Post on 09-Dec-2018
A desconstrução do herói tradicional no desenho animado: o caso da série Pepe Legal
(1959)
Fernando Teixeira Luiz
(Universidade do Oeste Paulista - UNOESTE)
Resumo: O presente artigo, fundamentado no dialogismo bakhtiniano, integra uma
investigação científica maior, intitulada Poéticas do Cinema de Animação, que tem como meta
abordar as propostas estéticas do desenho animado, evidenciadas a partir de determinada
concepção de arte, infância e modelo familiar. Na tentativa de se estabelecer uma periodização
da temática, observa-se, com base no aporte teórico estudado, que a história do cinema de
animação pode ser dividida em quatro etapas, mapeadas como período de formação,
consolidação e legitimação do gênero (1920 – 1960), período de desenvolvimento e expansão
do mercado (1960- 1980), período das narrativas híbridas (1980 – 2000) e período inovador
ou pós-moderno (2000 – 2015). Tendo em vista a necessidade de recorte do objeto, será feita
a análise, crítica e discussão do segundo momento – tratado aqui como período de
desenvolvimento e expansão do mercado – fase em que, paralelo ao desenvolvimento da Disney
e da Warner, ganhavam força os estúdios Filmation, Grantray Lawrence e, principalmente, a
Hanna-Barbera Produções. Para a presente comunicação, contemplaremos especificamente a
trajetória da personagem Pepe Legal (Quick Draw McGraw), criada em 1959 nos estúdios
Hanna-Barbera. Como outros heróis do grupo que parodiavam figuras emblemáticas da
literatura, do cinema e dos quadrinhos, Pepe Legal é a sátira de um gênero cinematográfica
cuja fórmula se mostrava bastante desgastada: o faroeste. Na condição de justiceiro ou xerife,
Pepe Legal fracassava em suas missões e contribuía para a projeção de uma narrativa que
ironizava a voz do vencedor. Nessa linha, a meta desse estudo é problematizar como o humor
foi construído na série mediante três diretrizes: a intertextualidade para com a história do
gênero western, a antropomorfização dos animais com base na fábula moderna e a projeção de
um herói desacreditado em seu meio.
Palavras-chave: Desenho animado; Infância; Intertextualidade.
Abstract: This paper is part of a larger research project entitled Animation Cinema Poetics and
its goal is to discuss animated cartoons aesthetic proposals in consonance with a certain
conception of art, childhood and family model. In an attempt to establish a periodization of the
theme, it is observed, based on the theoretical contribution studied, that the history of animation
cinema can be divided into four stages, mapped genre formation period (1920-1960), market
consolidation and legitimation period (1960 -1980), hybrid narratives period (1980- 2000) and
innovative and post-modern period (2000-2015). Considering the need to cut the object, the
analysis, criticism and discussion of the second moment - discussed here as the period of
development and expansion of the market - will be done, parallel to the development of Disney
and Warner, the Studios Filmation, Grantray Lawrence and, most importantly, Hanna-Barbera
Productions. For this communication, we will specifically consider the trajectory of the
character Quick Draw McGraw, created in 1959 in the Hanna-Barbera Studios. Like other
heroes of the group who parody iconic figures in literature, cinema and comics, Quick Draw
McGraw is the satire of a cinematic genre whose formula was quite worn out: the Western. As
a justice or sheriff, Quick Draw McGraw failed in his missions and contributed to the projection
of a narrative that mocked the voice of the winner. In this line, the goal of this study is to
problematize how the humor was constructed in the series through three guidelines: the
intertextuality with the history of the western genre, the anthropomorphization of the animals
based on the modern fable and the projection of a discredited hero in its environment.
Keywords: Cartoon; Childhood; Intertextuality.
Introdução
Com o intuito de melhor compreender as nuances que envolvem e enredam o gênero
desenho animado, optamos por estabelecer alguns marcos históricos de sua trajetória. Assim,
com base nos estudos feitos até então, acreditamos que o percurso das animações infantis e
juvenis possa ser dividido, basicamente, em quatro momentos distintos, descritos aqui como
período de formação do gênero (1920 – 1960), período de consolidação e legitimação no
mercado (1960- 1980), período das narrativas híbridas (1980 – 2000) e período inovador ou
pós-moderno (2000 – 2015). Dada a necessidade de recorte do objeto, o presente artigo se
fixará no segundo momento – designado aqui como período de consolidação e legitimação no
mercado (1960- 1980) – com a meta de abordar uma das séries mais populares da década de
1960: Pepe Legal (Quick Draw McGraw).
Lançado em 1959 e se firmando na década posterior, a animação narrava as estripulias
de um cavalo com características humanas. Na verdade, Pepe Legal integrava um projeto maior
dos estúdios Hanna-Barbera, projeto esse tributário da fábula contemporânea e em plena
sintonia com as séries veiculadas por outros estúdios da época (como a Disney e a Warner). O
citado herói, assim, parodiava um gênero cinematográfico com nítidos sinais de desgaste na
primeira metade do século XX – o western – e que se renovaria apenas posteriormente com a
contribuição do italiano Sergio Leone (Por um punhado de dólares (1964), Por uns dólares a
mais (1965) e Três homens em conflito (1966)).
A imagem de Pepe Legal, na verdade, entremostrava-se como antítese das figuras
emblemáticas dos grandes heróis do faroeste norte-americano, como Curly Wilcox (No tempo
das diligências (1939)) e Will Kane (Matar ou morrer (1952)). Sua missão era proteger o
vilarejo onde morava dos destemidos criminosos (a imagem do fora da lei). Embora valente,
ele pouco sabia manejar a própria arma, era aviltado pelos adversários e, bastante ingênuo,
submetia-se à mercê da sorte. Contava apenas com a astúcia do fiel escudeiro – um burrinho
com sotaque mexicano chamado Babalu – e a presença do cãozinho Snuffles, ávido por
biscoitos como recompensa para participar de missões homéricas. Ademais, a figura do
narrador constituía um caso à parte, responsável pela elevação da personagem à dimensão de
um herói altaneiro – fato que será constantemente desconstruído mediante os sucessivos
fracassos protagonista e as desventuras que o enquadrariam não como representante de uma
coletividade, mas como, sobretudo, um herói ex-cêntrico, bufão, destituído de qualquer malícia
e desacreditado pelo leitor.
A Fábula no Desenho Animado
Com o êxito do desenho animado veiculado pela Disney na década de 1930, ganhavam
força no mercado de cartoons três novos fabulários que representavam uma incontestável
concorrência frente o pioneirismo do camundongo Mickey: a série protagonizada pelo anti-
herói Pica-pau, de Walter Lantz, A Turma do coelho Pernalonga, da Warner Bros
Entertainment, e, posteriormente, os inúmeros animais que passaram a compor o imaginário
infantil graças ao talento da dupla Willian Hanna e Joseph Barbera. Nessa linha, convém citar
o urso Zé Colméia, a Formiga Atômica, a Lula Lelé, o cavalo Pepe Legal, o Leão da Montanha,
a hiena Hard Ha-Há, o crocodilo Wolly, o gorila Maguila, o cachorro Precioso, o gato Manda-
Chuva e a famosa dupla Tom e Jerry1, entre outros.
Para melhor compreendermos a proposta instituída pelo cinema gráfico, cumpre
retomar o que a crítica designa como fábula tradicional. De acordo com Coelho (1987) e
Smolka (1994), a fábula tradicional comportava, basicamente, oito características, como: a) o
caráter simbólico das narrativas; b) a presença da prosopopeia; c) a filiação a um aspecto moral;
d) a incidência de elementos fantásticos; e) pouca extensão da dimensão textual; f)
incorporação de um juízo estético, ético, filosófico ou religioso; g) teor educativo; h) viés
cômico e satírico. A fábula em questão revelava, muitas vezes, o triunfo dos mais espertos
sobre os mais ingênuos, acentuando e denunciando as questões de desigualdade. Possibilitava,
desse modo, a reflexão em torno dos modos empregados pelas personagens para a conquista
da posterior vitória, dos objetivos que moviam seus artifícios, do jogo de interesses que
provocavam e incomodavam o leitor – especialmente por representarem o comportamento
humano.
1 Outros estúdios também produziram, a partir dos anos 1970, os duelos entre os citados personagens.
Entende-se por fábula, conforme sugere Claret (2006), “um gênero literário que veio
do conto popular. São narrativas alegóricas em prosa ou verso próximas do mito e da poesia”
(p.11). Como assegura o autor, situa-se entre o provérbio e o poema, relatando, de modo
conciso, histórias que giravam em torno de objetos, vegetais, deuses e, em especial, animais.
Coelho (1987), por sua vez, explicita a filiação da fábula ao fantástico, distinguindo-a de outros
gêneros pela presença de animais inseridos em situação humana e exemplar.
Claret (2006), debruçando sobre o percurso histórico das fábulas tradicionais,
reconhece a presença de três grandes momentos: a Antiguidade, a Idade Média e o século
XVIII. Assim, responsáveis pela criação, projeção e consolidação das fábulas ao longo do
tempo, destacaram-se, em um primeiro momento - no território grego - as imagens de Hesíodo,
Bábrio e, em especial, Esopo. O citado fabulista teria sido uma espécie de orador popular,
sendo a ele atribuídas muitas das fábulas reunidas por Demétrio de Falero no século V a.C. Na
Índia, o Panchatantra revelou-se como um dos principais documentos do gênero, retomado em
parte expressiva da literatura que o precederia e disseminado, posteriormente, pelas regiões da
China, do Tibet e da Pérsia. Em um segundo momento (CLARET, 2006), é oportuno destacar
a produção do macedônio Fedro, enriquecida estilisticamente e dotada de “acentuado cunho
satírico” (CARVALHO, 1985, p. 43). Seus escritos, mantendo a tradição de Esopo, constituíam
sátiras amargas direcionadas aos costumes de seu tempo, de sua época. Na mesma linha,
acrescentaríamos a obra do escritor catalão Raimundo Lullio, no final do século XIII,
representando as injustiças sociais em um cenário povoado por animais. Foi, contudo, com o
francês Jean de La Fontaine que o gênero foi reinventado e introduzido, definitivamente, na
literatura ocidental. Firmado como um dos principais expoentes do terceiro momento da
história das fábulas (CLARET, 2006), La Fontaine, solidário aos modelos gregos e indianos,
encontrou muitos seguidores como Jean Pierre de Florian, na França, e Tomas de Iriarte, na
Espanha. No início do século XX, o folclorista Joseph Jacob ofereceria considerável
contribuição ao coletar, da tradição popular, fábulas até então pouco conhecidas entre o grande
público. No Brasil, trabalho similar seria feito por Câmara Cascudo e Ricardo Azevedo.
A fábula contemporânea, ou nova fábula (na concepção de Carvalho (1985)), envolve
aspectos psicopedagógicos até então inéditos. Filiar-se-ia às propostas de Felix Salten, com o
itinerário do pequeno cervo Bambi, e Rudyard Kipling, com a saga do menino lobo. Carvalho
explica que, aqui, os animais são seres simpáticos aos olhos da criança. Mesmo que a crítica à
conduta humana seja edificada, esta carrega um tom construtivo e não mais de denúncia. Desse
modo, o discurso moralizante é atenuado, o humor assume papel de destaque, a
intertextualidade se sobrepõe em suas diversas camadas e a metalinguagem se configura ora na
retórica do narrador, ora nos diálogos entre as personagens. Entre os ficcionistas de maior
destaque caudatários desse novo viés estão, no território brasileiro, Monteiro Lobato e suas
diferentes versões sobre “A Cigarra e a Formiga” (Fábulas (1921)), Jorge Amado com O Gato
malhado e A Andorinha Sinhá (1976), Maria Heloísa Penteado com Lúcia Já Vou Indo (1978),
e Lygia Bojunga com O Sofá Estampado (1980). Acrescentam-se ainda o inglês George Orwell
(A Revolução dos Bichos (1945)), o sueco Art Spiegelman (Maus (2005)) e os alemães Werner
Holzwarth e Wolf Erlbruch (Da pequena toupeira que queria saber quem tinha feito cocô na
cabeça dela (1994)).
O fabulário da Hanna-Barbera, bastante estilizado, tinha como principal traço
concentrar os episódios em um cenário dinâmico e colorido. Deve, entretanto, ser examinado
no fluxo de outras produções sincrônicas. Hutcheon (1991), inclusive, acrescenta que os
modelos textuais não podem ser considerados como originais e sim como partes de discursos
anteriores. Prova disso eram os casos histriônicos desvendados pelo Esquilo sem Grilo (1964),
revisitando, com humor, as sequências de James Bond na série 007. Outrossim relevantes eram
as aventuras do simpático espadachim, Tartaruga Touchê, que, em 1962, dialogava com o
romance de Alexandre Dumas, Os Três Mosqueteiros (1844). O trio Plic, Ploc e Chuvisco
(1958), por sua vez, constituía uma nítida alusão a Tom e Jerry (1940). A alusão, como
esclarece Kock (2007), compreende uma modalidade intertextual em que “não se convocam
literalmente as palavras nem as entidades de um texto, porque se cogita que o co-enunciador
possa compreender nas entrelinhas o que o enunciador deseja sugerir-lhe sem expressar
diretamente”(p.127). No território da paródia, Pepe-Legal, de 1959, reproduzia a forma do
gênero western, bem como as façanhas do aventureiro Zorro, para negá-los e revesti-los de
ludicidade. A Formiga Atômica, de 1965, retomava, com exagero caricaturesco, as aventuras
do herói Átomo, emblemático nos quadrinhos de 1940. Além disso, de acordo com Kathe
(1980), a paródia se define como um texto que abarca outro texto, do qual ele é “uma negação,
uma rejeição ou uma alternativa” (p.98). Marcada pela duplicidade, contém em sua estrutura o
fragmento reescrito e, ao mesmo tempo, sua negação. Trata-se, assim, de uma contradição,
“dando prioridade para a antítese em detrimento da tese proposta pelo texto parodiado” (p.98).
Representações do Velho Oeste
Antes de dar início à presente problematização, convém uma apreciação introdutória
sobre a categoria cinematográfica rotulada popularmente como faroeste ou bang-bang.
Aumont e Marie (2003), atendo-se à definição do gênero, apontam a dificuldade de limitá-lo
unicamente a ficções que se desenvolveram retratando o período que se estende da Guerra de
Secessão ao desaparecimento da Fronteira (1865 – 1890). A justificativa para tanto estaria no
fato de que existem inúmeros faroestes modernos, como também produções que se voltam a
outras temáticas, como, por exemplo, a luta pela independência contra os ingleses. Aumont e
Marie ainda informam que, para efeitos didáticos, foi proposto agrupar as narrativas do oeste
norte-americano em alguns ciclos, como os de povoamento, das guerras indígenas e do conflito
méxico-texano, entre outros.
Satirizando as produções cinematográficas ambientadas no velho oeste norte-
americano, Pepe Legal investia em histórias que mesclavam ação e comicidade. Contava, ao
todo, com quarenta e cinco episódios, distribuídos em três temporadas. Para melhor
entendermos a proposta da série em questão, tomemos como referência três episódios: “Double
Barril Double”, “Lamb Chopped” e “Scat Scout Scat”, todos do início da década de 1960. A
primeira narrativa mencionada - “Double Barril Double” – lembrava a mesma estrutura do
filme O homem que matou o facínora (1962), em que o relato era apresentado a partir do ponto
de vista de uma personagem. Desse modo, cabe a Babalu expor a saga de seu ídolo – Pepe
Legal – enaltecendo seu heroísmo ao capturar seu maior adversário: Harry Cara de Cavalo.
A representação dos equinos nas fábulas tradicionais – mediante o processo de
antropomorfização - é constante, podendo ser visualizada tanto nos escritos de Esopo quanto
de La Fontaine. De Esopo, sobressaem as fábulas “O cavalo velho”, “O cavalo e o asno”, “O
cavalo e o soldado”, “O cavalo e o cavalariço” e “O cavalo, o boi, o cão e o homem”. Em La
Fontaine, encontram-se “O asno e o cavalo”, “A mula”, “O asno e a mula”, “O cavalo e o asno”,
“O cavalo, o boi, o cão e o homem”, “O velho cavalo”, “O cavalo e o palafreneiro”, “O cavalo
e o soldado” e “O lobo e o cavalo”. Nota-se, ainda, a repetição de algumas fábulas pelos dois
ficcionistas, como o caso de “O cavalo velho”, “O asno e o cavalo”, “O cavalo e o soldado” e
“O cavalo, o boi, o cão e o homem”. Revestindo-se de significação ao longo do tempo, o cavalo,
como signo, reporta à força, bravura e aos poderes da divindade. Lurker (2003) associa os
cavalos a poderes mágicos, como também, em contextos negativos, à soberba e à morte. A
simbologia inscrita em sua imagem entremostrava-se, assim, bastante heterogênea, variando
nas culturas dos diferentes povos.
Na Hana-Barbera, a brincadeira com o signo visual ganha novos contornos. O cavalo,
responsável por conduzir o cowboy pelos desertos em grandes jornadas, assume a condição de
xerife. Tal inusitada proposta – verossímil no território da fábula – constitui um dos principais
recursos para gerar humor. Atrelado a isso está a voz do narrador heterodiegético, esforçando-
se em engrandecer Pepe Legal como um herói lendário, intrépido e emblemático, como pode
ser detectado na abertura do episódio “Double Barril Double”: ”Assim como a águia vingadora
volta ao seu ninho para descansar, assim faz também o homem da lei, cansado de sua vigilância.
Aqui nesse rancho encontramos Pepe Legal, o terror dos bandidos, tomando um descanso de
suas árduas tarefas”.
Lucena Junior (2001) denomina tal voz como narrador off-screen, que interage com
o protagonista promovendo diálogos que revelam a consciência de que ele reconhece sua
condição de personagem e que sua saga está sendo contada por um outro alguém. É perante
essa consciência – no plano da metalinguagem – que as personagens evidenciam que sabem
perfeitamente que estão em uma animação televisiva. A rigor, o pacto que se firma é muito
mais metaficcional do que orientado pela verossímilhança.
Na cena, Pepe Legal e seu assistente Babalu observam um cartaz que trazia a imagem
de um criminoso, bem como a recompensa para quem conseguisse capturá-lo. O herói, ao fitar
a fotografia do foragido, deixava-se conduzir por um tom contundente em sua descrição: “Olhe
só, Babalu, a cara desse criminoso, essa testa baixa, esses olhos velhacos, esse queixo débil...”
Pepe Legal, porém, não havia notado a extraordinária semelhança que o unia ao fora-
da-lei. É Babalu quem faz a constatação de que o fugitivo tratava-se de seu sósia. Ao perceber
tal aspecto, Pepe imediatamente altera seu discurso, intercalando uma nova fala revestida de
contradição e, por conseguinte, efeito de comicidade: “Olhe só esse rosto de classe, esses olhos
ativos, essa testa nobre, esse queixo forte...”.
Ademais, a própria alcunha do assaltante estampada no anúncio – Harry Cara de
Cavalo – explorava a brincadeira com a arbitrariedade do signo linguístico, uma vez que a
personagem era, realmente, um cavalo. Imersas naquele ambiente de absoluta inocência, nem
o protagonista e tampouco os demais coadjuvantes pareciam se incomodar com a relação entre
o apelido do criminoso e seu rosto, uma vez que o próprio Pepe, embora igualmente possuísse
a face de um equino, não tinha em seu nome nenhuma articulação com a condição de ser um
animal, ou seja, com seu referente. É como se ele não se identificasse com um cavalo e sim
com um humano. A maior evidência desse dado pode ser apurada no momento da abertura da
série, quando Pepe Legal aparece conduzindo uma diligência puxada por outros cavalos e, em
outros episódios, surge montado em um alazão. Sugere-se, desse modo, que o processo de
antropoformização seja tão intenso, que o herói não mais se reconhecia como um equino. Por
outro lado, a opção pela alcunha de Cara de Cavalo pode também revelar uma preocupação
dos estúdios em representar codinomes comuns do oeste norte-americano com explícita
referência a animais, como a figura histórica de Duck Bill – cujo nariz lembrava um pato e,
consequentemente, rendeu-lhe o citado apelido; ou Búfalo Bill, assaltante que, quando jovem,
caçava bisões.
Vale ainda polemizar a questão do nonsense inscrito ao longo de toda a diegese. Como
ocorria com os desenhos de Pernalonga, Mickey e Pica-pau, as criações da Hanna-Barbera
mostravam-se norteadas pela lógica do absurdo, à moda de Lewis Carroll. Silva (2004),
inclusive, esclarece que, em muitos curtas animados, as personagens se mostravam amassadas,
agredidas, esmagadas e, na cena seguinte, já se encontravam de pé. Nessa linha, são diferentes
os momentos em que Pepe Legal, atrapalhando-se com o manuseio de sua arma de fogo,
acabava descarregando-a contra o seu próprio rosto. Na cena seguinte, ressurgia intacto,
invicto. É como se o óbito não existisse e nada fosse capaz de aniquilar o protagonista. Nas
palavras de Silva, ocorreria uma certa “indisposição para a morte, como se ela tivesse sido
‘extinta’” (p.116). Assim, diferente do cowboy tradicional, ágil no gatilho e capaz de vencer
seus inimigos em segundos, Pepe Legal acabava prejudicando a si mesmo. Sua postura,
portanto, distanciar-se-ia de heróis convencionais incumbidos de salvar donzelas ou amparar a
população do Novo México. Firma-se, assim, muito mais como uma paródia dos grandes
nomes do oeste difundidos pelo cinema e pelos quadrinhos, como Durango Kid, Red Ryder, o
cavaleiro solitário e os heróis vividos por John Wayne e Tom Mix. Atento às criações da
Hanna-Barbera, Lucena Junior explica que a maior parte dessas personagens encarnava o
espírito alegre e despojado de seus criadores, “para quem o poder expressivo da animação era
capaz de qualquer coisa” (p.127). Os desenhos mostravam-se, assim, negligentes com respeito
às leis físicas, à lógica ou à ordem.
Para composição do velho oeste, o desenho ainda absorvia, da tabela cromática, as
cores quentes, principalmente o vermelho e o laranja. A seleção dessas cores, na condição de
signos, incumbia-se em inspirar a sensação de um local bastante quente, em sintonia com o que
sempre foi veiculado no gênero faroeste.
Mergulhado nesse universo, o objetivo de Pepe Legal era deter o surto de
criminalidade causado por Harry Cara de Cavalo. Contudo, até cumprir esse feito, submeter-
se-ia a uma série de contratempos e reveses. O herói criava planos mirabolantes para abordar
o inimigo, mas a astúcia do malfeitor não garantia o sucesso do “mocinho” após cada
emboscada. Obstinado, Pepe Legal lançava mão de armadilhas, esforçava-se em confundir o
antagonista, optava por também jogar sujo e se arriscava exaustivamente para atingir sua meta.
No entanto, perdia em todas as tentativas. Sua maior fraqueza era, sem dúvida, a ingenuidade.
Sabe-se que o cowboy tradicional (divulgado nos filmes de John Ford) era
introspectivo, sagaz, rápido no gatilho, não hesitando em eliminar seu adversário na primeira
oportunidade. Pepe Legal, destoando desse perfil, perdia todas as poucas chances que a sorte
lhe promovia. Ainda que fosse habilidoso no manejo com as armas de fogo, acabava, quase
sempre, baleado pelos vilões ou ferido em acidentes que lhe ocorriam com a própria pistola.
A solução para o problema estava na personagem coadjuvante, ou seja, no ponderado
Babalu. Era o pequeno burrinho quem conseguia vencer Harry Cara de Cavalo com um golpe
certeiro. As honras pela vitória ele reservava a Pepe Legal, dignificando-o pela proeza de ter
conquistado o triunfo sobre o famigerado antagonista. Apesar de ser o grande responsável pelo
relato, Babalu renunciava o próprio heroísmo e preferia deixar seu ídolo com todo o prestígio.
Não obstante, a narrativa parecia dialogar, de modo acentuado, com a fala de uma das
personagens de O homem que matou o facínora, especificamente quando afirmava: “Quando a
lenda é muito mais interessante que o real, imprime-se apenas a lenda”. Criava-se, desse modo,
o mito sobre Pepe Legal como o destemido cowboy do oeste, quando, na verdade, ele
representava muito mais a negação de tal cowboy. .
Em “Lamb Chopped”, outra aventura da primeira temporada de Pepe Legal, a
estrutura de “Doublé Barril Doubre” se preservava. O novo conflito era demarcado não pela
ameaça de um novo assaltante, mas por um animal supostamente perigoso: o leão da montanha,
personagem que, inclusive, reaparece em outras séries da Hanna-Barbera e, aqui, imprime um
diálogo intertextual com o leão de Nemeia do mito de Hércules. O atual objetivo de Pepe era
tirar a fera de circulação, tendo em vista que ela dizimava um rebanho de ovelhas para saciar a
fome.
Na tentativa de caçar o animal, Pepe Legal se dedicava a um rol de estratégias: criava
armadilhas, disfarçava-se de ovelha e apontava sua arma para o destemido felino. Obra
repetitiva e muitas vezes previsível, reiterava uma fórmula já empregada: o leão da montanha,
como Harry Cara de Cavalo, era muito mais atento que o protagonista. Chegava a apresentar
um repertório lexical abrangente, construções inteligentes e argumentos plausíveis.
O desfecho do episódio já era aguardado pelo leitor: Pepe Legal acabava vencido pelo
citado leão, que se deliciava com as ovelhas roubadas. Por outro lado, um fator positivo é que
o episódio sublinhava e acentuava a fragilidade do novo herói em evidência. Pepe Legal,
distante do cowboy consagrado pela sétima arte, não vencia todas as batalhas, aceitava os
próprios fracassos e personificava a resistência, por meio da intertextualidade, aos modelos
edificados pelo cinema com Tom Mix e John Wayne.
A ironia voltada aos cowboys parecia igualmente direcionada aos ícones da história
norte-americana. No episódio “Scat Scout Scat”, a imagem de Pepe Legal surge como um dos
grandes desbravadores da região do Novo México. Se o narrador off screem, por exemplo,
prestava-se em sublinhar as proezas do herói com base em uma perspectiva patriótica e
nostálgica (“De todos os famosos personagens do velho oeste, o mais ilustre e intrépido
pioneiro fazia parte da escolta da Fronteira...”), Pepe Legal rompe com tal discurso ao se
mostrar avesso à retórica do narrador. Em linhas gerais, o protagonista, movido pelo espírito
do progresso, almejava construir uma estrada de ferro que atravessaria o território indígena.
Babalu, sempre ponderado, previa os percalços que possivelmente esse projeto geraria, pois os
nativos jamais concordariam com uma linha férrea em suas propriedades.
O processo de representação dos povos nativos, por sua vez, obedece aos estereótipos
do cinema da primeira metade do século XX: intransigentes, cruéis e violentos, malgrado
revestidos de uma camada clownesca. O confronto entre as vozes dos “colonizadores” e das
tribos locais ganha relevo durante a narrativa. Pepe Legal, ávido pelo triunfo, recorria a
inúmeros artifícios para desestabilizar os grupos indígenas e se apoderar de suas terras, ao
passo que o Grande Chefe Pena Curta não apenas resistia às emboscadas do cowboy, como
também preparava o contra-ataque: oferecia ao inimigo o cachimbo da paz e, ao adquirir-lhe a
confiança, amarrava-o em meio a uma fogueira.
O nome da personagem, Grande Chefe Pena Curta, mais uma vez explora, com
humor, as relações entre o signo e sua referência. O nativo possuía baixa estatura, o que
justificava, por meio da antítese, a menção a ele com o adjetivo grande. Por outro lado, reitera
sua altura ao apontá-lo como Pena Curta, qualificando-o como um sujeito baixo.
Conduzindo o sarcasmo aos extremos, o episódio chegava ao fim com o acordo entre
as duas partes. Assim, a estrada de ferro era finalmente edificada, cabendo ao índio uma
concessão, emitida pelo governo, para que pudesse vender “lembrancinhas” aos turistas que
visitassem o velho oeste. Era como se a condição do índio ainda reportasse a trabalhos
inferiores e não compactuasse com o projeto progressista que embalava Pepe Legal. Prova
disso é que, enquanto o citado protagonista ganhava uma estátua em sua homenagem, o chefe
Pena Curta, décadas depois, não seria lembrado com nenhuma honraria.
Considerações finais
Em linhas gerais, o presente estudo ocupou-se em problematizar como uma animação
televisiva, revisitando o gênero cinematográfico western, desconstruía-o por meio da paródia.
O rótulo de cowboy, propagado pelo cinema, muitas vezes empregado ao xerife, ao justiceiro
e ao jovem aventureiro, recebia novo tratamento graças ao processo de ressignificação: o herói,
retomando o discurso das fábulas para atingir uma plateia infantil, era o próprio cavalo,
destituído de qualquer malícia frente uma legião de antagonistas. Por isso os constantes reveses
no desenho e a projeção de um desfecho pouco harmonioso. Os elementos que se repetiam a
cada episódio e a recorrência à mesma fórmula permitiam ao leitor testemunhar o processo de
desconstrução do cowboy consagrado e difundido pela sétima arte na primeira metade do século
XX – embora esse mesmo modelo seja redimensionado posteriormente pelos filmes italianos.
O cowboy representado por Pepe Legal sobrevive ao sabor da sorte, não assume a posição de
respeitada autoridade e conta apenas com o amparo de seu ajudante Babalu.
Nesse universo lúdico, ganha destaque a intertextualidade como grande característica
da Hanna-Barbera e uma das principais fontes de comicidade. Pepe Legal, além de dialogar
com os códigos estéticos do faroeste, incorporava, em alguns episódios, a identidade
enigmática do vingador mascarado El Kabong, possivelmente inspirado no herói Zorro.
Ademais, cumpre destacar que o fabulário da Hanna-Barbera, bastante estilizado,
caracterizava-se também por concentrar as narrativas em um ambiente de ironia, diversão,
fantasia e humor. À primeira vista, distanciar-se-ia da proposta da Disney, calcada em um olhar
inocente, otimista e pueril para com a vida. Ao contrário de Mickey, Donald e Pateta, os novos
desenhos absorviam e devolviam, através da intertextualidade, os ícones da cultura pop, do
cinema e do imaginário estadunidense. Em meio à antropofagia cultural, as personagens
pareciam dar continuidade à estética da Warner, investindo em heróis bufões e abrindo espaço
para a manifestação da paródia, da alusão, da citação, da carnavalização e de outros níveis
intertextuais.
Referências
AMADO, J. O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá. São Paulo: Companhia das Letrinhas,
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Filmografia
No tempo das diligências. Estados Unidos: Direção: John Ford, 1939.
Tom e Jerry. Estados Unidos: Estúdios Hanna-Barbera, 1940.
Atômico. Estados Unidos: Filmation, 1965.
Matar ou morrer. Estados Unidos: Direção: Fred Zimermann, 1952.
Plic, Ploc e Chuvisco. Estados Unidos: Estúdios Hanna-Barbera,1958.
Pepe Legal. Estados Unidos: Estúdios Hanna-Barbera, 1959.
O homem que matou o facínora. Estados Unidos: Direção: John Ford, 1962.
Tartaruga Touchê. Estados Unidos: Estúdios Hanna-Barbera, 1962.
Esquilo sem grilo. Estados Unidos: Estúdios Hanna-Barbera, 1964.
Por um punhado de dólares. Itália: Direção: Sérgio Leone, 1964.
Por uns dólares a mais. Itália: Direção: Sérgio Leone, 1965.
Formiga Atômica. Estados Unidos: Estúdios Hanna-Barbera, 1965.
Três homens em conflito. Itália: Direção: Sérgio Leone, 1966.