Post on 11-Nov-2018
galileu.globo.com
Os cartéis que parecem grandes empresas50
pOr que cientistas vãO embOra dO brasil72
a pesquisadOra argentina que quer derrOtar a dengue e O zika p. 68
298E D I ç Ã O
exem
plar
de
assi
nant
e
vend
a pr
oibi
da
R$ 14,00
mai. 16
62 minerar asteroides: O planO dOs biliOnáriOs
car
ga
tr
ibu
tár
ia f
eder
al
apr
ox
. 4,6
5%
dossiê Aborto
20%
das brasileiras com menos de 40 anos já
interromperam gravidez
Igrejas neopentecostais incentivam fiéis a negligenciar tratamento médico — e quem paga a conta é o Estado
p. 38
quando a cura é um bom negócio
JESUS SALVAf i é i s d e i g r e j a s n e o p e n t e c o s t a i s a b a n d o n a m t r a t a m e n t o m é d i c o e , q u a n d o a c o n d i ç ã o d e l e s p i o r a , r e c o r r e m a o s i s t e m a p ú b l i c o d e s a ú d e — q u e é s u s t e n t a d o p e l o m e s m o e s t a d o q u e i s e n t a a s i g r e j a s d e i m p o s t o s e p e r m i t e a c o n s t r u ç ã o d e t e m p l o s i r r e g u l a r e s
reportagem Juliana DeoDoro
edição Thiago TanJi
Foto Tomás arThuzzi
design rafael quick
38
maquiagem moisés cosTaprodução beaTriz liranço
vez de exorcizar a segunda participante, que
se contorcia como em um filme de terror.
Por fim, ela cedeu. “Você estava sentindo
alguma coisa?”, perguntou o bispo. “Dores,
muitas dores”, respondeu a mulher. “Pode
ir ao médico que garanto: o seu sofrimento
acabou. A senhora está curada em nome de
Jesus.” Centenas de fiéis, que até então as-
sistiam à cena de mãos dadas e em silêncio,
comemoraram em uníssono: “Amém!”.
Localizada na região central da cidade
de São Paulo, a Catedral do Brás realiza
dois cultos de cura todas as terças-feiras,
um pela manhã e outro à tarde. À noite,
a celebração é no Templo de Salomão,
que fica a menos de cem metros dali e
pertence à mesma congregação religio-
sa, a Igreja Universal do Reino de Deus.
Exorcismos acontecem em quase todos os
cultos, assim como depoimentos de pes-
soas que foram curadas e participaram
de rituais para tirar a doença do corpo.
O bispo distribui bênçãos e conselhos so-
bre como levar a vida, que incluem sem-
pre a premissa de obediência a Deus. Ao
final da celebração, os fiéis recebem um
pacote com um lenço umedecido com a
água do Rio Jordão e são instruídos a pas-
sá-lo na cabeça, nas costas, no peito, nas
mãos e nos pés todos os dias — isso deve
ser feito em casa, após a leitura de um
salmo. Mas se a fé faz parte do processo
de cura, também não se pode esquecer
das contribuições para a igreja feitas por
meio do dízimo ou de doações avulsas que
assistentes recolhem em sacos de veludo
ainda durante os cultos. De acordo com o
discurso das principais lideranças religio-
sas, Deus retribuirá a oferta com recom-
pensas sem fim, uma vida de prosperida-
de e realizações financeiras e pessoais.
Nos cultos, um dos momentos mais va-
lorizados é o dos testemunhos. É ali que
são contadas as histórias de sucesso que
inspiram e incentivam os fiéis, como a de
Dona Lurdes Matos, de 60 anos, que par-
ticipa da Igreja Universal como obreira,
ajudando os pastores durante os cultos.
Ela foi diagnosticada com câncer no reto
e submetida a uma cirurgia para retirar o
tumor em janeiro. Depois de 46 dias inter-
nada, recebeu alta do médico para “mor-
rer em casa”. Em uma terça-feira, faltou
ao tratamento para ir ao culto. O bispo,
então, pediu a ela que comesse um peda-
ço de pão. “Há quanto tempo a senhora
não comia pão?”, perguntou, enquanto ela
o altar, uma senhora em uma
cadeira de rodas, com a pele
amarelada causada por um
câncer no fígado, era exorci-
zada. Com a mão na cabeça da enferma, o
bispo gritava ao demônio responsável pela
doença que saísse daquele corpo imóvel e
aparentemente sem forças. Outra mulher
participava daquela sessão de cura: ajoe-
lhada e com os braços torcidos para trás,
como se estivesse possuída, ela deveria re-
ceber os espíritos ruins da senhora da ca-
deira de rodas. Feita a transferência, foi a
colocava pequenos pedaços do alimento
na boca. Duas semanas depois, a fiel es-
tava de volta: animada, subiu sozinha até
o altar e contou ter ganhado cinco qui-
los desde o último depoimento. “O mé-
dico disse que, se melhorar um pouco
mais, posso deixar de fazer o tratamento.
Há duas semanas, se tivesse ido ao hos-
pital em vez de vir aqui, não teria saído
mais”, afirmou. Satisfeito, o bispo per-
guntou: “Paguei alguma coisa para a se-
nhora falar isso aqui?”. Dona Lurdes e
os fiéis riram. “Nada”, ela respondeu.
N
Elementos reli-giosos do Antigo Testamento são
utilizados na Igreja Universal. O discurso dos pastores tem como base a
ideia de cura e prosperidade
4140
750 metros do Templo de
Salomão, a Unidade Básica
de Saúde (UBS) do Brás atende mais de
12 mil pacientes pelo Programa de Saúde
da Família — o bairro, conhecido pelas
confecções de roupas e pela presença de
comércio popular, conta com uma popu-
lação de cerca de 30 mil pessoas. Os ca-
dastrados, moradores daquela região, são
acompanhados por uma equipe que inclui
médico, enfermeiro e nutricionista, entre
outros especialistas. Em uma área com
mais de 14 igrejas pentecostais e neopente-
costais em seu entorno, o discurso de cura
e salvação dos cultos torna-se
um problema de saúde pública:
são frequentes os casos de
pacientes que pararam de
tomar remédios, deixaram
de comparecer a consultas ou
não receberam os agentes de
saúde em casa motivados pela
religião. Há quatro anos tra-
balhando na UBS, o médico
Victor Hugo Vallois se lembra
de pacientes que recusaram
o tratamento: os sintomas da
doença retornaram com mais
intensidade, e eles tiveram de
voltar ao serviço de saúde de
emergência. “Impressionam esses ca-
sos porque são pacientes que iniciam o
tratamento, têm uma boa resposta e, de
repente, por alguma razão, acabam assu-
mindo esse discurso da crença de forma
impregnada”, afirma o médico.
A região do Brás, por sinal, foi o berço
das primeiras igrejas pentecostais brasilei-
ras: com uma proposta muito menos libe-
ral que o protestantismo clássico, o mis-
sionário ítalo-americano Luigi Francescon
chegou ao bairro paulistano em 1910 para
fundar a Congregação Cristã no Brasil.
A partir de então, o compromisso de evan-
gelização cristã em defesa da cura divina
ganhou popularidade e se espalhou pelo
país com diferentes grupos e lideranças
religiosas — dados do Censo de 2010 in-
dicam que mais de 25 milhões de brasi-
leiros se declaram como evangélicos pen-
tecostais. Presentes em cidades de todos
os tamanhos e nos bairros mais distantes,
essas igrejas conquistam fiéis não somente
pela popularidade dos cultos de cura, mas
por uma proximidade que muitas vezes o
Estado não é capaz de alcançar: se as filas
nos postos de saúde e hospitais são enor-
mes e marcar uma consulta demanda uma
espera de meses, nas igrejas, os pastores
estão sempre à disposição para conversar,
abençoar e “tirar” a doença.
A Secretaria Municipal de
Saúde de São Paulo não tem
estatísticas que apresentem a
quantidade de pacientes que
abandonaram o tratamen-
to ou os motivos para essas
desistências. Porém, em vi-
sita a 12 unidades de saú-
de em diferentes regiões da
capital, a reportagem ouviu
em pelo menos sete delas re-
latos de médicos, enfermei-
ros e agentes de saúde que já
lidaram com situações semelhantes.
“Muitas vezes, não é o líder religioso que
orienta a abandonar o tratamento — é o
próprio paciente que, em um processo
de negação de sua doença, negligencia
os cuidados médicos”, afirma Alexander
Moreira-Almeida, professor de Psiquiatria
da Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF). Para Elder Cerqueira-Santos, pro-
fessor do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Federal de
Sergipe (UFS), é o discurso religioso que
leva as pessoas a abandonar a medicina.
“Se a causa é espiritual, a cura também é.
A
r o t a d a f éBerço do pentecostalismo, o bairro do Brás abriga templos de diferentes congregações
Milhões de brasileiros frequentam igrejas pentecostais f o r ç a r e l i g i o s a
evangélicos no Brasil
pentecostais por região
Maiores pentecostais
fiéis por renda doMiciliar(salários-mínimos per capita)
fiéis por nível de instrução*(grau de escolaridade)
*Luterana, Presbiteriana, Batista
total 42.275.440
evangélicos de missão* 7.686.827
evangélicos pentecostais 25.370.484
evangélico não determinado 9.218.129
assembleia de deus — 12.314.410
congregação cristã do brasil — 2.289.634
universal do reino de deus — 1.873.243
evangelho quadrangular — 1.808.389
deus é amor — 845.383
796.9881.457.227
4.266.9886.711.713
4.677.9341.141.736608.667251.841
77.603
Até 1/8 1/8 a 1/4 1/4 a 1/2 1/2 a 1 1 a 2 2 a 3 3 a 5 5 a 10 10 ou mais
norte3.187.100
nordeste5.348.024
centro-oeste 2.339.845
sudeste 11.508.725
sul 2.986.790
sem instrução e Fundamental incompleto 7.414.036
Fundamental completo e médio incompleto 2.283.005
médio completo e superior incompleto 3.300.552
superior completo 659.458
não determinado 42.876 *25 anos ou mais
FONTE: Censo 2010, IBGE
*UBS
: Uni
dade
Bás
ica
de S
aúde
ubs* belenzinho
ubs* brás
igreja nova geração mundial de deus
igreja casa da bênção
igreja universal do reino de deus
igreja universal do reino de deus
templo de salomão
igreja apostólica plenitude do trono de deus
igreja evangélica avivamento em glória
assembleia de deus
igreja nova geração
igreja mundial renovada
ministério mudança de vida
Av. Celso Garcia
Av. Celso Garcia
R. João B
oemer
R. Belém
4342
Para alguém que está em sofri-
mento, o discurso dogmático
da igreja é mais consolador.”
A questão não é exclusiva
ao Brasil: um estudo divulga-
do em 2011 pela Universidade
do Texas indicou que a taxa de
mortalidade infantil era maior
em comunidades com fiéis que
frequentavam igrejas pentecostais e
outras congregações cristãs mais con-
servadoras. Em 2012, o adolescente Austin
Sprout, de 16 anos, morreu por causa de
uma infecção causada por apendicite depois
que a família se recusou a ir ao hospital.
Eles frequentavam uma igreja neopentecos-
tal do estado do Oregon. Os pais, Russel e
Brandi Bellew, foram condenados a cinco
anos de liberdade condicional. E esse não
foi o primeiro caso envolvendo a mesma
igreja. Também em 2012, uma mulher foi
sentenciada a dois anos de prisão depois de
escolher tratar o diabetes do filho de nove
anos com orações. E, em 2011, o casal Dale
e Shannon Hickman foi condenado a pouco
mais de seis anos de prisão depois de não
buscar auxílio médico para o filho prematu-
ro, que faleceu em casa em poucas horas.
nfectologista especializado no tra-
tamento de Aids, o médico Artur
Timerman já presenciou o abandono de
vários pacientes, inclusive de pessoas pró-
ximas do seu convívio familiar. “Muitas
vezes, parte do interesse dessas igrejas é
econômico. Eles encaram o médico como
concorrente pelo dinheiro daquela pessoa.
O que ela vai gastar com tratamento é um
dinheiro que não vai entrar na igreja.” Na
opinião de Timerman, quando o discurso
de embate religioso é maior que o de con-
ciliação, o único prejudicado é o paciente.
“Estamos todos no mesmo barco. Temos
que remar para a frente, não para trás.”
Diagnosticada com epilepsia, Joana
(nome fictício), de 56 anos, está há três
meses em um centro especial de aco-
lhimento para mulheres na região do
Universal e fundador da Igreja
Mundial do Poder de Deus, tem
fama de milagreiro entre os
fiéis, que querem abraçá-lo, ti-
rar fotos ou pegar uma peça de
roupa do autoproclamado após-
tolo. “Me conhecer não muda nada na sua
vida. A vida de uma pessoa muda quando
ela conhece Deus. Se Deus quiser derro-
tar a ciência, ele derrota”, diz. E continua
pregando: “Eu só ouço o que Deus fala:
nunca li na Bíblia que tenho de viver pela
lógica ou pela ciência, vivo pela fé. Até pos-
so acreditar, mas não como regra. Regra
é o que Deus diz”. Em um culto celebrado
em uma terça-feira na Catedral do Brás, da
Igreja Universal, o discurso de um bispo
era ainda mais incisivo. “Quem é maior:
Deus ou o cardiologista? Quem é maior:
Deus ou o oncologista? Em quem você
deve confiar: em Deus ou nos médicos?”
O maior problema é que, para as lide-
ranças das maiores igrejas neopentecostais
brasileiras, a lógica do “quanto pior, me-
lhor” apresentada nos cultos é fundamen-
tal para manter uma estratégia que alia o
crescimento econômico gerado pelas doa-
ções, o prestígio político por meio do au-
mento das bancadas de congressistas liga-
dos a grupos evangélicos e a influência nos
meios de comunicação. Em nome de Deus,
projetos de leis são criados e embasam os
votos de deputados federais em momen-
tos de definição do futuro do país. “Em
primeiro lugar, quero agradecer a Deus a
oportunidade de ser eleito por um estado
tão maravilhoso como Minas Gerais. Nesse
estado nasceu uma pessoa que admiro mui-
to, que é o apóstolo Valdemiro Santiago, e
aquela Igreja maravilhosa me ajudou neste
trabalho”, disse o deputado Franklin Lima
(PP-MG) durante a sessão da Câmara dos
Deputados que dava prosseguimento ao im-
peachment da presidente Dilma Rousseff.
Lima foi um dos 367 deputados que votou
a favor do impedimento da presidente.
aceitou tomar um dos remédios obrigató-
rios. “Chamamos a equipe de saúde aqui,
porque se depender dela, ela não vai até
a UBS”, diz. “Não podemos obrigar nin-
guém a tomar remédio, mas tentamos
conversar, dizemos que Deus deu a in-
teligência ao homem para que ele possa
ajudar pessoas como ela.” Há duas sema-
nas medicada, Joana não teve nenhuma
outra crise, mas continua frequentando
a igreja e, diariamente, verifica quais são
os remédios administrados, para não to-
mar nenhum a mais do que o acordado.
Apesar de ser uma área negligenciada
por parte dos pesquisadores, há explica-
ções e estudos científicos que compro-
vam a melhora da condição de pacien-
tes que possuem alguma espiritualidade,
especialmente em casos de depressão,
tentativas de suicídio, abuso de subs-
tâncias químicas, estresse e ansiedade.
Recentemente, a Associação Mundial de
Psiquiatria declarou a importância de
incluir o assunto no ensino, pesquisa e
prática clínica. De acordo com Alexander
Moreira-Almeida, há duas explicações
para como a religião pode colaborar ou
promover a cura de um paciente: pela
promoção de comportamentos saudáveis
e pelo fato de que o envolvimento religio-
so pode ocasionar a diminuição de hor-
mônios de estresse e o melhor funciona-
mento imunológico. “A dúvida é se essas
duas vias explicam tudo ou se há realmen-
te algum outro mecanismo que ocorra por
vias ainda não bem compreendidas pela
ciência atualmente”, afirma Almeida.
Em algumas igrejas, entretanto, o dis-
curso dos celebrantes é menos concilia-
dor. Valdemiro Santiago, ex-integrante da
Belenzinho, também em São Paulo.
Quando chegou, ela recusava todos os
remédios anticonvulsivos, além daque-
les que controlavam sua pressão arterial.
“Ela sabe que tem epilepsia e que se não
tomar remédios pode convulsionar. Mas,
ao mesmo tempo, diz que o problema é
espiritual, e não médico, e que a única for-
ma de tratá-lo é na igreja”, conta a psicólo-
ga do centro, Monique de Almeida. Após
duas crises recentes, em que foi necessá-
rio chamar o Samu para resgatá-la, Joana
a cura e o estadoNascido nos Estados Unidos nos primeiros
anos do século 20, o movimento pentecos-
tal cresceu como uma tentativa de resgatar
o cristianismo primitivo, com as experiên-
cias vividas pelos primeiros apóstolos de
Jesus. “O pentecostalismo tenta resgatar
esse cristianismo milagreiro e que envol-
ve a eterna luta entre Deus e seus anjos
e o diabo e seus demônios pela posse da
humanidade”, explica Ricardo Mariano,
doutor em Sociologia pela Universidade de
São Paulo. Desde a chegada dos primeiros
missionários ao Brasil, esses movimentos
cresceram de maneira autônoma e ganha-
ram força a partir da década de 1950, com
o surgimento das igrejas Deus É Amor e
Brasil para Cristo, com concentrações de
fiéis em tendas e campos de futebol e por
se pautarem na cura divina. A partir da
década de 1970, o pentecostalismo assu-
miu nova forma com a criação de igrejas
que pregavam a Teologia da Prosperidade
e ficaram conhecidas como neopentecos-
tais. De acordo com esse movimento, o
cristão tem direito a uma vida abundante,
com saúde e sucesso material.
Maior expoente da Teologia da
Prosperidade no Brasil, a Igreja Universal
do Reino de Deus foi fundada em 1977
por Edir Macedo e seu cunhado, Romildo
Ribeiro Soares (ou RR Soares, para os
mais chegados) — que atualmente con-
ta com a própria congregação, a Igreja
Internacional da Graça de Deus. Ao con-
trário das primeiras igrejas, as neopen-
tecostais são mais liberais em termos de
costumes e têm uma estrutura hierárqui-
ca rígida. “Já podemos falar de um trans-
pentecostalismo, porque temos igrejas
que imitam todas as ondas, elas copiam
o que interessa”, afirma Gerson Leite de
Moraes, doutor em Ciências da Religião
pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP) e professor da
Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Para ele, o que conecta todas essas igrejas
não é protestantismo clássico, mas o ca-
“ n u n c a l i n a b í b l i a q u e t e n H o d e V i V e r p e l a l Ó g i c a o u p e l a c i Ê n c i a ” , d i Z V a l d e m i r o s a n t i a g o , l í d e r d a i g r e j a m u n d i a l
I
t e m p l o d e m i l a g r e s ?Inaugurado em 2014, Templo de Salomão é a joia da Universal
capacidade
altura
pessoas sentadas
o mesmo que um prédio de 11 andares
Quanto foi gasto na construção?
8,2 Milhões
pedras trazidas de israel
pagos com doações de adeptos e membros da universal
de pessoas desde a inauguração
R$ 685 milhões
visitantes
templo e altar revestidos com
74 Mil M2de área construída
3x maior que a basílica de aparecida
10mil
56metros
4544
tolicismo popular. “Eles têm a água benta
e os objetos manuseados que promovem
cura, entre outras práticas. Os protes-
tantes e evangélicos fazem parte dos que
romperam com o monopólio católico, mas
o protestantismo segue uma tendência e o
pentecostalismo, outra”, diz o professor.
Para ganhar corações e mentes, o proje-
to de expansão dessas igrejas depende de
três pilares: a aquisição de espaços na te-
levisão e no rádio para propagação de seus
princípios; a construção de catedrais em
cidades de médio e grande portes para ter
reconhecimento público de legitimidade; e
a eleição de representantes políticos para
garantir a influência conquistada. Gerson
Leite de Moraes explica que o campo reli-
gioso depende da mídia para falar com um
maior número de pessoas. E, para conse-
guir esse espaço, é necessária a influência
política. “São três esferas que se alimen-
tam e se relacionam: o campo religioso
precisa do campo midiático, que só pode
ser conseguido pelo campo político”, diz.
Isentas de impostos, as igrejas movi-
mentam uma quantidade enorme de di-
nheiro, que até deve ser declarado, mas
não é tributado. Em 2015, Edir Macedo foi
incluído pela segunda vez na lista dos bi-
lionários da Forbes. De acordo com a publi-
cação, o patrimônio dele era estimado em
US$ 1,1 bilhão. Mas se atualmente
Macedo conta com um conglomerado de
comunicação, o prestígio dos
quase 2 milhões de fiéis bra-
sileiros da Igreja Universal e
o respeito nos diferentes cír-
culos políticos do Estado —
em abril, a presidente Dilma
Rousseff ligou para ele em
busca de apoio político —, nem
sempre as coisas foram tão
abençoadas assim: em 1992,
o bispo foi preso (e ficou na cadeia du-
rante pouco mais de uma semana) após
denúncia do Ministério Público por “de-
litos de charlatanismo, estelionato e lesão
à crendice popular”. Livre dessas acusa-
ções, também teve sua imagem questio-
nada depois de uma reportagem exibida
em 1995 pelo Jornal Nacional em que aparecia ensinando os
colegas a aumentar as arreca-
dações dos fiéis. “Você tem
que chegar e se impor: ‘Você
vai ajudar na obra de Deus. Se
quiser, bem, se não quiser, que
se dane. Ou dá ou desce’. Você
tem que ser o super-herói do
povo!”, diz, após uma partida
de futebol com seus colegas.
Reportagem publicada pela
Folha de S.Paulo em 2013 con-
seguiu, por meio da Lei de
Acesso à Informação, dados da Receita
Federal sobre o faturamento das igrejas no
Brasil — o que inclui católicas, evangélicas
e protestantes. As informações
se referem a 2011, quando as
denominações arrecadaram
R$ 20,6 bilhões, dos quais
R$ 14,2 bilhões foram doa-
dos pelos fiéis. Como com-
paração, o orçamento apro-
vado em 2016 para o Fundo
de Saúde da Prefeitura de São
Paulo foi de R$ 7,6 bilhões.
Fabio Lanza, Coordenador
do Laboratório sobre Estudos
e m a b r i l , n o a u g e d a c r i s e p o l í t i c a , d i l m a r o u s s e f f l i g o u p a r a e d i r m a c e d o e m b u s c a d e a p o i o p o l í t i c o c o n t r a o i m p e a c H m e n t
das Religiões da Universidade de
Londrina (UEL), afirma que, para o fiel,
tanto a contribuição financeira quanto o
voto em um candidato evangélico são re-
sultado da atividade religiosa. “Para os
fiéis, essa lógica de exploração não existe,
porque, em sua visão, isso é uma conse-
quência da prática religiosa”, destaca. Nos
cultos da Universal há a coleta do dízimo
e doações avulsas, que podem ser feitas
em nome de uma pessoa que está doente.
A cura, afirma o bispo Francisco Decothé
em um culto, também está condicionada
à honestidade do fiel. “Vocês estão vendo
as notícias de corrupção? Vocês querem
ser corruptos com Deus? Pois Deus sabe
quando você doa menos do que pode”,
diz. Na Igreja Mundial há carnês para
cada tipo de necessidade. Para “tirar
uma pedra” do caminho, a contribuição
é de R$ 153. Para conseguir um carro, são
R$ 366. O sonho da casa própria fica
mais salgado: são necessários R$ 1.000
para “abrir as portas dos caminhos”.
A comunicação, a indumentária e as lembrancinhas do Templo de Salomão
1 Quipá
2 Talit
3 Túnica dos ajudantes
4 Bíblia Sagrada
herança judaicaNo templo da Universal, Edir Macedo utiliza quipá, símbolo de temor a Deus, e o talit, utilizado por rabinos em preces.
5 Menorá
6 Souvenir
7 Réplica do Templo de Salomão
lembrancinhasNo Templo de Salomão, o fiel pode comprar souveniers como recordação. E, claro, contribuir com doações.
8 Lenço de obreiras
9 Uniforme oficial das obreiras
10 Fita “Meu Amigo”
acolhimento em comunidadeAlém do trabalho das obreiras, que auxiliam os pastores, a Universal estimula que fiéis con-videm amigos para os cultos.
11 Lenço com água do Rio Jordão
12 Envelope de doação
13 Folha Universal
comunicação é o negócioLenços umedecidos com a água do Rio Jordão, em Israel, ajuda-riam na cura. A igreja também conta com um jornal impresso.
2
54
6 7
10
11
13
12
8 9
3
é novo, masparece velhoIgreja Universal utiliza símbolos do Anti-go Testamento para se conectar aos fiéis
1
4746
– J.N.M. procurou um pastor e
foi aconselhado a abandonar os
remédios e a deixar de usar ca-
misinha nas relações sexuais.
Dois meses depois, foi inter-
nado com pneumonia e pas-
sou 40 dias em coma induzido.
A esposa também foi infecta-
da pelo vírus. Na ação impe-
trada no Rio Grande do Sul, a
defesa alegou que a Universal
se aproveitou do estado de
fragilidade do fiel. A igreja, no
entanto, negou que o tivesse
orientado a abandonar o trata-
mento e entrou com um recur-
so, que foi negado. “É um caso
exemplar, uma decisão impor-
tante que vai abrir os olhos da
Universal para o fato de que
não é qualquer pratica que sai-
rá impune”, diz Ortiz.
Acostumado a lidar com pa-
cientes que unem a cura reli-
giosa ao tratamento, Rodrigo
Lima, da Sociedade Brasileira
de Medicina de Família e
Comunidade, afirma que o mé-
dico precisa respeitar a posição
do paciente. “Se o médico assume uma po-
sição de confronto com a crença da pessoa,
ela vai abandonar o tratamento. A crença
é muito mais forte do que a relação do pa-
ciente com o médico. O grande ponto é
ter um discurso conciliador.” Mas se a fé é
ferramenta importante, mais essencial é a
presença do Estado em lugares negligen-
ciados. “Muitas pessoas são levadas pelo
desespero e buscam qualquer coisa para di-
minuir o sofrimento”, diz o médico Abrão
José Cury, presidente do Departamento de
Clínica Médica da Associação Paulista de
Medicina. “Médico não é delegado nem juiz,
tem que ser claro e tem que ter compaixão.
Não devemos abandonar o paciente.”
Aparecida. “Há também a prática das ‘ro-
marias’, com pessoas saindo do Brasil in-
teiro para conhecer o templo”, conta. No
serviço online TripAdvisor, a construção
é a 18ª atração mais indicada para turistas
que querem conhecer São Paulo.
Há um mês frequentando cultos de
cura no Templo de Salomão, o marce-
neiro Ricardo Costa Alves, de 45 anos, já
conseguia enumerar as melhoras que teve
desde que sofreu um AVC. “Agora eu con-
sigo andar sem bengala, já tomo banho e
me visto sozinho.” Ele não atribui a evolu-
ção do seu estado aos oito remédios que
toma todos os dias, nem à acupuntura que
começou a fazer e já pretende abandonar.
“Com certeza é resultado das orações. As
correntes que fiz foram muito importan-
tes. Da igreja eu não saio mais. Só o re-
médio não adianta nada para mim”, diz.
Contatada, a assessoria de imprensa da
Igreja Universal afirmou que não recomen-
da que os fiéis negligenciem os tratamentos
convencionais: “Ao defender preceitos reli-
giosos e atos de fé no auxílio aos enfermos,
a Universal sempre destaca a importância
da rigorosa observância dos tratamentos
médicos prescritos. Jamais devem ser des-
prezadas as recomendações dos profissio-
nais da saúde”. Mas nem todos os pastores
parecem concordar com o posicionamen-
to oficial. Em um dos cultos presencia-
dos pela reportagem, o bispo Francisco
Decothé fez questão de dar a sua opinião
sobre a medicina ao conversar com uma
fiel que havia recebido diagnóstico fatal de
câncer de pulmão. “Existem muitos mé-
dicos que têm o demônio. Não são todos,
mas são muitos”, disse o religioso.
Em setembro do ano passado, a Igreja
Universal foi condenada a indenizar o
fiel J.N.M., portador do vírus HIV, em
R$ 300 mil por danos morais. Ele procurou
a igreja após o conselho de amigos. “Ele
viu na igreja a saída para um problema que
a medicina não conseguia solucionar”, con-
ta o advogado Guilherme Pavanello Ortiz.
Após ir a cultos, orar e ofertar bens a igreja
– ele doou uma televisão e um computador
o Templo de Salomão, os
cultos passam uma sensa-
ção de serem mais “sagrados”. Muito disso
se deve à imponência do lugar. Para entrar
ali, o visitante deve passar antes pelo esta-
cionamento. Lá, é obrigado a deixar todos
os objetos eletrônicos em um guarda-volu-
mes e enfrenta uma revista com detectores
de metal. Só então é autorizado a subir as
escadas que dão acesso ao local do culto,
onde mulheres e homens vestidos com tú-
nicas brancas passam gotas de azeite na
testa, nas costas, no peito, nas mãos e nos
pés de todos que chegam. Sérios, eles indi-
cam o caminho a seguir, pedem silêncio e
repreendem quem segue conversando. Uma
vez acomodado na cadeira, resta esperar,
em oração, a entrada do bispo.
Inaugurado em 2014 com a
presença da presidente Dilma
Rousseff, do vice Michel
Temer, do governador de São
Paulo Geraldo Alckmin, do
prefeito da capital Fernando
Haddad e do ministro do
Supremo Tribunal Federal
Marco Aurélio Mello, o Templo
de Salomão é a joia da coroa
da Igreja Universal do Reino
de Deus. São 74 mil metros
quadrados construídos, que
incluem a nave principal, sa-
las de estudo, apartamentos e
quitinetes, estúdios de rádio e
televisão, estacionamento para
quase 2 mil carros e um museu.
Por dentro, ele é ainda mais
impressionante. Seis menorás
— candelabros de sete braços,
conhecidos como um dos prin-
cipais símbolos do judaísmo — enfeitam
as paredes de cada lado. Uma réplica da
Arca da Aliança do Antigo Testamento e
a frase “Santidade ao Senhor” ocupam
o altar de ponta a ponta. “O Templo de
Salomão veio coroar essa ideia de ocu-
par o espaço público em busca de reco-
nhecimento e legitimidade”, diz Ricardo
Mariano, da USP. Para Fabio Lanza, esse
projeto fez com que a Universal conseguis-
se sintetizar características da
religiosidade nacional em um
grande produto, construindo
um monumento religioso ca-
paz de se equiparar às maiores
referências da Igreja Católica
brasileira, o Cristo Redentor
e a Basílica de Nossa Senhora
Quando deixam o tratamento e apresen-
tam piora no quadro, é quase sempre ao
sistema público de saúde que os pacientes
recorrem. Quem financia esse serviço bá-
sico é o mesmo Estado que isenta as igre-
jas de impostos e é condescendente com
construções de templos em situações irre-
gulares. “Quando se tem um sistema pú-
blico frágil, com uma enorme quantidade
de pessoas sem acesso à saúde, faz senti-
do vender a ideia de prosperidade”, afirma
Elder Cerqueira, da Universidade Federal
do Sergipe. E tudo isso tem pouco a ver
com o discurso de liberdade associado à
fé. “A cura é um mercado e a saúde é uma
grande mercadoria.”
A bancada evangélica, uma das maiores do Congresso com seus 92 parlamentares, entre deputados e senadores, é responsável por pro-jetos conservadores, como a defi-nição de que “família” é apenas a união entre mulher e homem, além de uma lei que cria empecilhos para mulheres vítimas de abuso sexual realizarem aborto. Entre seus líderes estão os parlamentares João Cam-pos (PRB-GO), Marco Feliciano (PSC--SP), Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e os senadores Marcelo Crivella (PRB-RJ) e Magno Malta (PR-ES). Se fosse um partido, seria o maior em número de representantes, ultrapassando o PT
e o PMDB. Deputados evangélicos ocupam 19 cadeiras da Comis-
são de Ciência e Tecnologia, Comuni-cação e Informática. É nessa comis-são que são analisadas concessões de rádio e televisão. O presidente da Comissão de Constituição e Justiça, a mais importante da Câmara, tam-bém é da frente parlamentar. Isso para não mencionar o próprio presi-dente da Casa, o deputado Eduardo Cunha. Em 2015, além dos projetos polêmicos que ainda não foram ao plenário, os parlamentares aprova-ram uma emenda constitucional que amplia as isenções fiscais para as comissões recebidas por pastores e um projeto de lei que isenta do IPTU os imóveis alugados por igrejas.
Vários problemas jurídicos envolvem a construção do Templo de Salomão. Para começar, ele está em uma Zona Especial de Interesse Social (Zeis), área da cidade demarcada para construção de moradia
para a população de baixa renda. Isso significa que, de acordo com a lei de zoneamento, uma parte do terreno de 74 mil metros quadrados deveria ter sido dedicada para fins habitacionais — o que não ocorreu. Além disso, o Templo foi erguido com um alvará de reforma em vez da permissão para a construção, o que exigiria uma tramitação legal completamente diferente. Todas essas questões, no entanto, só foram descobertas em 2014, na véspera da inauguração. Na época, foi feito um acordo com a prefeitura para autorizar a realização de eventos. Atualmente, o Templo não possui Habite-se, documento que autoriza o funcionamento da construção, mas tem um alvará provisório de visitação com validade até julho deste ano. “Como ainda não conseguiram definir a situação, o alvará foi renovado. Ele funciona de forma regular, mas precária”, diz o promotor de Habitação e Urbanismo, César Ricardo Martins. Há atualmente no Ministério Público um inquérito civil para verificar as condições de zoneamento, o processo de licenciamento e a apresentação das medidas mitigadoras para o trânsito da região. Uma lei aprovada em 2015 pela Câmara permite que a Igreja Universal regularize a situação do Templo caso doe ao município terrenos com dimensão próxima à área da construção. No último ano, foram oferecidos mais de dez lotes, que foram negados por não cumprirem os requisitos necessários.“O problema começou quando fizeram o pedido de reforma. A prefeitura não deveria ter executado”, afirma o promotor. “Como o que havia ali era um galpão antigo, a Universal deve ter acreditado que não precisava cumprir essa exigência. Na realidade, não poderia nem ter começado a construção.” Uma área oferecida pela Igreja está em análise na Companhia Metropolitana de Habitação (Cohab). Acredita-se que será aceita. Depois da assinatura do termo de doação, será a vez da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) definir quais medidas mitigadoras de trânsito serão executadas pela Universal.
N
“ q u e d e u s t e n H a m i s e r i c Ó r d i a d e s t a n a ç ã o . V o t o s i m ” , d i s s e o d e p u t a d o e d u a r d o c u n H a a o V o t a r o i m p e a c H m e n t d e d i l m a r o u s s e f f
uMa força política
as peDras Do Templo
4948