Post on 01-Nov-2020
UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIEcircNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLAacuteSSICAS E VERNAacuteCULAS
MARCOS EDUARDO MELO DOS SANTOS
A declamaccedilatildeo ldquoQueixa da Pazrdquo de Erasmo de Rotterdam
estudo introdutoacuterio e traduccedilatildeo (Ediccedilatildeo biliacutengue)
Versatildeo corrigida
Satildeo Paulo
2017
Marcos Eduardo Melo dos Santos
A declamaccedilatildeo ldquoQueixa da Pazrdquo de Erasmo de Rotterdam
estudo introdutoacuterio e traduccedilatildeo (Ediccedilatildeo biliacutengue)
Versatildeo corrigida
Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Faculdade de
Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da
Universidade de Satildeo Paulo para a
obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Letras
Claacutessicas
Aacuterea de Concentraccedilatildeo Letras Claacutessicas
Orientaccedilatildeo Elaine Cristine Sartorelli
Satildeo Paulo
2017
FOLHA DE APROVACcedilAtildeO
NOME SANTOS Marcos Eduardo Melo dos
TIacuteTULO A declamaccedilatildeo ldquoQueixa da Pazrdquo de Erasmo de Rotterdam estudo
introdutoacuterio e traduccedilatildeo (Ediccedilatildeo biliacutengue)
Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da
Universidade de Satildeo Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Letras Claacutessicas
Aprovado em 04082017
Banca Examinadora
Prof Dr Edelcio Gonccedilalvez de Souza (Presidente)
Instituiccedilatildeo Universidade de Satildeo Paulo (USP)
Profa Dra Ana Claacuteudia Romano Ribeiro
Instituiccedilatildeo Universidade Federal de Satildeo Paulo (UNIFESP)
Profa Dra Leni Ribeiro Leite
Instituiccedilatildeo Universidade Federal do Espiacuterito Santo (UFES)
Profa Dra Charlene Martins Miotti
Instituiccedilatildeo Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar aos meus pais Emanuel e Luiza Agrave minha esposa Susana meu
filho Felipe e aos meus irmatildeos Emanuel Luiz e Hugo
Agrave Professora Doutora Elaine Cristine Sartorelli que orientou incansavelmente cada
etapa do trabalho e sempre permitiu a liberdade para adoccedilatildeo ou natildeo de suas sugestotildees Devo
reconhecer todo seu empenho Guardarei admiraccedilatildeo pela sua competecircncia e gratidatildeo por tudo
que com ela aprendi
Natildeo poderia deixar ainda de manifestar minha gratidatildeo a tudo que o Professor Doutor
Pablo Schwartz Frydman e a Doutoranda Baacuterbara Costa e Silva ambos dedicados
pesquisadores das antigas declamaccedilotildees contribuiacuteram para o aprofundamento e a correccedilatildeo do
estudo introdutoacuterio Aos professores Paulo Vasconcellos e Pablo Schwartz Frydman que
fizeram vaacuterias sugestotildees pertinentes durante o exame de qualificaccedilatildeo tanto no texto
introdutoacuterio quanto na traduccedilatildeo
Ao corpo docente da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da
Universidade de Satildeo Paulo que com muito esmero excelecircncia e solicitude me
acompanharam nessa etapa especialmente aos Professores Doutores Joseacute Eduardo Lohner
Pablo Schwartz Frydman Maacutercio Suzuki Mauriacutecio de Carvalho Ramos e Luiz Antocircnio
Lindo que tambeacutem concederam indicaccedilotildees durante o trabalho de conclusatildeo da disciplina que
com eles cursei ao longo do mestrado Natildeo poderia ser omisso em agradecer agrave banca
examinadora que com gentileza e competecircncia arguiram e indicaram modificaccedilotildees no
trabalho
Agrave amiga Professora Doutora Vanessa Guimaratildees Monteiro Ferreira da Costa que
tambeacutem fez observaccedilotildees significativas no que se refere agrave traduccedilatildeo Ao Professor Doutor Marc
van der Poel que gentilmente enviou por correio seus artigos e livros sobre a declamaccedilatildeo natildeo
disponiacuteveis agrave venda a fim de contribuir com esta pesquisa Aos professores de Liacutengua
Portuguesa meus amigos que incansavelmente me auxiliaram na redaccedilatildeo revisatildeo e
discussotildees de opccedilotildees de redaccedilatildeo nomeadamente Letiacutecia Mendes Ferri Luiz Santos Susana
Aparecida da Silva Regina Berti Sarah Barbosa e Weber Suhett
RESUMO
SANTOS Marcos Eduardo Melo dos A declamaccedilatildeo Queixa da paz de Erasmo de
Rotterdam estudo introdutoacuterio e traduccedilatildeo (Ediccedilatildeo biliacutengue) 2017 228 f Dissertaccedilatildeo
(Mestrado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Satildeo Paulo 2017
Este trabalho propotildee a primeira traduccedilatildeo feita diretamente do latim para o portuguecircs
brasileiro de uma das obras mais importantes do humanista Erasmo de Rotterdam a Querela
Pacis undique gentium eiectae profligataeque publicada em 1517 Tal obra constitui-se ao
lado de outros escritos como uma das mais importantes declamaccedilotildees realizadas durante o
Renascimento Nossa transposiccedilatildeo para o portuguecircs consideraraacute os recursos retoacutericos escritos
em latim aleacutem de conter notas explicativas e referecircncias histoacutericas mitoloacutegicas e
bibliograacuteficas sempre que estas se fizerem necessaacuterias para melhor compreensatildeo do texto
aleacutem de referecircncias a autores da Antiguidade assim como a outras obras do proacuteprio autor No
estudo introdutoacuterio dessa obra de gecircnero declamatio renascentista procurar-se-aacute analisar o
texto erasmiano segundo a conceituaccedilatildeo da retoacuterica tradicional antiga sobretudo dos autores
do periacuteodo imperial quando a praacutetica das declamaccedilotildees escritas em grego e latim se sobrepocircs agrave
oratoacuteria sem espaccedilo em razatildeo do decliacutenio senatorial Com base nas fontes antigas e nos
estudos recentes pretendemos identificar as semelhanccedilas e diferenccedilas entre a retoacuterica dos
autores romanos e a erasmiana nela concretizada Tambeacutem seratildeo investigadas as estrateacutegias
da argumentaccedilatildeo persuasiva sejam epidiacuteticas sejam deliberativam em favor da paz e em sua
polecircmica diatribe contra a guerra
Palavras-chave retoacuterica recepccedilatildeo dos claacutessicos humanismo Erasmo de Rotterdam
declamaccedilatildeo
ABSTRACT
SANTOS Marcos Eduardo Melo dos The Complaint of Peace declamation by
Desiderius Erasmus introduction and translation (Bilingual edition) 2017 228 f
Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Satildeo Paulo
2017
This paper proposes the first translation directly from Latin into Brazilian Portuguese
of one of the most important works by the humanist Desiderius Erasmus Querela Pacis
undique gentium eiectae profligataeque published in 1517 This work constitutes one of the
most important declamations written during the Renaissance Our transposition to Portuguese
will consider rhetorical resources as well as containing explanatory notes about historical
mythological and bibliographical references whenever these are necessary for a better
understanding of the text such as references to direct or indirect allusions to writings of
Antiquity or other works by the author himself In the introductory study of this work of the
Renaissance declamatio genre we will analyze the Erasmian text according to the ancient
traditional Greco-Roman concept of Rethoric especially in the authors of the imperial period
when the practice of declamations written in Greek and Latin overlapped the oratory without
the ancient status because of the senatorial decline Based on ancient sources and recent
studies we intend to identify the similarities and differences between the rhetoric of classic
Latin authors and the erasmian rhetoric embodied in the Complaint of Peace We will also
investigate the strategies of persuasive argumentation whether epididical or deliberative in
favor of peace and in its controversial diatribe against war
Keywords rhetoric classical reception humanism Desiderius Erasmus declamation
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 1
Estrutura do estudo introdutoacuterio 4
Estudos e publicaccedilotildees precedentes sobre o objeto de pesquisa 5
CAPIacuteTULO 1 ndash O GEcircNERO DECLAMACcedilAtildeO E SUA RECEPCcedilAtildeO NO
RENASCIMENTO 11
11 Origem grega 11
111 Definiccedilatildeo 11
112 Principais autores e escritos em grego 14
12 A praacutetica latina 15
13 As fontes latinas 17
131 Discussatildeo terminoloacutegica 18
132 O contexto republicano e o imperial 19
14 A declamaccedilatildeo segundo os autores latinos 22
141 A Retoacuterica a Herecircnio 22
142 Ciacutecero 22
143 Secircneca o Reacutetor ou o Velho 23
144 A suasoacuteria em Secircneca 28
145 Quintiliano 30
15 A recepccedilatildeo dos autores antigos no Renascimento 35
16 A recepccedilatildeo pelas ediccedilotildees e traduccedilotildees dos autores antigos 39
17 Principais declamadores e declamaccedilotildees renascentistas 42
171 Lourenccedilo Valla 42
172 Thomas More 44
18 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees renascentistas 45
19 Definiccedilotildees da declamaccedilatildeo pelos renascentistas 47
110 Conclusotildees do capiacutetulo 48
CAPIacuteTULO 2 - A DECLAMACcedilAtildeO ERASMIANA E A QUEIXA DA PAZ 51
21 Definiccedilotildees erasmianas 51
22 Temas 53
23 Contato de Erasmo com declamaccedilotildees precedentes 56
231 Isoacutecrates 56
232 Plutarco 57
233 Luciano 57
234 Libacircnio 58
24 Elenco das declamaccedilotildees de Erasmo 60
25 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees erasmianas 62
26 Declamaccedilatildeo escrita e integral 63
27 O puacuteblico alvo e o contexto histoacuterico 64
28 Reaccedilotildees agrave declamaccedilatildeo da paz 68
29 A disposiccedilatildeo retoacuterica 69
210 As sentenccedilas e os adaacutegios 73
211 Declamaccedilatildeo e espelho dos priacutencipes 77
212 Traccedilos de suasoacuteria e de elogio 78
213 Conclusotildees do capiacutetulo 81
CAPIacuteTULO 3 ndash A PERSONIFICACcedilAtildeO DA PAZ 83
31 Declamaccedilatildeo e personificaccedilatildeo 83
32 Semelhanccedilas com as personificaccedilotildees biacuteblicas 83
33 As mulheres das ldquoHeroidesrdquo de Oviacutedio 85
34 Personificaccedilotildees femininas 87
35 A deusa Pax 92
36 A Paz enquanto saacutebia 95
37 A Paz enquanto teoacuteloga 97
38 A Paz enquanto viacutetima 100
39 Conclusatildeo do capiacutetulo 101
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 103
NOTA PREacuteVIA AO TEXTO LATINO E Agrave TRADUCcedilAtildeO PORTUGUESA
COMENTADA 111
BIbLIOGRAFIA 185
Fontes primaacuterias 185
Traduccedilotildees da Queixa da Paz em ordem cronoloacutegica 185
Outras fontes e traduccedilotildees 187
Dicionaacuterios 189
Estudos 189
1
INTRODUCcedilAtildeO
Eacute objetivo desta dissertaccedilatildeo apresentar a primeira traduccedilatildeo direta do latim para o
portuguecircs brasileiro da declamaccedilatildeo ldquoQueixa da Pazrdquo (Querela Pacis) obra de autoria do
humanista holandecircs Erasmo de Rotterdam1 escrita ao longo do ano de 1516 e publicada em
novembro de 1517 Esta seraacute precedida de um estudo introdutoacuterio que procuraraacute ressaltar o
uso de recursos retoacutericos em defesa da paz e de criacutetica agrave guerra Aleacutem de identificar o modo
pelo qual se fez uso dos autores antigos na ldquoQueixa da Pazrdquo verificaremos as colaboraccedilotildees
mais relevantes de Erasmo para a retoacuterica segundo a antiga tradiccedilatildeo escrita em grego e e
latim Como objetivos especiacuteficos o presente trabalho visa aleacutem de propor uma nova
traduccedilatildeo apresentar uma introduccedilatildeo e notas atualizadas segundo os recentes estudos
acadecircmicos assinalar a ocorrecircncia de referecircncias a oradores latinos assim como daqueles
declamadores do periacuteodo imperial romano que escreveram em grego identificar os elementos
da retoacuterica deliberativa erasmiana em defesa da paz do ponto de vista do gecircnero declamaccedilatildeo
(declamatio)
Este trabalho de pesquisa justifica-se pela contribuiccedilatildeo da primeira traduccedilatildeo direta do
latim para o portuguecircs brasileiro da ldquoQueixa da Pazrdquo publicada em versatildeo biliacutengue ou seja
com o texto latino em paralelo com a traduccedilatildeo e a uacutenica precedida de um estudo introdutoacuterio
especiacutefico acerca do ponto de vista do gecircnero a que o texto pertence Essa traduccedilatildeo fornece a
aos pesquisadores lusoacutefonos um texto para o entendimento da concepccedilatildeo e do uso da
declamaccedilatildeo por Erasmo que aleacutem de ser um dos mais destacados autores humanistas que
ldquodirecionaram suas obras mais importantes para a educaccedilatildeo literaacuteriardquo (Mack 1993 p 303)
escreveu quatorze obras nesse gecircnero inclusive dentre elas algumas de suas mais lidas
traduzidas e comentadas como eacute o caso do ldquoElogio da Loucurardquo Essa traduccedilatildeo
disponibilizaraacute aos pesquisadores lusoacutefonos a traduccedilatildeo de uma das mais difundidas obras de
Erasmo de Rotterdam em diversos pontos de vista tais como recepccedilatildeo dos antigos pelos
autores cristatildeos renascentistas a permanecircncia dos gecircneros antigos na prosa neolatina e sua
atualizaccedilatildeo por meio da imitatio recuperaccedilatildeo da retoacuterica antiga no seacuteculo XVI uso de
1 Sobre a referecircncia agrave cidade de Erasmo (Rotterdam Roterdatildeo Roterdatilde Roterdam) encontrei variantes
ortograacuteficas em textos acadecircmicos lusos e brasileiros Optei pela versatildeo ldquoRotterdamrdquo com base no ldquoManual de
Redaccedilatildeo Oficial e Diplomaacutetica do Itamaratyrdquo (Brasil Ministeacuterio das Relaccedilotildees Exteriores Manual de redaccedilatildeo
oficial e diplomaacutetica do Itamaraty 2016 p 166)
2
recursos retoacutericos no gecircnero deliberativo e finalmente trata-se de um texto fundamental para
a compreensatildeo da filosofia irecircnica de Erasmo ou seja ao conjunto de argumentos filosoacuteficos
que Erasmo alinha a favor da paz e do qual deriva a moderna concepccedilatildeo de paz em sua
dimensatildeo interestatal
O texto latino por noacutes utilizado foi o ldquoQuerela Pacis undique gentium eictae
profiligataequerdquo disponiacutevel na ediccedilatildeo criacutetica (Desiderii Erasmi Roterodami Opera
omnia recognita et adnotatione critica instructa notisque illustrata Amsterdam North-
Holland 1969-2001) coleccedilatildeo cujo volume com o texto em estudo foi publicado em 1977
Como fontes de conceituaccedilatildeo da arte retoacuterica servimo-nos das obras dos autores latinos e
gregos que escreveram sobre a retoacuterica e sobre a declamaccedilatildeo especialmente aqueles que
foram certamente conhecidos por Erasmo Conforme Chomarat (1981 p 990) devem-se
considerar alguns autores que influenciaram Erasmo na redaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo
especialmente os que escreveram sobre a retoacuterica e sobre a declamaccedilatildeo Especial atenccedilatildeo
deve ser dada aos autores que aleacutem de teorizarem sobre o gecircnero tambeacutem o praticaram
Conforme a observaccedilatildeo de Franco Gaeta (1968 p 13) procurar-se-aacute a fundamentaccedilatildeo em
ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo de Quintiliano assim como nas ldquoControveacutersiasrdquo e ldquoSuasoriasrdquo de
Secircneca o velho e no ldquoSobre a Clemecircnciardquo de Secircneca o Jovem Nesse grupo de autores
antigos devemos ainda acrescer Ciacutecero Plutarco Libacircnio e Luciano Os textos destes autores
foram citados por Erasmo que aleacutem de tradutor tambeacutem era editor e que teve uma
contribuiccedilatildeo significativa para a introduccedilatildeo dos meacutetodos criacuteticos na histoacuteria da filologia
conforme o consenso de vaacuterios autores da aacuterea (Bentley 1977 p 9 Prete 1965 p 259 Prete
1970 p 18 Payne 1974 p 54)
Segundo evidecircncias internas e externas apontadas em um estudo das epiacutestolas
erasmianas realizado por Beauduin (1991 p 35) essa obra foi escrita em Lovaina Beacutelgica
entre novembro e dezembro do ano de 1516 a pedido do grande chanceler da Borgonha Joatildeo
Sauvage e dedicada ao Abade de Saint-Bertin Antocircnio de Bergen Nesse mesmo ano
Erasmo havia sido nomeado conselheiro do priacutencipe Carlos de Borgonha que logo se tornaria
Carlos de Espanha (Margolin 1992 p 909) Foi publicada em 1517 e reeditada em 1518
Como evento histoacuterico proacuteximo que pode ser considerado o principal motivo da redaccedilatildeo desse
manifesto em favor da paz deve-se destacar que estava em curso a guerra da Liga de
Cambrai a qual se estendeu ateacute os enfrentamentos das guerras da Liga Santa (1508-1516)
3
Que este tenha sido de fato o motivo decisivo para que o autor humanista escrevesse essa
ldquoQueixa da Pazrdquo prova-o a menccedilatildeo a tais fatos histoacutericos em uma de suas correspondecircncias a
Joatildeo Botzheim (1523)2 Da mesma forma Erasmo alude indiretamente ao tema no final da
declamaccedilatildeo
Partindo do pressuposto de que o proacuteprio Erasmo afirmava na epiacutestola a Joatildeo
Botzheim que a ldquoQueixa da Pazrdquo eacute uma declamaccedilatildeo (Chomarat 1987 p 997) pretendemos
discutir no estudo introdutoacuterio sobre as caracteriacutesticas desse gecircnero Para isto natildeo somente
verificaremos sua gecircnese atribuiacuteda aos autores gregos (como μελέηη) e sua recepccedilatildeo pelos
autores latinos (como declamatio) mas em que medida a declamaccedilatildeo erasmiana enquadra-se
nesse gecircnero antigo
Em geral seu formato antigo foi definido por Bonner (1949 p 13) Wintterboton
(1980 p 24) e Schwartz (2004 p 21) como um discurso escrito como exerciacutecio escolar
acerca de uma causa fictiacutecia com a finalidade de treino em temas da retoacuterica deliberativa ou
judiciaacuteria Dentre suas caracteriacutesticas o presente estudo ressalta a personificaccedilatildeo que nas
declamationes renascentistas especialmente em Erasmo foi praticada de uma forma
inovadora em comparaccedilatildeo com as antigas Enquanto que naquelas antigas ou seja produzidas
nos seacuteculos I a C a I d C As personagens satildeo humanas e fictiacutecias o que denota certa
modificaccedilatildeo para o gecircnero em estudo A novidadade das declamaccedilotildees renascentistas
especialmente em Erasmo seria a inserccedilatildeo da fala (prosopopeia) de personagens abstratas
como a Paz na ldquoQueixa da Pazrdquo e a Loucura em seu ldquoElogiordquo
Por outro lado destaca-se a ficccedilatildeo como estrateacutegia para expressar ideias de forma livre
em uma sociedade que natildeo prezava a liberdade de expressatildeo e a caracterizaccedilatildeo com atributos
sociais e psicoloacutegicos do universo feminino nessas personificaccedilotildees erasmianas Tal
caracterizaccedilatildeo sem o uso de voz narrativa como eacute natural na declamaccedilatildeo mas atraveacutes do
discurso direto apresenta a paz como mulher e matildee apelando agraves emoccedilotildees do leitor a fim de
cativaacute-lo para a causa irecircnica pretendida pelo autor Conveacutem portanto analisar a ldquoQueixa da
Pazrdquo sob a perspectiva da recepccedilatildeo do gecircnero declamaccedilatildeo de um modo semelhante ao que
era praticado pelos autores antigos e predicado nos manuais de retoacuterica latina
2 Cf Erasmo de Rotterdam A Johann von Botzheim in Correspondence of Erasmus Letters 1252 to 1355
1522 to 1523 Trad James Martin Estes Toronto University Toronto Press 1989 p 319
4
Estrutura do estudo introdutoacuterio
O estudo introdutoacuterio estaacute composto de trecircs capiacutetulos os quais procuram apresentar a
ldquoQueixa da Pazrdquo em sua relaccedilatildeo com o gecircnero literaacuterio que inspirou sua forma a declamaccedilatildeo
Assim o primeiro capiacutetulo o caracteriza entre alguns autores antigos que escreveram sobre o
ele ou utilizaram-se dele no periacuteodo compreendido entre os seacuteculos I a C e I d C Aleacutem do
recorte do periacuteodo e dos autores seraacute dada atenccedilatildeo especial agraves referecircncias agrave declamaccedilatildeo nas
obras de Ciacutecero na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo nos Prefaacutecios das ldquoControveacutersiasrdquo de Secircneca o
Velho e na ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo de Quintiliano que ilustram as discussotildees das
caracteriacutesticas da declamaccedilatildeo que presentemente consideramos
O segundo capiacutetulo discorre sobre a praacutetica deste gecircnero por Erasmo A discussatildeo se
inicia com uma descriccedilatildeo do seu uso entre os autores do Renascimento sobretudo daqueles
que podem ter influenciado o roterdamecircs na escrita das suas declamaccedilotildees Seguir-se-aacute um
elenco das declamaccedilotildees erasmianas e um estudo da questatildeo de espeacutecies de declamaccedilotildees suas
relaccedilotildees diretas com outros gecircneros e a ocorrecircncia de prosopopeias a fim de estabelecermos
comparaccedilotildees
O terceiro capiacutetulo trata da ldquoQueixa da Pazrdquo em comparaccedilatildeo com o gecircnero
declamaccedilatildeo praticado e teorizado pelos autores antigos conforme se discorreu no capiacutetulo
primeiro assim como algumas datadas do Renascimento ou de autoria do proacuteprio Erasmo
Aqui procuraremos ainda demonstrar como e em que medida esta obra pertence agrave linhagem
da declamaccedilatildeo tal como esta era prescrita e praticada pelos autores dos seacuteculos XV e XVI
Tais comparaccedilotildees visam sobretudo a dois pontos primeiro tratar a respeito do subgecircnero da
ldquoQueixa da Pazrdquo ao analisar os argumentos a favor de classificaacute-la como do epidiacutetico ou
como do deliberativo segundo uma vez que os autores do Renascimento utilizavam
intencionalmente os princiacutepios da retoacuterica antiga para a invenccedilatildeo de seus escritos
discutiremos a caracterizaccedilatildeo da Paz enquanto prosopopeia abstrata e feminina como
estrateacutegia de persuasatildeo em conformidade com as regras de retoacuterica antiga recebida no
Renascimento
5
Estudos e publicaccedilotildees precedentes sobre o objeto de pesquisa
Antes de entrar no objeto proposto conveacutem pontuar o estado dos estudos acadecircmicos
acerca do gecircnero declamaccedilatildeo e mais especificamente da sua recepccedilatildeo entre os escritores
humanistas A produccedilatildeo de artigos acadecircmicos ou dissertaccedilotildees nesse recorte temaacutetico natildeo eacute
numericamente ampla mas tem sido enriquecida por especialistas voltados para pesquisas
sobre a declamaccedilatildeo ou os autores que a ela se dedicaram Ao iniciarmos o cotejo das versotildees
da ldquoQueixa da Pazrdquo verificamos que se encontram disponiacuteveis para consulta on-line seis das
vinte e cinco ediccedilotildees desta obra datadas do seacuteculo XVI Aleacutem dessas ediccedilotildees latinas foi
possiacutevel encontrar uma traduccedilatildeo francesa do seacuteculo XVI La Complainte de la Paix
Tradution de le Chevalier de Berquin (1525) Verificou-se ademais que haacute uma ediccedilatildeo
criacutetica (Desiderii Erasmi Roterodami Opera omnia recognita et adnotatione critica instructa
notisque illustrata Amsterdam North-Holland 1969-2001) e dezenas de traduccedilotildees em inglecircs
francecircs italiano alematildeo e portuguecircs cuja lista encontra-se na bibliografia e da qual
salientamos a existecircncia de doze ediccedilotildees nos uacuteltimos quinze anos em cinco vernaacuteculos
ocidentais Deve-se dizer que muitas destas natildeo parecem ser traduzidas diretamente do latim
Dessa profusatildeo de fontes e traduccedilotildees infere-se que a ldquoQueixa da Pazrdquo eacute uma obra que natildeo
somente obteve grande difusatildeo durante o seacuteculo XVI Ainda hoje eacute umas das obras de
Erasmo mais difundidas equiparavelmente ao ldquoElogio da Loucurardquo e o ldquoDe Copiardquo O
primeiro dispensa apresentaccedilatildeo no caso do segundo conveacutem lembrar que ldquoseguindo os
modelos de Ciacutecero e Quintiliano e tendo como principal objetivo a invenccedilatildeo foi
provavelmente o manual mais estudado de todo o Renascimentordquo (Mack 1993 p 305)
contando com mais de cento e cinquenta ediccedilotildees somente na centuacuteria de sua publicaccedilatildeo Esta
difusatildeo denota a relevacircncia e a influecircncia desse autor para a recuperaccedilatildeo da retoacuterica antiga em
seu tempo Muitos dos princiacutepios retoacutericos consignados nesse manual satildeo postos em praacutetica
na declamaccedilatildeo que pretendemos analisar Haacute tambeacutem a ediccedilatildeo das epiacutestolas de Erasmo
realizada sob a direccedilatildeo de Allen (1906) e que satildeo uacuteteis para o entendimento da compreensatildeo
do proacuteprio autor acerca da sua obra das circunstacircncias histoacutericas que inspiraram a redaccedilatildeo do
discurso da Paz e dos conceitos que potildee em praacutetica nessa declamaccedilatildeo
Embora muitas destas ediccedilotildees (Bagdat 1924 Von Balthasar 1945 Dolan 1964
Philip 1967 Gaeta 1968 Christian 1968 Radice 1968 Telle 1978 Hannermann 1985
Van Leeuwen 1986 Levi 1986 Chomarat 1991 e 1974 Margolin 1992 Carena 1995
6
Pinto 1999 Cinti 2005 Labre 2005 Jovella 2008 Bellacasa 2008 Hoffmann 2013)
apresentem introduccedilotildees agrave ldquoQueixa da Pazrdquo ou a outras obras de Erasmo (Sartorelli 2013
Saacutenchez Salor 2011 King e Rix 2007) deve-se dizer que embora estas apresentem alguns
dados que natildeo podem ser preteridos e que foram considerados no presente estudo estes textos
introdutoacuterios estatildeo muitas vezes limitados agraves regras e aos objetivos editoriais restringindo-se
a informaccedilotildees biograacuteficas ou histoacutericas sem anaacutelises aprofundadas do texto seu gecircnero ou
recepccedilatildeo
Aleacutem das introduccedilotildees das traduccedilotildees verificou-se a existecircncia de apenas um estudo
acadecircmico na aacuterea de literatura especiacutefico sobre a ldquoQueixa da Pazrdquo (Bagdat 1924) assim
como o artigo de Chomarat (1974) e um dos capiacutetulos do seu livro ldquoGrammaire et Rheacutetorique
chez Erasmerdquo (1981) Foi entatildeo necessaacuterio incrementar a pesquisa com artigos acadecircmicos e
livros publicados mais recentemente por editoras universitaacuterias que tratam sobre temas
indiretamente relacionados com o objeto de pesquisa ou seja sobre o autor (Erasmo de
Rotterdam) sobre a obra em estudo sobre o gecircnero no qual foi escrita a obra (declamaccedilatildeo) e
sobre a recepccedilatildeo da retoacuterica antiga entre os humanistas Dada a falta de estudos que tratam
diretamente sobre a Queixa da Paz natildeo foi possiacutevel apresentar um estado da questatildeo no
sentido a que se estaacute habituado na academia mas apenas algumas obras que apresentam
relaccedilatildeo parcial com nosso objetivo
Tendo diante de si estes livros ou artigos eacute possiacutevel classificaacute-los nos seguintes
grupos (grupo 1) sobre a retoacuterica e a declamaccedilatildeo antiga (grupo 2) sobre a recepccedilatildeo da
retoacuterica e da declamaccedilatildeo no Renascimento (grupo 3) sobre estas em Erasmo Dadas as
limitaccedilotildees temporais do mestrado assim como a dificuldade de acesso a alguns livros natildeo
disponiacuteveis nas bibliotecas brasileiras os livros capiacutetulos de livros e artigos abaixo
catalogados natildeo esgotam a bibliografia sobre as mateacuterias em questatildeo como eacute o caso de
muitas obras de origem francesa que natildeo foi possiacutevel acessar mas que natildeo satildeo pertinentes
para o presente estudo uma vez que tratam da recepccedilatildeo da obra de holandecircs em outros autores
a partir do seacuteculo XVI
Ainda que nossa intenccedilatildeo primeira fosse atentar para a declamaccedilatildeo latina natildeo era
possiacutevel preterir alguns estudos sobre a grega (Russell 2009) e sobre a caracterizaccedilatildeo da
mulher nesta (Gruber 2008) uma vez que se fazem pertinentes natildeo somente para a
consideraccedilatildeo da romana mas tambeacutem daquela praticada por Erasmo que as conhecia ainda
7
na forma de manuscrito Entre os estudos sobre a declamaccedilatildeo latina destacam-se o de Wolf
(2013) Van Mal-Maeder (2007) Winterbottom (1980 e 2006) Shenk (1982) Mendelson
(1994) Clarke (1996) Bonner (1949 e 1966) e Schwartz (2000 e 2004) Tambeacutem se tornam
pertinentes alguns estudos especiacuteficos sobre as declamaccedilotildees como o de Bonner (1966) sobre
Luciano o artigo de Schwartz (2000) sobre esse gecircnero sob Augusto os dois artigos de
Bayley sobre as ldquoDeclamationes maioresrdquo e ldquominoresrdquo atribuiacutedas a Quintiliano (1984 e
1989) os artigos de Clark (1957) e Dupont (1997) sobre sua praacutetica escolar e os estudos de
Marrou (1948) de Vasconcelos (2000 e 2002) de Gibson (2004) e de Manoel (2014) sobre as
progymnasmata o estudo acerca da relaccedilatildeo do contexto histoacuterico com as controveacutersias escrito
por Mendelson (1994) o artigo com o recorte sobre as ldquocrianccedilas abandonadasrdquo nas
declamaccedilotildees (Bernstein 2009) o artigo sobre a declamaccedilatildeo em Secircneca (Edward 1928
Sussman 1972 Fairweather 1981 Schwartz 2004 Bloomer 2010 Costrino 2010) ou
ainda outros autores como em Taacutecito (Pereira 2013) em Quintiliano (Reali e Turazza 2012)
e em Luciano (Thompson 1965 e 1974) Dentre este alguns natildeo somente foram lidos por
Erasmo mas tambeacutem traduzidos por ele do grego para o latim
Sobre a recepccedilatildeo da declamaccedilatildeo no Renascimento (grupo 2) destacam-se os artigos
de Kinney (1976) e Vasoli (2008) sobre a retoacuterica humanista Devem-se ressaltar ainda os
textos sobre as declamaccedilotildees de Erasmo analisados por Giazzi (2008) Tunberg (1996 2006 e
2013) os jaacute mencionados escritos de Chomarat (1974 e 1981) e Van der Poel (1987 e 1989)
Aleacutem disso Van der Poel publicou artigos sobre a declamaccedilatildeo em Agripa e Erasmo (Van der
Poel 1994 e 1997) e em Cardano (Vander Poel 2005) Entre os estudos sobre as declamaccedilotildees
de Erasmo em particular destaca-se a referecircncia de Grimal (1994) sobre a declamaccedilatildeo
ldquoSobre a morterdquo de Erasmo as introduccedilotildees ao ldquoDiaacutelogo Ciceronianordquo (Pigman 1977
Sartorelli 2015) ao ldquoElogio do Matrimocircniordquo de Leushuis (2004) e Sowards (1958 e 1982)
sobre o ldquoElogio da Loucurardquo (Sartorelli 2013 Moya Bedoya 1994) Sobre a influecircncia de
Valla em Erasmo haacute o artigo de Bentley (1977) assim como os estudos de Schwahn (1928) e
Ginzburg (2004) sobre a declamaccedilatildeo ldquoDoaccedilatildeo de Constantinordquo Temos ainda os estudos de
Fox (1983) Baumann (1985) e Corral (2012) sobre o ldquoTiranicidardquo de More os de Logan
(2003) e Miller (1994) sobre a ldquoUtopiardquo e por fim sobre o ldquoElogio de Nerordquo de Cardano o
estudo de Biffino (2002)
8
Sobre a recepccedilatildeo da retoacuterica antiga em Erasmo (grupo 3) verificamos a existecircncia de
capiacutetulos de livros e artigos de Murphy (1974 1983 2005 e 2012) Bataillon (1977 e 1982)
Margolin (1973 1977 1992 1987 1993 1995 1997 e 1998) Chomarat (1974 e 1981)
Pigman (1980 e 1990) Green e Murphy (2006) Mack (1993 1996 e 2011) Sartorelli (2001
2009 2012 2013 e 2015) Rummel (1985 1990 1996 1998 1999 e 2000) Weiland (1988)
Pinto (2006) e Logan (1994) Haacute alguns estudos sobre a recepccedilatildeo da retoacuterica antiga no
Renascimento que se referem marginalmente sobre Erasmo como o de Burke (2003) e os
artigos de Kinneyy (2004) Goacutemez Cervantes (2007) Alexandre Juacutenior (2008) Hernaacutendez
Guerrero e Garciacutea Tejera (1992) e Gianotti (2008) Ainda nesse grupo destaca-se o artigo
sobre ldquodeclamaccedilatildeo e retoacutericardquo de Gunderson (2009) Tendo como recorte a obra de Erasmo
temos Sloane (1991 e 2004) e Pinto (2006) Haacute ainda sobre a saacutetira em Erasmo feita por Story
(2012) Kennedy (1980) Hoffmann (1994) e Boyle (2004) tambeacutem apresentam artigos sobre
a relaccedilatildeo da filologia e da retoacuterica erasmiana com a teologia e a filologia biacuteblica Ainda no
recorte do Renascimento destaca-se o estudo filosoacutefico sobre a paz feito por Cailes (2012)
no qual compara as teorias de Erasmo e Machiavel e os estudos filosoacuteficos acerca do
pacifismo de Erasmo realizados por Meulen (1990) Hoffmann (2000) Kinsella e Carr
(2007) Martiacuten (2007) Dungen (2008) e Christi (2009) A respeito de outras questotildees
filosoacuteficas ou literaacuterias podemos citar as dissertaccedilotildees ou teses defendidas na proacutepria
Universidade de Satildeo Paulo a de Salum (2009) a de Nassaro (2010) e a de Rodrigues (2012)
Embora natildeo seja o foco principal da pesquisa tivemos o cuidado de consultar algumas
biografias Entre estas acessamos duas por Bainton (1969) e Faludy (1970) Minnich e
Meissner (1978) Boeft (1989) Bietenholz (1985 e 2009) e Vredeveld (1993) escrevem textos
de iacutendole histoacuterico-biograacutefica Meacutenager (2000) redigiu um artigo acerca da posiccedilatildeo poliacutetica
neutra de Erasmo face agrave poliacutetica francesa e espanhola Merece especial destaque o trabalho
biograacutefico de Beauduin (1991) com base na epistolografia erasmiana Haacute tambeacutem estudos
histoacutericos sobre a influecircncia erasmiana no seacuteculo XVI (Rowland 1987)
No tocante agrave recepccedilatildeo que os escritos de Erasmo obtiveram sem pretender esgotar o
universo desse gecircnero de pesquisa e que natildeo se configura como essencial para na pesquisa
como eacute o caso da ampla produccedilatildeo francesa tivemos acesso ao artigo sobre sua influecircncia em
Joatildeo Fletcher escrito por Waith (1951) em Joatildeo Bodin conforme artigo de Remer (1994)
em Bartolomeu de las Casas segundo Torres (1993) na Alemanha do seacuteculo XVI por Tracy
9
(1969) na literatura francesa em artigo de Phillips (1971) no seacuteculo XIX por Mansfiel
(1968) e sobre a recepccedilatildeo da declamaccedilatildeo romana no seacuteculo XX por Gunderson (2003)
Destacam-se alguns estudos temaacuteticos como o texto de Whers (2004) sobre a eacutetica
erasmiana sobre a recepccedilatildeo do ldquoAdversus Jovianumrdquo em Erasmo escrito por Pabel (2002)
sobre a influecircncia de Jerocircnimo no holandecircs em artigo de Sloane (2004) e sobre a influecircncia
da ldquoArte Poeacuteticardquo de Horaacutecio sobre os ldquoAdaacutegiosrdquo publicado por Magnien (2012) Como
analisaremos a caracterizaccedilatildeo da paz enquanto personagem feminina eacute necessaacuterio considerar
o livro de Rummel (1996) sobre a mulher em Erasmo e os artigos sobre a educaccedilatildeo feminina
publicado por Soward (1982) por Cousins (2004) e por Leushuis (2004) Sobre a ficccedilatildeo nas
declamaccedilotildees temos o estudo de van Mal-Maeder (2007) que inclusive foi comentada em
resenha por Bloomer (2009) Entre estes trabalhos deve-se levar em consideraccedilatildeo a questatildeo
sobre a oposiccedilatildeo dos humanistas aos escolaacutesticos (Bejczy 2001 Rummel 1998)
Esta pesquisa verificou portanto com a exceccedilatildeo da dissertaccedilatildeo de Bagdat (1924) e o
artigo de Chomarat (1974) o qual tratou especificamente sobre a ldquoQueixa da Pazrdquo do ponto
de vista da aacuterea de Letras a inexistecircncia de artigo acadecircmico ou livro especiacutefico sobre o tema
em questatildeo ou seja sobre a recepccedilatildeo do gecircnero declamaccedilatildeo Encontramos apenas seu
tratamento de modo sucinto em Chomarat (1981) e Van der Poel (1989) Por outro lado
verificou-se a necessidade e a relevacircncia acadecircmica do estudo das declamaccedilotildees de Erasmo e
de consideraccedilotildees mais especiacuteficas sobre a ldquoQueixa da Pazrdquo do ponto de vista da recepccedilatildeo dos
antigos Como vaacuterios autores mencionam este gecircnero e a proacutepria declamaccedilatildeo como exemplo
deve-se considerar que devido ao caraacuteter marginal de muitos comentaacuterios sem a
especificidade de uma referecircncia direta agrave declamaccedilatildeo em comento ou ao tratar do pacifismo
erasmiano sem muitas vezes levar em consideraccedilatildeo o gecircnero literaacuterio da obra torna-se
pertinente um texto especiacutefico sobre o gecircnero literaacuterio sua personificaccedilatildeo feminina da paz
sob o enfoque da recepccedilatildeo dos autores antigos a qual ainda eacute ineacutedita no mundo acadecircmico
Ademais com exceccedilatildeo do capiacutetulo de Chomarat (1981) e apesar da importacircncia da retoacuterica
antiga para os autores do Renascimento verificamos a inexistecircncia de textos acadecircmicos
especiacuteficos sobre a retoacuterica na ldquoQueixa da Pazrdquo motivo pelo qual se verifica mais um ponto
de novidade no presente estudo
10
11
CAPIacuteTULO 1 ndash O GEcircNERO DECLAMACcedilAtildeO E SUA RECEPCcedilAtildeO NO
RENASCIMENTO
O presente capiacutetulo trata da definiccedilatildeo conceitual e das diferenccedilas essenciais e
terminoloacutegicas do gecircnero declamaccedilatildeo (em latim declamatio em grego μελέηη) entre alguns
autores antigos gregos e latinos especialmente nos tempos finais da Repuacuteblica e do iniacutecio do
Impeacuterio Entre esses autores antigos daremos atenccedilatildeo especial agrave forma como o assunto
aparece nas obras de Ciacutecero na passagem pertinente da ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo em alguns
prefaacutecios das ldquoControveacutersiasrdquo de Secircneca o Velho e por fim em Quintiliano em razatildeo da
influecircncia da ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo sobre os humanistas a partir da redescoberta de um de
seus manuscritos na iacutentegra no iniacutecio do seacuteculo XV Apoacutes uma descriccedilatildeo do uso da
declamaccedilatildeo entre as ediccedilotildees dos autores antigos que escreveram declamaccedilotildees ou teorias sobre
a declamaccedilatildeo e foram editados ou traduzidos no Renascimento nosso enfoque recairaacute
especialmente sobre aqueles autores humanistas que precederam Erasmo na recuperaccedilatildeo do
gecircnero
11 Origem grega
111 Definiccedilatildeo
Partindo do pressuposto de que o proacuteprio Erasmo em carta a Joatildeo Botzheim datada de
1523 classificou a Queixa da Paz como uma declamaccedilatildeo e de que haacute consenso entre
estudiosos como Chomarat (1981 p 997) que confirmam esta classificaccedilatildeo eacute oportuno
considerar o que vem a ser exatamente uma declamaccedilatildeo segundo a conceituaccedilatildeo dos autores
antigos imitados pelos humanistas Em conferecircncia ainda natildeo publicada Sartorelli assim
define a declamaccedilatildeo in genere
Na Antiguidade as declamationes eram discursos escritos como exerciacutecio
escolar acerca de uma causa fictiacutecia apenas para aquecimento ou treino nos
cursos de oratoacuteria Tratava-se portanto de preparaccedilatildeo para a ocasiatildeo em que a
fala de fato se faria necessaacuteria (o tribunal a assembleia) e uma demonstraccedilatildeo
de habilidade O exercitar-se era o essencial para manter-se bdquoem forma‟ para
um puacuteblico cujos ouvidos estavam acostumados ao mais alto niacutevel de
eloquecircncia e que natildeo deixaria passar um deslize por parte daquele que
discursava (Sartorelli 2013 reproduccedilatildeo de conferecircncia)
12
Deve-se recordar que alguns poucos exerciacutecios similares agrave declamaccedilatildeo (a μελέηη)
ainda que tais discursos sejam duvidosos em relaccedilatildeo agrave sua finalidade escolar teriam sido
praticados pelos sofistas entre os quais podem-se citar o Elogio a Helena ou a Defesa de
Palemedes cuja autoria foi atribuiacuteda a Goacutergias e que satildeo datados do seacuteculo IV a C ou ainda
as Tetralogias de Antifonte (Winterbottom 2006 p 76 Costrino 2010 p 12 Kennedy
1980 p 28) Conservaram-se ainda alguns papiros de declamaccedilotildees gregas datadas do seacuteculo
III a C consideradas as mais antigas declamaccedilotildees conservadas (Russel 2009 p 6)
Nesse particular Kennedy (1980 p 103) ressaltou a importacircncia do manual sobre
declamaccedilotildees do gecircnero epidiacutetico Este eacute composto de oito capiacutetulos preservados entre as obras
de Dioniacutesio de Halicarnaso mas escrito por um autor anocircnimo do terceiro seacuteculo traz
orientaccedilotildees retoacutericas para a composiccedilatildeo de Elogios para os festivais casamentos aniversaacuterios
e exortaccedilotildees para os jogos oliacutempicos Entretanto ldquoos mais extensos tratados com a forma
epidiacutetica da declamaccedilatildeo se concentram em dois trabalhos atribuiacutedos a Menandro de
Laodiceia um reacutetor do terceiro seacuteculordquo (Kennedy 1980 p 103)
Apesar da heterogeneidade dos corpora declamatoacuterios gregos aquelas declamaccedilotildees
tecircm em comum o fato de simularem a defesa de uma causa fictiacutecia baseada em
acontecimentos histoacutericos ou mitoloacutegicos Contudo no que se refere agrave precisatildeo das datas dos
nomes e a situaccedilatildeo dos casos declamados natildeo era de primordial preocupaccedilatildeo permitindo-se
ali imprecisotildees pois sua principal finalidade era como dissemos a praacutetica da oratoacuteria e a
persuasatildeo dos ouvintes (Wolf 2013 p 270) Gibson (2004 p 105-106) todavia demonstra
que ao menos no manual de Heacutelio Teatildeo havia certa preocupaccedilatildeo com a historicidade das
declamaccedilotildees (Winterbottom 1980 v) pois o discurso deveria ser adequado como um
ldquoexerciacutecio histoacutericordquo harmocircnico com a caracterizaccedilatildeo das personagens e com os dados
narrativos (Gibson 2004 p 105-106)
Usando as tradicionais categorias dos trecircs gecircneros tambeacutem presentes em Aristoacuteteles
(Retoacuterica 14) algumas dessas declamaccedilotildees foram classificadas como judiciais uma vez que
tinham como meta defender ou atacar algueacutem no ambiente forense procurando influenciar na
elaboraccedilatildeo de uma sentenccedila de culpa ou absolviccedilatildeo (Fairwethear 1981 p 545) Outras por
outro lado poderiam pertencer aos gecircneros epidiacutetico e deliberativo jaacute que tambeacutem versavam
sobre temas histoacuterico-mitoloacutegicos seja para aconselhar ou desaconselhar em uma deliberaccedilatildeo
seja para elogiar ou vituperar (Gibson 2004 p 103) Segundo o estudo de Russell (2009 p
13
4) como exemplos de declamaccedilotildees gregas do gecircnero deliberativo (suasoacuteria) podem-se
mencionar as de Polemon de Laodiceia e Adriano de Tiro Para ele (2009 p 6) as
declamaccedilotildees de Coriacutecio de Gaza teriam sido ldquoas melhores desses autoresrdquo pois apresentam
ldquoum estilo virtuoso capaz de escrever com elegacircncia e com um aacutetico claacutessico em total
observacircncia das claacuteusulas do seu proacuteprio tempordquo
Alguns pontos gerais na declamaccedilatildeo claacutessica grega merecem ser considerados em
detalhes em razatildeo da relevacircncia do uso da personificaccedilatildeo no discurso irecircnico erasmiano No
tocante agrave caracterizaccedilatildeo das personagens envolvidas nas declamaccedilotildees gregas Russell (2009
p 87-90) afirma que os elementos do ecircthos retoacuterico estavam presentes nas declamaccedilotildees pois
estas levavam em conta a adequaccedilatildeo da imagem de si mesmo as particularidades da audiecircncia
e a situaccedilatildeo psicoloacutegica e social dos oponentes O autor (Ibid p 92-93) apresenta a
declamaccedilatildeo 33 de Libacircnio como um dos exemplos de caracterizaccedilatildeo completa de uma
personagem feminina atraveacutes da narraccedilatildeo (katastasis) minuciosa dos elementos da vida
domeacutestica Aleacutem disso Russell (Ibid p 83) percebeu uma relaccedilatildeo estreita de alguns
elementos da declamaccedilatildeo grega com os da comeacutedia tendo ainda notado (Ibid p 102) que as
declamaccedilotildees gregas tambeacutem tinham um epiacutelogo harmonioso com o tema presente nos
primeiros paraacutegrafos demonstrando que esta deveria ser uma das suas virtudes Por fim
conveacutem destacar sempre segundo Russel (Ibid p 4-5) que algumas delas eram realizadas
tanto a favor de somente um dos lados da questatildeo quanto a favor dos dois lados
sucessivamente como se verificou na ldquoVida dos sofistasrdquo de Filoacutestrato
Eacute preciso considerar que os principais corpora de declamaccedilotildees gregas foram escritos
no periacuteodo histoacuterico em que Roma dominava politicamente a parte oriental do Mediterracircneo
onde predominava o grego como liacutengua franca por isso algumas coleccedilotildees natildeo foram escritas
em latim Natildeo sem razatildeo no parecer de Kennedy (1980 p 103) ldquoa declamaccedilatildeo foi o maior
fenocircmeno retoacuterico do Impeacuterio Romano escrito em latim e gregordquo Para Bloomer (2010 p
297) ldquoa declamaccedilatildeo eacute o primeiro grande movimento literaacuterio do Impeacuterio Romanordquo Embora
existam outros gecircneros literaacuterios cuja difusatildeo tambeacutem tenha sido comparaacutevel ou talvez
superior em sofisticaccedilatildeo agrave declamaccedilatildeo deve-se poreacutem destacar que a praacutetica declamatoacuteria
natildeo se limitava aos ceacutelebres ciacuterculos eruditos mas tambeacutem estava presente no ciacuterculo escolar
e filosoacutefico
14
112 Principais autores e escritos em grego
Entre os principais nomes da declamaccedilatildeo grega sobretudo na praacutetica da suasoacuteria e das
controveacutersias histoacutericas devem-se destacar Plutarco Aristides Luciano Libacircnio e Coriacutecio
Historicamente tais autores se concentram em periacuteodo posterior ao que eacute correntemente
denominado como Segunda Sofiacutestica cuja delimitaccedilatildeo apesar de controversa eacute geralmente
compreendida entre os seacuteculos I e IV d C Coriacutecio estaria situado no periacuteodo da Terceira
Sofiacutestica (Silva 2015)
Plutarco escreveu apenas seis obras morais que satildeo especificamente identificadas
como declamaccedilotildees entre as quais se destacam ldquoSe os atenienses satildeo melhores nas armas do
que nas letrasrdquo e o discurso ldquoSobre a fortuna e a virtude de Alexandrerdquo no qual consta um
elogio ao monarca (Boulet 2013 p 61)
Entre os discursos de Heacutelio Aristides destacam-se aqueles com temas histoacutericos
propostos aos estudantes tambeacutem conhecidos como declamaccedilotildees histoacutericas O mais ceacutelebre o
ldquoLeuctrianrdquo apresenta as controveacutersias de apoio e neutralidade em relaccedilatildeo a Tebas Atenas e
Esparta (Russell 1983 p 4)
Quanto a Luciano de Samosata (125-181 d C) temos nomeadamente os discursos a
favor e contra a aceitaccedilatildeo do touro Phalaris em Delfos e o discurso cocircmico ldquoTribunal das
vogaisrdquo em que o Sigma cobra o Tau pelo roubo de todas as palavras soletradas com duplo
Tau
Entre os mais profiacutecuos produtores de declamaccedilotildees Libacircnio de Antioquia (314-394 d
C) escreveu cinquenta e uma declamaccedilotildees ainda conservadas das quais poucas satildeo
questionadas quanto agrave autenticidade Entre as histoacutericas destacam-se a ldquoApologia de Soacutecratesrdquo
e alguns plasmata que satildeo casos fictiacutecios entre os quais alguns explicitamente cocircmicos
(Russel 1983 p 4)
Por fim devemos mencionar Coriacutecio de Gaza (primeira metade do seacuteculo VI) autor
que jaacute pertence ao periacuteodo denominado como Terceira Sofiacutestica Escreveu doze discursos que
tratam desde temas e locais comuns imitados de textos gregos antigos como Homero e
Heroacutedoto ateacute elogios ao Bispo Marciano e a apologia dos mimos um gecircnero popular de
15
Gaza Digno de nota eacute o discurso no qual simula a tentativa de Paacutetroclo em persuadir Aquiles
a retornar ao campo de batalha apoacutes o ultraje de Agamecircmnon (Silva 2015 p 75)
Dada a relevacircncia da caracterizaccedilatildeo de personificaccedilotildees femininas para o presente
estudo conveacutem destacar desde jaacute que no tocante ao estudo destas nas declamaccedilotildees gregas os
papeacuteis representados pela mulher eram em menor nuacutemero em comparaccedilatildeo com o de
personagens masculinas (Gruber 2008 p 138-140) Estas poderiam ser a filha a matildee a
madrasta a mulher a esposa a concubina e a meretriz Todavia natildeo costumavam receber as
variaccedilotildees de caraacuteter atribuiacutedas ao homem como ser rico pobre velho filoacutesofo entre outros
Segundo Gruber (ibid p 139) as mulheres eram caracterizadas como ldquoceacuteticas proacutedigas
extravagantes invejosas orgulhosas incocircmodas e maacutesrdquo Para exemplificar em qual tipo de
declamaccedilotildees as personificaccedilotildees femininas costumavam ocorrer Gruber (ibid p 140)
considerou que nas declamaccedilotildees de Menandro as mulheres estavam envolvidas
principalmente em casos de adulteacuterio (41 de 89 declamaccedilotildees) e rapto (13) Disto se pode
concluir que as mulheres ocupavam um papel secundaacuterio nas declamaccedilotildees gregas natildeo
somente por serem caracterizadas com menor variedade e especificidade quando comparadas
agraves masculinas mas tambeacutem por estarem na maioria das vezes em posiccedilotildees sociais
consideradas inferiores como eacute o caso de uma mulher indefesa sujeita ao rapto ou ainda de
modo a angaria a antipatia dos leitores como eacute o caso da aduacuteltera
12 A praacutetica latina
Com efeito Winterbottom (1980 p 10) observa que as personagens habituais
presentes nas declamaccedilotildees latinas tambeacutem parecem ser inspiradas no ambiente cultural
helecircnico ou ao menos recebidas do contato com as declamaccedilotildees gregas talvez pela leitura
das proacuteprias declamaccedilotildees ou atraveacutes dos manuais de retoacuterica de origem grega que circulavam
em Roma
satildeo personagens caracteriacutesticas com as quais simpatizamos (jovens
violadas filhos deserdados tiranicidas) ou com as quais natildeo se simpatiza
(piratas pais severos tiranos) [] Destarte as raiacutezes desse mundo satildeo
helecircnicas e remontam pelo menos ateacute o quarto seacuteculo antes de Cristo
(Winterbottom 1980 p 10)
16
Incontestavelmente trata-se de mais um gecircnero literaacuterio originado entre os gregos e
transmitido aos autores latinos os quais o modificaram segundo as circunstacircncias do seu
tempo
o uso de exerciacutecios retoacutericos sobre temas judiciais e deliberativos havia sido
praticado por reacutetores gregos e por seus disciacutepulos seacuteculos antes do tempo de
Secircneca o velho e haviam entrado no programa escolar latino durante a
infacircncia de Ciacutecero pelo menos (Fairweather 1981 p 543-4)
Ao se referir a Crasso e Antocircnio mencionados no ldquoSobre o Oradorrdquo Vasconcellos
(2000 p 180) afirma ldquoa educaccedilatildeo nas escolas dos reacutetores de tradiccedilatildeo sofiacutestica consistia
sobretudo em ensinar ao aluno de oratoacuteria os preceitos teacutecnicos sobre o dizer por meio de
manuais chamados de ldquoArte Retoacutericardquo ensino demasiadamente formal e pouco eficiente na
visatildeo dos dois oradores do diaacutelogordquo O objetivo primaacuterio da declamaccedilatildeo latina era sobretudo
o exerciacutecio da eloquecircncia o tirociacutenio do discurso persuasivo (Kennedy 1980 p 108) natildeo
obstante sua praacutetica fosse mais abrangente
Com efeito como indicamos acima os exerciacutecios declamatoacuterios natildeo eram apenas
parte integrante do programa das escolas retoacutericas situados geralmente apoacutes as
progymnaacutesmata mas tambeacutem eram praticados nas escolas filosoacuteficas por meio do que
passaram a ser chamados de ldquothesisrdquo (Winterbottom 2006 p 94 Kennedy 1980 p 37)
Uma vez que a educaccedilatildeo retoacuterica era realizada com o intuito de obter crescimento gradual da
dificuldade ou da complexidade do discurso (Costrino 2010 p 13) as teses de temaacutetica
filosoacutefica estavam localizadas sempre ao final dos manuais de retoacuterica como os de Heacutelio
Teatildeo Hermoacutegenes Nicolau e Aftocircnio (Kennedy 1994 p 16) indicando que deveriam ser os
exerciacutecios mais complexos Segundo Marrou (1975 p 439) ldquouma vez concluiacuteda a longa seacuterie
de exerciacutecios preparatoacuterios o aluno era solicitado a redigir discursos fictiacutecios sobre um tema
dado pelo mestre e segundo as prescriccedilotildees e conselhos desterdquo
Taacutecito expressa a opiniatildeo de que as controuersiae ou seja as declamaccedilotildees do gecircnero
judicial eram mais difiacuteceis ou complexas do que as do gecircnero deliberativo
Duas espeacutecies de mateacuterias satildeo tratadas entre os reacutetores as suasoacuterias e as
controveacutersias Dessas delegam-se as suasoacuterias aos meninos jaacute que satildeo
claramente mais faacuteceis e menos exigentes quanto ao conhecimento as
controveacutersias satildeo designadas para os mais maduros (Taacutecito Diaacutelogo dos
oradores 35)
17
Tambeacutem Quintiliano apresenta sua opiniatildeo a respeito do grau de dificuldade entre os
exerciacutecios escolares de retoacuterica apresentando a prosopopeia um exerciacutecio retoacuterico anterior agrave
declamaccedilatildeo presente nos manuais de retoacuterica e componente significativo da proacutepria
declamaccedilatildeo como um dos exerciacutecios mais complexos
as prosopopeias me parecem de longe as mais difiacuteceis pois nestas a todo
trabalho da suasoacuteria acrescenta-se ainda a dificuldade da personagem pois a
mesma coisa deve ser aconselhada por Ceacutesar de um modo por Ciacutecero de
outro por Catatildeo de outro (Inst Orat III 8 49)
Pode-se dizer que a dificuldade inerente da praacutetica da suasoacuteria entendida como uma
espeacutecie de declamaccedilatildeo deliberativa a que se refere Quintiliano reside justamente na
configuraccedilatildeo do ecircthos retoacuterico apropriado para as personagens contidas no discurso e na
formulaccedilatildeo deste de modo convincente Deveria ademais ser adequado segundo o decorum
exigido pela plateia que o assiste Mas em razatildeo do conhecimento profundo das
particularidades dos preceitos que as controveacutersias envolviam somados agrave aplicaccedilatildeo da
caracterizaccedilatildeo do ecircthos o gecircnero judicial deveria ser o mais complexo Pode-se entatildeo
concluir que as declamaccedilotildees se configuravam como o uacuteltimo estaacutegio da formaccedilatildeo retoacuterica de
um cidadatildeo romano Eram esta os exerciacutecios das suasoriae e por fim das controuersiae ou
vice-versa
Ademais deve-se dizer que uma vez que a precisatildeo histoacuterica das datas nomes e
situaccedilatildeo dos casos declamados natildeo era de primordial preocupaccedilatildeo permitindo-se imprecisotildees
(Wolf 2013 p 270) pode-se dizer que o principal virtuosismo do declamador residia na
capacidade de adequar os diversos elementos da declamaccedilatildeo como o tema com o caraacuteter
(ethos) da assembleia e das personagens fictiacutecias envolvidas pois o foco da praacutetica
declamatoacuteria era o exerciacutecio da eloquecircncia segundo os ditames dos manuais de retoacuterica
13 As fontes latinas
Diversos autores latinos trataram da declamaccedilatildeo ou dos declamadores subdividos
genericamente em dois grupos aqueles do periacuteodo republicano como Ciacutecero e aqueles do
periacuteodo imperial como Oviacutedio (Arte amatoacuteria) Juvenal (Saacutetira 10 165-169) Taacutecito
(Diaacutelogo sobre os oradores 35) Calpurnio Flaco (Declamaccedilotildees) Suetocircnio (Sobre os reacutetores
e Sobre os gramaacuteticos e os reacutetores) Secircneca e Quintiliano Em Oviacutedio (Arte amatoacuteria 1 465-
469) por exemplo declamare ocorre com o sentido de falar com algueacutem em tom
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declamatoacuterio O discurso do amante teraacute a eloquecircncia persuasiva que convence o povo (nas
assembleias) o juiz (nos tribunais) e os senadores (no senado) Mas essa eloquecircncia natildeo deve
trair afetaccedilatildeo como mero artifiacutecio Oviacutedio prega aqui a retoacuterica cuja arte se esconde (lateant
uires) O amante natildeo deve parecer estar fazendo um discurso para a amada
Entretanto a anaacutelise das ocorrecircncias do radical do substantivo declamatio ou do verbo
declamare denota que algumas obras contecircm maior nuacutemero e relevacircncia para o estudo da
evoluccedilatildeo histoacuterica da declamaccedilatildeo latina enquanto gecircnero Eacute justamente a consideraccedilatildeo do seu
conteuacutedo e do seu contexto histoacuterico que sugerem a hipoacutetese de que a declamaccedilatildeo do tempo
de Ciacutecero natildeo era idecircntica a de Quintiliano e Secircneca o Velho
131 Discussatildeo terminoloacutegica
A terminologia com a qual se denominavam os exerciacutecios declamatoacuterios natildeo eacute uniacutevoca
entre os escritores que trataram de exerciacutecios idecircnticos ou equiparaacuteveis agrave declamaccedilatildeo na
literatura latina entre o seacuteculo I a C e o seacuteculo I d C Mendelson (1994 p 96) discorre sobre
um desses problemas terminoloacutegicos
No tempo de Ciacutecero a declamaccedilatildeo forense ou caso legal era conhecida
simplesmente como causa enquanto que posteriormente jaacute sob o Imperium
passou a ser conhecida como scholastica ou tema-escolar a fim de indicar o
modo por assim dizer restrito nos quais surgiam tais discursos artificiais
Schwartz (2004 p 65-66) sintetiza esta controveacutersia
No que diz respeito ao periacuteodo preacute-ciceroniano cuja caracteriacutestica segundo
Secircneca eram os exerciacutecios que recebem o nome grego de thesis (tese) o
material de que dispomos para nos referir a ele eacute bem escasso e portanto
torna-se difiacutecil chegar a conclusotildees definitivas Quintiliano define as theseis
ou quaestiones infinitae (questotildees indefinidas) em oposiccedilatildeo agraves causae (causas)
ou quaestiones finitae (questotildees definidas) proacuteprias do acircmbito judicial As
questotildees indefinidas eram discussotildees dialeacuteticas em que os participantes
defendiam uma ou outra das posiccedilotildees em conflito (in utramque partem) sem
referecircncia a pessoas tempos lugares e outras circunstacircncias (cf Quint III
55) Tratava-se de temas gerais de natureza abstrata especulativa ou
filosoacutefica Tais exerciacutecios desenvolvidos com frequecircncia nas escolas dos
filoacutesofos eram adequados agrave elaboraccedilatildeo de loci communes que tambeacutem eram
utilizados na oratoacuteria forense na declamaccedilatildeo e ateacute em gecircneros poeacuteticos como
a saacutetira Quintiliano afirma que a questatildeo indefinida eacute mais ampla que a causa
que eacute derivada dela Assim a questatildeo indefinida ldquodeve o homem casarrdquo (an
uxor ducenda) eacute logicamente preacutevia agrave questatildeo definida ldquodeve Catatildeo casarrdquo (an
Catoni ducenda) (cf Quint III 5 8) Haacute na definiccedilatildeo de Quintiliano portanto
uma antecedecircncia loacutegica da tese a respeito da causa mas nada obriga a pensar
que tal deva ter sido a ordem histoacuterica em que sucederam essas classes de
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exerciacutecios Ao contraacuterio haacute evidecircncias de que exerciacutecios de tipo judicial
devem ter existido bem antes da eacutepoca de Ciacutecero Talvez o problema seja
sobretudo terminoloacutegico Com efeito eacute possiacutevel que Secircneca ao falar em
ldquotesesrdquo estivesse pensando em outros exerciacutecios diferentes dos praticados em
escolas de filosofia
No tocante agrave comparaccedilatildeo das declamaccedilotildees latinas supeacuterstites que haviam sido
realizadas ao longo dos seacuteculos I a C e I d C com os trecircs gecircneros de discurso presentes na
tradiccedilatildeo retoacuterica greco-romana pode-se dizer que tratavam basicamente de dois tipos de
causae deliberativa (suasoria) ou juriacutedica (controuersia) (Mendelson 1994 p 93) Quanto
ao epidiacutetico ao menos em Secircneca o Velho natildeo se encontram exemplos de declamaccedilotildees
realizadas com predominacircncia deste gecircnero Como veremos Quintiliano admitiraacute o uso do
demonstrativo ou laudativo entendido como tendo por objetivo principal o elogio ou a
vituperaccedilatildeo como um recurso argumentativo nas declamaccedilotildees deliberativas ou judiciais
132 O contexto republicano e o imperial
Ao comparar a praacutetica da declamaccedilatildeo no final da repuacuteblica e no iniacutecio do Impeacuterio
identificou-se que este gecircnero sofreu algumas alteraccedilotildees no tocante agrave terminologia e agrave forma
Ela havia deixado de ser um mero exerciacutecio das escolas de retoacuterica ou um termo aplicado agrave
praacutetica privada de um exerciacutecio oratoacuterio para tornar-se nos primeiros anos de Augusto uma
performance puacuteblica atraente em todas as classes sociais inclusive nas mais elevadas
A partir de Augusto as salas de declamaccedilatildeo constituem um espaccedilo que reuacutene
oradores reconhecidos assim como personalidades da vida puacuteblica (Contr II
412-13) Conveacutem distinguir aqui entre a declamaccedilatildeo como praacutetica escolar dos
jovens na aula do reacutetor e a declamaccedilatildeo como espetaacuteculo puacuteblico Com efeito
nas proacuteprias escolas de declamaccedilatildeo se realizavam periodicamente exibiccedilotildees
puacuteblicas das declamaccedilotildees jaacute preparadas por alunos e o reacutetor Natildeo era raro que
nestas ocasiotildees participassem ativamente convidados alheios agrave escola (Contr
III praef 16 Contr X praef) Desse modo a declamaccedilatildeo comeccedila
progressivamente a se tornar independente da finalidade de preparar para a
oratoacuteria e se converte em um fim em si mesmo (Schwartz 2000 p 275)
Esta fase antecedeu o decliacutenio por assim dizer do prestiacutegio desse gecircnero na virada do
I ao II seacuteculo d C conforme as criacuteticas de Taacutecito que identificava poucos ldquoautecircnticos
oradoresrdquo (Diaacutelogo sobre os oradores 14 4) Mas essa criacutetica pode ser relativizada se
considerarmos a popularidade da declamaccedilatildeo na Roma Imperial pois embora fosse uma arte
nascida na escola Suetocircnio (Vida de Antocircnio 84 Vida de Nero 10) atesta sua presenccedila e
exerciacutecio inclusive por imperadores Por outro lado durante o I seacuteculo a C embora Pisatildeo e
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Pompeu tivessem se exercitado na declamaccedilatildeo (Ciacutecero Brutus 309-310) seu status natildeo era
comparaacutevel ao da oratoacuteria uma vez que ao contraacuterio do que se daria um seacuteculo mais tarde a
declamaccedilatildeo no tempo de Ciacutecero era contestada por aristocratas como Messala ou Poacutelio que
a assemelhavam agraves praacuteticas do tatro cocircmico desprezadas pela alta sociedade romana (Conte
1999 p 405) Destarte identifica-se entatildeo uma ascensatildeo da declamaccedilatildeo puacuteblica que teria
chegado a um apogeu de prestiacutegio nos primeiros dececircnios do seacuteculo I d C natildeo somente pelo
proacuteprio desenvolvimento do gecircnero mas pela ldquodecadecircnciardquo da oratoacuteria apoacutes seu afastamento
dos padrotildees ciceronianos (Schwartz 2004 p 2) A teoria segundo a qual o auge da oratoacuteria se
refletiu na accedilatildeo e nos escritos de Ciacutecero sendo este o padratildeo adequado para a praacutetica
declamatoacuteria eacute encontrada nas ldquoDeclamaccedilotildeesrdquo de Secircneca o Velho e no ldquoDiaacutelogordquo de Taacutecito
A declamaccedilatildeo seria por assim dizer a herdeira e a substituta da oratoacuteria um gecircnero cujo
sentido original soacute poderia ser vivido e praticado na Repuacuteblica devido agrave falta de liberdade de
expressatildeo durante o periacuteodo imperial
Segundo Edward (1928 p xvi-xvii) essa ascensatildeo teve origem na transformaccedilatildeo do
sistema poliacutetico romano
Como eacute que aquilo que fora primeiramente um mero exerciacutecio das escolas de
retoacuterica ou um termo aplicado agrave praacutetica privada de um orador distinto tornou-
se nos primeiros anos do reinado de Augusto uma performance puacuteblica e
atraente uma coisa praticada por si mesma e de certo modo algo pelo qual
todas as classes sociais se animavam O motivo deve ser encontrado na
mudanccedila de condiccedilotildees poliacuteticas A repuacuteblica estava extinta desde Filipos uma
vez estabelecido finalmente o poder de Augusto no Aacutecio o priacutencipe
concentrou todo o poder em suas proacuteprias matildeos as assembleias do povo eram
entatildeo desorganizadas ou de relevacircncia poliacutetica insignificante as deliberaccedilotildees
do senado perderam significado e efetividade suas decisotildees poderiam ser
revogadas a qualquer momento pela intervenccedilatildeo individual do Imperador A
oratoacuteria livre sobre temas relevantes tais como aqueles que inspiraram a
eloquecircncia ciceroniana jaacute natildeo podia ser ouvida Pleitos autecircnticos em que a
decisatildeo poderia ser desenvolvida por um advogado estavam confinados agraves
cortes centuriais e a causas natildeo se prestavam agrave oratoacuteria
A mudanccedila do regime republicano para o imperial eacute comparaacutevel agrave transformaccedilatildeo
gradual da declamaccedilatildeo e da sua relaccedilatildeo com a oratoacuteria Um dos reflexos dessa interferecircncia
do sistema poliacutetico sobre a oratoacuteria daacute-se justamente segundo Schwartz (2004 p 2) na
ldquoreduccedilatildeo significativa do terreno para o desenvolvimento do gecircnero deliberativo uma vez
que sob o principado o senado perde sua independecircncia efetiva e junto com ela restringem-
se consideravelmente as possibilidades tradicionais do discurso oratoacuteriordquo
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Natildeo sem razatildeo a declamaccedilatildeo tinha por modelo supremo de eloquecircncia a proacutepria
oratoacuteria mais especificamente a ciceroniana (Secircneca Contr I praef 6) e que deveria ser
imitado Quintiliano por exemplo aleacutem de tratar das declamaccedilotildees em sua ldquoInstituiccedilatildeo
Oratoacuteriardquo cita ou menciona Ciacutecero 362 vezes Tal padratildeo de imitaccedilatildeo persistiria ao longo dos
seacuteculos entre os reacutetores latinos desde o seacuteculo I d C com Quintiliano ateacute a polecircmica do
Ciceronianismo durante o seacuteculo XVI
Quintiliano almejava uma declamaccedilatildeo que preparasse os estudantes para as reais
necessidades e desafios do foacuterum e da tribuna e por isso rejeitava a abordagem de temas
mitoloacutegicos (Vasconcelos 2004 p 214) Para ele a declamaccedilatildeo era o ldquomais uacutetil de todos os
exerciacutecios oratoacuteriosrdquo (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 10 1-2) Assim esta natildeo era apenas um treino
para jovens aprendizes da eloquecircncia pois
seria um erro julgar que na Antiguidade a declamaccedilatildeo estava restrita agraves
escolas de retoacuterica Os adultos inclusive os homens de accedilatildeo jaacute ceacutelebres mas
afastados provisoriamente da vida poliacutetica ou dos tribunais se exercitavam
com as declamaccedilotildees a fim de natildeo perderem o haacutebito da eloquecircncia Em 46 a
C quando Ceacutesar era ditador Ciacutecero lecionava oratoacuteria a Hiacutercio e a Dolabella
(Kennedy 1980 p 37)
A declamaccedilatildeo antiga tinha portanto um puacuteblico alvo anaacutelogo agravequele humanista que
surgiraacute depois De fato a importacircncia da oratoacuteria e por consequecircncia das teorias retoacutericas
na vida romana eacute determinante Poliacutetica jurisprudecircncia ndash e inclusive o comando militar ndash
dependiam do modo pelo qual os dirigentes articulavam a palavra O homem poliacutetico era
justamente aquele capaz de comunicar-se com o puacuteblico ao qual cabia tomar decisotildees seja no
contexto judicial seja no contexto deliberativo Eacute por essa razatildeo que o puacuteblico-alvo do
declamador era a classe dominante seja a parte que ainda estava em formaccedilatildeo no contexto
escolar seja aquela jaacute ldquoformadardquo que se exercitava ou se deleitava com o exerciacutecio em
ciacuterculos de maior intimidade Se a declamaccedilatildeo latina visava os magistrados no primeiro caso
ou se no segundo caso simulava o senado no regime republicano ou no regime imperial o
discurso visava justamente agraves pessoas que deveriam decidir pela deliberaccedilatildeo poliacutetica Sobre
os destinataacuterios da declamaccedilatildeo romana afirma Bernstein (2009 p 332)
Os produtores e consumidores da declamaccedilatildeo romana eram membros da alta
classe romana do imperador cuja presenccedila eacute mencionada por Secircneca (Contr
II412ndash13) aos estudantes que poderiam ter usado essa literatura como
material pedagoacutegico
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14 A declamaccedilatildeo segundo os autores latinos
141 A Retoacuterica a Herecircnio
Haacute trecircs referecircncias ao vocaacutebulo declamatio na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo (III 20) Estas satildeo
as mais antigas na literatura latina pois esta obra teria sido escrita por um autor desconhecido
na primeira metade do seacuteculo I a C (Caplan1954 XVII)3 Para Bonner (1949 p 20) existe
uma conexatildeo proacutexima com o termo grego ἀναθώνηζις e o gecircnero declamaccedilatildeo De fato nesse
escrito por muito tempo equivocadamente atribuiacutedo a Ciacutecero mas cuja paternidade
ciceroniana jaacute era posta em duacutevida durante o Renascimento apresenta-se o termo declamaccedilatildeo
como um verdadeiro exerciacutecio oral justamente por tratar da pronuntiatio ou seja da forma
da locuccedilatildeo adequada a persuadir e a agradar a audiecircncia especialmente ao abordar os pontos
da firmeza (firmitudo) e da suavidade (mollitudo) da voz Caplan (ibid xvII) em sua
introduccedilatildeo agrave ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo comenta que as escolas retoacutericas latinas realizavam a
declamaccedilatildeo conforme os manuais os quais refletem a praacutetica escolar O texto apresenta os
exerciacutecios de forma enfaacutetica na forma de progymnaacutesmata estabelece as formas proacuteprias de
vaacuterios gecircneros discursivos o epidiacutetico (demonstratiuum) o deliberativo (deliberatiuum
deliberationes suαsoriae) e judiciaacuterio (iudiciale causae controuersiae) Deve-se notar que o
autor desenvolve alguns exemplos de declamaccedilotildees certamente inspiradas nas declamaccedilotildees
gregas Algumas destas discutem sobre o tema da paz e da guerra
142 Ciacutecero
Erasmo considerava Ciacutecero entre outros autores uma autoridade no que diz respeito agrave
composiccedilatildeo em prosa (Epiacutestola 20 Steyn 15 de maio de 1489 1974 p 31) Segundo
Chomarat (1981 p 935) Mendelson (1994 p 94) e Winterbottom (2006 p 76) na eacutepoca de
Ciacutecero havia duas noccedilotildees essenciais de declamaccedilatildeo que a caracterizam como portadora de
3 Quanto agrave data conveacutem citar tambeacutem outras opiniotildees como a do editor da obra para a Belles Lettres Achard
que palpita ldquoElle paraicirct donc se situer entre le mi de 86 et la fin de 83 Une telle datation s‟accorde parfaitement
avec l‟intention de l‟auteur et le contenu du livrerdquo (Achard 1997 p vii) E mais adiante ldquoPour toutes ces
raisons on peut consideacuterer comme assureacute que la Rheacutetorique agrave Herennius a eacuteteacute eacutecrite entre la mi-86 et le deacutebut de
82rdquo (Ibid p xii)
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temas fictiacutecios ou como praacutetica de um exerciacutecio da elocuccedilatildeo (Kennedy 1980 p 37)
conforme o sentido escolar do termo μελέηη4
Na obra de Ciacutecero (Bonner 1949 p 27) haacute dez referecircncias agrave declamaccedilatildeo seja na
forma de substantivo seja na forma de verbo nas ldquoDisputas tusculanasrdquo (17) a palavra
ocorre como o sentido de exerciacutecio da palavra mas na oraccedilatildeo ldquoPor Placircnciordquo (47) em sentido
depreciativo eacute atribuiacuteda a um discurso banal ou proposiccedilatildeo refutaacutevel um protesto barulhento
Nota-se tambeacutem o sentido de invectivar contra ou sobre uma pessoa (Contra Verres 4 49
Epiacutestulas aos Familiares 3 11 2) Ciacutecero tambeacutem fala do declamator (Por Placircncio 83) ou
do exerciacutecio declamatorius (Orador 47) Haacute em Ciacutecero uma variante para o verbo declamar
declamitare (Epiacutestola LX a Papirio Paeto) Este uacuteltimo lido no contexto parece ter o sentido
como exerciacutecio veemente da declamaccedilatildeo ou da execuccedilatildeo reiterada de exerciacutecios de locutio
(Brutus 310 Sobre o orador 1251) Pode ser exercido para desprestigiar um contendor
(Filiacutepicas 5 19) ou para agradar os ouvintes (Disputas Tusculanas 1 7) Eacute em Ciacutecero que
ocorre a primeira distinccedilatildeo dos subgecircneros da declamaccedilatildeo quanto ao tipo de causa ou tema
deliberativa ou suasoacuteria (Por Rocio Amerino 82) juriacutedica ou causae (Disputas Tusculanas
1 7)
143 Secircneca o Reacutetor ou o Velho
Manoel (2014 p 37) contudo ao tratar dos exerciacutecios de declamaccedilatildeo nos tempos de
Ciacutecero em comparaccedilatildeo com as declamaccedilotildees do periacuteodo imperial reconheceu que ldquofoi apoacutes o
fim da Repuacuteblica que teve iniacutecio a era das declamaccedilotildeesrdquo ou seja o periacuteodo no qual sua
praacutetica talvez tenha atingido uma espeacutecie de apogeu devido ao grau de difusatildeo da sua praacutetica
na sociedade romana e agrave maior quantidade e qualidade de registros escritos ainda
conservados Segundo Schwartz (2004 p 8) e Russel (2009 p 2) para a compreensatildeo das
caracteriacutesticas fundamentais desse gecircnero no periacuteodo imperial eacute fundamental considerar as
ldquoControveacutersiasrdquo (em dez livros) e as ldquoSuasoacuteriasrdquo de Secircneca o Velho Este discorreu sobre o
gecircnero declamatoacuterio nos prefaacutecios agraves controveacutersias escritos provavelmente nas deacutecadas de 20
ou 30 d C A importacircncia desse autor se verifica por ter vivido em uma eacutepoca na qual a
declamaccedilatildeo passou a ser realizada publicamente a fim de deleitar a audiecircncia e tomando o
4 Deve-se ainda acrescentar que aleacutem do sentido de exerciacutecio o termo tinha o sentido de cuidar Era usado
inclusive no contexto militar e medicinal (Cf Bailly Anatole Le Grand Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris
Hachette 2000 Voz μελέηη)
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lugar da antiga oratoacuteria (Conte 1999 p 404) Redigidas em idade avanccedilada suas
declamaccedilotildees judiciais podem ser entendidas como escritas a pedido de seus filhos ou para a
instruccedilatildeo destes (Schwartz 2004 p 80) dadas as diversas referecircncias e locuccedilotildees direcionadas
explicitamente a estes em vaacuterios prefaacutecios (Secircneca Contr Pr 1 3 4 6 9 10 13 19 20 22)
Segundo Bloomer (1997 p 204) esta indicaccedilatildeo de destinataacuterios consanguiacuteneos natildeo deve ser
entendida senatildeo como uma estrateacutegia retoacuterica com um significado social a fim de simular
uma recomendaccedilatildeo agrave comunidade ou um ensino a disciacutepulos Sobre os destinataacuterios desta
declamaccedilatildeo conforme afirma Bernstein (2009 p 332) baseando-se em Secircneca (Contr II 4
12-13) os produtores e consumidores da declamaccedilatildeo romana eram membros da classe alta
conforme acima mecionamos
As ldquoControveacutersiasrdquo abordam setenta e quatro casos legais imaginaacuterios nos quais o
autor estabelece pareceres dos reacutetores sobre cada caso a partir de diferentes pontos de vista
(Salum 2010 p 119) Nos prefaacutecios apresentam-se as caracteriacutesticas individuais dos reacutetores
as quais satildeo discutidas de forma irocircnica eou pedagoacutegica As controveacutersias de Secircneca poreacutem
natildeo satildeo escritas de forma completa tal como foram ou teriam sido pronunciadas mas de
forma sintetizada (Schwartz 2004 p 8) Estas se diferenciam das declamaccedilotildees escritas em
grego cuja transcriccedilatildeo era integral sendo redigidas tais como haveriam de ser pronunciadas
a exemplo de Libacircnio Coriacutecio e Plutarco
A obra de Secircneca goza de eminente autoridade para a histoacuteria da oratoacuteria e da
declamaccedilatildeo Na opiniatildeo de Salum (2010 p 119) as ldquoControveacutersiasrdquo apresentam uma espeacutecie
de galeria de declamadores os quais personificam compreensotildees retoacutericas diversificadas
Aleacutem disso tambeacutem evoca uma distinccedilatildeo da declamaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave oratoacuteria e procura
estabelecer as qualidades imprescindiacuteveis do gecircnero conforme consta no prefaacutecio da terceira
controveacutersia (Contr III pr 7)
Segundo a leitura dos prefaacutecios denota-se que seu orador ldquoidealrdquo era Ciacutecero o qual eacute
apresentado inclusive como o primeiro dos declamadores latinos (Schwartz 2004 p 12)
embora essa afirmaccedilatildeo possa contrariar o que o proacuteprio Secircneca pensava a respeito da
declamaccedilatildeo no final da Repuacuteblica ldquoCiacutecero poreacutem natildeo declamava entatildeo estas a que
chamamos controveacutersias nem aquelas outras que eram pronunciadas antes de Ciacutecero e que
se chamavam thesis Noacutes dizemos controveacutersias mas Ciacutecero lhes chamava causasrdquo (Secircneca
Contr I pr 12) Aleacutem do problema de que algumas das causas ciceronianas poderiam ser
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reais (histoacutericas) e natildeo fictiacutecias deve-se afirmar que o texto supracitado de Secircneca
problematiza a terminologia acerca da declamaccedilatildeo como ao afirmar que Cicero causas
vocabat
Secircneca cujos prefaacutecios estabelecem a declamaccedilatildeo como um gecircnero literaacuterio
autocircnomo em relaccedilatildeo agrave oratoacuteria apresenta alguns conceitos imprescindiacuteveis para sua
caracterizaccedilatildeo tais como a noccedilatildeo de sententia entendida como frase epigramaacutetica utilizada
para impressionar o leitor ou os ditados ou aforismos geralmente conclusivos do argumento
a diuisio que seria uma breve apresentaccedilatildeo do esquema argumentativo proposto era
fundamentada nas noccedilotildees de iustitia (justiccedila) no ius (direito) e na utilitas (interesse) e o
color entendido como ldquoo estilo com o qual o declamador apresenta a situaccedilatildeo ou seja
contava-se a acumulaccedilatildeo de figuras retoacutericas o ritmo do periacuteodo etcrdquo (Conte 1999 p 405)
Por outro lado Schwartz (2004 p 9) entende que o color seria ldquoo motivo imaginado para
justificar uma accedilatildeo de uma personagem em uma controveacutersiardquo O color concebido segundo a
conceituaccedilatildeo de Secircneca no contexto de uma controveacutersia era atribuiacutedo ao ato passado do
personagem descrito no thema (Fairweather 1981 p 32) por vezes no iniacutecio ldquoeste color foi
usado e logo atribui a ele desde o princiacutepiordquo (Contr I 1 24) ou ao longo desta ldquoAlbuacutecio
natildeo narrou mas erigiu este color desde o iniacuteio ateacute o finalrdquo (Contr I 1 24) Secircneca descreve o
color do discurso como sendo prudente temperado duro aacutespero ou severo Caracteres
anaacutelogos eram atribuiacutedos a um ou a todos os personagens da controveacutersia (Winterbottom
1980 p 171) Muitas vezes estava presente logo na narratio entendida como ldquouma descriccedilatildeo
sobre os principais atos cometidosrdquo (Van Mal-Maeder 2007 p 71) e que fornecem o cerne da
questatildeo a ser discutida na declamaccedilatildeo
Apesar do testemunho equivocado de Secircneca o Velho a respeito da origem da
declamaccedilatildeo ao mencionaacute-la como rem post me natam (Contr I 12) o estudo deste gecircnero
com base em seu escritos se faz importante natildeo somente em razatildeo das suas consideraccedilotildees
acerca das caracteriacutesticas essenciais acima mencionadas mas tambeacutem porque descreveu o
contexto histoacuterico e a praacutetica desta forma de discurso em seu tempo como uma espeacutecie de
retrocesso qualitativo (Secircneca Contr I pr 6) Conte (1999 p 404) observa que justamente a
mudanccedila de regime poliacutetico da Repuacuteblica ao Impeacuterio fez com que a declamaccedilatildeo se alterasse
pois a praacutetica oratoacuteria natildeo gozava da mesma liberdade de expressatildeo de antes com a
decadecircncia do Senado e a ausecircncia de praacutetica oratoacuteria na formaccedilatildeo do orador Os oradores
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passaram a ser vistos com desconfianccedila por uma administraccedilatildeo que natildeo tolerava criacuteticas Natildeo
sem razatildeo os autores notam a decadecircncia da eloquentia apoacutes a morte de Ciacutecero natildeo pela falta
de gecircnios mas pela falta de liberdade de expressatildeo da opiniatildeo poliacutetica individual (Schwartz
2004 p 91) Entretanto a praacutetica das declamaccedilotildees se tornou um espetaacuteculo puacuteblico e
paulatinamente foi tomando o lugar da ldquorobusta oratoacuteria expressa pelos tempos de Ciacutecerordquo
(Sussman 1972 p 197) Schwartz sintetiza o papel e as incongruecircncias da praacutetica da
declamaccedilatildeo no periacuteodo republicano e sua heranccedila para a literatura latina
[as declamaccedilotildees] pelo fato de natildeo fazerem parte do campo tradicionalmente
mais livre da poesia nem de serem tampouco redutiacuteveis agrave simples funccedilatildeo
ancilar de exerciacutecio escolar colocava-as em um ldquonatildeo-lugarrdquo Essa orfandade
no entanto resultou em um vazamento da retoacuterica escolar sobre os outros
gecircneros discursivos Nesse processo eacute todo o campo da eloquecircncia que se
torna ldquodeclamatoacuteriordquo (Schwartz 2004 p 10)
Nos prefaacutecios das ldquoControveacutersiasrdquo Secircneca desaprovava as tendecircncias floridas da
oratoacuteria de seu tempo ou conforme supotildee Salum (2010 p 119) apresenta personagens como
portadores de defeitos e virtudes da declamaccedilatildeo a fim de teorizar sobre caracteriacutesticas
essenciais desta Para citar um exemplo uma passagem do prefaacutecio da segunda controuersia
expressa uma criacutetica ao estilo asiaacutetico de um aluno de Areacutellio Fusco que tinha certa propensatildeo
agrave filosofia Fabiano Papiacuterio ldquoseu arranjo de palavras efeminado demais para que um espiacuterito
que se prepara com preceitos tatildeo santos e rigorosos pudesse suportaacute-lardquo (Contr II 1) Secircneca
criticou a atividade de alguns declamadores aos quais atribuiacutea o anseio impreteriacutevel de
impressionar o puacuteblico atraveacutes de vazias frases de efeito pelo uso inapropriado das sententiae
marca essencial do gecircnero declamatoacuterio A sentenccedila eacute um silogismo incompleto mas natildeo
iloacutegico que prestigia as informaccedilotildees de interesse do declamador e que visa a impressionar o
ouvinte natildeo tanto pelo silogismo mas pela beleza ou forccedila da expressatildeo Nessa estrutura a
noccedilatildeo de sententia era fundamental pois ldquoesta procurava produzir o efeito mais do que a
loacutegica do periacuteodordquo (Salum 2010 p 119) ainda que natildeo abstraiacuteda a dimensatildeo retoacuterica do
logos Utilizava no entanto o entimema que segundo a conceituaccedilatildeo aristoteacutelica natildeo era
iloacutegico mas apenas apresentava o raciociacutenio de um modo incompleto e essencial a fim de ser
compreendido de forma mais direta pelo ouvinte ou mesmo enganaacute-lo e tornar o argumento
irresistivelmente persuasivo em contraponto com o raciociacutenio dialeacutetico desenvolvido em
todas as suas premissas poreacutem menos convincente
Entre as provas fornecidas pelo discurso distinguem-se trecircs espeacutecies umas
residem no caraacuteter moral do orador outras nas disposiccedilotildees que se criaram no
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ouvinte outras no proacuteprio discurso pelo que ele demonstra ou parece
demonstrar Obteacutem-se a persuasatildeo por efeito do caraacuteter moral quando o
discurso procede de maneira que deixa a impressatildeo de o orador ser digno de
confianccedila [] Obteacutem-se a persuasatildeo nos ouvintes quando o discurso os leva a
sentir uma paixatildeo [] Enfim eacute pelo discurso que persuadimos sempre que
demonstramos a verdade ou o que parece ser a verdade de acordo com o que
sobre cada assunto eacute suscetiacutevel de persuadir (Aristoacuteteles Retoacuterica I 2 3-8
traduccedilatildeo Antocircnio de Carvalho 1999 p 33-34)
Silogismo significa basicamente calcular ou raciocinar em conexatildeo Uma das
caracteriacutesticas desse tipo de discurso eacute a formaccedilatildeo completa da sentenccedila loacutegica que atraveacutes de
proposiccedilotildees compostas atribuem verdade ou falsidade ao conceito exposto No discurso
dialeacutetico essas proposiccedilotildees compostas satildeo muitas vezes interligadas por conectivos
conformando assim oraccedilotildees coordenadas ou subordinadas Por isso Aristoacuteteles atribuiacutea ao
discurso retoacuterico a necessidade do conhecimento adequado das emoccedilotildees e das paixotildees
humanas O homem natildeo eacute persuadido pelo mero raciociacutenio Eacute necessaacuterio apelar agraves emoccedilotildees
Tal propoacutesito foi perseguido pela oratoacuteria sobretudo no ambiente republicano e sua
ldquoherdeirardquo nos tempos imperiais a declamaccedilatildeo
Por outro lado segundo Conte (1999 p 405)
Dado o caraacuteter fictiacutecio das situaccedilotildees e as muitas premissas o anseio do orator
natildeo eacute tanto persuadir mas sim deixar a audiecircncia atocircnita e ele para isso
recorre aos mais engenhosos truques da linguagem e da imaginaccedilatildeo O
maneirismo das formas torna exagerado o uso dos colores o termo teacutecnico
que indica a manipulaccedilatildeo inteligente de uma situaccedilatildeo ou de um conceito e
capaz de apresentar a mateacuteria em matildeos sob o aspecto mais surpreendente Na
busca do efeito e dos aplausos do auditoacuterio o orator tambeacutem faz uso de um
estilo precioso brilhante aquele que recorre a todos os artifiacutecios de asianismo
do acuacutemulo de figuras retoacutericas a uma expressatildeo densamente epigramaacutetica a
fim de cuidar do ritmo do periacuteodo
Secircneca tambeacutem caracteriza a declamaccedilatildeo com dois traccedilos distintivos em primeiro
lugar ao tratar da puacuteblica afirmava que esta visava a dar impressatildeo de improviso por meio da
velocidade (Contr IV 7) Em segundo lugar aleacutem da aparecircncia de algo natildeo preparado
deveria ter especial cuidado com o tom de voz tal como os manuais como a ldquoRetoacuterica a
Herecircniordquo preceituavam Um orator ou um ou um rhetor era desprestigiado caso seu trabalho
fosse assemelhado ao teatro cocircmico (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 10 7-8) uma vez que em
Roma os costumes dos artistas que atuavam na comeacutedia eram extremamente mal vistos E de
fato a comeacutedia era exercida por profissionais desprezados na alta sociedade romana Desse
modo muitas vezes atribuiacutea-se agravequele que atuava uma depravaccedilatildeo moral contra os costumes e
28
o mos maiorum A sua accedilatildeo (actio) se caracterizava exagerada e a modulaccedilatildeo no volume da
voz a fim de se fazer ouvir e entender adequadamente pela assembleia eram desagradaacuteveis em
comparaccedilatildeo agrave oratoacuteria ldquoprofissionalrdquo dos oradores do Foacuterum e do Senado Como a recitaccedilatildeo
da declamaccedilatildeo implicava no uso de uma locutio por vezes enfaacutetica somada ao uso da
prosopopeia os declamadores procuravam fugir do perigo de serem considerados meros
comediantes Disso resulta a grave criacutetica ao perigo de incorrer no ridiacuteculo como Secircneca
impunha agravequeles que natildeo regulavam bem a tonalidade da voz (Contr IV 10)
144 A suasoacuteria em Secircneca
Como dissemos as declamaccedilotildees de Secircneca estavam subdivididas em dois tipos as
controuersiae e as suasoriae As controveacutersias pertencem ao gecircnero judicial e consistiam no
julgamento de um caso fictiacutecio que se baseava na legislaccedilatildeo romana ou em leis fictiacutecias
(Bonner 1949 p 258) Jaacute as suasoacuterias fazem parte do gecircnero deliberativo e versavam sobre
temas mitoloacutegicos e histoacutericos Nelas o aluno tinha a finalidade de simular adequadamente o
discurso de uma personagem convencer a assembleia fictiacutecia segundo o propoacutesito de sua
causa e deleitar o puacuteblico real por meio de uma simulaccedilatildeo de discurso estruturado com uma
prosopopeia Esta personificaccedilatildeo deveria simultaneamente se adaptar ao objeto (res) ao
puacuteblico e agrave personagem que representa Daiacute se conclui a relaccedilatildeo da personificaccedilatildeo com a
noccedilatildeo aristoteacutelica de ecircthos mencionada acima e a sermocinatio tal como comenta Schenk
(1982 p 115-116)
A suasoria uma declamaccedilatildeo ensinada nas escolas de retoacuterica mais do que um
exerciacutecio elementar lecionado na escola de gramaacutetica exigia um auditoacuterio e
sua finalidade era preponderantemente a persuasatildeo Toda suasoacuteria era em
parte uma interpretaccedilatildeo pois o disciacutepulo ao compocirc-la tinha de assumir um
papel de preceptor ou conselheiro e portanto tinha de adaptar seus
ldquoargumentos seu modo sua tonalidade ao tipo de ouvinte quem quer que
fosse seja um cidadatildeo comum um soldado um senador um membro do
conselho militar um mensageiro em conformidade com as circunstacircncias do
debaterdquo (Bonner 1949 p 285) Mas o disciacutepulo tambeacutem tinha de convencer a
figura histoacuterica ou mitoloacutegica especiacutefica que eles estavam aconselhando ao
modo de actio O jovem aluno deveria aconselhar por assim dizer os
espartanos a resistir nas Termoacutepilas ou Agamenon a sacrificar sua filha
Ifigecircnia ou natildeo
Merecem especial destaque as suasoacuterias I II IV que tratam sobre a deliberaccedilatildeo da
conquista dos mares e da guerra com argumentos a favor e contra A primeira ldquoSuasoacuteriardquo
mencionada na Controuersia (VII 7 19) trata sobre Alexandre o Grande rei da Macedocircnia
29
O declamador coloca-se no lugar de um dos membros do conselho e discute se apoacutes a
conquista da Aacutesia e da Iacutendia o monarca deve atravessar o oceano Jaacute na segunda ldquoSuasoacuteriardquo
que eacute intitulada ldquoOs trezentos espartanos enviados contra Xerxes uma vez que os grupos de
trezentos enviados de toda a Greacutecia fugiram deliberam se tambeacutem eles proacuteprios fugiratildeordquo
trata sobre o episoacutedio dos 300 espartanos que haviam enfrentado os persas comandados por
Xerxes por ocasiatildeo da segunda invasatildeo (480 a C) em Termoacutepilas (Cf Heroacutedoto Histoacuteria
VII) Nesta suasoacuteria vaacuterios declamadores apresentam argumentos a favor e contra a fuga dos
espartanos Destaca-se o discurso de Fusco segundo Secircneca
Nesta suasoacuteria Fusco usou aquela divisatildeo popular dizendo que natildeo era
honroso fugir mesmo que fosse seguro em seguida que era igualmente
perigoso fugir ou lutar e por uacuteltimo que era mais perigoso fugir Os inimigos
deviam ser temidos por aqueles que lutam tanto os inimigos quanto os aliados
deviam ser temidos por aqueles que fogem (Suas II 11 Traduccedilatildeo de
Costrino p 2010 p 58)
A segunda ldquoSuasoacuteriardquo traz como tema tipicamente deliberativo questotildees que evocam a
guerra e o ofiacutecio do combatente como algo digno vendo-a como algo positivo honesto
Alguns declamadores vituperam aqueles que fogem da guerra apresentando o fato como algo
desonroso para os antepassados e que diminui a fama dos gregos
Na quarta ldquoSuasoacuteriardquo cujo tiacutetulo ldquoAlexandre o grande delibera sobre se invadiraacute a
Babilocircnia uma vez que lhe fora anunciado o perigo pela previsatildeo do aacuteugurerdquo encontramos o
episoacutedio da vitoacuteria de Alexandre sobre Daacuterio na batalha de Galgamela ocorrida no ano de
331 a C Com esta conquista o comandante grego vislumbrou a oportunidade de apoderar-
se da cidade mesopotacircmica Nesta suasoacuteria mais uma vez a guerra eacute tratada como algo
beneacutefico sobretudo para a imagem do comandante O auguacuterio natildeo quer senatildeo incutir o medo
no combate pois tanto a vida de cada homem quanto o destino dos conquistadores ldquosatildeo
forjadas para cada um por causa do engenho natildeo a partir da feacuterdquo (Suas IV 3) Por essas duas
passagens percebe-se natildeo somente que a questatildeo da guerra e por oposiccedilatildeo da paz eacute proacutepria
do gecircnero da declamaccedilatildeo suasoacuteria mas que a guerra pode ser tratada como uma causa
honesta no sentido de que eacute admiraacutevel e justa que predica a virilidade a legiacutetima defesa da
pessoa e da naccedilatildeo e que argumentos baseados na mitologia natildeo poderiam tornaacute-la uma causa
torpe Em outras palavras a guerra seria uma deliberaccedilatildeo necessaacuteria justa e admiraacutevel em
certos casos
30
145 Quintiliano
Erasmo qualificava a ldquoInstituiccedilotildees Oratoacuteriasrdquo de Quintiliano como escritos de
autoridade no que diz respeito agrave composiccedilatildeo em prosa (Steyn 15 de maio de 1489 1974 p
31) Dentre as sessenta e quatro ocorrecircncias de substantivos e verbos com o radical declama-
(declamator declamare declamatio)5 foi oportuno selecionar quatro aspectos significativos
da declamaccedilatildeo primeiro sua relaccedilatildeo com a oratoacuteria (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria III 8 49)
segundo sua praacutetica escolar (Ibid II 1 1) terceiro a presenccedila nela de aspectos teoacutericos do
gecircnero deliberativo (Ibid III 4 7) e por uacuteltimo a ocorrecircncia nela do vitupeacuterio e do elogio
(Ibid II 4 22) Natildeo sem propoacutesito a prolixidade de Quintiliano a respeito fez com que lhe
fossem atribuiacutedas agraves coleccedilotildees de declamaccedilotildees maiores hoje comprovadamente espuacuterias dada
a presenccedila nelas do asianismo ausente dos demais escritos dele As declamaccedilotildees minores
entretanto poderiam ser atribuiacutedas a ele sem maiores dificuldades (Reali e Turazza 2012 p
7)
Do ponto de vista histoacuterico Quintiliano compartilha a supracitada ideia de Taacutecito
(Dialogo de Oratoribus 351) segundo a qual a declamaccedilatildeo seria uma pobre e mera imitaccedilatildeo
da antiga e ceacutelebre oratoacuteria romana em razatildeo de sua natureza fictiacutecia
De fato o que tomamos como exemplo possui uma natureza e forccedila reais ao
contraacuterio toda imitaccedilatildeo eacute construiacuteda e se acomoda a um propoacutesito alheio De
onde sucede que as declamaccedilotildees tenham muito menos sangue e forccedila que os
discursos pois a mateacuteria que eacute verdadeira nestes eacute imitada naquelas Acrescente-se
que o que eacute oacutetimo na oratoacuteria satildeo as coisas imitaacuteveis natildeo satildeo o engenho a invenccedilatildeo a
forccedila a desenvoltura e o que quer que seja concedido pela arte (Quintiliano
Instituiccedilatildeo Oratoacuteria X 2 11-12)
Quintiliano comenta que a ascensatildeo do gecircnero declamatoacuterio significou a decadecircncia
da oratoacuteria romana segundo os elevados moldes ciceronianos em uma relaccedilatildeo causal
(Schwartz 2004 p 2) pelas seguintes razotildees o caraacuteter fantasioso dos temas selecionados
que ele rejeitava veementemente e o estilo exagerado dos declamadores (Quintiliano
Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 10 1-15) que segundo ele quanto menos preocupados com a causa
que discutiam mais pensavam ldquoem deleitar os ouvidos da audiecircncia mesmo agrave custa das mais
iacutenfimas distraccedilotildeesrdquo (Ibid II 12 6) Natildeo devemos contudo ver nessas afirmaccedilotildees algo como
o estado histoacuterico das declamaccedilotildees em seu tempo pois muitas dessas declaraccedilotildees tecircm
5 As ocorrecircncias do radical escolhido (declama-) foram contadas numa versatildeo digitalizada da ediccedilatildeo da Institutio
Oratoria publicada pela Harvard University Press em 2006
31
finalidade pedagoacutegica dada a natureza da Instituiccedilatildeo Oratoacuteria podendo ser tambeacutem
interpretadas como uma apresentaccedilatildeo de um modelo ou exemplum negativo e que natildeo deve
ser seguido ou imitado
De fato Quintiliano almejava uma declamaccedilatildeo que preparasse os estudantes para as
reais necessidades e desafios do foacuterum e da tribuna e por isso rejeitava a abordagem de
temas mitoloacutegicos (Vasconcelos 2004 p 214) Sua preocupaccedilatildeo se explica pois pela proacutepria
finalidade didaacutetica de seus escritos Como considerava a declamaccedilatildeo o ldquomais uacutetil de todos os
exerciacutecios oratoacuteriosrdquo (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 10 1-2) forneceu um bom retrato de como
estes exerciacutecios eram realizados em sua eacutepoca (Ibid II 10 1-15) Por fim deve-se dizer
tambeacutem que menciona a praacutetica de prover seus alunos com subsiacutedios escritos a fim de que
estes auxiliassem seus disciacutepulos em suas declamaccedilotildees (Ibid II 6 2) e chega a afirmar que
ldquoo exerciacutecio da escrita facilitava a locuccedilatildeo e o exerciacutecio da locuccedilatildeo incrementava a escritardquo
(Ibid X 7 29) Assim se era um exerciacutecio essencialmente oral cuja finalidade era a praacutetica
da locutio eacute justamente em Quintiliano (Ibid X 3 10) que surgem alguns indiacutecios de uma
declamaccedilatildeo escrita no contexto escolar (Murphy 2012 p 69) Esse processo corresponde agrave
tendecircncia de transcriccedilatildeo dos discursos forenses que tambeacutem passaram a ser concebidos para a
leitura e natildeo somente para a audiccedilatildeo em decorrecircncia talvez da decadecircncia da oratoacuteria entatildeo
mal vista pelo regime imperial (Williams 2009) Esse fenocircmeno denominado literalizaccedilatildeo
foi um processo que transparece numa praacutetica que se estabeleceu naquela tempo e que se
assemelha agrave praacutetica declamatoacuteria as recitationes (Conte 1999 p 405) Estas costumavam
anteceder a publicaccedilatildeo das obras natildeo se restringindo aos gecircneros poeacuteticos como os
epigramas de Marcial e as saacutetiras de Juvenal mas abrangiam tambeacutem prosas de historiadores
e epiacutestolas como as de Pliacutenio o Jovem entre outros gecircneros discursivos (Dupont1997 p 45)
As declamationes e as recitationes implicavam em um contexto oral de emissatildeo e recepccedilatildeo
pois embora minuciosamente preparadas e escritas natildeo visavam a convencer mas
sobretudo a deleitar (Schwartz 2004 p 15)
Quintiliano informa que em seu tempo a declamaccedilatildeo tambeacutem poderia versar sobre
temas deliberativos ou suasoacuterios (Insituticcedilatildeo Oratoacuteria III 8 61) ou sobre as causas judiciais
(Ibid II 1 9) Eacute ele tambeacutem quem trata do lugar do elogio e da censura dentro da
declamaccedilatildeo e relaciona esses elementos tiacutepicos do gecircnero epidiacutetico como lugar comum
32
Lugares-comuns (falo daqueles em que natildeo se especificam pessoas e eacute usual
declamar contra viacutecios como contra aqueles do aduacuteltero do jogador do
licencioso) satildeo da proacutepria natureza dos discursos em exerciacutecios e se tu
acrescentas o nome da parte acusada satildeo autecircnticas acusaccedilotildees Estes no
entanto geralmente satildeo tratados a partir de temas gerais para algo especiacutefico
como quando o assunto de uma declamaccedilatildeo eacute um aduacuteltero cego um jogador
pobre ou um velho licencioso Agraves vezes tambeacutem tecircm a sua utilizaccedilatildeo na
defesa quando ocasionalmente falamos em favor do luxo ou da licenciosidade
ou de um degenerado ou parasita eacute por vezes defendido da forma que
defendemos natildeo a pessoa mas o viacutecio (Ibid II 4 22)
Aleacutem de tratar da inadequaccedilatildeo da declamaccedilatildeo com a comeacutedia ao exemplicar com as
figuras antiteacuteticas do aduacuteltero cego do jogador pobre e do velho licencioso Quintiliano
discute sobre algumas formas de distinguir os tradicionais trecircs gecircneros de discurso
(deliberativo judicial e epidiacutetico) e afirma a interpenetraccedilatildeo que pode haver entre estes
Haacute entatildeo como eu disse um gecircnero que conteacutem o louvor e o vitupeacuterio mas
que eacute chamado pelos melhores de laudativum outros no entanto chamam-
no de demonstrativo Acredita-se que ambos os nomes sejam derivados do
grego respectivamente ἐγκωμιαζηικόν e ἐπιδεκηικόν Entretanto me parece
que a palavra ἐπιδεκηικόν tem o significado natildeo tanto de demonstraccedilatildeo mas
sim de ostentaccedilatildeo a fim de distinguir do termo ἐγκωμιαζηικόν pois embora
ela inclua em si o gecircnero laudativum natildeo consiste somente nesse tipo
Algueacutem pode negar que os discursos panegiacutericos satildeo ἐπιδεκηικόν No entanto
eles tomam a forma suasoacuteria e geralmente tratam dos interesses da Greacutecia De
modo que haacute de fato trecircs gecircneros mas em cada um deles haacute uma parte
dedicada ao objeto e outra parte agrave ostentaccedilatildeo Mas quando natildeo traduzindo do
grego chamam de demonstrativo satildeo simplesmente levados pela
consideraccedilatildeo de que o elogio e a censura demonstram o que eacute a coisa O
segundo tipo eacute o deliberativo e o terceiro o judicial Outras espeacutecies
incorreratildeo nestes gecircneros sem haver encontrado uma espeacutecie qualquer em que
natildeo deve elogiar ou censurar persuadir ou dissuadir para impor uma carga ou
repeli-la Nelas eacute comum conciliar narrar ensinar aumentar diminuir a fim
de influenciar o julgamento do puacuteblico excitando ou dissipando as paixotildees
Eu natildeo poderia concordar mesmo com aqueles que ao adotar segundo meu
parecer uma divisatildeo mais faacutecil e ilusoacuteria do que verdadeira consideram que o
laudativo diz respeito ao que eacute honesto (honroso) o deliberativo ao que eacute
conveniente (uacutetil) e o judicial ao que eacute justo todos satildeo em certo ponto
auxiliados uns pelos outros uma vez que no elogio satildeo consideradas a justiccedila
e a oportunidade e nas deliberaccedilotildees a honra e raramente encontraraacutes uma
peccedila processual judicial na qual natildeo ocorra em alguma parte algo do que
mencionei acima (Ibid III 4 12-16)
Para Quintiliano os trecircs gecircneros natildeo satildeo categorias estanques completamente
separadas mas um auxilia o outro na medida em que compartilham elementos e recursos de
argumentaccedilatildeo como eacute o caso da utilidade da justiccedila e da honra atribuiacuteda ao ato ou agrave pessoa
de um determinado personagem que se ataca ou defende em uma causa Ao gecircnero epidiacutetico
embora esteja inserido na tradicional triparticcedilatildeo geneacuterica estaacute reservado ldquoum papel residual
33
na organizaccedilatildeo do sistemardquo (Schwartz 2004 p 147) Quanto ao lugar do demonstrativo
trata-se de um dos assuntos mais controversos da retoacuterica antiga mas prevalece que estaacute
inserido como lugares comuns dentro dos demais gecircneros de modo que caso fosse assumida
a definiccedilatildeo a partir de uma orientaccedilatildeo discursiva (laudare ou vituperare) seria loacutegico que
tambeacutem fossem acrescentados outros gecircneros segundo este criteacuterio como a repreensatildeo
(obiurgatio) a exortaccedilatildeo (cohortatio) a consolaccedilatildeo (consolatio) entre outros (Ciacutecero Sobre
o Orador II 47 50) Quintiliano (Ibid III 4 9-14) antepotildee uma caracteriacutestica do gecircnero
epidiacutetico em relaccedilatildeo aos gecircneros deliberativo e forense O primeiro visa ao deleite e natildeo exige
de seus ouvintes a tomada de uma decisatildeo como o realizar ou natildeo um ato ou estabelecer a
culpabilidade ou a inocecircncia em um caso mas sim o assentimento O demonstrativo visa a
deleitar a fim de persuadir Segundo Schwartz (2004 p 149) ldquoa caracteriacutestica universalmente
aceita do gecircnero [eacute] o caraacuteter passivo do puacuteblico que soacute conta como apreciador esteacutetico dos
discursosrdquo
Eacute de Quintiliano por fim a referecircncia teoacuterica escrita em latim mais antiga da figura
prosopopeia aplicada ao gecircnero declamaccedilatildeo para ele os discursos suasoacuterios que envolvem a
prosopopeia satildeo ldquoos mais difiacuteceis de pronunciarrdquo (Ibid II 1 2) Segundo Van Mal-Maeder
(2007 p 53) uma vez que a principal finalidade da caracterizaccedilatildeo das personagens era ldquode
despertar a simpatia ou ao contraacuterio de suscitar a indignaccedilatildeo elas tecircm uma capacidade
ilustrativa que os declamadores se compraziam em usar na demonstraccedilatildeordquo Autores como
Clark (1957 p 218) e Bonner (1949 p 285) identificaram essa figura de linguagem que
tambeacutem eram progymnaacutesmata (Heacutelio Teatildeo Progymnaacutesmata 60) com uma caracteriacutestica
essencial da declamaccedilatildeo conforme acima citamos (Ibid III 8 49)
Segundo Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco I 3) os jovens por carecerem de experiecircncia
de vida natildeo eram aptos agrave poliacutetica Justamente em razatildeo deste particular Clark (1957 p 218)
observa que os disciacutepulos eram exercitados em declamaccedilotildees de temas histoacuterico-mitoloacutegicos
fictiacutecios e que deveriam simular um diaacutelogo em proximidade com personagens importantes da
histoacuteria e da mitologia greco-romana tais como fatos biograacuteficos de Sula Soacutecrates
Alexandre Ceacutesar ou Ciacutecero (Mendelson 1994 p 94) Note-se que a utilizaccedilatildeo de temas
mitoloacutegicos e histoacutericos natildeo tem a finalidade de distinguir entre o caraacuteter histoacuterico e
mitoloacutegico mas sim simular adequadamente o discurso segundo o estereoacutetipo corrente
formado a respeito dessas personagens Desse modo os estudantes eram estimulados a
34
compor prosopopeias no sentido em que uma personagem ausente geralmente inspirada na
histoacuteria ou na mitologia greco-romana toma a palavra para fazer um discurso Shenk (1982
p 116-118) tambeacutem observa a ocorrecircncia relevante do uso da prosopopeia nas declamaccedilotildees
deliberativas ou suasoriae ldquomuitas controveacutersias assim como todas as suasoacuterias foram
compostas como prosopopeias nas escolas de declamaccedilatildeordquo Segundo Winterbottom (1974 p
52) estas no sentido de um discurso do personagem simulado seriam uma espeacutecie de
suasoacuteria Dessa forma averigua como no gecircnero declamatoacuterio deliberativo ou suasoacuterio a
prosopopeia era um elemento essencial da declamaccedilatildeo Isso ocorre talvez devido ao poder
persuasivo dessa figura Quintiliano identifica a prosopopeia das causas fictiacutecias com os
diaacutelogos tatildeo utilizados pelos autores greco-romanos em temas filosoacuteficos
Entre aquelas coisas que satildeo ainda mais audaciosas e como pensa Ciacutecero que
exigem maior empenho estaacute a personificaccedilatildeo ou προζωποποιΐα Este recurso
fornece agrave oratoacuteria maravilhosa variedade e animaccedilatildeo Por esse meio exibimos
os pensamentos mais iacutentimos dos nossos adversaacuterios como se estivessem
falando com eles mesmos (mas ela soacute convenceraacute se os representarmos no que
eacute verossiacutemil presumir que ocorra em suas mentes) ou ainda sem sacrifiacutecio de
credibilidade pode introduzir conversas entre noacutes e os outros ou de outras
pessoas entre si e colocar palavras de conselho reprovaccedilatildeo reclamaccedilatildeo
elogio ou pena na boca de pessoas apropriadas ademais por meio destas
prosopopeias eacute possiacutevel trazer dos ceacuteus os deuses evocar a morte e dar vozes
a cidades e Estados Haacute autores que datildeo o nome de prosopopeia soacute agravequelas em
que haacute ficccedilatildeo de personagens e de discursos Quanto agraves outras em que haacute
homens a falar datildeo-lhe o nome de diaacutelogos preferindo o termo grego ao
latino utilizado por muitos que quer dizer conversaccedilatildeo (sermocinatio) Eu
poreacutem seguindo o uso dei o mesmo nome a uma coisa e a outra pois natildeo eacute
possiacutevel imaginar locuccedilotildees sem imaginar as pessoas que falam (Ibid IX 2
29-32)
Dessa forma segundo o argumento de Quintiliano os limites entre a declamaccedilatildeo
suasoacuteria ou epidiacutetica natildeo estariam definidos de modo suficiente em razatildeo da ocorrecircncia de
personagens com discursos diretos cujo conteuacutedo e estilo estatildeo adequados com o ethos de
cada personagem Natildeo se poderia entatildeo falar de declamaccedilatildeo latina epidiacutetica mas de
contextos epidiacuteticos
Por outro lado para Mendelson (1994 94) Quintiliano recomendava que a actio
considerasse natildeo somente o caraacuteter da personificaccedilatildeo que falava mas tambeacutem aquele de seu
auditoacuterio como o nuacutemero de ouvintes seu status nacionalidade especificidade partido e
acima de tudo seu caraacuteter moral (Ibid III 8 37-38) Quintiliano o exemplifica com as
35
Catilinaacuterias na qual Ciacutecero daacute voz agrave Paacutetria e agrave Repuacuteblica (Catilinaacuterias 718 11 27) entes
figurados seres abstratos que tambeacutem tomam a voz na declamaccedilatildeo Embora Quintiliano
apenas pareccedila apresentar a prosopopeia como um fator de dificuldade e por consequecircncia
algo que atribui maior meacuterito para aquele que soubesse adaptar de modo adequado os
caracteres das personagens evocadas agrave temaacutetica em causa e aos gostos do auditoacuterio parece-
nos ponderado afirmar que ela eacute uma caracteriacutestica essencial da declamaccedilatildeo suasoacuteria pois
adaptar a figura fictiacutecia com o tema e a assembleia seria a finalidade mais especiacutefica do
exerciacutecio declamatoacuterio (Bonner 1949 p 285) Parece ser incoerente pensar em uma
declamaccedilatildeo sem a prosopopeia ou mesmo sem uma personificaccedilatildeo
15 A recepccedilatildeo dos autores antigos no Renascimento
Segundo Mack (2004 p 261) ldquoo renascimento da retoacuterica claacutessica poderia ser
caracterizado com trecircs palavras recuperaccedilatildeo adiccedilatildeo e renovaccedilatildeordquo A recuperaccedilatildeo pode ser
entendida entre outros sentidos como a retomada de um corpus de textos greco-romanos
antigos muitos desaparecidos e desconhecidos pelos autores cristatildeos medievais e que
constituem basicamente o corpo de escritos com os quais ainda hoje se toma contato com a
Antiguidade greco-romana A adiccedilatildeo teria sido o acreacutescimo de novos recursos literaacuterios
oriundos do acuacutemulo cultural ao longo dos seacuteculos Trata-se de uma espeacutecie de simbiose entre
a cultura greco-romana e a cristatilde com seus diversos contatos com o oriente A renovaccedilatildeo seria
justamente esse adaptar-se aos novos tempos agraves novas aptidotildees e sensibilidades artiacutesticas
com a conformaccedilatildeo de um movimento cultural ampliacutessimo capaz de penetrar em
praticamente todas as artes e ciecircncias o Renascimento
Como se verificaraacute na recepccedilatildeo da declamaccedilatildeo enquanto gecircnero literaacuterio e
pedagoacutegico faz-se necessaacuterio pontuar que o Renascimento surge basicamente a partir de dois
fenocircmenos de iacutendole literaacuteria primeiro com a recuperaccedilatildeo de textos antigos que natildeo tinham
sido conhecidos ou difundidos ao longo da chamada Idade Meacutedia e em segundo lugar com o
surgimento da imprensa que permitiu a difusatildeo desses textos nos ciacuterculos letrados em escala
ateacute entatildeo impensaacutevel (Sartorelli 2009 p 3) Para Murphy (2003 p 227) Se de um lado
havia o acreacutescimo de fontes agravequelas chamadas ldquocristatildesrdquo verifica-se uma mudanccedila de visatildeo de
mundo que natildeo tratava das coisas segundo uma visatildeo teocecircntrica mas que colocava o
homem no centro de tudo
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O Renascimento conteve duas tendecircncias histoacutericas o Humanismo e o cientificismo
aspectos marcantes do periacuteodo histoacuterico que passava a chamar-se ldquomodernordquo O primeiro
movimento atribuiacutedo a uma classe de pessoas denominadas como humanistas consolidou-se
na peniacutensula itaacutelica e caracterizava-se por um conjunto de ideais ou princiacutepios que
valorizavam a razatildeo e as accedilotildees humanas segundo determinados valores morais como o
respeito a justiccedila a honra o amor a liberdade entre outros O movimento se se afirmava em
contraposiccedilatildeo ao ldquoteocentrismordquo da ldquoIdade das Trevasrdquo atribuiacuteda ao medievo em uma visatildeo
que embora se assemelhe ao iluminismo eacute contrariada pela historiografia contemporacircnea
Como decorrecircncia desse antropocentrismo o desenvolvimento das artes tambeacutem foi uma
caracteriacutestica desse movimento que no acircmbito das Letras a partir da recuperaccedilatildeo dos gecircneros
antigos se pautou no interesse crescente pelos princiacutepios da antiga retoacuterica entendida como
um conjunto de princiacutepios explicitados pelos autores gregos e latinos especialmente da
Antiguidade que abordavam a arte da eloquecircncia ou da argumentaccedilatildeo tendo em vista a
persuasatildeo e o deleite de um auditoacuterio
Dois dados apresentados por Murphy (2003 p 231) exemplificam esse interesse
crescente em relaccedilatildeo agrave Retoacuterica entre a ediccedilatildeo da primeira obra de Ciacutecero (o Sobre o
Orador) datada de 1465 e o ano de 1500 contabilizaram-se 332 publicaccedilotildees impressas ao
passo que houve apenas 154 ediccedilotildees das obras de Aristoacuteteles cujo predomiacutenio de temaacuteticas
filosoacuteficas eacute notoacuterio (Murphy 2003 p 231) Tendo em conta que muitas das obras
ciceronianas abordavam principalmente temas tiacutepicos da retoacuterica e que ao final de 1485 estas
jaacute tinham sido editadas e impressas (Revard Raumldle e Di Cesare 1988 p 522) sua figura
cresceu em importacircncia de modo que muitos elementos retoacutericos geralmente atribuiacutedos a
outros autores antigos foram recebidos pelos humanistas por intermeacutedio da leitura de seus
escritos (Sartorelli 2015 p 7)
Por outro lado a invenccedilatildeo da imprensa fez necessaacuteria a entrada de um nuacutemero ainda
maior de leigos para os trabalhos tipograacuteficos
Uma das principais consequecircncias da invenccedilatildeo da prensa tipograacutefica foi
ampliar as oportunidades de carreira abertas aos letrados Alguns deles se
tornaram letrados-impressores como Aldo Manutius em Veneza Outros
trabalhavam para impressores por exemplo corrigindo provas fazendo
iacutendices traduzindo ou mesmo escrevendo por encomenda de editores-
impressores Ficou mais faacutecil embora ainda fosse difiacutecil seguir a carreira de
ldquohomem de letrasrdquo (Burke 2003 p 28-29)
37
Nem mesmo apoacutes as controveacutersias teoloacutegicas acentuadas pela Reforma Protestante
que teve seu marco inicial com as teses de Lutero afixadas nas portas da catedral de
Winterberg em 1517 ndash mesmo ano de publicaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo ndash e a crescente
oposiccedilatildeo entre os vaacuterios credos cristatildeos as trocas epistolares se restringiram entre as
confissotildees religiosas (Vasoli 2008 p 6 Hernaacutendez Guerrero e Garciacutea Tejera 1994 p 102-
105) Sartorelli (2009 p 4) observa que este ciacuterculo de literatos manteve o latim como liacutengua
veicular utilizando-a como uma liacutengua internacional de comunicaccedilatildeo
eacute preciso ter em conta que esse movimento foi em uma medida de que
talvez natildeo nos apercebamos hoje um movimento essencialmente latino ou
seja em liacutengua latina Humanistas mesmo os helenistas escreviam sobretudo
em latim e foi em latim que Pico della Mirandola por exemplo divulgou
Platatildeo Assim sendo quando falamos aqui em imitatio elocutio etc estamos
sempre falando da liacutengua latina
Em contraste com os seacuteculos anteriores nos quais as letras estavam majoritariamente
restritas ao conhecimento dos cleacuterigos e embora o volgarizzamento com a literatura
ldquoficcionalrdquo como a de Dante ou Bocaccio entre outros escritos natildeo estritamente considerados
filosoacuteficos e teoloacutegicos essa nova classe de intelectuais chamados na Itaacutelia de humanistae
situava sua atenccedilatildeo em questotildees linguiacutesticas poeacuteticas e estiliacutesticas ao privilegiar a arte a
beleza e a persuasatildeo do discurso mais do que a abstraccedilatildeo e a pretensa precisatildeo e uso dos
termos muitas vezes repetitivos do texto filosoacutefico (Murphy 2003 p 241) Contudo a
maioria dos autores mais eminentes eram membros de ordens religiosas muito embora os
leigos ocupassem um espaccedilo cada vez maior nas escolas ou nas universidades atuando como
professores privados ou ainda como dependentes da liberalidade de patronos ou mecenas
especialmente durante o Renascimento (Vasoli 2008 p 6) Esses intelectuais trocavam
correspondecircncias e estabeleciam ciacuterculos de relaccedilotildees ou centros eruditos com a finalidade de
compartilhamento das suas atividades literaacuterias que posteriormente passaram a chamar-se de
academias e se espalharam por toda a Europa Ocidental a ponto de no final do seacuteculo XV
para designar essa corrente cunhou-se a expressatildeo Repuacuteblica das Letras (Moya Bedoya
2008 p 192)
A inserccedilatildeo de outros autores fontes para a inventio ndash aleacutem da Biacuteblia e dos Padres da
Igreja os autores antigos ndash fez com que a arte de ldquoencontrarrdquo argumentos a favor de uma
causa fosse praticada com a leitura de textos de autoridade largamente difundidos pela
imprensa e neste sentido satildeo os autores greco-latinos antigos que erasm privilegiados Estes
38
deveriam ser lidos para deles se extrair por meio do sistema de lugares e toacutepicos os criteacuterios
que podem ajudar a argumentar com um discurso agradaacutevel harmonioso e realmente
persuasivo tal como predicava a retoacuterica Assim o sistema de lugares (loci) se converte em
um meio primordial para ler e ao mesmo tempo para produzir o discurso (Mack 1993 p
130)
Aleacutem da invenccedilatildeo havia o fenocircmeno da imitaccedilatildeo (imitatio) dos antigos modelos
greco-romanos a qual contemplava principalmente preceitos de estilo ou seja as
habilidades verificadas em determinado texto a fim de efetivar a finalidade para a qual foi
escrito Estas habilidades seriam adquiridas atraveacutes de exerciacutecios baseados em textos latinos e
gregos antigos (Cobett e Connors 1999 p 411) A polecircmica em torno da imitaccedilatildeo procurava
discutir se esta teacutecnica se restringia somente ao reproduzir foacutermulas frasais opccedilotildees lexicais e
lugares comuns proacuteprios dos antigos modelos greco-romanos nos escritos dos humanistas As
discussotildees a respeito ocuparam um lugar central ao longo do final do seacuteculo XIV e no iniacutecio
do seacuteculo XV Os autores antigos eram considerados e inclusive venerados como os
possuidores do latim por excelecircncia e deveriam servir de modelo para que os humanistas
praticassem o ldquoverdadeirordquo latim (Sloane 2004 p 112) muito diverso do latim praticado
pelos autores medievais mais ocupados em questotildees dialeacuteticas filosoacuteficas do que com as
questotildees de estilo
Embora houvesse um certo consenso geral acerca da imitaccedilatildeo dos antigos no
Renascimento esse fenocircmeno natildeo foi de modo algum paciacutefico ao considerar as
particularidades desta imitaccedilatildeo Uma das querelas mais encarniccediladas foi o debate em torno do
ciceronianismo Os intelectuais europeus antagonizavam-se em uma tendecircncia de imitaccedilatildeo
estrita agraves obras de Ciacutecero e outra forma mais ecleacutetica que tambeacutem consideravam outros
autores antigos (Sartorelli 2015 p 13) Erasmo foi protagonista nessa polecircmica sobretudo
ao publicar o seu ldquoDiaacutelogo Ciceronianordquo no ano de 15286 Nesse escrito o holandecircs
antagonizou a imitaccedilatildeo estrita e exclusiva de Ciacutecero realizada por autores que se
denominavam como ciceronianos e que visavam imitar com exclusividade o leacutexico a
meacutetrica as declinaccedilotildees e as foacutermulas presentes nos textos ciceronianos a despeito da
qualidade dos demais latinos antigos e do contexto histoacuterico e cultural do seacuteculo XV Os
6 Recentemente traduzido diretamente do latim para o portuguecircs pela orientadora do presente estudo (Sartorelli
2014 e 2015)
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ciceronianos antagonizavam com os humanistas ldquoecleacuteticosrdquo que defendiam a imitaccedilatildeo de
outros autores e que embora reconhecessem o valor das obras ciceronianas tambeacutem
procuravam imitar os demais reconhecendo inclusive a necessidade de incorporar novas
palavras e foacutermulas ao leacutexico latino Erasmo defendeu publicamente uma imitaccedilatildeo ecleacutetica ou
composta isto eacute que considerasse os autores antigos em peacute de igualdade e inclusive definiu a
imitaccedilatildeo a partir do ecletismo necessaacuterio para atender agraves diferenccedilas entre oradores por meio
da locuccedilatildeo de uma das personagens do ldquoDiaacutelogo Ciceronianordquo
Eu abraccedilo a imitaccedilatildeo mas aquela que ajudar a natureza natildeo a que a violar a
que corrigir os dotes naturais natildeo a que os destruir aprovo a imitaccedilatildeo mas a
que conforme o exemplo estaacute de acordo com o teu talento ou que ao menos
natildeo te opotildees a ele para que natildeo pareccedila um theomachein contra os gigantes
De novo aprovo a imitaccedilatildeo mas natildeo a dedicada a uma soacute prescriccedilatildeo de cujos
traccedilos natildeo se atreve a separar-se mas aquela que de todos os autores ou ao
menos dos mais importantes toma aquele que mais se destaca e o que mais
conveacutem a teu proacuteprio talento colhendo e natildeo acrescentando imediatamente ao
discurso tudo de belo que se lhe apresente mas fazendo-o passar a teu proacuteprio
coraccedilatildeo como se fosse ao estocircmago para quem uma vez transfundido agraves
veias pareccedila nascido do teu proacuteprio talento e natildeo mendigado de outra parte
Inspiraraacute assim o vigor e a iacutendole de tua mente e de tua natureza para que
quem lecirc natildeo reconheccedila o emblema tirado de Ciacutecero mas sim um feto nascido
de teu ceacuterebro da mesma forma que dizem Palas saiu do ceacuterebro de Juacutepiter
refletindo a imagem viva de seu pai e teu discurso natildeo pareccedila a ningueacutem um
mosaico mas a imagem viva de teu peito ou um rio emanado da fonte do teu
coraccedilatildeo Mas seja tua primeira e principal preocupaccedilatildeo a de conhecer a
mateacuteria que te propotildees tratar Ela prover-se-aacute copiosidade oratoacuteria prover-te-aacute
afetos verdadeiros e genuiacutenos Assim enfim dar-se-aacute que teu discurso viva
respire aja comova e arrebate e reflita todo teu ser (Erasmo Diaacutelogo
Ciceroniano Traduccedilatildeo por Sartorelli 2015 p 16)
Veremos como a ldquoQueixa da Pazrdquo tambeacutem se apresenta como um discurso que recebe
e imita expressotildees lugares comuns e metaacuteforas correntes em autores antigos natildeo se limitando
a Ciacutecero mas colocando em praacutetica esta imitaccedilatildeo ecleacutetica defendida por Erasmo
16 A recepccedilatildeo pelas ediccedilotildees e traduccedilotildees dos autores antigos
Conveacutem considerar as mais importantes ediccedilotildees realizadas pelos humanistas
diretamente relacionadas ao gecircnero declamaccedilatildeo Por outro lado dado o nuacutemero inabordaacutevel
de ediccedilotildees obras e tiacutetulos do periacuteodo a ponto de Murphy (1983 p 20-36) enumerar quase
dois mil nomes que estatildeo contidos dentro do epiacuteteto de humanista ou renascentista deve-se
considerar a dificuldade de catalogar a praacutetica da declamaccedilatildeo no periacuteodo
40
Ao selecionar portanto algumas declamaccedilotildees entre os humanistas elegemos aquelas
que (grupo 1) os estudiosos de Erasmo consideram que foram conhecidas por ele e portanto
o teriam influenciado de modo direto e inconteste ou aquelas que foram inequivocamente
influenciadas por ele (grupo 2) Aleacutem desse criteacuterio deve-se considerar evidentemente certo
prestiacutegio desses autores em relaccedilatildeo a outros menos conhecidos a ponto de serem mais
habitualmente levados em conta pela academia7
A declamaccedilatildeo apoacutes seu esquecimento quase completo durante o periacuteodo bizantino
(Kennedy 1980 p 166) e apoacutes uma tiacutemida praacutetica das controveacutersias por alguns eruditos do
seacuteculo XI entre os quais destaca-se Anselmo de Cantuaacuteria (Kennedy 1980 p 185) passou a
ser praticada especialmente pelos humanistas do norte da Itaacutelia muito em razatildeo da
redescoberta dos mencionados manuscritos de Secircneca Quintiliano e Ciacutecero A retomada da
praacutetica da declamaccedilatildeo no periacuteodo renascentista tem seu iniacutecio delimitado na Itaacutelia do seacuteculo
XIV e coincide segundo o estudo de Giazzi (2008 p 315-317) com a existecircncia de
manuscritos de declamaccedilotildees sob os moldes antigos realizados e encontrados em Milatildeo e
anexados ao exempla epistolarum de Visconti datados nos anos da virada do seacuteculo XIV para
o XV Segundo Boulet (2013 p 9)
Um grande nuacutemero destas declamaccedilotildees foi pronunciado em situaccedilatildeo de
aprendizagem em contexto escolar como indica o imponente trabalho
pioneiro realizado por Van der Poel (1987) sob a orientaccedilatildeo de Jean-Claude
Margolin Os textos destas declamaccedilotildees pedagoacutegicas foram perdidos ou satildeo
lacunares ou de um interesse mediacuteocre
Mas estes autores natildeo gozavam de vaacuterios escritos fundamentais para a teorizaccedilatildeo e
exemplificaccedilatildeo da declamaccedilatildeo antiga por exemplo a redescoberta de um dos manuscritos
integrais da ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo no mosteiro suiacuteccedilo de Saint Gall pelo humanista italiano
Poggio Braccioloni deu-se apenas em setembro de 1416 (Enos 1990 p 177 Goacutemez
Cervantes 2007 p 424) Este manuscrito ateacute entatildeo soacute era conhecido parcialmente por
intermeacutedio do texto chamado de mutilatus Jaacute as declamaccedilotildees mais antigas consideradas como
pertencentes ao humanismo satildeo as quatro declamaccedilotildees de Coluccio Salutati (1331-1406)
intituladas em latim ldquoDeclamaccedilatildeo de Lucreacuteciardquo ldquoDeclamaccedilatildeo de Priacuteamordquo ldquoQuestatildeo contra
os decemvirirdquo e ldquoSobre o reinordquo (Enos 1990 p 177) A redescoberta do diaacutelogo ldquoSobre o
7 A segunda ediccedilatildeo do cataacutelogo de Murphy e Green apresentou 1717 autores 3842 tiacutetulos de retoacuterica em 12325
impressotildees publicadas em 310 cidades por 3340 editores da Finlacircndia ao Meacutexico (Green e Murphy 2006 p
IX)
41
oradorrdquo por Landriani veio alguns anos depois em 1421 (Strayer 1989 p 24) Data do
mesmo periacuteodo ademais o acesso agraves ldquoControveacutersiasrdquo de Secircneca pelos humanistas uma vez
que alguns excertos teriam sido publicados em Naacutepoles em 1475 e o texto integral que
incluiu as ldquoSuasoacuteriasrdquo foi editado em Veneza em 1490 (Grafton Most e Settis 2010 p
872) O proacuteprio Erasmo foi o responsaacutevel por duas ediccedilotildees da obra de Secircneca datadas de
1515 e 1529 sendo que a primeira ediccedilatildeo eacute anterior ao ano de redaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo
(1516) (Grafton Most e Settis 2010 p 872) Desta forma o conhecimento de Erasmo acerca
da declamaccedilatildeo natildeo se restringia mais ao manual da ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo e ao ldquoSobre a
invenccedilatildeordquo como nos tempos de Salutati mas tambeacutem passaria a contar com a influecircncia dos
demais textos ciceronianos assim como outros escritos retoacutericos de Secircneca o Velho
Isoacutecrates Platatildeo entre outros que ou natildeo eram conhecidos pelos autores cristatildeos no iniacutecio do
seacuteculo XV ou natildeo eram largamente valorizados ou difundidos antes da entrada em cena da
imprensa que sem duacutevida potencializou a difusatildeo dos escritos dos autores antigos da Greacutecia
e de Roma (Murphy 2005 p 3)
A redescoberta das declamaccedilotildees e dos textos que teorizam sobre ela aleacutem das
traduccedilotildees de Erasmo de algumas delas escritas em grego especialmente as de Libacircnio e
Luciano certamente influenciaram a praacutetica desse gecircnero pelo holandecircs uma vez que a
declamaccedilatildeo preconizada na retoacuterica ciceroniana na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo e no ldquoSobre a
invenccedilatildeordquo que eram consideradas durante os seacuteculos como os escritos retoacutericos por
antonomaacutesia (Kennedy 1980 p 195) Aleacutem dessas obras Knott (1988 p 8-9) percebe a
influecircncia no ldquoSobre a abundacircnciardquo (De copia) de parte do livro I e d o II livro da ldquoInstituiccedilatildeo
Oratoacuteriardquo de Quintiliano justamente as partes que trazem vaacuterias referecircncias teoacutericas sobre o
gecircnero aleacutem das proacuteprias declamaccedilotildees atribuiacutedas a ele talvez atraveacutes da leitura de Valla
Aleacutem da produccedilatildeo de diversos manuais em que constava a praacutetica da declamaccedilatildeo em
ambiente escolar com finalidade explicitamente pedagoacutegica Van der Poel (1987 p 984)
salienta a produccedilatildeo desse gecircnero exterior ao ambiente e ao processo educacional em forma
escrita e literaacuteria tal como praticada por vaacuterios autores entre os quais se destaca a atividade
do ldquopriacutencipe dos humanistasrdquo Em seu ldquoPlano de estudosrdquo (De ratione Studii) por exemplo
Erasmo citava algumas obras fundamentais para a formaccedilatildeo de um humanista na qual se nota
a presenccedila expliacutecita das declamaccedilotildees traduzidas por ele dos temas proacuteprios a tais exerciacutecios e
dos escritos que tratavam sobre a declamaccedilatildeo como os de Secircneca (Kennedy 1980 p 196)
42
Apoacutes ser introduzida no norte da Europa a declamaccedilatildeo foi produzida pelos autores
renascentistas exclusivamente na forma escrita (Murphy 2012 p 69) com entusiasmo natildeo
menor do que a recepccedilatildeo do puacuteblico conforme se denota pelo alcance editorial que
obtiveram pois algumas das mais relevantes obras literaacuterias do Renascimento foram escritas
no formato declamatoacuterio tais como o ldquoElogio da Loucurardquo (1511) de Erasmo e as
declamaccedilotildees de Thomas More A declamaccedilatildeo chamada ldquoliteraacuteriardquo entendida aquela que era
exclusivamente escrita e visava o deleite dos eruditos e natildeo somente a escolar-pedagoacutegica
estava por assim dizer ldquona modardquo entre os autores do seacuteculo XVI
17 Principais declamadores e declamaccedilotildees renascentistas
Entre os autores do Renascimento Van der Poel (2007 p 128-129) e Tunberg (2006
p 9) destacam as seguintes obras algumas das quais anteriores outras contemporacircneas agraves de
Erasmo e outras por fim posteriores agrave Querela como exemplos de declamaccedilotildees
paradigmaacuteticas segundo os preceitos herdados da retoacuterica antiga Apresentamos uma siacutentese
dessas declamaccedilotildees ressaltando os elementos particulares que satildeo pertinentes para uma
comparaccedilatildeo com as caracteriacutesticas da declamaccedilatildeo antiga consideradas no primeiro capiacutetulo e
a ldquoQueixa da Pazrdquo objeto principal do presente estudo Dentre estas se destacam a
declamaccedilatildeo de Valla (Constatini donatione) e a de More que foram certamente conhecidas
por Erasmo dada a admiraccedilatildeo de Erasmo pelo primeiro e sua amizade pessoal para com o
segundo
171 Lourenccedilo Valla
Em uma de suas epiacutestolas a Cornelis Gerard (Steyn 15 de maio de 1489 1974 p 31)
Erasmo afirma que a ldquoElegacircncias da liacutengua latinardquo (Elegantiae linguae latinae) escrito por
Valla o influenciou significativamente Para Gianotti (2008 p 65) os autores humanistas
tomavam o italiano como guia ldquona escolha lexical e estiliacutesticardquo Nessa mesma epiacutestola apoacutes
enumerar Ciacutecero Quintiliano Saluacutestio e Terecircncio como autoridades no tocante agrave prosa
Erasmo tambeacutem admitia a superioridade de Valla
Com efeito quanto agraves observaccedilotildees das elegacircncias em ningueacutem eu tenho tanta
confianccedila quanto em Lourenccedilo Valla pois natildeo temos nenhum outro a atribuir
tanta pertinaacutecia de engenho e tenacidade de memoacuteria Natildeo ousarei pois em
qualquer mateacuteria contrariar o que nas letras aconselhou
43
Conforme explicam Bentley (1977 p 11) e Weiler (1997 p 9) a influecircncia de Valla
sobre Erasmo tem um papel especial em sua formaccedilatildeo intelectual pois jaacute em 1489 o
holandecircs o louvava por restaurar a eloquecircncia em forma escrita e em latim Como veremos o
italiano tambeacutem foi um autor profiacutecuo de declamaccedilotildees que foram conhecidas e emuladas por
Erasmo Bentley (1977 p 28) inclusive afirma a insistecircncia de Valla na submissatildeo da
filosofia agrave retoacuterica e agrave filologia sendo que o holandecircs o seguiu pelo mesmo caminho ldquocom o
objetivo de renovar a moral e a religiosidade da cristandaderdquo (Bentley 1977 p 28) de um
modo muito semelhante e que seraacute explorado ao longo da presente dissertaccedilatildeo nas
declamaccedilotildees erasmianas
Entre as declamaccedilotildees de Valla conta-se a ldquoDoaccedilatildeo de Constantinordquo (De falso credita
et ementita Constantini donatione) escrita em 1440 e publicada em 1517 Nesta declamaccedilatildeo
muito provavelmente conhecida por Erasmo o autor com argumentaccedilatildeo histoacuterica e
filoloacutegica demonstrou a falsidade da Doaccedilatildeo de Constantino um documento apoacutecrifo com o
qual a igreja justifica seu poder temporal Constantino e o Papa satildeo as personagens histoacutericas
que atuam no discurso ficcional tal como ocorria em diversas declamaccedilotildees latinas
De fato a palavra declamaccedilatildeo natildeo teria sido inserida por Valla no tiacutetulo mas pelo
editor Uacuterico Von Huten de forma que o autor parece natildeo ter tido a intenccedilatildeo clara de escrever
uma ldquodeclamaccedilatildeordquo (Ginzburg 2004 p xv) pois se pode dizer que a ldquoDoaccedilatildeo de
Constantinordquo se assemelha ao gecircnero diaacutelogo com tema histoacuterico natildeo filosoacutefico Esta
semelhanccedila remonta ao jaacute citado texto de Quintiliano jaacute considerado no capiacutetulo primeiro
que dirimia uma sinoniacutemia corrente entre os a declamaccedilatildeo e o diaacutelogo devido ao caraacuteter
fictiacutecio e a presenccedila comum de personificaccedilotildees Aleacutem disso segundo o argumento de
Bowersock (2008 p ix) a declamaccedilatildeo de Valla natildeo poderia ser considerada uma declamaccedilatildeo
por natildeo apresentar os dois lados da questatildeo Como vimos no entanto nem todas as
declamaccedilotildees antigas tinham esse formato Ao comparar-se a ldquoQueixa da Pazrdquo com a ldquoDoaccedilatildeo
de Constantinordquo verificou-se que a primeira ao contraacuterio da segunda apresenta uma
descriccedilatildeo narrativa no exordium e apresenta em algumas partes caracteres semelhantes da
sermocinatio conforme consideramos no capiacutetulo primeiro a fim de desenvolver digressotildees e
amplificaccedilotildees de caraacuteter filosoacutefico ou teoloacutegico Ademais segundo Colemann e Perry (2001
p 3-4) tal como a Querela a ldquodeclamaccedilatildeordquo de Valla tem uma finalidade poliacutetica ao influir na
disputa territorial entre o papa Eugecircnio IV e o rei Afonso de Aragatildeo Siciacutelia e Naacutepoles para o
44
qual Valla trabalhava como conselheiro (Bowersock 2008 p vii) Deve-se salientar por fim
que Erasmo concede a voz agrave Paz ao passo o proacuteprio Valla toma a voz do discurso
172 Thomas More
A declamaccedilatildeo ldquoTiranicidardquo (Declamatione qua Luciani Tyrannicidae respondetur) foi
escrita por Thomas More (1478-1535) provavelmente em 1506 em emulaccedilatildeo a uma
declamaccedilatildeo erasmiana que tambeacutem refutava os argumentos do ldquoTiranicidardquo de Luciano
(Rummel 1985 p 50) Como eacute caracteriacutestico do humanismo a obra entra pois em diaacutelogo
extemporacircneo e fictiacutecio com uma ceacutelebre declamaccedilatildeo antiga (Baumann 1985 p 113) Na
obra antiga Luciano defende a causa do tiranicida em uma controveacutersia com argumentos do
gecircnero forense ou judicial (Thompson 1974 xviii) More que tambeacutem traduziu para o latim
a declamaccedilatildeo de Luciano (Logan e Adams 2003 xv) tal como o proacuteprio Erasmo (Chomarat
1981) natildeo quis apenas respondecirc-la como tambeacutem Erasmo o fizera mas expocircs suas proacuteprias
ideias de modo que os dois textos se relacionam formalmente e divergem em alguns pontos
de vista (Fox 1983 p 44) O autor inglecircs defende o argumento de que o tirano seraacute aceitaacutevel
se permitir que a cidade recupere a paz e a ordem de Direito Assim enquanto Luciano
satirizava com ironia a causa do tiranicida More a vitupera seguindo a praacutetica da declamaccedilatildeo
que selecionava apenas um lado da contenda
Erasmo relata a amizade com More e a praacutetica da declamaccedilatildeo realizada juntamente
com o autor inglecircs
Proponho-me agora a falar sobre o assunto daqueles estudos que foram o
principal meio de unir-nos a More e a mim Na sua primeira juventude seus
principais exerciacutecios literaacuterios foram em verso Depois disso More lutou para
tornar a sua prosa mais suave praticando todo tipo de escrita para formar um
estilo o caraacuteter do qual seraacute desnecessaacuterio lembrar especialmente a ti que
estaacute sempre com os seus livros nas matildeos Tinha o maior prazer em participar
de declamaccedilotildees escolhendo sempre algum tema polecircmico por envolver um
exerciacutecio mental importante Enquanto ainda jovem tentou redigir um
diaacutelogo em que desenvolvia a defesa da comunidade de Platatildeo ateacute mesmo na
questatildeo do tratamento das esposas Escreveu uma resposta ao Tiranicida de
Luciano em cuja argumentaccedilatildeo quis ter-me como rival para testar sua
proficiecircncia nesse tipo de escrita More publicou sua Utopia para mostrar o
que provoca o mal na vida das comunidades tendo em vista particularmente a
constituiccedilatildeo inglesa que conhece e entende muito bem Escreveu o Livro II
aos poucos e depois quando viu que um outro era necessaacuterio acrescentou o
Livro I de improviso daiacute uma certa desigualdade que se nota no estilo
(Clarissimo Equiti Ulricho Hutteno Epistolae Allen [ed] Vol 4 1922
Epiacutestola 999 traduccedilatildeo de Ana de Melo Franco)
45
A partir deste texto erasmiano distingue-se a praacutetica da declamaccedilatildeo renascentista
como um exerciacutecio escrito em prosa e um meio de obtenccedilatildeo de um estilo proacuteprio Verifica-se
ademais neste trecho conforme consideramos anteriormente um exemplo tiacutepico das relaccedilotildees
entre os humanistas e o compartilhamento de prosas em gecircneros recebidos da Antiguidade
entre os quais a declamaccedilatildeo com seu espaccedilo significativo praticado simultaneamente como
exerciacutecio e divertimento
Em epiacutestola a Erasmo (26 de maio de 1520) cerca de trecircs anos apoacutes a publicaccedilatildeo da
ldquoQueixa da Pazrdquo More se reporta agraves declamaccedilotildees de Luiacutes de Vives (Thomas More Corr
9335) Destaca o modo como o discurso que versava sobre temas de primeira ordem
utilizava-se do apelo agrave emoccedilatildeo a fim de que o leitor pudesse como que ldquoverrdquo e ldquosentirrdquo
aspectos do que era tratado A declamaccedilatildeo entatildeo tambeacutem eacute entendida como um modo de
expressar e transmitir sentimento em relaccedilatildeo a determinada causa situando-se como um
discurso retoacuterico que sem desprezar as dimensotildees do loacutegos e do ecircthos se dirige
especialmente ao paacutethos ao tocar as emoccedilotildees do leitor Tal troca epistolar entre More e
Erasmo denota a clareza com a qual esses autores entendiam o papeis retoacutericos do ethos e do
pathos e sua respectiva relevacircncia na declamaccedilatildeo
18 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees renascentistas
Van der Poel (2007 p 128-129) depois de apresentar duas formas nas quais as
declamaccedilotildees escritas eram apresentadas durante o Renascimento (ou seja as declamaccedilotildees
destinadas agrave circulaccedilatildeo em manuscrito para um ciacuterculo restrito de amigos mas ainda assim
escritas como os ldquoTiranicidasrdquo de More e Erasmo e as demais destinadas agrave publicaccedilatildeo
editorial) afirma que natildeo haacute uma distinccedilatildeo essencial entre elas mas que se pode observar
que no primeiro tipo predominam os temas histoacutericos enquanto que no segundo daacute-se uma
renovaccedilatildeo da antiga praacutetica oratoacuteria com escritos de gecircnero deliberativo
Um primeiro grupo constitui-se de declamaccedilotildees sobre temas histoacutericos da
Antiguidade ou sobre personagens ceacutelebres que acima de tudo eram vistas
como meros exerciacutecios retoacutericos mas pela escolha do tema e do tratamento
devem ser interpretadas como discussotildees dissimuladas sobre temas
contemporacircneos especialmente da natureza poliacutetica Entatildeo como alguns
discursos cerimoniais certas declamaccedilotildees podem ser categorizadas como
parcialmente ldquoclaacutessicasrdquo e parcialmente ldquomodernasrdquo Exemplos satildeo as
declamaccedilotildees sobre o tiranicida de Tomas More (1478-1535) escrita em
resposta agrave declamaccedilatildeo de Luciano em defesa do tiranicida (Tyrannicida) ou as
46
cinco declamaccedilotildees de Vives as Declamationes Syllanae (1520) na qual os
poliacuteticos romanos argumentam a favor e contra a retenccedilatildeo do poder pelo
ditador de Roma enquanto Sula apresenta seu discurso de abdicaccedilatildeo
Finalmente haacute um grupo de oraccedilotildees ou declamaccedilotildees entre a categoria de
discursos natildeo escritos para a performance mas para a publicaccedilatildeo exclusiva em
forma impressa que a meu ver pode ser considerada completamente como
ldquomodernardquo [hellip] Seus autores claramente tem a ambiccedilatildeo da praacutetica da
verdadeira retoacuterica de Ciacutecero e Quintiliano a quem atribuem um papel
importante para o orador na praacutetica do discurso puacuteblico na esfera civil [hellip]
Quando algum humanista toma a pena para escrever um discurso anunciado
explicitamente como retoacuterico (oraccedilatildeo declamaccedilatildeo elogio ou outro tipo de
denominaccedilatildeo retoacuterica) eacute provaacutevel que ele esteja apresentando sua opiniatildeo
sobre um tema que ele considera relevante para a sociedade como um todo e
apresentando seu ponto de vista com especial assentimento e convicccedilatildeo (Van
der Poel 2007 p 128-129)
Segundo o argumento de Connolly (2009 p 139) as fontes das antigas declamaccedilotildees
inclusive das gregas eram segundo o jaacute citado elenco de temas proposto por Aristoacuteteles as
causas poliacuteticas as quais discutiam a paz e a guerra a guerra civil os impostos as relaccedilotildees
internacionais e outros temas poliacuteticos todos do gecircnero deliberativo e que natildeo deixaram de
estar em voga no Renascimento Quando um reacutetor ou um declamador argumentava a favor da
paz discutiam-se alguns princiacutepios que poderiam confrontar os tiranos de todos os tempos
como a liberdade a virtude da lei e a paz (Ibid p 140) Estas faziam com que a declamaccedilatildeo
natildeo fosse antiga ou moderna mas em um sentido ainda mais amplo e menos restritivo quase
atemporal na medida em que eram valores que perpassavam vaacuterias eacutepocas histoacutericas mas
tambeacutem se mantinha em comum uma espeacutecie de tradiccedilatildeo dada a invenccedilatildeo e a imitaccedilatildeo
ambas baseadas em padrotildees estabelecidos por autores antigos
De fato tanto o locutor de um exerciacutecio declamatoacuterio nos tempos do Impeacuterio quanto
um humanista que escrevia sua ldquodeclamaccedilatildeordquo em que tocava pontos de interesse para a
sociedade tinham em vista assuntos que chamariam a atenccedilatildeo dos seus ouvintes e que se
mostrariam uacuteteis (utilitas) conforme os princiacutepios basilares do deliberativo
Nesse sentido verifica-se que agrave semelhanccedila das declamaccedilotildees romanas que inseridas
nas tiacutepicas atividades dos reacutetores foram entendidas como ofensivas ao despotismo imperial
as declamaccedilotildees renascentistas abordavam temas uacuteteis e muitas vezes polecircmicos diante das
autoridades Jaacute citamos acima a afirmaccedilatildeo de Mack (2004 p 261) segundo a qual ldquoo
renascimento da retoacuterica claacutessica poderia ser caracterizado com trecircs palavras recuperaccedilatildeo
adiccedilatildeo e renovaccedilatildeordquo Se a recuperaccedilatildeo eacute evidente com a retomada da antiga declamaccedilatildeo a
adiccedilatildeo (additon) e a renovaccedilatildeo (change) datildeo-se justamente na atualizaccedilatildeo deste gecircnero em
47
relaccedilatildeo ao contexto histoacuterico social no qual estaacute inserido Esta adaptaccedilatildeo ao contexto era
exigida tanto na chamada declamaccedilatildeo que o autor denomina como ldquoclaacutessicardquo como na dita
ldquomodernardquo uma vez que a audiecircncia ou os leitores precisam ser convencidos segundo as
paixotildees que lhes satildeo sensiacuteveis conforme os argumentos que lhes satildeo verossiacutemeis e em
concordacircncia com sua compreensatildeo da moral e dos costumes A mudanccedila se alinha agrave eacutepoca
mas ela proacutepria jaacute era prevista pelos claacutessicos de modo que eacute uma das caracteriacutesticas
imprescindiacuteveis para um discurso efetivamente persuasivo
19 Definiccedilotildees da declamaccedilatildeo pelos renascentistas
Consideramos anteriormente que a imitaccedilatildeo do gecircnero da declamaccedilatildeo nos primoacuterdios
do seacuteculo XIV entre os humanistas do norte da Itaacutelia das declamaccedilotildees de autores antigos que
escreveram em grego e latim e a redescoberta do texto completo da Instituiccedilatildeo Oratoacuteria de
Quintiliano foram passos determinantes para a recepccedilatildeo da declamaccedilatildeo feita por Erasmo
Chomarat (1981 p 934) observa que os princiacutepios teoacutericos claacutessicos da declamaccedilatildeo
chegaram ao Renascimento por meio dos escritos desse autor romano Sobretudo com
Lourenccedilo Valla o orator era denominado como ldquoaquele que fala diante de uma tribuna ou
assembleiardquo e o rhetor ldquoeacute o professor de retoacutericardquo Jaacute o declamador eacute
aquele que estudando com o reacutetor executa uma causa fictiacutecia diante dos
alunos reunidos a fim de poder em seguida exercitar-se nas causas reais O
reacutetor que mesmo fora da escola pratica esse gecircnero seja para exercitar outras
pessoas seja para exercitar-se a si mesmo eacute denominado declamador (Valla
Elegacircncias da liacutengua latina IV 81)
Um contemporacircneo de Erasmo Henricus Cornelius Agrippa (1486-1535) que
tambeacutem produziu diversas declamaccedilotildees com temas semelhantes agraves erasmianas assim
conceitua a declamaccedilatildeo
por conseguinte a declamaccedilatildeo natildeo julga natildeo dogmatiza mas () fala por
vezes como brincadeira por vezes seriamente agraves vezes com falsidade agraves
vezes com rigor ela fala agraves vezes segundo meu proacuteprio pensamento agraves vezes
segundo o pensamento de outrem ela propotildee verdades falsidades afirmaccedilotildees
duacutebias () ela aduz a muitos argumentos sem valor (Cornelius Agrippa
Apologia adversus calumnias propter declamationem de Vanitate scientiarum
1533) (apud Chomarat 1981 p 941)
Como vimos tanto na definiccedilatildeo de Valla como na de Agripa permanecem duas
caracteriacutesticas principais da declamaccedilatildeo tal como fora entendida e praticada pelos autores
antigos especialmente Quintiliano ou seja trata-se de um exerciacutecio de elocutio e de um
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discurso fictiacutecio Van der Poel (1997 p 128-129) comenta que a definiccedilatildeo de Agripa e dos
humanistas em geral inclusive de Erasmo era a de um discurso de uma personagem fictiacutecia
Mas devido ao fato de que a declamaccedilatildeo no periacuteodo renascentista natildeo tem mais a finalidade
de ser meramente um exerciacutecio escolar e eacute praticada de forma escrita Surtz (1957 p 9)
propotildee que esta seja ldquouma composiccedilatildeo escrita para o divertimento e para o prazer a fim de
exercitar o talento nativo do autor e desenvolver seu poder literaacuteriordquo
110 Conclusotildees do capiacutetulo
O presente capiacutetulo teve a finalidade de expor alguns elementos sobre a recepccedilatildeo do
gecircnero da declamaccedilatildeo entre os humanistas As declamaccedilotildees antigas se classificam de dois
modos eram privadas ou puacuteblicas (Kennedy 1980 p 103) isto eacute natildeo podem ser reduzidas
somente a exerciacutecios escolares executados para a educaccedilatildeo dos jovens oradores mas tinham
tambeacutem um caraacuteter performaacutetico uma vez que costumavam ser praticadas por adultos com a
finalidade de produzir deleite em reuniotildees sociais ou como tirociacutenios privados da eloquecircncia
(Schwartz 2004 p 68-69 Edward 1928 p xiv Fairweather 1981 p 544) Contudo
Winterbottom (1980 p 13) baseado em um texto de Quintiliano que trata do panegiacuterico e do
demosntrativo no contexto das declamaccedilotildees escolares (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 10 11)
afirma que algumas das declamaccedilotildees puacuteblicas eram por assim dizer do epidiacutetico uma vez
que visavam muitas vezes a estabelecer um elogio ou um vitupeacuterio ao contraacuterio das demais
declamaccedilotildees ldquodidaacuteticasrdquo Baseado em Quintiliano Winterbottom (1980 p 26-27) reconhece
o gecircnero judiciaacuterio como a principal finalidade da declamaccedilatildeo mas distingue na
Controuersiae 276-9 de Secircneca o Reacutetor elementos caracteriacutesticos do gecircnero epidiacutetico
demonstrando que o elogio e o vitupeacuterio tambeacutem eram recursos retoacutericos correntes nas
declamaccedilotildees de gecircnero judicial pois muitas vezes era necessaacuterio qualificar a viacutetima ou uma
testemunha atraveacutes do elogio e desqualificar o reacuteu ou uma testemunha atraveacutes do vitupeacuterio
Como vimos o proacuteprio Ciacutecero afirmou declamar entre os seus amigos e familiares
justamente para exercitar-se para os momentos mais importantes de sua accedilatildeo poliacutetica Na
Roma Imperial difundiu-se na alta sociedade o costume de fazecirc-lo de modo que a
historiografia romana registrou na vida de alguns imperadores ao longo do periacuteodo
contemplado o costume de executar declamaccedilotildees (Schwartz 2004 p 68-69) Embora se
possa discutir acerca da real historicidade desses relatos pode-se dizer que a atribuiccedilatildeo da
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praacutetica declamatoacuteria pelos textos historiograacuteficos a respeito da vida dos imperadores denota
que essa praacutetica gozava de certo prestiacutegio ao menos no periacuteodo imperial muito embora
alguns textos critiquem os declamadores e suas performances O proacuteprio fato de dedicar
espaccedilo para criacutetica escrita numa eacutepoca em que a produccedilatildeo de texto natildeo era tatildeo simples atesta
o alcance que a declamaccedilatildeo teve na sociedade romana
Verificou-se que a recepccedilatildeo e a praacutetica do gecircnero no Renascimento teve seu iniacutecio no
norte da Itaacutelia e coincidiram ndash ou foram causadas ndash com a redescoberta de manuscritos suas
traduccedilotildees e reediccedilotildees impressas de algumas das obras retoacutericas mais importantes e que
tratavam sobre a declamaccedilatildeo de autores como Ciacutecero Quintiliano e Secircneca Vaacuterios
humanistas como Salutati e Valla (situados no seacuteculo XV) e Erasmo de Rotterdam Thomas
More Corneacutelio Agrippa entre outros cuja atividade puacuteblica data da primeira metade do
seacuteculo XVI produziram declamaccedilotildees escritas como exerciacutecio o que eacute caracteriacutestico desse
tempo e o que as diferencia da Antiguidade vimos ainda que as definiccedilotildees das caracteriacutesticas
essenciais da declamaccedilatildeo propostas por Valla e Agripa satildeo concordes com as antigas no
sentido de afirmaacute-la como exerciacutecio retoacuterico escrito de um discurso fictiacutecio sobre temas
suasoacuterios ou epidiacuteticos com ao menos duas finalidades expliacutecitas divertir atraveacutes de formas
e referecircncias que provocam o riso e instruir atraveacutes da persuasatildeo e da defesa de valores
eacuteticos abandonados ou marginalizados pela sociedade
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51
CAPIacuteTULO 2 - A DECLAMACcedilAtildeO ERASMIANA E A QUEIXA DA PAZ
O presente capiacutetulo tem como finalidade apresentar agumas caracteriacutesticas gerais da
declamaccedilatildeo erasmiana tais como suas definiccedilotildees temas classificaccedilotildees e o contato de Erasmo
com outras declamaccedilotildees de seu tempo Aleacutem disso procura salientar os argumentos a favor e
contra a classificaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo enquanto pertencente a esse gecircnero em uma
comparaccedilatildeo com algumas das declamaccedilotildees do final do periacuteodo republicano e do iniacutecio do
impeacuterio
21 Definiccedilotildees erasmianas
A definiccedilatildeo de declamaccedilatildeo proposta por Erasmo abrange a proposiccedilatildeo principal das
definiccedilotildees de Valla e Agripa ou seja do exerciacutecio-fictiacutecio O holandecircs distingue entre
declamador reacutetor e orador na sua paraacutefrase ao Elegantias de Valla ldquodeclamador eacute aquele
que a soacutes ou na escola de retoacuterica defende uma causa fictiacutecia a fim de melhor executar uma
causa verdadeira Declamar eacute exercitar-se em um discurso sobre um tema fictiacuteciordquo (Opera
Omnia Erasmi I-4 ll 313923) Erasmo parecia estar bem ciente dos limites e das
caracteriacutesticas essenciais do gecircnero como se depreende por exemplo de uma citaccedilatildeo extraiacuteda
de seus Adaacutegios a qual natildeo deixa de ser tambeacutem uma autocriacutetica feita a partir da
classificaccedilatildeo da declamaccedilatildeo presente em um escrito de Jerocircnimo (Erasmo Adagia 2500 III
V 100 Nec aures habeo nec tango) Tal comentaacuterio aparece na explicaccedilatildeo do adaacutegio 100
cujo significado pode ser entendido como ldquonatildeo tenho ouvidos nem tocordquo e se insere no
contexto de algueacutem que pegou algo de outro e diante do protesto deste dissimula a posse Ao
explicar o proveacuterbio o holandecircs cita uma epiacutestola que Jerocircnimo qualifica como declamaccedilatildeo
(Epiacutestola 117 12) cujo tema seria sobre a reconciliaccedilatildeo de uma matildee com sua filha
Justamente ao denominar como tal esse escrito e talvez percebendo que a causa natildeo eacute
deliberativa nem judicial nem mesmo um elogio ou sequer um caso fictiacutecio mas tendo
permanecido o caraacuteter de exerciacutecio Erasmo manteacutem a denominaccedilatildeo de declamaccedilatildeo talvez
por respeito agrave autoridade do Padre da Igreja que tambeacutem era reacutetor muito embora esta
classificaccedilatildeo possa ser facilmente contestada Erasmo portanto estaria consciente de que a
declamaccedilatildeo tem seus limites proacuteprios e que Jerocircnimo poderia ser criticado ao extrapolaacute-los
ao denominar assim neste texto em particular
52
Com base na definiccedilatildeo erasmiana Akkerman (1995 p 53-54) procura diferenciar a
declamaccedilatildeo da oraccedilatildeo ldquoEm um sentido mais restrito oratio eacute um discurso que eacute na verdade
realizado em resposta a um evento social ou cerimonial e declamaccedilatildeo um exerciacutecio fictiacutecio
que se executa na escola ou a soacutesrdquo Erasmo tambeacutem entendia como declamaccedilatildeo ldquoum tema
imaginaacuterio que se trata a favor e contra a fim de exercitar a eloquecircnciardquo Essa definiccedilatildeo
segundo Chomarat (1981 p 937) seria ldquoa que mais distingue a declamaccedilatildeo da
bdquodeterminaccedilatildeo‟ dos teoacutelogos escolaacutesticosrdquo conforme consta em vaacuterias passagens do ldquoSobre a
liacutenguardquo (De liacutengua) o primeiro equiacutevoco estiliacutestico mencionado por ele seria o fato de atribuir
palavras ou expressotildees que inflam a importacircncia das coisas de modo que o tom do discurso
solene inclusive na declamaccedilatildeo natildeo condiz com o assunto tratado Assim este torna-se
tedioso falso e inclusive ridiacuteculo Tal modo de proceder o holandecircs o entende como uma
ldquotagarelice declamatoacuteriardquo que corrompe a verdadeira finalidade da eloquecircncia Embora
afirmasse que para julgar as declamaccedilotildees ldquonatildeo se deve considerar a verdade objetiva das
mateacuterias mas o talento natural e o poder persuasivo do escritorrdquo (Apologia Adversus
Monachos Quosdam Hispanos Opera IX 1089) estava ciente do poder persuasivo deste
gecircnero e dos incocircmodos que seu uso para fins poliacuteticos poderia gerar Por isso Erasmo
utilizou-se dele ao tratar sobre assuntos poliacuteticos nem um pouco unacircnimes como eacute o caso da
querela da paz e da guerra
Por fim haacute referecircncias agrave declamaccedilatildeo tambeacutem no Diaacutelogo Ciceroniano Nosoacutepono o
ciceroniano inveterado que defendia a imitaccedilatildeo restrita dos escritos de Marco Tuacutelio afirmava
praticar com alegria (feliciter) a declamaccedilatildeo (Erasmo Ciceroniano 644[21]) mas recusava a
sugestatildeo de Buleacuteforo de receber as contribuiccedilotildees de Quintiliano a esse gecircnero (Erasmo
Ciceroniano 657[35]) Deste trecho em contraste com o que defendiam os chamados
ciceronianos se percebe que a declamaccedilatildeo erasmiana natildeo se restringe agrave imitaccedilatildeo de Ciacutecero
mas era um gecircnero que se fundamentava essencialmente na recepccedilatildeo de outros autores que
praticaram ou teorizaram acerca deste gecircnero com maior ecircnfase do que ele tais como os
declamadores latinos e gregos do periacuteodo imperial Secircneca Quintiliano Plutarco Luciano
Libacircnio entre outros Erasmo aliaacutes sem distinguir a autenticidade da atribuiccedilatildeo de autoria
das ldquoDeclamaccedilotildees Maioresrdquo e ldquoMenoresrdquo a Quintiliano elogiava no ldquoSobre a abundacircnciardquo
(De copia 204-205 [246-247]) ldquoas descriccedilotildees das coisasrdquo apontando este elemento localizado
geralmente logo apoacutes o proecircmio da declamaccedilatildeo como um artifiacutecio para a captaccedilatildeo da
benevolecircncia e da atenccedilatildeo do leitor Por outro lado no Cap 12 [504-507] analisa o uso que
53
Ciacutecero fazia do termo declamare em passagem que evoca o livro II da ldquoRetoacutericardquo aristoteacutelica
ao relacionaacute-lo com a caracterizaccedilatildeo adequada ou apropriada de cada personagem de acordo
com a sua idade Entre os vaacuterios elementos a serem exercitados com a praacutetica declamatoacuteria
Erasmo apresenta em seu ldquoPlano de Estudosrdquo o ecircthos representado nas prosopopeias como um
dos pontos fundamentais as descriccedilotildees dos lugares do tempo e das coisas assim como a
dequaccedilatildeo das personificaccedilotildees agrave idade (jovens ou idosos) ou agrave profissatildeo (prostitutas soldados)
entre outros (Opera Omnia I-II 143[1-9] 1971 p 143)
22 Temas
Erasmo eacute muito expliacutecito ao tratar da declamaccedilatildeo e dos exerciacutecios (note-se o uso de
progymnasmata) em seu De ratione Para ele haacute necessidade de tratar de temas atuais uacuteteis
para a sociedade (respublica) que natildeo tenham somente a simples finalidade de exerciacutecio
retoacuterico ou de rememoraccedilatildeo de dados mitoloacutegicos e histoacutericos nem mesmo meras
elucubraccedilotildees inuacuteteis da dialeacutetica atribuiacuteda pelos humanistas aos escolaacutesticos Neste sentido a
declamaccedilatildeo erasmiana eacute praacutetica visa influenciar o leitor educaacute-lo natildeo somente no sentido de
aplicar na vida cotidiana os ditames da retoacuterica antiga mas tambeacutem de instruiacute-lo em valores
como a justiccedila a paz a coerecircncia dos costumes e o combate aos haacutebitos considerados
ridiacuteculos e que se fundamentavam numa tradiccedilatildeo cristatilde teologicamente mal entendida Se por
um lado algumas partes do discurso provocam reflexotildees seacuterias outras partes poreacutem apesar
da gravidade do assunto (por exemplo quando se fala de paz e guerra) deleitam o leitor sem
deixar de ser uacutetil por ser pertencente ao gecircnero deliberativo
Desse modo era necessaacuterio que este jogo [elocutoacuterio] fosse apresentado de
modo elegante para que o jovem se exercitasse nas escolas atraveacutes das
declamaccedilotildees muito embora Quintiliano tivesse com razatildeo preceituado que a
simulaccedilatildeo da declamaccedilatildeo acontecesse de uma forma mais proacutexima possiacutevel
com as verdadeiras accedilotildees pois os temas a se declamar costumavam ser
escolhidos entre as faacutebulas dos poetas e natildeo entre as coisas verossiacutemeis Com
efeito aqueles exerciacutecios satildeo importantes para os jovens porque tem o
objetivo de instrui-los sobretudo quando o argumento eacute tirado da Histoacuteria e eacute
adaptado agraves palavras e agraves sentenccedilas daqueles tempos contudo seraacute ainda mais
instrutivo atuar sobre as causas verdadeiras que tratam de questotildees envoltas
em circunstacircncias do tempo presente como se algueacutem as desenvolvesse para
que se aperfeiccediloe a repuacuteblica (Erasmo De ratione Studii Desiderii Erasmi
Opera Omnia I-II 1971 p 695[28-33] ndash p 696[1-2])
Quando Erasmo menciona que os ldquotemas a se declamar costumavam ser escolhidos
dentre as faacutebulas dos poetas e natildeo entre as coisas verossiacutemeisrdquo podemos entender que o autor
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visava um discurso que natildeo fosse somente uma espeacutecie de reproduccedilatildeo saudosa dos antigos
gecircneros discursivos gregos e romanos mas uma discussatildeo incisiva sobre os costumes das
pessoas de seu tempo Quando pertencente ao deliberativo abordaria temas que seriam
pertinentes para a sociedade como aliaacutes o era a polecircmica a respeito dos benefiacutecios da paz e
dos malefiacutecios da guerra inclusive sob o aspecto individual A Paz apresenta argumentos
praacuteticos contra a guerra como as dificuldades para o comeacutercio os gastos com mercenaacuterios e
armamentos e inclusive a inseguranccedila provocada pelo acuacutemulo destes em relaccedilatildeo ao
patrimocircnio dos cidadatildeos e possiacuteveis abusos contra a honra das mulheres
Neste sentido se as declamaccedilotildees erasmianas tratavam dos temas mais diversos tais
como a guerra a paz a infacircncia a loucura o matrimocircnio a vida monaacutestica e a medicina
entre outros Nelas era corrente o elogio e o vitupeacuterio seja nos escritos em que predominava
o Encomium seja nos deliberativos abordavam-se posiccedilotildees consideradas absolutas ou
irrefutaacuteveis por parte de teoacutelogos e filoacutesofos No lugar de privilegiar a loacutegica e o exaurimento
dos argumentos como eacute proacuteprio da dialeacutetica considerava esse temas poreacutem de modo a
privilegiar o que era uacutetil ao ser humano e afrontava os argumentos contraacuterios aos seus ideais
atraveacutes da retoacuterica Erasmo natildeo negava a verdade mas valorizava o que favorecia a
humanidade ulizando-se da retoacuterica para uma finalidade que considerava justa Erasmo estava
ciente de que ldquonatildeo existe nada tatildeo bom por natureza que natildeo possa ser distorcido por um
declamador astutordquo (Liber utilissimus de Conscribendis Epistolis 1670 p 267) mas estava
certo tambeacutem de que o declamador competente deveria primiar pela justiccedila e pela utilidade
mais do que pela mera busca da verdade abstrata e muitas vezes inuacutetil para o bem comum
muito embora fosse conveniente para os propugnadores da guerra
O caso concreto das discussotildees sobre a guerra justa ndash tatildeo defendida e inclusive
promovida por teoacutelogos alinhados aos interesses temporais de conquistas feudais ou mesmo
das guerras contra o islatilde ndash era um tema polecircmico uma vez que nem sempre a paz era do
convinha aos priacutencipes inclusive neste contubardo iniacutecio do seacuteculo XVI Em outras palavras
segundo esse trecho do texto supracitado o declamador astuto tem o poder de reunir a favor
do seu argumento uma apresentaccedilatildeo da realidade afim agrave sua causa Os argumentos eram
alinhavados em vista da finalidade prevista e poderiam distorcer ldquoverdadesrdquo incontestes
Trata-se natildeo somente da possibilidade de selecionar e dispor de argumentos mas de um modo
de apresentar que rompe ou desconstroacutei paradigmas a fim de construir outros talvez
55
esquecidos ou postos de lado como o eacute no caso em questatildeo a causa da paz e oposiccedilatildeo agrave
doutrina da guerra justa
Erasmo advoga pela paz e o faz como cristatildeo mas natildeo se apresenta ao menos no texto
da ldquoQueixa da Pazrdquo como um filoacutesofo ou um teoacutelogo compromissado com o que chama de
verdade a ponto de apresentar os dois lados da questatildeo ou seja os argumentos a favor e
contra a paz e a guerra mas defendia aquela sem considerar as objeccedilotildees contra o irenismo
dispondo sua razotildees com a finalidade de fazer bem ao auditoacuterio no sentido de instruiacute-lo com
valores eacuteticos como eacute o caso daqueles que fundamentam a opccedilotildees pela paz Neste sentido
Erasmo natildeo seria um sofista que alinha argumentos contra a guerra mas um ceacutetico em relaccedilatildeo
agrave sua eficaacutecia na resoluccedilatildeo dos problemas Acreditava que a concoacuterdia era mais adequada e
duradoura para a resoluccedilatildeo de qualquer espeacutecie de conflito em contraste com a guerra uma
espeacutecie de multiplicadora dos males
Conveacutem entatildeo demonstrar as incoerecircncias dos propugnadores da guerra apontando
os malefiacutecios desconsiderados pelos que defendiam o princiacutepio da guerra justa conforme
estudaremos ao caracterizar a Paz como saacutebia e teoacuteloga no uacuteltimo capiacutetulo da presente
dissertaccedilatildeo Essa afirmativa natildeo nega poreacutem uma espeacutecie de outra finalidade pedagoacutegica da
declamaccedilatildeo erasmiana natildeo menos relevante que a primeira como consta em uma passagem
da epiacutestola a Ulrico de Hutten Nesta ao comentar a declamaccedilatildeo sobre o ldquoTiranicidardquo de
Luciano e a ldquoUtopiardquo de More Erasmo estava ciente da finalidade de deleitar ou comprazer
proacutepria ao gecircnero conforme o texto supracitado no qual mencionada o percurso da formaccedilatildeo
retoacuterica do seu amigo More
Conveacutem notar que as declamaccedilotildees humanistas de modo anaacutelogo ao que se verificou
naquelas praticadas em ciacuterculos de adultos e amigos no periacuteodo republicano e imperial
tambeacutem visavam ao deleite situando-se entatildeo como uma autecircntica produccedilatildeo artiacutestica Desse
modo natildeo parece absurdo afirmar que a declamaccedilatildeo segundo a concepccedilatildeo erasmiana tem
um a dupla finalidade formativa (eacutetica situada nos valores e retoacuterica como aplicaccedilatildeo praacutetica
de princiacutepios em um discurso concreto) com toda a seriedade imposta pela gravidade dos
temas mas com o intuito de natildeo menosprezar a finalidade propriamente artiacutestica de deleitar
ou divertir o leitor Nesse ponto verifica-se a qualidade das declamaccedilotildees erasmianas que
sabem ser seacuterias jogando com temas graves sem deixar de formar os valores considerados
56
humanos justos e uacuteteis Desse modo o roterdamecircs parece evocar o ceacutelebre preceito
horaciano unir o uacutetil ao agradaacutevel (utile dulci)
23 Contato de Erasmo com declamaccedilotildees precedentes
Erasmo teve contato direto com as declamaccedilotildees e teorizaccedilotildees sobre este gecircnero
escritas em grego ou em latim por Isoacutecrates Plutarco Luciano e Libacircnio O proacuteprio holandecircs
atuou como editor e tradutor de algumas delas em um periacuteodo imediatamente anterior agrave
publicaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo em 1517 entre as quais se destacam aquelas elencadas por
Rummel (1985 p 171-172) e cujos fac-siacutemiles estatildeo disponiacuteveis para consulta on-line no site
oficial8 da Biblioteca Nacional da Franccedila e que tambeacutem foram reeditadas na ediccedilatildeo criacutetica da
obra de Erasmo
231 Isoacutecrates
De fato Erasmo durante sua juventude traduziu alguns panegiacutericos de Isoacutecrates os
pertencentes ao gecircnero demonstrativo sobretudo no tocante agrave vituperaccedilatildeo e ao elogio a ponto
de publicar o Ad Nicolem juntamente com a ldquoInstituiccedilatildeo do Priacutencipe Cristatildeordquo em Basileia no
ano de 15169 Um princiacutepio pedagoacutegico atribuiacutedo por Erasmo a Isoacutecrates citado no ldquoSobre os
meninosrdquo (De pueris) e que parece se coadunar com as duas finalidades pedagoacutegicas da
declamaccedilatildeo (eacutetica e retoacuterica) eacute justamente o princiacutepio segundo o qual o recurso ao paacutethos
proacuteprio do exerciacutecio retoacuterico predispotildee o aluno a aprender quando seu afeto eacute movido ao
conteuacutedo proposto Trata-se do aprendizado atraveacutes do delectare ou seja do prazer que eacute
inerente agrave declamaccedilatildeo de alto niacutevel Os discursos escritos entatildeo neste gecircnero teriam o poder
de fazer com que o leitor amasse os valores eacuteticos e os recursos retoacutericos apresentados durante
o discurso A vituperaccedilatildeo tambeacutem age sobre a vontade do aluno uma vez que produz a
repulsa agraves atitudes e aos princiacutepios natildeo considerados eacuteticos pelo retoacuterico e a ridicularizaccedilatildeo
destes no interior do discurso visa entatildeo desconstruir a pretensa legitimidade de tais accedilotildees
que muitas vezes se atribuiacuteam agrave tradiccedilatildeo ou agrave justiccedila como eacute o caso da guerra
8 Disponiacutevel em httpwwwbnffrfraccxaccueilhtml Acesso 17 nov 2015
9 Aleacutem do panegiacuterico de Isoacutecrates e das declamaccedilotildees de Luciano e Libacircnio diretamente relacionadas com as
declamaccedilotildees erasmianas Erasmo tambeacutem editou outras obras no mesmo dececircnio que a Queixa da Paz tal como
a Institutiones grammaticae uma gramaacutetica grega escrita no seacuteculo XV escrita por Teodoro de Gaza e publicada
em dois volumes em Lovaina (1516 e 1518) e as traduccedilotildees de Rodolfo Agriacutecola de Isoacutecrates (Ad Demonicum)
publicada na mesma cidade em 1517
57
232 Plutarco
A influecircncia de Isoacutecrates eacute reduzida ao comparar-se com aquela de Plutarco Na
epiacutestola a Thomas Grey (Epiacutestola 64 Paris agosto de 1497 l 81 Allen 1974 p 137)
Erasmo jaacute mencionava a personagem Gryllard o que denota seu acesso agrave Moralia (985D-
992A) e a alguns discursos em grego entre os quais aqueles que satildeo explicitamente
classificados como declamaccedilotildees O mais significativo deles eacute sem duacutevida o ldquoSobre a
educaccedilatildeo dos meninosrdquo que influenciou diretamente o ldquoSobre os meninosrdquo do roterdamecircs
Natildeo sem razatildeo discursos de Plutarco foram vertidos por ele ao latim e editados em 1515
cerca de dois anos antes da publicaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo (1517)
233 Luciano
Segundo Boulet (2015 p 69) em recente estudo sobre as declamaccedilotildees renascentistas
Ao lado de Plutarco Luciano parece um autor particularmente interessante no
movimento que leva de Aristoacuteteles a Ciacutecero e de Erasmo a Boeacutecio Ambos os
autores satildeo constantemente mencionados direta ou indiretamente nas
declamaccedilotildees que nos interessam eles eram constantemente traduzidos e
comentados Eles satildeo exemplos para os autores que noacutes estudaremos
considerados como guias e modelos Certo nuacutemero de tratados de Luciano foi
traduzido para o latim por More e quatro por Erasmo
O roterdamecircs natildeo se debruccedilou em escritos de temas poliacuteticos ou naqueles atribuiacutedos
ao gecircnero judiciaacuterio mas aleacutem dos escritos no gecircnero demonstrativo dedicou-se ao estudo e
agrave traduccedilatildeo de vaacuterias declamaccedilotildees como as de Luciano (Rummel1985 p 21)
Erasmo dedicou-se de modo especial ao esforccedilo de traduzir do grego para o latim
diversas obras de Luciano (125-180 d C) reacutetor que se destacou por suas obras satiacutericas
conforme o proacuteprio holandecircs afirma na ldquoEpiacutestola a Joatildeo Botzheimrdquo10
Luciano foi ainda um
dos autores explicitamente prestigiado no ldquoPlano de Estudosrdquo erasmiano muito embora
alguns autores quinhentistas criticassem o valor de suas obras conforme se lecirc na introduccedilatildeo agrave
traduccedilatildeo ao ldquoTimeurdquo de Platatildeo realizada por Erasmo (Robinson 1969 p 365) Dentre as
traduccedilotildees das declamaccedilotildees de Luciano realizadas e publicadas em dois volumes ao longo do
10
Erasmo enumera As saturnais Cronosolon Algumas epiacutestolas saturnais Sobre o luto Icaromenipo
Toxaris O pseudomante O sonho ou o galo Tiacutemon O abdicante o Tiranicida Sobre aqueles que satildeo
conduzidos aos palaacutecios dos poderosos por mercecirc
58
ano de 1506 algumas foram publicadas sob o tiacutetulo de Luciani compluria opuscula (Toxaris
Tyrannicida Timon Gallus De mercede conductis e Longaevi) e outra parte foi dada a
conhecer com o tiacutetulo de Opuscula (Dialogi Mortuorum Dialogi Deorum Dialogi naturam
Hercules Eunuchus De Sacrificiis e Convivium) Erasmo retornou entre os anos de 1511 e
1512 agrave traduccedilatildeo e ediccedilatildeo de um terceiro grupo de escritos de Luciano (Icaromenippus
Saturnalia Astrologia Cronosolon Espistolae Saturnale De luctu e Abdicatus) publicados
com as traduccedilotildees anteriores sob o tiacutetulo de ldquoLuciani Erasmo interprete dialogirdquo em Paris
no ano de 1514 Essas obras jaacute foram republicadas pela ediccedilatildeo criacutetica de Amsterdam (1969-
atual) Thompson (1974 p 92) reafirma o consenso dos pesquisadores acerca da influecircncia do
estilo das declamaccedilotildees de Luciano sobre as erasmianas entre outros fatores pelo recurso agrave
ironia o sarcasmo elegante e a forma de ridicularizar costumes sociais incoerentes ou
supersticiosos conforme escreveu More que atribuiu ao holandecircs seu contato com as
declamaccedilotildees lucianescas Aliaacutes um dos toacutepos da primeira parte da ldquoQueixa da Pazrdquo reafirma
justamente alguns dos princiacutepios atribuiacutedos por Erasmo a Luciano na epiacutestola introdutoacuteria ao
ldquoSobre a Liacutenguardquo como eacute o caso da comparaccedilatildeo dos animais com o homem em tom de
superioridade justamente pelo fato de que embora sejam tidos como irracionais natildeo se
inferiorizam ao homem subjugado pelas paixotildees e pelos vis interesses pois a troca de lugar
entre homem e animal para desnudar a sociedade eacute um lugar comum da saacutetira lucianesca
(Erasmo Epiacutestola a Cristoacutevatildeo de Schiidlovietz p 19 ll 9-13) Para Erasmo o grande meacuterito
dos diaacutelogos de Luciano era fazer com que os mais jovens se deleitassem com o estilo e a
liacutengua (De conscribendis epistolis I 353B) Tal afirmativa ainda se verifica no ldquoSobre a
abundacircnciardquo no qual natildeo se absteacutem de elogiar a capacidade descritiva do caraacuteter viril
realizada por Luciano em Hamocircnidas (De copia II 198 ll 51-54-70-75)
234 Libacircnio
Quanto a Libacircnio (314-394 d C) filoacutesofo e professor de retoacuterica que escreveu em
grego Erasmo prefaciou a traduccedilatildeo da Declamatiuncula versa e graeco Libanio cum
thematis aliquot versis que foi publicada sob o tiacutetulo de Libanii aliquot declamatiuncula em
1503 Essas declamaccedilotildees merecem destaque dentro da obra de Erasmo e do Projeto
Humanista (Rummel1985 p 21) por assim dizer de recuperaccedilatildeo dos autores greco-
romanos uma vez que o proacuteprio Libacircnio teve inclusive parte de sua formaccedilatildeo realizada na
59
Greacutecia tendo facilitado acesso a autores gregos antigos apesar da dificuldade de transmissatildeo e
leitura de textos inclusive na atiguidade tardia
Sua atividade como reacutetor inclusive participando de competiccedilotildees puacuteblicas foi
realizada junto aos imperadores que visavam a uma recuperaccedilatildeo da antiga religiatildeo romana
Estes estavam em franco antagonismo com os cristatildeos que por sua vez tentavam suprimir a
antiga religiatildeo e a proacutepria mitologia contida nas tradiccedilotildees de escritos greco-romanos
consideradas meros rituais maacutegicos que prejudicavam a feacute cristatilde (Williams 2009 p 420)
Embora as declamaccedilotildees de Libacircnio fossem datadas da era cristatilde tinham talvez a preferecircncia
de Erasmo por portarem relevantes elementos da retoacuterica claacutessica segundo Kennedy
(1983162-163) tais discursos se diferenciavam dos antigos entre os quais predominavam os
temas judiciais e deliberativos ao apresentarem principalmente temas mitoloacutegicos ou
histoacutericos gregos com a finalidade de discutir assuntos pertinentes para o seu tempo
Libacircnio escreveu cerca de sessenta e quatro oraccedilotildees dentre as quais muitas (cf
oraccedilotildees 48 49 e 50) possuem temas deliberativos em razatildeo de sua proacutepria atividade no
acircmbito poliacutetico Outro atributo de suas declamaccedilotildees eacute o fato de iniciar algumas delas com
narrativas (katastasis) o que foi adotado por Erasmo em muitas de suas declamaccedilotildees Em
Erasmo a Loucura e a Paz por exemplo natildeo estabelecem uma narrativa em terceira pessoa
mas se caracterizam na abertura dos seus discursos atraveacutes de uma locuccedilatildeo direta Libacircnio
contudo se mostrava coerente com os manuais antigos de retoacuterica que apresentavam a
declamaccedilatildeo enquanto exerciacutecio que defendia os dois lados de uma questatildeo pois muitas das
suas declamaccedilotildees eram seguidas de uma ou vaacuterias antitheses finalizadas por um epilogo
(Williams 2009 p 424) Tal princiacutepio natildeo era seguido por Erasmo que apresentava somente
um lado da questatildeo
Conveacutem salientar o fato de que uma das declamaccedilotildees de Libacircnio traduzidas por
Erasmo tem justamente uma personagem feminina como sujeito ou remetente do discurso
Medeia Eacute bastante problemaacutetico comparar a Paz de Erasmo agrave Medeia dos claacutessicos mas
ainda assim verifica-se alguns traccedilos de semelhanccedila entre aquela matildee indignada pela morte
dos filhos e que se apresenta como viacutetima Haacute algumas passagens das declamaccedilotildees
erasmianas nas quais a Paz demonstra sua indignaccedilatildeo para os propugnadores da guerra que
maltratavam os mortais a quem esta dedicou seus cuidados maternais Note-se que a Paz
como veremos mais detidamente nos uacuteltimo capiacutetulo da presente dissertaccedilatildeo invoca em seu
60
caraacuteter feminino e maternal as injusticcedilas feitas contra as viacutetimas da guerra a quem trata como
verdadeiros filhos
24 Elenco das declamaccedilotildees de Erasmo
Segundo Chomarat as obras do gecircnero declamaccedilatildeo na obra de Erasmo podem ser
classificadas em duas categorias primeiro as declamaccedilotildees em sentido restrito que listaremos
abaixo e em seguida as obras que conteacutem elementos essenciais do gecircnero sem no entanto
receberem esta denominaccedilatildeo Muito embora Erasmo tivesse afirmado a dificuldade de
delinear os limites entre a declamaccedilatildeo e o diaacutelogo nota-se que possuiacutea noccedilotildees claras a
respeito dos gecircneros retoacutericos e suas subespeacutecies como descreve no Brevissima
Confidendarum Epistolarum Formula acerca do deliberatiuum genus no contexto epistolar
mas que por analogia tambeacutem se aplica a uma declamaccedilatildeo de espeacutecie deliberativa e agraves
declamaccedilotildees de elogio e vitupeacuterio pertencentes ao gecircnero demonstrativo
Entatildeo passemos ao gecircnero deliberativo ocorrente em muitas espeacutecies de
epiacutestolas haacute epiacutestolas suasoacuterias e dissuasoacuterias exortatoacuterias peticcedilotildees
monitoacuterias as quais depois seratildeo consideradas em sua ordem Em primeiro
lugar deve-se definir no gecircnero deliberativo que pode ser chamado de
suasoacuterio a utilidade e a honestidade Quando chamamos algo de uacutetil tambeacutem
queremos denominar como honesto quando natildeo se pode dizer que eacute uacutetil
igualmente natildeo pode ser honesto Porque nesse gecircnero deve-se maximamente
esperar por essa utilidade que estaacute conjugada com a honestidade sem as quais
natildeo podemos suadir persuadir dissuadir exortar desencorajar pedir
aconselhar nem direcionar (como assim disseram) todas as flechas do estilo
ao alvo (Erasmo Brevissima maximaque compendiaria confidendarum
epistolarum formula Paris Apud Christianum Wechelum 1551 p 13)
De modo anaacutelogo nos textos jaacute citados de Quintiliano e Erasmo acerca da semelhanccedila
da declamaccedilatildeo com o diaacutelogo Chomarat (1981 p 932) reconhece a dificuldade em
diferenciar uma declamaccedilatildeo de uma oratio como eacute o caso do ldquoManual do soldado cristatildeordquo
(Enchiridion militis christiani) ou mesmo com uma diatribe segundo a denominaccedilatildeo do
proacuteprio Erasmo (Rummel 1995 p 60) como se verifica no ldquoSobre olivre arbiacutetriordquo (De libero
arbiacutetrio) a ponto de Chomarat (1981 p 932) denominaacute-los ldquoquasi-deacuteclamationsrdquo ou seja
obras que conteacutem um dos elementos essenciais da declamaccedilatildeo a prosopopeia Outra obra
erasmiana natildeo citada pelo estudioso francecircs constituiacuteda em estrutura de diaacutelogo merece
destaque especial uma vez que no caso do ldquoSobre o livre arbiacutetriordquo aleacutem de outras
personagens Erasmo entra no diaacutelogo ao atribuir discursos ao seu proacuteprio nome Mas a
61
grande objeccedilatildeo para sua inserccedilatildeo no gecircnero eacute o fato de natildeo cumprir o quesito de que o texto
deve simular uma causa fictiacutecia
Baseando-se na epiacutestola de Erasmo a Botzheim eacute possiacutevel estabelecer o elencode onze
declamaccedilotildees escritas e publicadas pelo holandecircs e que se conservaram
1 Elogio da vida monaacutestica
2 Resposta ao bispo
3 Louvor e vituperaccedilatildeo do matrimocircnio
4 Elogio da medicina
5 Contra o tiranicida
6 Antibaacuterbaros
7 Sobre o desprezo do mundo11
8 Sobre a prematura morte do filho
9 Sobre os meninos
10 Elogio da Loucura
11 Queixa da Paz
Chomarat (1981 p 932) apresenta dois possiacuteveis tiacutetulos de declamaccedilotildees compostas
por Erasmo cujos textos foram perdidos primeiro ldquoVitupeacuterio agrave vida dos mongesrdquo que teria
sido escrita em Bolonha entre 1506 e 1507 e duas declamaccedilotildees com argumentaccedilotildees
mutuamente opostas sobre a guerra do Papado contra Veneza presumivelmente escrita em
Bolonha em 1508 Dada a temaacutetica os argumentos descritos neste texto provavelmente estatildeo
presentes na ldquoQueixa da Pazrdquo e no ldquoA guerra eacute doce para os inexperientesrdquo Erasmo tambeacutem
mencionou em epiacutestola datada de 1509 e enviada de Paris a intenccedilatildeo de escrever duas
declamaccedilotildees (Encomium naturae e Encomium gratiae) que foram sugeridas por ocasiatildeo da
redaccedilatildeo do ldquoElogio da Loucurardquo12
11
Essa obra foi curiosamente classificada pelo proacuteprio Erasmo como uma epiacutestola declamatoacuteria suasoacuteria
12 Ainda segundo Chomarat (1981 p 934) grande parte das declamaccedilotildees de Erasmo foram escritas por pedido
ldquoformalrdquo de algueacutem que lhe era proacuteximo (Laus vitae monasticae Encomium artis medicae Contra tyrannidam
as duas declamaccedilotildees perdidas escritas em Roma De pueris e Querela Pacis) ou para seus alunos (Episcopi
Responsio Laus ac vituperatio matrimonii e De morte filii praemature praerepti) como modelos praacuteticos dos
conselhos teoacutericos do De Copia (Chomarat 1981 p 935) Esse uacuteltimo grupo pode caber na definiccedilatildeo de
declamaccedilatildeo como exerciacutecio escolar Quanto agravequelas feitas a pedidos com evidente finalidade poliacutetica (como a
Queixa da Paz) ou laudatoacuteria ou ainda como publicaccedilotildees que visavam debater assuntos literaacuterios e que
ilustravam os conselhos contidos no De Copia (Chomarat 1981 p 934)
62
25 Classificaccedilatildeo das declamaccedilotildees erasmianas
Van der Poel (2007 p 129) classifica as declamaccedilotildees erasmianas em trecircs espeacutecies
pedagoacutegicas moralizantes e poliacuteticas
Nas numerosas declamaccedilotildees de Erasmo sobre mateacuterias morais e pedagoacutegicas
como tambeacutem nas de assunto poliacutetico como o Encomium moriae De pueris
instituendis Querela Pacis e tambeacutem o Encomium matrimonii tambeacutem
encontramos referecircncias tiacutepicas do vir bonus dicendi peritus Suas
declamaccedilotildees satildeo manifestamente discursos escritos nos quais natildeo somente
critica as condiccedilotildees da sociedade e do interior da Igreja que ele acha
repreensiacutevel mas nas quais tambeacutem defende suas proacuteprias ideias de sociedade
cristatilde civilizada ideal que prova ser na verdade bastante controverso Na sua
carta a Joatildeo Botzheim de 1523 Erasmo assume que o propoacutesito de muitas de
suas declamaccedilotildees pertinent ad institutionem vitae (visam a prover a instruccedilatildeo
do modo de viver)
Desse modo cabe agraves declamaccedilotildees deliberativas e inclusive algumas laudatoacuterias a
finalidade de mouere mas em Erasmo haacute uma especificidade pois o movimento da vontade
do seu interlocutor eacute impulsionado pela tomada de atitudes em conformidade com valores
humanos considerados bons Nesse sentido apresenta uma finalidade pedagoacutegica atraveacutes da
defesa de princiacutepios eacuteticos edificantes O que tambeacutem eacute uma forma de suadere uma vez que a
declamaccedilatildeo erasmiana entendida como um discurso que natildeo defende as duas partes de uma
causa mas opta por uma delas considerada melhor leva a escolher uma entre as opccedilotildees
disponiacuteveis Desse modo o discurso tem um objetivo bem determinado e o mouere e o
suadere estatildeo agrave disposiccedilatildeo do declamador para sugerir accedilotildees consideradas uacuteteis (conveniente)
e honrosas (honestum)
De fato segundo Tunberg (2006 p 9) as obras de Erasmo especialmente o ldquoElogio a
Loucurardquo e a ldquoQueixa da Pazrdquo visam a indicar um caminho eacutetico e se ocupam do modo de
agir humano Para Chomarat (1981 p 937) o humanista visava a uma accedilatildeo poliacutetica marginal
ldquoconstituir-se propagandista de uma escolha poliacutetica feita por outros a fim de exercer uma
influecircncia moral sobre a opiniatildeo ou sobre os governantes que o honram mais do que o
escutamrdquo O proacuteprio Erasmo apontou essa intenccedilatildeo explicitamente ao inserir vaacuterias de suas
declamaccedilotildees inclusive a que estudamos no quarto volume da ediccedilatildeo de suas obras
completas publicadas em sua vida com o sugestivo tiacutetulo ldquoObras que visam agrave instruccedilatildeo dos
costumesrdquo (Cantos 2006 p 285) Tal propoacutesito eacute verificado por Tunberg (2006 p 17) ao
comentar a prosopopeia erasmiana da Paz
63
Nas declamaccedilotildees de Erasmo natildeo somente no que se refere ao Elogio da
Loucura mas tambeacutem agrave Queixa da Paz ambas apresentam uma noccedilatildeo vaga
ou abstrata de uma espeacutecie de mulher divina na qual se vecirc a capacidade de
falar e apontar com o dedo de que maneiras certos costumes humanos devem
ser emendados
Corrigir os costumes eacute tambeacutem tarefa do riso No ldquoElogio da Loucurardquo o lado satiacuterico
eacute evidente Na ldquoQueixa da Pazrdquo Erasmo parece querer moralizar a sociedade natildeo por meio da
saacutetira mas sobretudo da ironia da comparaccedilatildeo entre o viacutecio e a virtude entre o belo e o feio
Trata-se do uso do elogio e do vitupeacuterio como instrumentos de moralizaccedilatildeo Este recurso se
insere em uma concepccedilatildeo estrateacutegica ainda mais ampla de Erasmo segundo a qual a educaccedilatildeo
nos claacutessicos seria um instrumento para a moralizaccedilatildeo da sociedade de caraacuteter catequeacutetico
natildeo para sua paganizaccedilatildeo Para Sloane (2004 p 112) predominavam no Renascimento duas
formas de recepccedilatildeo dos claacutessicos a primeira prezava os autores antigos como fontes do prazer
da elocutio e a segunda como fonte de inspiraccedilatildeo para a imitatio Como vimos
anteriormente as declamaccedilotildees de Luciano aos olhos de Erasmo e More realizavam tal
propoacutesito com excelecircncia No caso do ldquoElogio da Loucurardquo o recurso agrave saacutetira eacute evidente mas
natildeo se deve deixar de observar tal aspecto nas demais declamaccedilotildees erasmianas nas quais
Margolin (1992 p 911) ao comentar a ldquoQueixa da Pazrdquo notou diversos recursos retoacutericos
como ldquoa ironia mas com mais coacutelera emoccedilatildeo e piedade em defesa do povo atingido pelos
reveses da guerrardquo Dessa forma pretende mostrar em quatro seccedilotildees de argumentos a
incoerecircncia dos humanos que defendem a guerra dos cristatildeos que guerreiam e dos priacutencipes
que governam com base na guerra e sobretudo a incongruecircncia da missatildeo clerical com o
ofiacutecio das armas
26 Declamaccedilatildeo escrita e integral
A ldquoQueixa da Pazrdquo foi concebida em forma escrita para ser publicada e natildeo haacute
evidecircncias de que existisse alguma espeacutecie de actio das declamaccedilotildees de Erasmo ou de outro
humanista ou seja de que elas fossem lidas em voz alta e na presenccedila de uma audiecircncia
ainda que em contexto familiar Nesse aspecto nota-se uma diferenccedila fundamental entre esta
declamaccedilatildeo e muitas das declamaccedilotildees antigas pois os humanistas natildeo visavam mais ao
deleite e agrave persuasatildeo do seu puacuteblico-alvo atraveacutes da modulaccedilatildeo da voz mas concentravam sua
atenccedilatildeo ao efeito agradaacutevel que a ordenaccedilatildeo e a escolha adequada das palavras e aos diversos
64
recursos retoacutericos poderiam causar em algueacutem que lia a obra na solidatildeo em pronunciar em voz
alta
Contudo o deleite produzido por um discurso no leitor solitaacuterio ou no ouvinte da
assembleia puacuteblica ou de um contexto iacutentimo ou familiar natildeo estaacute localizado apenas na
finalidade formal de que este teria sido escrito ldquopara ser pronunciadordquo ou ldquopara ser lido
individualmenterdquo mas sim na riqueza de figuras nos jogos de palavras e imagens e nos
diversos recursos que a retoacuterica disponibiliza de modo que a mera forma de veiculaccedilatildeo no
sentido de que ele deve ser lido individualmente ou em puacuteblico natildeo seria um fator suficiente
para descaracterizar um gecircnero Deve-se considerar que primeiro ainda que escrita a
declamaccedilatildeo imitava a forma dos textos falados Segundo porque ainda se praticava muito a
leitura puacuteblica Talvez Erasmo natildeo tenha ele mesmo lido seu texto em voz alta mas eacute bem
provaacutevel que ciacuterculos de amigos ou seguidores se reunissem para que um lesse para os outros
os ldquolanccedilamentosrdquo do mestre
27 O puacuteblico alvo e o contexto histoacuterico
Assim como ocorria na declamaccedilatildeo antiga a humanista tinha por audiecircncia a elite
letrada capaz de ler latim com naturalidade a ponto de compreender as ironias os sacarmos e
as entrelinhas contidas nos textos erasmianos Era esse puacuteblico que se deleitava com os jogos
e os exerciacutecios declamatoacuterios
Tais recursos retoacutericos estavam inseridos tambeacutem em um contexto poliacutetico de modo
anaacutelogo agrave praacutetica da declamaccedilatildeo imperial conforme jaacute analisamos Segundo evidecircncias
internas e externas apontadas por Beauduin (1991 Introduccedilatildeo) essa obra foi escrita em
Lovaina Beacutelgica em uma data e ocasiatildeo incerta natildeo posterior a novembro de 1516 quando
Erasmo ldquovisitou a corte por ocasiatildeo de uma assembleia dos maiores priacutencipes da eacutepocardquo
(Cantos 2006 p 23 Herding 1977 p 7) e estabeleceu contatos com pessoas influentes
como o Chanceler Montjoy (Erasmo Ep 516 Linhas 17-18 Carta a Pierre Gilles de 20 de
janeiro de 1517 1977 p 187) A ldquoQueixa da Pazrdquo foi publicada no decorrer do ano de 1517
tendo sido dedicada ao Abade de Saint-Bertin Antocircnio de Bergen Note-se que Erasmo entre
os anos de 1515 e 1521 (Rummel 1996 p 243) era Conselheiro do Rei Carlos V (Herding
1977 p 8) da dinastia dos Habsburgos Rei dos Paiacuteses Baixos terra de Erasmo da Espanha
de Naacutepoles Siciacutelia e Jerusaleacutem e Duque da Borgonha cujo ducado haveria de ser anexado
65
pela Espanha no dia 23 de janeiro de 1517 (Bataillon 2007 p 81) A partir de 1519 o Rei
Carlos seria tambeacutem o Imperador dos Romanos (1519-1558) A famiacutelia dos Habsburgos cujo
centro de atividades era a Espanha jaacute era a mais poderosa dinastia europeia por volta da
publicaccedilatildeo da Queixa da Paz (1517) Bataillon (2007 p 81) com base nas cartas de Erasmo
informa que em virtude do cargo de conselheiro este chegou a receber rendimentos
espanhoacuteis mas natildeo aceitou o bispado de Zaragoza nem mudar-se para a corte espanhola a
fim de evitar o ambiente dividido em facccedilotildees e contaminado por posiccedilotildees poliacuteticas contraacuterias
a seus proacuteprios valores Erasmo desculpou-se de aceitar a prebenda episcopal e passou a
frequentar a Universidade de Lovaina onde esteve mais assiduamente entre os anos de 1515 e
1521 (Rummel 1996 p 243) dedicando-se ao estudo dos escritos biacuteblicos natildeo sem
aproveitar os recursos da ceacutelebre biblioteca (Bataillon 2007 p 82) Essa foi a fase de sua
vida que precedeu agraves mais acirradas controveacutersias teoloacutegicas que aos poucos foram minando
seu prestiacutegio de preceptor da Europa No ano de 1516 natildeo seria exagero afirma que o
holandecircs era o epicentro intelectual desse mundo fluente no latim A situaccedilatildeo duacutebia em que se
posicionou em relaccedilatildeo ao cargo de conselheiro oferecido pelo rei natildeo somente demonstra o
prestiacutegio e a influecircncia dos seus escritos mas tambeacutem uma espeacutecie de autonomia com a qual
o escritor pretendia apresentar suas ideias inclusive a despeito de prebendas e posiccedilotildees
poliacuteticas
Segundo Herding (1977 p 13) como evento histoacuterico proacuteximo que se pode
considerar o principal motivo da redaccedilatildeo desse discurso em favor da paz deve-se destacar que
estavam em curso as guerras da Liga de Cambrai (1508-1510) da Liga Santa (1511-1513) e
por fim da alianccedila franco-veneziana (1513-1516) Como alguns desses paiacuteses ou seus
soberanos satildeo explicitamente mencionados na Queixa da Paz13
uma tabela pode esclarecer o
intrincado jogo poliacutetico de interesses de naccedilotildees que essas ligas envolviam
13
Erasmo menciona os reis de modo respeitoso de modo a natildeo contrariaacute-los Sua menccedilatildeo poreacutem para os
conhecedores dos fatos poderiam soar como ironia ldquoPriacutencipe Carlos adolescente de iacutendole incorrupta E natildeo
descuida de mim o Imperador Maximiliano Nem a isso se recusa Henrique o iacutenclito rei da Inglaterrardquo (Erasmo
de Rotterdam Queixa da Paz) Carlos V (1500-1558) herdeiro do Imperador do Sacro Impeacuterio Romano
Alematildeo com apenas 17 anos de idade por ocasiatildeo da publicaccedilatildeo do Querela Carlos soacute assumiria o Impeacuterio
Habsburgo em 1519 Maximiliano I (1459-1519) contava apenas 18 anos na eacutepoca da publicaccedilatildeo do Querela
morreria dois anos depois Henrique VIII (1491-1547) Rei da Inglaterra de 1509 ateacute a sua morte Erasmo elogia
a catolicidade do rei inglecircs porque este seria excomungado somente em 1533 e romperia com Roma em 1536
66
Alianccedilas durante as guerras posteriores agrave Liga de Cambrai
Liga de Cambrai (1508ndash10)
Estados Pontifiacutecios
Franccedila
Sacro Impeacuterio Romano Germacircnico
Coroa de Aragatildeo
Ducado de Ferrara
Repuacuteblica de Veneza
Alianccedila veneziana-papal (1510ndash11)
Estados Pontifiacutecios
Repuacuteblica de Veneza
Mercenaacuterios Suiacuteccedilos
Franccedila
Ducado de Ferrara
Santa Liga contra Franccedila (1511ndash13)
Estados Pontifiacutecios
Repuacuteblica de Veneza
Espanha
Sacro Impeacuterio Romano Germacircnico
Inglaterra
Mercenaacuterios Suiacuteccedilos
Franccedila
Ducado de Ferrara
Repuacuteblica de Florenccedila
Alianccedila franco-veneziana (1513ndash16)
Estados Pontifiacutecios
Espanha
Sacro Impeacuterio Romano Germacircnico
Inglaterra
Ducado de Milatildeo
Mercenaacuterios Suiacuteccedilos
Repuacuteblica de Veneza
Franccedila
Escoacutecia
Ducado de Ferrara
67
Erasmo em sua Querela critica nominalmente o jaacute falecido Papa Juacutelio II que no
governo dos Estados Pontifiacutecios e por causa de suas alianccedilas militares passou para a Histoacuteria
como o ldquoPapa Guerreirordquo e que ele havia chamado de Julius Exclusus (1968 p 27)
expulsando-o do paraiacuteso por intermeacutedio de um Pedro que via no papa acompanhado de
soldados ldquoum espetaacuteculo nunca visto antes para natildeo dizer um monstrordquo Que este tenha sido
de fato o motivo decisivo para que o autor humanista escrevesse essa ldquoQueixa da Pazrdquo prova-
o natildeo somente a alusatildeo aos paiacuteses ao final deste escrito mas o proacuteprio autor informou acerca
das circunstacircncias da redaccedilatildeo desse texto em uma carta endereccedilada a Joatildeo Botzheim
Escrevi a Queixa da paz haacute cerca de sete anos quando fui convidado pela
primeira vez para a corte do priacutencipe Faziam-se entatildeo grandes preparativos
em Cambrai para uma conferecircncia que reuniria os maiores priacutencipes do mundo
ndash o imperador o rei da Franccedila o rei de Inglaterra o nosso Carlos ndash a fim de
selarem entre si a paz com laccedilos de accedilo como eacute costume dizer-se Agrave frente
desta accedilatildeo diplomaacutetica achavam-se o ilustre Guilherme de Chiegravevres e Joatildeo
Sauvage grande chanceler vocacionado para o serviccedilo do Estado Opunham-
se a este projeto aqueles que natildeo viam nenhuma vantagem em que reinasse a
tranquilidade aqueles que segundo a expressatildeo de Filoacutexeno () preferem de
longe uma paz que natildeo seja uma paz uma guerra que natildeo seja uma guerra Foi
assim que a pedido de Joatildeo Sauvage escrevi a Queixa da Paz As coisas de
fato encaminharam-se de tal sorte que teria sido mais acertado escrever
Epitaacutefio da paz pois natildeo restam quaisquer esperanccedilas de que ela possa
escapar com vida (Erasmo de Rotterdam Epistola a Joatildeo Botzheim 1523
Correspondence of Eramus Toronto University Toronto Press 1989 p 319)
Nesta carta Erasmo poderia estar se referindo aos diversos conflitos ocorridos entre
1517 e 1523 como a Sexta Guerra da Itaacutelia (1521-1526) tambeacutem conhecida pela disputa
entre Valois e Habsburgos as duas mais importantes dinastias da Europa
Na epiacutestola introdutoacuteria publicada juntamente com a ldquoQueixa da Pazrdquo Erasmo
concebe o escrito como em defesa da Franccedila (Carta ao Bispo Felipe de Utrecht 1917 ll 23-
35) Contudo para Rodrigues Erasmo visava diretamente os interesses holandeses
a Queixa da Paz escrita jaacute tendo em vista Carlos de Gent como soberano dos
reinos espanhoacuteis enfatizava a necessidade de natildeo insistir na poliacutetica
antifrancesa da qual os Paiacuteses Baixos eram viacutetimas tradicionais Assim a
poliacutetica erasmiana assumia de acordo com Mesnarde os anseios dos corpos
sociais neerlandeses (Rodrigues 2012 p 154-155)
De fato alguns dos argumentos contidos no texto em estudo abordam as dificuldades
impostas agrave circulaccedilatildeo de mercadorias que era o motor econocircmico dos paiacuteses baixos e da
regiatildeo renana Entretanto pode-se dizer que natildeo seria correto afirmar Erasmo como defensor
dos interesses particulares da Franccedila dos Paiacuteses Baixos ou de qualquer dos contendores das
68
Guerras da Liga de Cambrai uma vez que seus argumentos a favor da paz satildeo aplicaacuteveis a
qualquer naccedilatildeo visam o bem da humanidade como eacute proacuteprio do irenismo defendido por ele
28 Reaccedilotildees agrave declamaccedilatildeo da paz
Erasmo seraacute o autor cujas obras foram mais difundidas comentadas e a partir de certo
momento tambeacutem contestadas como se pode averiguar pelas diversas reediccedilotildees traduccedilotildees e
referecircncias a estas em outros autores do periacuteodo Por ocasiatildeo da publicaccedilatildeo da ldquoQueixa da
Pazrdquo o roterdamecircs recebeu algumas cartas de elogio conforme se denota do seu epistolaacuterio
(Allen Ep 95 n 1 II) ateacute o final da segunda deacutecada de 1500 nessa fase anterior agrave Reforma
em que o prestiacutegio de Erasmo o entatildeo ldquopreceptor da Europardquo era intocaacutevel Impressionam
ademais as inuacutemeras ediccedilotildees em latim e as diversas traduccedilotildees para os vernaacuteculos Margolin
(1992 p 911) informa a existecircncia de pelo menos vinte seis ediccedilotildees nos dozes anos
subsequentes agrave primeira ediccedilatildeo perfazendo a soma de mais de trinta ediccedilotildees tendo como
recorte o seacuteculo XVI (Rummel 1990 p 288) Contam-se ademais diversas traduccedilotildees para as
principais liacutenguas europeias ocidentais por exemplo duas traduccedilotildees para o alematildeo em 1521
uma para o francecircs e para outros vernaacuteculos incluindo o holandecircs cuja primeira apariccedilatildeo se
deu em 1567 (Augustijn 1995 p 73) Radice (1968 p 290) observa que embora Erasmo jaacute
houvesse falado contra a guerra em obras como ldquoPanegiacutericordquo (1504) e nos ldquoAdaacutegiosrdquo (1515)
deve-se considerar a Queixa da Paz ldquocomo o mais citado e celebrado apelo pela paz
universalrdquo Natildeo eacute de se admirar que seus principais trabalhos ateacute entatildeo publicados
especialmente sua traduccedilatildeo do ldquoNovo Testamentordquo e suas declamaccedilotildees ldquoElogio da Loucurardquo e
ldquoQueixa da Pazrdquo tenham-no tornado um pensador do norte prestigiado em toda a Europa
cujo centro cultural era a Itaacutelia a ponto de em 1522 Vives afirmar ldquoeacute de pasmar a admiraccedilatildeo
inspirada por Erasmo a todos os espanhoacuteis saacutebios ignorantes homens de igreja e secularesrdquo
(Epiacutestola de 6 de setembro de 1522 apud Bataillon 2007 p 156) Este testemunho pode ser
entendido como beneacutevolo e parcial uma vez que desconsidera os inuacutemeros ataques sofridos
por Erasmo na peniacutensula ibeacuterica sobretudo apoacutes as traduccedilotildees biacuteblicas e os acontecimentos da
Reforma Na verdade o proacuteprio ataque direto e polecircmico efetuado contra as traduccedilotildees soacute
atesta o alcance de sua influecircncia
69
29 A disposiccedilatildeo retoacuterica
Chomarat (1981 p 931) ao longo do capiacutetulo III de seu Grammaire et Rheacutetorique
chez Eacuterasme denominado La Declamation fornece uma lista de declamaccedilotildees e analisa esse
gecircnero tal como exercido pelo humanista holandecircs especialmente no ldquoElogio da Loucurardquo
No entanto o pesquisador dedicou apenas alguns paraacutegrafos agrave ldquoQueixa da Pazrdquo sem se
estender na explicaccedilatildeo de sua forma da sua disposiccedilatildeo segundo os ditames da retoacuterica e da
natureza dos seus argumentos limitando-se a estruturaacute-la em trecircs partes principais
A argumentaccedilatildeo desenvolve trecircs ideias sucessivas a natureza constituiu o
homem para a benevolecircncia e para a concoacuterdia a doutrina de Cristo consiste
na paz concorda com o amor muacutetuo a guerra eacute uma fonte de calamidades na
segunda parte bem mais longa apoacutes ter demonstrado a discoacuterdia que reina em
toda parte ateacute mesmo entre os monges e entre os esposos apesar do
ensinamento de Cristo a Paz descreve a presenccedila da guerra sobretudo nos
uacuteltimos dez anos com o aumento das agruras e do escacircndalo guerra entre os
cristatildeos guerra das quais participam os padres e mesmo os papas enfim oacute
dor guerras travadas em nome de Cristo a religiatildeo da paz foi pervertida ao
serviccedilo da guerra nos dois campos se recita o Pater Noster esta progressatildeo eacute
seguida de uma confutatio do argumento invocado por certos cristatildeos
segundo o qual os beligenrates obedecem a uma certa necessidade coagidos agrave
guerra apesar da sua proacutepria vontade Esta confutatio analisa as fontes reais
da guerra (as paixotildees) e afirma que a condiccedilatildeo primeira da paz eacute a vontade da
paz entre certos priacutencipes mas tambeacutem no clero e no povo Na terceira parte
salienta entre as consequecircncias dos conflitos armados natildeo somente as ruiacutenas
e a miseacuteria dos povos mas as liccedilotildees de infraccedilatildeo agraves leis o viacutecio e a impiedade
que daacute agrave guerra ldquoa desonra do nome cristatildeordquo [] A indignaccedilatildeo a dor a
piedade inspiram Erasmo a belas passagens os conselhos praacuteticos o apelo agrave
regularizaccedilatildeo dos conflitos atraveacutes de negociaccedilotildees a insistecircncia sobre a
responsabilidade destes diretores de opiniatildeo que satildeo os pregadores e os
conjuramentos aos priacutencipes cristatildeos que fazem perceber que esta declamaccedilatildeo
natildeo seria somente um exerciacutecio somente o artifiacutecio da prosopopeia manteacutem
ainda a Querela Pacis ao gecircnero que ilustraram obras precedentes [as demais
declamaccedilotildees] (Chomarat 1981 p 999-1000)
No ldquoSobre a abundacircnciardquo de 1512 Erasmo havia afirmado que ldquona ordem ou
disposiccedilatildeo eacute sumamente necessaacuterio o meacutetodordquo ou seja a loacutegica e a clareza da argumentaccedilatildeo
devem evitar uma sensaccedilatildeo de perturbaccedilatildeo ou confusatildeo (De Copia Liber II p 280 ll 95-99)
Deve-se distinguir nisso que o roterdamecircs tambeacutem chama de ordo ou constructio a sequecircncia
das palavras dentro de uma frase (De Copia Liber I p 75 ll 47-49) Para ele eacute necessaacuterio
selecionar as proposiccedilotildees de modo adequado justamente pelo criteacuterio do que se acha
conveniente ou agradaacutevel Deve-se pois hierarquizaacute-las e transitar entre elas tomando por
regra aquelas que satildeo mais proacuteximas umas das outras de modo que se evitem saltos temaacuteticos
natildeo adequados (De Copia Liber II p 228 ll 781-787) Erasmo preceituava no ldquoSobre
70
abundacircnciardquo assim como no subtiacutetulo ldquoSobre a ordemrdquo do seu ldquoSobre a redaccedilatildeo de epiacutestolasrdquo
(De conscribendi epistolis p 301 ll 2-15) que a ordem ou disposiccedilatildeo devem partir do
criteacuterio do que eacute ldquonaturalrdquo e do que eacute ldquoartiacutesticordquo aconselhando que deve ser menos frequente
o caraacuteter artiacutestico uma vez que os leitores natildeo satildeo do vulgo mas eruditos e que tais epiacutestolas
natildeo satildeo ouvidas mas lidas Ademais embora a disposiccedilatildeo seja necessaacuteria para a clareza em
alguns gecircneros como eacute o caso do epistolar essa disposiccedilatildeo deve ser dissimulada e natildeo
ostensiva Contudo o que Erasmo mais recomenda evitar eacute um texto confuso por falta de
disposiccedilatildeo adequada Ainda nesse escrito encontram-se no subtiacutetulo ldquoSobre o gecircnero
dissuasoacuteriordquo algumas afirmaccedilotildees pertinentes a respeito da suasoacuteria como eacute o caso da ldquoQueixa
da Pazrdquo no sentido de que recomenda a paz e desaconselha a guerra Para ele o ato de
desaconselhar algo a algueacutem implica na seleccedilatildeo de argumentos que satildeo desagradaacuteveis para
aquele que pretendemos dissuadir As proposiccedilotildees devem ser dispostas de modo que sua
compreensatildeo seja simplificada atraveacutes de exemplos e comparaccedilotildees sem deixar evidente a
disposiccedilatildeo (De conscribendi epistolis p 429 ll 5-20)
Do ponto de vista da disposiccedilatildeo a ldquoQueixa da Pazrdquo parece seguir uma subdivisatildeo
concorde com a tradiccedilatildeo retoacuterica (Silva 2015 p 60) que o proacuteprio Erasmo propunha que
fosse ensinada aos alunos em seu ldquoPlano de estudosrdquo (p 134 l 10-135 ll 1-5) Basicamente
ela se subdivide em
- Proecircmio (προοίμιονexordium)
- Narraccedilatildeo (διήγηζις narratio)
- Confirmaccedilatildeo (πίζηις probatio)
- Epiacutelogo (επίλογοςperoratio)
No caso especiacutefico da declamaccedilatildeo irecircnica as ediccedilotildees inclusive aquelas revisadas por
Erasmo apresentam uma epiacutestola a Felipe Bispo de Utrecht (Carta ao Bispo Felipe de
Utrecht 1917 ll 23-35) que se assemelha agravequilo a que hoje correntemente se intitula como
dedicatoacuteria na qual o autor sauacuteda o bispo pelo novo cargo desejando-lhe o mesmo sucesso de
seus antepassados Em certo trecho desta epiacutestola menciona ainda a situaccedilatildeo de seu tempo
como motivaccedilatildeo para a redaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo
71
Jaacute no tiacutetulo da declamaccedilatildeo Erasmo explicita o tema ldquoQueixa da Paz perseguida e
rejeitada em toda parte pelas naccedilotildeesrdquo (Querela Pacis undique gentium eiectae
profligataeque) assim como ocorria nas controveacutersias senequianas que apresentavam a
temaacutetica de forma clara logo na primeira frase ou em um breve texto que introduzia a causa
em discussatildeo (Schwartz 2004 p 71) O tiacutetulo apresenta o tema principal do discurso (a Paz)
cuja causa eacute tiacutepica do gecircnero deliberativo e das antigas suasoriae a Paz eacute tratada tambeacutem
como uma personificaccedilatildeo ofendida a personagem principal e remetente do discurso tal como
ocorre na sexta suasoacuteria de Secircneca na qual Ciacutecero eacute o interlocutor fictiacutecio (Schwartz 2004 p
110) Esta apresenta sua queixa Trata-se do lamento da injuacuteria e da tentativa de destruiccedilatildeo
contra a Paz As declamaccedilotildees costumavam antepor suas personagens geralmente fictiacutecias em
uma disputa No caso da Querela jaacute no tiacutetulo da obra haacute personagens expliacutecitas (a Paz como
protagonista com voz ativa e as naccedilotildees sem voz ativa) e uma indicaccedilatildeo geneacuterica de lugar
(em toda parte) Todo o universo em todo lugar conspira contra a paz e esta apresenta sua
queixa com argumentos jaacute explorados pelo roterdamecircs no ldquoA guerra eacute doce para os
inexperientesrdquo (1515) e na ldquoInstituiccedilatildeo do priacutencipe cristatildeordquo (1516) Contudo natildeo satildeo os
argumentos que diferenciam esta declamaccedilatildeo dos demais escritos em favor da paz ou
contraacuterios agrave guerra mas sim sua forma ou seja seu gecircnero assim como os recursos retoacutericos
presentes no texto
Aplicando a tradiccedilatildeo de disposiccedilatildeo retoacuterica agraves declamaccedilotildees podemos dividi-la nas
seguintes partes
- Proecircmio (προοίμιονexordium) (4- 29)14
- Narraccedilatildeo (διήγηζις narratio) (30-112)
- a primeira parte trata da paz entre os animais (30-112)
- a segunda parte trata da destruiccedilatildeo da paz entre os homens (113-202)
- Confirmaccedilatildeo (πίζηις probatio)
- a primeira parte trata de Cristo paciacutefico exemplo a ser seguido pelos que se
dizem cristatildeos (203-401)
14
Os nuacutemeros araacutebicos se referem agraves linhas da ediccedilatildeo criacutetica da obra de Erasmo (Desiderii Erasmi
Roterodami Opera Omnia Amsterdam 1978)
72
- a segunda parte trata do exemplo dos pagatildeos (402-435)
- a terceira parte trata de como o Estado as leis o comeacutercio e o povo satildeo prejudicados
pela guerra (436-594)
- a quarta parte trata de sugestotildees para o priacutencipe evitar a guerra (595-871)
- Epiacutelogo (επίλογοςperoratio) (872-918)
Em algumas ediccedilotildees a indicaccedilatildeo pax loquitur excluiacuteda da ediccedilatildeo criacutetica daacute iniacutecio ao
proecircmio (προοίμιονexordium) este localizado logo apoacutes a epiacutestola ao bispo Felipe e ao tiacutetulo
(1-3) Vem a seguir uma espeacutecie de auto-apresentaccedilatildeo da Paz (4-29) a qual fala na primeira
pessoa do singular descreve a si mesma e aos males que os homens injustamente cometem
contra ela e contra si mesmos
A narratio (διήγηζις) (30-202) pode ser dividida em duas partes a primeira trata da
paz entre os animais (30-112) cujo objetivo talvez seja mostrar que esta eacute conforme a
natureza ao passo que a guerra contraacuteria Esta eacute peacutessima justamente porque se opotildee agrave
natureza das coisas (rerum natura) e nisso os proacuteprios animais apesar de seres irracionais e
natildeo dotados da palavra serviriam de exemplo a ser seguido pelo homem Quando este se faz
guerreiro torna-se abjeto pois contraria sua natureza racional Jaacute a segunda parte trata da
destruiccedilatildeo da paz entre os homens (113-202) entre as linhas 113-130 Erasmo indica os
cristatildeos e a cidade como adversaacuterios dela que natildeo pode obter uma ldquomoradardquo entre eles Em
seguida volta-se contra os priacutencipes (131-142) os eruditos (143-157) e os religiosos (158-
189) Inclusive se refere agrave famiacutelia como lugar no qual ela eacute maltratada (190-194) O proacuteprio
homem eacute um ser dividido pois a razatildeo luta contra as paixotildees e estas entre si (195-200)
A confirmaccedilatildeo (πίζηις probatio) pode ser subdividida em pelo menos quatro grandes
blocos a primeira parte trata do Cristo paciacutefico exemplo a ser seguido por todos aqueles que
se dizem cristatildeos (203-401) Erasmo recusa aqui que o epiacuteteto ldquoDeus dos exeacutercitosrdquo presente
em trechos do Antigo Testamento possa servir de argumento a favor da guerra (223-230)
Verifica-se que a fala dirigida ao priacutencipe cristatildeo (249) se assemelha em certas partes do
discurso ao gecircnero speculum principum15
tatildeo em voga no Renascimento a ponto de Erasmo
ter dedicado vaacuterios de seus escritos a esse objeto nos quais inclusive incorrem argumentos
73
irecircnicos comuns agrave ldquoQueixa da Pazrdquo e que seratildeo considerados em pormenor abaixo O gecircnero
ldquoEspelho dos priacutencipesrdquo eacute uma espeacutecie de manual eacutetico e poliacutetico em que se detalham as
virtudes e os deveres de um priacutencipe ideal Tratava-se de uma tentativa de promover um
priacutencipe justo e um governo anaacutelogo Acreditava-se desde a antiguidade ateacute no periacuteodo
medieval que a formaccedilatildeo moral do governante determinaria a felicidade dos suacuteditos Se
Cristo eacute o priacutencipe da Paz natildeo cabe aos priacutencipes que se dizem cristatildeos promover a guerra
Homens reais satildeo entatildeo retratados como mais crueacuteis que personagens da histoacuteria ou da
antiga mitologia como Dioniacutesio e Mezecircncio (428-429) Uma terceira parte aborda como o
Estado as leis o comeacutercio e o povo satildeo prejudicados pela guerra (436-594) Note-se o trecho
elogioso agrave Franccedila (436-450) que justifica o tom francoacutefilo do discurso cofnroem o pedido do
chanceler Joatildeo Sauvage que teria encomendado a redaccedilatildeo desta declamaccedilatildeo Entre 451e 473
Erasmo retorna ao argumento de que os homens satildeo mais crueacuteis que as feras O bloco mais
extenso do discurso a quarta parte da confirmaccedilatildeo dirige-se diretamente ao priacutencipe
apresentando sugestotildees para que este evite a guerra (595-871) O epiacutelogo (επίλογοςperoratio)
(872-918) apresenta-se sob uma forma de apelo a todas as pessoas a comeccedilar pelos
poderosos para que promovam a paz Segue-se o princiacutepio da rememoratio sugerido pelas
tradiccedilotildees dos manuais de retoacuterica com a finalidade de retomar rapidamente os argumentos
desenvolvidos anteriormente Finalmente o proacuteprio autor resume o conteuacutedo da
argumentaccedilatildeo desenvolvida por todo o texto
Tudo nos convida a isso Em primeiro lugar o proacuteprio instinto da natureza e
se assim posso dizer a proacutepria humanidade Em segundo lugar o proacuteprio
Cristo Priacutencipe e Autor de toda felicidade humana Depois as incontaacuteveis
vantagens da paz contrastadas com o nuacutemero imenso das calamidades da
guerra Convidam agrave paz ateacute mesmo as inclinaccedilotildees dos priacutencipes que como
que inspirados por Deus jaacute estatildeo propensos agrave concoacuterdia (Queixa da Paz 889-
892)
210 As sentenccedilas e os adaacutegios
Sentenccedilas e adaacutegios satildeo recursos recorrentes nas declamaccedilotildees erasmianas assim como
o foram na obra senequiana segundo as tradiccedilotildees retoacutericas antigas transmitidas por
Quintiliano (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria XII 10 48) Em epiacutestola a Willian Blount embora natildeo se
refira expressamente ao uso delas no gecircnero que estudamos afirma Erasmo sobre o uso de
sentenccedilas em geral
74
O proveacuterbio melhora com a idade exatamente como os vinhos Eles natildeo se
limitam a ornamentar o seu estilo Eles satildeo igualmente uacuteteis para tambeacutem lhe
dar forccedila Por esta razatildeo Quintiliano natildeo soacute os incluiu entre os meios de
aliviar o teacutedio judicial entre as figuras de oratoacuteria mas considera que o
exemplo proverbial eacute um dos meacutetodos mais eficazes de prova se o seu
propoacutesito eacute convencer ou para refutar o seu adversaacuterio por meio de um ditado
espirituoso ou para defender a sua proacutepria posiccedilatildeo (Epiacutestola 125 ll 56-65
Steyn junho de 1500 I The Correspondence of Erasmus I 1974 p 255
traduccedilatildeo do inglecircs para o portuguecircs)
Logo no iniacutecio do ldquoSobre a abundacircnciardquo Erasmo pontua como as sententiae satildeo
recursos basilares da sua retoacuterica que tecircm o poder de conferir qualidade e elegacircncia ao
discurso ainda que tambeacutem tragam em si ldquoo perigo natildeo reduzido de deixaacute-lo afetadordquo (De
Copia I 9 p 26) Um dos erros apontados pelo holandecircs eacute a inadequaccedilatildeo com o tema ou
com o argumento proposto ou seja um adaacutegio que contrariasse o que a antiga tradiccedilatildeo
retoacuterica nomeava como decoro ou entatildeo o uso exagerado qualificado como ldquosententiarum
turbardquo que natildeo eacute capaz de reduzir a pobreza inerente ao discurso (Ibid)
Deve-se salientar a diferenccedila entre sententia no sentido de proveacuterbio e a sentenccedila no
sentido frase ou oraccedilatildeo que tambeacutem foi objeto de consideraccedilatildeo do roterdamecircs Relembrando
a ceacutelebre disputa entre Ciacutecero e Roacutescio sobre qual dos dois seria capaz de repetir uma mesma
ideia com o maior nuacutemero de formas sinoniacutemicas concebe a proposiccedilatildeo fundamental segundo
a qual a variaccedilatildeo das sentenccedilas enriquece o discurso (De Copia I 40-45 p 28) Erasmo ousa
ainda afirmar que natildeo eacute somente a variaccedilatildeo copiosa das sentenccedilas que eacute capaz de tornar um
discurso eloquente mas tambeacutem a concisatildeo de modo que a parcimocircnia eacute um fator relevante
para um discurso retoricamente constituiacutedo
Natildeo raro temos de dizer a mesma coisa vaacuterias vezes mas nesse caso se faltar
variaccedilatildeo ou perderemos ou faremos como o cuco de modo que repitamos as
mesmas palavras repetidas vezes sendo incapaz de dar diferente forma ou
color para a sentenccedila de maneira que nossa falta de eloquecircncia pareceraacute
ridiacutecula a noacutes mesmos e esgotaraacute totalmente o nosso puacuteblico de miseraacutevel
cansaccedilo (De Copia I 130-134 p 32)
Nota-se o uso da expressatildeo color com um sentido semelhante agravequele utilizado por
Secircneca o Velho em suas declamaccedilotildees as quais haviam sido editadas por Erasmo um ano
antes da publicaccedilatildeo da Querela e que segundo Knott (1988 p 12) tiveram influecircncia direta
sobre a declamaccedilatildeo e a coleccedilatildeo de adaacutegios erasmiana Embora natildeo trate exatamente da
sentenccedila senequiana enquanto proveacuterbio ao longo do capiacutetulo XVII do De copia Erasmo
aborda um tema que possui certa analogia com o criteacuterio para a seleccedilatildeo das sentenccedilas Ao
75
discorrer sobre a importacircncia da metaacutefora ou das similitudines como recurso retoacuterico capaz de
conferir ao discurso ornamento gravidade sublimidade e humor (De Copia I 801-803 p
64) apresenta a coleccedilatildeo de adaacutegios (De conscribendis epistolis p 240 ll 15-16) que
enriquecem o texto mas que devem ser selecionados com criteacuterio ldquoa metaacutefora natildeo ser dura
ou baixa ou mais exagerada do que eacute adequado ou dessemelhante ou demasiado frequente
especialmente a que eacute da mesma espeacutecierdquo (De Copia I 817-818 p 64) Ao que parece
Erasmo se refere ao uso moderado natildeo repetitivo no tocante agrave forma e ao conteuacutedo da
sentenccedila
O proacuteprio roterdamecircs colecionou centenas de adaacutegios na ediccedilatildeo expandida publicada
em 1508 e que satildeo utilizados (De Copia I 812-814 p 64) segundo Knott (1988 p 12) natildeo
somente como meras traduccedilotildees para o latim quando advindos do grego ou meras citaccedilotildees
literais quando originaacuterios do latim mas em alguns casos satildeo parafraseadas ou ao menos
demonstram certa semelhanccedila justamente para dar variedade e elegacircncia agraves diversas
sentenccedilas muito embora a maioria delas seja apenas recolhida dos escritos antigos com a
finalidade de ornamentar o discurso como eacute o caso da ldquoQueixa da Pazrdquo Erasmo natildeo se
absteacutem do uso de adaacutegios com finalidade retoacuterica Nesse particular podemos constatar que
tais adaacutegios possuem trecircs fontes especiacuteficas e em muitos casos grafadas na ediccedilatildeo criacutetica da
Queixa da Paz e que de certo modo coincidem com a lista supracitada de Knott (1988 p
12) ao serem classificadas em quatro fontes as antigas as biacuteblicas as patriacutesticas e os
proacuteprios adaacutegios de Erasmo
Algumas destas referecircncias se configuram apenas como citaccedilotildees diretas ou indiretas
dos autores Algumas podem ser expliacutecitas como eacute o caso de Platatildeo (linhas 9 da epiacutestola-
prefaacutecio e (551) enquanto outras satildeo alusotildees como Liacutevio (1-3)16
de Homero (7517
) de
Oviacutedio (16218
) de Siacutelio Itaacutelico (21019
) de Ciacutecero (21820
e 75821
) de Virgiacutelio (46722
e 67023
) e
16
ldquoundique se suosque profligante fortunardquo (Livio 3319)
17 ldquoCirces pharmacisrdquo (Homero Odisseia X 235ss)
18 ldquovestes candidae meo colorerdquo (Ovidio Arte Amatoacuteria 3 502)
19 ldquopax optima rerumrdquo (Silio Puacutenicas XI 592ss)
20 ldquoa viro laudatordquo (Ciacutecero Disputas Tusculanas IV 31 67)
21 ldquosilent leges inter armardquo (Cicero Mil 4 10)
22 ldquoignobile vulgusrdquo (Virgiacutelio Aeneida I 149)
23 ldquoquae maacutexima turba estrdquo (Virgiacutelio Aeneida VI 611)
76
de Plauto (76424
) Haacute citaccedilotildees de adaacutegios recolhidos e selecionados por Erasmo em sua
proacutepria coletacircnea (linhas 1825
2226
6227
7728
9129
15530
50531
553-55632
803-80433
86634
e 90635
) Alguns satildeo inspirados em fontes antigas como o de Pliacutenio (5736
) de Horaacutecio (15237
)
ou de Aristoacuteteles (391)38
Erasmo de modo algum aconselha a seleccedilatildeo de sentenccedilas de um
uacutenico autor mas a imitaccedilatildeo e a coleccedilatildeo destas retiradas das mais variadas fontes inclusive as
de origem ou inspiraccedilatildeo biacuteblica e patriacutestica chegando inclusive a ridicularizar no ldquoDiaacutelogo
Ciceronianordquo (p 617 ll 9-12) mais especificamente no diaacutelogo entre as personagens
Nosoacutepono e Buleacuteforo os autores que se aferravam unicamente agrave coleccedilatildeo das sentenccedilas e
adaacutegios oriundos ou inspirados na obra atribuiacuteda a Ciacutecero Erasmo eacute ecleacutetico no elenco das
fontes mas foi constantemente acusado de falta de cuidado no uso das sentenccedilas
Conforme lecirc-se no ldquoPlano de estudosrdquo o estiacutemulo aos estudantes de retoacuterica para o
cultivo da coleccedilatildeo e o conhecimento de adaacutegios e sentenccedilas dos antigos eacute imprescindiacutevel para
o enriquecimento do discurso em conformidade com a tradiccedilatildeo retoacuterica antiga pois satildeo fontes
da invenccedilatildeo da abundacircncia e da variaccedilatildeo das sentenccedilas (De ratione studii p 149 ll 18-27)
Por fim Erasmo chega a afirmar explicitamente no ldquoSobre a redaccedilatildeo de epiacutestolasrdquo a
necessaacuteria imitaccedilatildeo das sentenccedilas colecionadas entre os autores citando inclusive as
declamaccedilotildees de Luciano a Aulo Geacutelio (De conscribendis epistolis p 532 ll 8-12)
24
ldquoparietum perfossorrdquo (Plauto Pseud 9 8 6)
25 ldquoPax omnium bonarum rerum et parens est et nutrixrdquo (Erasmo Adagia 3001)
26 ldquoigens malorum pelagusrdquo (Erasmo Adagia 3001)
27 ldquoFuremque fur cognoscitrdquo (Erasmo Adagia 1263)
28 ldquouni lachrymas clementiar et misericordiae symbolumrdquo (Erasmo Adagia 3001)
29 ldquosolum hominem nundum produxitrdquo (Erasmo Adagia 3001)
30 ldquodentata chartardquo (Erasmo Adagia 87)
31 ldquoe suggesto sacrordquo (Erasmo Adagia 3001)
32 ldquordquoEthnicorum leges parriciacutediordquo (Erasmo Adagia 3918)
33 ldquoad Cares viliacutessimosrdquo (Erasmo Adagia 514)
34 ldquoActa est fabulardquo (Erasmo Adagia 239)
35 ldquoBellum e bello seriturrdquo (Erasmo Adagia 3001)
36 ldquoLeonum feritas inter se non dimicat serpentium morsus non petit serpentes ne maris quidem beluae ac pisces
nisi in diversar genera sacuiuntrdquo (Plinio Histoacuteria VII 5)
37 ldquode lana caprinardquo (Erasmo Adag 253 Horaacutecio Espiacutestulas I 1815)
38 ldquoConciliant homines malardquo ou ldquomala conciliant et malosrdquo (Erasmo Adagia 1071)
77
211 Declamaccedilatildeo e espelho dos priacutencipes
Se a declamaccedilatildeo desde o iniacutecio possuiu uma relaccedilatildeo estreita com outros gecircneros
como a oraccedilatildeo (oratio) e o diaacutelogo (sermocinatio) identificamos outro correlato o espelho
dos priacutencipes Ora natildeo somente o tema aproxima a ldquoQueixa da Pazrdquo da ldquoInstituiccedilatildeo do
priacutencipe cristatildeordquo mas tambeacutem sobretudo em algumas de suas partes que aconselham o
suserano Herding (1974 p 6) aponta que ainda o ldquoPanegiacuterico a Feliperdquo e a ldquoInsituiccedilatildeo do
priniacutencipe cristatildeordquo se caracterizam como obras erasmianas pertencentes a esse gecircnero
literaacuterio Por outro lado os argumentos utilizados na ldquoQueixa da Pazrdquo ao parecer de Herding
(1974 p 9) configuram a proacutepria ldquoInstituiccedilatildeo do priacutencipe cristatildeordquo como um tratado de iacutendole
irecircnica O autor (1975 p 98) tambeacutem observou que Plutarco cuja obra moral tinha sido
editada e publicada por Erasmo em 1514 pode ter influenciado o roterdamecircs na redaccedilatildeo de
seus escritos suasoacuterios e pedagoacutegicos dirigidos especificamente aos priacutencipes O proacuteprio
Erasmo jaacute na carta a Felipe aquela que introduz a ldquoQueixa da Pazrdquo dirige-se a membros da
nobreza e em epiacutestola a Joatildeo Botzheim datada do ano de 1523 afirma sua declamaccedilatildeo como
um escrito cujos destinataacuterios satildeo justamente membros governantes Herding (1974 p 100)
levanta a hipoacutetese de que tal como esta tambeacutem seu mais ceacutelebre espelho do priacutencipe tenha
sido encomendada pelo chanceler Joatildeo Sauvage Esse escrito entatildeo seria de suasoacuterio e
pedagoacutegico no sentido de sugerir atitudes moralizadoras das relaccedilotildees entre os priacutencipes e os
seus congecircneres entre estes e o povo
Em todo o texto da ldquoQueixa da Pazrdquo haacute cinquenta e seis repeticcedilotildees da palavra
ldquopriacutenciperdquo muitas vezes em uma funccedilatildeo apelativa atraveacutes do uso do vocativo Para Erasmo o
gecircnero speculum segue um modelo Cristo que eacute o ldquoPriacutencipe da pazrdquo (Queixa da Paz 205-
214) Erasmo trata do regente bom (614 e 770) ou pio (770) e se propotildee aconselhaacute-los a
deliberar em favor da Paz em nome de princiacutepios eacuteticos tal como eacute tiacutepico das suasoacuterias
(Queixa da Paz 205-214) Ateacute mesmo na peroraccedilatildeo a Paz novamente volta-se a eles (Queixa
da Paz 872-876) As dezenas de refecircncias ao governante e a semelhanccedila de alguns trechos
com o gecircnero espelho de priacutencipes natildeo desautorizam a classificar a ldquoQueixa da Pazrdquo como
declamaccedilatildeo pois o tema sobre a paz tiacutepico do gecircnero deliberativo e o objetivo de aconselhar
proacuteprio das suasoacuterias satildeo elementos correntes nas antigas declamaccedilotildees
Por fim deve-se considerar que Gaeta (1969) notou semelhanccedilas evidentes entre o
diaacutelogo filosoacutefico presente no exoacuterdio do ldquoSobre a Clemecircnciardquo do Jovem Secircneca com o da
78
ldquoQueixa da Pazrdquo Notei que grande semelhanccedila da Queixa da Paz com o exoacuterdio de Secircneca
(Sobre a clemecircncia 1-4) Aquele foi um escrito filosoacutefico-moral destinado ao jovem
imperador Nero de modo a contribuir com a formaccedilatildeo deste (Manjarreacutes 2001 p 85) e que
de modo fictiacutecio simula discursos diretos de Nero (ver I2) ao passo que na declamaccedilatildeo em
estudo a locuccedilatildeo direta eacute proferida pela proacutepria Paz Secircneca o Jovem inicia sua
argumentaccedilatildeo apresentando o proacuteprio Nero como fonte dos dons virtudes e bens e o contrasta
com a humanidade ldquobriguenta intriguenta e apaixonadardquo capaz de causar ldquoa ruiacutena para si
mesmardquo Secircneca instrui o imperador a se auto-apresentar como aquele que cumpre o ofiacutecio de
Deus sobre a terra como o aacuterbitro da vida e da morte Cabe ao governante decidir as posses
do homem pois a fortuna de cada um proveacutem da sua boca Ele deve decidir sobre qual
inimigo deve ser tratado com rigor ou clemecircncia pois cidades e civilizaccedilotildees florescem pelas
suas palavras Mas Nero prefere promover a paz para benefiacutecio dos povos que lhe satildeo
submetidos Jaacute consideramos e ainda aprofundaremos como a paz se apresenta de modo
anaacutelogo e com argumentos semelhantes Em ambos os discursos elaborados em primeira
pessoa usam-se as imagens da prosperidade para a paz e da destruiccedilatildeo para a guerra em
ambos embora a paz seja apresentada como agradaacutevel aos ceacuteus ou seja aos deuses e aos
homens esta natildeo eacute aceita e perde seu lugar para a guerra
212 Traccedilos de suasoacuteria e de elogio
Ao estudar a ldquoQueixa da Pazrdquo sob a perspectiva dos trecircs gecircneros notamos novamente
a ocorrecircncia especial de traccedilos destes gecircneros o deliberativo ou suasoacuterio e o demonstrativo
ou epidiacutetico O primeiro ocorre sobretudo nos trechos em que a Paz se configura como
beneacutevola conselheira (Queixa da Paz 595-597) A Paz volta-se ao suserano a fim de
aconselhaacute-lo referindo-se na forma da terceira pessoa do singular
A um coraccedilatildeo reacutegio cabe ignorar os afetos privados e estimar todas as coisas
segundo o bem-estar puacuteblico Por isso que o priacutencipe evite viagens a terras
longiacutenquas ou antes que nunca cruze os limites territoriais do seu reino
(Queixa da Paz 646-647)
A Paz tambeacutem utiliza a segunda pessoa do singular ao dirigir-se diretamente ao
cristatildeo a fim de defender sua causa tal como se verificou em jaacute citada parte da peroraccedilatildeo
(Queixa da Paz 872-876) Entretanto esta natildeo se dirige como conselheira apenas do poder
laico mas tenta persuadir o proacuteprio Sumo Pontiacutefice
79
Suma eacute a autoridade do Pontiacutefice Romano Entretanto no momento em que os
povos e os priacutencipes se enfrentam em guerras perversas ndash e isto por longos
anos ndash onde estaacute a autoridade dos pontiacutefices junto agraves naccedilotildees Onde estaacute o seu
poder proacuteximo ao de Cristo Era nesse ponto e entatildeo que a autoridade papal
certamente deveria ser exercida a natildeo ser que os papas tambeacutem compartilhem
as mesmas ambiccedilotildees (Queixa da Paz 583-586)
Os conselhos deliberativos assumem a construccedilatildeo do futuro mas tambeacutem o
subjuntivo como por exemplo nesse trecho no qual a Paz sugere regras com finalidade
paciacutefica no tocante ao direito de sucessatildeo de territoacuterios
Assim cada qual se esforccedilaraacute segundo suas possibilidades para governar sua
regiatildeo da melhor forma possiacutevel Pois quando estiver totalmente concentrado
no cuidado de um soacute reino faraacute o maacuteximo para deixaacute-lo aos seus filhos
enriquecido por melhorias E desta forma como eacute evidente tudo floresceraacute
Que sejam aliados natildeo apenas por viacutenculos matrimoniais ou alianccedilas
contratuais mas sim unidos por amizade sincera e pura e acima de tudo por
um idecircntico e comum amor por todo o gecircnero humano Que a sucessatildeo do rei
seja atribuiacuteda quer agravequele que for o mais proacuteximo por consanguinidade quer
agravequele que pelos votos do povo for considerado o mais capaz Quanto aos
demais que lhes baste estar entre o nuacutemero dos nobres mais honrados (Queixa
da Paz 639-645)
Ao comentar o ldquoElogio ao matrimocircniordquo (1518) publicado um ano apoacutes a publicaccedilatildeo
da ldquoQueixa da Pazrdquo (1517) Leushuis (2004 p 1287) estabelece uma definiccedilatildeo que parece
adequada agrave declamaccedilatildeo que estudamos
Primeiramente publicada em marccedilo de 1518 sob o tiacutetulo de Declamatio in
genere suasorio de laude matrimonii o texto combina elementos da
declamaccedilatildeo (declamatio) e do elogio (laus) Ao considerar a natureza geral da
declamaccedilatildeo pode-se dizer que o objetivo deste texto eacute discutir os argumentos
a favor e contra (in utramque partem) a tese (thesis) em um modo suasoacuterio
(genus suasorium) Na linha da tradiccedilatildeo claacutessica ciceroniana na qual o gecircnero
era usado para discutir uma questatildeo abstrata ou filosoacutefica [] as declamaccedilotildees
do iniacutecio do seacuteculo XVI expressam o valor dos julgamentos dos seus autores
sobre problemas morais ou eacuteticos por meio da retoacuterica do louvor ou do
vitupeacuterio (laus e vituperatio) (Leushuis 2004 p 1287)
Aleacutem disso Querela pode ser traduzido por queixa lamento ou queixume mas
tambeacutem possui um sentido muito proacuteximo a vitupeacuterio ou reclamaccedilatildeo pois quem se queixa
vitupera reclama ou lamenta algo39
Verificou-se alguns trechos da declamaccedilatildeo que
apresentam traccedilos do gecircnero epidiacutetico como quando Erasmo empresta a voz para a Paz fazer
sua proacutepria exaltaccedilatildeo na primeira pessoa do singular (Queixa da Paz 18-21) Em outra parte
a Paz exalta-se a si mesma com o uso da terceira pessoa do singular ldquoCom tatildeo grande nuacutemero
39
Cf Gaffiot F Latin Dictionnaire Latin-Franccedilais Paris Hachette 2000 Voz Querela
80
de argumentos a natureza nos ensinou a paz e a concoacuterdia a ela nos convida com tatildeo grande
nuacutemero de seduccedilotildees para ela nos arrasta e compele com tantos laccedilos e razotildeesrdquo (Queixa da
Paz 103-104) Erasmo tambeacutem utiliza o arqueacutetipo de Cristo como argumento para exaltaacute-la
(Queixa da Paz 203-222)
Em vaacuterios trechos a Paz se auto-elogia por meio de uma comparaccedilatildeo com Cristo a
fim de exaltar seu proacuteprio ecircthos e de associar-se a sua autoridade assim como agravequela de Davi
e Salomatildeo monarcas biacuteblicos que favoreceram Israel com a prosperidade gerada pela paz
Erasmo estabelece um contraste tiacutepico do gecircnero epidiacutetico que satildeo as vituperaccedilotildees agrave causa
contraacuteria sucessivas aos elogios agrave causa que se estaacute defendendo (Queixa da Paz 237-248)
Em outro excerto o paralelismo entre vituperaccedilatildeo e elogio eacute alternado Comeccedila-se
pela censura e passa-se ao encocircmio e vice-versa
Que os mortais desculpem com sua fraqueza o que quiserem mas se de fato
natildeo amassem a guerra natildeo lutariam de tal modo entre si com batalhas
contiacutenuas Olhai para o Cristo jaacute adulto Que outra coisa ensinou que outra
coisa expressou senatildeo a paz Aleacutem disso ele sauacuteda os seus disciacutepulos com o
cumprimento da paz ldquoa paz esteja convoscordquo e lhes prescreveu essa forma de
saudaccedilatildeo como a uacutenica digna dos cristatildeos Os Apoacutestolos natildeo se esqueceram
desses preceitos e recomendavam a paz em suas cartas e desejavam paz
agravequeles a que amavam de forma especial Escolhe coisa importante quem faz
votos pela sauacutede mas estaacute desejando o sumo da felicidade Ele que a tinha
recomentado durante toda a sua vida nunca deixou de a recomendar Vede
com quatildeo grande solicitude a recomenda quando estava prestes a morrer
ldquoAmai-vos uns aos outros como eu vos tenho amadordquo E novamente ldquoeu vos
deixo a paz eu vos dou a minha pazrdquo (Queixa da Paz 259-268)
A ldquoQueixa da Pazrdquo tambeacutem pode ser vista como pertencente agrave espeacutecie do epidiacutetico
chamada lamentaccedilatildeo Tal fenocircmeno corre logo no exordium (Queixa da Paz 4-17)
Destacam-se no trecho supracitado alguns verbos que denotam a lamentaccedilatildeo deplorare e
deflendi sunt assim como a expressatildeo mea iniuria Esse formato de lamento ocorre em
vaacuterios trechos esparsos pela obra como o iniacutecio do primeiro argumento no qual Erasmo
defende que a guerra contraria a natureza humana (Queixa da Paz 30-31) Em um longo
periacuteodo a personificaccedilatildeo da Paz lamenta ou vitupera o fato de ter sido destruiacuteda pelos
homens inclusive pelos cristatildeos pois foi de fato destruiacuteda ldquoem toda parterdquo como se declara
no tiacutetulo da declamaccedilatildeo (Queixa da Paz 122-123) O lamento da Paz se volta contra os
governantes
81
Entretanto oacute coisa indigna Junto a eles natildeo eacute possiacutevel encontrar sequer a
sombra da verdadeira concoacuterdia Tudo eacute fingido e simulado natildeo haacute nada que
natildeo seja corrompido por facccedilotildees escancaradas ou por divergecircncias e
rivalidades ocultas No final natildeo encontro o trono da paz entre eles mas antes
eacute aiacute que mais estatildeo as fontes e origens de todas as guerras (Queixa da Paz
136-140 )40
A personificaccedilatildeo da Paz amplifica a lamentaccedilatildeo ao descrever suas decepccedilotildees junto a
diversas classes da sociedade os eruditos o clero secular e mesmo entre aqueles que mais
deveriam primar pela ldquoperfeiccedilatildeo da caridaderdquo ou seja que deveriam se destacar pela virtude e
pelo exemplo aos demais atraveacutes da vida humilde no interior de um convento (Queixa da
Paz 184-189)
A Paz natildeo encontrou seu lugar junto aos governantes nem junto agrave hierarquia
eclesiaacutestica dos altos graus ateacute os mais iacutenfimos Nota-se a decepccedilatildeo para com a estrutura
institucional da igreja Essa lamentaccedilatildeo ocupa consideraacutevel espaccedilo dentro da declamaccedilatildeo e
parece ser o objeto principal da queixa uma vez que outros setores da sociedade satildeo
mencionados em trechos comparativamente reduzidos como eacute o caso da destruiccedilatildeo da paz na
famiacutelia Esta vitupera com veemecircncia sobretudo contra os cleacuterigos bispos e papas como eacute o
caso de Juacutelio II os quais apesar do ofiacutecio eclesiaacutestico passaram para a histoacuteria como
guerreiros (Shaw 1993 p 15) Esse Papa havia inclusive conferido o estandarte da cruz aos
suiacuteccedilos em recompensa dos serviccedilos prestados agrave Santa Seacute (Queixa da Paz 520-540)
Tal recurso ocorre na peroratio construiacuteda por Erasmo na qual se evoca natildeo somente
o principado ou o sacerdoacutecio mas tambeacutem o povo (Queixa da Paz 867-888) Deve-se
pontuar contudo que sendo um texto escrito em latim em uma eacutepoca na qual grassava o
analfabetismo significaria uma exclusatildeo do povo Potanto a restriccedilatildeo do puacuteblico-alvo agravequeles
que sabiam ler natildeo exclui o apelo universal que a Paz se julga no direito de proferir Esta eacute
chamada a habitar em toda parte muito embora tenha sido injuriada e perseguida
213 Conclusotildees do capiacutetulo
No capiacutetulo segundo caracterizamos o gecircnero declamaccedilatildeo segundo Erasmo
definindo-o como um discurso fictiacutecio escrito em prosa com caraacuteter de exerciacutecio da
40
At o rem indignam apud hos nec umbram verae concordiae licuit cernere Fucata fictaque omniafactionibus
apertis clanculariis dissidiis ac simultatibus corrupta sunt universa Denique adeo apud hos non esse sedem paci
comperio ut hinc potius omnium bellorum fontes ac seminaria (Erasmo Queixa da Paz 136-140)
82
eloquecircncia cuja finalidade eacute simultaneamente educativa no sentido de ser formativa do ponto
de vista eacutetico ao aconselhar valores humanos condizentes com os ideais irecircnicos e literaacuteria
ao apresentar-se como um divertimento na medida em que procura comprazer o leitor atraveacutes
de formas elegantes e metaacuteforas que visam provocar o riso
Verificou-se que restaram ao menos onze declamaccedilotildees de autoria de Erasmo e que
algumas se assemelham ao diaacutelogo por apresentarem mais de uma personagem que emitem
discursos diretos reciprocamente direcionados As declamaccedilotildees erasmianas divergem das
senequianas e equiparam-se agraves gregas no sentido de que eram escritas integralmente ou seja
tal como haveriam de ser pronunciadas Em oposiccedilatildeo a estas estatildeo as controveacutersias de
Secircneca que eram redigidas de modo fragmentaacuterio e que possivelmente natildeo eram lidas em voz
alta da mesma forma que eram escritas muito embora tivessem a finalidade de exercitar a
actio entendida como o exerciacutecio da modulaccedilatildeo da voz tal como a declamaccedilatildeo mencionada
em Ciacutecero ou na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo
A ldquoQueixa da Pazrdquo tambeacutem apresentou traccedilos caracteriacutesticos de outros gecircneros antigos
retomados pelos humanistas tais como a oratoacuteria o espelho dos priacutencipes o panegiacuterico o
tratado moral a epiacutestola suasoacuteria e o diaacutelogo Aleacutem disso verificou-se que de modo
semelhante ao praticado nas declamaccedilotildees gregas os humanistas apresentavam elementos do
gecircnero epidiacutetico e deliberativo no primeiro caso haacute elogios agrave paz tanto em suas
autodescriccedilotildees como na enumeraccedilatildeo dos benefiacutecios que esta concede aos mortais mas
tambeacutem haacute trechos nos quais ela vitupera contra a guerra seus propugnadores e os vaacuterios
malefiacutecios desta sobre os homens em particular e sobre a sociedade Elogiar e vituperar
configuram-se entatildeo como traccedilos do gecircnero epidiacutetico no discurso irecircnico da Paz Contudo o
tema da paz eacute tiacutepico do deliberativo e alguns trechos apresentam uma forma de deliberaccedilatildeo a
favor de sua proacutepria causa apresentando os argumentos a favor da guerra somente na medida
em que satildeo imprescindiacuteveis para a confutaccedilatildeo ou o desaconselhamento
83
CAPIacuteTULO 3 ndash A PERSONIFICACcedilAtildeO DA PAZ
O presente capiacutetulo tem o objetivo de tratar da caracterizaccedilatildeo da prosopopeia realizada
na ldquoQueixa da Pazrdquo A partir da anaacutelise sobretudo do exordium da declamaccedilatildeo (1-29) e de
outras partes que se fizerem pertinentes o estudo visa a apresentar os traccedilos da personificaccedilatildeo
por meio de seu proacuteprio discurso uma vez que esta declamaccedilatildeo se caracteriza como um uacutenico
discurso o da Paz e natildeo apresenta qualquer narrativa introdutoacuteria em terceira pessoa
31 Declamaccedilatildeo e personificaccedilatildeo
Para Erasmo a prosopopeia eacute o discurso de um ente humanizado uma personificaccedilatildeo
que estando longe ausente ou morta estabelece uma fala um discurso direto (De copia II
389-397) Sua definiccedilatildeo recupera a antiga tradiccedilatildeo retoacuterica presente em manuais e autores
renomados entre outros possiacuteveis exemplos como na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo (IV 53 66) O
exemplo de Platatildeo como prosopopeia tambeacutem estaacute presente em Ciacutecero (Fin IV 22 61) Para
Erasmo uma prosopopeia deve parecer verossiacutemil aos leitores (De copia II 388-389)
Permite ademais tratar de assuntos seacuterios ou graves sobretudo quando simula o discurso da
paacutetria da natureza da repuacuteblica ou da proviacutencia Erasmo chega a citar as proacuteprias
ldquoCatilinaacuteriasrdquo e a locuccedilatildeo de Soacutecrates no diaacutelogo ldquoCriacutetonrdquo de Platatildeo para fundamentar seu
ponto de vista (De Copia II 389-405) Para ele a prosopopeia permite dar voz ldquomuitas vezes
aos proacuteprios deuses aos locais e a muitas coisas mudas com as quais ornamos o discursordquo (De
copia II 406-407) Conveacutem contudo consignar que Erasmo natildeo distingue entre uma
prosopopeia no sentido de uma pessoa ausente que toma a voz e uma personificaccedilatildeo
entendida como uma abstraccedilatildeo ndash como eacute o caso da paz ndash ou um objeto ou animal que
usualmente natildeo tem a habilidade da fala
32 Semelhanccedilas com as personificaccedilotildees biacuteblicas
Erasmo aleacutem de leitor tradutor e editor de escritos antigos tambeacutem era exegeta e
teoacutelogo e portanto dispunha para a invenccedilatildeo do corpus biacuteblico escrito em grego em pleno
periacuteodo heleniacutestico ou da sua versatildeo latina a ldquoVulgatardquo revisada por Jerocircnimo datada do
seacuteculo IV d C Sem duacutevida estas fontes contribuiacuteram para a forma de alguns trechos da
ldquoQueixa da Pazrdquo Em 1517 fazia cerca de um ano que ele havia publicado sua traduccedilatildeo para o
84
latim do Novo Testamento grego apoacutes um amplo trabalho de criacutetica dos manuscritos e
seleccedilatildeo das variantes possivelmente mais originais estabelecendo criteacuterios ainda hoje
utilizados nas ediccedilotildees criacuteticas de escritos antigos
No texto biacuteblico entre outras significativas personificaccedilotildees abstratas femininas tem-
se a ἀγάπη a caridade (Ad Corinthios I 134-13) e a Γσνὴ ἄθρων a mulher louca ou senhora
loucura (Proverbia 913-18) Destaca-se no ldquoLivro da Sabedoriardquo escrito por volta do seacuteculo
II a C no Egito o qual conteacutem a personificaccedilatildeo da sabedoria como uma mulher bela uma
matildee rica fonte de ciecircncia e ldquocriadorardquo de todas as coisas de uma forma semelhante agrave paz Ela
seria a antiacutetese da Loucura que seria a matildee de todas as maldades e contradiccedilotildees humanas O
autor biacuteblico imagina-se inclusive em desponsoacuterio com a sabedoria a qual se enamorou de
modo anaacutelogo a uma ninfa
A sabedoria eacute radiante e imarcesciacutevel Aqueles que a amam a contemplam
com facilidade e os que a procuram a encontram Ela se antecipa e se faz
conhecer aos que a desejam quem madruga por ela natildeo se cansaraacute pois a
encontraraacute sentada agrave sua porta Meditar nela eacute a perfeiccedilatildeo da prudecircncia e o
que vigia por sua causa logo se encontraraacute sem perigo Com efeito ela vai agrave
procura dos que a merecem nos caminhos mostra-se benigna e os precede em
cada pensamento Seu verdadeiro princiacutepio eacute o desejo da instruccedilatildeo empenho
da instruccedilatildeo eacute o amor e o amor a observaccedilatildeo das leis mas a guarda das leis eacute
a confirmaccedilatildeo da incorruptibilidade a incorruptibilidade verdadeiramente faz
estar proacuteximo de Deus Portanto o desejo de sabedoria conduz agrave realeza Oacute
tiranos dos povos se vos deleitais com tronos e cetros honrai pois a
sabedoria a fim de que reineis eternamente Anunciarei-vos o que eacute a
sabedoria e como ela se originou e natildeo vos esconderei os misteacuterios poreacutem
desde o iniacutecio de sua origem investigarei e farei manifesto o seu
conhecimento e natildeo me apartarei da verdade nem farei caminho com inveja
corruptora porque ela jamais comungaraacute com a sabedoria (Sapientia 6 12-
23)
Outra personificaccedilatildeo biacuteblica que certamente influenciou o caraacuteter amaacutevel da Paz seria
a caridade usada por Paulo autor explicitamente citado na ldquoQueixa da Pazrdquo em seis trechos
(169 215 710 712 735 835) Esta estaacute presente em uma de suas cartas redigidas
originariamente em grego koineacute Nota-se que a antiacutetese loucura-sabedoria utilizada por
Erasmo no ldquoElogio da Loucurardquo pode ter muito provavelmente sua origem ou inspiraccedilatildeo nos
escritos sapienciais biacuteblicos sejam veterotestamentaacuterios sejam paulinos A grande diferenccedila
contudo das ficccedilotildees de Erasmo para com aqueles textos consiste no uso da primeira pessoa
do singular numa estrutura de monoacutelogo no qual a personagem fala de si mesma e discorre
85
longamente sobre o tema em questatildeo abrangendo inclusive a totalidade do discurso e natildeo
somente alguns trechos
Na literatura biacuteblica aleacutem da primeira pessoa do singular verificam-se descriccedilotildees
dessas prosopopeias abstratas na terceira pessoa do singular o que eacute evitado no ldquoElogio da
Loucurardquo e na ldquoQueixa da Pazrdquo Esta seria a grande novidade que Erasmo proporcionou agrave
declamaccedilatildeo enquanto gecircnero antigo recebido no Renascimento (Chomarat 1981 p 940
Kennedy 1978 p 85) Ao comentar genericamente as personificaccedilotildees da Loucura e da Paz
Kennedy (1978 p 79) afirma que Erasmo ldquoincorporou usos da voz e intensidade que
romperam os limites da locuccedilatildeo e as proacuteprias barreiras linguiacutesticas transcendendo as
convenccedilotildees ciceronianas ou aacuteticas que no periacuteodo se procuravam associarrdquo Nesse sentido
rompeu os paradigmas biacuteblicos ao conceder a suas personificaccedilotildees simulaccedilatildeo de um discurso
direto de um monoacutelogo na integralidade do opuacutesculo Diferenciam-se inclusive dos diaacutelogos
presentes em ldquoCacircntico dos Cacircnticosrdquo com as personificaccedilotildees do amado e da amada embora
sejam apresentados em discursos diretos Estas tambeacutem se distinguem das declamaccedilotildees
erasmianas pois entatildeo em forma de diaacutelogo inclusive com a presenccedila de outros personagens
natildeo protagonistas e tais discursos diretos do casal natildeo ocupam a integralidade do livro
33 As mulheres das ldquoHeroidesrdquo de Oviacutedio
Se quanto agrave personificaccedilatildeo simulada a ldquoQueixa da Pazrdquo muito se assemelha a alguns
trechos biacuteblicos a forma de um monoacutelogo inteiramente atribuiacutedo a uma prosopopeia feminina
eacute encontrada poreacutem nos poemas elegiacuteacos das epiacutestolas que Oviacutedio escreveu e denominou
posteriormente como ldquoHeroidesrdquo Embora esta natildeo contenha personificaccedilotildees conveacutem aqui
consideraacute-la Trata-se de uma coleccedilatildeo de vinte e uma cartas de amor escritas e dirigidas a seus
amados por personagens femininas da mitologia e da literatura com exceccedilatildeo de trecircs cartas
que satildeo dirigidas por homens agraves suas amantes A ausecircncia o esquecimento a distacircncia o
abandono ou a perda funcionam como pontos de partida para que as heroiacutenas dediquem cartas
e se lamentem dos seus amores insatisfeitos por diversas causas As heroiacutenas procedem de
diferentes mitos e gecircneros literaacuterios como os poemas homeacutericos a trageacutedia a liacuterica a eacutepica
entre outros Oviacutedio adapta as personagens femininas agrave sua sensibilidade elegiacuteaca com a qual
desenvolve o tema do amor por exemplo na epiacutestola de Peneacutelope a qual expressa em sua
carta a Ulisses sentimentos amorosos (Heroides 1) apenas esboccedilados na ldquoOdisseiardquo Soto
86
(2012 p 52) nota que Oviacutedio caracterizou as amantes e concubinas de forma mais atraente e
beneacutevola que a empregada para descrever as esposas que muitas vezes causavam problemas
aos seus esposos Esta ideia contrariava frontalmente a moral de Augusto que visava por
meio de decretos a proteger os ldquobons costumesrdquo na sociedade romana Soto (2012 p 51)
tambeacutem nota que as personagens mitoloacutegicas caracterizadas por Oviacutedio correspondem mais agraves
mulheres do seu tempo do que agraves proacuteprias narrativas mitoloacutegicas Ao comentar as ldquoHeroidesrdquo
observa Margolin (1971 p 224 nota 8) os discursos diretos ldquoaplicam as liccedilotildees de retoacuterica
que ele [Oviacutedio] teria recebido junto aos mestres Aureacutelio Fusco e Porcio Latro Oviacutedio natildeo
procura nelas a verossimilhanccedila histoacuterica Elas pertencem agrave tradiccedilatildeo das suasoriaerdquo
Verificaram-se referecircncias de Erasmo agraves ldquoHeroidesrdquo nos ldquoAdaacutegiosrdquo no ldquoPanegiacuterico a Feliperdquo
(p 42 ll 538-543) e no ldquoSobre a redaccedilatildeo de epiacutestolasrdquo eacute justamente no trecho desta terceira
obra cujo subtiacutetulo Peculiaris epistolae character em que Erasmo trata da caracterizaccedilatildeo das
personificaccedilotildees que se deu a referecircncia agraves ldquoHeroidesrdquo agraves quais natildeo hesitou em chamar de
ldquopequenas declamaccedilotildeesrdquo (declamatiuncula) (De conscribendis epistolis p 224 ll 5-10)41
Em algumas das ediccedilotildees revisadas pelo autor o exordium da declamaccedilatildeo irecircnica de
Erasmo eacute precedido pela indicaccedilatildeo da pessoa que fala no monoacutelogo declamatoacuterio pax
loquitur Esse subtiacutetulo visa a salientar que a declamaccedilatildeo seraacute feita pela proacutepria Paz que
personificada se queixa lamenta ou manifesta sua inconformidade com a injusta perseguiccedilatildeo
que os homens fazem contra ela embora ela por sua natureza beneacutevola seja capaz de
comunicar aos homens todos os bens naturais e sobrenaturais individuais e coletivos Eis
assim que a ldquoQueixa da pazrdquo se tornaraacute como o proacuteprio Erasmo mais tarde afirmou o
ldquoEpitaacutefio da Pazrdquo tatildeo rejeitada ao longo da Histoacuteria e sobretudo naquele iniacutecio do seacuteculo
XVI (na Epiacutestola a Joatildeo Botzheim) Trata-se de um traccedilo de ligaccedilatildeo com a elegia que teve
iniacutecio como canto fuacutenebre O uso da personificaccedilatildeo se baseava no princiacutepio defendido pelo
roterdamecircs ldquoa personificaccedilatildeo eacute variaacutevel de diversas formas o escritor pode selecionar a que
deseja que se deve fazer Assim como eacute o homem assim deve ser sua accedilatildeordquo (De Copia I
13) Esta teoria remonta agrave construccedilatildeo de caracteres (ἦθος) jaacute presente nas poeacuteticas de
Aristoacuteteles (Poeacutetica 6 12-15) e Horaacutecio (Ars Poetica 153-178)
41
Margolin (1971 p 253 nota 6) tambeacutem visualizou uma referecircncia indireta agraves heroidas no seguinte trecho ldquoIn
hoc argumenta poterit et illud admoneri blandiorem oportere flngi epistolam quam adolescens adolescenti
congerro congerroni amans scrihit amantirdquo (Erasmo De conscribendis epistolis p 253 ll 5-7) como tambeacutem
no seguinte trecho ao se falar do retorno de Ulisses agrave proximidade de Peneacutelope descrita nas Heroidas de Oviacutedio
ldquoQuum ad vxores ventum est tum jiunt seneserdquo (Erasmo De conscribendis epistolis p 269 l 17)
87
34 Personificaccedilotildees femininas
Chomarat (1981 p 1000) afirma que a personificaccedilatildeo da Paz possui duas
caracteriacutesticas essenciais eacute feminina e abstrata Isso natildeo somente porque pax em latim eacute um
substantivo feminino mas por sua proacutepria caracterizaccedilatildeo por Erasmo Aristoacuteteles apontou que
haacute caracteres adequados e distintos agrave personificaccedilatildeo masculina e agrave feminina ldquosem duacutevida
existem caracteres viris entretanto a coragem desta espeacutecie de caracteres natildeo conveacutem agrave
natureza femininardquo (Poeacutetica 15 4) Se o Estagirita aponta a coragem como um elemento
proacuteprio ao homem para Mendelson (1994 p 94) Quintiliano recomendava que a actio
considerasse no caraacuteter da personificaccedilatildeo que falava e em seu auditoacuterio alguns fatores
relevantes como o nuacutemero de ouvintes seu status nacionalidade sexo idade partido e
acima de tudo seu caraacuteter moral (Instituiccedilatildeo Oratoacuteria III 8 37-38) Tambeacutem no ldquoDe copiardquo
(II 384-389) ele se refere agrave consideraccedilatildeo do gecircnero da pessoa que emite o discurso Deste
modo verifica-se que o recurso agrave caracterizaccedilatildeo do feminino eacute um fator relevante dentre as
estrateacutegias de persuasatildeo exploradas por Erasmo ao personificar a Paz como uma saacutebia e
compassiva mulher (Spierling 2008 p 119) que se dirige a todos os mortais para convencecirc-
los das vantagens individuais e sociais da paz apresentando razotildees naturais tais como a
incompatibilidade entre a natureza e a guerra e as consequecircncias inconvenientes da guerra no
plano poliacutetico e soacutecio-econocircmico Do ponto de vista religioso a guerra natildeo corresponde ao
ideal da cavalaria medieval e da propagaccedilatildeo da feacute Erasmo denuncia a incoerecircncia com a
doutrina cristatilde por parte de bispos e pregadores agentes da guerra ainda que por motivos
ldquojustosrdquo ou ldquosantosrdquo mas muitas vezes insignificantes
Embora a personificaccedilatildeo erasmiana natildeo seja uma prosopopeia feminina isto eacute
representasse a ficccedilatildeo de uma mulher ldquoem concretordquo ndash como encontramos nas ldquoHeroidesrdquo ndash
mas sim de uma abstraccedilatildeo ou alegoria como no caso da paz ou da loucura ou por exemplo
como encontramos em Ciacutecero ao atribuir uma voz agrave paacutetria e agrave repuacuteblica no iniacutecio das
ldquoPrimeiras Catilinaacuteriasrdquo (718 11 27) eacute justamente nesse ponto entre outros que
encontramos mais uma inovaccedilatildeo na declamaccedilatildeo erasmiana
Erasmo escreveu vaacuterias de suas obras tendo a figura da mulher dentro do contexto do
matrimocircnio seja na fase anterior (virgens) durante este (casadas) ou posterior (viuvez) tais
como o ldquoElogio do matrimocircniordquo (1518) o ldquoPretendentes e meninasrdquo (1523) o ldquoVirgem
misoacutegamardquo (1523) o ldquoVirgem penitenterdquo (1523) o ldquoEsposa mempsigama ou casamentordquo
88
(1523) e alguma trechos do ldquoInstituiccedilatildeo do matrimocircnio cristatildeordquo (1526) Sua declamaccedilatildeo
ldquoElogio do matrimocircniordquo e o seu tratado sobre a viuvez assim como vaacuterios de seus coloacutequios
lidam com a virgindade o namoro o casamento a criaccedilatildeo de filhos e a viuvez (Chomarat
1981 p 894) assuntos que tocam diretamente em questotildees da relaccedilatildeo entre os gecircneros
masculino e feminino Sowards (1982 p 88) apresenta alguns pontos especiacuteficos na
concepccedilatildeo erasmiana acerca da mulher a necessidade de lhes prestar a educaccedilatildeo em
conformidade com os humanistas italianos que julgavam ser esta essencial para uma formaccedilatildeo
moral que preserve a virgindade preacute-matrimonial aleacutem disso compreendia a liberdade da
mulher na escolha do cocircnjuge Este enfoque em questotildees de castidade deve-se agraves discussotildees
acerca da exaltaccedilatildeo do celibato sobre ao matrimocircnio que Erasmo confuta promovendo um
elogio e uma suasoacuteria do matrimocircnio (Leushuis 2004 p 1287-1307) Se de um lado a Paz
se reveste dos caracteres femininos Erasmo tambeacutem cita uma frase paulina afirmando que
natildeo se pode fazer distinccedilatildeo ldquoentre grego e baacuterbaro entre homem e mulherrdquo onde se nota
abertura para a consideraccedilatildeo de certa igualdade entre os gecircneros ldquoA partir daiacute natildeo haacute mais
servos e homens livres baacuterbaros e gregos homens e mulheres mas todos satildeo o mesmo em
Cristo que tudo conduziu agrave concoacuterdiardquo (Queixa da Paz 369-370)
Em alguns trechos escritos por Erasmo haacute a transcriccedilatildeo de alguns estereoacutetipos do sexo
feminino
O sexo feminino eacute afligido por dois viacutecios Elas vivem para agradar na
aparecircncia Este desejo eacute originaacuterio na vangloacuteria Segundo elas natildeo podem
tolerar injuacuterias e satildeo propensas agrave vinganccedila Isso se deve agrave fraqueza dos seus
intelectos e agrave sua ignoracircncia para com a verdadeira nobreza Uma mente
realmente nobre releva a injuacuteria Ademais como a mulher eacute levada pelas
emoccedilotildees elas medem a honra pelos padrotildees exteriores e natildeo podem tolerar ser
superadas nessas mateacuterias (Epistola V p 704 F-5A)
Se Erasmo afirma a ldquopeculiar inconstacircncia da mulherrdquo (De Copia II 758)
reconheceo mesmo em relaccedilatildeo agrave crianccedila ao povo e inclusive ao proacuteprio homem Para
Rummel (1996 p 4) o holandecircs reproduz em seus escritos os defeitos dos estereoacutetipos
masculino e o feminino Os homens satildeo como feras mas como estatildeo no controle patriarcal
satildeo mimados facilmente enganados A mulher eacute rancorosa vatilde ignoacutebil atrasada
intelectualmente e manhosa mas tal leitura do texto conforme a proacutepria autora claramente se
propotildee a explicar deve ser entendida no gecircnero proacuteprio dos textos erasmianos sobre o
matrimocircnio que abordam os dois lados da questatildeo embora tais estereoacutetipos sejam por vezes
refutados logo em seguida por ele Leushuis (2004 p 1288) tambeacutem constata que as
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declamaccedilotildees erasmianas que tratam do casamento apresentam probatio e confutatio a favor da
instituiccedilatildeo Entretanto apesar do comprometimento de Erasmo para a defesa do matrimocircnio
o autor submetido agrave forma do gecircnero natildeo deixa de apresentar por exemplo em uma carta de
genere dissuasorio uma lista de argumentos teoloacutegicos contra o matrimocircnio como a
virgindade e o celibato como meios de felicidade e o desejo sexual como pecado assim como
alguns prejuiacutezos do contato entre os gecircneros Se o matrimocircnio eacute uma armadilha a mulher
seria um ser trapaceiro que envolve o noivo em seus laccedilos (2004 p 1288) mas conveacutem
entender tais afirmaccedilotildees como os argumentos que Erasmo pretende refutar a ponto de aleacutem
do elogio agrave beleza agrave gentileza das francesas e a Margareth More nos proacuteprios escritos sobre o
matrimocircnio a mulher tambeacutem ser apresentada como mais do que uma companheira
agradaacutevel
O que eacute pois mais doce do que viver com uma mulher com quem tu estaacutes
mais intimamente ligado natildeo apenas pelos laccedilos de afeto mas tambeacutem pela
uniatildeo fiacutesica Se tirar o grande deleite espiritual da bondade dos outros
parentes proacuteximos e conhecidos como eacute muito mais agradaacutevel ter algueacutem com
quem compartilhar os sentimentos secretos do coraccedilatildeo com quem tu podes
falar como consigo mesmo Com essa lealdade obtens seguranccedila com quem
conduz as tuas fortunas como proacuteprias Que felicidade existe na uniatildeo de
marido e mulher Em comparaccedilatildeo com isto naotilde existe nada maior nem mais
duradouro em toda a natureza Enquanto estamos ligados com os nossos
outros amigos pela benevolecircncia do espiacuterito com uma esposa estamos unidos
pelo maior carinho pela uniatildeo fiacutesica pelo viacutenculo do sacramento e pela
partilha comum de todas as fortunas (De conscribendis epistolis Collected
Works Erasmus 25 p 139)
Basta ler o exordium da ldquoQueixa da Pazrdquo para a clara percepccedilatildeo de que o feminino
caracterizado pelo roterdamecircs se coaduna com uma visatildeo positiva da mulher e natildeo com o
estereoacutetipo negativo utilizado por ele nas confutaccedilotildees retoacutericas de alguns trechos de seus
escritos Dificilmente se podem esperar demonstraccedilotildees inequiacutevocas sobre questotildees
complexas como o papel da mulher de um homem que afirma que ldquoassuntos humanos
podem tomar tantas formas que respostas definitivas natildeo podem ser fornecidas para todos
elesrdquo (Rummel 1996 p 12 Terpstra 1997 p 696) Margolin (2000 p 10) com argumentos
anaacutelogos demonstra como os elogios e as criacuteticas agrave mulher presentes nos escritos de Erasmo
natildeo podem ser inferidos como seu ldquopensamento expliacutecitordquo devido agrave transposiccedilatildeo do eu
discursivo para uma personificaccedilatildeo diversa do autor e que era proacutepria do gecircnero literaacuterio por
ele utilizado
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Entretanto estas afirmaccedilotildees ao levarem em conta apenas os escritos sobre o
matrimocircnio e a personificaccedilatildeo da Loucura podem natildeo ter explicitado a caracterizaccedilatildeo do
feminino presente na ldquoQueixa da Pazrdquo que apresenta exatamente as qualidades contraacuterias ao
estereoacutetipo dos defeitos da mulher a Paz eacute amorosa saacutebia sublime intelectualmente superior
aos homens e delicada Eacute a mulher perfeita que oferece a si mesma para o benefiacutecio da
humanidade Ela eacute imortal face aos homens mortales Representa a mulher em seu esplendor
conforme os criteacuterios do que era considerado belo naquele contexto histoacuterico Veremos
ademais que aleacutem de mulher a Paz figura de um modo tatildeo elevado que mais se assemelha a
uma ninfa ou a uma deusa embora mantenha seus caracteres femininos segundo os moldes
predominantes no seacuteculo XVI adaptando seu ecircthos ao que o puacuteblico espera de quem
argumente sobre ela Sloane (2004 p 113) ao comentar os antigos fundamentos retoacutericos
para os autores do Renascimento escreveu
Em termos retoacutericos a questatildeo gira em torno do ecircthos ou seja os meios pelos
quais um falante ou escritor projeta uma autoimagem Eacute bem sabido que a
absorccedilatildeo com a retoacuterica ndash uma arte sobre a qual os pagatildeos como Ciacutecero
tinham muito a dizer ndash eacute uma das marcas do humanismo renascentista Ecircthos
identidade ou individualidade eacute um princiacutepio fundamental da retoacuterica E
caraacuteter por sua vez foi um dos principais temas do proacuteprio Renascimento um
periacuteodo em que personalidades altamente individualizadas colocaram seu selo
sobre as maravilhas artiacutesticas e intelectuais da eacutepoca O Renascimento foi um
tempo por outro lado em que a autoconstruccedilatildeo tornou-se possiacutevel em que o
passado e a linhagem se tornaram um pouco menos funcional ou louvaacutevel do
que a identidade que cada um era capaz de forjar para si mesmo
Autoconstruccedilatildeo bem como o ethos capturou a imaginaccedilatildeo dos leitores ndash por
meio de peccedilas de prosa curtas chamadas ldquocaraacuteteresrdquo atraveacutes das ldquoCaraacuteteresrdquo
receacutem-impressas de Teofrasto atraveacutes da retoacuterica revivida de Aristoacuteteles com
sua descriccedilatildeo de vaacuterias personagens que o orador pode encontrar em sua
audiecircncia Como estes uacuteltimos exemplos indicam ecircthos em particular teve
uma aplicaccedilatildeo praacutetica e comunicativa (Sloane 2004 p 113)
O discurso de uma personagem feminina natildeo ocupa somente algumas partes do
discurso como em algumas das antigas declamaccedilotildees mas de modo semelhante agraves ldquoHeroidesrdquo
ocupam a totalidade do discurso O discurso inteiro ao menos no ldquoElogio da Loucurardquo e na
ldquoQueixa da Pazrdquo satildeo caracteriacutesticos de uma personificaccedilatildeo feminina Vejamos agora por
meio de alguns trechos do discurso como a Paz se caracteriza como ela delineia seu proacuteprio
ecircthos retoacuterico
Jaacute no exordium (Queixa da Paz 18-21) percebe-se natildeo somente a divindade e o
feminino mas tambeacutem o exerciacutecio das tiacutepicas funccedilotildees maternas ldquofonte progenitora
91
aleitadora fomentadorardquo Note-se que natildeo somente substantivos e adjetivos deste gecircnero satildeo
utilizados para a caracterizaccedilatildeo da paz O discurso estaacute coerente com o caraacuteter feminino
sobretudo pela atribuiccedilatildeo da maternidade mais especificamente com o ato de amamentar ou
nutrir assim como o ato de tutelar ou cuidar que naquele tempo era praticado quase
exclusivamente pela figura feminina dentro da estrutura familiar tiacutepica da Antiguidade Se o
uso de substantivos com a terminaccedilatildeo trix pertence ao gecircnero feminino nos substantivos
utilizados por Erasmo nota-se ademais o campo semacircntico da maternidade Essa Paz se volta
ao homem suplicante pelo dom da concoacuterdia demonstrando como ela nutre alimenta protege
e enriquece o homem que eacute tratado como uma espeacutecie de filho pequeno lactente e
dependente A Paz de Erasmo eacute pois uma verdadeira matildee Esta tambeacutem eacute sedutora
perspicaz argumentiva o que se coaduna exatamente com a finalidade da retoacuterica persuadir
Os trechos que elevam o feminino contrastam com oque vitupera o masculino Se este
eacute honrado lento forte reflete o antigo ideal medieval de cavalaria ou mesmo da
combatividade masculina dos antigos heroacuteis da Greacutecia e de Roma Erasmo poreacutem ironiza
essa espeacutecie de honradez que defende ideal da guerra Afronta demonstrando que a
masculinidade atrelada ao heroiacutesmo agravada pelo fato de ser praticada por homens jaacute
maduros estaacute ligada a um caraacuteter sanguinaacuterio contraacuterio agrave proacutepria natureza humana
essencialmente paciacutefica
Ateacute aquilo que outrora era consenso entre os pagatildeos de que natildeo se devia
cobrir os cabelos brancos com um elmo como diz o poeta esse costume hoje
entre os cristatildeos tornou-se motivo de louvor Para Nasatildeo eacute coisa infame um
soldado velho enquanto para estes ser um guerreiro septuagenaacuterio eacute algo
magniacutefico (Queixa da Paz 474-476)
Eacute justamente o contraacuterio do ideal de cavalaria das ldquoChansonsrdquo ou mesmo da ldquoMorte
do Lidadorrdquo de Alexandre Herculano entre outras manifestaccedilotildees ideoloacutegicas presentes na
literatura do Romantismo o idoso ldquohonradordquo pelo fato de ir agrave guerra apesar da idade O
combatente idoso eacute aqui uma figura indigna merecedora de saacutetira ou vitupeacuterio Jaacute a Paz eacute
caracterizada como matildee procura proteger seus filhos os mortais pois ldquonatildeo haacute nada mais
infeliz para os homens do que ela [a guerra]rdquo (Queixa da Paz 25) Na terceira parte da obra
em conformidade com a tradiccedilatildeo retoacuterica grega (Retoacuterica 1360a) Erasmo desenvolve
argumentos de conveniecircncia econocircmica ou de honra para a manutenccedilatildeo da concoacuterdia A
maternidade desta se exerce ao garantir o bom desenvolvimento da sociedade Voltaremos a
esse ponto ao tratarmos da Paz enquanto saacutebia e proficiente em assuntos praacuteticos como
92
economia poliacutetica e diplomacia Se de um lado esta eacute caracterizada como mulher deve-se
observar que a declamaccedilatildeo de Erasmo tambeacutem a caracteriza como uma divindade uma deusa
35 A deusa Pax
Para Ciacutecero (De natura deorum II 70) os deuses e deusas estavam caracterizados de
modo a representar as paixotildees e os temperamentos humanos Afrodite por exemplo era a
mais bela das deusas aquela que se deixa levar pelo amor pelo poder da beleza e pelos
impulsos da sexualidade (Ibid II 69) Perseacutefone eacute aquela atraiacuteda pelo mundo espiritual
misteriosa miacutestica que vivia dividida entre o mundo sensiacutevel e o superior e capaz de ser
macabra e ter pensamentos sombrios (Ibid II 66) Ceres eacute a deusa matildee que se deleita com as
crianccedilas exalta a geraccedilatildeo da vida de sentimentos emoccedilotildees e experiecircncias Eacute a deusa do
cereal a nutriz e a matildee (Ibid I 40) Juno seria a mulher do poder a irmatilde e esposa de Zeus
Ciumenta vinga-se em filhos de outras mulheres ou nos espectadores Embora estabeleccedila
relaccedilotildees de fidelidade e lealdade reage agrave frustaccedilotildees com ira e natildeo com depressatildeo (Ibid II
66) Vesta permanecendo virgem revela a mulher em um espiacuterito de integridade Atena
deusa da sabedoria e da vitoacuteria eacute praacutetica desinibida e segura (Ibid II 67) Diana a deusa
atleacutetica ama e protege a natureza (Ibid II 68-69) Nesse sentido a mitologia seria uma
espeacutecie de cataacutelogo de caracteres Essas paixotildees estavam em harmonia com os seus atos de
modo que muitas vezes imitavam as paixotildees humanas fossem as boas chamadas virtudes
fossem as maacutes chamadas viacutecios Assim as deusas possuiacuteam seu proacuteprio ἦθος (caraacuteter) Seu
ἦθος admitia as paixotildees e as accedilotildees harmocircnicas como preceituavam as normas das antigas
poeacuteticas (Aristoacuteteles Poeacutetica VI 12-15 Horaacutecio Arte Poetica 153-178) Van der Poel
(1987) concebe que os criteacuterios horacianos sobre a caracterizaccedilatildeo das personagens foram
influentes e determinantes nas declamaccedilotildees renascentistas
Observe-se entatildeo a deusa Pax correspondente agrave deusa grega Εἰρήνη Esta foi
reconhecida oficialmente como deusa no governo de Otaacutevio Augusto que edificou no
Campus Martius o templo chamado de Ara Pacis e outro chamado de Forum Pacis Desse
modo natildeo havia sido objeto de culto oficial no periacuteodo republicano Filha de Juacutepiter e da
Iustitia era representada com um ramo de oliveiras um cetro e uma cornucoacutepia siacutembolos
associados agrave primavera eacutepoca da florescecircncia da harmonia e da abundacircncia Nota-se que
Erasmo ao caracterizaacute-la em seu exoacuterdio parece ter claramente a figura dessa deusa greco-
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romana em sua imaginaccedilatildeo sobretudo ao afirmar que nada floresce no mundo sem a proteccedilatildeo
da paz (Queixa da Paz 1-29) A imagem da cornucoacutepia torna-se evidente no seguinte trecho
ldquosem mim natildeo haacute nada que floresccedila em parte alguma sem mim nada eacute seguro nada eacute puro
ou santo e nada eacute alegre para os homens ou agradaacutevel aos ceacuteusrdquo (Queixa da Paz 20) Nos
antigos seu caraacuteter era descrito como gentil (Epigrama atribuiacutedo a Homero 15) doce (Greek
Lyric V Anonymous Fragmento 1021) administradora das riquezas da humanidade (Piacutendaro
Odes oliacutempicas 13 6ss) por fim a deusa da prosperidade (Virgiacutelio Georgicae 2 425ss) Agrave
Paz juntamente com a Justiccedila e a Lei cabe ldquovigiar as obras dos mortaisrdquo (Hesiacuteodo Teogonia
901-903) Como veremos mais detidamente Erasmo caracteriza a Paz ldquolouvada a uma soacute voacutes
pelos deuses e pelos homensrdquo (Queixa da Paz 17) ora como uma deusa ora como uma musa
ao modo antigo pois a pax fala se si mesma como necessaacuteria em relaccedilatildeo ao humano-
contigente (Queixa da Paz 20-21)
Aleacutem da relaccedilatildeo da deusa latina Pax com a grega Εἰρήνη a Paz conclama sua
audiecircncia como mortales entendido basicamente como uma forma de denominar a raccedila
humana mas que no contexto insinua uma oposiccedilatildeo a sua proacutepria imortalidade (Queixa da
Paz 259-260) Se os homens satildeo mortais a Paz os trata como tal afirmando-se como imortal
pois tal como na concepccedilatildeo antiga somente os deuses podem ser imortais (Ciacutecero De natura
deorum II 153) Outro exemplo desse lugar comum eacute encontrado em Saluacutestio que
costumava usar este vocaacutebulo para a diferenciaccedilatildeo dos homens em relaccedilatildeo agraves bestas e aos
deuses (Saluacutestio Bellum catilinae 1 5) Por outro lado haacute a concepccedilatildeo cristatilde predominante
no seacuteculo XVI de que somente as criaturas espirituais podem ser imortais tais como a alma
humana o ser angeacutelico e a essecircncia divina em conformidade com o cristianismo atraveacutes de
numerosas passagens do Novo Testamento (Cf Matheus 1028 Acta Apostolorum 227)
Quando Erasmo utiliza esta expressatildeo no contexto cristatildeo parece querer exaltar a
figura do que fala no caso da Paz uma vez que ao chamar aos homens ldquomortaisrdquo ela se
exclui desse conjunto e como a imortalidade eacute uma caracteriacutestica divina sugere os termos de
sua superioridade conferindo-lhe autoridade para invectivar de quem quer que seja ainda que
sejam altos dignitaacuterios eclesiaacutesticos ou mundanos Chamar de mortais seria entatildeo uma
maneira muito suave de entendecirc-la como dotada de uma autoridade divina A Paz toma o
papel da origem da benevolecircncia como ser divino que infunde sentimentos misericordiosos de
uns para com os outros tal como a divindade cristatilde Para isso utiliza a anaacutefora ldquosem mim
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natildeo haacute nada que floresccedila em parte alguma sem mim nada eacute seguro nada eacute puro ou santo e
nada eacute alegre para os homens ou agradaacutevel aos ceacuteusrdquo (Queixa da Paz 20)
Desprende-se aleacutem disso em outro trecho a dependecircncia do homem apontada pela
pax A noccedilatildeo de contingente e necessaacuterio no cristianismo eacute anaacuteloga agrave do homem para com
Deus Se aquele depende da Paz ela eacute uma deusa Esta eacute quem faz florescer quem torna tudo
puro e santo quem torna qualquer coisa que ja agradaacutevel aos ceacuteus Natildeo sem razatildeo logo no
exordium esta atribui a si mesma a honra de ser louvada pelos deuses e pelos homens como
administradora dos bens celestiais e terrenos (Queixa da Paz 18-21)
A deusa Paz ousa tratar o proacuteprio Cristo como seu arauto ou mensageiro ldquoCristo fora
enviado por minha causa e tomava conta de mimrdquo (Queixa da Paz 240-241) Nesse ponto a
Paz afirma ter sido anunciada por Cristo Ao tomar a natureza divina usa a autoridade dele
para se dignificar pois os cristatildeos sobretudo em uma sociedade que ainda natildeo havia se
cindido com as variantes confessionais da Reforma acredita que Jesus era um ser
misteriosamente idecircntico e distinto de Deus Pai Este teria encarnado para anunciar o Pai mas
a Paz se afirma como anunciada por ele Esta se identifica entatildeo com o proacuteprio ser que
deveria ser anunciado Esta tambeacutem se apresenta com a missatildeo dele enquanto pacificadora e
mediadora pois o proacuteprio sacrifiacutecio da missa para ser bem aceito pela divindade deve ser
oferecido em seu nome
Quando ordena que a oferenda seja depositada no altar e que natildeo seja
oferecida senatildeo depois da reconciliaccedilatildeo com o irmatildeo porventura natildeo ensina
abertamente que a concoacuterdia deve anteceder a todas as coisas e que nenhuma
oferenda eacute agradaacutevel a Deus se natildeo for recomendada por mim (Queixa da
Paz 318-322)
Nota-se a insinuaccedilatildeo de referir-se ao sacrifiacutecio da missa e comparar o papel da Pax ao
de Cristo Justifica-se esse artifiacutecio no lugar da explicitaccedilatildeo clara e direta devido agrave
interpretaccedilatildeo que alguns cristatildeos costumavam ter em comparaccedilotildees com a pessoa de Cristo
considerada pela teologia catoacutelica como intocaacutevel e incomparaacutevel Insinuar sem afirmar era
necessaacuterio para proteger-se contra possiacuteveis invectivas de teoacutelogos aacutevidos de inuacuteteis e
rancorosas controveacutersias teoloacutegicas lamentadas pela Paz Em oposiccedilatildeo agrave supracitada
referecircncia a duas suasoacuterias senequianas (Suasoacuteria I II e IV) nas quais encontram as questotildees
da guerra e dos combatentes como sujeitos de uma causa honesta Diante da honorabilidade
da guerra natildeo eacute dimimnuiacuteda nem pelo poder do auguacuterio ou pela verdade de feacute Entretanto
95
Erasmo procura tratar a paz como uma causa honesta respandando-se na Biacuteblia contra
aqueles que querem a guerra Desse modo enfraque o argumento juriacutedico filosoacutefico e
teoloacutegico da ldquoguerra justardquo com o poder da retoacuterica
36 A Paz enquanto saacutebia
Natildeo eacute de se estranhar que em sua caracterizaccedilatildeo a Paz aleacutem de feminina e ldquodivinardquo
seja delineada como saacutebia De fato esta desenvolve os seus argumentos poliacuteticos em seu
proacuteprio favor Nota-se a amplitude de aspectos abordados por ela a fim de reforccedilar o
argumento tal como recomendava Aristoacuteteles na defesa de uma causa nos discursos
deliberativos
Quanto agrave paz e agrave guerra eacute preciso conhecer o poder da cidade quanta forccedila jaacute
tem e a quanta pode chegar a natureza das forccedilas que tem agrave sua disposiccedilatildeo e
as que pode acrescentar e aleacutem disso que guerras travou e como planejou Eacute
necessaacuterio saber estas coisas natildeo soacute sobre a proacutepria cidade mas tambeacutem sobre
as cidades vizinhas Eacute necessaacuterio ainda saber com que povos se pode esperar
fazer a guerra a fim de manter a paz com as mais fortes e fazer a guerra contra
as mais fracas Eacute tambeacutem necessaacuterio saber se os recursos militares da cidade
satildeo iguais ou desiguais aos dos vizinhos pois nisto tambeacutem pode ser superior
ou inferior Aleacutem disso eacute necessaacuterio ter estudado natildeo soacute as guerras da proacutepria
cidade mas tambeacutem as das outras em funccedilatildeo dos seus resultados pois de
causas semelhantes resultam efeitos semelhantes (Retoacuterica I 4 9)
Tais lugares comuns sugeridos por Aristoacuteteles e recorrentes em diversos autores
antigos satildeo utilizados pela Paz entre os quais destaca-se logo de iniacutecio o argumento que
ocupa a primeira sessatildeo segundo o qual os animais devem ser imitados como exemplo uma
vez que os homens providos de razatildeo natildeo se comportam como tal mas sim como se presume
dos irracionais (Queixa da Paz 45-50)
Se na Antiguidade a piedade para com os deuses era um lugar-comum uacutetil para defesa
de uma causa (Aristoacuteteles Retoacuterica I 2 8) Erasmo aplica tal recurso retoacuterico agrave cultura cristatilde
utilizando-se de referecircncias dos Evangelhos a Cristo como modelo a ser emulado (Queixa da
Paz 261-268) A Paz natildeo somente o relembra como exemplum mas traz elementos da histoacuteria
greco-romana a serem admirados pelos seus leitores a fim de evitar-se os conflitos armados
(Queixa da Paz 618-621) Partindo dos argumentos de natureza religiosa para os praacuteticos
esta ousa apresentar motivaccedilotildees econocircmicas a favor do irenismo completando assim sua
oniciecircncia acerca de vaacuterias aacutereas do conhecimento (Queixa da Paz 782-797)
96
A segunda estrateacutegia de Erasmo para caracterizar a pax como apta a aconselhar os
homens em seus negoacutecios poliacuteticos sobretudo em defesa de si mesmo seria que este eacute
violento contra sua proacutepria raccedila A sabedoria desta se demonstra tambeacutem pelos argumentos
deliberativos que estimulam accedilotildees concretas para a manutenccedilatildeo da concoacuterdia e para evitar a
guerra Deve-se salientar ademais a proposta de um esquema jurisdicional entre os priacutencipes
europeus a fim de resolver conflitos dinaacutesticos territoriais e poliacuteticos (Rodrigues 2012 p
275-276)
Segundo Mack (1993 p 307-308) ao comentar o De Copia a analogia que eacute possiacutevel
identificar nos argumentos apresentados pela Paz em seu favor estaacute presente em alguns dos
paradigmas que Erasmo propocircs Colocaremos em paralelo esses meacutetodos com alguns dos
argumentos retoacutericos apresentados
Princiacutepio do De Copia 1 6 Ocorrecircncia na Querela
Apoacutes afirmar sumariamente
prosseguir com uma
explicaccedilatildeo mais ampla
(75A)
O tema do livro estaacute expliacutecito em seu tiacutetulo quando se fala
que a Paz foi rejeitada e perseguida em toda parte pelas
naccedilotildees Demonstra-se cada parte dessa proposiccedilatildeo ao longo
da Queixa da Paz
Enumerar singularmente as
causas do argumento (77A)
A Paz enumera as consequecircncias maleacuteficas da guerra e as
suas proacuteprias benesses como por exemplo ao confrontar o
incremento da cultura e da economia proporcionados por sua
influecircncia e o decliacutenio das duas durante a guerra
Perseguir as causas mais
elevadas (77C)
A Paz acredita que a guerra nasce nos coraccedilotildees humanos
atraveacutes da discoacuterdia dos interesses egosiacutesticos sobretudo de
certas classes mais influentes mas tambeacutem eacute sustentada com
argumentos incoerentes com a pietas cristatilde e o ensinamento
paciacutefico de Cristo
Enumerar as causas que
corroboram com o
argumento (77D)
A Paz enumera as diversas consequecircncias da guerra como o
estupro a peste a decadecircncia moral e econocircmica entre
outros mas tambeacutem enumera as benesses de sua lavra como
a ordem a tranquilidade a prosperidade e a concoacuterdia
universal
Propor e colorir com ricas Erasmo descreve coisas lugares pessoas e periacuteodos
97
descriccedilotildees a favor do
argumento (77E)
histoacutericos a fim de convencer seu leitor como por exemplo
ao descrever a Paz entre os animais ou na repuacuteblica romana
ou ainda entre os anjos ao passo que apresenta a guerra
entre os democircnios os eruditos e os religiosos assim como
se refere aos tempos de Roma ao passado proacuteximo da
guerra dos uacuteltimos doze anos entre outros
Incluir digressotildees quando
conveniente (77F)
Eacute possiacutevel identificar diversas digressotildees na declamaccedilatildeo
tais como sobre a natureza dos animais a legislaccedilatildeo de
sucessatildeo as consequecircncias econocircmicas entre outras
Amplificar argumentos
(77G)
A amplificaccedilatildeo tambeacutem eacute um recurso utilizado pela Paz
como no caso de citar os diversos animais que satildeo capazes
de viver em harmonia Erasmo tambeacutem amplifica o assunto
de Cristo Paciacutefico ao trazer agrave tona diversas passagens
irecircnicas atribuiacutedas a Cristo
A sabedoria da deusa Paz tambeacutem compreende a arte retoacuterica que atraveacutes da sua
declamaccedilatildeo tal como os antigos reacutetores apresenta seu discurso como um modelo de suasoacuteria
a favor da paz e vitupeacuterio contra a guerra
37 A Paz enquanto teoacuteloga
Erasmo utiliza argumentos teoloacutegicos na ldquoQueixa da Pazrdquo de forma separada e
complementar dedicando uma sessatildeo deles aos de origem biacuteblica e outra aos de inspiraccedilatildeo
antiga Hoffman (1994 p 227) defende a hipoacutetese de que ele tratava desses assuntos cristatildeos
inclusive com as antigas teacutecnicas retoacutericas
Nosso estudo sobre a hermenecircutica biacuteblica demonstrou como ele introduzia a
retoacuterica a serviccedilo da teologia Utilizava o meacutetodo alegoacuterico e tropoloacutegico de
forma a coordenar cristologia eclesiologia e eacutetica em um uacutenico caminho
humanista Seu meacutetodo exegeacutetico natildeo somente revela seus princiacutepios
hermenecircuticos mas tambeacutem sua teologia retoacuterica
Ele por exemplo coloca o ldquoCristo paciacuteficordquo como exemplo a ser seguido pelos
leitores Se este se diz cristatildeo deve zelar pela paz da mesma forma como Jesus o havia
recomendado aos seus disciacutepulos Nota-se poreacutem que no caso da Queixa da Paz o holandecircs
98
natildeo usa as passagens da Biacuteblia de modo a fazer uma verdadeira exegese como o realizou nas
diversas ediccedilotildees e traduccedilotildees dos escritos antigos e biacuteblicos mas delimita alguns trechos para
defender o ponto de vista irecircnico refutando alguns passos sobretudo do Antigo Testamento
que servem de fundamento para seus opositores e de incocircmodo para seu argumento Eacute
justamente nesses pontos que a Paz estabelece uma confutaccedilatildeo (Queixa da Paz 253-259)
A Paz antepotildee o Deus dos judeus com o Deus dos cristatildeos como forma de refutar o
Antigo Testamento com passos do Novo comportamento que se insere no contexto mais
amplo como ponto inequiacutevoco da teologia cristocecircntrica de Erasmo de que natildeo trataremos na
presente dissertaccedilatildeo por tema e pertinecircncia Ele parte de uma expressatildeo tiacutepica das canccedilotildees
medievais de exortaccedilatildeo agrave ldquoguerra santardquo inspiradas em excertos do Antigo Testamento como a
referecircncia ao Deus dos Exeacutercitos (Queixa da Paz 224-236)
Erasmo natildeo discute diretamente a natureza da expressatildeo ldquoDeus dos Exeacutercitosrdquo Prefere
passar pela questatildeo sem aprofundaacute-la com longas digressotildees filoloacutegicas e teoloacutegicas como os
teoacutelogos costumavam fazer nas questotildees sobre a guerra justa ao discutir as passagens a favor
e contra a guerra presentes na Biacuteblia (Cf Isaiacuteas 3218 Salmo 1245 Salmo 1276 Gaacutelatas
616 Isaiacuteas 527) Chomarat (1981 p 938) aponta a necessidade de sobrevivecircncia no meio
poliacutetico e eclesiaacutestico no qual Erasmo atuava como erudito como motivo significativo para a
escolha de um gecircnero que poderia dar liberdade para falar sem ser censurado ou punido
embora as reaccedilotildees contraacuterias ao ldquoElogio da Loucurardquo mostrem que ele natildeo estava totalmente
imune Ao comentar a caracterizaccedilatildeo da personagem emissora do discurso Sloane (2004 p
116) afirma ldquotratava-se de algo como uma maacutescara para o autorrdquo
A personificaccedilatildeo da Paz tambeacutem seria uma espeacutecie de camuflagem para Erasmo pois
embora natildeo se saiba se Erasmo previa que os teoacutelogos se voltariam contra seu irenismo eacute
certo que apoacutes a publicaccedilatildeo desse escrito somado sem duacutevida aos acontecimentos e
polecircmicas posteriores contextualizados na Reforma ocorreram reaccedilotildees contra a ldquoQueixa da
Pazrdquo especialmente na Espanha e na Franccedila
No primeiro paiacutes Zuntildeiga teria encontrado trechos ldquoluteranosrdquo (Bataillon 2007 p
124) No que se refere ao segundo Telle (1978 p 35) aponta que esta declamaccedilatildeo irecircnica
reacendeu justamente a ceacutelebre controveacutersia teoloacutegica ldquoacerca de guerra justardquo atacada por
Erasmo e por outros teoacutelogos catoacutelicos (Ibid p 33) inclusive protestantes como Calvino
99
(Ibid p 36) e defendida pelos teoacutelogos e juristas da Universidade de Paris A polecircmica
chegou a tal ponto que a traduccedilatildeo francesa da Querela publicada por Chevalier de Berquin foi
censurada pela Faculdade de Teologia da Sorbonne em 1ordm de junho de 1525 (Ibid p 32) e
renovada em 1527 (Phillips 1971 p 247)
Natildeo era a primeira polecircmica de Berquin Antes de traduzir para o francecircs as obras de
Erasmo ele havia se dedicado agraves obras de Lutero (Bataillon 2007 p 153) Tambeacutem natildeo era a
primeira polecircmica de Erasmo com os teoacutelogos da Sorbonne pois jaacute havia disputado com estes
por ocasiatildeo das suas traduccedilotildees biacuteblicas (Rodrigues 2012 p 338) Natildeo se deve desconsiderar
ademais os inconvenientes poliacuteticos que a defesa da paz poderia fazer surgir com os priacutencipes
cristatildeos tais como Henrique VIII e Francisco I ciosos das incursotildees militares e ceacutelebres pelos
seus feitos guerreiros (Telle 1978 p 35)
Erasmo com sua ldquoQueixa da Pazrdquo entrava em conflito direto e em plena polecircmica
com teoacutelogos escolaacutesticos e com poliacuteticos influentes e beligerantes a ponto de se verificar a
condenaccedilatildeo sistemaacutetica da Universidade de Lovaina contra toda sua obra literaacuteria e a
mudanccedila de Erasmo para Basileia Suiacuteccedila (Moya Bedoya 2008 p 203) Se natildeo se pode
conceber que o roterdamecircs teria previsto as controveacutersias suscitadas pelos seus escritos
inclusive por uma de suas traduccedilotildees natildeo seria exagero afirmar que este expunha os priacutencipes
e sua hipocrisia de um modo incisivo convincente e em certos trechos satiacuterico
Deve-se por fim considerar que na Queixa da Paz Erasmo natildeo eacute um pacifista a
ponto de negar qualquer forma de conflito armado (Kinsella e Carr 2007 p 55-56) Sua
praacutetica de expor em seus escritos ldquoutramque partemrdquo ou seja os dois lados da questatildeo
(Remer 1994 p 313) como correu no caso da guerra entre os cristatildeos considerada cruel e a
guerra dos cristatildeos contra os turcos considerada justa aleacutem de muitos fatores sobretudo
quando este assume posiccedilotildees ldquohumanistas-cristatildesrdquo contribuiu para que sustentasse a fama de
vir duplex tal como o alcunhou Lutero (Weiler 1997 p 11)
Em termos teoloacutegicos pouca diferenccedila se verifica entre os teoacutelogos pregadores das
cruzadas contra o islatilde nos seacuteculos XII e XIII e alguns trechos do escrito de Erasmo que
argumenta acerca da oportunidade da guerra contra os turcos e da sua inconveniecircncia entre os
cristatildeos (Queixa da Paz 681-685)
100
38 A Paz enquanto viacutetima
Essa matildee zelosa saacutebia divina apresenta-se tambeacutem como viacutetima da guerra e do
instinto sanguinaacuterios dos homens Nota-se assim outra estrateacutegia de persuasatildeo sugerida pela
tradiccedilatildeo dos manuais de retoacuterica pois falar em primeira pessoa de seus proacuteprios males atrai a
compaixatildeo ou o amor dos ouvintes (Retoacuterica a Herecircnio I 8 2) Dessa forma o paacutethos
movido pela Pax no leitor eacute a piedade tal como Aristoacuteteles o explicava em sua ldquoRetoacutericardquo (II
8 2) ldquoa piedade consiste numa certa pena causada pela apariccedilatildeo de um mal destruidor e
aflitivo que afeta quem natildeo merece ser prejudicado que pode prejudicar-nos as noacutes mesmos
ou a algum dos nossos principalmente quando esse mal nos ameaccedila de pertordquo Eacute o que
transparece no exordium sobretudo no seguinte trecho ao estabelecer a antiacutetese entre o seu
amor e a maldade dos homens
E embora eu preferisse somente irar-me contra eles sou antes compelida a me
condoer deles a ter misericoacuterdia deles Eacute decerto desumano afastar de si
aquele que de alguma forma nos ama eacute ingrato hostilizar aquele que merece o
bem eacute iacutempio afligir a progenitora e servidora de todos (Queixa da Paz 8-11)
Aristoacuteteles (Retoacuterica I 12 1) tambeacutem afirmava que convinha que se caracterizassem
os injusticcedilados em primeiro lugar pelo fato de serem necessitados A paz eacute extremamente
necessaacuteria ao homem logo persegui-la se configura como injusto e digno de censura A
intenccedilatildeo seria natildeo somente produzir a piedade para com ela mas a indignaccedilatildeo contra quem
persegue e destroacutei aquela que a tantos beneficia Aristoacuteteles apresenta a indignaccedilatildeo como o
contraacuterio da piedade A primeira muitas vezes nasce da segunda pois quem se indigna contra
os reveses imerecidos tem piedade de quem imerecidamente foi prejudicado (Ibid II 9 2)
Logo no iniacutecio da primeira parte que trata do homem guerreiro como inferior agraves feras a Paz
retoma a estrateacutegia de apresentar-se como viacutetima a fim de mover o pathos da compaixatildeo dos
leitores e acrescenta em seu caraacuteter a capacidade de perdoar ldquoSe feras me desprezassem desse
modo eu o suportaria mais facilmente e atribuiria essa ofensa agrave natureza que inserira nelas
uma iacutendole selvagemrdquo (Queixa da Paz 31-32)
Apoacutes descrever longamente a onipresenccedila dos litiacutegios clericais inclusive entre os
religiosos que deveriam primar pela perfeiccedilatildeo dos conselhos evangeacutelicos a Paz chega ao
cuacutemulo de mostrar-se sem lugar para morar entre os homens como uma desabrigada e
desamparada em razatildeo da onipresenccedila da guerra
101
Mas pobre de mim Tambeacutem aqui verifico que a cidade estaacute totalmente
maculada pelas dissidecircncias de seus habitantes a tal ponto que quase natildeo se
pode achar uma uacutenica casa na qual exista um lugar para mim por alguns dias
Entretanto deixo de lado o povo que tal como o mar eacute arrebatado por seus
ardores e me recolho (Queixa da Paz 127-130)
Apela pois agrave clemecircncia do coraccedilatildeo humano Como viacutetima exige compaixatildeo e
procura convencer o homem atraveacutes de um discurso que move agraves emoccedilotildees sobretudo agrave
comiseraccedilatildeo ao atrair a simpatia expondo os proacuteprios males
39 Conclusatildeo do capiacutetulo
Erasmo inovou ao trazer para a declamaccedilatildeo uma personificaccedilatildeo feminina A Paz
poreacutem natildeo eacute somente caracterizada como uma mulher com as qualidades e defeitos
estereotipados nos escritos retoacutericos erasmianos que uma visatildeo simplista poderia taxar como
preconceituosa uma vez que reproduz uma valorizaccedilatildeo negativa da mulher Se eacute verdede que
Erasmo tambeacutem reproduz estereoacutetipos masculino com tons natildeo menos severos eacute certo de que
para ele o declamador deve estabelecer o caraacuteter da personagem que fala de um modo
adequado agraves expectativas da audiecircncia fictiacutecia e dos leitores reais a fim de que o discurso
cumpra a finalidade persuasiva que eacute proacutepria do gecircnero Sem a caracterizaccedilatildeo adequada
simultaneamente agrave audiecircncia e agrave personificaccedilatildeo a declamaccedilatildeo natildeo seria persuasiva pois iria
contrariar o princiacutepio retoacuterico da verossimilhanccedila
A Paz eacute abstrata feminina mais precisamente maternal mas tambeacutem eacute uma espeacutecie de
divindade Deve-se poreacutem considerar que sua caracterizaccedilatildeo como deusa natildeo contemplaria
as paixotildees tiacutepicas da mitologia greco-romana mas uma deusa sem defeitos como o Deus
cristatildeo Esta natildeo eacute somente anunciada por Cristo mas eacute capaz de disputar pela sua proacutepria
causa com todos os argumentos possiacuteveis e sugeridos pela antiga tradiccedilatildeo retoacuterica
Parafraseando Quintiliano a Paz entatildeo segue aquele ditame de ser uma ldquomulier divina bona
dicendi peritardquo Esta argumenta baseada em lugares comuns extraiacutedos da natureza (rerum
natura) da teologia biacuteblica e patriacutestica da economia da poliacutetica e de questotildees diplomaacuteticas
pertinentes no seacuteculo XVI como uma ldquoseguidorardquo daquele conselho de Ciacutecero segundo o
qual o orador deve ser proficiente tambeacutem nas leis na histoacuteria e na filosofia para bem
argumentar Aleacutem de saacutebia a paz eacute bondosa como uma deusa ao modo cristatildeo Configurada
como uma abstraccedilatildeo feminina a paz se dirige ao clero e aos priacutencipes com a autoridade de
uma deusa com a estrateacutegia feminina com a bondade de uma matildee com argumentos de uma
102
saacutebia com a piedade de uma teoacuteloga a fim de persuadir com autoridade suficiente a favor de
sua proacutepria causa Esta seria natildeo a doutrina escolaacutestica da ldquoguerra justardquo mas retoacuterica
humanista (erasmiana) da ldquopaz justardquo
103
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A presente dissertaccedilatildeo de mestrado teve por objeto de pesquisa o estudo da
declamaccedilatildeo ldquoQueixa da Pazrdquo publicada em 1517 por Erasmo de Rotterdam Como resultado
foram apresentados um estudo introdutoacuterio sobre o gecircnero antigo declamaccedilatildeo sua recepccedilatildeo
no Renascimento e a primeira traduccedilatildeo direta do latim para o portuguecircs brasileiro O texto
fonte utilizado foi extraiacutedo da ediccedilatildeo criacutetica da obra de Erasmo (Desiderii Erasmi Roterodami
Opera Omnia Amsterdam 1978)
Ao longo do estudo introdutoacuterio discorremos sobre a definiccedilatildeo e as principais
propriedades da declamaccedilatildeo Delineamos esse gecircnero discursivo como originaacuterio na Greacutecia
onde se chamava meleteacute recebido pelos latinos com o nome de declamaccedilatildeo Distinguimos
dois ambientes nos quais era praticada primeiro nas escolas de retoacuterica quando nos
manuais estava situada entre os uacuteltimos exerciacutecios das progymnaacutesmata caracterizado como
um treinamento da performance ou da pronuacutencia e a simulaccedilatildeo do discurso de uma
personagem histoacuterica ou mitoloacutegica segundo em reuniotildees sociais ou seja a praacutetica de
discursos fictiacutecios tambeacutem atribuiacutedos a personagens histoacutericas ou mitoloacutegicas em um
ambiente restrito e de niacutevel cultural e econocircmico elevado praticado por pessoas que jaacute tinham
o haacutebito da oratoacuteria puacuteblica seja judicial seja deliberativa a fim de exercitar-se ou mesmo
deleitar os convivas Tal praacutetica assemelhava-se ao haacutebito da recitatio na qual os antigos
divulgavam em leituras puacuteblicas a uma audiecircncia seleta novos escritos em prosa ou em
versos
Verificamos que nos dois ambientes nos quais se praticava a declamaccedilatildeo o principal
objetivo e desafio do gecircnero seria a caracterizaccedilatildeo adequada da personagem fictiacutecia
selecionada onde a representaccedilatildeo do ecircthos discursivo deveria adequar-se agrave personalidade agrave
ocasiatildeo ao tema agrave audiecircncia de modo que o discurso fosse maximamente persuasivo e
verossiacutemil Desse modo a principal figura de linguagem contemplada na declamaccedilatildeo seria a
prosopopeia
Quanto agraves personagens correntemente utilizadas nas antigas declamaccedilotildees
predominavam as masculinas muito embora tambeacutem se utilizassem as femininas conquanto
em posiccedilotildees inferiores ou subalternas Embora natildeo fosse usual a utilizaccedilatildeo de personificaccedilotildees
104
no sentido de abstraccedilotildees ou coisas que tomam a voz nota-se o uso de personagens femininas
em posiccedilatildeo de protagonista em discursos que ocupavam a integridade da obra nas ldquoHeroidesrdquo
de Oviacutedio muito embora estas natildeo pertencessem ao gecircnero declamaccedilatildeo mas ao epistolar
Tais dados foram significativos ao constatar esta adiccedilatildeo na declamaccedilatildeo erasmiana ao
apresentar uma personificaccedilatildeo feminina como remetente do discurso
Quanto ao uso de personagens histoacutericas como eacute habitual em vaacuterios gecircneros
discursivos natildeo era preocupaccedilatildeo primordial da declamaccedilatildeo a exposiccedilatildeo histoacuterica exata dos
eventos ou das pessoas mas sim a caracterizaccedilatildeo adequada e verossiacutemil das personagens
atraveacutes do discurso direto pois o objetivo natildeo era narrar a histoacuteria mas apresentar o discurso
adequado de determinado personagem para determinada audiecircncia segundo as sensibilidades
desta para com os estereoacutetipos jaacute consignados a respeito das prosopopeias selecionadas
Atestamos que a defesa dos dois lados contraacuterios da causa ou a escolha de apenas um
dos lados variou de acordo com a ocasiatildeo mas era costume apresentar os dois lados da causa
nas escolas de retoacuterica a fim de exercitar o aluno o que natildeo era predominante na declamaccedilatildeo
praticada pelos oradores mais experientes ou em algumas declamaccedilotildees escritas
Quanto agraves espeacutecies da declamaccedilatildeo constatamos a existecircncia de escritos em gecircnero
demonstrativo como elegias e panegiacutericos sobretudo em grego filosoacutefico praticados nas
escolas de retoacuterica deliberativo tambeacutem chamados de suasoacuterias e nos ambientes de discussatildeo
puacuteblica e na simulaccedilatildeo de temas tiacutepicos do gecircnero deliberativo por ocasiatildeo de temas
histoacutericos com a finalidade de suadir os cidadatildeos a optarem entre outros assuntos pela paz
ou pela guerra pelo aumento ou diminuiccedilatildeo de impostos e outras decisotildees de interesse
puacuteblico judicial tambeacutem chamados de causae ou controuersiae por simularem temas e
ocasiotildees proacuteprias dos tribunais
Ainda sobre a declamaccedilatildeo antiga percebemos que essa durante a transiccedilatildeo de regime
poliacutetico da repuacuteblica para o impeacuterio tomou paulatinamente o lugar da antiga oratoacuteria
tornando-se o gecircnero apropriado para a praacutetica da emissatildeo dos discursos em forma oral e
escrita
Os atuais corpora das declamaccedilotildees gregas e latinas mais amplos datam justamente do
periacuteodo imperial e foram escritos em latim e grego dependendo da localizaccedilatildeo dos seus
produtores assim Quintiliano Secircneca que viveram na parte latina escreveram sobre a
105
declamaccedilatildeo ou declamaccedilotildees nessa liacutengua ao passo que Plutarco Heacutelio Aristides Luciano de
Samosata Libacircnio de Antioquia e Coriacutecio de Gaza as escreveram em grego Portanto
embora as origens do termo e das referecircncias agrave declamaccedilatildeo contidas nos manuais de retoacuterica
remontem a periacuteodos anteriores as principais fontes da declamaccedilatildeo grega e a latina que
chegaram ateacute noacutes datam da eacutepoca imperial
A renovaccedilatildeo deste gecircnero durante o Renascimento estaacute diretamente relacionada agrave
recuperaccedilatildeo e reediccedilatildeo nos seacuteculos XV e XVI dos corpora antigos que continham
declamaccedilotildees ou que tratavam do gecircnero como eacute o caso da reediccedilatildeo do texto completo da
ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo de Quintiliano em 1416 Tal recuperaccedilatildeo partiu do norte da Itaacutelia
primeiramente com Salutati e posteriormente com Lourenccedilo Valla A partir deste chegou ao
norte da Europa sendo praticada nos dois primeiros dececircnios do seacuteculo XVI por Erasmo e
More A partir desses dois humanistas sobretudo pela influecircncia do roterdamecircs foi utilizada
por outros contemporacircneos como Vives Cardano e Agrippa
O contato com as declamaccedilotildees antigas por Erasmo deu-se basicamente sob quatro
formas que classificamos natildeo necessariamente em ordem cronoloacutegica primeiro como leitor
no periacuteodo em que ainda era estudante de teologia ao ter conhecimento das obras que
tratavam a respeito como eacute as de Quintiliano e Ciacutecero (Chomarat 1981) segundo como
editor ao publicar em forma impressa as declamaccedilotildees de Secircneca o Velho terceiro como
tradutor ao transpor do grego para o latim algumas das declamaccedilotildees de Luciano Libacircnio e
Plutarco quarto como escritor ao publicar onze declamaccedilotildees tratadas explicitamente por ele
jaacute no tiacutetulo das obras ou classificadas por ele como tal em epiacutestola a Joatildeo Botzheim (1523)
entre as quais as mais ceacutelebres satildeo o ldquoElogio da Loucurardquo e a ldquoQueixa da Pazrdquo
A escrita desta natildeo foi posterior a novembro de 1516 e foi publicada em 1517 quando
Erasmo era conselheiro de Carlos V e residia em Lovaina Beacutelgica A obra foi dedicada ao
Abade Antocircnio van Bergen e foi possivelmente redigida a pedido do chanceler Joatildeo Sauvage
O evento histoacuterico proacuteximo que teria motivado a redaccedilatildeo desse discurso em favor da paz
foram as guerras da Liga de Cambrai (1508-1510) da Liga Santa (1511-1513) e por fim da
alianccedila franco-veneziana (1513-1516) cujos conflitos dispersos pela Europa tambeacutem
atingiam os locais de residecircncia ou frequentados pelo roterdamecircs
106
A caracteriacutestica mais marcante desta declamaccedilatildeo de Erasmo eacute que natildeo apresenta
qualquer introduccedilatildeo ou conclusatildeo narrativa como por exemplo costuma ocorrer em algumas
das declamaccedilotildees senequianas mas transcrevia o discurso direto emitido por uma
personificaccedilatildeo abstrata Trata-se de uma repeticcedilatildeo da praacutetica registrada no ldquoElogio da
Loucurardquo Natildeo haacute diaacutelogos no texto como aliaacutes eacute proacuteprio de uma declamaccedilatildeo entendida
geralmente como um monoacutelogo muito embora o roterdamecircs classificasse na epiacutestola a Joatildeo
Botzheim (1523) o diaacutelogo ldquoAntibaacuterbarosrdquo como uma declamaccedilatildeo ainda que este apresente
mais de uma personagem cada qual com vaacuterios discursos diretos reciprocamente
direcionados
A disposiccedilatildeo retoacuterica da obra segue a tradiccedilatildeo antiga quanto agrave estrutura baacutesica
proecircmio narratio confirmaccedilatildeo e epiacutelogo Mais especificamente podemos dividir a Queixa
da Paz nas seguintes partes com a numeraccedilatildeo correspondente (os nuacutemeros se referem agraves
linhas da jaacute mencionada ediccedilatildeo criacutetica da obra de Erasmo) proecircmio (προοίμιονexordium) (4-
29) Narratio (διήγηζις narratio) (30-112) a primeira parte trata da paz entre os animais (30-
112) a segunda parte descreve a destruiccedilatildeo da paz entre os homens (113-202) a confirmaccedilatildeo
(πίζηις probatio) cuja primeira parte apresenta o exemplo de Cristo paciacutefico modelo a ser
seguido pelos que se dizem cristatildeos (203-401) a segunda parte apresenta o exemplo dos
pagatildeos (402-435) a terceira parte argumenta como o Estado as leis o comeacutercio e o povo satildeo
prejudicados pela guerra (436-594) a quarta parte sugere accedilotildees para que o priacutencipe evite a
guerra (595-871) e por fim finaliza-se com o epiacutelogo constituiacutedo de vaacuterios vocativos
(επίλογοςperoratio) (872-918)
Em conformidade com a tradiccedilatildeo antiga das declamaccedilotildees senequianas notou-se a
utilizaccedilatildeo por Erasmo de sentenccedilas ao longo do discurso com o objetivo de tornar o texto
mais expressivo Quanto agraves fontes das sentenccedilas podemos classificaacute-las em trecircs grupos
primeiro as antigas como Platatildeo (9 e 551) Liacutevio (1-3) Homero (75) Oviacutedio (162) Siacutelio
Itaacutelico (210) Ciacutecero (218 e 758) Virgiacutelio (467 e 670) Plauto (764) Pliacutenio (57) Horaacutecio
(152) e Aristoacuteteles (391) segundo as citaccedilotildees de adaacutegios selecionados e remodelados pelo
roterdamecircs em sua proacutepria coletacircnea de ldquoAdaacutegiosrdquo (linhas 18 22 62 77 91 155 505 553-
556 803-804 866 e 906) terceiro as de origem biacuteblica e patriacutestica especialmente ao tratar de
Cristo Paciacutefico A versatildeo latina da biacuteblia citada ao longo da declamaccedilatildeo eacute a Vulgata de
Jerocircnimo
107
Em harmonia com Herding (1974 p 6) nota-se em algumas partes da obra
semelhanccedilas com o gecircnero espelho do priacutencipe e a repeticcedilatildeo de alguns argumentos irecircnicos jaacute
apresentados por Erasmo em escritos como o ldquoPanegiacuterico a Feliperdquo e a ldquoInstituiccedilatildeo do
priacutencipe cristatildeordquo A semelhanccedila averiguada aleacutem da dimensatildeo temaacutetica (paz e guerra)
tambeacutem contempla o objetivo suasoacuterio de certas partes do discurso da paz ao dirigir-se ao
governante como quem pretende ensinar ou aconselhar baseado em valores eacuteticos tiacutepicos dos
humanistas colocando os interesses humanos acima de quaisquer outros princiacutepios Em
Erasmo mais especificamente satildeo evocados os princiacutepios cristatildeos tratados como perfeitos
muito embora ao longo do discurso a praacutetica apontada para os seguidores de Cristo natildeo seja
concorde com os valores cristatildeos elogiados pela Paz Ao que parece os proacuteprios argumentos
teoloacutegicos seguem esta finalidade ao omitir os argumentos biacuteblicos e filosoacuteficos favoraacuteveis agrave
guerra justa O texto sobrepotildee a vida humana acima de qualquer outro princiacutepio seja a honra
seja a proteccedilatildeo dos interesses dinaacutesticos ou estatais Inclusive os argumentos econocircmicos satildeo
alinhavados segundo esta finalidade de proteccedilatildeo do indiviacuteduo sobretudo o indefeso ao
mencionar explicitamente as possiacuteveis ofensas contra a mulher e os camponeses (povo)
Conveacutem ainda ressaltar que o humanismo erasmiano eacute essencialmente cristatildeo pois
fundamenta seus argumentos harmonicamente com as fontes biacuteblicas e patriacutesticas mas eacute
tenazmente contraacuterio agraves incoerecircncias para com a feacute e a eacutetica cristatilde por parte daqueles que mais
especialmente deveriam propagaacute-la ou praticaacute-la o clero e os governantes
A obra em estudo apresentou ainda traccedilos do gecircnero deliberativo o aconselhar
(suadere) o auditoacuterio (os priacutencipes e os cleacuterigos) a favor da paz e a evitar a guerra mas
tambeacutem algumas carateriacutesticas do gecircnero demonstrativo ou epidiacutetico ao elogiar a paz e
vituperar contra a guerra Tal constataccedilatildeo aproxima simultaneamente este escrito aos
panegiacutericos e algumas declamaccedilotildees escritas em grego pertences ao gecircnero demonstrativo e
agraves suasoacuterias senequianas especialmente as que tratam da paz e da guerra (Suasoacuterias I II e
IV) A mescla dos trecircs gecircneros discursivos (demonstrativo deliberativo e judicial) natildeo era
novidade e era mesmo reconhecida na ldquoInstituiccedilatildeo Oratoacuteriardquo uma vez que ateacute no gecircnero
judicial como se lecirc na ldquoRetoacuterica a Herecircniordquo era comum o orador vituperar contra os defeitos
morais do oponente ou elogiar as virtudes do seu cliente a fim de angariar a simpatia ou a
antipatia do juiz ou do juacuteri conforme o seu interesse
108
Quanto agrave personificaccedilatildeo da paz aleacutem de sua jaacute mencionada semelhanccedila com as
prosopoeias femininas das ldquoHeroidesrdquo verificamos ainda certa semelhanccedila com as
personagens femininas abstratas biacuteblicas da Sabedoria e da Loucura Poreacutem a Paz
caracterizada por Erasmo se diferencia destas por apresentar um discurso direto que ocupa a
integralidade do livro e natildeo somente uma parte diminuta Ademais a Paz se assemelha agrave
prosopopeiaa da amada presente em ldquoCacircntico dos Cacircnticosrdquo pelo fato de tambeacutem emitir
discursos diretos e ser protagonista do gecircnero feminino mas por outro lado se diferencia na
medida em que a amada dialoga com outras personagens ao longo do livro
Em relaccedilatildeo agrave Antiguidade a adiccedilatildeo verificada da declamaccedilatildeo erasmiana tanto no
ldquoElogio da Loucurardquo como na ldquoQueixa da Pazrdquo eacute a atribuiccedilatildeo da integralidade do discurso
direto a uma personificaccedilatildeo feminina Esta eacute caracterizada como matildee por nutrir os homens
como filhos como viacutetima de uma atroz perseguiccedilatildeo em toda parte como saacutebia que aconselha
os priacutencipes ao modo do gecircnero Espelho dos Priacutencipes a que conservem a paz e evitem de
todos os modos a guerra O discurso utiliza-se de argumentos filosoacuteficos como eacute o caso do
lugar comum segundo o qual se o homem eacute racional deve ser tatildeo ou mais paciacutefico do que os
animais os quais natildeo satildeo dotados de razatildeo e por consequecircncia de palavra Por outro lado
utiliza-se de argumentos teoloacutegicos biacuteblicos ao apresentar os exemplos de Davi Salomatildeo e
de Cristo Paciacutefico como modelos da opccedilatildeo pela paz proacutepria aos seguidores da religiatildeo cristatilde
A paz utiliza-se ainda de argumentos de ordem poliacutetica social e econocircmica primeiro no que
tange agrave poliacutetica eacute mantenedora da estabilidade do reino e da sucessatildeo hereditaacuteria monaacuterquica
assim como do livre tracircnsito entre as fronteiras dos paiacuteses europeus segundo no que diz
respeito aos aspectos sociais aponta a desestruturaccedilatildeo da vida da cidade por causa da
manutenccedilatildeo de um corpo de mercenaacuterios habituados agrave violecircncia junto a uma populaccedilatildeo
indefesa terceiro com argumentos de dimensatildeo econocircmica indica os diminutos gastos da
resoluccedilatildeo paciacutefica das controveacutersias interestatais em comparaccedilatildeo com o modo beacutelico e os
empecilhos naturais ao comeacutercio em situaccedilotildees de guerra ou siacutetio
A paz mostra-se assim como portadora do ideal da tradiccedilatildeo retoacuterica antiga recebida e
imitada no Renascimento ao caracterizar-se como aquilo a que poderiacuteamos chamar mulier
bona dicendi perita Ela utiliza-se dos diversos recursos retoacutericos proporcionados pela
declamaccedilatildeo especialmente a simulaccedilatildeo de um discurso fictiacutecio em formato de prosopopeia
para mover seus leitores a sentimentos e atitudes paciacuteficas Utiliza-se da comiseratio ao
109
colocar-se como viacutetima e evoca a injusta reaccedilatildeo dos homens para com seus inumeraacuteveis e
incontestes benefiacutecios O homem guerreiro contraria a razatildeo mostra-se sem compaixatildeo para
com seus semelhantes e contradiz a proacutepria essecircncia do cristianismo que apresenta o Priacutencipe
da Paz como ideal a ser seguido e imitado No caso dos detentores de influecircncia social como
cleacuterigos e eruditos a paz estimula que propaguem o ideal da paz Por fim ao dirigir-se aos
governantes propotildee a si mesma como o esteio mestre de uma poliacutetica proacutespera e humana
110
111
NOTA PREacuteVIA AO TEXTO LATINO E Agrave TRADUCcedilAtildeO PORTUGUESA
COMENTADA
Quinhentos anos depois da publicaccedilatildeo da ldquoQueixa da Pazrdquo em 1517 suas palavras
ecoam em pleno seacuteculo XXI com surpreendente atualidade Esta declamaccedilatildeo natildeo somente se
apresenta como um primor da recepccedilatildeo e da imitaccedilatildeo dos antigos claacutessicos Nela a
personificaccedilatildeo da paz lamenta contra a guerra e argumenta a favor de si mesma com aquele
estilo elegante irocircnico e incisivo de Erasmo Suas argumentaccedilotildees contemplam praticamente
todas as dimensotildees de relacionamento humano no interior do coraccedilatildeo humano na famiacutelia
nas relaccedilotildees interpessoais e entre os estados Se de um lado muitos pensadores jaacute discorreram
sobre a paz que tal a ouvirmos falar de si mesma Eacute exatamente este o grande presente que
Erasmo proporcionou aos seus leitores naquele iniacutecio do seacuteculo XVI e cuja primeira traduccedilatildeo
para o portuguecircs brasileiro o leitor tem em matildeos
Esta traduccedilatildeo estaacute precedida da carta-proecircmio de Erasmo a Felipe que foi publicada
juntamente com a ldquoQueixa da Pazrdquo As notas parcas em extensatildeo e quantidade tecircm o objetivo
de esclarecer algumas variantes entre as ediccedilotildees expressotildees que remetem aos antigos
dificuldades de traduccedilatildeo e informaccedilotildees pertinentes sobre lugares adaacutegios e personagens
citados no texto natildeo evidentes para muitos leitores modernos Algumas destas referecircncias
foram baseadas nas notas da ediccedilatildeo criacutetica propostas por Herding (1977) nas notas das
traduccedilotildees publicadas por Margolin (1992) e Pinto (1999) e no estudo de Tunberg (1996) Os
comentaacuterios em nota estatildeo redigidos de forma que sejam explicativos para pessoas natildeo
especializadas nos estudos claacutessicos ou nas referecircncias histoacutericas ou eclesiaacutesticas utilizadas
por Erasmo em uma possiacutevel publicaccedilatildeo desta traduccedilatildeo O texto latino e a numeraccedilatildeo entre
colchetes das linhas contidas seguem a ediccedilatildeo criacutetica da presente na Desiderii Erasmi Opera
Omnia (IV-2 1977 p 59-101) Utilizamo-nos do dicionaacuterio de Gaffiot como material de
consulta aleacutem de outras traduccedilotildees da obra para outras liacutenguas conforme listamos na
bibliografia Esta traduccedilatildeo natildeo visa simplificar o texto de Erasmo a fim de adaptaacute-lo ao
mercado livresco O puacuteblico-alvo de nossa traduccedilatildeo assemelha-se agravequele do roterdamecircs ou
seja o leitor erudito em geral e ao acadecircmico em particular Nossa traduccedilatildeo visa ser o mais
fiel possiacutevel agrave declamaccedilatildeo Essa fidelidade ao gecircnero exige entatildeo o cuidado em relaccedilatildeo ao
niacutevel de linguagem utilizado a fim de manter natildeo somente a extensatildeo dos paraacutegrafos os
112
quiasmos e as anaacuteforas utilizadas mas tambeacutem as imagens retiradas da cultura claacutessica e
biacuteblica
113
Texto latino da ediccedilatildeo criacutetica
[1] Clarissimo praesuli traiectensi
Philippo Erasmo Roteramus S D
[3] Gratularer tibi Philippe
praesul non minus vitae ornamentis
quam summorum ducum imaginibus
clarassime quod tanti muneris honore sis
auctus ni compertum [5] haberem quam
invitus susceperis quamque gravate
optimi maximique principis Caroli
autoritate fueris adactus cuius alioqui
charitati nihil non eras daturus
[7] Atque haec ipsa res spem
nobis certissimam facit fore ut cum laude
perfungaris suscepto quandoquidem
Plato vir exquisitissimi planeque divini
iudicii non alios existimat ad
rempublicam gerendam idoneos quam
eos qui [10] huc nolentes pertrahuntur
[10] Auget autem nostram de te
fiduciam quoties in mentem venit et cui
tu succedas fratri et quo patre sitis ambo
profecti
[11] Nam David vir eruditus iuxta
ac prudens permultis annis sic locum
istum tenuit ut suis ornamentis
Traduccedilatildeo
Erasmo de Roterdam a Felipe Bispo de
Utrecht saudaccedilotildees43
Distinto como tu eacutes bispo Felipe natildeo
menos pelo esplendor da vossa vida do que pela
grande e principesca linhagem eu me
congratularia contigo o acreacutescimo do seu novo e
mais honroso cargo se eu natildeo soubesse com que
relutacircncia o assumiste e com que dificuldade
foste impelido (a isso) pela autoridade do melhor
e maior dos priacutencipes Carlos pelo qual sentes
tal afeiccedilatildeo que concordarias com qualquer coisa
Eacute justamente isso que nos deu a segura
esperanccedila de que tu desempenhes teu encargo
com louvor Platatildeo44
varatildeo de excelente e
preciso juiacutezo quase divino julgou que ningueacutem
eacute mais apto a governar um corpo poliacutetico do que
aqueles que satildeo chamados a atuar contra a sua
vontade
Ora aumenta nossa confianccedila em ti toda
vez que temos em mente as qualidades do irmatildeo
que sucedeste e o pai do qual ambos voacutes
procedestes
Pois Davi45
varatildeo igualmente erudito e
saacutebio pelos muitos anos manteve essa posiccedilatildeo
43
Felipe de Borgonha eacute um filho bastardo de Felipe o Bom (1396-1467)
44 Platatildeo Repuacuteblica 7520D Erasmo Institutio Principis Christiani ASD IV-1 p 152 I 514ss
45 Como o destinataacuterio um filho bastardo de Felipe o Bom duque da Borgonha que foi bispo de Utrecht de
1455 ateacute sua morte em 1496 Segundo a ediccedilatildeo criacutetica em algumas ediccedilotildees encontramos a seguinte variante
Nam David germanus tuus vir eruditus Tal lectio foi considerada menos original no aparato criacutetico
114
plurimum splendoris ac dignitatis
addiderit ipsi muneri per se licet
amplissimo multis modis magnus ac
suspiciendus sed in hoc praecipue [15]
salutaris reipublicae quod nihil ducebat
antiquius sibi pace publica hac quoque in
parte patrem Philippum Burguindiae
ducem referens virum nulla non re
maximum sed tamen pacis artibus cum
primis insigem et aeternae hominum
memoriae commendatum
[18] Qui tibi hoc etiam impesius
erit exprimendus non tantum ut filius
patri sed ut Philippus Philippo
respondeas
[20] Intelligit iam dudum tua
prudentia quid abs te populus universus
expectet [21] Triplex onus humeris
sustines patris exemplum ac fratris tum
horum temporum fata (quid enim aliud
dicam) nescio quomodo ad bellum
pertrahentia [23] Vidimus ipsi nuper ut
quidam amicis quam hostibus graviores
nihil intentatum reliquerint ne bellorum
aliquando finis esset rursus ut vix
expresserint alii qui [25] reipublicae
principique ex animo bene volunt ut
pacem cum Francis semper optanda
de tal modo que acrescentou por seus proacuteprios
meacuteritos a dignidade e o esplendor ao proacuteprio
ofiacutecio por mais prestigioso que ele fosse em si
mesmo que a si como grande e admiraacutevel
homem convinha com grande e largueza e
variedade mais salutar agrave Repuacuteblica sobretudo
por isto pelo fato de que pensou nada ser mais
importante do que a paz puacuteblica tal como
evocou o teu pai Felipe duque da Borgonha um
grande homem em todas as mateacuterias mas insigne
sobretudo pelas artes da paz e confiado agrave eterna
memoacuteria dos homens46
Deveraacutes tomaacute-lo como modelo de modo
que satildeo sejas [para ele] somente o que um filho eacute
para o pai mas que respondas a Felipe como
[outro] Felipe
Entende haacute muito tempo a tua prudecircncia
o que todo o povo espera de ti Carregas um
triplo peso nos ombros o exemplo do teu pai do
teu irmatildeo e os destinos destes tempos (o que
mais poderia eu dizer) natildeo sei como atraiacutedos
para a guerra Noacutes mesmos vimos ultimamente47
como alguns nada deixaram de tentar embora
sendo mais severos aos seus amigos do que aos
seus inimigos a fim de assegurar que a guerra
jamais tenha fim a dificuldade encontrada pelos
outros que sinceramente desejam o bem para a
sociedade e ao priacutencipe que deve perseguir a paz
46
O reinado de Felipe de Borgonha foi paciacutefico em certo grau mas acima de tudo por obter uma reconciliaccedilatildeo
com a Franccedila ao final da guerra dos cem anos
47 A composiccedilatildeo da Queixa da Paz estaacute relacionada agrave poliacutetica de aproximaccedilatildeo com a Franccedila e de paz universal
promovida por Chiegravevres e Joatildeo Sauvage que emanaram os tratados de Noyon (augusto de 1516) e Cambrai
(marccedilo de 1517)
115
hisce vero temporibus etiam necessariam
amplecteremur
[26] Cuius sane rei indignitas
movit animum meum ut tum Pacis
undique profligatae Querimoniam
scriberem quo nimirum hac ratione
iustissimum animi mei dolorem vel
ulciscerer vel lenirem
[29] Libellum ad te ceu
primitiolas novo episcopo debitas [30]
mitto quo diligentius tueatur tua
celsitudo pacem utcunque partam si non
patiar eam obliuisci quanto negocio nobis
costiterit Bene Vale
[1] QUERELA PACIS UNDIQUE
GENTIUM EIECTAE
PROFLIGATAEQUE
AVTORE DESIDERIO ERASMO
ROTERODAMO
[4] Si me licet immerentem suo
tamen commodo sic aversarentur
eiicerent profligarentque [5] mortales
meam modo iniuriam et illorum
iniquitatem deplorarem Nunc cum me
profligatam protinus fontem omnis
humanae felicitatis ipsi a semet arceant
para com a Franccedila a qual sempre deve ser por
noacutes abraccedilada especialmente nesses dias
A indignaccedilatildeo com essas coisas moveu
completamente o meu espiacuterito a fim de escrever
a queixa da paz perseguida em toda parte de
modo que por este meio poderia vingar ou
pacificar a justiacutessima dor do meu espiacuterito
Envio entatildeo esta pequena obra como
uma espeacutecie de primiacutecia devida ao nosso bispo a
fim de que Vossa Alteza possa ser mais diligente
para preservar a paz se natildeo permito esquececirc-la
quanto trabalho nos custou
Passe bem
Queixa da paz perseguida e rejeitada em toda
parte pelas naccedilotildees
De autoria de Desideacuterio Erasmo de Rotterdam
Se mesmo que natildeo merecendo48
os
mortais ainda assim de tal modo me
hostilizassem perseguissem e rejeitassem tendo
em vista sua proacutepria vantagem eu deploraria
apenas a minha injuacuteria e a iniquidade deles Mas
uma vez que eles tendo me rejeitado impedem a
si mesmos de saciar-se na fonte de toda
felicidade humana e se precipitam no mar de
48
Cf Terecircncio Hec 5 1 14 ldquoinscitum afferre iniuriam tibi immerentirdquo
116
omniumque calamitatum pelagus sibi
accersant magis illorum mihi deflenda
est infelicitas quam mea iniuria et quibus
irasci tantum maluissem horum dolere
vicem hos commiserari compellor Nam
utcumque amantem [10] ab se propellere
inhumanum est bene merentem aversari
ingratum parentem ac servatricem
omnium affligere impium Caeterum tot
egregias commoditates quas mecum
adfero sibimetipsis invidere proque his
ultro tam tetram malorum omnium
lernam accersere an non hoc extremae
cuiusdam dementiae videtur Sceleratis
irasci par est at sic furiis actos quid aliud
quam deflere possumus [15] Qui non
alio sane nomine magis deflendi sunt
quam quod ipsi sese non deflent nec alio
magis infelices quam quod infelicitatem
suam non sentiunt quando nonnullus
gradus est ad sanitatem morbi sui
magnitudinem agnoscere Etenim si ego
sum Pax illa divorum simul et hominum
voce laudata fons parens altrix
ampliatrix tutatrix rerum bonarum
omnium quas vel caelum habet ve (sic)
[20] terra si sine me nihil usquam
florens nihil tutum nihil purum aut
sanctum nihil aut iucundum hominibus
aut gratum superis si contra haec omnia
bellum semel omnium malorum quicquid
usquam est in rerum natura oceanus
todas as calamidades entatildeo devo lamentar mais
a infelicidade deles do que a injuacuteria contra mim
E embora eu preferisse somente irar-me contra
eles sou antes compelida a me condoer deles a
ter misericoacuterdia deles Eacute certamente desumano
afastar de si o que de algum modo nos ama eacute
ingrato hostilizar o que merece o bem eacute iacutempio
afligir a progenitora e servidora de todos
Ademais acaso natildeo parece ser de uma demecircncia
extrema isso de recusar para si mesmos as
vantagens tatildeo grandes que comigo trago e no
lugar delas invocar a tatildeo terriacutevel Lerna de todos
males Eacute justo irar-se contra os criminosos mas
que mais podemos fazer senatildeo lamentar aqueles
que agiram assim por causa das Fuacuterias Estes
certamente devem ser lamentados natildeo por outro
motivo senatildeo justamente porque natildeo lamentam a
si mesmos nem por outro lado haacute homens mais
infelizes do que aqueles que natildeo percebem sua
proacutepria infelicidade uma vez que reconhecer o
tamanho da proacutepria doenccedila eacute um passo para a
cura Se eu pois sou aquela Paz louvada a uma
soacute voz pelos deuses e pelos homens fonte
progenitora aleitadora fomentadora tutora de
todas as coisas boas que existem quer no ceacuteu
quer na terra se sem mim natildeo haacute nada que
floresccedila em parte alguma sem mim nada eacute
seguro nada eacute puro ou santo e nada eacute alegre
para os homens ou agradaacutevel aos ceacuteus se em
contrapartida a tudo isto uma uacutenica guerra onde
quer que esteja na natureza das coisas eacute uma
espeacutecie de oceano de todos os males ao mesmo
117
quidam si huius vitio subito marcescunt
florentia dilabuntur aucta labascunt
fulta pereunt bene condita amarescunt
dulcia denique si res est adeo non sancta
ut omnis [25] pietatis ac religionis sit
maxime praesentanea pestis si nihil hoc
uno infelicius hominibus nihil invisius
superis quaeso per deum immortalem
quis credat istos homines esse quis
credat ullam sanae mentis micam inesse
qui me talem tantis impendiis tantis
studiis tanto molimine tot technis tot
curis tot periculis student eiicere
tantumque malorum velint tam chare
emere
[30] Si me ad istum modum
spernerent ferae levius ferrem et in me
admissam contumeliam naturae
imputarem quae ingenium immite
insevisset si mutis pecudibus essem
invisa condonarem inscitiae propterea
quod his ea vis animi negata sit quae sola
dotes meas queat perspicere At o rem
indignam ac plus quam prodigiosam
unum animal aedidit natura ratione
praeditum ac divinae [35] mentis capax
unum benevolentiae concordiaeque
genuit et tamen apud quantumlibet
efferas feras apud quantumvis brutas
pecudes mihi citius locus sit quam apud
homines Iam tot orbium coelestium licet
tempo se por influecircncia dela as coisas que
estavam florescendo subitamente murcham as
grandes se dissolvem os fundamentos ruem as
bem construiacutedas perecem as doces amargam em
suma se eacute algo a tal ponto sacriacutelego que eacute como
a peste venenosa de toda a piedade e religiatildeo se
natildeo haacute nada mais infeliz para os homens do que
ela se nada eacute mais odioso para os ceacuteus por
favor pelo Deus imortal quem acreditaraacute que
tais homens existam quem acreditaraacute que haacute
uma uacutenica migalha de bom senso em seres que
com tantos esforccedilos tantos trabalhos com tanto
peso com tantas teacutecnicas com tantos cuidados
tantos perigos empenhem-se em me lanccedilar fora
a mim que sou assim e prefiram pagar tatildeo caro
por uma quantidade tatildeo grande de males
Se feras me desprezassem desse modo eu
o suportaria mais facilmente e atribuiria essa
ofensa agrave natureza que inserira nelas uma iacutendole
selvagem Se eu fosse odiada pelo gado mudo
eu o perdoaria por sua ignoracircncia porque lhe foi
negada a faculdade do entendimento que eacute a
uacutenica capaz de perceber os meus dons Mas oacute
coisa indigna e mais que monstruosa a natureza
soacute produziu um animal dotado de razatildeo e capaz
da mente divina soacute gerou um ser capaz de
benevolecircncia e de concoacuterdia e no entanto eacute
mais faacutecil haver um lugar para mim junto agraves
feras por mais ferozes que sejam e agraves bestas
por mais brutas que sejam do que junto aos
homens Jaacute dentre os corpos celestes que satildeo
tantos embora seus movimentos natildeo sejam
118
nec motus sit idem nec vis eadem tamen
iis tot iam seculis constant vigentque
foedera Elementorum pugnantes inter se
vires aequabili libramine pacem aeternam
tuentur et in tanta [40] discordia consensu
commercioque mutuo concordiam alunt
In animantium corporibus quam fidus
membrorum inter ipsa consensus quam
parata defensio mutua Quid tam
dissimile quam corpus et anima Et
tamen quam arcta necessitudine
connexuerit haec duo natura nimirum
declarat ipsa divulsio Proinde ut vita
nihil aliud est quam corporis et animae
societas ita sanitas omnium [45] corporis
qualitatum concentus est Animantia
rationis expertia in suo quaeque genere
civiliter concorditerque degunt
Armentatim vivunt elephanti gregatim
pascuntur sues et oves turmatim volant
grues et graculi habent sua comitia
ciconiae pietatis etiam magistrae mutuis
officiis sese tuentur delphini Nota est
formicarum et apum inter ipsas concors
politia Sed quid de his loqui pergo [50]
quae tametsi ratione vacant sensu non
vacant
[51] In arboribus in herbis
amicitiam possis agnoscere Steriles sunt
quaedam nisi marem adiungas vitis
ulmum amplectitur vitem amat persica
iguais nem sua energia seja a mesma contudo
desde haacute muitos seacuteculos existem e vigoram entre
eles pactos As forccedilas dos elementos que lutam
entre si mantecircm a paz eterna atraveacutes de um
equiliacutebrio constante e em meio a tatildeo grande
discoacuterdia fomentam a concoacuterdia por meio do
consenso e do trato reciacuteproco Nos corpos dos
seres animados como eacute soacutelido o consenso dos
membros entre si e quatildeo preparado para a defesa
muacutetua Que existe de mais diferente do que o
corpo e a alma E contudo a proacutepria separaccedilatildeo
evidencia com quatildeo estreito laccedilo a natureza uniu
essas duas coisas De forma que assim como a
vida nada mais eacute que a associaccedilatildeo do corpo e da
alma assim tambeacutem a sauacutede do corpo eacute a
harmonia de todas as suas propriedades Os
animais desprovidos de razatildeo qualquer que seja
a espeacutecie convivem em harmonia e em
concoacuterdia Os elefantes vivem em manada
porcos e ovelhas satildeo apascentados em rebanhos
os grous e os estorninhos voam em bando as
cegonhas mestras de fidelidade tecircm seus
grupos os golfinhos ajudam-se uns aos outros
com cuidados muacutetuos e notoacuterio eacute o regime
cordial das formigas e das abelhas entre si Mas
para que continuo a falar dessas criaturas que
embora desprovidas de razatildeo natildeo satildeo
desprovidas de sentimento
Entre as aacutervores e as plantas poderias
reconhecer a amizade Algumas delas satildeo
esteacutereis a menos que lhes acrescentes o macho
o olmeiro eacute abraccedilado pela videira o pessegueiro
119
Usque adeo quae nihil sentiunt tamen
pacis beneficium sentire videntur Sed
haec rursum ut sentiendi vim non habent
ita quod vitam habeant iis quae sentiunt
finitima [55] sunt Quid aeque brutum
atque saxorum genus Dicas tamen his
quoque pacis et concordiae sensum
inesse Ita Magnes ferrum ad sese trahit
attractum tenet Quid quod inter
immanissimas etiam feras conuenit
Leonum inter ipsos feritas non dimicat
Aper in aprum non vibrat dentem
fulmineum Lynci cum lynce pax est
Draco non saevit in draconem Luporum
concordiam etiam proverbia nobilitarunt
[60] Addam quod magis etiam mirum
videatur impii spiritus per quos caelitum
atque hominum concordia primum
dirupta est et hodie rumpitur tamen inter
se foedus habent suamque illam
qualemcumque tyrannidem consensu
tuentur
[64] Solos homines quos omnium
maxime decebat unanimitas quibusque
cum [65] primis opus est ea neque natura
tam aliis in rebus potens et efficax
conciliat nec institutio coniungit nec tot
ex consensu profecturae commoditates
conglutinant nec tantorum denique
malorum sensus et experientia in mutuum
ama a videira Ateacute mesmo aqueles que nada
sentem parecem no entanto sentir o benefiacutecio
da paz Mais ainda se esses seres natildeo tecircm a
capacidade de sentir satildeo na medida em que tecircm
vida proacuteximos daqueles que sentem O que haacute
de tatildeo bruto quanto agrave raccedila das pedras Dizes
contudo que tambeacutem nestas estaacute contido o senso
da paz e da concoacuterdia Assim o imatilde atrai o ferro
para si e tendo-o atraiacutedo o reteacutem O que eacute isso
que congrega ateacute as feras mais selvagens entre
si A ferocidade dos leotildees entre eles natildeo
aparece49
Um javali natildeo vibra seu dente afiado
contra outro javali haacute paz de lince com lince a
serpente natildeo se enfurece com outra serpente e
ateacute os proveacuterbios elogiaram a concoacuterdia que
existe entre lobos Acrescentarei ainda algo que
parece mais espantoso os espiacuteritos iacutempios (por
meio dos quais a concoacuterdia entre os ceacuteus e os
homens se rompeu no comeccedilo e ainda hoje se
rompe) tecircm contudo um pacto entre si e
manteacutem aquela sua tirania atraveacutes do consenso
De todos os seres satildeo os homens aqueles
a quem mais convinha a uniatildeo e a que de longe
ela eacute mais necessaacuteria poreacutem de todos satildeo os
uacutenicos que nem a natureza tatildeo potente e eficaz
em outras coisas concilia nem a instruccedilatildeo une
nem associam as facilidades advindas de um
acordo a ser firmado nem enfim a percepccedilatildeo e
a experiecircncia de tatildeo grandes males reconduz ao
49
Margolin (1992 p 914) identifica uma recepccedilatildeo de Pliacutenio (Histoacuteria natural VII 5)
120
amorem redigit Figura communis
omnium vox eadem et cum caetera
animantium genera corporum formis
potissimum inter se differant uni homini
indita vis [70] rationis quae ita sit illis
inter ipsos communis ut cum nullo sit
reliquorum animantium communis uni
huic animanti sermo datus praecipuus
necessitudinum conciliator Insita sunt
communiter disciplinarum ac virtutum
semina ingenium mite placidumque et ad
mutuam benevolentiam propensum ut
per se iuvet amari et iucundum sit de aliis
benemereri nisi quis pravis cupiditatibus
[75] ceu Circes pharmacis corruptus ex
homine degenerarit in belluam Hinc est
videlicet quod vulgus quicquid ad
mutuam benevolentiam pertinet
humanum appellat Addidit lacrymas
exorabilis ingenii documentum quo si
quid forte inciderit offensae et amicitiae
serenitatem nubecula aliqua obfuscarit
facile redeant in gratiam
En quot rationibus natura
amor muacutetuo A aparecircncia eacute comum a todos a
voz eacute a mesma e embora as demais espeacutecies dos
animais se diferenciem umas das outras
sobretudo pelas formas dos corpos soacute ao homem
foi infundida a razatildeo que assim como eacute comum
entre eles mesmos natildeo eacute comum entre eles e os
demais animais50
Soacute a este ser animado foi
concedida a fala que eacute o principal conciliador
dos laccedilos sociais foram-lhe inseridas as
sementes dos saberes e das virtudes de um
temperamento doce plaacutecido e propenso a uma
muacutetua benevolecircncia de tal forma que lhe agrada
ser amado pelo que eacute e sente-se alegre em fazer
gratuitamente o bem a quem o merece a natildeo ser
que algueacutem corrompido por perversos desejos
como que pelos alucinoacutegenos de Circe51
se
degenere de homem em fera52
Eacute por isso que
natildeo sem razatildeo o vulgo chama humano a tudo
aquilo que diz respeito agrave benevolecircncia muacutetua53
Acrescentou-lhe as laacutegrimas comprovaccedilatildeo de
um espiacuterito sensiacutevel a pedidos de desculpas para
que facilmente se faccedilam as pazes caso ocorra
talvez um incidente ofensivo ou alguma
nuvenzinha ofusque a serenidade da amizade
Eis com quatildeo grande nuacutemero de
50
Cf Quintiliano Instituiccedilatildeo Oratoacuteria II 16 17-18 Segundo Margolin (1992 p 914) ldquotema banal da
superioridade do homem dotado de linguagem e de razatildeordquo
51 Herding (1978 p 65 nota 75) percebe a recepccedilatildeo de Homero (Odisseia X 235ss) ldquoCirces pharmacisrdquo
52 Alusatildeo ao trecho da Odisseia (X 310) segundo o qual a deusa feiticeira Circe filha do deus Heacutelio com a
feiticeira Heacutecate especialista em venenos acolhe primeiramente depois furiosamente Ulisses e seus
companheiros Segundo Margolin (1992 p 915) ldquotrata-se de um tema claacutessico da degenerescecircncia moral ou
fiacutesica dos homens metamorfoseados em bestas ferozes para a liberaccedilatildeo dos seus instintos brutaisrdquo
53 Noccedilatildeo capital entre os humanistas Erasmo natildeo pensa ser a humanitas um dom natural do homem pois ele se
torna humano A razatildeo bem formada deve fazer redescobrir a verdadeira natureza do homem que lhe permite
comandar e superar sua natureza instintiva
121
concordiam docuit Nec his tamen [80]
contenta pacis lenociniis amicitiam
homini non solam iucundam esse voluit
verum etiam necessariam Eoque tum
corporum tum animorum dotes ita partita
est ut nemo sit omnium tam instructus
quin infimorum etiam officio
nonnumquam adiuvetur nec eadem
attribuit omnibus nec paria ut haec
inaequalitas mutuis amicitiis aequaretur
Aliis in regionibus alia proveniunt quo
vel usus [85] ipse mutua doceret
commercia
[86] Caeteris animantibus sua
tribuit arma praesidiaque quibus sese
tuerentur unum hominem produxit
inermem atque imbecillum nec prorsus
aliter tutum quam foedere mutuaque
necessitudine Civitates repperit
necessitas et ipsarum inter se societatem
docuit necessitas quo ferarum ac
praedonum vim cunctis [90] viribus
propellerent Adeo nihil est in rebus
humanis quod ipsum sibi sufficiat In
ipsis statim vitae primordiis perisset
hominum genus nisi conditum
propagasset coniugalis concordia nec
enim nasceretur homo et mox natus
argumentos a natureza nos ensinou a concoacuterdia
Natildeo satisfeita contudo com esses encantos que
resultam da paz quis que a amizade fosse natildeo
somente agradaacutevel mas tambeacutem necessaacuteria para
o homem Por essa razatildeo repartiu de tal forma
os dotes tanto os dos corpos quanto os dos
espiacuteritos que natildeo haacute ningueacutem que seja tatildeo
dotado de todos eles que jamais necessite ser
socorrido pelo auxiacutelio dos subalternos tampouco
atribuiu a todos caracteriacutesticas idecircnticas e iguais
a fim de que essa desigualdade fosse equilibrada
atraveacutes de amizades muacutetuas As diferentes
regiotildees produzem coisas diferentes de modo que
a proacutepria utilidade ensinasse os muacutetuos
comeacutercios
Aos outros animais a natureza concedeu
armas e recursos a fim de se defenderem soacute o
homem ela produziu indefeso e fraco
dependente para sua seguranccedila inteiramente de
alianccedila muacutetua e dos laccedilos de solidariedade54
A
necessidade inventou as cidades e a necessidade
ensinou a sociedade entre elas a fim de unindo
forccedilas repelir o ataque das feras e dos ladrotildees
Mais ainda natildeo haacute nada nas coisas humanas que
baste a si mesma O gecircnero humano teria
perecido logo nos primeiros estaacutegios da vida se
uma vez criado a concoacuterdia conjugal natildeo o
tivesse propagado pois o homem nem nasceria
ou morreria logo ao nascer e expiraria no limiar
mesmo da vida se a matildeo amiga das parteiras e
54
Eacute o mito de Epimeteu que ao criar os animais com seus respectivos atributos concedeu ao homem o fogo dos
deuses ensinando-lhe tambeacutem como trabalhar com ele (Cf Platatildeo Protaacutegoras 320C-322C)
122
interiret atque in ipso vitae limine vitam
amitteret nisi obstetricum amica manus
nisi nutricum amica pietas succurreret
infantulo Atque in hunc usum
vehementissimos [95] illos pietatis
igniculos insevit ut parentes etiam illud
ament quod nondum viderunt Adiecit
mutuam liberorum erga parentes
pietatem ut illorum imbecillitas horum
praesidiis vicissim sublevaretur fieretque
illa cunctis quidem ex aequo plausibilis
sed Graecis aptissime dicta
ἀμηιπελάργωζις Accedunt huc
cognationum et affinitatum vincula
accedit in nonnullis ingeniorum
studiorum [100] formaeque similitudo
certissima benevolentiae conciliatrix in
multis arcanus quidam animorum sensus
ac mirus ad mutuum amorem stimulus
quem veteres admirati numini
adscribebant
[103] Tot argumentis natura
docuit pacem concordiamque tot
illecebris ad eam invitat tot laqueis
trahit tot rebus compellit Et post haec
quaenam ista tam ad [105] nocendum
efficax Erinnys his omnibus disruptis
disiectis discussis insatiabilem pugnandi
furiam insevit humanis pectoribus Nisi
se a piedade amiga das amas de leite natildeo
socorresse o bebezinho Mas tendo em vista sua
utilidade a natureza inseriu nos homens
fortiacutessimos estiacutemulos de piedade a fim de que os
pais amem ateacute aquilo que ainda nem sequer
viram Acrescentou a piedade muacutetua dos filhos
para com os pais para que a fraqueza destes seja
por sua vez amparada pelos cuidados daqueles e
a que se decirc aquele sentimento certamente vaacutelido
para todos mas a que os gregos chamaram mais
apropriadamente ἀμηιπελάργωζις55
Somam-se a
estes os viacuteculos das consanguinidades e das
afinidades Acrescente-se em alguns a
semelhanccedila de temperamento de feiccedilotildees e de
interesses a qual eacute a mais certa conciliadora da
benevolecircncia havendo tambeacutem em muitos
homens uma espeacutecie de sentido misterioso das
almas e uma maravilhosa tendecircncia para o amor
muacutetuo que os antigos admirados atribuiacuteam a
uma divindade
Com tatildeo grande nuacutemero de argumentos a
natureza nos ensinou a paz e a concoacuterdia a ela
nos convida com tatildeo grande nuacutemero de
seduccedilotildees para ela nos arrasta e compele com
tantos laccedilos e razotildees E no entanto que Eriacutenia
foi essa tatildeo eficaz em prejudicar que tendo
todas aquelas coisas sido destruiacutedas destroccediladas
e arrasadas infundiu nos coraccedilotildees humanos a
55
O termo deriva de πελαργoacuteς e se refere agrave piedade da cegonha conforme a literatura grega Margolin (1992 p
916) sugere a traduccedilatildeo como ldquoreconhecimento filialrdquo ou de ldquopiedade filialrdquo com a ideia de uma piedade que
ldquoretornardquo
123
primum admirationem deinde sensum
etiam mali adimeret assuetudo quis
crederet humana mente praeditos istos
qui sic iugibus dissidiis litibus bellis
inter sese certant rixantur tumultuantur
Postremo rapinis sanguine cladibus
ruinis sacra profanaque [110] miscent
omnia nec ulla tam sancta foedera quae
illos in mutuam perniciem debacchantes
queant dirimere Ut nihil etiam accesserit
satis erat commune hominis vocabulum
ut inter homines conveniret
[113] Sed esto nihil apud
homines profecerit natura quae
plurimum valet ut in beluis Itane nihil et
apud Christianos valuit Christus Parum
efficax sit doctrina [115] naturae quae
maximam vim habet in his quoque quae
sensu vacant Caeterum cum hac multo
praestantior sit doctrina Christi cur ea se
profitentibus non persuadet id quod unum
omnium maxime suadet nempe pacem
mutuamque benevolentiam Aut saltem
hanc tam impiam efferamque belligerandi
insaniam dedocet Cum hominis
vocabulum audio mox accurro velut ad
animal mihi [120] proprie natum
confidens fore ut illic liceat acquiescere
cum Christianorum audio titulum magis
etiam advolo apud hos certe regnaturam
insaciaacutevel fuacuteria de fazer a guerra Se o costume
natildeo tivesse feito desaparecer primeiro o espanto
depois ateacute a emoccedilatildeo diante do mal quem
acreditaria que satildeo providos de razatildeo humana
esses que lutam entre si se confrontam e se
combatem com constantes dissensotildees litiacutegios e
guerras Finalmente com pilhagens sangue
assassinatos e destruiccedilotildees misturam todas as
coisas sagradas e profanas nem haacute alianccedilas por
mais sagradas que eles natildeo sejam capazes de
romper inebriados para sua muacutetua destruiccedilatildeo
Para que nada disso uma vez mais ocorresse
seria suficiente a simples palavra ldquohomemrdquo para
que os homens se unissem
Mas que seja A natureza que tem tatildeo
grande poder entre os animais nada pode junto
aos homens mas seraacute que Cristo tambeacutem natildeo
pocircde nada entre os cristatildeos Que seja pouco
eficaz a doutrina da natureza a qual tem maacutexima
forccedila ateacute para os seres privados de sentidos mas
sendo a doutrina de Cristo muito superior por
que esta natildeo eacute capaz de persuadir os que a
professam aquilo que ela ensina sobre todas as
coisas a saber a paz e a muacutetua benevolecircncia
Ou pelo menos natildeo os dissuade de tatildeo iacutempia e
selvagem insacircnia de guerrear Quando ouccedilo a
palavra homem logo acudo como a um animal
nascido de mim confiante de que nele
encontrarei o lugar do meu repouso quando
ouccedilo a designaccedilatildeo de cristatildeos voo mais ainda
na esperanccedila de que entre eles certamente hei de
reinar Entretanto aqui tambeacutem me envergonha e
124
etiam me sperans Sed hic quoque pudet
ac piget dicere fora basilicae curiae
templa sic undique litibus perstrepunt ut
nusquam apud ethnicos aeque adeo ut
cum bona pars humanae calamitatis sit
advocatorum turba tamen haec etiam ad
litigantium [125] undas paucitas sit ac
solitudo Civitatem adspicio spes illico
oboritur inter hos saltem convenire quos
eadem cingunt moenia eaedem
moderantur leges et velut una vectos
navi commune continet periculum Sed o
me miseram quae hic quoque dissidiis
omnia vitiata comperio adeo ut vix
domum ullam reperire liceat in qua mihi
sit vel dies aliquot locus Sed plebem
omitto quae maris ritu [130] suis aestibus
rapitur
[131] In principum aulas velut in
portum quemdam me recipio Erit
inquam certe apud hos locus paci plus hi
sapiunt quam vulgus ut qui sint plebis
animus atque oculus populi tum eius
vices gerunt qui doctor est et princeps
concordiae a quo quidem cum omnibus
tum his praecipue sum commendata Et
[135] omnia bene pollicentur Video
blandas consalutationes amicos
angustia dizer os foacuteruns as basiacutelicas os
tribunais e as igrejas ressoam por todos os lados
com tal violecircncia como nunca houve igual entre
os gentios A tal ponto que embora boa parte da
calamidade humana esteja na turba dos
advogados esta no entanto em relaccedilatildeo agraves ondas
dos litigantes eacute um nada um deserto Olho para
a cidade e imediatamente renasce minha
esperanccedila de que exista uniatildeo ao menos entre
aqueles que as mesmas muralhas circundam e
satildeo regidos pelas mesmas leis e que como que
navegam num mesmo navio unidas por um
perigo em comum Mas pobre de mim Tambeacutem
aqui verifico que a cidade estaacute totalmente
maculada pelas dissidecircncias de seus habitantes a
tal ponto que quase natildeo se pode achar uma uacutenica
casa na qual exista um lugar para mim por
alguns dias Entretanto deixo de lado o povo
que tal como o mar eacute arrebatado por sua proacutepria
agitaccedilatildeo56
Voltei-me agraves cortes dos priacutencipes como a
uma espeacutecie de porto Digo que certamente
existiraacute junto a estes um lugar para a paz pois
eles sabem mais que o vulgo de forma que satildeo a
alma e os olhos do povo Eles fazem pois agraves
vezes deste que eacute o doutor e o priacutencipe da
concoacuterdia natildeo soacute por este fui recomendada mas
tambeacutem por eles E tudo isso eles prometem
Vejo saudaccedilotildees suaves abraccedilos amigaacuteveis
alegres banquetes assim como todos os demais
56
A ldquoagitaccedilatildeordquo como traduccedilatildeo de aestibus referencia agraves aacuteguas agitadas agrave agitaccedilatildeo do mar sentido registrado nos
dicionaacuterios (Agradeccedilo ao Prof Paulo Vasconcellos essa sugestatildeo por ocasiatildeo do exame de qualificaccedilatildeo)
125
complexus hilares compotationes
caeteraque officia humanitatis At o rem
indignam apud hos nec umbram verae
concordiae licuit cernere Fucata fictaque
omnia factionibus apertis clanculariis
dissidiis ac simultatibus corrupta sunt
universa Denique adeo apud hos non
esse sedem paci comperio ut hinc potius
omnium bellorum [140] fontes ac
seminaria Quo me posthac conferam
infelix posteaquam toties fefellit spes
At principes magni sunt potius quam
eruditi magisque ducuntur cupiditatibus
quam recto animi iudicio
[143] Ad eruditorum greges
confugiam Bonae litterae reddunt
homines philosophia plusquam homines
theologia reddit divos Apud hos certe
dabitur conquiescere [145] tot actae
ambagibus Verum proh dolor en hic
quoque bellorum aliud genus minus
quidem cruentum sed tamen non minus
insanum Schola cum schola dissidet et
ceu rerum veritas loco commutetur ita
quaedam scita non traiiciunt mare
quaedam non superant Alpes quaedam
non tranant Rhenum immo in eadem
academia cum rhetore bellum est
dialectico cum iureconsulto [150]
deveres da civilidade Entretanto oacute coisa
indigna Junto a eles natildeo eacute possiacutevel encontrar
sequer a sombra da verdadeira concoacuterdia Tudo eacute
fingido e simulado natildeo haacute nada que natildeo seja
corrompido por facccedilotildees escancaradas ou por
divergecircncias e rivalidades ocultas No final natildeo
encontro o trono da paz entre eles mas antes eacute aiacute
que mais estatildeo as fontes e origens de todas as
guerras Depois de tantas vezes ver perdida a
esperanccedila para onde eu infeliz devo acorrer
Mas os priacutencipes talvez satildeo mais importantes
que eruditos e mais se deixam conduzir pelas
paixotildees do que pelo reto juiacutezo da alma
Refugiar-me-ei na grei dos eruditos as
boas letras formam os homens a filosofia os
torna mais do que homens e a teologia torna-os
santos Junto a eles certamente ser-me-aacute dado
repousar depois de me ter enredado em tantas
digressotildees Entretanto oacute dor Aqui tambeacutem haacute
outro tipo de guerra de fato menos cruenta
contudo natildeo menos insana Escolas se digladiam
com escolas e como se a verdade mudasse com
os lugares certos conceitos natildeo atravessam o
mar outros natildeo transpotildeem os Alpes outros
enfim natildeo cruzam o Reno e ateacute na mesma
Academia o retoacuterico disputa com o dialeacutetico ou
o jurista discorda do teoacutelogo Chega-se ao ponto
de que no mesmo gecircnero de profissatildeo o tomista
luta contra o escotista 57
o realista contra o
57
Cf ldquoOs traccedilos do labirinto satildeo menos complicados do que as tortuosas voltas dos realistas nominalistas
tomistas albertistas occamistas escotistasrdquo (Elogio da Loucura 53) Erasmo buscou o fundamento de sua
doutrina nas fontes do cristianismo natildeo nas ldquosutilezasrdquo dos comentaacuterios variados e contraditoacuterios dos filoacutesofos
medievais (cf Margolin1992 p 918)
126
dissidet theologus Atque adeo in eodem
professionis genere cum Thomista pugnat
Scotista cum Reali Nominalis cum
Peripatetico Platonicus adeo ut ne in
minutissimis quidem rebus inter hos
conveniat ac saepenumero de lana
caprina atrocissime digladientur donec
disputationis calor ab argumentis ad
convitia a convitiis ad pugnos
incrudescat et si res pugionibus aut
lanceis non [155] agitur stilis veneno
tinctis sese confodiunt dentata charta
dilacerant invicem alter in alterius
famam letalia linguarum vibrant spicula
Quo me vertam toties experta mihi data
verba
[158] Quid superest nisi una
veluti sacra ancora religio Huius
professio licet sit Christianorum omnium
communis tamen eam isti peculiariter
profitentur titulo [160] cultu cerimoniis
qui vulgo Sacerdotum cognomento
commendantur Hos itaque procul
intuenti cuncta spem faciunt portum mihi
paratum esse Arrident vestes candidae
meoque colore insignes video cruces
pacis symbola audio dulcissimum illud
fratris cognomen eximiae caritatis
nominalista o platocircnico contra o peripateacutetico
de tal forma que nem sequer concordam em
ninharias e muitas vezes se digladiam
violentamente por latilde de caprina58
ateacute que o calor
do debate recrudesce e dos argumentos se passa
agraves ofensas das ofensas aos safanotildees59
e se o
assunto natildeo se resolver com adagas e lanccedilas
trespassam-se com penas envenenadas
dilaceram-se com papeacuteis que mordem e um vibra
o dardo mortal da liacutengua contra o renome do
outro 60
Para onde me voltarei depois de tantas
palavras enganosas que me foram dirigidas
Que me resta senatildeo a religiatildeo uacutenica
acircncora sagrada Embora todos os cristatildeos em
geral a professem contudo alguns a professam
de um modo peculiar tanto pelo nome como
pelo tipo de vida e cerimocircnias que praticam e
que satildeo aqueles a que vulgarmente se daacute o nome
de sacerdotes Estes observados assim agrave
distacircncia tudo daacute a esperanccedila de que seja ali o
porto preparado para mim Suas vestes brancas
sorriem famosas pela minha cor 61
vejo as
cruzes siacutembolos da paz ouccedilo aquele dulciacutessimo
cognome de irmatildeos demonstraccedilatildeo de um amor
58
Herding (1978 p 67 nota 152-153) nota-se referecircncia a Horaacutecio (Epiacutestola I 18 15)
59 Nota-se a referecircncia a Ciacutecero (Ad Quintum fratem 2 15 6)
60 A expressatildeo ldquocharta dentatardquo eacute um expressatildeo ciceroniana (cf Cicero Ad Quintum fratem 2141)
61 Cf Oviacutedio Ars amatoria 3502
127
argumentum audio salutationes pacis
laeto omine felices cerno rerum omnium
communionem [165] coniunctum
collegium templum idem leges easdem
conventus quotidianos Quis hic non
confidat paci locum fore Sed o rem
indignam nusquam fere collegio
convenit cum episcopo parum hoc nisi
et ipsi inter sese factionibus scinderentur
Quotusquisque sacerdos est cui non sit
cum aliquo sacerdote lis Paulus rem non
ferendam censet quod Christianus litiget
adversus Christianum [170] Et sacerdos
cum sacerdote episcopus cum episcopo
certat Verum his quoque forsitan
ignoscat aliquis quod longo iam usu
propemodum in prophanorum consortium
abierunt posteaquam eadem cum illis
coeperunt possidere Age fruantur hii
sane suo iure quod ceu praescriptione
sibi vindicant Unum hominum genus
superest qui sic adstricti sunt religioni ut
etiam si cupiant [175] nullo pacto queant
excutere non magis profecto quam
testudo domum Sperarem apud hos mihi
fore locum nisi toties frustrata spes me
prorsus desperare docuisset Et tamen ne
quid intentatum relinquam experiar
Quaeris exitum A nullis resilii magis
exiacutemio ouccedilo as saudaccedilotildees de paz cheias de
votos de felicidade vejo a comunhatildeo de todos os
bens um colegiado unido o mesmo templo as
mesmas leis e as reuniotildees diaacuterias Quem natildeo
acreditaria ser este o lugar da paz Mas oacute coisa
indigna Quase natildeo haacute uma ordem que concorde
com o bispo e pior cindem-se em facccedilotildees Quatildeo
poucos satildeo os sacerdotes que natildeo estejam em
litiacutegio com ao menos outro sacerdote Paulo62
natildeo concorda que um cristatildeo tenha disputas
contra outro cristatildeo 63
e o sacerdote discute com
o sacerdote o bispo com o bispo Mas haacute talvez
quem os desculpe jaacute que desde haacute muito tempo
quase se aproximaram do consoacutercio com o
profano depois de comeccedilarem a possuir as
mesmas coisas que eles Pois seja Que
usufruam como se fosse direito seu aquilo que
reivindicam como privileacutegio Haacute ainda uma
espeacutecie de homems que estatildeo de tal forma
ligados a uma religiatildeo que ainda que o
quisessem natildeo conseguiriam deixaacute-la por nada
exatamente como ocorre com a tartaruga e seu
casco Esperaria encontrar junto a eles um lugar
se tantas esperanccedilas frustadas natildeo tivessem me
ensinado a desesperar completamente Mas
enfim para natildeo deixe algo a tentar
experimentarei Queres saber o resultado De
ningueacutem tive de fugir mais raacutepido Pois o que se
poderia esperar de um lugar onde uma ordem
62
Cf II Ad Corinthum 67
63 Cf II Ad Corinthum 67
128
Nam quid sperem ubi religio cum
religione dissidet Tot factiones sunt
quot sunt sodalitia Dominicales dissident
cum Minoritis [180] Benedictini cum
Bernardinis tot nomina tot cultus tot
cerimoniae studio diversae ne quid
omnino conveniret sua cuique placent
aliena damnat et oditque quisque Quin
idem sodalitium factionibus scinditur
Observantes insectantur Coletas utrique
tertium genus quod a conventu
cognomen habet cum nihil inter istos
conveniat
Iam ut par est omnibus rebus
diffisa optabam vel [185] in uno
quopiam monasteriolo latitare quod vere
tranquillum esset Invita dicam quod
utinam non esset verissimum nullum
adhuc reperi quod non intestinis odiis ac
religiosa64
discorda da outra Tantas satildeo as
facccedilotildees quantas satildeo as irmandades os
dominicanos65
disputam com os minoritas66
os
beneditinos67
com os bernardinos68
tantos
nomes tantos cultos tantas cerimocircnias
diferentes de modo que natildeo concordam em coisa
alguma cada um satisfeito com o que eacute seu cada
um condenando e odiando o que eacute dos outros
Aleacutem disso a mesma irmandade estaacute dividida
em facccedilotildees69
os observantes70
perseguem os
recoletas71
e uma terceira ordem deles que tem
o nome de conventual72
quando nada entre eles
conveacutem
Jaacute que eacute assim desconfiada de todas as
coisas dispunha-me a ocultar-me em um
mosteirozinho qualquer que fosse
verdadeiramente tranquilo Direi relutante aquilo
que quem dera natildeo fosse muito verdadeiro ateacute
hoje ainda natildeo encontrei nenhum que natildeo
64
No original religio Natildeo se pode traduzir nesse caso religio por religiatildeo No tempo de Erasmo chamava-se
religiatildeo uma ordem religiosa especiacutefica diferentemente do sentido moderno que usa esse termo para outras
religiotildees acatoacutelicas Erasmo chamava de religio o que hoje os teoacutelogos chamam de carisma Carisma eacute o
vocaacutebulo que se refere agraves caracteriacutesticas especiacuteficas dos indiviacuteduos ou das ordens religiosas Ademais na
teologia catoacutelica do seacuteculo XVI soacute existia uma religiatildeo a catoacutelica Eacute preciso lembrar que natildeo havia acontecido
ainda o simboacutelico feito de Lutero que desencadeou a ruptura das igrejas reformadas com Roma
65 Margolin (1992920) comenta que neste trecho ldquoErasmo logo aproveita a ocasiatildeo de se queixar dos
dominicanos sobretudo os espanhoacuteis cuja estrita ortodoxia natildeo se acomoda ao seu espiacuterito reformistardquo
66 Menores ou freis menores cuja ordem foi fundada em 1223 por Satildeo Francisco de Assis
67 Ordem religiosa fundada por Satildeo Bento por volta do ano 528 sobre o Monte Cassino Itaacutelia
68 Religiosos cistercienses cuja ordem foi fundada em 1098 por Roberto de Citeaux posteriormente reforma em
1119 pelo seu sucessor Satildeo Bernardo de Claraval
69 Dissensatildeo da ordem franciscana instituiacuteda pelo Papa Leatildeo X atraveacutes da bula Ite vos in vineam meam (1517)
70 Ordem fundada durante o Conciacutelio de Constanccedila (1415) e confirmada pelo Papa Martinho V (1420) A regra eacute
mais restrita do que dos conventuais
71 Ordem fundada por Nicollete Boylet ao norte da Franccedila
72 Ordem dos Frades Menores Conventuais surgida entre os anos de 1249 e 1250 que predicava uma vida
mendicante dentro dos conventos em oposiccedilatildeo ao modo de vida itinerante
129
iurgiis esset infectum Pudor sit
recensere quam nihili de nugis tricisque
quantas cieant pugnas viri senes barba
pallioque verendi postremo ut sibi
videntur impense tum eruditi tum sancti
Arridebat spes nonnulla [190] fore ut
alicubi inter tot coniugia qualiscumque
daretur locus
Quid enim non pollicetur domus
communis fortuna communis lectus
communis liberi communes Denique
corporum ipsorum ius mutuum ut unum
potius hominem credas e duobus
conflatum quam duos Huc quoque
sceleratissima illa Eris irrepsit totque
vinculis copulatos dirimit dissidiis
animorum Et tamen inter [195] hos citius
contingat locus quam inter eos qui tot
titulis tot insignibus tot cerimoniis
absolutam caritatem profitentur Tandem
illud in votis esse coepit ut saltem in
unius hominis pectore daretur locus Ne
id quidem contigit idem homo secum
pugnat Ratio belligeratur cum affectibus
et insuper affectus cum affectu
conflictatur dum alio vocat pietas alio
trahit cupiditas Rursum aliud [200]
suadet libido aliud ira aliud ambitio
aliud avaritia Et huiusmodi cum sint non
pudet tamen illos appellari Christianos
cum modis omnibus dissideant ab eo
estivesse contaminado por essas discoacuterdias e
oacutedios intestinos Eacute uma vergonha contar quantas
lutas por causa de bagatelas e futilidades
totalmente insignificantes satildeo causadas por
anciatildeos venerandos em suas barbas e haacutebitos e
que persistem em se ver a si mesmos tatildeo
eruditos tatildeo santos Sorria-me a esperanccedila de
que haveria de encontrar um abrigo em algum
lugar entre tantos casais
Que outra coisa poderia prometer-me um
lar comum de uma sorte comum de um leito
comum e de filhos comuns Enfim do direito
muacutetuo aos proacuteprios corpos a tal ponto que nos eacute
permitido crer que em lugar de dois seres se
trata mais propriamente de um formado a partir
de dois Tambeacutem aqui penetrou aquela tatildeo
perversa Eacuteris e separou com dissensotildees pessoas
que estavam ligadas por muitos viacutenculos E
contudo com mais rapidez se consegue um lugar
entre estes do que entre aqueles outros que com
tantos tiacutetulos tantas insiacutegnias tantas cerimocircnias
professam uma caridade absoluta Finalmente
comecei a ter o desejo de que ao menos fosse
dado um lugar no coraccedilatildeo de um uacutenico homem
Mas tambeacutem aiacute natildeo fui bem sucedida pois o
mesmo homem luta contra si mesmo A razatildeo
luta contra os sentimentos e ademais os
sentimentos lutam entre si se a piedade impele
numa direccedilatildeo o desejo arrasta para outra
ademais a libido aconselha uma coisa a ira
outra a ambiccedilatildeo outra a avareza outra Mas
mesmo assim natildeo se envergonham de chamar-se
130
quod Christo praecipuum est ac
peculiare
[203] Universam eius vitam
contemplare quid aliud est quam
concordiae mutuique amoris doctrina
Quid aliud inculcant eius praecepta quid
parabolae nisi [205] pacem nisi
caritatem mutuam Egregius ille vates
Esaias cum coelesti afflatus spiritu
Christum illum rerum omnium
conciliatorem venturum annunciaret num
satrapam pollicetur num urbium
eversorem num bellatorem num
triumphatorem Nequaquam Quid
igitur Principem Pacis siquidem cura
omnium optimum principem intelligi
vellet ab ea re denotavit quam omnium
[210] optimam iudicasset Neque mirum
ita visum Esaiae cum Silius Ethnicus
Poeta hunc in modum de me scripserit
Pax optima rerum quas homini natura
dedit Concinit huic mysticus ille
citharoedus et factus est inquiens in
pace locus eius In pace dixit non in
tentoriis non in castris princeps est
pacis pacem amat offenditur dissidio
Rursum Esaias opus iustitiae pacem
cristatildeos embora se afastem daquilo que eacute
principal e peculiar em Cristo
Contempla toda a vida dele que outra
coisa eacute ela senatildeo um ensinamento de concoacuterdia
e de amor muacutetuo Que outra coisa inculcam os
seus preceitos e suas paraacutebolas a natildeo ser a paz a
natildeo ser a muacutetua caridade O grande profeta
Isaiacuteas ao anunciar inspirado pelo Espiacuterito
Celeste que Cristo haveria de vir como
conciliador de todas as criaturas teria por acaso
prometido um saacutetrapa ou um agitador de cidades
ou um guerreiro ou um triunfador De modo
algum O quecirc entatildeo O priacutencipe da Paz Pois
como tinha a intenccedilatildeo de referir-se ao priacutencipe
por excelecircncia descreveu-o por aquela coisa que
eacute a mais excelente de todas Natildeo admira que tal
tenha sido a opiniatildeo de Isaiacuteas porque ateacute um
poeta pagatildeo Siacutelio escreveu deste modo sobre
mim ldquoa paz eacute o dom mais excelente que a
natureza concedeu ao homemrdquo73
Aquele famoso
miacutestico citarista cantou a meu respeito ao dizer
ldquoE fez seu assento na pazrdquo 74
ldquoNa pazrdquo disse ele
natildeo em tendas natildeo em acampamentos Eacute o
Priacutencipe da paz Ele ama a paz ofende-se com a
discoacuterdia E novamente Isaiacuteas ldquoagrave justiccedila chama-
se obra da pazrdquo 75
pensando se eacute que natildeo me
engano o mesmo que pensou Paulo que outrora
74 Erasmo cita o texto biacuteblico do Psalmo 753 da Vulgata (seacutec IV) atribuiacutedo a Eusebius Sophronius Hieronymus
(347-420) mais conhecido como Satildeo Jerocircnimo ldquoEt factus est in pace locus eiusrdquo Para os textos citados do Novo
Testamento Erasmo cita sua proacutepria traduccedilatildeo latina
75 Erasmo parafraseia a traduccedilatildeo de Jerocircnimo ldquoOpus iustitiae paxrdquo de um trecho de Isaiah 3217
131
appellat idem sentiens [215] ni fallor
quod sensit Paulus ille et ipse e Saulo
turbulento redditus tranquillus et pacis
doctor Cum caritatem caeteris omnibus
arcani spiritus dotibus anteponens quo
pectore qua facundia meum encomium
detonuit Corinthiis Cur enim non glorier
sic laudari a viro tam laudato Is alias
deum pacis appellat alias pacem dei
vocat palam indicans haec duo sic inter
sese cohaerere ut ibi pax esse non possit
ubi deus non adsit nec illic esse deus
possit ubi pax non [220] adsit Itidem et
pacis angelos in divinis libris vocatos
legimus pios ac dei ministros ut per se
liqueat quos belli Angelos oporteat
accipi
[223] Audite strenui bellatores
Videte sub cuius signis militetis nimirum
illius qui primus dissidium sevit inter
deum et hominem Quicquid calamitatum
sentit mortalitas huic dissidio debet
violento Saulo76
converteu-se em paciacutefico e
mestre da paz sobrepondo a caridade acima de
todos os outros dons do Espiacuterito Santo com que
coraccedilatildeo com que eloquecircncia entoou meu elogio
aos coriacutentios77
Por que eu natildeo me gloriaria de
ser elogiada por um varatildeo tatildeo louvado Ora me
chama ldquoo Deus da pazrdquo 78
ora invoca ldquoa paz de
Deusrdquo 79
indicando claramente que esses dois
conceitos estatildeo interligados de tal forma que
onde haacute paz Deus se faz presente e Deus natildeo se
faz presente onde natildeo existe paz Do mesmo
modo podemos ler nas Escrituras Sagradas que
os homens piedosos e os ministros de Deus satildeo
chamados mensageiros da paz80
a fim de que por
si mesmo fique evidente quais satildeo aqueles que
devemos entender como mensageiros da guerra
Ouvi isto poderosos guerreiros Vede
sob que estandarte militais Sem duacutevida daquele
que primeiro semeou a discoacuterdia entre Deus e o
homem81
A este primeiro conflito devem ser
atribuiacutedas todas as calamidades que a
humanidade sofre Eacute ridiacuteculo o que alguns
argumentam de que nas Sagradas Escrituras se
76
Paulo entatildeo chamado de Saulo ldquorespirava ameaccedilas e oacutedio contra os cristatildeosrdquo (Acta apostolorum 91)
77 ldquoNon enim est dissensionis Deus sed pacis sicut in omnibus ecclesiis sanctorumrdquo (Prima ad Corinthians
1433) ldquoin pace autem vocavit nos Deusrdquo (Prima ad Corinthians 715) ldquosapite pacem habete et Deus dilectionis
et pacis erit vobiscumrdquo (Secunda ad Corinthians 13 11)
78 Deus Pacis Erasmo recorre mais uma vez agrave traduccedilatildeo de Jerocircnimo para Prima ad Thessalonicenses 523 e Ad
Philipenses 49 Segundo Margolin (1992 p 922) Paulo utilizada a expressatildeo Deus pacis em vaacuterias passagens
(Ad Romanos 1533 1620 Ad Corinthios I 1433 Ad Corinthios II 1311 Ad Philipenses 49 Ad
Tessalonicenses I 523 Ad Hebraeos 1320)
79 ldquoPax Deirdquo (Ad Philipenses 47)
80 ldquoEcce praecones clamabunt foris angeli pacis amare flebuntrdquo (Isaiah 337)
81 Erasmo parece evocar a metaacutefora da serpente do paraiacuteso descrita nos capiacutetulos iniciais do Genesis
132
acceptum ferre Frivolum est enim quod
argutantur quidam in arcanis litteris
deum exercituum et deum ultionum dici
Permultum enim interest inter Iudaeorum
deum et Christianorum deum etiamsi
suapte natura unus et idem deus est Aut
si nobis quoque placent tituli veteres age
sit exercituum deus modo acies intelligas
virtutum concentum quarum [230]
praesidio vitia demoliuntur homines pii
Sit ultionum Deus modo vindictam
accipias vitiorum correctionem ut
cruentas strages quibus Hebraeorum libri
referti sunt non ad laniandos homines
sed ad impios affectus e pectore
profligandos referas Sed ut quod
institutum erat persequamur quoties
absolutam felicitatem significant arcanae
litterae pacis nomine id faciunt velut
Esaias [235] Sedebit inquit populus
meus in pulcritudine pacis Et alius Pax
inquit super Israel Rursum Esaias
admiratur pedes annunciantium pacem
annunciantium bona
Quisquis Christum annunciat
pacem annunciat Quisquis bellum
fala do Deus dos exeacutercitos82
ou do Deus das
vinganccedilas 83
Grande diferenccedila haacute entre o Deus
dos judeus e o Deus dos cristatildeos embora pela
natureza seja um uacutenico e mesmo Deus Se
poreacutem os epiacutetetos antigos nos agradam que seja
o Deus dos exeacutercitos contanto que se entenda
por exeacutercito a uniatildeo das virtudes com cuja forccedila
os homens piedosos demolem os viacutecios Que seja
o Deus das vinganccedilas desde que aceites como
vinganccedila a correccedilatildeo dos viacutecios e queiras dizer
que as matanccedilas sangrentas de que os livros dos
hebreus estatildeo repletos visavam natildeo a dilacerar
os homens mas a expulsar-lhes do peito as
paixotildees iacutempias Mas prossigamos naquilo que
haviacuteamos decidido Todas as vezes que as
Sagradas Escrituras querem dizer felicidade
absoluta elas o expressam pelo nome de paz
Por exemplo como disse Isaiacuteas ldquosentar-se-aacute o
meu povo na beleza da pazrdquo 84
E em outro
lugar que diz ldquoHaja Paz sobre Israelrdquo 85
E o
mesmo Isaiacuteas se admira com os peacutes dos que
anunciam a paz dos que anunciam as coisas
boas86
Quem quer que anuncie a Cristo anuncia
a paz Quem quer que pregue a guerra prega
aquele que eacute o que mais se diferencia de Cristo
Pois vejamos Que outra coisa buscou o Filho de
82
Na Vulgata de Jerocircnimo a expressatildeo Deus exercituum consta sessenta e cinco vezes todas no Antigo
Testamento
83 Na Vulgata a expressatildeo Deus ultionum soacute eacute usada uma vez no Salmo 931
84 ldquoSedebit inquit populus meus in pulcritudine pacisrdquo (Isaiah 3218)
85 ldquoPax super Israelrdquo (Psalmus 1245 Psalmus 1276 Ad Galatas 616)
86 ldquoQuam pulchri super montes pedes adnuntiantis et praedicantis pacem bonum praedicantisrdquo (Isaiah 527)
133
praedicat illum praedicat qui Christi
dissimillimus est Age iam quae res dei
filium pellexit in terras nisi ut mundum
patri reconciliaret ut homines inter se
mutua et [240] indissolubili caritate
conglutinaret postremo ut ipsum
hominem sibi faceret amicum Mea igitur
gratia legatus erat meum agebat
negotium Atque ob id Solomonem sui
typum ferre voluit qui nobis εἰρηνοποιός
id est pacificus dicitur Quantumuis
magnus erat David tamen quia bellator
erat quia sanguine fuerat impiatus non
sinitur exstruere domum domini Non
meretur hac [240] parte gerere typum
Christi pacifici Iam illud interim
perpende bellator si profanant bella
numinis iussu suscepta gestaque quid
facient quae suasit ambitio quae ira quae
furor Si pium regem polluit effusus
sanguis ethnicorum quid faciet tam
ingens effusio sanguinis Christiani
[249] Obsecro te Christiane
Deus nesta terra senatildeo que o mundo se
reconciliasse com o Pai Que os homens se
unissem entre si por uma muacutetua e indissoluacutevel
caridade Em suma para fazer-se amigo do
proacuteprio homem Assim portanto Cristo fora
enviado por minha causa e tomava conta de
mim Por isso constituiu como sua imagem o rei
Salomatildeo87
chamado de εἰρηνοποιός88
ou seja ldquoο
paciacuteficordquo Grandioso e ilustre era Davi89
mas
porque era guerreiro porque tinha sido maculado
pelo sangue natildeo lhe foi autorizado construir a
casa do Senhor nem foi merecedor por isso de
ser a imagem do Cristo Paciacutefico Presta bem
atenccedilatildeo oacute homem guerreiro Se as guerras que
foram feitas e perpretadas por ordem da
divindade profanam que faratildeo aquelas que a
ambiccedilatildeo a ira e a loucura aconselharam Se o
sangue dos pagatildeos que derramou foi capaz de
macular um rei tatildeo piedoso o que poderaacute fazer
este enorme derramamento de sangue cristatildeo 90
Imploro-te oacute Priacutencipe Cristatildeo se
verdadeiramente eacutes cristatildeo que contemples o
exemplo do priacutencipe por excelecircncia observa
87
Erasmo evoca a etimologia do nome Solomon paciacutefico que de acordo com o livro dos Reis e das Crocircnicas
seria filho do rei Davi Reinou sobre Israel entre 970 e 931 a C Construiu o primeiro templo de Jerusaleacutem teria
sido o autor de alguns livros biacuteblicos e ceacutelebre pelo dom de sabedoria
88 ldquoFilius qui nascetur tibi et erit vir quietissimus faciam enim eum requiescere ab omnibus inimicis suis per
circuitum et ob hanc causam pacificus vocabitur et pacem et otium dabo in Israhel cunctis diebus eiusrdquo (Primus
Paralipomenon 22 9)
89 David reinou sobre Judaacute entre 1010 e 1002 a C e sobre o reino unido de Israel entre 1002 e 970 a C Tronou-
se ceacutelebre como guerreiro comandante muacutesico e poeta se lhe atribui a autoria da maioria dos salmos Teria sido
castigado pelo adulteacuterio com Bersabeia seguido do assassinato do esposo dela Urias
90 Percebe-se que Erasmo fala de uma guerra inserida em seu presente ou em passado muito proacuteximo Segundo
evidecircncias histoacutericas ele se refere agrave guerra da Liga de Cambrai ou Liga Santa que envolveu os principais estados
europeus durante os anos de 1508 a 1516
134
Princeps si modo vere Christianus es
contemplare [250] tui principis
imaginem observa quomodo regnum
suum inierit quomodo progressus sit
quomodo hinc decesserit et mox
intelliges quomodo abs te geri velit
nimirum ut summa curarum tuarum pax
sit et concordia Nato iam Christo num
bellicis tubis insonant angeli Clangorem
tubarum audiere Iudaei quibus bellare
permissum est Haec congruebant
auspicia quibus fas erat odisse [255]
inimicos At genti pacificae longe aliam
cantionem canunt pacis angeli Num
classicum canunt num victorias
triumphos trophaeaque pollicentur
Minime Quid tandem Pacem
annunciant congruentes cum prophetarum
oraculis et annunciant non iis qui caedes
spirant ac bella qui feroces ad arma
gestiunt sed qui bona voluntate propensi
sint ad concordiam Praetexant quae
velint suo [260] morbo mortales ni
bellum amarent non sic iugibus bellis
inter se conflictarentur Age Christus ipse
iam adultus quid aliud docuit quid aliud
expressit quam pacem Pacis omine suos
subinde salutat Pax vobis eamque
salutandi formam suis praescribit veluti
unice dignam Christianis Atque huius
como ele iniciou e desenvolveu o seu reinado
como ele daqui partiu e imediatamente
aprenderaacutes como eacute necessaacuterio que o administres
de forma que sem duacutevida alguma a paz e a
concoacuterdia sejam o principal objeto de tuas
preocupaccedilotildees Assim que o Cristo nasceu os
Anjos por acaso tocaram as trombetas de
guerra Somente os judeus a quem era
permitido guerrear ouviam os sons das
trombetas Estes auspiacutecios eram compreenssiacuteveis
na eacutepoca em que a lei mosaica legitimava o oacutedio
aos inimigos mas os anjos da paz devem entoar
um canto totalmente diferente para os povos
paciacuteficos Por acaso tocam o clarim Por acaso
prometem vitoacuterias triunfos e trofeacuteus Jamais O
quecirc entatildeo Anunciam a paz conforme os
oraacuteculos dos profetas e a anunciam natildeo agravequeles
que aspiram a assassinatos e guerras e que
anseiam ferozmente pelas armas mas agravequeles
que com boa vontade satildeo propensos agrave
concoacuterdia Que os mortais desculpem com sua
fraqueza o que quiserem mas se de fato natildeo
amassem a guerra natildeo lutariam de tal modo
entre si com batalhas contiacutenuas Olhai para o
Cristo jaacute adulto Que outra coisa ensinou que
outra coisa expressou senatildeo a paz Aleacutem disso
ele sauacuteda os seus disciacutepulos com o cumprimento
da paz ldquoa paz esteja convoscordquo91
e lhes
prescreveu essa forma de saudaccedilatildeo como a uacutenica
digna dos cristatildeos Os apoacutestolos natildeo se
91
ldquoPax vobisrdquo (Ioannes20192126 Lucas 2436)
135
praecepti non immemores apostoli pacem
praefantur in suis epistolis pacem optant
iis quos [265] unice diligunt Rem
praeclaram optat qui salutem optat sed
felicitatis summam precatur Hanc ille
toties in omni vita commendatam vide
quanta sollicitudine commendet
moriturus Diligatis inquit invicem sicut
dilexi vos Ac rursum Pacem meam do
vobis pacem relinquo vobis
[269] Auditis quid relinquat suis
Num equos num satellitium num
imperium num opes Nihil horum Quid
igitur Pacem dat pacem relinquit
pacem cum amicis pacem cum inimicis
Iam illud mihi consyderes velim quid a
coena mystica iam imminente mortis
tempore supremis illis precibus flagitarit
a patre Rem opinor haud vulgarem
poposcit qui se sciebat impetraturum
quicquid peteret Pater inquit sancte
serva eos in nomine tuo ut sint unum
sicut et nos Vide quaeso quam
insignem concordiam exigat in suis
Christus Non dixit ut sint unanimes sed
ut sint unum neque id quocumque modo
esqueceram desses preceitos e recomendavam a
paz em suas cartas e desejavam paz agravequeles a
que amavam de forma especial Escolhe coisa
importante quem faz votos pela sauacutede mas estaacute
desejando o sumo da felicidade Ele que a tinha
recomendado durante toda a sua vida nunca
deixou de a recomendar Veja com quatildeo grande
solicitude a recomenda quando estava prestes a
morrer ldquoAmai-vos uns aos outros como eu vos
tenho amadordquo 92
E novamente ldquoeu vos deixo
a paz eu vos dou a minha pazrdquo93
Ouvis o que Cristo deixou para os seus
Cavalos Escoltas Poder Riquezas Nada
disso O quecirc entatildeo Cristo lhes daacute a paz lhes
deixa a paz Paz com os amigos paz com os
inimigos Gostaria tambeacutem que considerasses
comigo o que jaacute no tempo em que a sua morte
era iminente ele suplicou ao Pai com aquelas
suas uacuteltimas preces na miacutestica ceia Suponho
que natildeo pediu algo usual pois sabia que haveria
de obter qualquer coisa que pedisse Disse ldquoPai
santo guarda-os em teu nome para que sejam
um como noacutesrdquo Veja por favor quatildeo insiacutegne eacute a
concoacuterdia que Cristo solicita para seus
disciacutepulos ele natildeo disse ldquopara que eles sejam
unacircnimesrdquo mas ldquoque sejam um soacuterdquo e isso natildeo
de qualquer forma mas ldquocomo noacutes somos um
noacutes que de maneira perfeita e inefaacutevel somos o
mesmordquo94
indicando assim que soacute alimentando
92
ldquoSicut dilexit me Pater et ego dilexi vos manete in dilectione meardquo (Ioannes 159)
93 ldquoPacem relinquo vobis pacem meam do vobisrdquo (Ioannes 1427)
94 ldquoPater sancte serva eos in nomine tuo quos dedisti mihi ut sint unum sicut et nosrdquo (Ioannes 1711)
136
sed sicuti nos inquit unum sumus qui
perfectissima et ineffabili ratione sumus
idem et illud obiter indicans hac una via
servandos esse mortales si mutuam inter
sese pacem aluerint Porro quod huius
mundi principes insigni quopiam suos
notant [280] quo possint a caeteris
dignosci praesertim in bello vide qua
tandem nota Christus insignierit suos
non alia videlicet quam mutuae caritatis
Hoc inquiens argumento cognoscent
homines vos esse meos discipulos non si
sic aut sic vestiamini non si his aut his
vescamini cibis non si tantum ieiunetis
non si tantum psalmorum exhauseritis
sed si dilexeritis invicem neque id sane
vulgari [285] modo sed quemadmodum
ego dilexi vos Innumera sunt
philosophorum praecepta varia sunt
Moysi plurima regum edicta unicum est
inquit praceptum meum ut ametis
invicem Idem orandi formam suis
praescribens nonne in ipso statim initio
mire admonet concordiae Christianae
Pater inquit noster Unius est precatio
una communis omnium est postulatio
una domus eademque [290] familia sunt
omnes ab uno patre pendent omnes Et
qui convenit eos iugibus bellis inter sese
entre si uma paz reciacuteproca eacute que os mortais
poderatildeo se salvar Da mesma forma que os
priacutencipes deste mundo assinalam seus suacuteditos
com uma marca a fim de que possam reconhececirc-
los de imediato entre os demais sobretudo na
guerra vecirc com que sinal Cristo distinguiu os
seus com o da muacutetua caridade ldquoPor este sinalrdquo
disse ldquoos homens reconheceratildeo que sois meus
disciacutepulos natildeo se vos vestirdes deste ou daquele
modo natildeo se comerdes deste ou daquele
alimento natildeo se jejuardes muito natildeo se
recitardes grande nuacutemero de salmos mas se vos
amardes uns aos outros e natildeo de uma forma
usual mas assim como eu vos ameirdquo95
Incontaacuteveis satildeo os preceitos dos filoacutesofos
numerosos satildeo os de Moiseacutes muitos os eacuteditos
dos reis mas diz ele ldquoo meu preceito eacute um soacute
amai-vos uns aos outrosrdquo96
Por isso ao ensinar a
seus disciacutepulos a foacutermula da oraccedilatildeo Cristo jaacute
natildeo quis logo de iniacutecioadvogar para a concoacuterdia
cristatilde Diz ldquoPai Nossordquo 97
A oraccedilatildeo eacute de um soacute
um uacutenico pedido comum de todos um soacute lar e
todos satildeo uma mesma famiacutelia todos dependem
de um soacute Pai Como eacute possiacutevel que em guerras
perpeacutetuas se combatam entre si Como eacute
possiacutevel que interpeles o Pai comum se
atravessas com a espada as viacutesceras do teu
irmatildeo Por que quis arraigar nas mentes dos seus
disciacutepulos sobretudo isso Com quantos
95
Cf Ioannes 1512
96 ldquoHoc est praeceptum meum ut diligatis invicem sicut dilexi vosrdquo (Ioannes 1512)
97 ldquoPater Nosterrdquo (Matheus 69)
137
conflictari Quo ore compellas
communem patrem si in fratris tui
viscera ferrum stringis Iam quoniam
unum hoc voluit altissime insidere
suorum animis quot symbolis quot
parabolis quot praeceptis concordiae
studium inculcavit Se pastorem vocat
suos oves Et obsecro quis umquam
[295] vidit oves pugnantes cum ovibus
Aut quid faciunt lupi si grex ipse semet
invicem lacerat Cum se vitis stirpem
vocat suos vero palmites quid aliud
quam expressit unanimitatem Portentum
videatur piaculis procurandum si in
eadem vite palmes cum palmite bellet et
ostentum non est si Christianus pugnet
cum Christiano Postremo si quid
omnino Christianis sacrosanctum est
[300] certe sacrosanctum esse debet ac
penitus animis illorum insidere quae
Christus extremis illis mandatis tradidit
veluti testamentum condens ac filiis ea
commendans quae cuperet illis
numquam venire in oblivionem Aut quid
aliud in his docet mandat praecipit orat
nisi mutuum inter ipsos amorem Quid
illa sacrosancti panis et calicis philotesii
communio nisi novam quamdam et
indissolubilem [305] concordiam sanxit
Caeterum quando sciebat non posse
constare pacem ubi de magistratu de
gloria de opibus de vindicta certamen
siacutembolos com quantas paraacutebolas com quantos
preceitos instruiu o amor da concoacuterdia Cristo
chama-se a si mesmo pastor e aos seus ovelhas
Ora eu pergunto algueacutem porventura jaacute viu
ovelhas lutando com ovelhas O que fariam os
lobos se o rebanho comeccedilasse a lutar entre si
Quando se chama a si mesmo a Videira e aos
seus ramos natildeo quis dizer unidade Se na
mesma videira um ramo guerreasse contra outro
ramo natildeo pareceria isso espantoso que deveria
ser conjurado com sacrifiacutecios expiatoacuterios e por
acaso natildeo se trata de um prodiacutegio que um cristatildeo
lute com cristatildeo Por fim haacute algo de mais
sagrado para os cristatildeos certamente deve ser
sagrado e penetrar no interior das almas o que
Cristo lhes transmitiu atraveacutes daqueles uacuteltimos
mandamentos como que fazendo um testamento
aquilo que recomendou como a filhos e desejou
que jamais caiacutesse no esquecimento Que outra
coisa Cristo ensina ordena preceitua e roga ao
Pai senatildeo que exista o amor muacutetuo entre os
homens Que outra coisa aquela comunhatildeo do
patildeo consagrado e do caacutelice do amor sancionou
senatildeo uma nova concoacuterdia indissoluacutevel
Ademais uma vez que sabia natildeo ser possiacutevel
contar com a paz onde haacute lutas por causa de
cargos de gloacuteria de riquezas de litiacutegios e de
processos arranca paixotildees dessa espeacutecie
completamente das almas dos seus proiacutebe que
eles sobretudo resistam ao mal ordena que eles
faccedilam o bem agravequeles que lhes fazem o mal e
ainda que desejem o bem daqueles que lhes
138
est ut penitus affectus eiusmodi revellit
ex animis suorum vetat in totum ne
malo resistant iubet ut de male
merentibus bene mereantur si possint
bene precentur male precantibus Et
Christiani sibi videntur qui ob
quantumuis levem iniuriolam [310]
magnam orbis partem in bellum
pertrahunt Praecipit ut qui in suo
populo sit princeps is ministrum agat nec
alia re praecellat aliis nisi quod melior
sit et pluribus prosit Et non pudet
quosdam ob pusillam accessiunculam
regni pomoeriis addendam tantos ciere
tumultus Docet avium et liliorum ritu in
diem vivere Vetat sollicitudinem in
posterum diem extendere vult totos e
caelo [315] pendere divites omnes
excludit a regno caelorum et non
verentur quidam ob pecuniolam non
exsolutam fortasse nec debitam tantum
humani sanguinis effundere Atque his
temporibus hae vel iustissimae
suscipiendi belli causae videntur
Profecto haud aliud agit Christus iubens
ut unum quiddam a se discant miti esse
animo minimeque feroci cum iubet
relinqui donarium ad aram nec [320]
prius offerri quam cum fratre reditum sit
desejam o mal E veem-se como cristatildeos aqueles
que por causa de uma leve injuriazinha levam agrave
guerra uma grande parte do mundo Ordena que
o priacutencipe se comporte como um servo e que em
nada supere os outros a natildeo ser por ser o melhor
e o mais uacutetil para a maioria E os priacutencipes deste
mundo por pequeninas aquisiccedilotildees territoriais ou
para acrescentar ao reino alguns pomeacuterios natildeo
se envergonham de criar tamanha turbaccedilatildeo
Ensina a viver o dia como as aves e os liacuterios
Proiacutebe-nos de preocupar-nos de forma
demasiada com o dia de amanhatilde98
quer que
todos dependamos apenas do ceacuteu exclui todos
os ricos do reino dos ceacuteus e haacute quem por uma
pequena diacutevida natildeo saldada talvez nem mesmo
devida derrame tanto sangue humano Ora
estes talvez pareccedilam hoje em dia motivos
justiacutessimos para se fazer a guerra Mas acaso
Cristo natildeo age de forma contraacuteria ordenando
que cada qual aprenda dele uma soacute coisa a ter
um espiacuterito manso nada feroz Quando ordena
que a oferenda seja depositada no altar e que natildeo
seja oferecida senatildeo depois da reconciliaccedilatildeo com
o irmatildeo porventura natildeo ensina abertamente que
a concoacuterdia deve anteceder a todas as coisas e
que nenhuma oferenda eacute agradaacutevel a Deus se natildeo
for recomendada por mim Deus rejeitava as
oferendas judaicas que eram bodes ou ovelhas
porque eram oferecidas por homens que viviam
98
A paz relembra o capiacutetulo sexto do Evangelho de Marcos no qual Cristo teria enviado os Doze dois a dois
ordenando-lhes que natildeo levassem coisa alguma para o caminho nem patildeo nem mochila nem dinheiro no cinto
mas somente um bordatildeo como calccedilado unicamente sandaacutelias e que se natildeo revestissem de duas tuacutenicas
139
in gratiam nonne palam docet rebus
omnibus anteponendam esse concordiam
nec ullam victimam esse deo gratam nisi
commendante me Respuebat deus
Iudaicum munus fortassis haedum aut
ovem quod a dissidentibus offerretur et
Christiani sic inter sese belligerantes
sacrosanctam illam victimam audent
offerre Iam cum se gallinae pullos sub
[325] alas aggreganti facit adsimilem
quam apto symbolo depinxit concordiam
Ille congregator est et qui convertit
Christianos esse milvios Eodem pertinet
quod lapis dictus est angularis utrumque
parietem committens et continens et qui
convenit ut huius vicarii totum orbem ad
arma commoveant regnaque regnis
committant Summum illum
conciliatorem habent principem ut
iactant et [330] nullis rationibus ipsi sibi
possunt reconciliari Conciliavit ille
Pilatum et Herodem et suos in
concordiam redigere non potest Petrum
adhuc semiiudaeum qui in praesentis
capitis discrimine dominum ac
praeceptorem tueri parabat obiurgat ipse
qui defendebatur gladiumque iubet
recondere et Christianis ob levissimas
causas numquam non expromptus
districtusque est gladius idque in [335]
em discoacuterdia e como ousam os cristatildeos que
guerreiam entre si ofertar aquele sacrifiacutecio
sagrado Quatildeo apropriada eacute a imagem com que
ele retratou a concoacuterdia ao fazer uma
comparaccedilatildeo entre si mesmo e a galinha que junta
os pintinhos sob as asas Ele eacute o congregador e
os cristatildeos seratildeo aves de rapina Pelo mesmo
motivo eacute chamado pedra angular que ao mesmo
tempo une e manteacutem duas paredes e seratildeo
aqueles que ocupam o lugar dele na terra os que
movem todo orbe agraves armas e incitam reinos
contra reinos Jactam-se de que tecircm como
Priacutencipe aquele sumo conciliador mas se
mostram incapazes de ser por ele reconciliados
Ele conciliou Pilatos e Herodes e natildeo pode
conduzir os seus agrave concoacuterdia E ainda a Pedro
(um meio judeu que diante de um perigo
mortal quis defender o seu Senhor e Mestre)
Cristo repreendeu e ordenou agravequele que o
defendia que a espada fosse guardada99
E os
cristatildeos por causa de questotildees ligeiriacutessimas tecircm
sempre a espada desembainhada e pronta contra
os proacuteprios cristatildeos Por acaso desejaria ser
defendido pela proteccedilatildeo da espada aquele que ao
morrer pediu perdatildeo pelos autores do crime
Todos os livros sagrados do cristianismo
99
Erasmo se refere ao episoacutedio no qual Pedro atacou com uma espada um dos soldados que prendiam Jesus (Cf
Matheus 2651 Marcus 1447 Lucas 2250-51 Ioannes 1810)
140
Christianos An ille se gladii praesidio
defensum velit qui moriens deprecatur
pro necis auctoribus
[337] Omnes Christianorum
litterae sive vetus legas testamentum
sive novum nihil aliud quam pacem et
unanimitatem crepant et omnis
Christianorum vita nihil aliud quam bella
tractat Quaenam est haec plusquam
ferina feritas [340] quae tot rebus nec
vinci potest nec leniri Quin potius aut
Christianorum titulo gloriari desinant aut
Christi doctrinam exprimant concordia
Quousque vita pugnabit cum nomine
Insignite quantumlibet aedes vestesque
crucis imagine non agnoscet Christus
symbolum nisi quod ipse praescripsit
videlicet concordiae Congregati vident
euntem in caelum congregati iubentur
operiri spiritum [345] caelestem Et inter
congregatos se semper versaturum
promiserat ne quis speraret usquam in
bellis adesse Christum Iam igneus ille
spiritus quid aliud est quam caritas
Nihil igne communius citra dispendium
ullum ignis igni accenditur Vis autem
cognoscere spiritum illum concordiae
parentem esse Exitum vide Erat inquit
cunctis cor unum et anima una
[350] Tolle spiritum e corpore
se lecircs o Antigo Testamento ou o Novo clamam
nada mais do que a paz e a unidade e a vida toda
dos cristatildeos nada mais eacute do que ocupar-se da
guerra Que ferocidade mais que bestial eacute esta
que nem pode ser vencida nem ser amenizada
com tatildeo grande nuacutemero de antiacutedotos Eacute melhor
que optem ou desistem de se gloriar do tiacutetulo de
cristatildeos ou imitam vivendo em concoacuterdia a
doutrina de Cristo Ateacute quando a vida contradiraacute
o nome Ainda que ornamenteis e assinaleis com
a imagem da cruz os templos e as vestes Cristo
natildeo reconheceraacute como seu sinal senatildeo aquele
que ele mesmo prescreveu ou seja o sinal da
concoacuterdia Congregados viram-no subir ao Ceacuteu
congregados foram chamados a receber o
Espiacuterito Santo E havia prometido que sempre
haveria de encontrar-se no meio daqueles que
estivessem congregados para ningueacutem esperar
que Cristo esteja presente nas guerras Jaacute aquele
espiacuterito iacutegneo que outra coisa eacute senatildeo amor
Nada eacute mais comum do que o fogo pois sem
demora fogo eacute aceso pelo fogo Queres saber
como aquele espiacuterito gerava a concoacuterdia Vecirc o
resultado Ele diz ldquoeram todos um soacute coraccedilatildeo e
uma soacute almardquo 100
Tira o espiacuterito do corpo e imediatamente
dissolve-se toda aquela ligaccedilatildeo dos membros
Tira a paz e pereceraacute toda a sociedade cristatilde Os
teoacutelogos afirmam que hoje o Espiacuterito Celeste se
100
ldquoMultitudinis autem credentium erat cor et anima unardquo (Acta Apostolorum 4 32)
141
continuo dilabitur omnis illa membrorum
compago tolle pacem et perit omnis
Christianae vitae societas Tot hodie
sacramentis infundi caelestem spiritum
affirmant theologi Si verum praedicant
ubi peculiaris spiritus illius effectus cor
unum et anima una Sin fabulae sunt cur
tantam honoris hisce rebus defertur
Atque haec sane dixerim quo magis
Christianos [355] suorum morum pudeat
non quo sacramentis aliquid detraham
Nam quod populum Christianum
ecclesiam vocari placuit quid aliud quam
unanimitatis admonet Qui convenit
castris et ecclesiae Haec aggregationem
sonat illa dissidium Si pars Ecclesiae
gloriaris esse quid tibi cum bellis Si ab
Ecclesia semotus es quid tibi cum
Christo Si eadem omnes habet domus si
communem [360] habetis principem si
eidem militatis omneis (sic) si
sacramentis iisdem estis initiati si iisdem
gaudetis donativis si iisdem alimini
stipendiis si commune petitur praemium
quid ita inter vos tumultuamini Videmus
inter impios istos commilitones qui
mercede ad caedis peragendae
ministerium conducti veniunt tantam esse
concordiam non ob aliud nisi quod sub
iisdem militant signis et [365] pietatem
profitentes tot res non conglutinant Itane
nihil agitur tot sacramentis Baptismus
infunde em noacutes por um grande nuacutemero de
sacramentos Se de fato pregam a verdade onde
estaacute o efeito particular daquele espiacuterito a saber
um soacute coraccedilatildeo e uma soacute alma Se os
sacramentos natildeo passam de faacutebulas por que se
lhes confere tanta honra Se o disse assim dessa
maneira natildeo foi para depreciar em coisa alguma
os sacramentos mas a fim de que os cristatildeos
mais possam envergonhar-se de seus maus
costumes Aquilo que o povo cristatildeo agradou-se
em chamar Igreja natildeo foi para aconselhar a
unidade Como conciliar exeacutercito e Igreja Esta
soa uniatildeo aquele divisatildeo se te glorias de ser
parte da Igreja que tens tu a ver com as guerras
Se te afastaste da Igreja que tens tu com Cristo
Se todos possuiacutes o mesmo lar se tendes um
Priacutencipe comum se militais todos sob o mesmo
estandarte se fostes iniciados nos mesmos
sacramentos se vos alegrais com os mesmos
dons se sois alimentados graccedilas aos mesmos
recursos se buscais o mesmo precircmio por que
vos enfrentais assim entre voacutes Vemos enorme
concoacuterdia entre os iacutempios mercenaacuterios que satildeo
levados pela esperanccedila de precircmio ao serviccedilo de
perpetrar assassinatos isso ocorre natildeo por outra
coisa senatildeo porque lutam sob os mesmos
estandartes por que entatildeo tatildeo grande nuacutemero
de benefiacutecios natildeo une aqueles que professam a
piedade Seratildeo tatildeo ineficazes tantos
sacramentos O batismo comum a todos atraveacutes
do qual renascemos com Cristo e libertados do
mundo somos inseridos como membros de
142
communis omnium per hunc Christo
renascimur et exsecti mundo Christi
membris inserimur Quid autem tam idem
esse potest quam eiusdem corporis
membra Ab hoc igitur neque servus est
quisquam neque liber neque barbarus
neque Graecus neque vir neque foemina
sed omnes idem in Christo [370] sunt qui
omnia redigit in concordiam
[371] Scythas ita iungit paululum
sanguinis utrimque gustati e calice ut pro
amico nihil cunctentur et mortem
oppetere Ethnicis etiam sancta est
amicitia quam mensa communis
conciliavit et Christianos caelestis ille
panis ac mysticus ille calix non continet
in amicitia quam ipse sanxit Christus
quam illi quotidie [375] renovant ac
repraesentant sacrificiis Si nihil illic egit
Christus quorsum opus hodie tot
cerimoniis Si rem seriam egit cur sic a
vobis negligitur quasi rem ludicram ac
scenicam egerit Audet quisquam ad
sacram illam mensam amicitiae
symbolum audet ad pacis convivium
accedere qui bellum destinat in
Christianos et eos parat perdere pro
quibus servandis mortuus est Christus
Cristo Ora que comunhatildeo maior pode haver que
a dos membros do mesmo corpo A partir daiacute
natildeo haacute mais servos e homens livres baacuterbaros e
gregos homens e mulheres mas todos satildeo o
mesmo em Cristo 101
que tudo conduziu agrave
concoacuterdia102
Um pouco de sangue bebido de um
mesmo caacutelice une de tal modo os citas que pelo
amigo natildeo vacilam perante nenhum sacrifiacutecio
ainda enfrentar a morte 103
tambeacutem entre os
pagatildeos existe uma amizade sagrada que nasceu
de uma mesa em comum e aquele patildeo do ceacuteu
aquele caacutelice consagrado que o proacuteprio Cristo
santificou e que eles mesmos renovam
diariamente nas missas natildeo mantecircm na amizade
os cristatildeos Se Cristo natildeo tinha nenhuma
intenccedilatildeo com isso para que servem hoje em dia
tantas cerimocircnias Mas se tinha uma finalidade
seacuteria por que voacutes o negligenciais tanto como se
fosse uma brincadeira e uma encenaccedilatildeo Algueacutem
ousa aproximar-se daquela mesa sagrada
siacutembolo da amizade ousa aceder ao banquete da
paz quem trama a guerra contra cristatildeos e
prepara para destruir aqueles que Cristo morreu
para salvar e se apressa a beber o sangue
daqueles em favor dos quais o Cristo derramou o
seu sangue Oacute coraccedilotildees mais duros que
diamantes Haacute harmonia em negoacutecios tatildeo
101
ldquonon est Iudaeus neque Graecus non est servus neque liber non est masculus et femina omnes enim vos
unus estis in Christo Iesurdquo (Ad Galatas 328)
102 ldquoInstaurare omnia in Christordquo (Ad Ephesios 110)
103 Cf Isoacutecrates Panegiacuterico 21 ll 12-16 Erasmo compocircs o adaacutegio 2494 ldquoScytharum solitudordquo (LB II 849 B-
C) Na epiacutestola 809 (5 de abril de 1518) mencionou a solitudo Scytha
143
[380] eorum haurire sanguinem pro
quibus suum sanguinem fudit Christus O
pectora plus quam adamantina in rebus
tam multis consortium est et in vita tam
inexplicabile dissidium Eadem nascendi
lex omnibus eadem senescendi
moriendique necessitas Eumdem generis
Principem habent omnes eumdem
religionis auctorem eodem omnes
redempti sanguine iisdem omnes initiati
sacris iisdem [385] aluntur sacramentis
Quicquid ex his redit muneris ab eodem
proficiscitur fonte et ex aequo commune
est omnibus Eadem omnium Ecclesia
denique praemium idem omnium Quin
caelestis illa Hierusalem ad quam
suspirant vere Christiani a pacis visione
nomen habet cuius interim ecclesia
typum sustinet Et qui fit ut haec
tantopere discrepet ab exemplari Adeo
nihil promovit tot [390] viis solers natura
nihil ipse Christus perfecit tot praeceptis
tot mysteriis tot symbolis Vel ipsa mala
conciliant et malos iuxta proverbium
Christianos inter se nec bona nec mala
ulla conciliant Quid humana vita
fragilius quid brevius Quot ea morbis
quot casibus obnoxia Et tamen cum plus
habeat ex sese malorum quam ut ferri
variados e na vida uma tatildeo inexplicaacutevel divisatildeo
Se a lei de nascer eacute a mesma para todos eacute a
mesma para todos a necessidade de envelhecer e
morrer Todos tecircm o mesmo antepassado da
espeacutecie todos tecircm o mesmo mestre de religiatildeo
todos foram redimidos com o mesmo sangue
todos foram iniciados nos mesmos ritos todos
satildeo alimentados com os mesmos sacramentos e
quaisquer que sejam os benefiacutecios que destes
procedem satildeo obtidos da mesma fonte e por
direito satildeo comuns a todos Todos tecircm a mesma
Igreja e no fim o precircmio seraacute igual para todos
Mais ainda aquela Jerusaleacutem Celeste pela qual
os cristatildeos verdadeiros suspiram possui o nome
de ldquovisatildeo da pazrdquo e durante esta vida terrena a
Igreja se apresenta como uma figura sua O que
se passou para que esta se discrepe de tal
maneira do modelo Ateacute que ponto eles nada
conseguem nem a natureza tatildeo industriosa por
tantos caminhos nem o poacuteprio Cristo com tantos
preceitos tantos misteacuterios tantos siacutembolos
Segundo o proveacuterbio ateacute as maldades unem os
maus 104
soacute para os cristatildeos eacute que natildeo haacute coisas
boas nem maacutes capazes de uni-los uns aos outros
O que pode haver de mais fraacutegil do que a vida
humana O que haacute de mais breve A quantas
doenccedilas e acidentes fatais se expotildee E no
entanto ainda que por sua natureza jaacute tenha
uma cota de males mais pesada do que se pode
104
O proveacuterbio citado por Erasmo seria de sua proacutepria autoria conciliant homines mala (Erasmo Adagia 1071)
mas tem origem aristoteacutelica ldquoo criminoso se une ao criminoso por prazerrdquo (Aristoacuteteles Retoacuterica I e Eacutetica a
Eudemo 1238a e 1239b)
144
possit tamen maximam malorum partem
ipsi sibi accersunt [395] dementes Tanta
caecitas humanos animos occupat ut
nihil horum perspiciant sic praecipites
aguntur ut omnia naturae Christique
vincula omnia foedera rumpant
dissecent diffringant Pugnant passim
atque assidue nec modus nec finis
Colliditur gens cum gente civitas cum
civitate factio cum factione princeps
cum principe et ob duorum
homuncionum qui mox velut ephemera
sint [400] interituri seu stulticiam seu
ambitionem res humanae sursum
deorsum miscentur
[402] Missas faciam veterum
bellorum tragoedias Repetamus decem
ab hinc annis acta ubi non gentium
crudelissime pugnatum est terra marique
Quae regio non Christiano sanguine
commaduit Quod flumen quod mare
non humano [405] cruore tinctum est
Et o pudor pugnant immanius quam
Iudaei quam ethnici quam ferae
Quicquid bellorum Iudaeis gestum est
suportar mesmo assim os homens dementes
produzem para si mesmos a maior parte dos
males A cegueira das mentes humanas eacute tatildeo
grande que natildeo percebem nada Agem de modo
tatildeo precipitado que rompem rasgam e infrinjem
todos os viacutenculos da natureza e de Cristo
esquecendo todas as alianccedilas Combatem
assiduamente e em toda parte a ponto de
tumultuar sem medida nem fim Um povo
combate outro povo uma cidade com outra
cidade uma facccedilatildeo com outra facccedilatildeo um
priacutencipe com outro priacutencipe e por causa da
burrice ou da ambiccedilatildeo de dois homenzinhos que
hatildeo de perecer como coisas efecircmeras
subvertem-se de cima a baixo as coisas humanas
Natildeo contarei as trageacutedias das guerras
antigas Contemos somente as dos uacuteltimos dez
anos105
Onde natildeo encontraremos a crudeliacutessima
luta das naccedilotildees por terra e mar Que regiatildeo natildeo
derramou sangue cristatildeo Que rio e que mar natildeo
estatildeo tingidos com sangue humano106
Oacute
vergonha lutam de modo mais feroz do que os
judeus do que os pagatildeos e do que as feras
Todas as guerras que os judeus moveram contra
os estrangeiros (ἀλλόθσλος) os cristatildeos
deveriam direcionar contra os viacutecios mas com
estes os homens encontram-se de bem eacute contra
os homens que se faz a guerra Os judeus
poreacutem se faziam guerra era porque uma ordem
105
Erasmo poderia estar se referindo agrave guerra franco-espanhola A batalha de Cerignoles e a de Garigliano por
exemplo datam respectivamente de 2804 e 2712 de 1503
106 Herding (1978 p 79 nota 404) percebe a recepccedilatildeo de Horaacutecio (Carm II I 29-36)
145
adversus Allophylos (ἀλλόθσλος) id
Christianis gerendum adversus vitia
quibus nunc cum vitiis convenit cum
hominibus bellum est Et tamen Iudaeos
divina iussio ducebat ad pugnam
Christianos si praetextibus detractis rem
vere aestimes transversos rapit ambitio
agit ira [410] pessimus consultor
pertrahit habendi numquam satiata
cupiditas Atque his fere cum exteris res
erat Christianis cum Turcis foedus est
inter ipsos bellum Iam ethnicos tyrannos
fere gloriae sitis ad bellum exstimulabat
atque hi tamen sic barbaras atque efferas
nationes subigebant ut vinci expediret et
victor de victis bene mereri studeret
Dabant operam ut quam fieri posset
incruenta esset victoria [415] quo simul
et victori honesta fama praemium esset et
victis solatium victoris benignitas
[417] At pudet meminisse quam
pudendis quam frivolis de causis
Christiani Principes orbem ad arma
concitent Hic obsoletum ac putrem
aliquem titulum aut reperit aut
commentus est quasi vero ita magni
referat quis regnum administret [420]
modo publicis commodis reste
consulatur Ille causatur omissum nescio
divina os levava agrave batalha Os cristatildeos se
deixarmos de lado os pretextos e pensarmos as
coisas com retidatildeo a ambiccedilatildeo eacute que os empurra
para o mal a ira o pior dos conselheiros age
arrasta-os o desejo insaciaacutevel de possuir No
mais aqueles em geral tinham litiacutegios com os
estrangeiros enquanto que os cristatildeos fazem
alianccedila com os turcos e guerra entre eles
mesmos Jaacute os tiranos pagatildeos sede de gloacuteria era
o que em geral os estimulava agrave guerra e seja
como for subjugavam assim naccedilotildees baacuterbaras e
selvagens de tal forma que ser vencido era
proveitoso e o vencedor esforccedilava-se para cuidar
bem dos vencidos107
Tomavam providecircncias
para que a vitoacuteria fosse o menos cruenta
possiacutevel de forma que a fama honrada fosse o
precircmio para o vencedor e a benignidade do
vencedor consolo dos vencidos
Mas envergonha lembrar quatildeo
vergonhosos e quatildeo friacutevolos satildeo os motivos
pelos quais os priacutencipes cristatildeos levam o mundo
agraves armas108
Este ou encontra ou inventa algum
tiacutetulo qualquer obsoleto ou esquecido como se
realmente importasse muito quem eacute que
administra o reino desde que vele inteiramente
pelos interesses puacuteblicos Aquele alega natildeo sei
que claacuteusula foi omitida em um contrato de cem
107
Segundo Margolin (1992 p 931) Erasmo se refere a um tratado de paz entre o sultatildeo e Veneza datado de
1503 renovado em 1514 e em setembro de 1517
108 Cf Horaacutecio Carm I 35 15
146
quid in foedere centum capitum Hic illi
privatim infensus est ob sponsam
interceptam aut scomma liberius dictum
Et quod est omnium sceleratissimum
sunt qui tyrannica arte quod populi
concordia potestatem suam labefactari
sentiant dissidio stabiliri subornent qui
data opera bellum excitent quo simul et
coniunctos dirimant et infelicem populum
licentius expilent scelestissimi quidam
qui populi malis aluntur et quibus pacis
tempore non multum est quod agant in
republica Quae tartarea furia venenum
hoc in pectus Christianum potuit
immittere Quis hanc tyrannidem docuit
Christicolas quam nec Dionysius ullus
nec Mezentius ullus novit Belluae verius
quam homines et sola tyrannide nobiles
[430] nec usquam cordati nisi ad
nocendum nec umquam concordes nisi
ad opprimendam rempublicam Et haec
qui gerunt pro Christianis habentur
audent humano sanguine undique polluti
ad sacras aedes ad sacras aras accedere
O pestes in extremas insulas deportandas
capiacutetulos Este eacute inimigo pessoal daquele por
causa de uma esposa que natildeo lhe foi entregue ou
por algum sarcasmo mais licencioso E o que eacute
mais criminoso de tudo eacute que haacute aqueles que por
meio de uma artimanha tiracircnica porque os povos
em concoacuterdia arruinam sua autoridade enquanto
que as divisotildees a solidificam subornam outros
para que excitem a guerra a fim de que ao
mesmo tempo e em acordo muacutetuo possam
desunir e pilhar mais livremente o povo infeliz
Isso eacute o que procuram os priacutencipes mais
criminosos que se alimentam com males do
povo e que em tempo de paz natildeo haacute muito que
faccedilam por suas repuacuteblicas Que fuacuteria infernal foi
capaz de infundir este veneno nos peitos
cristatildeos Quem ensinou aos seguidores de Cristo
essa tirania que nem Dioniacutesio109
nem
Mezecircncio110
conheceram jamais Satildeo
verdadeiramente mais feras do que homens
nobres somente pela tirania sagazes apenas para
matar e concordes apenas para oprimir a
repuacuteblica E os dessa laia satildeo tidos por cristatildeos e
contaminados por sangue humano ousam
aproximar-se dos edifiacutecios e altares sagrados Oacute
flagelos Que sejam deportados para as ilhas
109
Erasmo natildeo se refere ao Deus do Vinho mas aos reis de Siracusa Dioniacutesio I o Antigo (430-367 a C)
tirano de Siracusa por trinta e oito anos ateacute a sua morte Segundo Deodoro Siacuteculo (90-30 a C) Dioniacutesio era de
origem humilde mas tomou conta do poder por ocasiatildeo da guerra de Cartago em 405 a C Apoacutes lutas e alianccedilas
militares foi derrotado pelos cartagineses em 383 a C (Cf Diodoro Siacuteculo Histoacuteria XIII 96 4)
110 Mezecircncio foi um rei de origem etrusca que governou a cidade de Cere Destacado personagem da Eneida de
Virgiacutelio (70-19 a C) toma parte da guerra contra os troianos Virgiacutelio em discordacircncia com os autores mais
antigos transmitiu a figura de Mezecircncio como um terriacutevel tirano Narra que entre outras torturas hediondas
Mezecircncio permitia que seus prisioneiros fossem amarrados face a face com outros criminosos vivos ou mortos
os quais teriam cometido tantos excessos que os proacuteprios habitantes de Cere o expulsaram (Virgiacutelio Eneida XI
7-16) Catatildeo registrou a prepotecircncia do tirano Mezecircncio ao exigir para si as primiacutecias do vinho destinadas a
Juacutepiter(Origines I 12)
147
Si Christiani corporis unius membra sunt
cur non gratulatur quisque alienae
felicitati Nunc prope iusta movendi
[435] belli causa videtur regnum
finitimum rebus omnibus paulo
florentius
[436] Etenim si verum fateri
volumus quid aliud commovit et hodie
commovet tam multos ad armis
lacessendum Franciae regnum nisi quod
est unum omnium florentissimum
Nullum latius patet nusquam senatus
augustior nusquam academia celebrior
nusquam concordia maior et ob hoc
ipsum potestas summa
[440] Nusquam aeque florent
leges nusquam illibatior religio nec
Iudaeorum commercio corrupta velut
apud Italos nec Turcarum aut
Maranorum vicinia infecta
quemadmodum apud Hispanos et
Hungaros Germania ne quid dicam de
Bohoemis in tot regulos dissecta est ac
regni ne species quidem ulla Sola
Francia ceu flos illibatus Christianae
ditionis et velut arx quaedam tutissima si
qua fors [445] tempestas ingruat tot
modis impetitur tot artibus incessitur
nec ob aliud nisi cuius gratia conveniebat
gratulari si qua vena Christianae mentis
mais remotas Se satildeo membros de um soacute corpo
cristatildeo por que cada um natildeo se congratula com a
felicidade alheia Hoje em dia quase parece que
eacute uma justa causa para mover a guerra que o
reino vizinho seja um pouco mais florescente em
todas os aspectos
E de fato se queremos reconhecer a
verdade que outra coisa impeliu e impele hoje
em dia tantos povos agraves armas contra o Reino da
Franccedila senatildeo o fato de este ser o mais proacutespero
de todos Nenhum eacute tatildeo grande em nenhum
lugar o senado eacute mais respeitaacutevel em nenhum
lugar a universidade eacute mais ceacutelebre em nenhum
paiacutes a concoacuterdia eacute maior e por isso mesmo o
poder tatildeo supremo111
Em nenhum lugar as leis florescem como
ali em nenhum lugar a religiatildeo eacute mais pura jaacute
que natildeo estaacute corrompida pelo comeacutercio com os
judeus como entre os italianos nem as fronteiras
estatildeo repletas de turcos e marranos como entre
os espanhoacuteis e os huacutengaros A Alemanha para
natildeo mencionar os Boecircmios foi dividida em
pedaccedilos por tantos reizinhos e natildeo tem sequer a
aparecircncia de um reino Soacute a Franccedila eacute como uma
flor intacta da cristandade como sua mais segura
cidadela mas se por acaso surge alguma
tempestade ela eacute de tantos modos atacada eacute
combatida com tantas artes pelo uacutenico motivo
pelo qual deveria ser celebrada se nos seus
inimigos houvesse um pouco de espiacuterito cristatildeo
111
Segundo Margolin (1992 p 933) ldquoErasmo idealiza a ambiccedilatildeo do imperialismo francecircs por motivaccedilotildees de
ordem poliacutetica sobretudo pela francofilia da poliacutetica borgonhesardquo
148
esset in istis Atque his tam impiis factis
praetexitur titulus pius sic sternunt viam
ad propagandum imperium Christi O
rem monstrosam parum consultum
putant reipublicae Christianae nisi
pulcerrimam ac felicissimam ditionis
christianae partem [450] subverterint
[451] Quid quod in his tractandis
feras etiam ipsas feritate praecedunt Non
omnes pugnant belluae nec ferarum nisi
in diversum genus conflictatio est
quemadmodum et ante diximus saepius
inculcandum quo magis inhaereat
animis Vipera non mordet viperam nec
lynx lyncem discerpit Ac rursum illae
cum [455] pugnant suis pugnant armis
Illas armavit natura Homines inermes
natos o Deum immortalem qualibus
armis armat ira Tartareis machinis
impetunt Christiani Christianos Quis
enim credat bombardas hominis
inventum esse Nec ille tam densis
agminibus in mutuum exitium ruunt
Quis unquam vidit decem leones cum
decem tauris congredi At quoties viginti
millia Christianorum cum [460] totidem
Christianis ferro decertant Tanti est
laedere tanti est haurire sanguinem
fratrum Nec illis fere bellum est nisi
cum fames aut cura sobolis in rabiem
agit At Christianis quae tam levis iniuria
est ut non videatur idonea bellandi
E estes atos tatildeo perversos satildeo justificados por
alegaccedilotildees tatildeo pias Eacute assim que se abre o
caminho para propagar o impeacuterio de Cristo Oacute
ato monstruoso Acham que cuidam pouco dos
interesses da repuacuteblica cristatilde a natildeo ser que
ponham a perder a parte mais bela e mais feacutertil
da cristandade
Que nos resta dizer senatildeo que os homens
com esses seus empreendimentos superam em
selvageria as proacuteprias feras Nem todos os
animais selvagens satildeo agressivos e aqueles que
satildeo ferozes o satildeo apenas contra espeacutecies
diferentes como jaacute dissemos anteriormente e
conveacutem repetir vaacuterias vezes para inculcaacute-lo e
fixaacute-lo nas mentes A viacutebora natildeo morde a viacutebora
e lince natildeo devora o lince E repito quando
lutam lutam com as suas armas aquelas com
que a natureza os armou mas aos homens que
nasceram desarmados oacute Deus imortal com que
armas a ira os arma Cristatildeos atacam cristatildeos
com maacutequinas infernais Quem acreditaria que o
canhatildeo eacute uma invenccedilatildeo do homem Tampouco
aquelas buscando destruiccedilatildeo muacutetua se atiram
umas contra as outras em fileiras cerradas Ou
algueacutem jaacute viu dez leotildees formados em pelotatildeo
contra dez touros Mas quantas vezes vinte mil
cristatildeos desembainharam a espada contra outros
tantos cristatildeos Tatildeo importante eacute ferir e derramar
o sangue dos irmatildeos E mais as feras impelem
ao furor a natildeo ser quando haacute fome ou por
cuidado da prole Para os cristatildeos contudo
quase natildeo existe uma injuacuteria por mais leve que
149
occasio Si faceret ista plebes utcumque
praetexi poterat inscitia si iuvenes
excusari poterat aetatis imperitia si
prophani nonnihil elevaret atrocitatem
facti [465] personae qualitas Nunc ab iis
potissimum videmus oriri bellorum
semina quorum consilio moderationeque
populi motus componi conveniebat
Contentum illud et ignobile vulgus condit
egregias urbes conditas civiliter
administrat administrando locupletat In
has irrepunt satrapae et ceu fuci quod
aliena partum est industria surripiunt et
quod a plurimis bene congestum est a
paucis [470] male dissipatur quod recte
conditum crudelissime diruitur Quod si
prisca non meminerunt repetat qui volet
secum hisce duodecim annis gesta bella
Causas expendat comperiet omnia
principum gratia suscepta magno populi
malo gesta cum ne tantillum quidem ad
populum attineret
[474] Iam quod olim foedum
habebatur apud ethnicos caniciem galea
premere ut [475] inquit ille id apud
Christianos laudi ducitur Turpe senex
seja que natildeo lhes pareccedila ocasiatildeo para guerrear
Se fosse a plebe a fazer isso poder-se-ia de uma
forma ou de outra pretender ignoracircncia Se os
jovens podia excusaacute-los a imperiacutecia da idade Se
os leigos a condiccedilatildeo da pessoa em certa medida
relevaria a atrocidade do feito Mas hoje vemos
que as sementes da guerra satildeo lanccediladas
exatamente por aqueles cujo conselho e
moderaccedilatildeo conviria que as agitaccedilotildees fossem
contidas Aquele vulgo ignoacutebil desprezado e
sem nobreza edifica cidades egreacutegias uma vez
edificadas administra-as civilizadamente e ao
administraacute-las as enriquece Irrompem nelas os
saacutetrapas e como se fossem zangotildees roubam o
que eacute produto do trabalho alheio e o que foi
poupado por muitos eacute dissipado por poucos e o
que havia sido construiacutedo retamente eacute destruiacutedo
com crueldade A esse respeito se natildeo haacute
recordaccedilatildeo dos tempos antigos que aquele que o
desejar repasse consigo mesmo a memoacuteria das
guerras feitas nos uacuteltimos dozes anos pondere
suas causas e descobriraacute que todas se deram por
culpa dos priacutencipes realizadas para grande
prejuiacutezo do povo uma vez que suas motivaccedilotildees
nem um tantinho sequer se aproveitassem ao
povo
Ateacute aquilo que outrora era consenso entre
os pagatildeos de que natildeo se devia cobrir os cabelos
brancos com um elmo como diz o poeta112
esse
costume hoje entre os cristatildeos tornou-se motivo
112
Cf Virgiacutelio Aeneida IX 612 Oviacutedio Trist IV 1 74
150
miles Nasoni et istis magnifica res est
bellator septuagenarius Imo ne
sacerdotes quidem ipsos pudet quos olim
deus nec in sanguinaria illa et inclementi
lege Moysi voluit ullo sanguine pollui
non pudet theologos Christianae vitae
magistros non pudet absolutae religionis
professores non pudet episcopos non
pudet cardinales et [480] Christi vicarios
eius rei auctores ac faces esse quam
Christus tantopere detestatus est Qui
convenit mitrae et galeae Quid pedo
cum gladio Quid evangelico codici cum
clypeo Qui convenit pacis omine
salutare populum et orbem ad
turbulentissimas pugnas concitare pacem
dare lingua re bellum immittere Tun
eodem ore quo Christum pacificum
praedicas bellum laudas eademque
[485] tuba Deum canis et Satanam Tun
apud concionem sacram cuculla tectus ad
caedem incitas simplicem populum qui
ex ore tuo doctrinam exspectabat
evangelicam Tun apostolorum occupans
locum pugnantia doces cum apostolorum
praeceptis An non vereris ne quod de
Christi praeconibus dictum est Quam
speciosi pedes nunciantium pacem
nunciantium bona nunciantium salutem
in diversum [490] vertatur Quam foeda
lingua sacerdotum adhortantium ad
de louvor Para Nasatildeo
eacute coisa infame um
soldado velho enquanto para estes ser um
guerreiro septuagenaacuterio eacute algo magniacutefico
Ademais nem os proacuteprios sacerdotes se
envergonham justamente eles aos quais outrora
Deus natildeo permitiu nenhuma contaminaccedilatildeo pelo
sangue nem naquela sanguinaacuteria e inclemente
lei de Moiseacutes113
natildeo se envergonham os
teoacutelogos mestres da vida cristatilde natildeo se
envergonham os professores de uma religiatildeo
perfeita natildeo se envergonham os bispos natildeo se
envergonham os cardeais e os vigaacuterios de Cristo
de serem os autores e incitadores de algo que
Cristo detestou tanto Que relaccedilatildeo existe entre a
mitra e o elmo Entre a docecircncia e a espada
Entre Evangelho e o escudo Que relaccedilatildeo haacute
entre saudar o povo com o sinal da paz e incitar
o mundo a lutas turbulentiacutessimas Desejar a paz
com a liacutengua mas na realidade provocar a
guerra Eacute possiacutevel que pregues o Cristo paciacutefico
com a mesma boca com que louvas a guerra e
que cantes Deus e Satanaacutes com o mesmo
instrumento Eacute possiacutevel que coberto com o
capuz do haacutebito incites no sagrado puacutelpito o
povo simples que esperava da tua boca a
doutrina evangeacutelica ao assassinato Eacute possiacutevel
que tu ocupando o lugar dos Apoacutestolos ensines
a violecircncia em contradiccedilatildeo com os preceitos dos
Apoacutestolos Acaso natildeo temes aquilo que eacute dito
sobre os arautos de Cristo ldquocomo satildeo belos os
peacutes dos que anunciam a paz dos que anunciam o
113
Erasmo provavelmente se refere agraves leis do Pentateuco que se assemelham agrave Lei de Taliatildeo
151
bellum incitantium ad mala
provocantium ad perniciem Apud
Romanos adhuc impie pios qui
pontificium maximum iniret ex more
confirmabat iureiurando se manus ab
omni sanguine puras servaturum adeo ut
ne laesus quidam ulcisceretur Atque
huius sacramenti fidem constanter
praestitit Titus Vespasianus imperator
ethnicus [495] idque laudi datur a
scriptore ethnico At o prorsus sublatam
e rebus humanis frontem apud
Christianos Deo dicati Sacerdotes et qui
his quoque sanctius aliquid prae se ferunt
monachi ad caedes ad strages
inflammant et Evangelii tubam Martis
tubam faciunt obliti dignitatis suae
sursum ac deorsum cursitant nihil non
tum faciunt tum patiuntur dum bellum
excitent et per hos Principes [500]
alioqui fortassis quieturi ad pugnam
inflammantur quorum auctoritate
tumultuantes sedari conveniebat Imo
quod est prodigiosius belligerantur ipsi
idque earum rerum gratia quas et apud
impios contempsere philosophi
bem dos que anunciam a salvaccedilatildeordquo 114
se mude
em seu contraacuterio ldquocomo eacute destestaacutevel a liacutengua
dos sacerdotes que exortam agrave guerra que incitam
ao mal que provocam a agressatildeordquo Entre os
romanos ateacute entatildeo impiamente pios aquele que
tomava posse como pontiacutefice maacuteximo era
obrigado por juramento a conservar suas matildeos
limpas de todo sangue de tal forma que mesmo
que fosse ferido por algueacutem natildeo se vingaria
Tito Vespasiano115
imperador pagatildeo manteve a
fidelidade a este sacramento com zelo fiel e por
isso foi louvado por um escritor pagatildeo116
Entre
os cristatildeos poreacutem oacute vergonha inteiramente
removida das accedilotildees humanas Os sacerdotes
cristatildeos consagrados a Deus e os monges que
se gabam de superar aqueles em santidade
inflamam os acircnimos dos priacutencipes e da plebe aos
assassinatos e ao massacre Transformam o
clarim do Evangelho em trombeta de Marte e
esquecidos de sua dignidade correm para cima e
para baixo tudo fazendo e tudo suportando ateacute
que consigam incitar agrave guerra e por causa desses
priacutencipes que satildeo inflamados agrave luta sem sua
intervenccedilatildeo talvez se inclinassem para a paz
precisamente deles a quem convinha acalmar
com sua autoridade E ateacute o que eacute ainda mais
114
ldquoQuam pulchri super montes pedes annuntiantis praedicantis pacem annuntiantis bonum praedicantis
salutemrdquo (Isaiah 521)
115 Tito Vespasiano imperador romano entre 79 e 81 d C fez um juramento de guardar suas matildeos puras da
efusatildeo de sangue humano Com a pacificaccedilatildeo das revoltas judaicas culminada com a destruiccedilatildeo de Jerusaleacutem
(70 d C) obteve durante seu governo grande popularidade ao assumir o Impeacuterio a ponto de ser louvado pelo
historiador Suetocircnio e outros historiadores contemporacircneos especialmente pela benignidade para com as viacutetimas
da erupccedilatildeo do Vesuacutevio em 79 d C e o incecircndio de Roma em 80 d C
116 Erasmo se refere agraves palavras de Suetocircnio (As vidas dos doze ceacutesares Vida de Tito 91)
152
quarumque contemptus proprius ac
peculiaris est viris apostolicis
[504] Ante paucos annos cum
fatali quodam morbo mundus ad arma
raperetur [505] evangelici praecones
hoc est Minores ac Praedicatores e
suggesto sacro classicum canebant et
ultro ad furiam propensos magis
accendebant Apud Britannos animabant
in Gallos apud Gallos animabant in
Britannos omnes ad bellum instigabant
Ad pacem nemo provocabat praeter unum
aut alterum quibus pene capitale fuit me
vel nominasse Cursitabant ultro citroque
sacrosancti praesules [510] et dignitatis et
professionis suae obliti publicum orbis
morbum opera sua exacerbantes tum hinc
Iulium pontificem Romanum hinc Reges
ad maturandum bellum instigantes
perinde quasi non satis ipsi sua sponte
insanirent et tamen hanc manifestariam
insaniam magnificis titulis praeteximus
Huc patrum leges huc piorum hominum
scripta huc arcanae scripturae verba
prodigioso eles mesmos guerreiam por causa de
coisas que ateacute entre pagatildeos os filoacutesofos votaram
ao desprezo os quais devem ser objeto do
desprezo mais rpoacuterpio e peculiar dos varotildees
apostoacutelicos
Haacute alguns anos quando certa febre fatal
fez com que o mundo inteiro acorresse agraves armas
os pregadores evangeacutelicos isto eacute alguns
minoritas e dominicanos cantavam o claacutessico
toque de guerra do alto do puacutelpito sagrado117
e
acendiam ainda mais aqueles jaacute propensos agrave
fuacuteria Entre os ingleses inflamavam contra os
franceses entre os franceses inflamavam contra
os ingleses Instigavam todos agrave guerra Agrave paz
ningueacutem incitava a natildeo ser um ou outro que
pouco faltou para que fossem condenados agrave pena
capital por terem mencionado meu nome Os
santiacutessimos prelados corriam de um lado para o
outro e esquecidos de sua dignidade e de sua
profissatildeo exarcebavam com seus atos a miseacuteria
do mundo instigando ora de um lado o proacuteprio
Juacutelio 118
Pontiacutefice Romano ora do outro esses
tantos reis a preparar a guerra como se eles por
si mesmos e por sua proacutepria vontade jaacute natildeo
estivessem suficientemente loucos Mas
adornamos esta loucura manifesta com tiacutetulos
pomposos Com essa finalidade deturpamos de
117
Suggestus sacro era um lugar alto ou tribuna no qual os oradores romanos falavam ao povo Cf Erasmo
Dulce bellum LB II 956 F
118 O papa Juacutelio II (1443- 1513) foi conhecido como Il Papa Terribile ou Il Papa Guerriero Chamava-
se Giuliano della Rovere e foi Papa entre 1503 e 1513 Seu papado foi marcado por atividades poliacuteticas projetos
arquitetocircnicos e cultivo das artes Entre 1509 e 1513 inclsuive com a convocaccedilatildeo de um conciacutelio em Latratildeo deu
apoio agrave Liga Santa ou Liga de Cambrai com Luiacutes XII da Franccedila Maximiliano I Imperador Alematildeo Fernando II
Rei de Aragatildeo e Henrique VIII da Inglaterra contra a Repuacuteblica de Veneza a fim de conquistar a Romagna
153
impudentissime [515] detorquemus ne
dicam impie Imo iam eo prope rediit res
ut stultum et impium sit adversus bellum
hiscere et id laudare quod sole ore
Christi laudatum est Parum consulere
populo parum favere Principi videtur
qui suaserit rem omnium saluberrimam et
ab omnium pestilentissima dehortetur
Iam ipsa castra sequuntur sacrifici
praesunt in castris episcopi et relictis
ecclesiis suis [520] Bellonae rem agunt
Imo gignit iam bellum sacerdotes gignit
episcopos gignit cardinales quibus
campi legatus honorificus titulus et
apostolorum successoribus dignus
habetur Quo minus mirum si Martem
spirant quos Mars genuit Et quo malum
sit insanabilius tantam impietatem
pietatis specie praetexunt Vexilla crucem
habent Miles impius et nummis aliquot
ad lanienam ac caedem [525] conductus
crucis insigne praefert et belli symbolum
est quod solum dedocere bellum poterat
Quid tibi cum cruce scelerate miles Istis
animis istis factis dracones tigrides ac
lupi conveniebant Istud signum eius est
qui non pugnando sed moriendo vicit
forma desavergonhada para natildeo dizer iacutempia as
leis dos nossos antepassados119
os escritos dos
homens piedosos e as palavras da Sagrada
Escritura E mais chegou-se ao ponto em que ser
contra a guerra e louvar aquilo que Cristo
valorizou e louvou acima de tudo eacute considerado
prova de loucura e de impiedade Parece que
aquele que aconselhar a mais salutar e dissuadir
da mais pestilenta de todas as coisas este zela
pouco pelos interesses do povo e favorece pouco
ao priacutencipe Os sacerdotes acompanham os
locais da guerra os bispos tomam a frente nos
acampamentos militares e abandonadas suas
igrejas fazem sacrifiacutecios a Belona120
E jaacute se
chegou ao ponto de a guerra gerar sacerdotes
gerar bispos gerar Cardeais em relaccedilatildeo aos
quais se considera digno dos sucessores dos
apoacutestolos e sumamente honoriacutefico o tiacutetulo de
embaixador da guerra Natildeo eacute de se admirar
aqueles a quem Marte gerou respiram Marte E
para que o mal seja mais incuraacutevel revestem tatildeo
grande impiedade com aparecircncia de piedade Os
estandartes ostentam a cruz 121
O soldado iacutempio
contratado por algumas moedas para esquartejar
e matar porta diante de si o siacutembolo da cruz e
torna-se estandarte de guerra a uacutenica coisa que
poderia dissuadir da guerra O que tu soldado
119
A expressatildeo tem um sentido duplo primeiro pode-se referir aos Padres da Igreja ou seja aqueles padres
antigos que na Histoacuteria da Igreja que se tornaram ceacutelebres segundo a Tradiccedilatildeo catoacutelica pela vida virtuosa
ortodoxia e antiguidade (viveram entre os seacuteculos I e VIII d C) e segundo aos Patriarcas hebreus cujas
histoacuterias se encontram no livro do Gecircnesis
120 Bellona foi uma antiga deusa romana da Guerra correspondente agrave deusa grega Enyo
121 O papa Juacutelio II havia dado o estandarte da cruz aos suiacuteccedilos em recompensa dos serviccedilos prestados agrave Santa Seacute
154
qui servavit non perdidit quodque cum
primis admonere te poterat cum quibus
hostibus tibi res sit si modo Christianus
es et qua [530] ratione vincendum sit Tu
salutis insigne gestas ad fratris perniciem
properans et cruce perdis eum qui cruce
servatus est Quid quod ab arcanis illis et
adorandis sacris nam haec quoque
pertrahuntur in castra in quibus inprimis
summa Christianorum concordia
repraesentatur curritur in aciem dirum
ferrum in fratris viscera stringitur et
facinoris omnium sceleratissimi quo non
aliud esse [535] potest impiis spiritibus
gratius Christum faciunt spectatorem si
tamen illic dignatur adesse Christus
Denique quod est omnium
absurdissimum in utrisque castris in
utraque acie crucis signum relucet in
utrisque sacra Quid hoc monstri est
pugnat crux cum cruce Christus adversus
Christum belligeratur Hoc signum
Christiani nominis hostes terrere solet
Cur nunc oppugnant quod adorant [540]
Homines non una digni cruce sed vera
Quaeso quid in hisce sacris orat miles
pater noster Os durum audes eum
appellare patrem qui fratris tui iugulum
petis Sanctificetur nomen tuum qui
magis dehonestari poterat nomen dei
quam istiusmodi inter vos tumultibus
Adveniat regnum tuum sic oras qui tanto
celerado fazes com a cruz Esse modo de pensar
e de agir conveacutem mais a serpentes tigres e lobos
Esta insiacutegnia eacute daquele que natildeo venceu ao lutar
mas ao morrer que salvou natildeo fez perecer Ele
veio te ensinar se eacutes cristatildeo contra que inimigos
tu deverias lutar e como deverias fazer para
vencer Tu portas contigo o emblema da salvaccedilatildeo
e ao mesmo tempo te precipitas ao assassinato
do teu irmatildeo e destroacuteis com a cruz aquele que
foi salvo pela cruz E que dizer dos sacramentos
misteriosos e solenes Eacute fato que eles tambeacutem
levam para os acampamentos militares aquelas
cerimocircnias nas quais se representa sobretudo a
suma concoacuterdia dos cristatildeos Corre-se para a
linha de batalha e com crueacuteis espadas rasgam-
se as viacutesceras do irmatildeo Isso obriga Cristo a se
tornar espectador do mais celerado de todos os
crimes ndash que eacute ao mesmo tempo o mais grato
aos espiacuteritos mais iacutempios ndash se eacute que Cristo
consente em estar presente num acampamento
Por fim o mais absurdo de tudo eacute que em ambos
os acampamentos e em ambas linhas de batalha
se ergue e brilha o sinal da cruz e em ambos os
ritos sagrados satildeo celebrados Pode haver algo
mais monstruoso A cruz luta contra a cruz e
Cristo guerreia contra Cristo Este sinal costuma
aterrorizar os inimigos do nome cristatildeo Por que
os cristatildeos atacam aquilo que adoram Os
homens natildeo satildeo dignos de somente portar o
siacutembolo da cruz mas sim uma cruz verdadeira
Por favor por que durante a missa o soldado
recita o Pai Nosso Como te atreves boca
155
sanguine tyrannidem tuam moliris Fiat
voluntas tua quemadmodum in coelo ita
[545] et in terra pacem vult ille et tu
bellum paras Panem quotidianum a
communi Patre petis qui fraternas exuris
segetes et tibi quoque mavis perire quam
illi prodesse Iam quonam ore dices illud
et dimitte nobis debita nostra sicut et nos
dimittimus debitoribus nostris qui ad
parricidium festinas Deprecaris
periculum tentationis qui tuo periculo
fratrem in periculum pertrahis A malo
liberari postulas [550] cuius instinctu
summum malum fratri machinaris
[551] Plato negat appellandum
bellum quod Graeci moveant adversus
Graecos Seditio est inquit Et istis
sanctum etiam bellum est quod ob
quamlibet causam tali milite talibus
armis cum Christiano gerit Christianus
Ethnicorum leges culeo insutum in
profluentem abiiciunt qui ferrum fraterno
desavergonhada a chamar de Pai agravequele a quem
pedes auxiacutelio para cortares a garganta do teu
irmatildeo ldquoSantificado seja o teu nomerdquo o que
poderia macular de forma mais completa o nome
de Deus senatildeo esse tipo de disputa entre voacutes
ldquoVenha a noacutes o vosso reinordquo fazes este pedido
tu que com tatildeo grande derramamento de sangue
te empenhas em tua tirania ldquoSeja feita a vossa
vontade assim na terra como no ceacuteurdquo Cristo
quer a paz e tu preparas guerra ldquoO patildeo de cada
diardquo pedes ao Pai comum tu que queimas as
plantaccedilotildees do teu irmatildeo e preferes morrer a
beneficiar o proacuteximo Pois como eacute possiacutevel que
rezeis aquilo ldquoE perdoai as nossas diacutevidas
assim como noacutes perdoamos os nossos
devedoresrdquo tu que te apressas para o fratriciacutedio
Oras que Ele te proteja no ldquoperigo da tentaccedilatildeordquo
tu que com perigo para ti mesmo conduzes o
teu irmatildeo para o perigo Tu pedes para seres
livrado do mal e instigado por ele maquinas
contra teu irmatildeo o pior dos males
Ao ver gregos moverem guerra contra
outros gregos Platatildeo afirmou que natildeo se deve
chamar essa luta de ldquoguerrardquo denominando-a
antes ldquosediccedilatildeordquo122
Enquanto para os cristatildeos eacute
ldquosantardquo a guerra em que com tal tipo de
soldados e com tais armas uns cristatildeos brandem
armas contra outros cristatildeos por qualquer
pretexto insignificante Segundo as leis dos
pagatildeos quem manchasse sua espada com sangue
122
Cf Platatildeo Repuacuteblica V 470
156
sanguine imbuerit [555] An minus
fratres sunt quos Christus copulavit
quam quos sanguinis propinquitas Et
tamen hic praemium est parricidio O
miseram bellantium sortem Qui vincit
parricida est qui vincitur perit nihilo
secius parricidio obnoxius quod
parricidium conatus est Et post haec
exsecrantur Turcas velut impios et a
Christo alienos quasi vero cum haec
agunt ipsi Christiani sint aut quasi
Turcis [560] ullum spectaculum exhiberi
possit iucundius quam si conspiciant
illos mutuis telis sese confodientes
Immolant ut aiunt Turcae daemonibus
At cum his nulla victima sit acceptior
quam si Christianus mactet Christianum
quaeso quid aliud facis quam illi Tum
enim gemina fruuntur hostia spiritus
impii cum pariter et qui mactat et qui
mactatur fit victima Si quis Turcis favet
si quis amicus est [565] daemonibus
hostias huiusmodi frequenter offerat Sed
audio iamdudum quid excusent homines
in suum ipsorum malum ingeniosi Cogi
se queruntur et invitos ad bellum
pertrahi Detrahe personam istam abiice
fucos tuum ipsius pectus consule
reperies iram ambitionem stultitiam huc
fraterno deveria ser fechado em um saco e
jogado no rio da cidade123
Seratildeo menos irmatildeos
aqueles que Cristo uniu do que aqueles unidos
pela consanguinidade E contudo entre voacutes daacute-
se precircmio ao fratriciacutedio Oacute triste sorte dos
beligerantes Quem vence eacute fratricida mas quem
eacute vencido morre igualmente culpado de
fratriciacutedio pois tentou praticaacute-lo Aleacutem disso os
turcos satildeo execrados como iacutempios e alheios a
Cristo como se na verdade fossem cristatildeos
aqueles que agem desse modo e se proclamam
cristatildeos ou como se houvesse um espetaacuteculo
mais agradaacutevel aos turcos do que verem os
cristatildeos se ferirem uns aos outros com lanccedilas Os
cristatildeos dizem que os turcos oferecem imolaccedilotildees
aos democircnios mas como para esses nenhuma
oferenda sacrificial lhes eacute mais agradaacutevel do que
um cristatildeo imolado por outro pergunto e voacutes
Em que sois diferentes dos turcos De fato os
espiacuteritos iacutempios apoderam-se de duas oferendas
sacrificiais pois tanto aquele que imola quanto
aquele que eacute imolado tornam-se viacutetimas suas do
mesmo jeito Se algueacutem visa a favorecer os
turcos se algueacutem eacute amigo dos democircnios que
ofereccedila com frequecircncia semelhante hoacutestia Haacute
muito tempo ouvi o que dizem alguns homens
engenhosos em se excusar de suas maldades
Estes se queixam de serem constrangidos
arrastados agrave guerra a contragosto Arranca essa
123
A expressatildeo culleo insutus (costurado em um saco) foi recebido no Adaacutegio 3978 Agostinho (Contra
Faustum XXII 22) jaacute tratava dessa pena imposta aos parricidas ocorrente tambeacutem em Secircneca (Dial 3165)
Quintiliano (Inst 786) e Justiniano (Institutiones 1816)
157
pertraxisse non necessitatem nisi forte
hac fini necessitatem metiris si non per
omnia satisfiat [570] animo Ad populum
phaleras deus fucis non deluditur Atque
interea solennes aguntur supplicationes
magnis clamoribus petitur pax
vociferantur immani boatu ut pacem
nobis dones te rogamus audi nos
Nonne iure optimo Deus istis responderit
quid me ridetis Rogatis ut depellam
quod ipsi vobis accersitis volentes
Deprecamini cuius ipsi vobis estis
auctores Si quaelibet offensa [575]
bellum parit cui tandem non est quod
queratur Inter uxorem et maritum
incidunt ad quae sit connivendum nisi
malis dirimi benevolentiam Quod si quid
eiusmodi sit ortum inter principes quid
opus erat mox ad arma rapi
[578] Sunt leges sunt hommes
eruditi sunt venerandi abbates sunt
reverendi episcopi quorum salubri
maacutescara joga fora esses disfarces e consulta o
teu proacuteprio coraccedilatildeo E encontraraacutes que foram a
ira a ambiccedilatildeo e a loucura que te arrastaram para
a guerra e natildeo a necessidade A natildeo ser que
chames de necessidade aquele insaciaacutevel desejo
da avareza Guarda os adornos para o povo Deus
natildeo se ilude com disfarces124
E enquanto isso
realizam-se suacuteplicas solenes pedem paz com
grande clamor gritam com ruiacutedo gigantesco
ldquorogamos-te que nos decircs a paz noacutes te
suplicamos ouve-nosrdquo125
Com todo direito natildeo
poderia Deus responder-lhes ldquopor que vos rides
de mim Rogais que eu afaste de voacutes aquilo que
voacutes mesmos procurastes de livre vontade
Suplicais-me que vos livre daquilo de que voacutes
mesmos sois os autoresrdquo Se uma ofensa
qualquer provoca uma guerra quem natildeo teria
motivos para se queixar Entre marido e mulher
surgem agraves vezes alguns conflitos para os quais
conveacutem fechar os olhos a menos que a
gravidade dos males impeccedila a benevolecircncia Ora
se atritos desse tipo surgirem entre priacutencipes por
que motivo recorrer sem demora agraves armas
Existem leis existem homens eruditos
existem abades venerandos e existem bispos
reverendos com cujo conselho salutar poder-se-
ia remediar o conflito Por que natildeo tornar
124
Cf Peacutersio Saacutetiras 330
125 Erasmo se refere a uma das invocaccedilotildees da Litania Sanctorum uma antiga oraccedilatildeo de formato litacircnico cujo
texto latino foi estabelecido em 590 pelo Papa Gregoacuterio I o Magno Sua versatildeo grega eacute ainda mais antiga e
remonta a Gregoacuterio Taumaturgo (213-270) ldquoUt regibus et principibus christianis pacem et veram concordiam
donare digneris Te rogamus audi nos Ut cuncto populo christiano pacem et unitatem largiri digneris Te
rogamus audi nosrdquo (Vauchez 1994 p 27)
158
consilio tumultus rerum componi poterat
Cur non hos [580] potius arbitros faciunt
quos haud possint tam iniquos nancisci
quin minore malo discessuri sint quam si
armis experiantur Vix ulla tam iniqua
pax quin bello vel aequissimo sit potior
Prius expende singula quae bellum vel
postulat vel adducit et quantum lucri
feceris intelliges Summa Romani
pontificis auctoritas Ast cum gentes cum
principes impiis bellis tumultuantur
idque annos [585] aliquot ubi tum
pontificum auctoritas ubi potestas
Christo proxima Hic certe erat
expromenda nisi ipsi similibus tenerentur
cupiditatibus Vocat Pontifex ad bellum
paretur Vocat idem ad pacem cur non
obtemperatur itidem Si pacem malunt
cur Iulio bellandi auctori tam alacriter
obeditum est Leoni ad pacem et
concordiam provocanti vix quisquam
obtemperat Si vere sacrosancta est
Romani [590] pontificis auctoritas certe
maxime valere par est quoties ad id
provocat quod unice docuit Christus
Caeterum quos Iulius ad bellum exitiale
potuit excitare cum Leo sanctissimus
aacuterbitros homens que de modo algum possa ser
tatildeo perversos que natildeo estejam a desertar por um
mal menor do que experimentar armas
Dificilmente uma paz eacute tatildeo iniacutequa que natildeo seja
preferiacutevel agrave mais justa das guerras Faz bem os
caacutelculos de cada artigo que a guerra exige e por
outro lado acarreta e teraacutes previsto quanto lucro
te renderaacute Suma eacute a autoridade do Pontiacutefice
Romano Entretanto no momento em que os
povos e os priacutencipes se enfrentam em guerras
perversas ndash e isto por longos anos ndash onde estaacute a
autoridade dos pontiacutefices junto agraves naccedilotildees Onde
estaacute o seu poder proacuteximo ao de Cristo Era
nesse ponto que a autoridade papal certamente
deveria ser exercida se tambeacutem os papas natildeo
compartilhassem as mesmas ambiccedilotildees Se o
pontiacutefice conclama para a guerra logo eacute
obedecido Se ele mesmo apela agrave paz por que
natildeo se lhe obedece da mesma forma Se
preferem a paz entatildeo por que a ordem para
guerrear de Juacutelio126
foi obedecida com
entusiasmo mas quando Leatildeo127
apelou para a
paz e a concoacuterdia quase ningueacutem obedeceu Se
a autoridade do Pontiacutefice Romano eacute
verdadeiramente sagrada e santa deveria valer
de modo certo e absoluto todas as vezes que
visasse ao que Cristo quis ensinar de modo
126
Referecircncia ao Papa Juacutelio II
127 Papa Leatildeo X (1475-1521) cujo nome de batismo era Giovanni di Lorenzo de Medici que sucedeu Juacutelio II em
11031513 e presidiu a Seacute de Pedro tinha concluiacutedo um tratado de paz com os franceses vitoriosos na Batalha
de Marignan (Viterbo 13101515) Margolin (1992 p 940) informa que ldquoapoacutes a guerra de Urbino o Papa havia
defendido uma treacutegua na Europa em vista de uma eventual cruzadardquo Erasmo por diplomacia mitifica a figura
do Papa Leatildeo como conciliador Os registros histoacutericos poreacutem natildeo escusam esse pontiacutefice de atividades e
alianccedilas guerreiras
159
pontifex non idem possit tot modis ad
Christianam concordiam provocans
declarant sese ecclesiae praetextu suis
servisse cupiditatibus ne quid dicam
acerbius
[595] Si ex animo taedet
bellorum dabo consilium quo
concordiam tueri possitis Solida pax
haud constat affinitatibus haud
foederibus hominum ex quibus
frequenter exoriri bella videmus
Repurgandi fontes ipsi unde malum hoc
scatet pravae cupiditates tumultus istos
pariunt Et dum quisque suis inservit
adfectibus interim affligitur respublica
nec tamen adsequitur hoc ipsum quisque
[600] quod malis rationibus adfectat
Sapiant principes et populo sapiant non
sibi ac vere sapiant ut maiestatem suam
ut felicitatem ut opes ut splendorem his
rebus metiantur quae vere magnos et
excellentes faciunt Sint eo animo erga
rempublicam quo pater erga familiam
Ita se magnum existimet rex si quam
optimis imperet ita felicem si suos
felices reddiderit ita sublimem si quam
[605] maxime liberis imperet ita
opulentum si populum habeat
opulentum ita florentem si civitates
muito especial A partir disso eacute justo concluir
que os mesmos que foram incitados pelo apelo agrave
guerra de Juacutelio natildeo foram igualmente obedientes
aos numerosos argumentos baseados na
concoacuterdia cristatilde do Santiacutessimo Papa Leatildeo assim
agiram com o pretexto de servir agrave Igreja mas ndash
para natildeo dizer algo mais duro ndash buscaram isto
sim suas proacuteprias ambiccedilotildees
Se estais sinceramente cansados da
guerra darei um conselho com o qual podeis
cultivar a paz Uma paz soacutelida natildeo nasce de laccedilos
de parentesco nem de alianccedilas entre os homens
dos quais muitas vezes vemos nascer a guerra
Eacute preciso purificar as fontes de onde nascem
esses males e que datildeo agrave luz esses conflitos as
suas perversas ambiccedilotildees Entatildeo enquanto o
priacutencipe submete-se a suas paixotildees natildeo apenas
aflige-se a repuacuteblica como ele tampouco
consegue aquilo a que visava obter em seus vis
propoacutesitos Que os priacutencipes sejam saacutebios e que
sejam saacutebios em prol do povo e natildeo somente
para si e que sejam verdadeiramente saacutebios de
tal forma que a sua majestade a sua felicidade a
sua riqueza e o seu esplendor sejam avaliados
por aquelas coisas que os fazem verdadeiramente
poderosos e superiores na sociedade Que
tenham para com a repuacuteblica a mesma
disposiccedilatildeo do pai para com a famiacutelia Que o Rei
soacute se considere grande se governar sobre os
melhores homens que seja feliz se tornar seus
suacuteditos felizes glorioso se bem governar
homens livres opulento se o povo for opulento
160
perpetua pace florentes habeat Atque
hunc Principes animum imitentur
proceres ac magistratus omnia
reipublicae commodis metiantur et hac
via rectius suis consuluerint commodis
Rex qui hoc sit animo num is facile
commovebitur ut pecuniam a suis
extorqueat quam barbaro militi numeret
[610] Suos ad famem adiget ut impios
aliquot Duces ditet Num is suorum
vitam tot periculis obiiciet Non opinor
Hactenus exerceat imperium ut
meminerit se hominem imperare
hominibus liberum liberis postremo
Christianum Christianis Huic vicissim
tantum deferat populus quatenus ad
publicam utilitatem conducit Non aliud
exiget bonus princeps mali vero
cupiditates retundet civium [615]
consensus absit utrimque privati
commodi ratio Plurimum honoris
habeatur iis qui bellum excluserint qui
concordiam restituerint ingenio
consiliove suo denique qui hoc modis
omnibus moliatur non ut maximam
militum ac machinarum vim comparet
sed ut iis non sit opus Quod pulcerrimum
facinus tot imperatorum unus
Diocletianus animo concepisse legitur
Quod si bellum [620] vitari non potest
ita geratur ut summa malorum in eorum
capita recidat qui belli dedere causas
e proacutespero se por uma paz perpeacutetua reinar
sobre cidades proacutesperas E que essa disposiccedilatildeo
dos priacutencipes seja imitada pelos seus proacuteceres
assim como pelos magistrados Que avaliem
tudo segundo a medida do bem-estar da
repuacuteblica e dessa maneira teratildeo assegurado com
mais seguranccedila seu proacuteprio bem-estar Se o rei
tiver essa disposiccedilatildeo acaso se sentiraacute levado a
extorquir o dinheiro dos suacuteditos para contratar
mercenaacuterios baacuterbaros Acaso levaraacute os seus agrave
fome para que enriqueccedila alguns generais iacutempios
Acaso exporaacute a vida dos seus a tatildeo grandes
perigos Natildeo o creio Que o priacutencipe impere de
tal modo que se lembre sempre de que eacute um
homem que governa homens um homem livre
que governa homens livres e em uacuteltima anaacutelise
um cristatildeo que governa cristatildeos O povo por sua
vez que o aceite somente na medida em que seja
em benefiacutecio da utilidade puacuteblica O bom
priacutencipe natildeo exige nada mais que isso As
ambiccedilotildees do mau satildeo derrubadas pelo consenso
dos cidadatildeos Que a loacutegica do interesse privado
esteja ausente em ambas as partes Maior honra
tenham aqueles que evitaram a guerra e cujo
engenho e conselho restituiacuteram a concoacuterdia Em
suma aqueles que por todos os meios se
esforccedilaram natildeo para obter o maior nuacutemero
possiacutevel de soldados e maacutequinas de guerra mas
em tornar tudo isso desnecessaacuterio Dentre tatildeo
grande nuacutemero de imperadores que existiram
Diocleciano segundo se lecirc foi o uacutenico que
concebeu em seu coraccedilatildeo esta accedilatildeo a mais nobre
161
Nunc Principes tuti belligerantur
ductores hinc crescunt maxima malorum
pars in agricolas ac plebem effunditur ad
quos nec attinet bellum nec ipsi belli
causam ullam dederunt Ubi principis
sapientia si haec non perpendit ubi
principis animus si haec levia ducit
Invenienda ratio qua [625] fiat ne toties
mutentur ac velut obambulent imperia
quod omnis rerum novatio tumultum
gignat tumultus bellum Id facile fiet si
Regum liberi intra ditionis fines
elocentur aut si quem libeat finitimis
adiungere spes omnibus successionis
praecisa esto Nec fas sit Principi ditionis
portionem ullam vendere aut alienare
perinde quasi privata sint praedia liberae
civitates Nam liberae sunt quibus rex
[630] imperat serviunt quos tyrannus
premit Nunc huiusmodi matrimoniorum
vicibus fit ut apud Hybernos natus
repente imperet Indis aut qui modo Syris
imperabat subito Rex sit Britanniae
Fitque ut neutra regio Principem habeat
dum priorem relinquit et a posteriore non
agnoscitur nimirum ignotus alioque
mundo natus Atque interim dum illud
parit dum evincit dum stabilit alterum
[635] exhaurit proteritque nonnumquam
amittit utrumque dum utrumque
complecti studet vix alteri administrando
idoneus Semel inter principes conveniat
dentre todas Agora se natildeo se pode evitar uma
guerra que seja travada de tal forma que ao
menos a maior parte dos males caia sobre as
cabeccedilas daqueles que causaram a guerra Hoje
em dia poreacutem os priacutencipes combatem
esmerando em sua seguranccedila e por isso o
aumento de poder de seus generais enquanto
isso a maior parte dos males atinge os
camponeses e o povo justamente aqueles que
natildeo tiraram qualquer proveito da guerra nem
deram qualquer motivo para que ela se
realizasse Onde estaacute a sabedoria do priacutencipe se
natildeo considera essas coisas Onde estaacute o coraccedilatildeo
do priacutencipe se pensa que isso eacute algo sem
importacircncia Deve-se encontrar um modo de
evitar que um reino mude de dinastia e como que
passe de matildeo em matildeo pois inovaccedilotildees desse tipo
sempre geram confusatildeo e confusatildeo gera guerras
Isso pode ser realizado de forma simples se os
filhos do rei tiverem seu poder dentro dos limites
de seu feudo Se houver algum que se interessar
em acrescentar territoacuterio aos seus domiacutenios que
este seja excluiacutedo dos direitos de sucessatildeo Que
natildeo lhe seja liacutecito vender ou alienar nem a menor
porccedilatildeo de seu feudo como se as cidades livres
fossem propriedades privadas Daacute-se pois o
nome de cidades livres agravequelas governadas por
um rei enquanto que aquelas que um tirano
oprime vivem sob servidatildeo Hoje em dia pelos
acasos de casamentos desse tipo acontece de um
irlandecircs passar de repente a reinar sobre os
indianos ou de algueacutem haacute pouco governante dos
162
quid quisque debeat administrare ac
ditionis fines semel datos nulla proferat
aut contrahat affinitas nulla convellant
foedera ita suam quisque portionem
enitetur quam potest ornatissimam
reddere dum in unam omne studium
intendet [640] hanc conabitur rebus
optimis locupletatam suis liberis
relinquere Atque hoc sane pacto futurum
est ut ubique floreant omnia Caeterum
inter sese non affinitatibus aut factitiis
sodalitatibus sed syncera puraque
amicitia copulentur maximeque simili
communique studio bene merendi de
rebus humanis Principi vero succedat vel
qui genere proximus vel qui populi
suffragiis maxime iudicabitur [645]
idoneus Caeteris sat sit inter honestos
haberi proceres
siacuterios tornar-se rei da Inglaterra128
E enquanto
isso as duas regiotildees ficam sem priacutencipe o
primeiro porque ele a abandonou o segundo
porque natildeo passa de um estrangeiro vindo de
outro lugar e natildeo o reconhece como soberano
Enquanto o priacutencipe se preocupa em obter esse
reconhecimento conquistaacute-lo e consolidaacute-lo
empobrece e drena o outro reino e por vezes
perde os dois quando tenta abraccedilar a ambos pois
dificilmente eacute capaz de governar um soacute Que de
uma vez por todas os priacutencipes estejam de
acordo sobre o territoacuterio que cada um deve
governar e que nenhum laccedilo de parentesco
aumente ou diminua essas fronteiras que foram
estabelecidas que nenhuma alianccedila as destrua
Assim cada qual se esforccedilaraacute segundo suas
possibilidades para governar sua regiatildeo da
melhor forma possiacutevel Pois quando estiver
totalmente concentrado no cuidado de um soacute
reino faraacute o maacuteximo para deixaacute-lo aos seus
filhos enriquecido por melhorias E desta
forma como eacute evidente tudo em toda parte
floresceraacute Que sejam aliados natildeo apenas por
viacutenculos matrimoniais ou alianccedilas contratuais
mas sim unidos por amizade sincera e pura e
acima de tudo por um idecircntico e comum amor
por todo o gecircnero humano Que a sucessatildeo do rei
seja atribuiacuteda quer agravequele que for o mais
proacuteximo por consanguinidade quer agravequele que
128
Margolin (1992 p 942) afirma que essa frase de Erasmo ldquopoderia invocar ainda Maximiliano que declarou
guerra a Hungria (em 1490) pois a viuacuteva de Matias Corvin rei da Hungria havia desposado Ladislau da
Boecircmia ferindo seus pretenciosos direitos de sucessatildeordquo
163
[646] Regium est nescire privatos
adfectus et omnia publicis commodis
aestimare Ad haec longinquas
peregrinationes vitet Princeps imo
pomoeria regni numquam transire velit
memineritque dicti longo seculorum
consensu probati Frons occipitio prior
est Locupletatum se existimet non si
quid aliis ademerit [650] sed si sua
reddiderit meliora Cum de bello agitur
ne adhibeat in consilium iuvenes quibus
ideo bellum placet quod experti non sunt
quantum habeat malorum neve eos
quibus expedit turbari publicam
tranquillitatem quique populi
calamitatibus aluntur ac saginantur Senes
cordatos et integros accersat et quorum
pietas patriae spectata sit Nec temere ad
unius aut alterius libidinem [655] bellum
moveatur quod semel coeptum haud
facile finitur Res omnium
periculosissima non nisi totius populi
consensu suscipiatur Belli causae statim
praecidendae sunt Ad quaedam
connivendum comitas comitatem
invitabit Nonnumquam emenda pax Ea
si ratione subduxeris quid bellum fuerit
exhausturum et quot cives ab exitio
serves parvo empta videbitur etiamsi
magno [660] emeris quando praeter
pelos votos do povo for considerado o mais
capaz Quanto aos demais que lhes baste estar
entre o nuacutemero dos nobres mais honrados
A um coraccedilatildeo reacutegio cabe ignorar os
afetos privados e estimar todas as coisas segundo
o bem-estar puacuteblico Por isso que o priacutencipe
evite viagens a terras longiacutenquas ou antes que
nunca cruze os limites territoriais do seu reino
Que se recorde do ditado comprovado pelo longo
consenso dos seacuteculos ldquoeacute preciso que o mestre
tenha os olhos sobre seu ofiacuteciordquo Que o priacutencipe
considere que enriqueceu natildeo se tirar algo dos
outros mas aperfeiccediloando o que lhe pertence Se
haacute uma questatildeo de guerra que natildeo convoque a
conselho os jovens aos quais a guerra sempre
agrada pois natildeo experimentaram os muitos
males que ela causa nem consulte aqueles a
quem interessa perturbar a tranquilidade puacuteblica
e que satildeo alimentados e engordados pela
calamidade do povo Que convoque um conselho
de anciatildeos sensatos e iacutentegros cuja piedade para
com a paacutetria eacute comprovada E que natildeo inicie a
guerra temerariamente movido pelo desejo deste
ou daquele porque uma vez iniciada ela natildeo se
extingue com facilidade E uma vez que a guerra
eacute o assunto mais perigoso de todos que natildeo seja
decidida sem o consenso de todo o povo As
causas da guerra devem ser imediatamente
extirpadas Conveacutem deixar passar certas coisas a
cortesia convidaraacute agrave cortesia Haacute ocasiotildees em
que a paz deveraacute ser comprada Se fizeres os
caacutelculos pesando quanto a guerra haveria de ser
164
civium tuorum sanguinem plus erat bello
impendendum Ineas rationem quantum
malorum vitaris quantum bonorum
tuearis et impendii non poenitebit
Fungantur interim suo officio praesules
sacerdotes vere sint sacerdotes monachi
professionis suae meminerint theologi
quod Christo dignum est doceant
Conspirent omnes adversus bellum in
hoc latrent [665] omnes Pacem publice
privatimque praedicent efferant
inculcent Tum si minus possint efficere
ne ferro decernatur certe ne probent ne
intersint ne rei vel tam sceleratae vel
certe tam suspectae ipsis auctoribus
honos habeatur Satis sit in bello caesis
in prophano sepulcrum dari Si qui boni
sunt in hoc genere qui certe paucissimi
sunt non ob haec fraudabuntur suo
praemio caeterum impii [670] quae
maxima turba est minus sibi placebunt
honore detracto
[671] De his bellis loquor quae
vulgo Christiani cum Christianis
commitunt Nec enim idem sentio de his
custosa e o grande nuacutemero de cidadatildeos que
salvas seu preccedilo seraacute considerado iacutenfimo
mesmo que pagues um valor alto visto que natildeo
era soacute o sangue dos teus suacuteditos que haveria de
perder-se com a guerra Calcula quanto dos
males evitaste e quanto dos bens protegeste e
natildeo te arrependeraacutes do gasto Que nesse iacutenterim
os prelados cumpram sua tarefa que os
sacerdotes sejam verdadeiramente sacerdotes
que os monges se lembrem da sua profissatildeo e
que os teoacutelogos ensinem aquilo que eacute digno de
Cristo Que todos conspirem contra a guerra e
contra ela todos declamem Que preguem
promovam e inculquem a paz quer em puacuteblico
quer em privado E se porventura natildeo
conseguirem fazer com que as disputas natildeo se
resolvam pela espada que ao menos demonstrem
sua desaprovaccedilatildeo e natildeo compareccedilam para evitar
que por sua presenccedila se considere honrosa uma
coisa tatildeo odiosa ou pelo menos tatildeo duvidosa
Que aos que tombaram na guerra seja suficiente
que lhes seja dada sepultura em solo profano Se
haacute algumas pessoas boas entre os guerreiros ndash e
certamente satildeo pouquiacutessimas ndash natildeo por isso
seratildeo defraudadas em seu precircmio Por outro
lado os iacutempios que satildeo a maioria129
estes se
sentiratildeo menos contentes nas armas com a
retirada da honraria do sepulcro cristatildeo
Refiro-me agraves guerras que os cristatildeos
fazem contra os cristatildeos Natildeo tenho poreacutem
129
Virgiacutelio Aeneis VI 6 I 1
165
qui simplici pioque studio vim
incursantium barbarorum depellunt et
suo periculo publicam tranquillitatem
tuentur Nunc trophaea sanguine tincta
eorum pro quorum salute Christus suum
fudit sanguinem [675] reponuntur in
templis inter apostolorum ac martyrum
statuas quasi posthac pium sit futurum
non fieri martyres sed facere Abunde
magnum erat haec in foro aut armario
quopiam reposita servari In sacras aedes
quas purissimas esse decet nihil recipi
convenit quod sanguine sit inquinatum
Sacerdotes deo sacri nusquam adsint nisi
ad dirimenda bella In haec si
consentiant [680] si eadem ubique
inculcent plurimum habitura momenti
est Quod si hic fatalis est humani ingenii
morbus ut prorsus absque bellis durare
nequeat quin potius malum hoc in Turcas
effunditur tametsi praestabat et hos
doctrina bene factis vitaeque innocentia
ad Christi religionem allicere quam
armis adoriri Attamen si bellum ut
diximus omnino vitari non potest illud
certe levius [685] sit malum quam sic
impie Christianos inter se committi
collidique Si mutua caritas illos non
adglutinat certe coniunget utcumque
communis hostis et qualiscumque
syncretismus erit ut absit vera concordia
igual julgamento sobre aquelas com as quais
tomados por um sentimento puro e piedoso
enfrentam as incursotildees dos baacuterbaros e com
perigo da proacutepria vida protegem a tranquilidade
puacuteblica Hoje nas igrejas colocam-se trofeacuteus de
guerra tingidos com o sangue daqueles por cuja
salvaccedilatildeo Cristo derramou o seu sangue por entre
as estaacutetuas dos apoacutestolos e dos maacutertires como se
depois disso fosse considerado piedoso natildeo
tornar-se maacutertires mas fazecirc-los Jaacute seria o
bastante que esses troacutefeus fossem exibidos no
foacuterum ou em um armaacuterio qualquer mas natildeo
devem expocirc-los os templos sagrados que devem
ser os mais puros e de forma alguma conveacutem que
recebam qualquer objeto manchado de sangue
Que os sacerdotes natildeo se apresentem pelo Deus
sagrado a natildeo ser para dirimir as guerras Se
nisso concordarem se em todos os lugares
inculcarem o mesmo enorme influecircncia hatildeo de
ter Ora se a guerra eacute uma fatal e doentia
propensatildeo do engenho humano de modo que
natildeo lhe eacute possiacutevel viver absolutamente sem ela
por que natildeo se dirige esse mal inevitaacutevel contra
os turcos embora fosse preferiacutevel atraiacute-los para a
religiatildeo de Cristo por meio da doutrina dos bons
costumes e de uma vida de inocecircncia do que
atacaacute-los com armas Se contudo como
dissemos a guerra natildeo pode ser completamente
evitada de todo modo atacar os turcos eacute um mal
menor do que os cristatildeos se enfrentarem e se
colidirem mutuamente de maneira tatildeo perversa
Se o amor muacutetuo natildeo os une pelo menos de
166
[688] Postremo magna pars pacis
est ex animo velle pacem Quibus enim
pax vere cordi est hi omnes pacis
occasiones arripiunt quae obstant aut
negligunt aut [690] amoliuntur permulta
ferunt dum tantum bonum sit incolume
Nunc ipsi bellorum seminaria quaerunt
quod ad concordiam facit elevant aut
dissimulant etiam quod ad bellum tendit
ultro exaggerant exulcerantque Pudet
referre ex cuiusmodi nugis quantas
excitent tragoedias et ex quam minuta
scintillula quae rerum tempestates
exoriantur Tunc illud iniuriarum agmen
venit in mentem [695] et suum quisque
malum sibi exaggerat at benefactorum
interim profunda oblivio ut iures
adfectari bellum Et saepe principum
privatum quiddam est quod orbem ad
arma compellit at plus quam publicum
esse debet ob quod bellum suscipiatur
Quin ubi nihil subest causae ipsi
dissidiorum causas sibi fingunt regionum
vocabulis ad odiorum alimoniam
abutentes et hunc stultae plebis [700]
errorem alunt magnates et in suum
abutuntur compendium alunt sacerdotes
quidam Anglus hostis est Gallo nec ob
aliud nisi quod Gallus est Scoto
alguma forma um inimigo comum poderia uni-
los e haveria ao menos uma espeacutecie de
harmonia ainda que longe de ser a verdadeira
concoacuterdia
Finalmente o primeiro e primordial
passo para a paz se realiza ao desejar
sinceramente a paz De fato quem tem o coraccedilatildeo
realmente repleto do desejo de paz aproveita
todas as oportunidades para estabelececirc-la diante
dos obstaacuteculos negligencia-os ou elimina-os
resigna-se a suportar muita coisa contanto que
se consiga manter incoacutelume um tatildeo grande bem
Atualmente entretanto satildeo os proacuteprios priacutencipes
que buscam disseminar as guerras enfraquecem
e ateacute dissimulam tudo o que promove a
concoacuterdia por iniciativa proacutepria exageram e
instigam tudo o que leva agrave guerra Envergonho-
me de mencionar com que tipo de ninharia
instigam tatildeo grandes trageacutedias e de quatildeo
diminutas centelhazinhas nascem tatildeo grandes
tempestades Entatildeo ressurge-lhes na mente
aquela ruptura provocada por uma tropa de
injuacuterias e cada qual exagera para si mesmo o
mal anteriormente sofrido mas esquece de todos
os benefiacutecios recebidos de forma a que endosses
o direito a fazer a guerra Muitas vezes um
interesse particular qualquer dos priacutencipes eacute
capaz de levar o mundo inteiro agraves armas Ora
aquilo que ocasiona a guerra deve ser mais do
que eacute puacuteblico Mais ainda onde natildeo haacute uma
causa real para o conflito eles mesmos inventam
motivos para divisotildees pronunciando os nomes
167
Britannus infensus est nec aliam ob rem
nisi quod Scotus est Germanus cum
Franco dissidet Hispanus cum utroque O
pravitatem disiungit inane loci
vocabulum Cur non potius tot res
conciliant Male vis Britannus Gallo cur
non potius [705] bene vis homo homini
Christianus Christiano Cur res frivola
plus apud istos potest quam tot naturae
nexus tot Christi vincula Locus corpora
dirimit non animos Separabat olim
Rhenus Gallum a Germano at Rhenus
non separat Christianum a Christiano
Pyrenaei montes Hispanos a Gallis
seiungunt at iidem non dirimunt
Ecclesiae communionem Mare dirimit
Anglos a Gallis at non dirimit [710]
religionis societatem Paulus Apostolus
indignatur audire inter Christianos has
voces Ego sum Apollo ego sum Cephae
ego sum Pauli nec impia cognomina sinit
secare Christum omnia conciliantem et
nos commune patriae vocabulum gravem
causam iudicamus cur gens in gentis
internecionem tendat Ne id quidem satis
nonnullorum animis bellorum avidis
prave dataque opera dissidiorum [715]
ansas quaerunt ipsam dividunt Galliam
et ea vocabulis distrahunt quae nec maria
nec montes nec vera regionum nomina
da regiatildeo inimiga de tal forma que alimentem os
oacutedios e natildeo apenas os magnatas como tambeacutem
alguns sacerdotes nutrem esse engodo da plebe
estulta para seu proveito pessoal Dizem que o
inglecircs eacute inimigo do francecircs sem qualquer outra
razatildeo exceto pelo simples fato de ser francecircs O
escocecircs eacute odioso para o bretatildeo natildeo por outro
motivo senatildeo por ser escocecircs O alematildeo discorda
do francecircs e o espanhol dos dois Oacute
perversidade O vatildeo vocaacutebulo de lugar desune
Por que natildeo podem antes tantas coisas unir Tu
bretatildeo queres mal ao francecircs Por que natildeo
podes como ser humano querer bem a outro ser
humano como cristatildeo a um outro cristatildeo Por
que uma tolice como essa tem mais poder sobre
os homens do que tatildeo grande nuacutemero de elos da
natureza de tantos viacutenculos instituiacutedos por
Cristo A geografia eacute capaz de separar os corpos
natildeo as almas O Reno separava antigamente o
territoacuterio gaulecircs do germacircnico mas o Reno natildeo
separa o cristatildeo do cristatildeo Os Pirineus separam
os espanhoacuteis dos franceses mas natildeo os separam
da comunhatildeo da Igreja Se o mar separa os
ingleses dos franceses natildeo rompe a unidade da
religiatildeo O apoacutestolo Paulo indigna-se ao ouvir
entre os cristatildeos as seguintes palavras Eu sou
de Apolos eu sou de Cefas eu sou de Paulordquo 130
e natildeo tolera que cognomes iacutempios dissolvam a
conciliaccedilatildeo universal realizada por Cristo Como
podemos julgar que o nome da paacutetria de cada um
130
ldquoEgo quidem sum Pauli ego autem Apollo ego vero Cephae ego autem Christi divisus est Christusrdquo (Prima ad
Corinthios 112-13)
168
distrahunt E Gallis Germanos faciunt ne
vel nominis consortio coalescat amicitia
Si in actionibus odiosis velut divortii
nec litem facile recipit iudex nec
quamlibet admittit probationem cur isti
in re omnium odiosissima quamlibet
frivolam causam admittunt [720]
Quinpotius id quod res est cogitant
mundum hunc communem esse patriam
omnium si patriae titulus conciliat ab
iisdem maioribus ortos omneis si facit
amicos sanguinis affinitas Ecclesiam
unam esse familiam ex aequo communem
omnibus Si domus eadem copulat
necessitudines in hanc partem ingeniosos
esse par est Toleras quaedam in socero
non ob aliud nisi quod socer est et nihil
toleras [725] in eo qui religionis
consortio frater est Multa condonas
generis propinquitati et nihil condonas
affinitati religionis Certe nullum
vinculum arctius alligat quam Christi
sodalitas Cur id solum ob oculos
obversatur quod animum exulcerat Si
paci faves sic cogita potius in hoc
laesit sed saepe alias profuit aut alieno
impulsu laesit
seja justificativa para que um povo se esforce por
exterminar outro povo Mas nem isso basta para
alguns espiacuteritos aacutevidos de guerras que de forma
perversa e acintosa se empenham em achar
pretextos para dissensotildees Procuram inclusive
dividir a Franccedila e a desagregam atraveacutes de
palavras que nem os mares nem os montes nem
as diferentes proviacutencias tecircm poder para desunir
Chamam a franceses ldquoalematildeesrdquo para impedir
que a amizade se fortaleccedila ainda que seja pela
comunhatildeo de nome Se nos processos litigiosos
como por exemplo o divoacutercio o juiz natildeo aceita
facilmente a causa nem admite irrestritamente
qualquer prova por que os homens admitem
qualquer causa friacutevola para a guerra que eacute a
mais litigiosa de todas as coisas Por que natildeo
pensam antes no seguinte Se a mera designaccedilatildeo
a paacutetria eacute capaz de unir os concidadatildeos este
mundo eacute a paacutetria comum de todos se a afinidade
de sangue eacute capaz de estabelecer relaccedilotildees de
amizade todos nascemos dos mesmos
antepassados se o lar em comum forma laccedilos de
parentesco a Igreja eacute uma soacute famiacutelia comum a
todos por igual Eacute justo que se mostrem
engenhosos tambeacutem nesse sentido Toleras algo
desagradaacutevel em teu sogro pelo simples fato de
ele ser teu sogro e natildeo toleras o quer for naquele
que pela comunidade de religiatildeo eacute teu irmatildeo
Se perdoas muitas coisas pelo parentesco
consanguiacuteneo natildeo perdoas os que satildeo teus
parentes pela religiatildeo Ora o fato eacute que nenhum
viacutenculo liga com maior forccedila do que a
169
[730] Postremo quemadmodum
apud Homerum dissidii causas quod
inter Agamemnonem et Achillem
intercesserat in Aten Deam reiiciunt qui
vocant ad concordiam ita quae excusari
non possunt aliquando fatis imputentur
aut malo cuipiam si libet genio et in
haec odium ab ipsis hominibus
transferatur Cur magis ad perniciem
suam sapiunt quam ad tuendam
felicitatem Cur ad [735] malum quam
ad bonum sunt oculatiores Qui paulo
cordatiores sunt expendunt consyderant
circumspiciunt priusquam privatum
quoque negotium aggrediantur Et clausis
oculis praecipites in bellum ipsi sese
coniiciunt praesertim cum semel
admissum excludi non possit quin e
pusillo fit maximum ex uno plura ex
incruento cruentum maxime cum haec
procella non unum aut alterum [740]
affligat sed universos pariter involvat
Quod si vulgus haec parum expendit
certe principis et optimatum partes sunt
fraternidade em Cristo Por que soacute se apresenta
aos olhos aquilo que a mente abomina Se tu
procuras a paz eacute melhor que tu cogites contigo
mesmo ldquose nisso ele me magoou talvez incitado
por algueacutem em outros casos poreacutem ele me tem
sido uacutetilrdquo
Finalmente assim como em Homero131
aqueles que aconselham a concoacuterdia lanccedilaram
toda culpa do atrito entre Agamenon e Aquiles
em Ates deusa da vinganccedila da mesma forma se
imponha aos fados ou talvez a algum mau
gecircnio a culpa daquelas ofensas que satildeo
indesculpaacuteveis transferindo para esses seres
imaginaacuterios o oacutedio contra os homens Por que os
homens satildeo mais inteligentes para sua proacutepria
destruiccedilatildeo do que para a preservaccedilatildeo do seu bem
estar Por que satildeo mais cuidadosos com o mal
do que com o bem Aqueles que tecircm um pouco
de sensatez preferem pesar considerar e
observar antes de se lanccedilarem a qualquer
negoacutecio privado Mas ainda assim eles se
lanccedilam de cabeccedila na guerra com os olhos
fechados apesar de a guerra ser um tipo de mal
que uma vez criado natildeo pode ser extirpado
facilmente Antes a partir de um pequeno
conflito faz-se um enorme de uma soacute batalha
muitas de um ataque incruento uma carnificina
chega-se ao cuacutemulo com esta procela que natildeo
abate apenas um ou dois mas atinge a todos por
igual Se o povo natildeo compreende essas coisas
131
Cf Homero Iliacuteada IX 505 XIX 91
170
haec secum reputare Sacerdotum est ista
rationibus omnibus infulcire volentibus
ac nolentibus ingerere Haerebunt tandem
si nusquam non audiantur
[744] Ad bellum gestis Primum
inspice cuiusmodi res sit pax cuiusmodi
bellum [745] quid illa bonorum quid
hoc malorum secum vehat atque ita
rationem ineas num expediat pacem
bello permutare Si res quaedam
admirabilis est regnum undique rebus
optimis florens bene conditis urbibus
bene cultis agris optimis legibus
honestissimis disciplinis sanctissimis
moribus cogita tecum haec felicitas mihi
perturbanda est si bello Contra si
quando conspexisti ruinas urbium [750]
dirutos vicos exusta fana desolatos
agros et id spectaculum miserandum ut
est visum est cogita hunc esse belli
fructum Si grave iudicas sceleratam
conductitiorum militum colluviem in
tuam regionem inducere hos civium
tuorum malo alere his inservire his
blandiri immo horum arbitrio te ipsum ac
tuam incolumitatem committere fac
cogites hanc esse belli conditionem Si
abominaris [755] latrocinia haec docet
bellum Si exsecraris parricidium hoc in
cabe aos priacutencipes e aos liacutederes refletir sobre
tudo isso consigo mesmos Com maior razatildeo
ainda cabe aos sacerdotes querendo ou natildeo
defender com todos os argumentos a causa
paciacutefica Obteratildeo o seu precircmio no final mesmo
que em nenhuma parte sejam ouvidos
Anseias pela guerra Primeiro observa
bem que eacute a paz e que eacute a guerra que bens traz
consigo a primeira e que males porta consigo a
segunda e assim ponderaraacutes se vale a pena
trocar a paz pela guerra Se um reino florescente
em toda parte com tudo o que haacute de melhor com
cidades bem construiacutedas com campos bem
cultivados com oacutetimas leis com o ensino mais
honesto e com os costumes mais santos eacute algo
admiraacutevel considera contigo mesmo se faccedilo a
guerra essa minha felicidade deve ser
perturbada Por outro lado se ao contemplares
as ruiacutenas das cidades as aldeias destruiacutedas os
templos em chamas e os campos desolados isso
te pareceu tal como de fato eacute um espetaacuteculo
lastimaacutevel pensa que satildeo estes os frutos da
guerra Se julgas perigoso a turba criminosa dos
mercenaacuterios ser conduzida para teu paiacutes com a
desgraccedila dos teus suacuteditos tu os alimentares ao
servi-los e bajulaacute-los e mais entregares a ti
mesmo e a tua seguranccedila ao arbiacutetrio desses
homens dedica-te a pensar que essa eacute a condiccedilatildeo
da guerra Se abominas os latrociacutenios a guerra eacute
que os ensina se execras os parriciacutedios na
guerra eacute que se aprendem De fato que hesitaccedilatildeo
vai sentir quando levado por forte emoccedilatildeo a
171
bello discitur Nam qui vereatur unum
occidere commotus qui levi
auctoramento conductus tot homines
iugulat Si praesentissima Reipublicae
pestis est legum neglectus silent leges
inter arma Si foedum existimas stuprum
incestum et his turpiora horum omnium
bellum magister est Si fons omnium
malorum est impietas [760] et religionis
neglectus haec belli procellis prorsus
obruitur Si iudicas pessimum esse
reipublicae statum cum plurimum
possunt qui pessimi sunt in bello
regnant sceleratissimi et quos in pace
suffigas in crucem horum in bellis
primaria est opera Quis enim melius per
devia ducet copias quam latro
exercitatus Quis fortius diripiet aedes
aut spoliabit templa quam parietum
perfossor aut sacrilegus [765] Quis
animosius feriet hostem et hauriet ferro
vitalia quam gladiator aut parricida
Quis aeque idoneus ad iniiciendum ignem
urbibus aut machinis quam incendiarius
Quis aeque contemnet fluctus marisque
discrimina ac pirata diutinis
praedationibus exercitus Vis palam
cernere quam res sit impia bellum
matar um soacute homem quem em troca de um
pequeno soldo degola tatildeo grande nuacutemero de
homens Se a praga se abate sobre a repuacuteblica
haacute indeferenccedila pela justiccedila porque as leis
silenciam132
em meio agraves armas
133 Se o estupro a
violecircncia e coisas ainda mais nefandas que estas
te parecem torpes lembra-te de que eacute justamente
a guerra a mestra de todas as accedilotildees mais
horrendas Se a impiedade e a negligecircncia para
com a religiatildeo satildeo a fonte de todos os males
considera que ela eacute totalmente destruiacuteda pelas
procelas da guerra Se julgas que a pior situaccedilatildeo
da repuacuteblica eacute quando muito podem os que satildeo
peacutessimos na guerra reinam os mais criminosos e
tecircm proeminecircncia aqueles que em tempos de
paz condenas agrave cruz Pois quem pode guiar as
tropas por caminhos tortuosos melhor do que um
experiente assaltante de estradas Quem estaacute
mais seguro em roubar casas ou pilhar templos
do que o arrombador ou o sacriacutelego 134
Quem eacute
mais valente em debelar o inimigo e furar-lhe as
entranhas com a espada do que o gladiador e o
parricida Quem eacute mais haacutebil em tocar fogo nas
cidades ou nas maacutequinas de guerra do que o
incendiaacuterio Quem poderia suportar melhor as
ondas e os perigos do mar do que o pirata
exercitado dia e noite nos saques Queres ver
com clareza quanto eacute iacutempia uma guerra
132
Cicero Mil 4 10
133 A expressatildeo ldquosilent leges inter armardquo remonta a Ciacutecero (Pro Milone 410) e Luciano (Pharsade 1277)
ldquoleges bello siluere coactaerdquo
134 Plauto Pseud 9 8 6
172
animadverte per quos geritur
[770] Si pio principi nihil
antiquius esse debet quam suorum
incolumitas huic bellum in primis
invisum sit oportet Si principis felicitas
est imperare felici pacem potissimum
amplecti debet Si praecipue optandum
bono principi ut imperet quam optimis
bellum detestetur oportet unde scatet
omnis impietatis sentina Si suas opes
esse putat quidquid cives possident
bellum omnibus rationibus [775] vitet
Quod ut felicissime cadat certe facultates
omnium atterit et quod honestis artibus
partum est in immanes quosdam
carnifices erogandum Iam illud etiam
atque etiam perpendant suam cuique
blandiri causam et suam cuique spem
arridere cum illa saepenumero pessima
sit quae commoto videatur aequissima
Et haec non raro fallit Sed finge causam
iustissimam finge exitum [780] belli
prosperrimum rationem fac ineas
omnium incommodorum quibus gestum
est bellum et commoditatum quas peperit
victoria et vide num tanti fuerit vincere
Vix umquam victoria contingit incruenta
Iam habes tuos humano sanguine
pollutos Ad haec supputa morum
publicaeque disciplinae iacturam nullo
compendio sarciendam Exhauris tuum
fiscum expilas populum oneras bonos
Observa quem as faz
Se para um priacutencipe piedoso nada deve
ser mais precioso do que a seguranccedila dos seus
suacuteditos eacute necessaacuterio que a guerra lhe seja
detestaacutevel acima de todas as coisas Se a
felicidade do priacutencipe consiste em governar para
a felicidade do seu povo ele deve optar
preferencialmente pela paz Se o principal
objetivo do bom priacutencipe consiste em governar
sobre os melhores eacute necessaacuterio que odeie a
guerra da qual jorra o esgoto de todo tipo de
impiedade Se o priacutencipe pensa que satildeo riquezas
suas os bens que seus suacuteditos possuam entatildeo
que evite a guerra por todas as razotildees pois eacute
certo que esta ainda que venha a ser vencida
arruiacutena os recursos de todos e as riquezas
conquistadas pelo trabalho honesto tecircm de ser
gastas com o sustento de certos carrascos
selvagens Eacute necessaacuterio ainda que considerem
mais e mais que todo homem lisonjeia-se com
sua proacutepria causa e a proacutepria esperanccedila que
acalenta lhe parece mais risonha a qual ainda
que muitas vezes se torne a pior das realidades
induz ao erro e parece justiacutessima a quem estaacute
perturbado Supotildee a mais legiacutetima das causas
considera o mais feliz desfecho para uma guerra
calcula todos os prejuiacutezos inerentes ao estado de
guerra e o lucro gerado pela vitoacuteria E vecirc se a
vitoacuteria compensou o investimento Quase nunca
ocorre uma vitoacuteria sem sanguinolecircncia o que
conquistaste estaraacute contaminado de sangue
humano Soma a isso que para obter a vitoacuteria os
173
[785] ad facinus excitas iacutemprobos neque
vero confecto bello protinus et belli
reliquiae sopitae sunt Obsolescunt artes
includuntur negociatorum commercia Ut
hostem includas prius temet ipsum a tot
regionibus cogeris excludere Ante
bellum omnes finitimae regiones tuae
erant pax enim rerum commerciis facit
omnia communia Vide quantam rem
egeris nunc vix tua est quae maxime tua
[790] est ditio Ut oppidulum excindas
quot machinis quot tentoriis opus est
Imitatitiam urbem facias oportet ut
veram evertas at minoris aliud verum
oppidum exstrui poterat Ne liceat hosti
prodire ex oppido tu exsul a patria sub
dio dormis Minoris constaturum erat
aedificare nova moenia quam aedificata
machinis demoliri Ut ne computem hic
quod pecuniarum effluit inter exigentium
[795] recipientium ac ducum digitos
quae sane pars est non minima Quod si
horum singula ad verum calculum
revoces ni compereris decima
impendiorum parte pacem redimi
potuisse patiar aequo animo me
profligari undique Sed parum excelsi
animi tibi videare si quid remittas
iniuriarum Immo nullum est certius
argumentum humilis animi minimeque
regii quam ulcisci Maiestati tuae [800]
non nihil decedere putas si cum finitimo
costumes e a ordem puacuteblica satildeo devastados e
isso estaacute perdido sem possibilidade de reparo
Exaures o teu tesouro expolias o povo oneras os
bons incitas os iacutemprobos para o crime E
acabada a guerra natildeo creias que as suas
consequecircncias se esvairiam imediatamente As
artes fragilizam-se os tratos comerciais cessam
Para sitiares o inimigo eacutes forccedilado a abandonar
primeiro muitas regiotildees Antes da guerra todos
os territoacuterios vizinhos eram teus pois com as
trocas comerciais a paz torna todos os bens
comuns Presta atenccedilatildeo no que fizeste Com a
guerra mal se pode dizer agora que te pertence o
teu proacuteprio territoacuterio Quantas maacutequinas de
guerra e quantas tendas satildeo necessaacuterias para
destruir uma cidadezinha Eacute preciso que
construas quase uma cidade falsa para
conquistares uma verdadeira quando seria
possiacutevel por preccedilo menor construir outra cidade
verdadeira Para impedir que o inimigo saia da
cidade sitiada dormes ao ar livre exilado da tua
paacutetria Sairia muito mais barato levantar novas
muralhas do que demolir as jaacute construiacutedas com
maacutequinas de guerra Isso sem contar a
quantidade de dinheiro que deve ser repassado agraves
matildeos dos cobradores dos recebedores e dos
generais que aliaacutes natildeo eacute de modo algum a
menor parte de teus gastos Se depois de
calculares um orccedilamento exato de cada um
desses itens natildeo chegares agrave conclusatildeo de que a
paz poderia ter sido comprada pela deacutecima parte
do que a guerra custou darei de bom grado
174
principe agens et fortasse cognato aut
affini fortassis alias bene de te merito de
tuo iure decedas aliquantulum At quanto
humilius deiicis maiestatem tuam dum
barbaris cohortibus et infimae
sceleratorum feci numquam explendae
auro subinde litare cogeris dum ad Cares
vilissimos simul ac nocentissimos
blandus ac supplex mittis legatos dum
[805] tuum ipsius caput dum tuorum
fortunas illorum credis fidei quibus nihil
est neque pensi neque sancti Quod siquid
iniquitatis videbitur habere pax cave sic
cogites hoc perdo sed tanti pacem emo
[808] At dixerit argutior aliquis
Facile donarim si res ad me privatim
pertineat Princeps sum negotium
publicum velim nolim ago Non facile
permissatildeo para que me expulsem de toda parte
Contudo a ti pareccedila pouca grandeza de espiacuterito
se retribuiacuteres alguma das ofensas Na verdade
eu te asseguro que natildeo haacute prova mais certa de
um espiacuterito mesquinho e nada reacutegio do que o
desejo de vinganccedila Julgas rebaixar tua
majestade se de modo magnacircnimo renuncias a
um pouquinho de teu direito quando tens uma
pendecircncia com um priacutencipe vizinho que aliaacutes
bem pode ser teu parente ou chegado por
afinidade e que talvez em outra ocasiatildeo te
tenha feito o bem Mas como humilhas a tua
majestade muito mais quando eacutes forccedilado a
aplacar com ouro os insaciaacuteveis esquadrotildees de
baacuterbaros ou ainda pior a mais vil raleacute dos
criminosos quando numa posiccedilatildeo de lisonja e
suacuteplica envias embaixadores para contratar os
mais vis e perversos mercenaacuterios135
quando
fazes a tua proacutepria cabeccedila e a sorte dos teus
suacuteditos depender da lealdadade desses teus
aliados para quem natildeo existe nada de sagrado ou
respeitaacutevel Quanto a isso se parecer que a paz
tem algo de iniacutequo evita pensar assim ldquoEu
perco istordquo mas pensa antes ldquopor tanto compro
a pazrdquo
Mas algum priacutencipe mais arguto poderia
objetar ldquose dependesse soacute de mim perdoaria
com facilidade Como sou priacutencipe queira ou
natildeo queira devo cuidar de um interesse
135
Segundo Diodoro Siacuteculo Careacutes teria sido um general ateniense que viveu no seacuteculo IV a C Careacutes passou
para a histoacuteria como traidor porque estando os gregos em guerra contra os argivos Careacutes evitou atacar os
inimigos e feriu os aliados de Atenas promoveu uma guerra civil e desacreditou seu povo diante de seus aliados
(Diodoro Siacuteculo Biblioteca Histoacuterica Livro XV 73)
175
bellum suscipiet [810] qui nihil nisi
publicum spectat atqui contra videmus
omneis belli causas ex his rebus nasci
quae nihil ad populum pertineant Vis
hanc aut illam ditionis partem vindicare
quid istud ad populi negotium Vis
ulcisci qui filiae renunciavit quid hoc ad
rempublicam Haec expendere haec
perspicere vere sapientis vereque magni
est principis Quis umquam aut latius
imperavit aut splendidius [815] Octavio
Augusto42
At is cupiebat etiam deponere
imperium si quem vidisset reipublicae
magis salutarem principem Merito
laudata est ab egregiis auctoribus vox illa
cuiusdam imperatoris Pereant inquit
filii mei si quis alius melius sit
reipublicae consulturus Hos animos
reipublicae praestiterunt homines impii
quod ad Christi religionem attinet et
Christiani principes usque [820] adeo
vilem ducunt populum Christianum ut
gravissimo orbis incendio privatas suas
cupiditates vel ulcisci velint vel explere
puacuteblicordquo Ora quem atende exclusivamente ao
interesse puacuteblico natildeo aceitaraacute a guerra com
facilidade A verdade eacute que tambeacutem aqui vemos
que quase todas as causas da guerra nascem de
interesses que em nada concernem ao povo
Queres reivindicar teu domiacutenio sobre este ou
aquele feudo Pois que proveito tira o povo
desse projeto Queres tirar a desforra do priacutencipe
que necusou desposar a tua filha136
Mas o que
isto tem a ver com os interesses da repuacuteblica
Refletir sobre essas questotildees e observar todas
essas circunstacircncias eacute proacuteprio de um priacutencipe
saacutebio e grande Quem eacute que reinou de modo
mais esplecircndido e por tanto tempo do que Otaacutevio
Augusto Mas ele proacuteprio desejava vivamente
renunciar ao impeacuterio caso encontrasse algueacutem
que pudesse vir a ser um priacutencipe mais capaz de
promover a repuacuteblica137
Com meacuterito foi louvado
pelos autores egreacutegios aquela fala do imperador
ldquoPereccedilam os meus filhos se houver algueacutem que
cuide melhor da repuacuteblicardquo138
Homens iacutempios
do ponto de vista da religiatildeo de Cristo foram
capazes de cultivar esses pensamentos acerca da
repuacuteblica e agora priacutencipes cristatildeos desprezam
42
deponere imperium (cf Suet Aug 28)
136 Segundo Margolin (1992 p 950) alusatildeo agrave filha do Imperador Maximiliano Margarida da Aacuteustria noiva de
Carlos VIII mas rejeitada por seu pai em 1492
137 Como tradutor tenho convicccedilatildeo de que Erasmo utiliza a palavra repuacuteblica em um sentido muito proacuteximo ao
que hoje denominamos estado O priacutencipe natildeo protege a repuacuteblica entendida como sistema de governo oposto agrave
monarquia mas o estado como um aparato que visa o bem comum Conforme Suetocircnio (Iulius 83) Ceacutesar
Augusto foi o fundador do Impeacuterio Romano e primeiro Imperador que administrou o impeacuterio por mais de 40
anos Augusto iniciou o periacuteodo de paz relativa chamado de Pax Romana Embora tenha expandido o impeacuterio
estabeleceu relaccedilotildees paciacuteficas com outros reinos e reformou o sistema tributaacuterio desenvolveu as vias romanas
com um sistema oficial de correio e outras obras arquitetocircnicas em Roma obtendo grande popularidade
138 Cf Hist Aug Auid Cast 2 8
176
[822] Iam audio quosdam ita
tergiversantes ut negent se tutos esse
posse nisi vim improborum acriter
propellant Cur igitur inter innumeros
imperatores Romanos soli Antonini pius
et philosophus petiti non sunt Nisi quod
nemo tutius [825] regnat quam qui
paratus est et deponere utpote quod
reipublicae gerat non sibi Quod si nihil
vos movet neque naturae sensus neque
pietatis respectus neque tanta calamitas
certe Christiani nominis probrum animos
vestros in concordiam redigat Quota
mundi portio tenetur a Christianis Atque
haec tamen est illa civitas in aedito monte
sita spectaculum facta deo et hominibus
[830] At quid sentire putandum est quid
loqui quae probra in Christum evomere
Christiani nominis hostes ubi vident
Christianos sic inter sese concertare
levioribus de causis quam ethnici
crudelius quam impii machinis
tetrioribus quam ipsi Quorum inventum
est bombarda Nonne Christianorum Et
quo res sit indignior his induuntur
apostolorum nomina insculpuntur
o povo cristatildeo a tal ponto que incendeiam o
mundo inteiro para saciar sua sede de cobiccedila ou
seu desejo de vinganccedila
Jaacute ouccedilo o argumento de alguns que me
criticam Negam que se possa conservar sua
seguranccedila se natildeo lutarem de forma acerba contra
o iacutempeto dos iacutemprobos Por que entatildeo dentre os
inuacutemeros imperadores romanos somente os
Antoninos139
o Pio e o Filoacutesofo natildeo foram
atacados Natildeo seraacute porque ningueacutem reina com
maior seguranccedila do que aquele que estaacute
preparado para renunciar sabendo que serve aos
interesses da repuacuteblica e natildeo a seus proacuteprios
caprichos Se nada disso vos comove nem o
bom senso da natureza nem o respeito oriundo
da piedade nem a visatildeo de tantas calamidades
que ao menos o oproacutebrio que recai sobre o nome
cristatildeo conduza as vossas mentes agrave concoacuterdia
Qual eacute a porccedilatildeo do mundo pertencente aos
cristatildeos Esta eacute no entanto aquela cidade
edificada sobre um monte elevado espetaacuteculo
para Deus e para os homens Mas que se deve
julgar que pensam O que dizem Que espeacutecie
de ofensas se espera que vomitem contra Cristo
os inimigos do nome cristatildeo ao verem o modo
como os cristatildeos lutam entre si movidos por
causas mais insignificantes do que as dos
pagatildeos de modo mais cruel do que os iacutempios e
com maacutequinas mais terriacuteveis do que aquelas que
139
O Antonino Pio mencionado por Erasmo seria o imperador romano da dinastia Nerva-Antonina que governou
entre os anos de 138 e 161 e Marcus Antonius philosophus que foi imperador conhecido sob o nome de Marcus
Aurelius Antoninus (161-180) (Historia Augusta Ant Pius 133 Marc Ant Philos 185)
177
imagines O crudelis [835] irrisio Paulus
ille pacis hortator perpetuus tartaream
machinam torquet in Christianum Si
cupimus Turcas ad Christi religionem
adducere prius ipsi simus Christiani
Numquam hoc illi credent si quod est
perspiciant nusquam magis saevire quam
apud Christianos id quod Christus unum
omnium maxime detestatus est Et quod
Homerus ethnicus demiratur in ethnicis
cum suavium [840] etiam rerum satietas
sit somni cibi potus choreae musices
belli infelicis nullam esse satietatem id
apud eos verissimum est quibus ipsum
etiam belli vocabulum abominandum
esse oportuit Roma furiosa quondam illa
bellatrix tamen Iani sui templum
aliquoties vidit clausum Et qui convenit
apud vos nullas esse bellandi ferias
Quonam ore praedicabitis eis Christum
pacis auctorem ipsi [845] perpetuis
dissidiis inter vos tumultuantes Iam quos
putatis animos addit Turcis vestra
discordia Nihil enim facilius quam
vincere dissidentes Vultis illis esse
formidabiles Concordes estote Cur ultro
vobis et praesentis vitae iucunditatem
invidetis et a futura felicitate vultis
excidere Multis malis per se obnoxia est
vita mortalium magnam molestiae
eles mesmos usam Quem inventou os canhotildees
Acaso natildeo foram os cristatildeos E para tornar isso
ainda mais indigno revestem as armas de
destruiccedilatildeo com os nomes dos Apoacutestolos e
esculpem sobre elas imagens de santos Oacute cruel
escaacuternio Que o nome de Paulo o perpeacutetuo
arauto da paz seja dado a uma maacutequina infernal
apontada contra os cristatildeos Se desejamos
converter os turcos agrave religiatildeo de Cristo eacute
necessaacuterio que primeiro noacutes mesmos sejamos
cristatildeos Nunca eles acreditaratildeo se constatarem
em toda parte ndash e isto eacute inegaacutevel ndash que grassa em
nenhum lugar mais que entre os cristatildeos aquilo
que Cristo destestou acima de todas as coisas E
aquilo que um poeta pagatildeo como Homero140
espanta a pagatildeos quando constata que haacute
saciedade ateacute para as coisas agradaacuteveis da vida
como o sono a comida a bebida as danccedilas e a
muacutesica mas natildeo para a infeliz guerra antes
deveria tecirc-lo espantado ver que era a coisa mais
verdadeira do mundo para homens que deveriam
abominar ateacute o vocaacutebulo guerra Ateacute mesmo a
outrora impetuosa Roma aquela cidade
guerreira viu muitas vezes fechado o seu templo
de Jano141
E natildeo haacute entre voacutes algueacutem que
concorde que se faccedila uma treacutegua na guerra
Como podereis abrir a boca para pregar aos
turcos sobre Cristo o autor da paz se voacutes
mesmos vos confrontais em perpeacutetuas divisotildees
internas Jaacute pensastes que reaccedilatildeo vossa discoacuterdia
140
Cf Hom Il XIII 636-639
141 Cf Suet Aug 22
178
partem adimet concordia [850] dum
mutuis officiis alius alium aut consolatur
aut iuvat Si quid boni obtinget id tum
suavius tum communius reddet
concordia dum amicus impertit amico et
benevolus benevolo gratulatur Quam
frivola sunt quamque mox peritura pro
quibus inter vos tumultus est Mors
omnibus imminet non minus Regibus
quam plebeiis Quos tumultus ciet
animalculum mox fumi in morem
evaniturum [855] In foribus adest
aeternitas Quorsum attinet pro rebus
istis umbraticis perinde moliri quasi vita
haec esset immortalis O miseros qui
felicem illam piorum vitam non credunt
aut non sperant impudentes qui sibi
pollicentur e bellis ad eam iter esse cum
illa nihil sit aliud quam ineffabilis
quaedam felicium animorum communio
cum iam ad plenum continget quod
Christus tam enixe [860] rogaverat
patrem coelestem ut sic inter se
iungerentur illi quemadmodum ipse patri
iunctus esset Ad hanc summam
concordiam qui possitis esse idonei nisi
eam interim pro virili meditemini Ut
non subito ex spurco helluone fit angelus
ita non subito ex bellatore sanguinario
martyrum et divorum socius Eia satis
iam superque fusum est Christiani si
parum est humani sanguinis satis in
produz nos turcos Pois nada mais faacutecil do que
vencer aqueles que natildeo se entendem Quereis
tornar-vos temiacuteveis para eles Ponde-vos de
acordo Por que recusais deliberadamente os
prazeres da vida presente e quereis perder os da
felicidade futura Por si soacute a vida dos mortais
estaacute repleta de muitos males mas grande parte
desse incocircmodo seria aliviada pela concoacuterdia que
faz que uns aos outros se ajudem ou ao menos
consolem-se com serviccedilos muacutetuos Se algum
benefiacutecio for dado a algueacutem a concoacuterdia faraacute tal
bem tanto mais agradaacutevel quanto mais for
extensivo aos demais o amigo partilhando-o
com o amigo e sentindo alegria com a alegria do
outro Como as guerras satildeo friacutevolas e por quatildeo
levianas questotildees se promove o conflito entre
voacutes A morte ameaccedila a todos e natildeo menos aos
reis que aos plebeus Quantas discoacuterdias produz
um animalzinho despreziacutevel que logo
desapareceraacute como fumaccedila ao vento Ao sair da
vida a eternidade estaacute agraves portas Que proveito haacute
em construir suas aspiraccedilotildees em coisas tatildeo vatildes
como se a vida presente fosse imortal Oacute
miseraacuteveis que natildeo acreditam ou natildeo esperam
aquela vida feliz dos homens piedosos Homens
impudicos que se persuadem de que existe um
caminho que leva das guerras agravequela vida
quando ela natildeo eacute senatildeo a inefaacutevel comunhatildeo de
todas as almas bem-aventuradas quando se
realizar finalmente em toda a plenitude aquilo
que Cristo havia pedido tatildeo assiduamente ao Pai
Celeste que todos se unissem como o Filho estaacute
179
[865] mutua debacchatum exitia satis
hactenus Furiis Orcoque litatum satis diu
quae Turcarum pascat oculos Acta est
fabula Saltem aliquando post nimium diu
toleratas bellorum miserias resipiscite
Quicquid hactenus insanitum est fatis
imputetur Placeat Christianis quae
quondam profanis placuit superiorum
malorum oblivio Posthac communibus
consiliis in pacis studium incumbite
[870] Et sic incumbite ut non stupeis sed
solidis atque adamantinis vinculis coeat
numquam dirumpenda
[872] Vos appello principes de
quorum nutu potissimum pendent res
mortalium qui Christi principis
imaginem inter mortales geritis
Agnoscite regis vestri vocem ad pacem
vocantis existimate totum orbem diutinis
fessum malis hoc a vobis [875] flagitare
unido ao Pai Natildeo podeis ser dignos de gozar
essa suma concoacuterdia a natildeo ser que a prepareis o
mais possiacutevel Assim como eacute impossiacutevel que
subitamente um glutatildeo sujo se transforme em um
anjo assim tambeacutem natildeo eacute de repente que de um
guerreiro sanguinaacuterio surge um amigo dos
maacutertires e dos divinos Eia Basta Jaacute se
derramou muito sangue cristatildeo como se fosse
pouco dizer sangue humano Basta de os homens
se deixarem tomar por essa loucura de
destruiccedilotildees muacutetuas Decirc-se agora um basta de
fazer oferendas agraves fuacuterias e ao Orco Basta o que
haacute muito divirte os olhos dos turcos Depois de
tolerar as miseacuterias das guerras por tanto tempo
arrependei-vos ao menos uma vez Que sejam
imputados aos fados as insanidades todas
praticadas ateacute hoje Que os cristatildeos natildeo se
envergonhem em fazer como outrora os pagatildeos
esquecer os males passados Depois por
deliberaccedilotildees comuns aplicai-vos agrave preservaccedilatildeo
da paz E aplicai-vos de tal forma que ela se
firme com laccedilos natildeo de tecido mas soacutelidos e
mais inquebraacuteveis que o diamante que jamais
romper-se-atildeo
Apelo a voacutes priacutencipes que com um
miacutenimo gesto alteram a sorte dos mortais voacutes
que representais entre os homens o exemplo do
Cristo Priacutencipe Reconhecei a voz do vosso
Mestre que vos chama agrave paz Convencei-vos de
que o mundo todo fatigado de demasiados
males suplica isso de voacutes Se haacute algueacutem a quem
uma ofensa ainda machuque parece justo que a
180
Si quid cui dolet etiam aequum est hoc
publicae omnium felicitati donare Maius
est negotium quam ut levibus causis
debeat retardari Appello vos sacerdotes
deo sacri hoc studiis omnibus exprimite
quod deo gratissimum esse scitis Hoc
depellite quod illi maxime invisum
Appello vos theologi pacis evangelium
praedicate hanc semper popularibus
auribus occinite [880] Appello vos
episcopi aliique dignitate Ecclesiastica
praeminentes ad pacem aeternis vinculis
adstringendam vestra valeat auctoritas
Appello vos primates et magistratus ut
sapientiae regum ut pietati pontificum
vestra voluntas sit adiutrix Vos appello
promiscue quicumque Christiano nomine
censemini consentientibus animis in hoc
conspirate Hic ostendite quantum valeat
adversus potentum [885] tyrannidem
multitudinis concordia Huc pariter
omnes omnia sua consilia conferant
Iungat aeterna concordia quos tam multis
rebus coniunxit natura pluribus Christus
Communibus studiis agant omnes quod
ad omnium ex aequo felicitatem pertinet
[889] Huc invitant omnia primum
ipse naturae sensus atque ipsa ut ita
dicam humanitas [890] Deinde totius
humanae felicitatis Princeps et Auctor
Christus Ad haec tam multa pacis
perdoe em nome da felicidade puacuteblica de todos
Este assunto eacute da maior prioridade para ser
protelado por motivos insignificantes Apelo a
voacutes sacerdotes consagrados para Deus
Empenhai-vos zelosamente em pregar aquilo que
sabeis que eacute a coisa mais grata a Deus e em
dissuadir daquilo que Ele mais detesta Apelo a
voacutes teoacutelogos Pregai o Evangelho da paz
trombeteai sempre isto nos ouvidos do povo
Apelo a voacutes bispos e demais dignataacuterios
eclesiaacutesticos que a vossa autoridade sirva para
atar a paz com viacutenculos eternos Apelo a voacutes
nobres e magistrados para que auxilies com a
vossa vontade a sabedoria dos reis e a piedade do
pontiacutefice Apelo a todos voacutes quem quer que
sejais que vos designeis com o nome de cristatildeo
para que vos coloqueis de acordo e sejais
unacircnimes no projeto da paz Mostrai aqui que a
concoacuterdia dos povos vale mais que tirania dos
poderosos Que todos ofereccedilam por igual todos
os seus conselhos para essa finalidade Que a
concoacuterdia eterna una aqueles a quem a natureza
uniu por muitos viacutenculos mas que Cristo uniu
por muitos mais Que todos em suas atividades
cotidianas procurem o que por igual interessa agrave
felicidade de todos
Tudo nos convida a isso Em primeiro
lugar o proacuteprio instinto da natureza e se assim
posso dizer a proacutepria humanidade Em segundo
lugar o proacuteprio Cristo priacutencipe e autor de toda
felicidade humana Depois as incontaacuteveis
vantagens da paz contrastadas com o nuacutemero
181
commoda tot belli calamitates Vocant
huc ipsi principum animi iam velut
adflante deo ad concordiam propensi En
pacificus ille placidusque Leo signum
omnibus extulit ad pacem invitans
vereque Christi vicarium agens Si vere
oves estis sequimini pastorem Si filii
audite patrem Vocat huc [895] ille non
titulo tantum Christianissimus Galliarum
rex Franciscus qui pacem nec emere
gravatur nec usquam suae maiestatis
habet rationem modo publicae paci
consulat hoc denique vere splendidum ac
regium esse docens de genere humano
quam optime mereri Vocat huc
clarissimus princeps Carolus incorruptae
indolis adolescens Nec abhorret Caesar
Maximilianus nec detractat [900]
inclytus Angliae rex Henricus Tantorum
principum exemplum caeteros libenter
imitari par est Maxima plebis pars
bellum detestatur pacem orat Pauculi
quidam modo quorum impia felicitas a
publica pendet infelicitate bellum optant
Quorum improbitas ut plus valeat quam
imenso das calamidades da guerra Convidam agrave
paz ateacute mesmo as inclinaccedilotildees dos priacutencipes que
como que inspirados por Deus jaacute estatildeo
propensos agrave concoacuterdia Eis aquele paciacutefico e
tranquilo Leatildeo142
que diante de todos ergueu o
estandarte a fim de convidar agrave paz e agiu como
autecircntico Vigaacuterio de Cristo Se verdadeiramente
sois ovelhas segui o pastor Se sois filhos
escutai o pai Convida agrave paz o celebrado
Francisco143
rei da Franccedila cristianiacutessimo natildeo
apenas de tiacutetulo o qual natildeo soacute natildeo se
envergonha de comprar a paz como tambeacutem natildeo
se mostra demasiadamente zeloso de sua
majestade contanto que seja para cuidar da paz
puacuteblica ensinando enfim que eacute proacuteprio de um
espiacuterito realmente esplecircndido e reacutegio ser
merecedor da maior gratidatildeo do gecircnero humano
Convida agrave paz o preclariacutessimo Priacutencipe
Carlos144
jovem de iacutendole incorruptiacutevel E natildeo
descuida de mim o Imperador Maximiliano145
assim como natildeo deprecia Henrique o iacutenclito rei
da Inglaterra146
Eacute justo que os demais imitem
com toda alegria o exemplo de tatildeo grandes
priacutencipes O povo em sua maioria detesta a
guerra e faz votos pela paz Reduzido eacute o nuacutemero
142
Papa Leatildeo X
143 Francisco I (1494-1547) Rei da Franccedila de 1515 ateacute a sua morte Queixa da Paz foi publicada em 1517 dois
anos apoacutes Francisco herdar o governo
144 Carlos V (1500-1558) herdeiro do Imperador do Sacro Impeacuterio Romano Alematildeo com apenas 17 anos de
idade por ocasiatildeo da publicaccedilatildeo da Querela Carlos soacute assumiria o Impeacuterio Habsburgo em 1519
145 Maximiliano I (1459-1519) contava apenas 18 anos na eacutepoca da publicaccedilatildeo do Querela morreria dois anos
depois
146 Henrique VIII (1491-1547) Rei da Inglaterra de 1509 ateacute a sua morte Erasmo elogia a catolicidade do rei
inglecircs porque este seria excomungado somente em 1533 e romperia com Roma em 1536
182
bonorum omnium voluntas aequum sit
nec ne vos ipsi expendite Videtis
hactenus nihil actum foederibus nihil
[905] promotum affinitatibus nihil vi
nihil ulciscendo Nunc contra periculum
facite quid possit placabilitas quid
beneficentia Bellum e bello seritur ultio
trahit ultionem Nunc gratia gratiam
pariat et beneficium beneficio invitetur
isque regalior videatur qui plus de suo
iure concesserit Non successit quod
humanis studiis gestum est At fortunabit
ipse Christus pia consilia quae se [910]
autore et auspice viderit suscipi Aderit
dexter adspirabit favebitque faventibus
ei rei cui favit ipse plurimum privatos
adfectus publica vincat utilitas
Quamquam dum huic consulitur et sua
cuique fortuna melior reddetur
principibus regnum erit augustius si piis
ac felicibus imperent ut legibus regnent
magis quam armis proceribus maior
veriorque dignitas sacerdotibus otium
tranquillius [915] populo quies uberior
et ubertas quietior nomen Christianum
formidabilius crucis hostibus Denique
singuli singulis et omnes omnibus cari
simul [917] et iucundi eritis super omnia
Christo grati cui placuisse summa
felicitas est [918] Dixi
daqueles que optam pela guerra porque sua
felicidade iacutempia depende da infelicidade puacuteblica
Ponderai voacutes mesmos se eacute justo que a maldade
destes tenha mais forccedila do que a vontade de
todos os homens bons Vedes que ateacute o presente
momento nada se conseguiu com tratados nada
foi feito com a promoccedilatildeo de matrimocircnios
poliacuteticos nada se obteve pela forccedila nada se
construiu com a vinganccedila Fazei entatildeo a
experiecircncia do poder da clemecircncia e da boa
vontade Guerra semeia guerra vinganccedila atrai
vinganccedila Que agora a indulgecircncia decirc agrave luz a
indulgecircncia e um favor feito a algueacutem convide a
outro favor Que se avalie como possuidor de
realeza aquele que mais conceder os seus
proacuteprios direitos em benefiacutecio da paz Natildeo se
realizou aquilo que foi tentado apenas com as
providecircncias humanas mas o proacuteprio Cristo traraacute
ecircxito agraves decisotildees piedosas que vir que satildeo
concebidas tendo-o como autor e guia supremo
Estaraacute presente de forma propiacutecia inspiraraacute e
favoreceraacute aqueles que favorecem aquilo a que
ele favoreceu sobremaneira Que a utilidade
puacuteblica supere as paixotildees privadas Ateacute porque
enquanto cada um se ocupa desta torna melhor
sua proacutepria sorte os priacutencipes seratildeo mais
augustos se governarem suacuteditos piedosos e
felizes reinando sob a eacutegide das leis mais do que
pelas armas Os nobres gozaratildeo de maior e mais
autecircntica dignidade os sacerdotes usufruiratildeo de
um repouso mais tranquilo o povo teraacute uma
tranquilidade mais proacutespera ou uma
183
prosperidade mais tranquila O nome cristatildeo seraacute
mais temido pelos inimigos da cruz Em suma
todos e cada um de voacutes sereis em tudo mais
amados e agradaacuteveis uns para os outros e cada
um de todos e sobretudo sereis mais gratos a
Cristo a quem agradar consiste a suma
felicidade dessa vida Tenho dito
184
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