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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
A DIÁSPORA FEMININA E OLHAR HÁPTICO NO LONGA A ÀRVORE DE
MARCAÇÃO, DE JUSSARA QUEIROZ
Daiany Ferreira Dantas1
Ana Lúcia Gomes2
Resumo: Jussara Queiroz é uma profícua cineasta potiguar que esteve radicada no Rio de Janeiro
entre os anos 1970 a 1990, período de sua produção e engajamento como aluna das primeiras
turmas do curso de Cinema da Universidade Federal Fluminense, onde foi ativista e realizadora do
audiovisual, tendo produzido curtas, longas, ficções, documentários e docudramas, numa obra
repleta de indagações estéticas e flertes experimentais. Entretanto, grande parte de seu trabalho
permanece obscuro no cenário da distribuição nacional e pouco explorado pelos estudos sobre o
audiovisual brasileiro. Neste trabalho, abordaremos seu único longa-metragem A árvore de
marcação (1995), realizado e montado ao longo de oito anos, entre o período de abertura política do
país e o início do governo Collor. O filme narra, sob a perspectiva de uma personagem migrante,
mulher e negra, a história da organização de um coletivo político de crianças na luta pelo acesso à
água em sua comunidade, a localidade de Marcação, interior da Paraíba. Explorando a questão do
trabalho infantil, do favoritismo político, a militância das pastorais no campo e os efeitos do
coronelismo no contexto nordestino. O mangue, o canavial, o rio, as canções e os objetos são
tomados pelo que Marks (2000) chama de olhar háptico da realizadora, numa narrativa de migração
e memória investida na personagem narradora, que pode ser confundida com a narrativa migrante
da própria Jussara.
Palavras-chave: Cinema diaspórico. Olhar háptico. Jussara Queiroz
Jussara Queiroz é reconhecida como a primeira cineasta potiguar. Um nome que atravessou
décadas, sendo recorrente em cenários como o Cinema Novo, Cinema Verdade, nas décadas de
1960 e 1970, flertando com o cinema experimental e marginal. Sendo, ainda, uma das poucas
mulheres a figurar na lista panorâmica de realizadores e realizadoras levantada por Lucia Nagib
(2002), em seu livro sobre o cinema da retomada. Dona de um repertório amplo, de traços
complexos, Jussara, precocemente afastada da produção cinematográfica em função de uma
condição neurológica rara que dificulta sua capacidade de expressão, é pouco reconhecida mesmo
em seu próprio estado, onde uma de suas mostras cinematográficas chegou a ser, a priori, rejeitada
pela curadoria do Festival de Cinema de Natal, de acordo com o documentário de Paulo Laguardia,
O Voo silenciado do Jucurutu (2007), que narra a trajetória da potiguar que emigra para o Rio de
Janeiro em busca de uma formação para o cinema. Jussara perseguia um sonho de infância, já que
sua família era proprietária do cinema de bairro da cidade interiorana de Jucurutu, onde nasceu e
1 Doutora em Comunicação (UFPE). Professora do Departamento de Comunicação da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte, Mossoró-RN, Brasil. 2 Mestre em Estudos da Mídia (UFRN). Professora do Departamento de Comunicação da Universidade do Estado do
Rio Grande do Norte, Mossoró-RN, Brasil.
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deu início aos seus experimentos com a caixa mágica, seja na cobrança dos bilhetes na portaria, no
acompanhamento das sessões ou nas tentativas de reprisar aquela magia com brincadeiras com
negativos em lanternas.
O longa metragem A árvore de marcação (1995) levou quase uma década para ser
concluído, tendo sua produção estendida em função da deficitária política de financiamento do
audiovisual na época, período posterior à extinção da Embrafilme. Trata-se da única experiência
deste porte da diretora, que fazia sua primeira incursão no cinema ficcional de longa duração. Em
sua construção, reúne elementos que estão presentes em outras obras de Queiroz. As imagens feitas
em locações reais, que dispensavam a cenografia, o figurino despojado, as atuações com entonação
regional, a captura de gestos e rituais semelhantes aos que são comuns ao cinema etnográfico ou ao
Cinema Verdade.
Exemplar desta herança, por exemplo, é a ideia de “mosca na parede”, com a câmera
posicionada num ângulo fixo, de observador, retratando atividades que simulam o cotidiano de uma
comunidade. A pesca do caranguejo e o trabalho de colheita da cana de açúcar, são exibidos na
realização de atividades encadeadas e repetitivas.
Na composição estética do filme, a câmera experimenta enquadramentos austeros, em
planos gerais e planos médios constantes, intercalados com poucos e significativos closes, para
esboçar a relação entre as personagens e seu meio, marcado pela exploração do trabalho infantil,
pelos dilemas da falta de água e de alimentos. Mas também busca extrair do cenário e da dimensão
física da paisagem que o distingue, a moldura para a percepção da adversidade e do cotidiano
íngreme da comunidade de marcação, com suas folhagens da vegetação da Caatinga, seu mangue,
sua água aparada em baldes no chafariz público, suas chuvas raras.
As passagens de tempo mediadas pela intensidade da lua e do sol, o barulho das águas e o
canto dos pássaros, buscavam traduzir os elementos sensoriais do nordeste paraibano reconhecido
pelo olhar da diretora potiguar, num movimento de encontrar e situar um cenário de um recorte
territorial específico a partir de um sensorium narrativo que despertasse sentimento e identificação
pela paisagem. Um perceber e aperceber-se em cena, num engendramento que pode ser tomado
como diaspórico na narrativa.
A diáspora, um território do sensível?
O conceito de diáspora é bastante difundido nos estudos cinematográficos, com respostas
distintas a depender de em torno de qual horizonte se busca compreender a demanda de
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deslocamento; se territorial, humano, material ou imaterial. Para Hall (2004), o sentido de diáspora
está vinculado ao de nação e trata das trocas simbólicas, muitas delas repletas de resistência e
ressignificação, empreendido pela população de migrantes que demandam sua tomada de parte no
contexto do capitalismo cultural globalizado. Mas, no caso do cinema, essa diáspora se dá não
apenas pelo domínio da tecnocultura cinematográfica para o agendamento de visibilidades. Ocorre
também no tipo de narrativa que realizadores e realizadoras que pautam a margem buscam
empreender. Jussara é uma mulher, uma migrante, uma diretora nordestina formada num centro
regional do Sudeste. Seu trânsito está presente em sua obra pela escolha de histórias que exibem a
problemática do pertencimento a um lugar. A voz e a visibilidade do nordestino e da nordestina são
uma preocupação recorrente em sua obra, que busca enfatizar a dinâmica de pertencimento ao lugar
referenciada numa política de iminente perda do referente com suas origens.
No curta metragem docuficcional Fora de ordem (1983), Queiroz utiliza dramaturgia, em
reconstituições com requintes de experimentalismo, na utilização de material de arquivo e
entrevistas, o caso do agricultor mineiro que enlouquecera ao perder um filho atropelado na
rodovia. O julgamento do caso coloca em pauta a relação do agricultor com a terra, com os
processos de desapropriação da terra pelas tecnologias, no caso das rodovias. E reconstruí de forma
lírica, com contornos sacros da mitologia cristã, o drama do homem que atirava pedras ao vento,
tentando punir o monstro de lata, o carro que matara seu filho.
Relação de pertencimento e perda similar é vista em A árvore de marcação (1995), a relação
com a agricultura e na pesca extrativista, mostra a perda da referência de pertencimento à
comunidade de marcação. A terra para a agricultura de subsistência passa a servir à monocultura, a
pesca não respeita calendários de reclusão. E em meio a isto, a população despossuída da
comunidade deve, por absoluta falta de perspectivas, submeter-se às regras dos capatazes,
atravessadores e ao prefeito que monetariza a água do bebedouro público. É esse cenário que
Jocélia, então uma estudante universitária negra, narradora e protagonista da trama, rememora em
seu processo de adaptação à realidade de imigrante no Rio de Janeiro.
Uma das contribuições para se pensar o cinema e a diáspora a partir de uma perspectiva de
alteridade vem da pesquisadora e realizadora Trinh T. Minh-ha, cuja crítica era direcionada ao
modo como o cinema etnográfico pautado na antropologia falava “sobre” e não “perto” dos sujeitos
que buscava retratar, objetificando-os, por vezes, na narrativa. Foster (1997), analisa que em seu
famoso documentário Reassemblage (1983) sobre as mulheres senegalesas em suas diversas etnias,
Minh-ha busca preservar a dissonância poética dessas múltiplas vozes, abrindo mão de recursos
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como o excessivo voice over descritivo, para deixar que as falas das personagens articulassem
sentidos. Certamente que essa tentativa de falar em proximidade, ou, indo além, em contiguidade
com sujeitos que são centrais numa narrativa de desigualdades, experimenta uma série de gradações
de proximidades e de afastamentos possíveis. Tais contribuições ajudam a pensar os deslocamentos
tanto nos elementos da narrativa quanto no lugar da realizadora. Em que posição a realizadora se
coloca, enquanto feitora, observadora e acumuladora de experiências que são potencializadas pelas
alteridades que demarca nas cenas? É possível pensar a própria realização cinematográfica como
diáspora? Sobretudo quando empreendida por sujeitos que se deslocam em percursos de
identificação de raça, classe e gênero?
Laura Marks (2000, 2002) compreende a composição e das escolhas que concernem ao
próprio cinematográfico ao falar de diáspora. A autora norteia sua investigação nas formas de
exploração do espaço fílmico por realizadores que partem da sua constituição − e das imagens que
preenchem dentro dele − como uma experiência de deslocamento. Em The Skin of film (2000)
grande parte de seu corpus é escolhido de forma a mensurar aquilo que ela chama de cinema
diaspórico, em sua maioria curtas e médias metragens produzidos em videoteipe, inscritos no
modelo etnográfico e documental de produção em países periféricos ou por realizadores/as que
vivem um processo de migração ou exílio. Seu enfoque é nas marcas que o olhar (da realizadora)
imprime ao filme, e em como este cinema media a relação de busca do perdido e de entendimento
do vivido pela lente da distância ou na reconstrução da memória na superfície fílmica.
Ela entende o filme como uma pele tátil, pois mediada por processos sinestésicos que
enaltecem essa instância residual da matéria que abastece suas imagens. Avalia, portanto, de que
forma elementos que constam da produção do visível − objetos, cores, granulações específicas da
película intensificadas pelos closes, na celeridade na movimentação, ou pela câmera subjetiva e
instável − remetem a sentidos que podem ser evocados a partir da imagem. O tipo de imagem
presente nesses filmes, repletas de aproximações e gradações nas quais a câmera tanto substitui
como reconstitui a pele, encampam um cinema de sensações, que se completa na ideia de que o quê
a câmera capta é um outro, algo a ser apreendido, presentificado como um vestígio da memória.
Destas concepções irão advir seus conceitos de sinestesia e imagem háptica.
Lembrando um pouco a perspectiva materialista de Rancière (2005), de que todo texto ou
imagem é, antes, um corpo, Marks evoca a capacidade de nossos corpos recriarem o mundo e o
protagonismo do cinema ao evocar a potência sinestésica e um senso tátil que dela se desprende, e
que a autora chama de sentido háptico. A visualidade háptica advém da investigação da autora
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acerca da fenomenologia de Deleuze, que busca reconhecer os tipos de sentidos e sensações
sinestésicas que as imagens seriam capazes de evocar, observando a distinção que o filósofo faz
entre imagens ópticas e imagens hápticas.
A imagem háptica corresponde à imagem-tempo deleuziana, a imagem óptica, à sua
concepção de imagem-movimento. A percepção óptica privilegia, na leitura de Marks, o poder
representacional da imagem e a percepção háptica recobre a presença material da imagem.
Enquanto uma visão óptica nos direciona, possibilitando completar e compreender os fluxos
narrativos do filme, a háptica o desestabiliza, institui uma desordem na compleição da matéria
fílmica que irá alterar necessariamente as sensações que esta evoca. Para ela,
as imagens ópticas no cinema se endereçam a um espectador que está distante,
distinto e descorporificado. As imagens hápticas convidam o espectador/a a
dissolver sua subjetividade no contato aproximado e corpóreo com a imagem
(MARKS, 2002, p.13, tradução nossa).
Marks (2000) entende que há, em nosso ser no mundo, disponibilidades e aparatos que
mediam nosso sensorium, atentando de modo distinto a certos aspectos materiais, em função das
formas como estes são significados em nossa cultura. E também transformando e re-vendo
experiências e imagens do vivido com olhos de lembrança, exílio e melancolia. A
intersensorialidade cinematográfica se completa na articulação dessas distâncias e não apenas no
reconhecimento e identificação de sensações vividas, mas na percepção, dentro destas, daquilo que
delas nos escapa.
O encontro cinematográfico ocorre não só entre o meu corpo e o corpo do filme,
mas entre o meu sensório e o sensório do filme. Trazemos nossa própria
organização pessoal e cultural dos sentidos para o cinema, e o cinema traz uma
determinada organização dos sentidos para nós, o sensório próprio do cineasta
refratado através do dispositivo cinematográfico. Pode-se dizer que a
espectatorialidade intercultural é o encontro de dois diferentes sensórios, que
podem ou não se cruzar. Espectatorialidade é, portanto, um ato de tradução
sensorial do conhecimento cultural. Por exemplo, quando uma obra é vista em um
contexto cultural diferente daquele em que foi produzido, os telespectadores podem
perder algumas imagens multissensoriais (...). Da mesma forma, uma percepção
mais corporificada do cinema intercultural pode não fazer essas experiências
sensoriais disponíveis para o espectador, mas vai pelo menos nos dar uma noção do
que estamos perdendo (MARKS, 2000, p.153, tradução nossa).
Deste modo, o cinema atua como agente da sinestesia e a visão − tanto do/a espectador/a
quanto do realizador/a − como articuladora sensorial e sensível destas sensações, mas, no espaço
em que se dá essa intersensorialidade abrem-se ainda frestas para que a experiência do visível se
complete pelas relações de percepção que estão no filme como marcas de sua expressão ou como
aspectos do olhar que o reveste de uma memória, acionando sensações e remetendo a condições e
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dimensões do vivido. Marks (2002) compreende que a visão, sobretudo a háptica, dota o filme de
um olhar tátil, que pode ser também uma estratégia de visão alternativa. Repreendendo endereça um
sentido político a estas imagens, compreendendo que o que se aprende e apreende do olhar está
munido de conhecimento, de um lugar histórico e social que o posiciona, e a produção destas
imagens também é uma condição política. Marks investiga de que forma e como estes corpos se
fazem visíveis, como preenchem os espaços do campo cinematográfico de suas distâncias e
encontros, revidam ou amplificam o seu silêncio.
No longa A árvore de marcação (1995), Jussara Queiroz utiliza recursos hápticos para
dimensionar os deslocamentos políticos que o seu olhar empreende numa narrativa em que
predomina o voice over da protagonista, uma jovem estudante de direito nordestina no Rio de
Janeiro. Para recriar a passagem de tempo da infância para vida adulta, bem como para delimitar as
memórias sensoriais do passado, Jussara instala um discurso de reconhecimento no passado feito
por meio dos ambientes, sons, cheiros e costumes que identificavam a vida em Marcação.
Jocélia e o olhar migrante
O longa se inicia com imagens de deslocamento, logo após os créditos iniciais. Percorremos
o caminho feito por Jocélia, uma jovem negra, vestida de forma conservadora (uma blusa escura de
botões e uma saia na altura dos joelhos) e carregando material de estudo numa pasta. Ela atravessa
uma série de obstáculos, roletas, catracas e chega a um barco que irá percorrer o trajeto Rio-Niterói,
trecho familiar à Jussara que era aluna da niteroiense Universidade Federal Fluminense.
Na medida em que a câmera a acompanha e, em alguns quadros, simula o seu olhar, Jocélia
se apresenta com uma locução que se sobrepõe sobre a paisagem urbana e as imagens de mar,
avistadas do alto do barco que liga as cidades. Ainda que já pareça familiarizada com aquela rotina,
a voz da personagem nos interrompe para explicar que ela está ali para fazer faculdade, e que toda
aquela experiência parece coisa do outro mundo. Ao caminhar pelos espaços que fazem seu
percurso ao seu local de trabalho, um estágio que realiza enquanto estudante de advocacia, ela se
depara com rostos que reconhece como similares ao seu e aos de seu passado: de imigrantes
nordestinos. As imagens fazem com que ela se compare. Ao ver uma mulher com o semblante
cansado, envelhecido, pensa que aquela mulher mais velha possivelmente também havia sonhado
com uma vida melhor, mas o sonho, pelo jeito, ficara para trás.
É na fundação de apoio aos migrantes, no centro do Rio de Janeiro, que Jocélia, agora
crescida, polida e resiliente em seu processo de adaptação contínua para a obtenção de uma
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graduação no almejado curso de Direito, deflagra as memórias do episódio que parecia ter aberto o
alçapão que a conectou a outra realidade tão díspar daquela que vagamente lembrava em seus
flashbacks de infância: a conquista a água na comunidade de marcação. A figura de um rosto
familiar, embotado de cansaço, rancor e amargura, é o que traz, em seu presente, a história de seu
passado.
A chegada de um homem para o atendimento em busca de abrigo, acolhimento e trabalho na
capital fluminense desestabiliza Jocélia em seus afazeres. Ao recebê-lo em sua mesa, ela preenche
sua ficha de cadastro. José, 43 anos, titubeia ao declarar sua profissão. Mas, Jocélia arremata,
revelando então sua identidade: “inspetor público do município de rio pinto em marcação”, “não
lembra mais daquela negrinha atrevida?”, pergunta.
A presença do inspetor na sua tarde de trabalho, trouxe a ela a confirmação de sua
identidade, a de uma mulher negra, e de sua origem, a comunidade de Marcação, repleta de
desigualdades estruturais e humanas impetradas muitas vezes pelo próprio Estado. Jocélia não se
contém ao expor que está ali a trabalho e em busca de uma cidadania que não estaria ao seu alcance
em sua cidade de origem. “Estudo direito pra me defender de gente como o senhor e para descobrir
como é que vocês conseguem ter sempre a lei a seu favor. Aqui pelo menos todos têm direitos
iguais: à comida, pernoite e agência para arrumar emprego”, diz, elevando levemente o tom de voz
diante do desdém de seu antigo mandatário na coleta paga de água do chafariz em sua cidade de
origem.
É a partir desse momento que a comunidade começa a emergir na narrativa corrente do
filme. E marcação surge conduzida pela voz de firme sotaque paraibano da personagem, a partir da
história que preconiza a diáspora dela e de José. Ela, para buscar uma reparação histórica de seus
direitos negados no contexto nordestino. Ele, para ser absorvido como mão de obra barata numa
cidade grande que o enxerga como subalterno.
Marks (2002), discute que o cinema diaspórico é um cinema de ausência que reverbera na
evocação das memórias. A perda é um elemento narrativo importante para as tramas. A sensação de
aparte, as sensações de gosto, olfato e tato e o apego aos objetos evocados despertam o personagem
diaspórico de seu lugar de isolamento, possibilitando uma adaptação que mantenha sua conexão
com o passado e suas origens. Sentidos de identificação como a que Jocélia tem ao olhar o rosto
cansado e envelhecido da nordestina no barco. Ou como o sentimento de ruptura que experimenta
ao confrontar o inspetor José, agora também em seu próprio processo de trânsito. Marks afirma
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ainda que o corpo das personagens é por vezes despertado pela sensação de perda, que pode ser do
conhecimento de seu idioma, de seus costumes ou do lugar que ocupava em sua comunidade.
As imagens do passado em Marcação aparecem sob o barulho gotejado da chuva, Jocélia
recorda o som da água nas panelas e potes, o eco que sua voz fazia dentro do pote vazio, e os
sonhos de sua mãe, de que chuva viria encher os recipientes e proporcionar água farta. Na economia
do olhar, Jussara é modesta. As cenas priorizam o plano médio e plano fechado, para mostrar as
pessoas em seu entorno, e os planos conjuntos, para as cenas de trabalho. Os poucos closes são
significativos porque mostram os objetos e as tramas da lida diária, simbolizam a sede, a fome, a
fuga, o medo, o jugo: o facão, a bicicleta, o pote, a arma. Marks (2002) fala da constituição de um
sensorium fílmico também pela experiência com os objetos, que atuam como próteses da memória e
dos trânsitos culturais dos sujeitos em diáspora.
A cana, o mangue, o chafariz
A comunidade de Marcação é exibida em sua exiguidade e rusticidade. Filmado no local, a
cidade construída pelo ambiente cinematográfico possui uma rua principal, onde fica a rústica igreja
colonial, um chafariz, onde a população se enfileira para abastecer-se de água potável, e o espaço
para a descamação dos caranguejos. É cercada por um rio, circundada pelo mangue e pelo canavial.
Antes da chegada da personagem da freira, irmã Adriana, que irá alterar as estruturas hierárquicas
do local, despertando as crianças para a auto-organização política.
As cenas mostram o autoritarismo na sobrevivência das famílias muito pobres de Marcação
a partir da perspectiva das crianças. Há momentos de digressão e sonho. Os episódios oníricos dão
vazão ao sentimento de relação dura com o contexto. Como por exemplo no momento em que uma
criança projeta que irá deliberar uma rebelião ao se voltar contra o capataz que o repreende por
chupar cana.
A perspectiva da infância intensifica a sensação de injustiça, de luta desigual de fracos
contra fortes. O ambiente opressivo do canavial e do mangue envolvem a comunidade e a própria
vida dos infantes, que dele não conseguem escapar, pela fragilidade própria de sua condição e por
estarem atados ao que os mais velhos entendem como sociedade. Ao explicar a condição das
pessoas de Marcação, Jocélia fala do canavial como uma imposição, que destituiu a capacidade de
autonomia e sobrevivência daquelas famílias oriundas da agricultura de sequeiro. “O canavial nos
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cerca como se fosse um mar, no qual nos afogamos famintos”, diz o texto de Jocélia, no roteiro
muito bem lapidado de Luelane Loiola Corrêa.
Há uma longa sequência no filme para mostrar a rotina de trabalhos forçados e exposição da
infância das crianças de marcação. Exibe crianças peregrinando em torno do mangue, primeiro
atravessando-o em barcos, depois buscando o melhor território para a coleta do caranguejo. No
cortejo mirim, um menino canta empolgado a canção Beat it, de Michael Jackson. Na procissão de
crianças com tochas de fumo, assustadas e tementes ao mando dos donos de terra e dos monstros
inventados para amedrontá-los, o garoto exporta a canção estrangeira do astro negro como um
amuleto. A direção de Jussara Queiroz esculpe uma paisagem temporal que nos remete ao claustro
daquelas crianças que pernoitam no mangue, exibindo uma a lua que esfria no céu e um sol morno e
claro matutino, sob o mesmo enquadramento. Isto sob os gritos das crianças e o vapor da grinalda
trançada por Jocélia, para afastar o mau espírito da mata.
O chafariz enquanto propriedade destituída da comunidade, assim como a terra, é
demonstrado também pela incapacidade da população em confrontar o autoritarismo do estado em
cerca um bem público. A figura do inspetor, presente como grande agende de opressão e
dissimulação, representante das forças políticas conservadoras na comunidade de marcação. Isto
ocorre na figura da mulher "louca", que ignora o inspetor e retira sua água sem pagar. Sendo por ele
depois repreendida e humilhada. A água que seria levada para a casada da louca, sensata em sua
perspicácia de entendê-la como bem público, é utilizada para lavar o carro do capataz.
A roupa da freira
Ao longo da narrativa de Jocélia, o presente é retomado quando ela novamente precisa se
confrontar com José, na fundação para migrantes. Indignado, José se mostra revoltado por estar ali,
e credita à chegada a sua derrocada – perda do seu posto de inspetor em Marcação. Embora Jocélia
não revele, suspeita-se que sua migração também se deve aos esforços da freira, neste caso, para
que as crianças e adolescentes de marcação tivessem acesso a estudo e direitos.
Novamente, a narrativa regride no tempo e volta ao momento em que a cidade aguardava a
chegada da freira. A chegada de um membro do clero numa cidade rústica e rural é alvo de
comentários e expectativas. Entretanto, ao desembarcar do veículo, a freira Adriana (Marcélia
Cartaxo) causa estranhamento em todos por chegar "sem roupa” – assim se referem ao fato de que
ela não está trajando o esperado hábito. Também move estupefação pelo fato de que era apenas um
jovem, um rosto semelhante ao das pessoas que já viviam ali, despojada de protocolo e aberta ao
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diálogo com todos em Marcação, sobretudo as crianças, que logo passavam a ocupar sua casa ao
logo de todo o dia. A presença da freira termina por estremecer a ordem desigual e as hierarquias
autoritárias da cidade, quando ela ignora as barreiras humanas e simbólicas e coleta simplesmente a
água do chafariz, sem pagar a taxa.
A casa da freira é filmada com a câmera subjetiva, percorrendo os santuários, as flores sobre
a mesa, as paredes azuis e esteiras no chão, exibindo crianças lendo, brincando e estudando nos
poucos cômodos integrados que a compõem. Também acompanha as mulheres na calçada e os
homens nas janelas dos bares, questionando a vestimenta da freira. O inspetor diz que todos
imaginam uma freira autêntica com uma roupa escura e larga, que as deixa com aspecto semelhante
ao dos pinguins de geladeira. O filme, baseado no livro Crianças em ação, do padre Reginaldo
Veloso, recria um episódio real que ocorreu nesta comunidade, quando a ação da teologia da
libertação mobilizou crianças exploradas pelo trabalho infantil na luta pelo acesso à água no lugar.
A presença de irmã Adriana é construída cinematograficamente para mostrar a escassez de
atenção à infância. As crianças passam a se integrar e a se fortalecer a partir de escuta, brincadeiras
e letramento, muito além das prometidas lições de catecismo que julgava a vizinhança. Mas também
mostra a força política do debate sobre direitos em comunidades. As crianças, mais livres e menos
ameaçadas que os adultos, organizam um abaixo assinado para exigir gratuidade no acesso ao
chafariz da cidade. As cenas mostram muito mais o exterior que o interior, tratando-se de um filme
político, apoiado pela emissora de TV alemã ZDF, a realizadora busca mostrar menos a vida
interior e os anseios pessoais de cada personagem que a dimensão coletiva da luta das crianças.
Pouco se sabe sobre a freira, sua origem e seu paradeiro após o episódio contado por Jocélia. Sabe-
se pouco ou nada sobre a maioria das personagens, por isso tantas tomadas exteriores. A cidade
repreende a freira, ridiculariza as crianças, movidos pelos inspetor e seu pavor de que a gratuitade
do chafariz aniquile sua função na comunidade. Ameaças na calada da noite e um bilhete é deixado
na casa da freira, na alta noite. Neste, se lê: “Você num é frera coisa nenhuma. Vá embora
subiversiva (sic)”. Na manhã seguinte, a freira sai de casa armada de sua indumentária. Atravessa a
cidade vestida de um hábito azul e branco. E posiciona-se na frente do prédio central da igreja para
fazer um discurso. As crianças riem dessa roupa inusitada, mas a personagem consegue a atenção
das pessoas na comunidade, que a observam admirados, diante da igreja. Neste momento, na
intercalação de planos gerais, planos conjuntos e planos médios, a personagem faz o seu discurso
em frente à igreja, convocando a população a refletir sobre o cerco de exploração.
O povo está acostumado demais a esperar. A esperar um pelos outros, a esperar
pelos grandes, a esperar, por Deus. Quem espera pelos outros, nem ajuda nem se
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ajuda, quem espera pelos grandes, termina sendo enganado, e quem espera por
Deus já devia ter lembrado: Deus nos deu cabeça para pensar, olhos para enxergar,
pernas para andar, braços para agir e duas mãos, para repartir. É o que estamos
fazendo. Mas tem gente que não quer reconhecer o valor dessa luta, por isso resolvi
tirar da mala o traje de freira. E como freira eu vim pra rua, para dizer para todo
mundo, que dou todo apoio a essas crianças (QUEIROZ, 1995).
O traje da freira se investe da reminiscência da autoridade, inserindo-a no espaço público
como liderança cristã, utilizando um discurso humanista para explorar a complexidade das relações
estáveis que mantêm a ordem em Marcação, por meio da negação de direitos básicos, exploração
dos recursos humanos, animais e minerais da localidade. No momento em que a freira discurso da
freira, clamando pela consciência coletiva na rua, o inspetor é exibido em seu quarto, confrontando
a sua imagem no espelho, até recuar e postar-se cabisbaixo num canto da cama. O hábito que dá
poder à freira e o poder desvelador de suas palavras terão efeitos intensos na comunidade. A luta
pela água permite que se enxergue a intervenção política organizada, encoraja os e as jovens a
confrontarem atravessadores, realizando greves e negociações. Também permite o reconhecimento
das várias instâncias da máquina pública. Quando o prefeito tenta ignorar o abaixo assinado, as
crianças o encaminham para o presidente da câmara, que é de um partido adversário.
Marks (2000) fala em seu livro de fetiches por objetos e fetiches de viagem, no processo
diaspórico e memorialista de reportar a identificação com o passado, mencionando, por exemplo,
véus e sáris filmados em câmera subjetiva, como se deles se quisesse obter o tato, além da ideia
física de indumentária, uma ideia amorosa e afetiva de lugar. O filme de Queiroz é recortado por
memórias físicas e olfativas, em toda a natureza e a sobrevivência íngreme entre o canavial e o
mangue que circundam Marcação. O traje da freira, entretanto, surge como um corpo simbólico de
conflitos, que sintetiza a tradição e a resistência, a condição vulnerável do feminino e seu pequeno
poder, sustentado por uma instituição que fortalece o patriarcado. Um pequeno poder catalisador,
que desponta na margem para provocar as estruturas a partir de sua ambiguidade.
A novidade da conquista da água é anunciada no momento em que o inspetor coa um café
no interior de sua cozinha. Ao escutar no rádio o prefeito sancionou o projeto enviado pelo
presidente da Câmara de vereadores, este se queima com o calor da água e arremessa os objetos de
sua casa na parede, transtornado. As cenas de exterior exibem as crianças e adultos da comunidade
banhando-se em praça pública. O inspetor busca a sua arma que se mostra sem munição na tentativa
de disparos: a autoridade que lhe cabia havia sido suplantada pela força do coletivo. E é na
inauguração do chafariz público, diante do discurso de Jocélia, sobre o extrativismo e a exploração
humana na comunidade que percebemos que mais do que a água, a organização política transforma
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
realidade. É a mão do povo e a voz da jovem negra que fazer a água jorrar da fonte, não a presença
do prefeito. Numa atribuição simbólica de causa e efeito. Num flash do presente, Jocélia pergunta
ao inspetor por qual motivo ele havia emigrado. Ele responde: “Perdemos as eleições. E não foi só
as eleições.”. E o filme encerra com jorros e chuva e água, fervor e algazarra na praça do chafariz.
Referências
LAGUARDIA, Paulo. O voo silenciado do jucurutu. 2007, Independente, 50 min.
MARKS, Laura U. The skin of the film: intercultural cinema, embodiment and the senses. London:
Duke University Press, 2000.
______. Touch: sensuous theory and multisensory media. Minneapolis, USA: University of
Minnesota Press, 2002.
NAGIB, Lúcia. O Cinema da Retomada: Depoimentos de 90 Cineastas dos Anos 90. São Paulo:
Editora 34, 2002.
FOSTER, Gwendolyn Audrey. Women filmmakers of the African and Asian diaspora: decolonizing
the gaze, locating subjectivity. Illinois: Southern Illinois University Press, 1997.
QUEIROZ, Jussara. A árvore de marcação. 1995, ZDF, 90 min.
RANCIÈRE, Jacques. La fábula cinematográfica: reflexiones sobre la ficción en el cine. Barcelona:
Paidós, 2005.
______. As distâncias do cinema. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
The feminine diaspora and haptic look in Jussara Queiroz’s A Árvore de Marcação
Astract: Jussara Queiroz is a prolific Potiguar filmmaker who had lived in Rio de Janeiro between
years 1970 to 1990, period of its production and engagement as a student of graduation of Cinema
at the Federal Fluminense University, as well acting as an activist and experimental filmmaker.
However, much of his work remains unknow in the context of national distribution and little
explored by studies on the Brazilian audiovisual. In this paper, we analise A Árvore de Marcação
(1995), realized and mounted during eight years, between the period of political opening of the
country and the beginning of Collor's government. The film narrates, under the Perspective of a
migrant, black woman, the a history of a political organization leaded by children in the struggle for
access to water in their community, Marcação, Paraíba. Exploring the issue of child labor,
coronelism and the pastoralist militancy in the countryside in the Northeastern of Brazil. The local
nature (rivers, fields, animals), more than a cenary, is taken by what Marks (2000) calls the
director's haptic gaze, in a narrative of migration and invested memory in the narrative character,
which can be tracked with the migrant look of Jussara.
Keywords: Diasporic cinema. Haptic look. Jussara Queiroz.