professor e advogado
Simo Sessim veio a ser Procurador-Geral de Nilpolis exatamente nesse momento, entre
1971 e 1972, como informa seu perfil no Portal da Cmara dos Deputados.26 Ele se afastou do
cargo provavelmente para lanar sua candidatura a Prefeito nas eleies de 1972.
At aqui, destacou-se basicamente a projeo de um dos ramos do poder familiar em
Nilpolis, e asseguramos que isto aconteceu sem envolvimento direto dos Sessim com a
explorao de atividades relacionadas ao jogo do bicho. Foram membros dos Abrao que
despontaram nesse ramo de negcios ilcitos. Notamos referncias a Ansio nas fontes citadas
que o colocam inicialmente num plano secundrio em relao s decises do crculo do poder
familiar. Convm, portanto, discutirmos sua ascenso nos negcios do jogo do bicho,
26 Op. cit.
31
destacando a relao disso com os desdobramentos da interferncia militar, e sua projeo no
seio do prprio poder familiar.
2. Os negcios do jogo do bicho em Nilpolis antes e depois do golpe de 1964
A explorao de jogos como negcio tem um longo histrico no Rio de Janeiro e,
certamente, o jogo do bicho foi uma das modalidades que teve maior destaque ao longo do
sculo XX. A proibio das operaes das atividades desse jogo data de 1946, e a partir disso
tem incio o processo de organizao do jogo na ilegalidade.27
Existem autores que defendem a associao da difuso do jogo pelo subrbio e pela
Baixada Fluminense com a expanso urbana dessas regies28. Nosso estudo no prope uma
investigao histrica acerca da operao do jogo do bicho em toda Baixada, e desse modo, a
busca de informaes se restringiu situao do jogo em Nilpolis.
As informaes relativas a esse tema especfico que foram obtidas no mbito da
pesquisa provm em boa parte de circuitos que preservam uma memria subterrnea acerca
do envolvimento de membros da famlia Abrao David com o jogo do bicho. Alguns dados
foram revelados publicamente em decorrncia de situaes de instabilidade no seio do poder
familiar, como o famoso caso Misaque-Jatob, em 1981, e o assassinato da ex-esposa de
Ansio Abrao, Eliane Mller, ocorrido em 1991.
Nas consideraes de Michael Pollak, a noo de memria subterrnea aparece
investida de um carter no oficial, como algo que se mantm ao longo do tempo
preservando-se em estruturas informais, podendo aflorar em circunstncias especiais, como
momentos de instabilidade interna no grupo, e especialmente se a partir disso ocorre
reestruturao das relaes de poder acarretando uma reconstruo da memria dominante.29
A maior parte da documentao utilizada na pesquisa foi produzida atravs de
entrevistas realizadas segundo a metodologia da histria oral, porm, especificamente sobre o
funcionamento da organizao do jogo do bicho chefiada por Ansio Abrao, os portadores de
tal memria subterrnea s passaram a fornecer algumas das informaes que dispunham na
27 Entre os estudos especficos existentes sobre o jogo do bicho, foram consultados para a realizao deste trabalho: Da Matta, Roberto e Sorez, Helena. guias, burros e borboletas um estudo antropolgico sobre o jogo do bicho. Rio de Janeiro: Rocco, 2006 e Magalhes, Felipe Santos. Ganhou leva... Do vale o impresso ao vale o escrito. Uma histria social do jogo do bicho no Rio de Janeiro (1890 1960). Tese (Doutorado em Histria Social) Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2005. 28 Queiroz, Maria I. Pereira de. Carnaval brasileiro: o vivido e o mito. So Paulo: Brasiliense, 1992. p. 97. 29 Op. cit. In: Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n 3, 1989: 3-15. p. 8.
32
medida em que se sentiram em condies de depositar um certo grau de confiana no
pesquisador, e mesmo assim, muitos dos relatos sobre o domnio da contraveno
aconteceram fundamentalmente por meio de conversas informais.
Portanto, o que consegui obter atravs de entrevistas e conversas informais com
antigos moradores do municpio aponta para uma pulverizao do capital do jogo do bicho at
fins dos anos 60. Esses moradores ainda recordam os nomes de agentes de pequeno porte que
administravam seus prprios negcios e, por essa razo, eram considerados banqueiros.
Especula-se que o mais bem sucedido fosse o contraventor Faraco, que tambm atuava no
ramo das loterias regulamentadas e nas corridas de cavalo. Alm dele, despontava um
banqueiro de origem italiana, chamado seu ngelo, cujo empreendimento teria sido a porta
de entrada para Ansio no jogo do bicho. Haveria outras figuras, sobre as quais no obtive
maiores informaes alm das alcunhas: Sapurito, Chico Manteiga e Walter Gordo. Todos
administravam seus prprios negcios, e segundo contam, no eram vistos com frequncia
andando pelas ruas do municpio, at residiriam fora.
Em geral, a explorao do jogo do bicho era conjugada com atividades legais, como
era o caso de Faraco, dono de uma loja de loteria. ngelo era dono de alguns imveis. Havia
os donos de uma barbearia do lado da cidade para a praa Paulo de Frontin que tambm
lidavam com banca de jogo do bicho. Os contraventores possuam pontos de apostas no
municpio sem que tivessem reas rigorosamente definidas, e atuavam dentro de um relativo
clima de estabilidade, embora mantivessem firme a concorrncia entre si. Existiria uma
preocupao entre esses banqueiros quanto a novatos que tentavam fazer a abertura de pontos
de apostas. Nesse quadro de concorrncia, atravs do pagamento de suborno a prpria polcia
seria um recurso no combate a competidores, como recorda o morador Pedro:
Era comum em algumas ocasies a polcia fechar um ponto de bicho que pertencia a um banqueiro determinado, e no agia nos outros pontos. Quer dizer, s pegava aquele ponto. Ento se supem que um outro estivesse bancando a polcia pra ir contra o adversrio, n? No concorrente, digamos assim. No havia uma irmandade: Ah! Ns todos bancamos e tal. No era uma situao de equilbrio. E havia tambm novas pessoas querendo bancar, querendo montar ponto. Isso era comum. Normalmente, a polcia agia em cima deles, prendia, batia... Isso tudo mesmo antes de 64.
A diviso das bancas se refletia na operao do jogo do bicho. Assim como
acontecia na cidade do Rio, as apostas podiam ser feitas sob cotaes diferentes de acordo
33
com o valor pago pelo banqueiro dono do ponto. Tambm era comum a prtica da descarga,
que colocava pequenos banqueiros na dependncia de outros mais poderosos.30
A projeo de Ansio Abrao marca um novo perodo na organizao do jogo do bicho
no s em Nilpolis, mas em toda Baixada Fluminense. Ansio, como ficou popularmente
conhecido antes de sua entrada na contraveno, era filho de comerciantes libaneses
estabelecidos no ramo de armarinhos e aviamentos e tinha forte ligao com moradores da
localidade onde se criou. Uma pessoa familiarizada com sua histria conta que o pai de
Ansio teria dvidas em relao ao futuro do filho o morador quis insinuar que Ansio
manifestasse em sua juventude tendncia para envolvimento com atividades ilegais. Em
relao formao escolar, sabe-se que Ansio no tem nvel superior. Um de seus primeiros
trabalhos foi como cobrador de aluguis de um proprietrio de Nilpolis.
O incio da carreira de Ansio no jogo do bicho lembrado em certas verses acerca
de sua histria de vida com referncias a uma passagem prvia pelo trfico de drogas. A ttulo
de exemplo, podemos recuperar um trecho da carta-denncia que foi publicada logo depois do
assassinato de sua ex-esposa, em 1991, em que ela faz afirmaes nesse sentido:
1963. Eu tinha 16 anos. Cheguei cidade de Nilpolis comeando uma vida conjugal com Aniz Abraho David. ramos humildes. Anzio, como chamado por todos, no vivia uma vida muito tranquila nem tampouco to honrosa como ele prprio diz: Vendi muita bala no trem. Passei muita fome! Nunca fui um traficante! Nunca usei qualquer tipo de txico! Nunca matei ningum! Com 16 anos, endolei muita maconha para que ele e eu tivssemos uma sobrevivncia e vendamos. Todos na Rua Odete Braga, em Nilpolis, sabem do nosso passado. O falecido Joo Coelho, grande matador da cidade, sempre quis e fazia de tudo para por um fim a Anzio. Naquela poca e como sempre, a poltica imperava e comandava, e Anzio tinha grandes garantias, como eu tambm. Dois anos, ficamos nesta vida. Foi a que tivemos que sair de Nilpolis, indo para Piedade, morando em casa de um motorista chamado Gaguinho. Ficamos l morando na Rua Ana Quinto. Logo em seguida, Anzio ficou trabalhando como guarda-costas da banca de bicho de Sapurito, Outro [?] e Seu ngelo, que mais tarde veio a casar com uma irm de criao de Anzio (Din). Seu ngelo era um dos capitalistas da banca. Foi ento que um dia Anzio tomou no peito a frente do jogo do bicho. Trabalhei muito, todo tempo ao lado dele. Nunca abri minha boca para falar o que sabia, pois as verdades dele no passavam de mentiras. Apesar das mentiras me beneficiarem tambm, nunca aprovei certos tipos de coisas que faziam e minha vida foi melhorando. [...]31
30 A prtica da descarga era uma espcie de seguro oferecido por banqueiros mais ricos para que os menores tivessem como honrar o pagamento de uma premiao extraordinria. Para tanto, havia algum acordo financeiro entre os contraventores estabelecendo que o menos poderoso transferisse um determinado percentual de seu faturamento. Para consideraes mais completas sobre o mecanismo da descarga nas organizaes do jogo do bicho, cf. Magalhes, op. cit., p. 166. 31 CASO MISAQUE-JATOB ser reaberto. O Dia, Rio de Janeiro, 14 ago. 1991. As linhas de investigao sobre o crime foram em vrias direes na poca: intrigas de Eliane com os dois lados de sua famlia, envolvimento com o jogo do bicho e o trfico de drogas e at divergncias polticas locais. Tanto Ansio Abrao quanto o pai de Eliane, o senhor Dauro Mller, um dos chefes da apurao do contraventor, segundo o jornal da poca, no tiveram qualquer relao comprovada com as mortes. O comentrio que ainda existe em Nilpolis
34
O tom de acusao se fundamenta no fato do trfico de drogas no ser uma atividade
ilegal respeitvel como o jogo do bicho. poca da reportagem, houve a confirmao da
autoria da carta, que passou inclusive por percia grafotcnica. Em conversas informais com
moradores de Nilpolis familiarizados com a histria, pude confirmar tais informaes, e
assim compreender que a participao de Ansio em tal ramo de atividades ilegais foi
importante para sua aproximao com operaes do jogo do bicho.
Certamente, a atuao na organizao de um dos antigos banqueiros de Nilpolis fez
com que Ansio tivesse a clara percepo do potencial do jogo do bicho como negcio, e isto
sem falar na experincia quanto ao modo de operao especfica de tal atividade: na gesto de
recursos financeiros, na obteno da proteo policial e coordenao de pessoal.
Contudo, Ansio era apenas mais um funcionrio da banca. Um conhecido meu
recorda que o viu muitas vezes transitando por ruas da cidade, ainda no barro, com uma
bicicleta que utilizava para recolher dinheiro de apostas nos pontos. Isto deve ter sido
provavelmente na fase em que trabalhava como empregado do antigo banqueiro italiano.
No dispomos de informaes exatas acerca do que teria sinalizado para o bicheiro
que ele poderia tomando no peito, ou seja, usando da violncia, se apossar do negcio do
patro. Pelo que foi colocado anteriormente, seria muito difcil um agente trilhar uma
carreira de sucesso comeando por baixo, e abrindo pontos a seu bel prazer. Tanto era assim
que, segundo um morador de Nilpolis, o feito de Ansio teria causado surpresa nas pessoas
familiarizadas com as operaes do jogo do bicho. Numa conversa informal que tivemos em
Nilpolis no ano de 2005, esse morador me falou:
Na famlia do Ansio, a primeira pessoa que despontou com sucesso financeiro foi seu irmo Jacob Gorila, e sem nenhuma ligao com a contraveno, pois a carreira como policial federal lhe proporcionou tal enriquecimento... Na verdade, Ansio era um z-ningum, no tinha recursos suficientes para financiar negcio de bicho. O controle do jogo aqui na regio era dividido entre banqueiros que possuam uma lgica de compra para passagem de pontos. Eu fiquei sabendo que o Ansio tinha virado banqueiro atravs de um apontador do centro do Rio. Isso tudo para minha enorme surpresa, porque mesmo morando fora de Nilpolis naquele momento, sabia que Ansio no tinha posses suficientes para comprar uma parte do jogo.
que Eliane Mller, aps sua separao com Ansio, passou a falar mais do que devia, tanto que, j preocupada com seu possvel assassinato, empenhou-se em redigir de prprio punho uma carta-denncia em que cita inmeras pessoas, mas em especial seu ex-marido, seu pai e seu irmo. O texto transcrito da carta foi publicado em vrios jornais, tornando-se uma fonte importante para esta pesquisa principalmente porque foi tomada como elemento para a reabertura, dez anos depois, do famoso caso Misaque-Jatob, do qual vamos falar mais a frente.
35
A fala sugere, na verdade, que a implementao de um projeto pessoal de ascenso no
ramo do jogo do bicho exigia muito do recurso violncia. No entanto, em se tratando de um
negcio, no se deve perder de vista a exigncia de capacidade de negociao baseada em
cdigos especficos de tal atividade, alm de senso de oportunidade. Na entrevista de Pedro,
ele conta as experincias de dois senhores que eram irmos, com quem tinha uma relao
prxima, e que foram agentes da contraveno no municpio:
Esses irmos trabalharam no bicho aqui, um deles era dono do ponto e bancava o prprio jogo descarregando para o Ansio, desde que ele passou a ter as bancas todas. Mas o outro irmo, que era mais novo, trabalhou por um bom tempo com banqueiros l de baixo [cidade do Rio], sempre como gerente de pontos, e depois veio a ser gerente aqui na banca do Ansio, talvez num dos principais pontos de Nilpolis, que era um ponto em que havia um volume de apostas muito grande, empregava vrios apontadores de bicho, e ento ele gerenciava aquilo. Esse mais novo trabalhou muito com o Nelsinho, irmo do Ansio, e Nelsinho gostava muito dele, foi quem o colocou como gerente naquele ponto ali... Agora, quanto ao mais velho, eu no posso precisar, mas ele assumiu o ponto de jogo j no final de 63 para o incio de 64. Ento, quer dizer, quando acontece o golpe, ele continua com aquele ponto dele. Ele chegou a emprestar dinheiro ao Ansio na poca. O Ansio foi pedir a ele uma certa quantia, um volume grande, e digamos assim, ele emprestou prontamente. Da que o Ansio, a partir do momento que tomou as bancas, embora no querendo que ningum mais bancasse jogo no municpio, tinha uma certa tolerncia com esse senhor, de saber que ele bancava o prprio ponto, e no interferia. Interessante que um dos irmos do Ansio, o Jacob Gorila, manifestava vrias vezes inteno de tomar o ponto do cara, s que isso no se concretizava por duas razes: primeiro, porque o Ansio no demonstrava interesse nisso, n? E segundo, o irmo mais novo que tambm atuava no jogo se dava muito com o Nelsinho, e sempre que pintava o clima de ameaava, esse mais novo intercedia: No deixa! meu irmo, e tal. Ento, o mais velho bancou o jogo dele at o final. O que ele no conseguia - e a sim vamos dizer que o Ansio seria contra, e talvez tenha influenciado muito -, e tentou algumas vezes, foi colocar novos pontos. Tinha uma pessoa trabalhando para ele quando tentou colocar trs pontos num bairro de Nilpolis, coisa e tal, mas a polcia jogou pesado! Essa presso era sempre a polcia que fazia.
A organizao do jogo do bicho em bases familiares foi um fator central para o
fortalecimento dos negcios chefiados por Ansio. A partir das consideraes de Marcos
Alvito sobre o modo de operao das quadrilhas de traficantes cariocas, temos uma boa
referncia para pensar a organizao do jogo do bicho na ilegalidade levando em conta a
necessidade dos contraventores lanarem mo de estratgias especficas para o cumprimento
de suas funes organizacionais bsicas, como a comunicao, a tomada de decises, o
reconhecimento de autoridade e a escolha de lideranas. A impossibilidade de vincular os
membros da organizao por meio de relaes contratuais formais, assim como estabelecer a
hierarquia em estatutos legais, torna o parentesco direto uma via importantssima para a
transmisso de poder, sendo complementado pelo parentesco indireto, por sua vez, baseado
36
em relaes de afinidade que tambm passam a fundamentar uma srie de laos para a
expanso de negcios ilcitos.32
Alguns dos entrevistados chegam a mencionar que os irmos mais velhos, Jacob e
Miguel, recebiam rendimentos de uma certa quantidade de pontos. Entretanto, s dispomos de
indcios acerca do envolvimento indireto do primeiro com o jogo do bicho. E atravs da
imprensa, temos informaes consistentes sobre a participao de parentes diretos tanto da ex-
esposa de Ansio quanto da atual nos negcios ilcitos do contraventor33. No entanto, o brao
direito de Ansio foi realmente seu irmo Nlson Abrao, pois com ele estabeleceu uma
espcie de sociedade para explorao dos negcios do jogo do bicho em Nilpolis, e a
parceria que resultou no controle da diretoria da Escola de Samba Beija-Flor.
So obscuras as informaes sobre o trfico de drogas em Nilpolis a partir do
momento em que os Abrao tomaram o controle do jogo do bicho em Nilpolis. Sem dvida,
este ramo teve crescimento ao longo dos anos, e por mais que se supunha algum tipo de
autorizao por parte do chefe do jogo do bicho para a realizao do comrcio das drogas em
seu territrio, as informaes disponveis indicam que os contraventores procuraram se
manter afastados da explorao de tal atividade, considerada no respeitvel.
Existe um ponto em comum na viso dos entrevistados a respeito do que teria sido o
fator primordial para a ascenso de Ansio como grande banqueiro na Baixada Fluminense.
Trata-se da idia de que a concentrao dos pontos em suas mos e a verticalizao da
organizao que passou a chefiar teve relao direta com os desdobramentos da interferncia
militar que se acentuou na regio entre 1968 e 1972. Miranda, sendo um morador
familiarizado com a carreira do contraventor, coloca o seguinte:
Quando comearam a prender os bicheiros, muitos foram abandonando, e a o Ansio foi segurando tudo. Segurou o jogo todo e foi expandindo as bancas. O governo militar prendeu os bicheiros todos na Ilha Grande, e esses daqui ficaram com medo, se afastaram e deixaram de criar o jogo. A ele veio e meteu! Tomou conta de tudo. [...] Houve uma cobertura poltica, o negcio cresceu por causa disso. E ele muito inteligente, o Ansio, uma pessoa muito inteligente. E que tambm tem peito pra encarar as coisas, porque para entrar num troo desse, duro como ele era na poca... Pra segurar uma banca de bicho duro, o cara tem que ter peito! E credibilidade de apanhar um emprstimo aqui outro ali... Foi mais ou menos entre 68 e 70 que as bancas foram tomadas, mais ou menos por a. E com a ascenso poltica do Simo e do Jorge David, que eram l do partido do governo, aumentou a credibilidade desses caras junto aos rgos de governo.
32 Alvito, Marcos. As cores de Acari Uma favela carioca. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001. p. 181. 33 Para o caso dos parentes de Eliane Mller, fao novamente referncia a CASO MISAQUE-JATOB ser reaberto. O Dia, Rio de Janeiro, 14 ago. 1991. Em relao participao do irmo de Fabola David, atual esposa de Ansio Abrao, na mfia dos caa-nqueis, isto foi noticiado em OTVIO, Chico. ENREDO de jogo e poltica. O Globo, Rio de Janeiro, 5 abr. 2010, O pas, p.3.
37
O dado acerca da priso dos bicheiros, em dezembro de 1968, est confirmado em
Gspari como ao decorrente da decretao do AI-5.34 E essa medida especfica talvez possa
ser explicada em funo de uma certa postura moralizante defendida pelas lideranas da
corrente militar que se tornava hegemnica a partir de ento no comando do regime.
H controvrsias quanto priso de Ansio junto com os demais banqueiros do Rio
de Janeiro no presdio da Ilha Grande no final daquele ano. Alguns dos antigos moradores que
acompanharam a evoluo do jogo do bicho em Nilpolis no confirmam o fato, como se
verifica no relato transcrito acima. No entanto, existe a verso daqueles que dizem ter sido o
contraventor um dos detidos da poca, mas que teria sido liberado pouco tempo depois atravs
de contatos da famlia com autoridades militares.35
Contudo, parece seguro afirmar que o medo que se abateu sobre os antigos
banqueiros de bicho atuantes em Nilpolis depois da ao repressiva de 68 tenha consistido
numa preocupao efetiva, a partir dali, quanto necessidade de recomposio de conexes
com polticos e autoridades policiais que assegurassem a proteo policial de seus agentes.
Pedro, um dos colaboradores da pesquisa, apresentou uma reflexo bastante
interessante nesse sentido falando das provveis expectativas entre os agentes da
contraveno quanto continuao de seus negcios logo assim que houve o golpe de 64. Ele
colocava que alguns dos antigos banqueiros de bicho provavelmente tivessem o mesmo
pensamento de parte significativa da sociedade brasileira que acreditava numa passagem
rpida dos militares pelo poder, e assim, teriam d