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A avaliação ambiental estratégica
Como já discorrido em outro tópico, a avaliação de impacto ambiental,
como instrumento de planejamento ambiental, serve como instrumento de ajuda à
tomada de decisão política, de concepção de projetos e de planejamento, de
negociação social e, por fim, como instrumento de gestão ambiental. Como tal, ela
auxilia o poder público na tomada de decisões, ao levar em consideração a
variável ambiental em qualquer ação ou decisão que possa causar qualquer
impacto ao meio ambiente. Entre suas características está a de lidar com a
incerteza, tanto da variabilidade do ambiente natural, como das próprias condições
sócio-econômicas.
Apesar de ser instrumento de grande valia no âmbito da política ambiental,
uma das deficiências apontadas em relação à sua aplicação em consonância com o
ordenamento jurídico brasileiro é que o processo de AIA tende a ocorrer muito tarde
no processo de planejamento e de desenho de um empreendimento. Isso dificulta a
análise de alternativas possíveis e relevantes ao projeto.
Outra deficiência diz respeito ao fato de a avaliação de impacto ambiental
levar em consideração apenas os impactos relativos ao projeto que está sendo
submetido ao licenciamento ambiental. Não se analisam os impactos cumulativos e
sinergéticos, regionais/globais e indiretos dos empreendimentos.
Dentro desse contexto, a avaliação ambiental estratégica, uma espécie de
avaliação de impacto ambiental, vem sendo adotada, em âmbito internacional e
nacional, em diversos segmentos de políticas públicas, como será melhor analisado a
partir de agora.
5.1
Aspectos teóricos.
Trata-se de uma espécie de avaliação de impacto ambiental com origem no
direito norte-americano e europeu. Seu objeto precípuo é servir de base para a
tomada de decisões no âmbito do planejamento ambiental.
Muitas das definições dadas sobre essa avaliação se condicionam a dizer
que é uma avaliação ambiental de políticas, planos e programas, quando, na
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verdade, ela é o nome que se dá a todas as formas de avaliação de impacto de
ações mais amplas que projetos individuais.1
O embrião da avaliação ambiental estratégica foi o já mencionado NEPA
(National Environmental Policy Act, ou Ato sobre a Política Nacional do Meio
Ambiente), editado em 1969 nos Estados Unidos. Tal ato impôs às agências
federais a preparação de declaração dos impactos ambientais de atividades que
afetariam a qualidade do meio ambiente humano.
A seu turno, a Comunidade Econômica Européia possui a primeira diretiva
sobre Avaliação Ambiental nas Políticas, Planos e Programas, aceita pelo
Conselho da União Européia, no dia 27 de junho de 2001, ficando conhecida
como SEA Directive (Diretiva sobre Avaliação ambiental estratégica - AAE).
Em 21 de março de 2003, os países-membros da Comissão Econômica das
Nações Unidas para a Europa (UNECE- United Nations Economic Comission for
Europe) assinaram Protocolo de Avaliação Ambiental Estratégica para a
Convenção de Avaliação de Impacto Ambiental, mais conhecido como Protocolo
de Kiev. O aludido documento, formalmente adotado, foi assinado por 35 países,
porém somente entrará em vigor quando 16 membros, de um total de 56, da
UNECE, ratificarem-no, aceitarem e aprovarem.2
Posteriormente, houve uma alteração de enfoque para a avaliação
ambiental estratégica elaborada por certos representantes de países doadores de
fundos para projetos de cooperação internacional, reunidos no Comitê de Ajuda
ao Desenvolvimento (Development Assistance Committee) da Organização para a
Cooperação e o Desenvolvimento Econômico – OCDE. Eles tomaram a AAE
como um instrumento complementar à avaliação de impacto ambiental de projetos
por eles financiados. Essa posição os coloca na mesma linha de entendimento de
políticas que vêm sendo adotadas por alguns bancos multilaterais de
desenvolvimento.3
1 SANCHEZ, Luis Enrique. Avaliação ambiental estratégica e sua aplicação no Brasil. Disponível no site < http://www.iea.usp.br/iea/aaeartigo.pdf >.Ultimo acesso em 30 de dezembro de 2008. 2 THERIVEL, Riki. Strategic Environmental Assessment in Action. London:Earthscan, 2006, pp. 33-34. 3 SANCHEZ, Luis Enrique. op.cit.
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Maria do Rosário Partidário4 adverte para o fato de que a evolução da
avaliação ambiental estratégica - como instrumento de política ambiental a ser
adotado mundialmente - é complexa, na medida em que há dificuldades quanto à
interpretação de seu âmbito e de seu papel, inclusive, dos contornos de conceitos
como de ambiente e estratégia.
Algumas definições são dadas para a avaliação ambiental estratégica:
um instrumento de apoio à decisão que se desenvolve na forma de um processo, aplica-se a decisões de natureza estratégica, normalmente traduzidas em políticas, planos e programas, e constitui-se como um processo sistemático de identificação, análise e avaliação prévia de impactos de natureza estratégica.5 Em outros termos, perfaz um processo sistemático para avaliar as conseqüências ambientais de uma política, plano ou programa propostos, de modo a assegurar que elas sejam plenamente incluídas e adequadamente equacionadas nos estágios iniciais mais apropriados do processo decisório, com o mesmo peso que considerações sociais e econômicas.6 No Brasil, o Ministério do Meio Ambiente, por meio da Secretaria de
Qualidade Ambiental, elaborou, em 2002, Manual sobre a Avaliação Ambiental
Estratégica, propondo uma definição de avaliação ambiental estratégica. Tal
conceituação busca conciliar a noção de procedimento sistemático, pró-ativo e
participativo, decorrente dos princípios da avaliação de impacto ambiental, com a
natureza contínua e estratégica dos processos e decisões a que se deve aplicar e,
ainda, com a necessidade de se garantir uma perspectiva integradora das vertentes
fundamentais de um processo de sustentabilidade. Apresenta a seguinte definição
sobre o instituto7:
A Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) é um instrumento de política ambiental que tem por objetivo auxiliar, antecipadamente, os tomadores de decisões no processo de identificação e avaliação dos impactos e efeitos, maximizando os positivos e minimizando os negativos, que uma dada decisão
4 PARTIDARIO, Maria do Rosário. Conceitos, evolução e perspectiva da avaliação ambiental estratégica. Potência realizada para El seminário de Expertos para Evaluacion Ambiental Estratégica en Latinoamerica en formulacion y gestion de políticas. Santiago de Chile, novembro de 2006. Disponível no site da Biblioteca Virtual Ponencias FODEPAL< http://www.fodepal.es/bibvirtual>. Ultimo acesso em 05 de novembro de 2008. 5 PARTIDARIO, Maria do Rosario. Conceitos, evolução e perspectivas da avaliação ambiental estrategica. Novembro de 2006. http://www.fodepal.es/bibvirtual/semex/eae/pdf/partidarioport.pdf. Último acesso em 05 de novembro de 2008. p. 05. 6 Sadler, B.; Verheem, R. (1996) – Strategic Environmental Assessment: Status, Challenges and Future Directions. Ministry of Housing, Spatial Planning and the Environment of the Netherlands, The Hague, p. 27 apud SANCHEZ, Luis Enrique. Avaliação ambiental estratégica e sua aplicação no Brasil. Disponível no site < http://www.iea.usp.br/iea/aaeartigo.pdf >.Ultimo acesso em 30 de dezembro de 2008. 7 BRASIL. MMA ( 2002 ). Secretaria de Qualidade Ambiental nos Assentamentos Humanos (SQA). Manual sobre Avaliação Ambiental Estratégica. p. 12.
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estratégica – a respeito da implementação de uma política, um plano ou um programa – poderia desencadear no meio ambiente e na sustentabilidade do uso dos recursos naturais, qualquer que seja a instância de planejamento.
A AAE envolve, desta maneira, ações, atores e agentes, sendo que as ações
são aquelas preconizadas por políticas, programas e planos de ação. Os atores ou
agentes podem, por sua vez, ser pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou
privado.
O referido instrumento reforça, a seu turno, o papel e a necessidade dos
Sistemas de Meio Ambiente, desde o SISNAMA até os Sistemas Municipais,
passando pelos Estaduais. A responsabilidade pela preservação ambiental é
compartilhada por outros órgãos das respectivas administrações públicas. Assim,
as políticas setoriais, planos e programas afetos a tais órgãos encontram-se no
âmbito dos Sistemas de Meio Ambiente e disto decorre a necessidade de que
aparelhem seus órgãos com núcleo técnico para elaboração da AAE, quanto às
suas ações, em consonância com o órgão ambiental respectivo.8
Importante pontuar também, que - se há certo consenso sobre a definição
do instrumento - há, porém, pluralidade de enfoques em relação aos métodos para
aplicação da referida avaliação. Divergem os autores, assim, sobre o como de sua
aplicação.
Partidário leciona que a utilização da AAE tem-se dado de acordo com
duas escolas de orientações fundamentais, a saber: a escola de política e de
planejamento, que se fundamenta no sistema de desenvolvimento e avaliação de
decisões estratégicas, nos campos político, na de planos e programas (Sadler e
Verheem, 1996) e a escola de projetos, que se apóia nos procedimentos de
avaliação de impacto ambiental de projetos (Therivel, et. al., 1992). A diferença
entre as duas escolas está fundamentada, basicamente, no modelo de abordagem,
sendo, o primeiro, calcado no racionalismo-determinístico e, o segundo, na visão
estratégica de planejamento.9
O primeiro modelo é considerado uma abordagem de “cima para baixo”
(top-down) que se vale de mecanismos mais abrangentes e estratégicos de
8 MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pp. 401-403. 9 PARTIDARIO, Maria do Rosário. Conceitos, evolução e perspectivas da avaliação ambiental estratégica. Novembro de 2006. http://www.fodepal.es/bibvirtual/semex/eae/pdf/partidarioport.pdf. Ultimo acesso em 05 de novembro de 2008. p. 11.
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formulação de políticas e instrumentos de planejamento, aplicando a esses os
procedimentos de avaliação ambiental. Este modelo, portanto, confere à AAE uma
natureza estratégica e contínua. Permite que seus procedimentos se integrem mais
facilmente aos processos de decisão. Já o segundo tipo, conhecido como modelo
de “baixo para cima” (bottom-up), utiliza a experiência da avaliação de impacto
ambiental de projetos, generalizando-a para a avaliação de decisões em níveis
mais altos na hierarquia de planejamento (programas e planos). Diferentemente do
anterior, este modelo transforma a AAE em instrumento de aplicação discreta,
baseado na análise das práticas de avaliação de impacto ambiental de projeto, a
partir das quais são tomadas decisões em planos e programas.10
Os primeiros exemplos de avaliação ambiental estratégica usaram
exatamente os mesmos passos e as mesmas abordagens metodológicas da AIA,
para servir de matriz para a AAE. Esta tendência se vê concretizada através da
Diretiva 2001/42 da Comunidade Européia, que se refere aos efeitos ambientais
de certos planos e programas, adotando requisitos (em quase tudo) semelhantes
aos exigidos para a AIA de projetos. Mais recentemente, houve uma mudança na
abordagem, que reflete a preocupação de planejadores e cientistas políticos em
fazer aproximar a AAE das abordagens integradas em política e planejamento.
Assim, surge uma abordagem que adota metodologia de base mais estratégica,
permitindo que a AAE se desenvolva em bases diversas da AIA, na tentativa de
resolver problemas difíceis para as exigências impostas por ela.11
Em razão da natureza do modelo de abordagem de projetos, o processo de
AAE muito dificilmente se aplicará à avaliação de políticas. Todavia, há mais
chances para sua implementação em curto prazo, à medida que utiliza
mecanismos estabelecidos de avaliação ambiental e não encontra a resistência por
parte dos profissionais de planejamento, que ainda demonstram ceticismo em
relação à adoção de procedimentos sistemáticos e integrados de avaliação
ambiental para esses níveis de decisão.12
10 BRASIL. MMA ( 2002 ). Secretaria de Qualidade Ambiental nos Assentamentos Humanos (SQA). Manual sobre Avaliação Ambiental Estratégica. Pp. 21-22. 11 PARTIDARIO, Maria do Rosário. Conceitos, evolução e perspectivas da avaliação ambiental estratégica. Novembro de 2006. http://www.fodepal.es/bibvirtual/semex/eae/pdf/partidarioport.pdf. Ultimo acesso em 05 de novembro de 2008. p.11. 12 BRASIL. MMA ( 2002 ). Secretaria de Qualidade Ambiental nos Assentamentos Humanos (SQA). Manual sobre Avaliação Ambiental Estratégica. P. 22.
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Ora, a escolha de um ou de outro caminho parece estar associada às duas
razões que justificam a necessidade de uma nova ferramenta de planejamento
como a avaliação ambiental estratégica: o reconhecimento da limitação do
processo de AIA quando aplicado a projetos e as conseqüências adversas de
muitas políticas, planos e programas.13
Quando, no primeiro caso, assume-se que a AAE tem similitude com a
avaliação de impacto ambiental de projetos, costuma-se partir da análise de uma
proposta (plano ou programa, uma vez que é comum o entendimento que
dificilmente uma política pública poderia ser avaliada desta forma) e avaliam-se
suas conseqüências (impactos), através de um processo que pode resultar em
recomendações de medidas mitigadoras e compensatórias ou em alterações
substanciais da proposta inicial, tornando-a mais adequada aos interesses dos
diversos atores envolvidos.
Já, sob a ótica do planejamento, primeiro são estabelecidos certos
objetivos e, depois, delineados os meios para atingi-los (políticas, planos ou
programas), cujas incidências ambientais podem, em tese, ser avaliadas à medida
que os planos, programas e políticas vão sendo concebidos. Aqui, o essencial é
ajudar a refletir sobre as oportunidades e os riscos de optar por certas direções de
desenvolvimento no futuro.
Entre as duas concepções, a AAE torna-se mais eficiente em relação aos
seus objetivos se adotar metodologias com uma natureza mais estratégica14, com
vistas a integrar as questões ambientais o quanto antes no processo de
planejamento, discutir e avaliar as grandes opções estratégicas, e manter um
acompanhamento para auxiliar a decisão na escolha das melhores opções - que
possibilitem o alcance de objetivos setoriais, ambientais e de sustentabilidade - e
na implementação das decisões de natureza estratégica.
É, por tal motivo, que Partidário defende a adoção de metodologia própria
para a AAE distinta da constante da diretiva européia que institui a AAE com base
em AIA. Sustenta o modelo de avaliação ambiental estratégica (de base 13 SANCHEZ, Luis Enrique. Avaliação ambiental estratégica e sua aplicação no Brasil. Disponível no site < http://www.iea.usp.br/iea/aaeartigo.pdf >.Ultimo acesso em 30 de dezembro de 2008. 14 PARTIDARIO, Mario do Rosário. Guia de Boas Praticas para a Avaliação Ambiental Estratégica. Orientações Metodológicas. Lisboa: Agencia Portuguesa do Ambiente: 2007. Disponível em:< www.apambiente.pt/Instrumentos/avaliacaoambientalestrategica/aplicacaodaAAE/Documents/Gu
iaAAE_APA.pdf>
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estratégica) em que “a análise é centrada nos objetivos de desenvolvimento, ou
nos problemas que o plano ou programa pretendem resolver, e não nas ações
propostas no plano ou programa como soluções ou resultados.”15
Um dos grandes desafios da AAE é a capacidade de poder avaliar as
possíveis oportunidades e conseqüências de estratégias de desenvolvimento
territorial e setorial e, por via de conseqüência, julgar o mérito ou os riscos de
permanecer com as estratégias, podendo sugerir melhores direções para as
estratégias a seguir, a partir de então. Assim, identificam-se três funções distintas
para a AAE: a de integração da questão ambiental com a de sustentabilidade nos
processos estratégicos que permitam a melhora das decisões atuais e futuras; a de
avaliação de impactos dos riscos e oportunidades de se seguirem com
determinadas estratégias; e a de validação da qualidade dos processos estratégicos
e de seus resultados.16
Nesse particular, o objeto de análise da AAE deve ser compatível com
outras políticas, planos e programas.
Os benefícios da adoção deste instrumento se traduzem em mais uma
contribuição para a efetivação da sustentabilidade, bem como na formação de um
contexto mais amplo de decisão integrado com a proteção ambiental. Além disso,
verifica-se uma capacidade de avaliação mais adequada dos impactos cumulativos
com o uso da avaliação ambiental estratégica. Por fim, não se pode negar que a
referida avaliação facilita a avaliação individual dos projetos apresentados para
licenciamento ambiental relacionados ao resultado dos planos e programas
submetidos à avaliação ambiental estratégica.17
No entanto, é preciso esclarecer algumas distorções relativas à correta
compreensão da AAE, quanto aos objetivos e hipóteses de aplicação.
Em primeiro lugar, a AAE não pode ser considerada como uma alternativa
à AIA, ou seja, ela não pode substituir a avaliação de impacto ambiental prevista
15 PARTIDÁRIO, M.R. Guia de Boas Práticas para Avaliação Ambiental Estratégica. Agência Portuguesa do Ambiente, Amadora, p. 13. Disponível pelo site <http://www.apambiente.pt/Instrumentos/avaliacaoambientalestrategica/aplicacaodaAAE/Documents/GuiaAAE_APA.pdf >. Ultimo acesso em 05 de fevereiro de 2009. 16 PARTIDARIO, Maria do Rosário. Conceitos, evolução e perspectivas da avaliação ambiental estratégica. Novembro de 2006. http://www.fodepal.es/bibvirtual/semex/eae/pdf/partidarioport.pdf. Ultimo acesso em 05 de novembro de 2008. p. 17. 17 BRASIL. MMA ( 2002 ). Secretaria de Qualidade Ambiental nos Assentamentos Humanos (SQA). Manual sobre Avaliação Ambiental Estratégica. P. 12
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para os casos de projetos de significativo potencial de impacto e nem como forma
de compensar irregularidades ou falhas identificadas no EIA em tais projetos.
Assim, a AAE não pode ser utilizada como forma de suprir as falhas nos estudos
de impacto ambiental que não consigam desempenhar eficazmente o seu papel de
informar corretamente os ocorridos nas alternativas de desenvolvimento de um
projeto. Também, não se aplica aos casos em que o processo de avaliação de
impacto ambiental tenha sido incapaz de assegurar a efetiva participação do
público, a adoção das medidas mitigadoras e o monitoramento dos impactos
negativos que foram previstos.
A avaliação ambiental estratégica constitui, portanto, um instrumento de
gestão ambiental de caráter político e técnico18, que está associado aos seguintes
aspectos: conceito ou visão de desenvolvimento sustentável nas políticas, nos
planos e nos programa; natureza estratégica das decisões; natureza contínua do
processo de decisão; e valor opcional decorrente das múltiplas alternativas típicas
de um processo estratégico.
Quatro diferenças fundamentais podem ser apontadas entre a avaliação de
impactos de projetos e a avaliação estratégica:19
1- a delimitação espacial: na AIA os projetos têm localização bem
definida, mas, na AAE, os planos, políticas e programas têm limites espaciais
menos claros;
2 - a delimitação temporal: enquanto a AAE é estratégica e de longa
duração – uma política, programa ou plano pode perdurar por muito tempo - a
AIA invoca a execução de projeto, cujo tempo é relativamente curto;
18 Na AIA ocorre um processo de “politização da economia, decisão e planejamento”, através do qual se busca responder o quanto se deve conhecer e como aplicar esse conhecimento, no inicio de cada AIA. As respostas a estas indagações, frequentemente, ultrapassam o âmbito cientifico, chegando à dependência de uma opção política. Cada AIA traz em si uma conjunção de elementos de conhecimento cientifico e de ordem política, que não são suscetíveis de separação. Portanto, a decisão proferida ao final da AIA é um posicionamento político, juridicamente orientado, já que a ciência tem como suporte decisão política que, por sua vez, em um Estado Democrático de Direito, submete-se às orientações e limites impostos pelo direito. “A ciência, logo também a técnica, em si e para si não existem. (...) O conhecimento cientifico só pode existir a partir de condições políticas que determinam os pressupostos para que se formem tanto o sujeito quanto os domínios do saber. Por outro lado, o poder político baseia-se no saber para dar solidez a sua decisão. Poder e saber nutrem-se mutuamente, sendo impossível na sociedade moderna dissociar-se conhecimento cientifico de decisões políticas e poder político dos novos postulados da ciência.” Cf. DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 173 e ss.. 19 SANCHEZ, Luis Enrique. Avaliação ambiental estratégica e sua aplicação no Brasil. Disponível no site < http://www.iea.usp.br/iea/aaeartigo.pdf >.Ultimo acesso em 30 de dezembro de 2008.
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3 - o detalhamento das ações: por sua vez, é muito maior nos projetos e
pode ser bastante indeterminado no caso de políticas;
4 - o processo decisório e as instituições envolvidas: na AIA se distingue
claramente o proponente do projeto e a autoridade competente para sua
aprovação, enquanto que na AAE, os planos, políticas e programas costumam ser
formulados e sancionados pela mesma entidade.
Outro dado relevante diz respeito à distinção que costuma ser realizada a
depender do objeto de análise da AAE. Alguns doutrinadores diferenciam três
grandes tipos de avaliação, segundo o nível de planejamento exigido: AAE de
políticas, AAE aplicada ao planejamento territorial e AAE de planos e programas
setoriais.20
Como já mencionado, os princípios, métodos e procedimentos têm variado
segundo o enfoque adotado para a concepção e aplicação da avaliação ambiental
estratégica.
Segundo a abordagem estratégica, que parece mais adequada para os fins
deste trabalho, há determinados princípios de natureza metodológica que devem
orientar a avaliação ambiental:21
A. A preparação da AAE deve ser simultânea à concepção e formulação das
propostas de planos e programas e depende de conteúdos preparados nesse
contexto e da respectiva escala destas, permitindo uma forte interligação com os
processos de decisão.
B. A integração da AAE no processo de planejamento e programação revela-se na
articulação de processos, calendários, consultas, partilha de dados de base e
informação.
C. A AAE é objeto de relatório separado dos planos e programas.
20 Partidário e Fischer (2002, p. 225) apud SANCHEZ, Luis Enrique. Avaliação ambiental estratégica e sua aplicação no Brasil. Disponível no site < http://www.iea.usp.br/iea/aaeartigo.pdf >.Ultimo acesso em 30 de dezembro de 2008. 21 Os princípios apresentados dizem respeito à avaliação ambiental estratégica de planos ou programas e não de políticas. Cf. PARTIDARIO, Mario do Rosário. Guia de Boas Praticas para a Avaliação Ambiental Estratégica. Orientações Metodológicas. Lisboa: Agencia Portuguesa do Ambiente: 2007, p. 23. Disponível em:<www.apambiente.pt/Instrumentos/avaliacaoambientalestrategica/aplicacaodaAAE/Documents/GuiaAAE_APA.pdf>
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D. A escala de informação de base usada na AAE é diversa da constante do plano
ou programa. Ela é mais ampla, não devendo descer a minúcias, como as
informações constantes dos respectivos planos ou programas;
E. Os documentos a serem utilizados como referência na AAE são os de política e
estratégia local, nacional e internacional, devendo ser dada ênfase ao âmbito de
atuação dos planos e programas avaliados;
F. A consulta junto ao público e às entidades com responsabilidade ambiental é
realizada em fases e de acordo com métodos diversos, de maneira a assegurar a
integração de observações/informações obtidas na formulação dos planos e
programas.
De qualquer forma, independente do tipo de método utilizado,
determinadas orientações gerais quanto ao procedimento a ser adotado são
fundamentais. Nesse sentido, o Manual de Avaliação Ambiental Estratégica do
MMA (2002)22 propõe que todo procedimento de AAE deve conter:
1) a definição do conteúdo da avaliação e a seqüência das etapas, com os
respectivos prazos, adequados a cada contexto, nacional ou regional, a que se
aplica a AAE. O conteúdo deve ser mais amplo do que a avaliação de impacto
ambiental - tendo como foco as questões mais significativas -, e avaliado de forma
integrada, em consonância com a importância dos prováveis impactos da decisão
estratégica que se deve tomar;
2) o envolvimento e a participação do público são essenciais, em virtude da
própria natureza do instrumento, de gestão ambiental democrática. Deve-se
utilizar os procedimentos porventura existentes e praticáveis de participação da
sociedade, disponibilizando-se a tempo a informação sobre a decisão estratégica e
suas implicações ambientais, por meios adequados de comunicação; e
3) devem ser implementados mecanismos de revisão independentes e
acompanhamento da implementação da decisão estratégica simples e práticos para
não inviabilizar a eficácia do instrumento, em razão da complexidade de seus
processos.
22 BRASIL. MMA ( 2002 ). Secretaria de Qualidade Ambiental nos Assentamentos Humanos (SQA). Manual sobre Avaliação Ambiental Estratégica. pp. 18-19.
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A prática de aplicação da AAE ainda é limitada, mas sua importância e o
papel que pode desempenhar nos processos de desenvolvimento sustentável vêm
sendo discutidos há alguns anos pela doutrina estrangeira. Nos países em que a
AAE tem sido adotada, esta tem se revelado um instrumento flexível, pois o
processo para sua aplicação assume variadas formas em termos tanto dos modelos
institucionais em que opera como do seu conteúdo técnico.23
Os procedimentos de AAE envolvem uma seqüência de atividades que
incluem a identificação das decisões estratégicas que devem ser avaliados, as
etapas de avaliação e as técnicas e os métodos apropriados para a execução de
cada uma delas. Portanto, não há uma definição prévia dos tipos de políticas,
planos e programas que devem se submeter à realização de AAE. A decisão de
implementá-la depende da própria análise inicial no processo de AAE, que vai
determinar a abrangência da decisão estratégica e o nível de comprometimento do
meio ambiente - antecipam-se as prováveis interferências socioambientais
adversas e positivas.
De qualquer modo, as decisões estratégicas sobre investimentos em infra-
estrutura, especialmente nos setores de energia e transporte, acarretam efeitos
23 Alguns tipos de AAE são identificados pela doutrina estrangeira: Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) – termo genérico que identifica o processo de avaliação dos impactos ambientais de políticas, planos e programas (PPP); Avaliação de Impactos de Políticas (Policy Impact Assessment) – termo adotado no Canadá para particularizar o processo de avaliação de impacto ambiental de políticas; Teste Ambiental (Environmental Test – E-test) – utilizado na Holanda para avaliação de políticas (propostas de legislação), utilizando um procedimento específico baseado numa listagem, critérios de sustentabilidade; Avaliação Ambiental Regional (Regional EA) – tipo de AAE estabelecido pelo Banco Mundial para a avaliação das implicações ambientais e sociais (em âmbito regional) de propostas de desenvolvimento multisetorial, em uma dada área geográfica e durante um período determinado; Avaliação Ambiental Setorial (Sectoral EA) – tipo de AAE estabelecido pelo Banco Mundial para a avaliação de políticas e de programas de investimento setoriais, envolvendo sub-projetos múltiplos (apóia também a integração de questões ambientais a planos de investimento de longo prazo); Supervisão Ambiental (Environmental Overview) – adotado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) no processo de formulação de programas, para a identificação de oportunidades, impactos ambientais e sociais e a incorporação de medidas de mitigação na revisão de programas; Análise Ambiental Estratégica (Strategic Environmental Analysis) – abordagem utilizada pela Agência Internacional de Financiamento da Holanda para a avaliação de planos e programas, por meio de procedimento participativo; Avaliação de Impacto Ambiental Estratégica (Strategic Environmental Impact Assessment) – termo utilizado na Holanda para a avaliação de planos e programas, seguindo-se os mesmos procedimentos da avaliação de impacto ambiental de projetos; e Avaliação Ambiental Programática (Programmatic Environmental Assessment) – tipo estabelecido nos Estados Unidos para a avaliação de grupos de projetos referidos a uma mesma área geográfica ou que guardam similaridades em termos de tecnologia e tipologia. Cf. BRASIL. MMA ( 2002 ). Secretaria de Qualidade Ambiental nos Assentamentos Humanos (SQA). Manual sobre Avaliação Ambiental Estratégica. p. 16.
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ambientais relevantes e, por conseguinte, a AAE constitui um instrumento
bastante adequado para promover o desenvolvimento sustentável em tais setores.
Imprescindível se torna, para a tomada de decisão sobre a utilização da
AAE, obter as respostas quanto às seguintes perguntas: 1) O que se quer alcançar
com a decisão estratégica em causa, em que sentido e por quê? 2) Quais as opções
para se atingir o mesmo objetivo? 3) Quais as conseqüências da decisão na
sustentabilidade dos recursos de base? 4) Quais as oportunidades para integrar os
aspectos ambientais (biofísicos, econômicos e sociais) no processo de tomada de
decisão? 5) Que medidas devem ser adotadas, antes e depois da decisão, para
prevenir a ocorrência de impactos negativos?24
A partir das respostas, é possível, portanto, delimitar o objeto da avaliação
ambiental estratégica, precisando o tipo de política, programa ou plano que será
implementado, qual a sua finalidade e o motivo de sua adoção. Por exemplo, no
campo do setor energético, planeja-se a implantação de novo plano decenal de
energia. Assim, devem ser definidas a priori quais as fontes de energia que serão
priorizadas, o motivo e a finalidade da expansão energética – se para atendimento
de demanda doméstica ou industrial, por exemplo -.
Devem ser apontadas, ainda, opções que permitam atingir o mesmo
objetivo, como por exemplo, se houver previsão no plano decenal de implantação
de novas hidrelétricas, devem ser indicadas alternativas como repotenciação de
usinas, complementação da motorização de algumas usinas já instaladas (onde a
capacidade instalada não chega a atingir o limite da capacidade prevista para o
empreendimento), construção de pequenas usinas hidrelétricas ou, mesmo, o uso
de energias alternativas.
Além disso, fundamental é que sejam identificados os momentos
oportunos para a integração dos aspectos ambientais, in casu, desde o início da
concepção do plano até a sua efetiva implantação, inclusive na fase final do
licenciamento de possíveis projetos previstos. Finalmente, devem ser antevistas
medidas preventivas à ocorrência de impactos negativos, para serem
implementadas tanto antes como depois da tomada de decisão. No caso de
hidrelétricas, um processo de consulta à população nos locais em que se planeja a
implantação de projetos e a oitiva prévia dos Comitês de Bacias Hidrográficas
24 BRASIL. MMA ( 2002 ). Secretaria de Qualidade Ambiental nos Assentamentos Humanos (SQA). Manual sobre Avaliação Ambiental Estratégica. p. 52.
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sobre a viabilidade do uso dos rios para a finalidade de produção de energia
hidrelétrica, antes da tomada da decisão, são medidas extremamente profícuas na
discussão política abrangida pelo AAE.
5.1.1
Limitações para a implementação da AAE
Uma das dificuldades apontadas para a prática da AAE constitui
exatamente a abrangência de seu objeto. Como a atividade estratégica
normalmente engloba uma área grande e um número diverso de alternativas. Isso
dificultará a obtenção e interpretação de dados, em sua grande maioria,
complexos, o que poderá gerar um alto grau de incerteza de tais dados
comparativamente àqueles obtidos em uma AIA de projeto.
Outro ponto a ser considerado é o da amplitude de informações que pode
gerar informações limitadas ou incompatíveis, podendo acontecer de uma AAE
nacional desconsiderar determinados impactos em nível local, mas que não têm
influência em nível nacional.25
Ora, o tempo, no contexto do planejamento de PPPs é muito mais flexível do
que em nível de projeto, situação esta que faz com que seja possível incorporar novos
objetivos e novas alternativas, sem as pressões que ocorrem usualmente na avaliação
de projetos. Por outro lado, como o ambiente a ser considerado em uma AAE é bem
mais amplo do que em uma AIA – é possível que uma PPP abranja o país inteiro -
, outras dificuldades podem ser geradas na definição do que estudar e em que
detalhe.26
Outra limitação apontada é a pouca experiência prática da AAE existente
no mundo, o que não permite que seja feito um estudo sistemático do instituto.
Com relação às fases da AAE, algumas considerações merecem ser
apontadas.
25 BICHARA, Marco Antonio. THEODORO, Suzi Huff. A contribuição da Avaliação Ambiental Estratégica no Licenciamento Ambiental. THEODORO, Suzi Huff; BATISTA, Roberto Carlos; ZANETI, Izabel. ( org ) Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável. Rio de Janeiro: Lúmen Iuris, 2008, pp. 73-74. 26 EGLER, Paulo César Gonçalves. Perspectivas de uso no Brasil do processo de Avaliação Ambiental Estratégica. 2002. Disponível em: http://www.mct.gov.br/CEE/revista/rev11.htm . Último acesso em 19 de outubro de 2008.
220
No que tange à identificação de alternativas, embora potencialmente mais
complicadas devido ao grande número de opções, esta pode ser facilitada pelo fato de
as ações empreendidas em nível de PPPs não atingirem grau de irreversibilidade,
No entanto, a maior barreira capaz de dificultar a implementação dessa etapa
da AAE reside no contexto político que envolve a atividade de planejamento. Há
problemas quando se tornam previamente públicos os objetivos de uma política,
plano ou programa, pois tais planos, políticas ou programas têm publicidade restrita
durante o processo de sua elaboração. Um dos procedimentos aventado para superar
esse obstáculo é através do uso da atividade de coordenação, em que a divulgação das
informações é realizada por concordância ou mediante o uso de instrumentos mais
convincentes.
Para a descrição do ambiente, alguns problemas surgem além dos já
apontados, no tocante à amplitude da área a ser abrangida pelo PPP. A questão do
planejamento tem níveis diferenciados o que requer, também, informações de grau
diverso, seja em detalhes ou abrangência geográfica. E, a depender da área/setor de
planejamento - energia, mineração, agricultura - diferentes tipos de informação são
demandadas. A estes fatores que já representam custos e dificuldades de
procedimentos, alia-se a questão da diferença entre as fronteiras administrativas e as
ambientais. Enquanto as coletas de informações realizadas pelo sistema oficial se
utilizam das estruturas administrativas – regiões, estados e municípios – como
fronteiras/limites, para o contexto da gestão e da análise ambiental, os limites oficiais
não representam o ‘mundo real’. Assim, a implementação de um processo de AAE
pode impor custos adicionais, para a realização de ajustes a essas bases de
informações.
A previsão dos possíveis impactos no ambiente é outra etapa difícil do
processo de AAE, em razão do grau de incerteza que envolve toda atividade de
previsão. Aqui, como na AIA, o ponto fraco é a adequação e a confiabilidade das
metodologias utilizadas para identificar e avaliar os impactos/efeitos possíveis de
ocorrerem no ambiente como resultado da implementação dos PPPs.
5.1.2
Iniciativas da AAE no Brasil
A avaliação ambiental estratégica vem-se firmando como ferramenta de
planejamento em razão dos impactos socioambientais adversos aos planos, às
221
políticas e aos programas, além das limitações inerentes à avaliação de impactos
ambientais de projetos.
Esta perspectiva não é diferente no Brasil. Em razão da crescente demanda
por licenciamento ambiental de atividades ou obras potencialmente poluidoras e
da necessidade de se obter uma avaliação ambiental mais ampla, a avaliação
ambiental estratégica está ganhando importância no cenário nacional.
A necessidade de se pensar a questão ambiental a partir de uma
perspectiva ampla – global, regional, local e setorial -, dentro de uma política de
planejamento, 27 reforça o argumento sobre as contribuições que a avaliação
ambiental estratégica pode trazer.
Entretanto, a experiência prática de AAE ainda é bastante incipiente no
Brasil.
Podemos citar a realização de alguns estudos ambientais no âmbito da
avaliação de projetos, com um enfoque ampliado para abranger os impactos
sinérgicos e cumulativos: a) o estudo Avaliação Ambiental Estratégica realizado
no projeto do gasoduto Bolívia-Brasil, por solicitação do BID e do Banco
Mundial; b) o Estudo de Impacto Ambiental do Programa de Corredores de
Ônibus da Prefeitura de São Paulo, que avaliou de forma integrada diversos
projetos de corredores de transporte coletivo28 e; c) experiências recentes de
aplicação da AAE para a avaliação de impactos cumulativos de múltiplos de
projetos de geração de energia hidrelétrica nas bacias hidrográficas dos rios
Tocantins29 e Chopin30.
Outra tentativa mais contundente de institucionalização da AAE foi a do
Estado de São Paulo, através de uma reivindicação que partiu não só dos órgãos
27 BICHARA, Marco Antonio. THEODORO, Suzi Huff. A contribuição da Avaliação Ambiental Estratégica no Licenciamento Ambiental. THEODORO, Suzi Huff; BATISTA, Roberto Carlos; ZANETI, Izabel. ( org ) Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável. Rio de Janeiro: Lúmen Iuris, 2008, p. 66. 28 BRASIL. MMA ( 2002 ). Secretaria de Qualidade Ambiental nos Assentamentos Humanos (SQA). Manual sobre Avaliação Ambiental Estratégica. pp. 44-49. 29 RAMOS, Silvia Maira Frattini Gonçalves. THEODORO, Suzi Huff Avaliação Ambiental Estratégica viabilizando um futuro sustentável no Setor Elétrico Brasileiro. THEODORO, Suzi Huff; BATISTA, Roberto Carlos; ZANETI, Izabel. ( org ) Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável. Rio de Janeiro: Lúmen Iuris, 2008, pp. 103-110. 30 BURIAN, Paulo Procópio. Avaliação Ambiental Estratégica como instrumento de licenciamento para hidrelétricas – o caso das bacias do rio Chopim no Paraná. Disponível pelo site < http://www.anppas.org.br/encontro_anual/encontro2/GT/GT06/paulo_burian.pdf>. Ultimo acesso em 25 de agosto de 2008.
222
ambientais, mas também dos membros do Conselho Estadual de Meio Ambiente
do Estado de São Paulo (CONSEMA).
Ora, no desenvolvimento da prática de avaliação de impacto ambiental,
decorrente da aplicação da Resolução CONAMA 001/86, houve uma percepção
crescente da necessidade de se incorporarem novas ferramentas ao processo de
licenciamento ambiental, de maneira a interferir nos planos e programas geradores
dos projetos de infra-estrutura e avaliar os impactos cumulativos deles
decorrentes.
As principais motivações para a adoção da AAE são no sentido de que,
quando da formulação das políticas públicas e dos programas de ação, alguns dos
impactos já podem ser identificados e, portanto, evitados. Por outro lado, a
dimensão ambiental não tem sido considerada nas tomadas de decisão que
acarretam a consecução de projetos com impactos ambientais. Na análise
individual dos projetos, há também dificuldades para a identificação e para a
avaliação de impactos cumulativos, decorrentes da implantação de vários
empreendimentos na mesma região. Ademais, nos projetos de grande impacto
ambiental, há pouca consistência nas justificativas técnicas, políticas,
institucionais e legais em relação às alternativas selecionadas.
No Brasil, a AAE só foi regulamentada pelo Estado de São Paulo,
mediante a Resolução CONSEMA nº 44, de 29 de dezembro de 1994, que designa
a Comissão de Avaliação Ambiental Estratégica, subordinada ao Secretário
Estadual de Meio Ambiente, para analisar a introdução da variável ambiental em
política, plano e programa governamental de interesse público, encaminhando ao
final dos trabalhos relatório para apreciação.
Tal resolução confere ao CONSEMA e à SMA/SP as atribuições de:
avaliar as conseqüências ambientais das diretrizes setoriais, definir o conteúdo e
elaborar termos de referência para a elaboração dos estudos, analisar os seus
resultados, e, finalmente, produzir relatórios e pareceres sobre a aprovação das
AAE das políticas, planos e programas.31
De acordo com essa regulamentação, a proposta de abordagem de
aplicação da AAE naquele estado restou evidenciada, porém o modelo adotado é
31 BRASIL. MMA ( 2002 ). Secretaria de Qualidade Ambiental nos Assentamentos Humanos (SQA). Manual sobre Avaliação Ambiental Estratégica. p. 47.
223
semelhante ao processo de avaliação de impacto ambiental já conhecido e
regulado pelo ordenamento jurídico vigente.
Houve, ainda, tentativas de aplicação do instituto no projeto de
implantação do Rodoanel em São Paulo, mas, por pressões políticas, o projeto foi
fragmentado e analisado de forma particularizada, somente tendo sido elaborado o
EIA/RIMA no processo de licenciamento ambiental. Os resultados dessa (e de
outras experiências), bem como os resultados do estudo Procedimentos
Alternativos para a Operacionalização da AAE no Sistema Estadual de Meio
Ambiente, até 2002, não haviam conduzido, infelizmente, a nenhuma decisão
institucional ou política sobre o emprego da AAE no Estado de São Paulo.32
Ademais, está em trâmite no Senado Federal o Projeto de Lei nº 2.072, de
200333, de iniciativa do Deputado Federal Fernando Gabeira, que dispõe sobre
Avaliação Ambiental Estratégica de políticas, planos e programas, modificando a
Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (atualmente,34 está na Comissão de
Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), já tendo sofrido uma emenda que
altera o disposto no art. 2º do projeto de lei).
Em verdade, o art. 2º do projeto de lei35 em questão altera a Lei 6938/81,
acrescentando os arts. 12-A, 12-B e 12-C à referida lei.
32 Ibid. pp. 48-49. 33 Vide a íntegra do Projeto de Lei no Anexo.( inserir o projeto no anexo ) 34 O andamento do processo junto ã Câmara de Deputados através do site http://www2.camara.gov.br/proposicoes, demonstra que o projeto ainda está na Comissão de Constituição e Justiça e que a última ação significativa ocorreu em 05/05/2008, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) - com Parecer do Relator, Dep. Luciano Pizzatto (DEM-PR), pela constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa do projeto apresentado, e pela injuridicidade da Emenda da Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público.
35 Art. 2º - A Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, que “dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências”, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 12-A a 12-C: Art. 12-A. Ficam os órgãos da administração pública direta e indireta responsáveis pela formulação de políticas, planos ou programas obrigados a realizar a avaliação ambiental estratégica dessas políticas, planos ou programas.
§ 1º Entende-se por avaliação ambiental estratégica o conjunto de atividades com o objetivo de prever, interpretar, mensurar, qualificar e estimar a magnitude e a amplitude espacial e temporal do impacto ambiental potencialmente associado a uma determinada política, plano ou programa, tendo em vista: I – a opção por alternativas tecnológicas ou locacionais que mitiguem os efeitos ambientais adversos; II – a proposição de programas e ações compensatórias dos efeitos ambientais adversos. § 2º A realização da avaliação ambiental estratégica não exime os responsáveis de submeter os empreendimentos que integram as políticas, planos ou programas ao licenciamento ambiental exigido na forma do art. 10. § 3º As alterações significativas do conteúdo de políticas, planos e programas também ensejam a realização de avaliação ambiental estratégica. Art. 12-B. A avaliação ambiental estratégica observará as seguintes diretrizes: I – a avaliação abrangerá todo o processo de formulação da política, plano ou programa; II – as metodologias
224
Através dos referidos dispositivos, o projeto de lei tem o mérito de instituir
no Brasil a avaliação ambiental estratégica como instrumento de concretização da
política nacional do meio ambiente, fundamental para o planejamento ambiental.
Porém, como pode ser observado por meio de simples leitura, é que o aludido
projeto disse menos do que deveria.
O conceito adotado para definir a avaliação ambiental estratégica, como “o
conjunto de atividades com o objetivo de prever, interpretar, mensurar, qualificar
e estimar a magnitude e a amplitude espacial e temporal do impacto ambiental
potencialmente associado a uma determinada política, plano ou programa”,
considerando “a opção por alternativas tecnológicas ou locacionais que mitiguem
os efeitos ambientais adversos” e “a proposição de programas e ações
compensatórias dos efeitos ambientais adversos”, em verdade, não se coaduna
com as definições fornecidas pela doutrina estudada.36
Não ficou evidenciado no referido projeto ser a avaliação ambiental
estratégica um processo sistemático, formado por várias etapas, para servir de
apoio a decisões estratégicas tomadas em planos, políticas ou programas, através
do qual são identificados, analisados e avaliados previamente os impactos
relativos à decisão a ser tomada. De igual forma, não capta o projeto de lei o
grande objetivo da avaliação ambiental estratégica, isto é, a capacidade de, uma
vez identificados os impactos socioambientais de determinado plano, política ou
programa, ser o instrumento capaz de influenciar na tomada de decisão, seja no
sentido da implantação das PPP’s, seja no sentido de rejeitá-las ou, ainda, de
viabilizar uma medida alternativa também prevista na AAE.
A definição trazida pelo legislador federal aproxima, na realidade, a
avaliação ambiental estratégica de uma avaliação de projetos, ao prever, inclusive,
a adoção de “programas e ações compensatórios dos efeitos ambientais adversos”,
analíticas a serem aplicadas na avaliação serão definidas pelos órgãos responsáveis pela formulação da política, plano ou programa, observados os parâmetros básicos definidos em regulamento; III – serão asseguradas na avaliação: a) ampla publicidade das atividades desenvolvidas, e de seus resultados; b) participação da população afetada pela política, plano ou programa. Art. 12-C. O resumo das atividades desenvolvidas no âmbito da avaliação ambiental estratégica, e de seus resultados, será consolidado no Relatório de Avaliação Ambiental (RAA), ao qual se dará publicidade. Parágrafo único. Quando requerido por órgão ambiental integrante do SISNAMA, pelo Ministério Público ou por cinqüenta ou mais cidadãos, será realizada audiência pública para discussão do RAA, na forma do regulamento. (NR)” 36 Vide Capítulo 4, item 4.1 a respeito das definições da avaliação ambiental estratégica.
225
sem mencionar em nenhum lugar o mais importante: a previsão de tomada de
medidas de caráter preventivo, para evitar a ocorrência do dano ambiental.
Portanto, lamentavelmente, o projeto de lei referenciado não dá enfoque à
uma política de sustentabilidade socioambiental preocupada com a prevenção do
dano, mas sim com a possibilidade de que o dano ocorra, adotando-se as medidas
compensatórias e mitigadoras correspondentes. Esta opção legislativa não se
coaduna com o princípio do desenvolvimento sustentável, tal como estudado no
item próprio desse trabalho, razão pela qual, embora pareça o projeto bem
intencionado, deve ser alterado em suas premissas básicas.
Outro ponto que merece reflexão é não prever a lei, minimamente, uma
diretriz genérica para a metodologia a ser adotada na avaliação ambiental
estratégica. Como se percebe do exame do projeto de lei, as metodologias deverão
ser definidas pelos órgãos responsáveis pela formulação da política, plano ou
programa, “observados os parâmetros básicos definidos em regulamentos”.
Assim, além de relegar para uma regulamentação posterior os parâmetros
metodológicos a serem adotados, permite que diferentes metodologias sejam
utilizadas, dependendo do órgão responsável pela PPP.
Como já foi objeto de explanação, há diversos métodos de aplicação da
AAE e, em virtude disso, deveria ser discutida em sede legislativa quais seriam as
possibilidades de serem objeto de regulamentação, definindo, inclusive, se tratar-
se-ia de uma abordagem metodológica inovadora, mais estratégica, como sugere
Partidário (2006), ou mais próxima da metodologia existente para a AIA de
projetos.
Ademais, quanto à previsão de ampla publicidade e da necessidade de
participação pública andou bem o legislador. No entanto, no artigo seguinte (art.
12-C), restringiu o projeto a realização de audiência pública, um instrumento de
consulta pública extremamente relevante, ao requerimento de órgão do
SISNAMA, do Ministério Público ou de documento assinado por cinqüenta ou
mais cidadãos. Deveria o projeto, ao revés, prever, em qualquer circunstância, a
realização de audiência pública, sem restrições, para avaliação do relatório final
da AAE.
Prevê, ainda, o art. 3º do projeto de lei que o descumprimento do disposto
nos artigos mencionados (art. 12 – A, B e C) constitui crime contra a
administração ambiental, sujeito às penas previstas no art. 68 da Lei nº 9.605, de
226
12 de fevereiro de 1998, sem prejuízo das sanções não penais cabíveis, ou seja,
medidas de natureza cível e administrativa.
Elaboradas as presentes considerações, voltemos à análise da avaliação
ambiental estratégica, desta feita, com enfoque no setor de energia.
5.1.3
A avaliação ambiental no setor energético brasileiro.
O processo para o licenciamento ambiental de usinas hidrelétricas se inicia
com a apresentação do Estudo de Impacto Ambiental e a solicitação de licença
prévia ao órgão licenciador. Ora, as experiências brasileiras neste tema têm
demonstrado que a sistemática, prevista na Resolução CONAMA 01/86 para o
licenciamento de tais empreendimentos, não contempla adequadamente aspectos mais
estratégicos do empreendimento hidrelétrico, como os técnicos relativos à localização
e à cota de reservatório.
A fim, então, de suplantar as limitações do estudo de impacto ambiental,
práticas recentes têm sido adotadas no sentido da elaboração da Avaliação Ambiental
Estratégica, de forma a buscar a antecipação da análise e discussão de questões
socioambientais relevantes, como a da definição da localização dos projetos, segundo
critérios socioambientais, e examinar o projeto considerando não apenas a área de
influência direta, mas, sim, toda a bacia hidrográfica.37
No âmbito do setor de energia se destaca, de um lado, a necessidade de
planejamento - de curto, médio e longo prazo - com a previsão de grandes
projetos, em sua maioria hidrelétricos em razão da grande disponibilidade de
recursos hídricos no país. De outro, o histórico dos impactos sociais e ambientais
causados por tais empreendimentos, conforme menção já realizada no presente
estudo.38
Assim, pelo exame de muitas das críticas aferidas ao processo de
licenciamento ambiental39, relativas à ausência de um debate adequado sobre a
viabilidade ambiental do projeto e de suas alternativas (possíveis) e da própria
inserção do projeto em uma perspectiva mais ampla de análise - considerando a
bacia hidrográfica e os efeitos cumulativos e sinérgicos de outros
37 Ibid. 38 Sobre os impactos socioambientais das hidrelétricas, vide Capítulo 2, item 2.4. 39 Vide capítulo 4, item 4.4.3.
227
empreendimentos - podemos concluir que o licenciamento ambiental não se
afigura como a fase própria para a discussão desses aspectos. Tais discussões
devem ser provocadas em fase anterior.
Há necessidade, ainda, de se estabelecer outro procedimento de avaliação
ambiental diverso do estudo de impacto ambiental, para uma fase anterior, ou seja, o
momento do inventário hidrelétrico da bacia hidrográfica, que, como já vimos, se dá
quando se definem os locais dos potenciais aproveitamentos hidrelétricos a serem
explorados. O setor elétrico na tomada de suas decisões, notadamente nos planos
de expansão de geração de energia, não leva em conta, de maneira efetiva, a
variável ambiental – apesar de terem sido observados alguns avanços com a
interferência pontual no processo de planejamento.40
Como o principal objetivo da AAE é fornecer subsídios à tomada de
decisões com o fim último do desenvolvimento de planos, programas e políticas, e
o fato define se deve considerar, como desenvolvimento sustentável, aquele
“economicamente factível, ecologicamente apropriado, socialmente justo e
culturalmente eqüitativo, sem discriminação”41, aquela parece ser instrumento que
contribui para a inclusão da dimensão ambiental, de maneira efetiva, nos
processos decisórios do setor elétrico, em geral.
Nos planos de expansão energética, não há a verdadeira implementação do
principio da gestão democrática, através da discussão com a participação pública,
das alternativas aos aproveitamentos hidrelétricos bem como da necessidade de
diversificação da matriz energética, ficando a análise restrita aos
empreendimentos de modo isolado. Ademais, não se discute o perfil ótimo da
matriz de energia elétrica, ao mesmo tempo, com a consideração da dimensão
socioambiental.
Assim, a avaliação ambiental estratégica se apresenta como o instrumento
capaz de articular, no cenário de política energética e no âmbito do planejamento,
os diversos setores envolvidos – energético, ambiental, de gestão de recursos
hídricos, das cidades, etc -, fornecendo um referencial de avaliação, através do
qual estarão definidos objetivos de desenvolvimento e melhoria da qualidade
40 BURIAN, Paulo Procópio. Avaliação Ambiental Estratégica como instrumento de licenciamento para hidrelétricas – o caso das bacias do rio Chopim no Paraná. Disponível pelo site < http://www.anppas.org.br/encontro_anual/encontro2/GT/GT06/paulo_burian.pdf>. Ultimo acesso em 25 de agosto de 2008. 41 GADOTTI, Moacir ( 1999), apud SIRVINSKAS, Luís Paulo. Tutela Constitucional do Meio Ambiente. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 35.
228
socioambiental, além de determinados os indicadores e as metas a serem
alcançados.
Interessante registrar, neste setor brasileiro, a crescente demanda por
estudos mais abrangentes do que os EIA/RIMAs realizados em empreendimentos
hidrelétricos.
Em certos empreendimentos, como no caso das usinas hidrelétricas
localizadas no Sudoeste Goiano (GO), UHE de Salto, Salto do Rio Verdinho,
Olho d’água, Caçu e Barra dos Coqueiros, foi exigida pelo Ministério Público
Estadual e Federal, a realização de um Estudo Integrado de Bacias Hidrográficas
para Avaliação de Aproveitamentos Hidrelétricos, denominado EIBH, de acordo
com o termo de referência, conforme Termo de Ajustamento de Conduta firmado
entre o Ministério Público Estadual e Federal e o órgao ambiental licenciador, no
caso, Agência Goiana de Meio Ambiente e Recursos Naturais42.
Para a elaboração do termo de ajustamento de conduta o Ministério
Público considerou, entre outros, a ausência no Estado de Goiás da previsão legal
da avaliação ambiental estratégica e que, nos Estudos de Inventário realizados
pela ANEEL e também nos EIA apresentados, não foram analisados os efeitos
cumulativos e sinérgicos envolvendo outros empreendimentos já implantados ou
em vias de implantação na mesma região.
No processo de licenciamento ambiental da usina hidrelétrica de Barra
Grande, após diversas ações judiciais, com manifestações da sociedade civil e
dos atingidos pela barragem, em razão especialmente de falha atribuída ao
EIA/RIMA que deixou de prever a existência no local de implantação da usina
de área remanescente de Mata de Araucária (tipo de floresta do Bioma Mata
Atlântica), foi celebrado termo de compromisso, exigindo a realização de
Avaliação Ambiental Integrada. O objetivo de tal avaliação foi a identificação
e a análise dos efeitos sinérgicos e cumulativos, resultantes do conjunto de
empreendimentos cuja concessão teria sido outorgada na bacia do Rio Uruguai
(na divisa entre os estados de Rio Grande do Sul e de Santa Catarina).
A seu turno no processo de licenciamento ambiental do complexo
hidrelétrico de São João/Cachoeirinha, no Paraná, houve a paralisação das
atividades pelo Instituto Ambiental do Paraná, através da Portaria 120/2004,
42 A íntegra do Termo de Ajustamento de Conduta esta disponível no Anexo.
229
desse órgão, que condicionou o licenciamento à efetivação da AAE e do
Zoneamento Ecológico Econômico no referido estado, já determinado por lei
estadual.
Já em Rondônia, no licenciamento ambiental do complexo hidrelétrico
do Rio Madeira, houve também a elaboração da avaliação ambiental
estratégica pelo Consórcio Furnas-Odebrecht, de maneira voluntária, na etapa
da apresentação dos estudos de viabilidade técnica e socioambiental.
No Brasil, verifica-se que a matriz energética predominante é a
hidrelétrica, com cerca de 73 % do total de energia produzida43. Esse fator se
deve em razão do grande potencial hidráulico existente no país, além da
disponibilidade tecnológica nacional, que tem produzido energia barata,
competitiva e renovável44. Por outro lado, há previsões no sentido de um
aumento crescente da demanda por energia.
Não é sem razão: a crise energética ocorrida em 2001 serviu para
demonstrar que o modelo anterior, conhecido como “reestruturação” do setor,
em vigor a partir de 1993, baseado na competição e desestatização, não
apresentara os resultados esperados do ponto de vista macroeconômico e,
ainda, acarretara prejuízos concretos à economia e à população, especialmente
as de mais baixa renda. Do ponto de vista estratégico, a perda foi ainda maior,
pois o Estado deixou de assumir o papel de planejador e orientador de políticas
em um setor de fundamental importância para o desenvolvimento social e
econômico do país.45 46
43 Vide figura 3, constante do capítulo 4. 44 RAMOS, Silvia Maria Frattini Gonçalves; THEODORO, Suzi Huff. Avaliação Ambiental Estratégica viabilizando um futuro sustentável par ao setor elétrico brasileiro. THEODORO, Suzi Huff; BATISTA, Roberto Carlos; ZANETI, Izabel. ( org ) Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável. Rio de Janeiro: Lúmen Iuris, 2008, p.103. 45 SAUER, Ildo Luís. Um novo modelo para o setor elétrico brasileiro. SAUER, Ildo Luís. ( et al ) A reconstrução do setor elétrico. Campo Grande: Ed. UFMS; São Paulo: Paz e Terra, 2003, pp. 16-17. 46 Segundo o referido autor, para os idealizadores do modelo de reestruturação, a causa da escassez energética foi a incompleta implementação do novo sistema, com a permanência de grande parte da geração sob gestão estatal. Outros atribuíam a falta de energia a causas naturais como a estiagem. Porém, a verdadeira causa seria a falta de investimentos em geração e transmissão de energia elétrica, pois as empresas estatais, em cumprimento aos acordos do país com agências multilaterais estavam impedidas de investir e, por outro lado, o capital privado deu preferência aos investimentos na capacidade já existente, agregando pouca capacidade nova ao sistema. Na região sudeste, detentora de 68% da capacidade de armazenamento do país, até 1993, verificava-se mais de 93% da capacidade preenchida, todos os anos, ao final do período chuvoso. Em 2001, na mesma época do ano, estavam abaixo de 34%, pois a partir de 1995 o estoque foi continuamente consumido, sem que providências fossem tomadas no sentido do aumento da produção energética.
230
A institucionalização da avaliação ambiental estratégica se coaduna, a seu
turno, com a retomada pelo poder público da iniciativa quanto ao planejamento
energético, iniciada a partir das alterações normativas ocorridas em 200447. No
entanto, é preciso atentar para determinados aspectos que parecem ser
fundamentais para não tornar o instituto “uma mera etapa ou formalidade a ser
cumprida”.
Estando em jogo a ação da administração pública, em seus vários setores,
importante é reconhecer a mudança de paradigmas em relação a sua atuação, com
a introdução de novos valores relacionados ao Estado pós-moderno, notadamente,
aqueles inseridos no contexto do Estado de Direito Ambiental.
Prioriza-se, a partir deste novo paradigma, a observância dos direitos
fundamentais e da democracia integral (substancial e não apenas formal). Assim,
cumpre ao Estado afirmar o seu primado de valores, garanti-los e promovê-los
através de políticas públicas adequadas, sempre pautado pelos dois macro-
princípios: o dos direitos fundamentais e do da democracia substancial.48
Não há de se admitir, pois, no âmbito do planejamento e da administração
pública, a racionalidade e a objetividade impostas pelo Estado Moderno, para a
obtenção de sua legitimidade.
No Estado moderno, a lógica dominante é a da razão, marcada pelas
características da abstração e objetividade. Estes são, sobretudo, os “instintos
infalíveis da burocracia para as condições da conservação de seu poder dentro do
Estado próprio.”49
Max Weber, no estudo da dominação burocrática, construção do Estado
moderno, já afirmava que “a razão decisiva do avanço da organização burocrática
sempre foi sua superioridade puramente técnica sobre qualquer outra forma”50.
Segundo o autor, a “precisão, rapidez, univocidade, conhecimento da
documentação, continuidade, discrição, uniformidade, subordinação rigorosa,
diminuição de atritos e custos materiais e pessoais alcançam o ótimo numa
administração rigorosamente burocrática.”
47 Vide sobre o assunto o capítulo 2. 48 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do direito administrativo pós-moderno: legitimidade, finalidade, eficiência; resultados. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 24. 49 WEBER, Max. Economia e Sociedade. Fundamentos da Sociologia Compreensiva. VOL. I. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, Brasília/DF: Editora da Universidade de Brasília/ São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004, p. 216. 50 Ibid. p. 212.
231
Portanto, a burocracia e suas técnicas mascaram as razões adotadas pela
administração pública na tomada de decisões, que, no Estado Moderno, priorizam
a “objetividade” e a “calculabilidade dos resultados”, garantidores da segurança
jurídica. Esta peculiaridade da atividade burocrática, bem-vinda ao capitalismo, é
louvada, pois “desumaniza”, elimina os elementos sentimentais na execução das
tarefas oficiais.51
Não passou despercebido ao referido autor, porém, a questão da chamada
“tendência democrática” que pretende “minimizar a dominação”. Porém, a
dominação burocrática, em nome da “igualdade jurídica” - que exige garantias
jurídicas contra a arbitrariedade da administração e a objetividade racional formal
da administração - prevaleceu sobre a possibilidade de influência através da
opinião pública, causadora de inequívocos “sentimentos irracionais”. 52
Afirma o autor:
Particularmente para as massas não-possuidoras, a “igualdade jurídica” formal e a aplicação do direito e administração “calculáveis”, tais como as exigem os interesses “burgueses”, não trazem vantagem alguma. Para elas, como é natural, o direito e a administração têm de estar a serviço do nivelamento das oportunidades de vida econômicas e sociais diante dos possuidores, e esta função eles apenas podem exercer quando adotam, em grande parte, um caráter informal ( de justiça de cádi ), devido ao seu conteúdo ético.53
No novo paradigma do Estado Democrático de Direito, diverso dos
parâmetros acima mencionados a respeito do Estado Moderno, a administração
pública assume papel mais político do que técnico. Nesta mudança de paradigma,
deve-se assistir à passagem da política como “administração técnica de homens e
coisas” para a política “como governo dos homens mediado pela gestão das
coisas”, pois não se deve aceitar a “tecnicização administrativa da política” que
acarreta na sua despolitização.54
A vinculação de decisões administrativas a análises estritamente técnicas
impede a intervenção dos cidadãos no Estado. Este, no entanto, não deve ser o
escopo esperado da atuação estatal na utilização da avaliação ambiental
estratégica.
51 Ibid. pp. 212-213. 52 Ibid, p. 216. 53 Ibid. p. 217. 54 CHAUI, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2007, p. 284.
232
Seguindo estes novos parâmetros, para que a administração pública torne
a avaliação ambiental estratégica um instrumento eficaz do ponto de vista da
sustentabilidade socioambiental, é preciso, antes de tudo, que esteja aberta à
participação pública.
Analisando o escopo da avaliação ambiental estratégica, podemos afirmar,
então, que ela parece ser instrumento adequado para permitir a melhoria da
qualidade da gestão ambiental, através da articulação entre os setores energético e
ambiental, possibilitando a gestão democrática desde o início do planejamento
energético. Além disso, vai diminuir os efeitos da burocracia inerente ao processo
de licenciamento ambiental e torná-lo mais eficiente, na medida em que se presta
à análise individual da viabilidade ambiental de projetos.
Se a dimensão socioambiental não for devidamente incorporada ao
processo de planejamento energético, corre-se o risco de se ter um direito que é
ambiental e um sistema jurídico não-ambiental55
5.2
Análise dos casos-referência na perspectiva da implantação da
avaliação ambiental estratégica
Reforcemos aqui a justificativa quanto à adequação dos casos-referência
para a presente pesquisa.
Os casos foram escolhidos em razão não só de sua notoriedade como
também pelo fato de envolverem direta ou indiretamente a realização de estudos
diversos e complementares ao Estudo de Impacto Ambiental.
Através de tais casos, pode-se identificar as questões relativas à participação
pública, ao desenvolvimento sustentável e à avaliação ambiental estratégica.
Diferem, no entanto, já que no caso da UHE de Barra Grande, mais antigo, o
processo de licenciamento ambiental já foi concluído, enquanto que no do
Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, o processo de licenciamento ambiental
ainda está em curso.
55 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direito ambiental e teoria jurídica no final do século XX. In VARELLA, Marcelo Dias. BORGES, Roxana Cardoso B. ( org ). O novo em Direito Ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 15.
233
Objetiva-se, com a presente análise, demonstrar como tem se dado a
participação pública nos processos para a implantação de hidrelétricas, verificar se
a sustentabilidade socioambiental está sendo observada e, por fim, examinar os
casos a partir da utilização da avaliação ambiental estratégica.
Quanto a este último aspecto, será elaborada uma análise diferenciada
entre os dois casos, pois, no primeiro, será realizada uma espécie de projeção para
examinar qual teria sido o efeito da adoção da avaliação ambiental estratégica na
decisão sobre a implantação do empreendimento. Já no segundo caso, será
avaliada a experiência da adoção voluntária da avaliação ambiental estratégica
pelo empreendedor.
5.2.1
Caso-referência da Usina Hidrelétrica de Barra Grande
Um dos primeiros pontos que merecem registro no caso proposto diz
respeito ao fato de que, após a descoberta da existência de remanescentes de
floresta ombrófila mista na área do empreendimento, não houve a iniciativa, no
âmbito do processo de licenciamento ambiental, de realização de nenhum ato
formal que ensejasse a possibilidade de participação popular, como a audiência
necessária aos interessados - o público.
Aliás, o processo de licenciamento ambiental da UHE Barra Grande
parece não ter sofrido alteração significativa em seu percurso, salvo em razão das
decisões judiciais que, momentaneamente, impediram o órgão licenciador de
emitir autorização para a supressão da vegetação de Mata Atlântica e a licença de
operação, bem como o próprio empreendedor de prosseguir com as obras. A
iniciativa relativa à celebração do termo de compromisso com a participação do
Ministério Público Federal foi tomada justamente para permitir o prosseguimento
regular do processo de licenciamento ambiental.
Como visto, através da narrativa anterior dos fatos, não foi ventilada, no
aludido processo de licenciamento, qualquer conduta do órgão licenciador no
sentido de anular56 ou, mesmo, suspender as licenças já emitidas. Neste particular,
56 A doutrina pátria diverge neste ponto quanto à forma que assume a revisibilidade da licença ambiental. Alguns falam em cassar, outros em anular, outros em cancelar e outros ainda em
234
a descoberta em fase adiantada do processo de licenciamento - de uma omissão no
EIA/RIMA quanto à existência de remanescentes de Mata Atlântica, vegetação
protegida pelo ordenamento jurídico - ensejaria, a toda evidência, a revisão das
licenças concedidas57 (e “Revisão”, aqui, possui o significado de “adequar, anular,
cassar, revogar ou suspender”58).
Ora, sabido é, que a licença ambiental, como ato administrativo resultante
de processo administrativo, pode ser anulada59 posteriormente caso se descubra
omissão ou falsa descrição de informação relevante que tenha subsidiado a
expedição da licença. O art. 19, inciso II da Resolução CONAMA n. 237/9760, é
claro neste sentido. Não foi essa, todavia, a conduta do órgão ambiental neste
caso, o que já é bastante grave.
Porém, após o conhecimento pelo IBAMA e pelo Ministério Publico dos
fatos, não chegou sequer a ser aberto mais um canal de discussão com a sociedade
civil, o que seria imprescindível por se tratar de informações que já deveriam ter
instruído o EIA/RIMA desde o início.
A falta de uma abertura para a discussão da omissão revelada dentro do
próprio licenciamento ambiental, portanto, deu ensejo a uma corrida das ONG’s e
associações com atuação na área ambiental ao Poder Judiciário, com o
ajuizamento de diversas ações, cujo objeto principal era (e ainda é, pois as ações
ainda não foram definitivamente julgadas) a anulação das licenças ambientais
expedidas.
Deve ser, destacado, ainda, que para a celebração do termo de
compromisso pelo Ministério Público Federal também não houve prévia oitiva da
sociedade, seja através da realização de audiência pública ou de reuniões abertas à
revogar. Vide FARIAS, Talden. Licenciamento Ambiental. Aspectos Teóricos e Práticos. Belo Horizonte, Fórum, 2007, p. 212. 57 O art. 9o, inciso IV, da Lei 6938/81 prevê a possibilidade de rever as licenças já concedidas. 58 Neste sentido, FARIAS, Talden. op.cit., p. 206. 59 Apesar da divergência doutrinária sobre o tema, entendemos que a hipótese em tela enseja a anulação da licença. Neste mesmo sentido, STEIGLER, Annelise Monteiro. Aspectos controvertidos do licenciamento ambiental. Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente. Disponível em: http://www.abrampa.org.br. Ultimo acesso em 14 de outubro de 2008; e FARIAS, Talden. Licenciamento Ambiental. Aspectos Teóricos e Práticos. Belo Horizonte, Fórum, 2007, p. 218.
60 Resolução CONAMA 237/97.Art. 19 – O órgão ambiental competente, mediante decisão motivada, poderá modificar os condicionantes e as medidas de controle e adequação, suspender ou cancelar uma licença expedida, quando ocorrer:(...) II- Omissão ou falsa descrição de informações relevantes que subsidiaram a expedição da licença.
235
participação dos interessados. Há que se acrescentar, ainda, que o termo de
compromisso foi debatido internamente no âmbito da instituição ministerial, com
o pronunciamento do órgão colegiado da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do
Ministério Público Federal, formada por três membros, que, por unanimidade,
aprovou e homologou o mencionado termo, em 22 de novembro de 200461.
No entanto, esta participação dos segmentos da sociedade se revelou na
propositura de diversas ações judiciais, ainda hoje em curso, apesar de o
empreendimento já estar em operação.
Visto sob outra perspectiva, percebe-se que os órgãos públicos
competentes, tais como IBAMA, Ministério do Meio Ambiente e Ministério
Publico Federal, não tomaram nenhuma iniciativa no sentido de impedir a
implantação do empreendimento, mas, sim, de possibilitar a sua instalação com a
concomitante imposição de medidas mitigadoras e compensatórias. A única ação
judicial existente de órgão público, neste caso, foi movida pela União.
A mobilização popular através do MAB, juntamente com as ONG’s e
associações ambientalistas, fez com que tais fatos ganhassem projeção nacional e
internacional e servissem como instrumento de pressão na tomada de decisões
pelo Poder Judiciário e pelo próprio empreendedor.
Quanto ao Poder Judiciário, cabe destacar não só a decisão liminar
prolatada nos autos da ACP n. 2004.72.00.013781-9, junto à 3a Vara da Seção
Judiciária de Florianópolis, pelo Juiz Federal Osni Cardoso Filho, como também a
proferida no recurso de agravo, em Suspensão de Execução de Liminar n.
2004.04.01.049432-1/SC, pelo Desembargador Presidente Vladimir Passos de
Freitas, reconsiderando sua decisão anterior no sentido de suspender os efeitos da
liminar.
Com relação ao empreendedor, podemos mencionar a elaboração dos
acordos para possibilitar o remanejamento da população atingida, em setembro de
2002 e em dezembro de 2004, somente possíveis, nos termos em que foram
elaborados, depois de muita resistência e pressão pela população organizada.
61 Esta informação foi obtida de depoimento dado pelo representante do MPF na audiência pública realizada na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados, em 30 de agosto de 2005. Vide, para tanto, o site <www2.camara.gov.br/comissões/cmads/notastaq/nt30082005.pdf>. Último acesso em 02 de janeiro de 2009.
236
Ora, se do ponto de vista da sociedade civil organizada, pode-se afirmar a
existência de verdadeira sociedade reflexiva, com a atuação expressiva dos
movimentos sociais e ambientais, não é possível dizer o mesmo sob o ângulo do
poder público. Aqui, a existência de interesses convergentes entre o governo
federal e a iniciativa privada no sentido de implantar a hidrelétrica tornou o poder
público ente parcial, não aberto ao diálogo e capaz de sobrepor os anseios da
generalidade social plural de reabertura da discussão sobre a viabilidade ambiental
do projeto e a apresentação de alternativas capazes de preservar a floresta de
araucárias.
Por outro lado, a atuação do poder público em geral não se mostrou
próxima, receptiva e acessível aos diretamente atingidos pelo empreendimento
nem também aos cidadãos que questionaram, em vários fóruns de discussão e em
diversas esferas, a conduta do poder público em relação à omissão praticada no
EIA/RIMA da UHE de Barra Grande. A falta de canais e de espaços, propiciados
pelo próprio poder publico para o debate e a crítica, ficou evidente. Tanto é assim
que as controvérsias surgidas foram judicializadas62. A ida ao Poder Judiciário
acabou, de fato, transformando-se no último recurso para possibilitar uma
reapreciação do interesse público na implantação do empreendimento hidrelétrico.
Além da fraude havida na questão ambiental, a deficiência quanto ao
tratamento das questões socioeconômicas foi apontada pelo próprio IBAMA63
como um dos graves problemas existentes no processo de licenciamento. Estes
decorreram de alguns fatores, tais como a existência de estudos de casos
negativados de pessoas (que se consideram atingidas pela barragem), a ausência
de mecanismos de consulta e participação da sociedade (por parte do
empreendedor, na discussão dos interesses sociais coletivos), a imprevisão tanto
no cumprimento das etapas e quanto aos prazos para implementação do acordo de
remanejamento populacional pela BAESA.
Fica evidente essa questão em trecho do parecer técnico emitido pelo
órgão ambiental antes da concessão da licença de operação:
Após uma leitura atenta dos objetivos iniciais e atividades previstas para os diversos Projetos Ambientais para mitigação e compensação dos impactos sobre
62 Neste sentido, vide VALLE, Raul Silva Telles do. O caso Barra Grande: lições sobre o ( não ) funcionamento do Estado de Direito no Brasil. In PROCHNOW, Miriam ( org ) Barra Grande. A hidrelétrica que não viu a floresta. Rio do Sul: APREMAVI, 2005, pp. 16-17. 63 Parecer Técnico N° 71/2005 – IBAMA/DILIQ/CGLIC/COLI C, datado de 04 de julho de 2005, preparatório para a emissão de Licença de Operação.
237
o meio socioeconômico, percebemos que houve um enorme hiato entre as propostas e as ações efetivamente realizadas. Os Projetos propostos, cuja aprovação pelo IBAMA proporcionou a emissão das Licenças Prévia e de Instalação, não foram executados por completo, apesar da experiência da equipe técnica disponível para a implementação dos mesmos. Entre os Projetos cujos objetivos não foram adequadamente alcançados, destacam-se o Programa de Remanejamento e Compensação da População Atingida e o Programa de Reestruturação e Revitalização das Comunidades Lindeiras.
Por outro lado, a ineficiência do empreendedor no trato das questões
socioeconômicas se revela no fato de que a licença de operação foi concedida
contendo setenta e seis (76) condicionantes, das quais, pelo menos, trinta e seis
(36) dizem respeito ao cumprimento de exigências relacionadas aos acordos
anteriormente assinados para remanejamento populacional e apoio à população
atingida.
Portanto, claro o descumprimento dos direitos humanos. Além da falta de
observância do necessário dever de proteção ambiental, fica evidente que a
degradação ambiental causada também gera violações ao direito à vida, à saúde, à
moradia, ao bem-estar, ao trabalho, às referências culturais e ao desenvolvimento
da população local.
Ademais, a falta de informações claras e precisas e a deficiência na
publicidade de atos oficiais, como o termo de compromisso, aliás, em muito,
contribuiu para a ausência de uma participação pública mais eficaz. O fato de não
existir uma troca de informações continua, verídica, tempestiva e transparente
entre poder público, iniciativa privada e sociedade civil, mesmo após a vinda à
tona da grave falha do EIA/RIMA, com a produção de maior conhecimento
(técnico-científico ou não), com toda certeza acarretou prejuízos ao pleno
exercício da cidadania.
Portanto, a conclusão a que se chega é que, de forma efetiva, não foram
fornecidas condições para o pleno exercício da cidadania, o que implica dizer que
a verdadeira finalidade da participação pública, qual seja o debate e a
possibilidade de influir em decisões, não foi atendida minimamente. Resta, pois,
constatar a existência de um déficit real de participação pública no caso de Barra
Grande, cuja conseqüência grave e incontornável recai na total falta de
credibilidade nas instituições públicas em geral, como fomentadoras de processos
participativos para as tomadas de decisão.
238
No que diz respeito à aplicação do princípio do desenvolvimento
sustentável, constata-se, desde o início do processo de licenciamento ambiental,
que não foi plenamente observado.
A grande questão em torno da qual girava toda a controvérsia, na
implantação da usina Barra Grande, era de saber se poderia uma usina hidrelétrica
se instalar em local de presença dos últimos remanescentes de floresta ombrófila
mista primária, da qual restaria menos de 3% em todo o território nacional.64
O que se percebe é que a discussão a respeito da viabilidade ambiental do
empreendimento acabou sendo colocada de lado, em razão do argumento que
acabou se consolidando: da necessidade de expansão energética na região.
Aqui, desenvolve-se uma luta simbólica, a respeito de representações, de
valores, de esquemas de percepção e de idéias65, manifestadas entre aqueles que
priorizam a necessidade de preservação ambiental e os que preferem uma política
econômico-energética de aumento da geração a qualquer custo. Nesse embate, os
defensores do empreendimento se utilizaram do discurso corrente sobre a
necessidade de expansão energética para legitimar o licenciamento do
empreendimento. Este é o processo de apropriação simbólica dos recursos
naturais, que legitima, ao fim e ao cabo, a distribuição de poder e do capital sobre
os recursos ambientais.
Portanto, no debate acerca do desenvolvimento sustentável, que deve ser
ampliado para abordar todas as suas dimensões - social, cultural, ambiental,
territorial, econômica e política – de maneira a harmonizar os objetivos sociais,
ambientais e econômicos, ficou evidente a predominância apenas de uma de suas
dimensões: a econômica.
A sustentabilidade ambiental, no caso de Barra Grande, acabou sendo
presumida a partir da autorização para operação do empreendimento, acreditando-
se que a imposição de medidas mitigadoras e compensatórias, sem a prévia
análise e discussão em novo EIA/RIMA que deveria ter sido apresentado, seriam
possíveis para contornar o dano ambiental causado.
Aliás, quais teriam sido os critérios para estipular as medidas
compensatórias - a) a aquisição de uma área equivalente pela empresa àquela em
64 Ibid. p. 21. 65 ACSELRAD, Henri. Conflitos Ambientais – a atualidade do objeto. ACSELRAD, Henri. Conflitos Ambientais no Brasil. ( org ). Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fundação Heinrich Böll, 2004, p. 23.
239
que predominava a formação primária em estágio avançado e médio, encontradas
no reservatório para criação de uma unidade de conservação federal, b) a
realização de uma avaliação ambiental integrada da bacia do rio Uruguai e c) a
implantação de um banco de germoplasma para as espécies ameaçadas de
extinção - já que o dano ambiental perpetrado, neste caso, é irreversível?
A irreversibilidade do dano é mais do que clara, por se tratar de supressão
de floresta de araucárias que já quase não existem no Brasil, com uma
biodiversidade particular, que contempla espécies de fauna e flora ameaçadas de
extinção, como a bromélia Dyckia distachya, espécie rara e endêmica.
Não houve, também, um debate adequado e amplo quanto às questões que
formam o tripé da dimensão ambiental da sustentabilidade, quais sejam: a
preservação do potencial da natureza para a produção de recursos renováveis; a
limitação do uso de recursos não renováveis; e o respeito e o estímulo para a
capacidade de autodepuração dos ecossistemas naturais. Neste último particular, o
ecossistema relativo ao bioma da floresta de araucárias, com sua fauna e flora
características, foi absolutamente desconsiderado.
Os argumentos utilizados para a celebração do termo de compromisso, no
sentido de que (a) seria do “interesse público” a conclusão do aproveitamento
hidrelétrico denominado Barra Grande - quinto maior aproveitamento do conjunto
de empreendimentos – eis que “necessário” para expansão da geração de energia
elétrica do país, uma vez atendidos os requisitos de cunho ambiental”66 (b) e que a
paralisação da obra da usina, já em sua fase final, não seria do interesse público e
nem privado67, bem demonstram a prevalência dos critérios econômicos na
tomada de decisão.
Há de se perguntar, então, quando se fala em “interesse público” na
implantação do empreendimento, se estaria sendo feita referência a um interesse
público primário – relativo à coletividade, ao bem comum - ou secundário –
inerente ao próprio Poder Executivo Federal, in casu?68 O interesse público
quanto à preservação ambiental dos ecossistemas especialmente protegidos e,
66 Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta, item 13 das considerações iniciais. 67 Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta, item 16 das considerações iniciais 68 A classificação entre interesse público primário e secundário é trazida da doutrina italiana capitaneada por Renato Alessi e hoje é incorporada tanto pela doutrina brasileira como pela jurisprudência de nossos tribunais.
240
ainda, o interesse da sociedade em geral, do bem comum, estaria sendo
legitimamente representado?
Tais indagações não foram sequer debatidas no seio da sociedade civil,
como referenciado anteriormente, e, portanto, os argumentos necessários para a
apresentação das respostas não foram levadas em consideração no momento
decisório.
É bom lembrar igualmente que, nos autos da ação civil pública ainda em
curso (proc. n. 2004.72.00.013781-9), na inspeção judicial realizada para verificar
o cumprimento das cláusulas do TAC e das condicionantes da licença de
operação, o juízo verificou que as medidas ambientais, mesmo tendo sido
observadas, não estavam adequadas. Constatou, ainda, a deficiência grave na
recuperação das áreas de preservação permanente no entorno da área alagada e a
inadequação da relocação das Dyckias nas margens, por falta de similaridade com
o ambiente natural do qual foram recuperadas. A conservação ambiental das
espécies de Dyckias transpostas, com cercas, arames etc, embora tenha-se
mostrado razoavelmente adequada para a sobrevivência/sobrevida das espécies,
não apontou para qualquer indicativo de que a mesma possa-se desenvolver
naturalmente naquelas condições.
Portanto, a alegação da viabilidade ambiental do empreendimento, com a
adoção das medidas compensatórias constantes do termo de compromisso
celebrado, mostra-se totalmente falha e sinaliza que a decisão tomada em torno de
tal argumento é equivocada do ponto de vista ambiental.
Ademais, a não conservação da mata de araucárias fere frontalmente os
princípios e regras constantes de duas Convenções: a) sobre a Diversidade
Biológica de 1992, da qual o Brasil é signatário, assumindo, à época, a
obrigatoriedade de desenvolver estratégias, planos e programas nacionais para a
conservação e a utilização sustentável da diversidade biológica e de seus
componentes, e 2) a Convenção de Washington, de 1940, sobre Belezas Cênicas,
que expressa os compromissos para a proteção da flora, fauna e das belezas
cênicas dos países da América.
Por outro lado, alegações como a de que o funcionamento do
empreendimento se revela “indispensável ao desenvolvimento da ordem
econômica” e de que haveria a possibilidade de um “déficit energético”, caso o
241
empreendimento não se implantasse, em tempo algum, foram efetivamente
demonstradas, com estudos e discussões mais ampliadas sobre o assunto.
Neste ponto, cabe destacar que o próprio Diretor de Licenciamento e
Qualidade Ambiental do IBAMA, Luiz Felippe Kunz Júnior, responsável pelo
caso, em uma manifestação exarada em audiência pública, realizada na Comissão
de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados, em
30 de agosto de 200569, incorporou o discurso da necessidade de maiores
empreendimentos hidrelétricos para expansão de energia, deixando transparecer,
nas entrelinhas, que o processo de licenciamento ambiental de hidrelétricas
objetiva “adequar” o empreendimento às exigências ambientais.
É importante ressaltar aqui que não se imagina a implantação de usinas hidrelétricas sem danos — elas provocam grandes impactos ambientais; talvez sejam dos empreendimentos mais impactantes —, e nossa função é justamente tentar diminuir esses impactos sempre que possível. Em alguns momentos isso não vai ser possível. Existem empreendimentos que infelizmente são negados em razão da magnitude de seus impactos ambientais comparada à extensão dos benefícios que trazem. Mas normalmente o processo de licenciamento se dá com a tentativa de adequar os empreendimentos de modo a fazer com que possam vir a ter utilidade pública — no caso, por exemplo, gerando energia, benefício que traz desenvolvimento ao País —, mas também a diminuir os grandes impactos que causam. Outro ponto que merece ser abordado nesse tópico é aquele que diz
respeito ao fator tempo para o exame das condições socioambientais de
viabilidade de um empreendimento.
Via de regra, o administrador público e o empreendedor possuem noções
distintas quanto ao tempo de duração a ser considerado para a tramitação dos
processos de licenciamento ambiental. A lógica mercantil, caracterizada pelos
compromissos financeiros e contratuais e pela pressão dos acionistas, diverge
frontalmente do tempo ideal para o exame das questões socioambientais, que
demandam atenção aos princípios da precaução e da prevenção bem como da
prudência no processo de licenciamento de atividades econômicas potencialmente
poluidoras. A seu turno, o tempo do mercado fica, também, distante do tempo real
de que a administração pública dispõe para finalizar o processo de licenciamento
ambiental, levando em consideração a carência de recursos materiais e pessoais,
orçamento restrito, o fato de que o administrador deve atenção a outras diversas
69 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Texto com redação final acessível pela internet através do site <www2.camara.gov.br/comissoes/cmads/notastaq/nt30082005.pdf>. Último acesso em 02 de janeiro de 2009.
242
demandas70 e, ainda, a má qualidade dos EIA/RIMA apresentados, fato
corriqueiro, que gera inúmeros incidentes e pedidos de complementação de
informações do estudo apresentado.
O ideal é que haja um equilíbrio entre essas duas acepções de tempo, a da
urgência do mercado e a da prudência exigida da atuação do órgão ambiental,
porém no caso Barra Grande, mesmo a descoberta da grave falha cometida pelo
próprio empreendedor não foi capaz de obstar a pressão exercida para que
preponderasse o tempo da urgência relativa aos interesses do mercado. Note-se
que a observância deste tempo não permitiu a reabertura da discussão com a
participação pública, o que deveria ter sido feito.
Prova disso foram todas as condicionantes previstas na licença de operação
dentre as quais se impôs ao empreendimento a obrigação de aferição dos impactos
negativos causados em cada município na região da obra, para identificar a
necessidade de medidas mitigadoras adicionais nos sistema de saúde, educação,
segurança, assistência social, transporte, abastecimento de água e saneamento
durante a construção da usina; a manutenção de uma unidade de atendimento à
população atingida pela implantação do empreendimento, em local de fácil
acesso, durante determinado período; a obrigação quanto ao monitoramento dos
animais por, pelo menos, mais quatro anos após o início da operação da
hidrelétrica, devendo enviar os animais resgatados para instituições científicas ou
para criadouros; a realização do corte de madeira da área do reservatório por via
fluvial durante o enchimento e nos períodos previstos para a baixa das águas no
reservatório.
Um comentário sobre a prevalência da teoria do fato consumado na
liberação do empreendimento também deve ser realizado.
Essa teoria acima revela-se como uma construção jurisprudencial de longa
data. Segundo François Ost71, em abordagem histórica da questão revela que ela
remonta às origens míticas da Justiça, no julgamento de Orestes, quando as três
erínias são transformadas em eumênides. No Brasil, a teoria começou a ser
70 COUTO, Oscar Graça. Alguns aspectos da “Lei da Transparência Ambiental”- Lei. N 10650/2003 em face do setor produtivo e, em especial, da Indústria do Petróleo ( ou, ainda, “Adivinhe quem vem para Jantar?”) 71 OST, François. O Tempo do Direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1999. p. 442 apud TESSLER, Marga Inge Barth. O fato consumado e a demora na prestação jurisdicional. Revista CEJ, Brasília, n. 27, p. 95-101, out./dez. 2004.
243
aplicada pelo STF em julgados datados da década de 60, sobre direito à educação,
em que era discutido o direito de ingresso e matrícula de alunos em instituição
superior de ensino, em que a sentença, em razão da demora do processo, somente
era prolatada após a formatura do aluno. 72A adoção da teoria, portanto, consiste
na aceitação da consolidação de uma situação de fato, em razão do decurso de
longo tempo sem a efetiva prestação jurisdicional. Significa que as situações
jurídicas consolidadas pelo decurso do tempo, amparadas por decisão judicial, não
devem ser desconstituídas, em razão do princípio da segurança jurídica e da
estabilidade das relações sociais. Considera-se que as situações, de fato, após
decurso de longo prazo, por perderem sua provisoriedade, passam, segundo tal
entendimento, a ser merecedoras de amparo permanente.73
No licenciamento ambiental da hidrelétrica, o fato de a usina já estar com a
barragem pronta para operação, por força da detenção das licenças prévias e de
instalação, influenciou diretamente na decisão sobre a realização do termo de
compromisso e, conseqüentemente, na concessão de licença de operação.
Também serviu para dar fundamento a decisões judiciais que negaram pedidos de
paralisação das obras e a declaração de nulidade das licenças. As obras físicas da
barragem estavam encerradas desde abril de 200574 e este argumento serviu como
pressão e justificativa para se aceitar a implantação da usina, mesmo em face dos
enormes custos ambientais, privilegiando-se uma evidente ilegalidade.
O caso do licenciamento ambiental em comento parece, no entanto,
divergir das demais hipóteses em que a teoria do fato consumado vem sendo
adotada pelos tribunais: a consolidação do fato se deu, não por decisão judicial,
mas por ato administrativo concedido e, é bom lembrar, com base em informações 72 TESSLER, Marga Inge Barth. O fato consumado e a demora na prestação jurisdicional. Revista CEJ, Brasília, n. 27, p. 95-101, out./dez. 2004. 73 Vale a menção de que a teoria foi adotada pelo STF nos seguintes julgados, somente para citar: RMS n. 14.017/GB, Pleno, 22/ 03/1965, RTJ 33/280, em que se discutiu o direito de matrícula, e a decisão só foi proferida após a conclusão do curso; RMS n. 13.807/GB, STF, 3ª Turma, 03/03/1966, sobre a aprovação ou não em determinada série do curso, com decisão somente após a formatura, RTJ 37/249. No STJ, a teoria do fato consumado também foi adotada em julgados sobre a mesma matéria, conforme nos seguintes casos, dentre vários: MC n. 6.011, 1ª Turma, 20/05/2003, DJ 18/08/2003, sobre transferência de estudante, em virtude de assumir cargo em comissão, na iminência de concluir o curso; AgREsp n. 49/202, 1ª Turma, DJ 30/06/2003, de aluno especial, reingresso extravestibular, concluídas as disciplinas do curso de Farmácia da UFRGS. A referida teoria, no entanto, não foi acolhida em caso de nomeação de servidores que participaram de concurso público por forca de liminares. Neste sentido, cite-se a decisão da 5ª Turma do STJ, no Recurso Especial n. 662711, revendo decisão do TJ do estado de Alagoas. 74 Vide noticia intitulada Usina Hidrelétrica de Barra Grande recebe licença de operação, datada de 06 de julho de 2005, veiculada no site http://noticias.ambientebrasil.com.br/noticia/?id=19904, último acesso em 02 de janeiro de 2008.
244
inverídicas prestadas pelo próprio empreendedor. Portanto, houve omissão por
parte do empreendedor e, logicamente, erro do IBAMA, ao não fiscalizar e
confirmar as informações constantes do EIA/RIMA. Mas a causa primeira que
ocasionou a concessão das licenças com base em informações falsas não poderia
ser esquecida para, com a teoria do fato consumado, afirmar uma possível
“inércia” da Administração Pública, privilegiando, ao final, o próprio
empreendedor causador de tal situação.
Assim, arriscamos neste momento uma conclusão razoável acerca da
opção tomada pelo termo de compromisso e pelas decisões judiciais que se
seguiram, reafirmando a correção deste. Ao que parece, buscou-se dar concretude
ao pensamento de que a existência de remanescentes de floresta de araucárias não
seria um verdadeiro obstáculo à expansão da atividade econômica, já que medidas
de compensação ambiental seriam passíveis de recompor o dano advindo com o
desmatamento de tais espécies. Acreditava-se, com isso, que medidas
tecnológicas, como a criação de um banco de germoplasma para as espécies
ameaçadas de extinção, e providências outras, como a aquisição de uma área com
floresta em formação primária em estágio avançado e médio, destinada à criação
de uma unidade de conservação federal, bem como a realização de uma avaliação
ambiental integrada, que não mais teria qualquer resultado direto para a região
atingida, substituiriam, à altura, o comprometimento dos bens ambientais
atingidos.
Trata-se, aqui, evidentemente, da influência direta do pensamento
econômico neoclássico75, podendo-se afirmar o privilégio de uma sustentabilidade
classificada como fraca, já que não se preocupa com a proteção do bioma Mata
Atlântica, cada vez mais deteriorado, de fundamental importância para a
manutenção dos ecossistemas locais, assumindo o risco de contribuir para a
extinção de espécies da fauna e flora. Neste sentido, corre-se o risco da
degradação ambiental em favor de uma expansão da geração de energia, que
beneficia, em primeira mão, as empresas do consórcio empreendedor – ALCOA –
carentes de energia para expandir sua atividade econômica.
Na equação que considera a sustentabilidade como capital total constante
que equivale à soma dos três fatores-chave - capital natural, trabalho e capital
75 Conforme já exposto em capitulo próprio, há vários autores que seguem essa linha de entendimento, podendo citar Robert Solow e David Pearce, cada um com suas particularidades.
245
produzido-, aceita-se a perda do capital natural, desde que esse declínio seja
progressivamente compensado por acréscimos proporcionais dos outros dois
fatores – trabalho e capital produzido.
Nessa perspectiva de sustentabilidade fraca, o que se deve garantir às
gerações futuras é a capacidade de produzir e não qualquer outro componente da
economia. Ao final, o que se tem é um privilégio ao crescimento econômico em
detrimento da preservação ambiental.76
Ao revés, uma visão mais consentânea com a harmonização que deve
haver entre expansão da ordem econômica e a preservação do equilíbrio
ecológico, decorrente do texto constitucional em vigor, seria a adoção de uma
visão de desenvolvimento sustentável diferenciada que buscasse a integração de
elementos ecológicos à economia, ultrapassando a aparente oposição entre estas
duas esferas.
De acordo com esta visão, imprescindível seria a tomada de providências
de precaução quanto a danos ambientais. Isto importa dizer que teriam de ser
feitos novos estudos ambientais para verificar a viabilidade da alteração do projeto
com a conservação da Mata de Araucárias, mantendo, da melhor forma possível, o
equilíbrio ambiental e, ao mesmo tempo, a melhoria da qualidade de vida da
sociedade. Somente poderiam ser aceitos os danos ambientais reversíveis77.
Por outro ângulo, caberia a reflexão sobre se a relação custo-benefício
social78, com a geração de energia por Barra Grande, de aproveitamento direto
pelas atividades econômicas do próprio consórcio gerador, como produtor
independente, e indireto pela sociedade em geral e, em comparação com o
impacto ambiental gerado, se seria (ou não) positiva. Deve-se ter em mente que a
proteção dos recursos naturais é parte integrante do objetivo de proporcionar o
bem-estar a todos os membros da sociedade. Some-se a isso o fato de que os
benefícios advindos com a modificação de condutas, na prática econômica, devem
beneficiar a todos, das presentes e futuras gerações. Sob a ótica do
empreendimento, caberia, a seu turno, a preservação da eficiência econômica79 da
76 VEIGA, Jose Eli da. Desenvolvimento Sustentável. O desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2006, p. 123. 77 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. Sao Paulo: Max Limonad, 1997, p. 243. 78 Ibid. p. 243. 79 Ibid. P. 243.
246
atividade, não podendo o custo com medidas preventivas e redutoras de impactos
ambientais retirar a sua lucratividade.80
Por fim, buscaremos traçar um panorama das possíveis conseqüências ou
interferências da realização da avaliação ambiental estratégica no licenciamento
ambiental em questão.
Conforme já dito em outras ocasiões, não houve, antes do processo de
licenciamento ambiental (ou durante), a realização de outras avaliações ou estudos
ambientais – avaliação ambiental integrada, avaliação ambiental estratégica,
estudo integrado de bacias hidrográficas -, valendo ressaltar que os estudos de
inventário hidrelétrico da bacia do rio Uruguai datavam de 1978-1981, ou seja,
época anterior à vigência do novo ordenamento constitucional e, mesmo, à lei n.
6938/81 que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente, em que não se
previa a observância aos princípios de direito ambiental, como a precaução,
prevenção, participação publica, informação, supremacia do interesse público na
preservação ambiental, desenvolvimento sustentável.
Certamente, sob a perspectiva jurídica e histórica, estávamos naquele
tempo, ainda, sob a égide de um regime antidemocrático, em que a participação
pública inexistia e não era, sequer, incentivada. Neste sentido, restringir a
conformidade de tais estudos à viabilidade técnica, tal qual dito no termo de
compromisso, sem atenção aos princípios acima apontados, decorrentes do texto
constitucional em vigor, é reduzir o debate aos limites da esfera do tecnicismo.
Não há como admitir que, em uma discussão que envolve o interesse público, da
coletividade, haja limitação à interpelação pelo argumento de que, tecnicamente
os estudos, realizados há mais de vinte anos, estariam “atualizados”.
Acrescente-se que, até mesmo no tocante à viabilidade técnica, tais estudos
mereceriam uma nova reapreciação, pois, ao tempo de sua realização, a dimensão
ambiental não era uma variável de grande preocupação, inexistindo na fase de
elaboração de tais estudos uma articulação com a área ambiental81, o que refletia,
inclusive, a própria ausência de uma proteção legal obrigatória adequada.
80 Stober. R. Hunderbuch des Wirtschafts – Verwaltungs – und Umweltrechts. Stuttgart, Verlag W. Kohlhammer, 1989, apud DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, PP. 242-243. 81 Tal fato foi apontado pelo Ministério do Meio Ambiente, no termo de referência elaborado em março de 2005, para a realização da Avaliação Ambiental Integrada dos aproveitamentos hidrelétricos na bacia do Rio Uruguai, em atenção ao termo de compromisso realizado em 2004. Em tal documento, foram considerados como problemas que justificariam a elaboração da AAI a
247
A situação hoje é bem diversa. Todo o aparato normativo constituído para
dar concretude ao disposto no art. 225 da CF/88 - que inclui as leis recepcionadas
pelo novo ordenamento constitucional, como, por exemplo, a lei 6938/81, exige a
incorporação da dimensão ambiental desde o inicio da implantação do
empreendimento hidrelétrico, através da elaboração do inventário hidrelétrico.
O Manual de Inventário elaborado pela Eletrobrás (2007)82, inclusive,
sugere que os estudos de inventário hidrelétrico de uma bacia hidrográfica,
realizados em quatro fases - Planejamento do Estudo, Estudos Preliminares,
Estudos Finais e Avaliação Ambiental Integrada da alternativa selecionada –
tenham sempre a composição de uma variante ambiental, para a identificação e
valoração dos impactos socioambientais negativos na avaliação de alternativas de
divisão de queda para o aproveitamento hidrelétrico e posterior escolha da
alternativa mais atraente, do ponto de vista não somente energético, mas também
socioambiental e econômico.
De forma expressa, portanto, atualmente, há uma orientação no sentido de
que seja realizada a avaliação ambiental integrada, o que sequer se aventava
quando da data de elaboração do estudo de inventário hidrelétrico da bacia do rio
Uruguai.
Como já dissemos, a avaliação ambiental integrada difere da avaliação
ambiental estratégica, pois é realizada com relação a um determinado
empreendimento hidrelétrico e tem, dentre suas finalidades, 1) a de complementar
e consolidar os estudos socioambientais da alternativa selecionada nos Estudos
Finais, destacando os efeitos cumulativos e sinérgicos resultantes dos impactos
negativos e positivos; 2) a de estabelecer diretrizes socioambientais para a
continuidade dos estudos de concepção dos projetos e para futuros estudos
ausência de uma articulação com o setor ambiental nos inventários hidrelétricos; a falta de avaliação no licenciamento ambiental dos impactos ambientais causados em seu conjunto com os impactos de outros empreendimentos – efeitos cumulativos e sinérgicos -; e a obtenção da concessão para a geração de energia elétrica em época anterior à obtenção de licença prévia, o que passava a ser um instrumento de pressão para a liberação de licenças ambientais. Cf. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Termo de Compromisso datado de 15 de setembro de 2004, ementa. In: PROCHNOW, Miriam ( org ) Barra Grande. A hidrelétrica que não viu a floresta. Rio do Sul: APREMAVI, 2005. Disponível em:<http://www.apremavi.org.br/mobilizacao/barra-grande/>. (Acesso em 24 de fevereiro de 2009) 82 ELETROBRÁS. Manual de Inventário Hidrelétrico, 2007. Disponível em: < http://www.eletrobras.gov.br/ELB/data/Pages/LUMISF99678B3PTBRIE.htm>. (Acesso em 02 de fevereiro de 2009).
248
socioambientais na bacia, bem como 3) a de subsidiar o processo de
licenciamento ambiental dos futuros empreendimentos.
Portanto, no processo de implantação da usina Barra Grande, constata-se
que não foram examinados, à época, os efeitos e impactos cumulativos e
sinérgicos do empreendimento na bacia do rio Uruguai, em relação a usinas já em
operação e, também, em relação àquelas em planejamento. Se assim não o fosse,
não teria sido esta exigência imposta como condicionante para a assinatura do
termo de compromisso e conseqüente autorização para o funcionamento da usina.
Daí se infere ter havido mais uma falha no processo de licenciamento
ambiental de Barra Grande, posto que, em razão da magnitude do
empreendimento – quinto maior no contexto brasileiro -, os impactos cumulativos
e sinérgicos do empreendimento na bacia hidrográfica não foram adequadamente
analisados.
Por outro lado, cumpre examinar quais os possíveis efeitos da efetivação
da avaliação ambiental estratégica, caso esta tivesse sido elaborada neste caso,
para o resultado final do processo de instalação da hidrelétrica.
A despeito da existência de enfoques distintos para a AAE, partiremos da
definição mais usual, em que a avaliação ambiental estratégica constitui um
procedimento prévio de avaliação das conseqüências ambientais de políticas,
planos e programas (PPPs), em geral, realizado no âmbito de iniciativas
governamentais, embora também possa ser aplicada em organizações privadas.
A AAE vem sendo adotada como ferramenta de planejamento, em virtude
de duas razões basicamente: a necessidade de se apurarem os impactos
socioambientais adversos de políticas, planos e programas e a limitação inerente à
avaliação de impactos ambientais realizada nos projetos de forma individualizada.
Como já mencionado anteriormente, um dos grandes resultados positivos
da AAE é a possibilidade de ela influenciar a própria formulação desses PPPs, de
dar subsídios à tomada de decisões com vistas a promover o desenvolvimento
sustentável – e aqui devem ser consideradas todas as variáveis de
sustentabilidade: social, ambiental, econômica, política, cultural, territorial.
249
Não se pode, por conseguinte, cair no equivoco de considerar a AAE como
um mero “teste”83 para aprovação de determinado plano, programa ou política ou,
por outro lado, de um instrumento para identificação de conseqüências após a
formulação das PPP’s, pois o seu escopo é muito mais amplo e importante.
Neste sentido, a adoção da AAE previamente à efetivação tanto do Plano
Nacional de Energia e dos chamados Planos Decenais de Expansão de Energia
Elétrica seria, em linha de princípio, um bom começo para se observar se o que
está sendo planejado pelo setor elétrico, em termos de expansão da geração, dado
o prognóstico de demanda, está em consonância com as normas, diretrizes e
políticas previstas para o setor ambiental. Portanto, ao fim e ao cabo, a AAE,
utilizada como avaliação prévia dos planos de expansão energética, teria, como
resultado a ser atingido, a melhoria da coordenação e da gestão entre os setores
energético e ambiental.
Com isso, duas outras vantagens podem ser percebidas. A primeira delas
seria a constatação de que questões importantes como a da viabilidade ambiental
de certos empreendimentos hidrelétricos já estariam sendo discutidas
antecipadamente. A segunda seria a de que tais questões já estariam sendo
analisadas com base em dados previamente colhidos, sob a perspectiva integrada,
contendo os efeitos cumulativos e sinérgicos de vários outros empreendimentos,
não somente hidrelétricos, mas causadores de significativa degradação ambiental
na região dos aproveitamentos hidrelétricos escolhidos para a expansão
energética.
A realização de uma abordagem estratégica trataria, pois, de identificar os
principais problemas ocasionados pelas hidrelétricas a serem desenvolvidas em
determinada região, possibilitando a discussão e a antecipação de eventuais outras
soluções, o que, hoje, somente poderia ser feito, de maneira isolada, em cada projeto
individual para avaliação e licenciamento ambiental da hidrelétrica84. Como
conseqüência, os estudos de impacto ambiental de cada projeto teriam um enfoque
83 SANCHEZ, Luis Enrique. Avaliação ambiental estratégica e sua aplicação no Brasil. Disponível no site < http://www.iea.usp.br/iea/aaeartigo.pdf. Ultimo acesso em 30 de dezembro de 2008. 84 SANCHEZ, Luis Enrique. Avaliação ambiental estratégica e sua aplicação no Brasil. Disponível no site < http://www.iea.usp.br/iea/aaeartigo.pdf. Ultimo acesso em 30 de dezembro de 2008.
250
maior na identificação e avaliação dos impactos específicos e na proposição de
medidas de gestão mais compatíveis com a concepção do projeto em si.
As discussões acima apontadas incluiriam não somente alternativas para a
implantação de determinado empreendimento hidrelétrico, mas também debates
sobre se outro tipo de energia renovável seria possível para ser desenvolvido no
local ou, então, se, ao invés da previsão de instalação de várias novas
hidrelétricas, não se poderia trabalhar com a repotenciação de usinas já existentes.
Ora, atualmente, o que se verifica em grande parte dos processos de
licenciamento ambiental de hidrelétricas é que a análise da viabilidade ambiental
do projeto, elaborada para fins de concessão (ou não) da licença prévia, fica
restrita ao exame das formas e alternativas para a mitigação e compensação dos
impactos ambientais negativos causados. Isto se dá porque, nas etapas anteriores
do processo de planejamento energético – estudo de inventário hidrelétrico e
estudos de viabilidade técnica e ambiental -, já houvera a conclusão e a decisão, a
priori, sobre a viabilidade ambiental de determinado projeto. Portanto, o que se
observa, na prática, é que a decisão sobre a viabilidade ambiental, tomada em
momento anterior ao próprio EIA/RIMA, acaba prevalecendo, independentemente
dos fatos supervenientes que venham a surgir no curso do licenciamento
ambiental.
Ocorre que a etapa formal de discussão do projeto com a sociedade é
efetivada após a apresentação do estudo de impacto ambiental do projeto e antes
da concessão da licença ambiental, através da participação dos interessados na
audiência pública. Isto implica dizer que já há uma pré-disposição de aceitação do
empreendimento, em razão dos estudos elaborados previamente ao EIA/RIMA,
que se traduz, quer se queira quer não, em um instrumento de pressão para a
aprovação do projeto.
A possibilidade, assim, por intermédio da avaliação ambiental estratégica
de se antecipar o debate sobre a viabilidade socioambiental do projeto, de posse
de variantes outras – informações sobre os impactos socioambientais de outros
empreendimentos já prontos e em planejamento –, com a indispensável
participação pública, revela-se importante para o processo decisório de projetos
hidrelétricos. Corrige-se, assim, a falha por tantas vezes afirmada de que, no
licenciamento ambiental, não há uma discussão adequada sobre se o
empreendimento é social e ambientalmente viável e de alternativas possíveis ao
251
projeto apresentado. Um novo canal para discussão sobre o fato de a hidrelétrica
possuir uma relação de custo-benefício socioambiental positiva fica aberto, fora
do âmbito individualizado do processo de licenciamento ambiental e logo no
início do processo de planejamento.
Assim, em se tratando de instrumento típico de planejamento, nada mais
adequado do que a discussão de tais aspectos em um plano de expansão de energia
elétrica, quando já está estabelecida a escolha dos aproveitamentos hidrelétricos a
serem desenvolvidos. Esta avaliação, por ser um tipo de avaliação ambiental,
deve-se submeter a todos os princípios e regras necessários a esta, inclusive com a
efetiva participação pública, sempre desejada.
No que diz respeito à usina Barra Grande, poder-se-ia dizer que a correta
localização do empreendimento, com a descrição dos meios físicos, bióticos e
socioeconômicos e a identificação dos prováveis impactos socioambientais
negativos seriam já, de início, analisados, em uma avaliação ambiental estratégica
do plano de expansão de energia para o desenvolvimento daquela região. O
atingimento pela hidrelétrica de importante bioma, constitucionalmente protegido,
não passaria incólume neste tipo de avaliação.
Assim, embora não tenha como objetivo suprir falhas do EIA/RIMA, é
inegável que a AAE acaba reunindo maiores subsídios e informações para a
realização daquele e, no caso de Barra Grande, a omissão não teria como ser
repetida, eis que evidente.
5.2.2
Caso-referência do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira.
Iniciaremos a análise do caso proposto sob o aspecto da participação
pública.
De acordo com a narrativa constante do Capítulo 3, pode-se constatar que
a conduta reiterada no processo de licenciamento ambiental em questão é marcada
pelo açodamento e atropelo das fases necessárias à conclusão do referido
processo, seja do ponto de vista do empreendedor, ou dos órgãos públicos
competentes.
Como antes descrito, a licença prévia foi concedida com trinta e três
condicionantes e a maior parte delas diz respeito à elaboração de programas,
252
projetos de seu detalhamento, bem como de realização de monitoramentos e
apresentação de novas propostas de mitigação para os impactos observados.
O art. 19 do Decreto n. 99.247/90 e art. 8, inciso I, da Resolução
CONAMA n. 237/97 definem a licença prévia como a licença ambiental
concedida na fase preliminar do planejamento do projeto, em que são aprovadas
sua localização e concepção. Atesta-se a sua viabilidade ambiental, estabelecendo-
se os requisitos e condicionantes a serem atendidos nas próximas fases de sua
implementação.
A licença prévia, dentro do licenciamento ambiental, sob o aspecto de
proteção ambiental, desempenha um papel de maior relevância do que as demais
licenças – LI e LO -, pois é nessa etapa que “são examinadas em profundidade as
possíveis consequências que a implantação e operação do empreendimento sob
licença acarretará ao meio ambiente.”85
A Cartilha de Licenciamento Ambiental do Tribunal de Contas da União86
também arrola considerações sobre esse tipo de licença, aferindo destaque aos
princípios da prevenção e precaução, pois na referida etapa são levantados e
avaliados os impactos ambientais, determinando-se as medidas mitigadoras e/ou
compensatórias em relação a estes.
Portanto, o que se percebe, de forma bastante evidente, é que, após a
conclusão do IBAMA acerca da inviabilidade ambiental (Parecer Técnico
14/2007), não foram trazidos elementos técnicos suficientes para se analisar a
possibilidade de mitigação dos impactos socioambientais, persistindo a existência
de dúvidas e incertezas, o que é inaceitável, diante da prescrição dos princípios da
prevenção e precaução. Assim, o que o órgão licenciador fez, de forma deliberada
e inadequada, foi postergar a análise estruturada e detalhada dos impactos
socioambientais, cuja fase própria seria a da licença prévia, para a fase posterior,
da licença de instalação. O teor das condicionantes, como já dito, revela que
diversos programas, projetos e planos foram exigidos como tal, sem que, de fato,
tenha-se conseguido analisar a sua viabilidade ambiental, por absoluta falta de
informações e elementos suficientes.
85 OLIVEIRA, Antônio Inagé de Assis. Introdução à Legislação Ambiental Brasileira e Licenciamento Ambiental. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005, p. 362. 86 BRASIL, Cartilha de licenciamento Ambiental. Brasília: Tribunal de Contas da União, Secretaria de Fiscalização de Obras e Patrimônio da União, 2004, p. 13.
253
Nessa fase, deve ser destacada a realização das audiências públicas. Foram
escolhidas quatro datas próximas – inicialmente, seriam de 08 a 11 de novembro -
, sendo que o local se restringiu aos limites do Município de Porto Velho e
distritos de Mutum Paraná e Jaci Paraná. Mais uma vez, não se buscou estender a
discussão para além do local de influência direta do empreendimento, envolvendo
outras cidades e, até mesmo, outros estados (Acre e Amazonas). A complexidade
do projeto e a magnitude dos impactos socioambientais causados denotam a
importância de terem sido realizadas outras audiências e não somente as quatro,
em um intervalo de tempo maior, de maneira a proporcionar um debate mais
qualificado, já que a sociedade civil teria mais tempo de ser informada sobre o
teor dos assuntos debatidos em cada audiência publica.
A seu turno, a falta de clareza nas informações oficiais constantes da
primeira fase de licenciamento, em que várias foram as solicitações feitas pelo
IBAMA para complementações de informações do EIA/RIMA, influenciou
negativamente na possibilidade de participação efetiva da sociedade civil na
discussão do empreendimento. Como já foi observado, sendo inclusive objeto de
ações judiciais em curso, o teor do RIMA - elaborado pelo empreendedor e
aprovado pelo IBAMA - não foi adequadamente atualizado com as informações
complementares, razão pela qual não poderia ter sido admitido como peça
fundamental para a informação do público. A toda evidência, tal circunstância
prejudicou sobremaneira a manifestação do público em geral, que não dispunha de
informação precisa e atualizada do empreendimento.
Logo, a pressa em dar andamento ao processo de licenciamento ambiental,
para cumprimento das etapas previstas no cronograma de execução do
empreendimento, tem ditado a atuação do órgão licenciador. Isto pode ser bem
observado, pois o prazo mínimo de 60 dias (45 dias para dar publicidade à
disponibilidade do EIA/RIMA, após a publicação do edital acrescidos de 15 dias
de antecedência para a designação da data da audiência pública) para convocação
de audiência pública pelo IBAMA, não foi respeitado, conforme determinam a
Resolução CONAMA 09/87 ( art. 2º, parágrafo 3º ) e Instrução Normativa n.
65/2005 ( art. 13, caput e parágrafo 1º ).
Por outro lado, ficou demonstrada a preocupação em acelerar o processo
de apreciação das licenças ambientais, eis que a rapidez com que o órgão
ambiental vem procedendo demonstra, em verdade, uma preocupação em atender
254
ao cronograma fixado ao ato tempo de licitação, sem atentar para a necessidade de
discussão dos graves impactos gerados pelo empreendimento.
Como se observa, o início do processo de licenciamento ambiental se deu
em maio de 2005, a licença prévia foi concedida em julho de 2007, e as licenças
de instalação foram concedidas em agosto e novembro de 2008. Sobre o assunto,
dispõe a Resolução CONAMA n. 237/97 que o órgão ambiental competente pode
estabelecer prazos diferenciados para a análise de cada modalidade de licença em
função das peculiaridades da atividade ou empreendimento, estabelecendo, no
entanto, o prazo limite de 12 meses para os casos em que o objeto do
licenciamento dependa de EIA/RIMA e/ou de realização de audiência pública.87
Porém, o mesmo diploma legal estabelece que a contagem do prazo fica suspensa
durante a elaboração de estudos complementares ou a preparação de
esclarecimentos pelo empreendedor, dentro do prazo máximo de quatro meses88,
embora, desde que haja concordância do empreendedor e justificativa do órgão
ambiental, pode o prazo de 12 meses ser prorrogado.
No entanto, entre uma fase e outra, vários foram os pedidos de
complementação de estudos e de esclarecimentos a serem prestados pelo
empreendedor. Desta forma, se houve alegação de demora para a concessão de
licença prévia, esta se deveu a falhas no EIA/RIMA que não foram sanadas pelo
empreendedor e aos vários pedidos de complementação dos estudos e de maiores
esclarecimentos. Uma breve consulta ao site do IBAMA, onde se pode ter acesso
a todos os passos do processo de licenciamento em questão, demonstra o acima
afirmado.89
Ao revés, se o EIA/RIMA tivesse sido bem elaborado, certamente haveria
economia não só de recursos como de tempo. Sobre o problema dos custos, tem se
constatado que, mesmo nos casos em que é necessária a análise de questões
ambientais pouco conhecidas, para uma correta avaliação dos impactos do
empreendimento, os custos são menores do que os que seriam necessários para a
reparação de danos ambientais e introdução de tecnologias a posteriori para
87 CONAMA. Resolução n. 237/97. Art. 14. 88 CONAMA. Resolução n. 237/97. Art. 15. 89 IBAMA. Consulta dos processos n. 02001003771200325 ( primeira fase até a concessão da licença prévia ); 02001002715200888 ( UHE Jirau ) e 020010005082200899 ( UHE Santo Antônio ), através do site< http://www.ibama.gov.br/licenciamento/index.php>.
255
mitigar efeitos prejudiciais, por falta de informações adequadas no projeto
inicial.90
Insta salientar ser a alegação de demora na apreciação das licenças
ambientais uma constante nos processos de licenciamento em geral. No entanto,
deve-se advertir para o fato de que a influência do processo de licenciamento no
retardamento da execução de atividades econômicas não pode ser generalizada e
sequer supervalorizada. Isto porque a opção pelo legislador constituinte de exigir
a realização de EIA/RIMA para projetos potencialmente poluidores já exprime a
sua preocupação com a tomada de decisão de qualidade, baseada não em
premissas de celeridade, mas de segurança e prudência, o que impõe decidir com a
menor margem de erro possível, após cuidadosa avaliação das repercussões
socioambientais do projeto.91
Após o prosseguimento do licenciamento ambiental, com a concessão de
licença prévia, outro obstáculo veio à tona: o empreendedor vencedor do leilão
para explorar o potencial hidráulico da UHE Jirau mudou a localização do projeto,
sem a prévia apresentação de novo EIA/RIMA.
Aliás, a ação civil pública (Processo n. 2008.41.00.005474-0) teve como
motivação (causa de pedir) tal alteração da localização do projeto. Por outro lado,
a ação popular (Processo n. 2008.41.00.007290-0) também trouxe, entre seus
argumentos, a mudança da caracterização do projeto sem o devido licenciamento
ambiental.
Posteriormente, para a apreciação da concessão da licença de instalação,
seria necessário apurar se todas as condicionantes constantes da licença prévia
foram atendidas. Todavia, o parecer técnico IBAMA n. 061/2008
COHID/CGENE/DILIC, apesar de atestar que a alteração da localização do eixo
do empreendimento não teria indicado novos impactos, também foi claro no
sentido de que, em alguns temas, não foi possível estabelecer uma base
comparativa – também por falta de dados.
O aludido parecer destacou, ainda, que o tema “arranjo da usina”, relativo
à condicionante 2.2, não foi devidamente atendido, no que seria o seu objetivo, ou
90 TOMMASI, Luiz Roberto. Estudo de Impacto Ambiental. São Paulo: CETESB/Terragraph Artes e Informática, 1993. p. 3, apud MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Impacto Ambiental. Aspectos da legislação brasileira. 4ª Ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2008, p.5. 91 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Impacto Ambiental. Aspectos da legislação brasileira. 4ª Ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2008, p.5.
256
seja, apresentar o melhor projeto e arranjo em termos de favorecimento de fluxos
físicos, químicos e biológicos. Mas, ao final, a equipe técnica sugere que tal
condicionante pode ser atendida quando da apresentação do Plano Básico
Ambiental - o que seria incoerente, considerando que o PBA configura
instrumento cuja aprovação é anterior à concessão da própria licença de
instalação.
No entanto, em meio a tantas controvérsias e irregularidades no processo
de licenciamento ambiental, houve a concessão de licença de instalação,
caracterizada como uma espécie de “licença parcial”, para o início de obras
relativas ao canteiro de obras – LI n. 563/2008 -, em 14 de novembro de 2008.
O próprio Poder Judiciário reconheceu que a decisão foi tomada sem as
devidas cautelas, em contraposição ao que determina a legislação ambiental.
Conforme se observa, o juiz federal que deferiu liminar em ação popular92 assim
se pronunciou:
De logo, emerge severa controvérsia quanto à possibilidade de concessão de “licença parcial”, figura estranha aos normativos vigentes. Tanto impõe ainda mais parcimônia na utilização do instrumento, nomeadamente quando subjaz proposta de alteração do local do empreendimento poluidor. A análise há de partir da seguinte premissa: “uma vez consumada a degradação ao meio ambiente, a sua reparação é sempre incerta e, quando possível, excessivamente custosa. Daí a necessidade de atuação preventiva para que se consiga evitar os danos ambientais”
Outro dado que merece ser destacado é que, durante o processo, observa-
se a falta de análise integrada do empreendimento, com a necessária visão de
conjunto que se deve ter, em razão da magnitude e relevância do projeto, bem
como da natureza dos impactos socioambientais que ensejará. Por outro lado,
questões bastante relevantes (e não adequadamente discutidas) vão sendo deixadas
de lado durante o percurso, tais como a constatação de impactos ambientais em
outros países (Peru e Bolívia).
Desde logo, é possível perceber que, embora extremamente mobilizada, a
sociedade, no caso em questão, não conseguiu influenciar no processo decisório,
em razão de uma série de fatores.
Ademais, oportuno ressaltar a importância da manifestação de entidades
não governamentais de proteção aos interesses socioambientais, na
92 JUSTIÇA FEDERAL DE RONDÔNIA. Ação Popular. Processo n. 2008.41.00.007290-0. Decisão Judicial proferida pelo juízo da 3ª Vara Federal de Rondônia em 20 de novembro de 2008.
257
conscientização da sociedade civil, permitindo, também, a veiculação de outras
informações não plenamente acessíveis pela população. Aliás, tais entidades têm-
se mostrado bastante atuantes durante todo o processo, valendo citar aqui alguns
eventos que ocorreram em protesto contra a implantação de barragens.93
Um passeio de barco pelo Madeira marcou o Dia Internacional de Ação
contra Barragens, em 14 de marco de 2006, momento em que o bispo de Porto
Velho realizou celebração religiosa para ajudar o protesto a ganhar visibilidade
por parte da comunidade.
Em maio de 2006, três eventos em Porto Velho explicitaram a
confrontação acerca do projeto Madeira com participação de movimentos sociais
e ambientais: o Grupo de Trabalho Energia do Fórum Brasileiro de ONGs e
Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (FBOMS)
reuniu-se em Porto Velho; um evento paralelo sobre a IIRSA contou com a
participação da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, da Rede
Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip) e de entidades da Bolívia e do Peru;
e uma “audiência pública” sobre as barragens do Madeira, organizada pela
prefeitura de Porto Velho, oportunidade em que a autoridade local se colocou, de
maneira expressa, a favor do desenvolvimento local.94
Cabe destacar, também, a atuação do Movimento dos Atingidos pelas
Barragens (MAB), ao alertar os ribeirinhos sobre as ameaças representadas pelas
usinas. Em julho de 2006, cerca de 200 atingidos por construções de barragens,
juntamente com integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST) e dos Pequenos Agricultores (MPA), marcharam 210 km ao longo da
rodovia BR-364, de Abunã a Porto Velho, na “Marcha pela Vida”. Neste
percurso, os integrantes da marcha buscavam chamar a atenção dos moradores
locais para o alto preço da energia e para o fato de que as barragens do Rio
Madeira beneficiariam principalmente as indústrias, ao invés da maioria da
população.
93 FURTADO. Fabrina. Quem financia uma obra tão polêmica? In SWITKES, Glenn. ( org ). Águas Turvas: Conseqüências de Barrar o Maior Afluente do Amazonas. São Paulo: International Rivers, 2008. 94 FURTADO. Fabrina. Quem financia uma obra tão polêmica? In SWITKES, Glenn. ( org ). Águas Turvas: Conseqüências de Barrar o Maior Afluente do Amazonas. São Paulo: International Rivers, 2008.
258
Com relação à UHE Jirau, a alteração do projeto original, após a concessão
da licença prévia, sem a observância do devido processo de licenciamento
ambiental, com a apresentação de novo EIA/RIMA, fere, de igual maneira, os
princípios da prevenção e da precaução. A viabilidade ambiental do
empreendimento foi discutida e avaliada, com base na caracterização geográfica
anterior, sendo que qualquer alteração da localização, levando em consideração
inclusive a forte biodiversidade existente no local, pode dar ensejo a novos
impactos socioambientais. E estes somente poderiam ser analisados com a
apresentação de novo EIA/RIMA.
Portanto, também nesta situação, a atuação da sociedade civil restou
prejudicada, pois não houve oportunidade de discussão a respeito da nova
localização do empreendimento.
A ausência de participação pública efetiva também se revela na medida em
que muita das questões polêmicas e mal conduzidas durante o curso do
licenciamento ambiental foram levadas à apreciação do poder judiciário e a
grande maioria, inclusive, encontra-se pendente de decisão até hoje.
Além disso, o número de ações judiciais em curso para discutir os
procedimentos adotados durante o processo de licenciamento ambiental é
expressivo e tal fato, por si só, já denota a falta de participação pública. Por outro
lado, a necessidade de se valer da interferência do Poder Judiciário demonstra que
as manifestações havidas no âmbito administrativo, quando existentes, não
serviram para influenciar a decisão do órgão ambiental.
Além das tradicionais questões sociais, relativas aos conflitos inerentes à
remoção da população atingida pela barragem – número de famílias atingidas,
modos de remanejamento e formas de indenização a serem pagas, ausência de
diálogo entre a população atingida e o empreendedor, impossibilidade de
indenização de tradições culturais desenvolvidas pela população local -, outro
aspecto que vem sendo muito debatido no caso do Rio Madeira é a ausência de
participação de outros países, que sofrerão também os impactos com a construção
das hidrelétricas, no processo decisório para a implantação destas.
Desde o início do processo, o projeto do complexo hidrelétrico, seguindo
sua premissa de delimitação do empreendimento em território brasileiro, foi sendo
conduzido de maneira unilateral pelo governo brasileiro, destituído de qualquer
tipo de participação oficial dos países vizinhos (Peru e Bolívia). Em outubro de
259
2006, no entanto, pesquisadores bolivianos criticaram o EIA, apontando que os
impactos sobre o território boliviano haviam sido negligenciados, ao mesmo tempo
em que já se iniciava o processo de realização de audiências públicas. Como já
mencionado no item anterior, esses impactos foram constatados pelo próprio IBAMA
(Parecer Técnico 14/2007) e também foram apontados pelo relatório técnico realizado
pelo Ministério Público de Rondônia. Esta iniciativa unilateral e inflexível do Brasil
acabou por ensejar uma crise diplomática entre Brasil e Bolívia, presente ate os dias
de hoje.95
Assim, em dezembro de 2006, atendendo a solicitações do governo
boliviano, o governo brasileiro oficializou parceria Brasil-Bolívia para a retomada
das atividades de um grupo de trabalho para tratar do aproveitamento racional do
rio Madeira. Houve, então, a retomada do Convênio para a Preservação,
Conservação e Fiscalização dos Recursos Naturais nas Áreas de Fronteira,
celebrado entre os dois governos em agosto de 1990. De acordo com o referido
convênio, os dois países comprometem-se, entre outras coisas, “a proteger as
florestas naturais e a preservar seus recursos, principalmente nas zonas
fronteiriças binacionais, realizando estudos coordenados com vistas à aplicação,
em seus respectivos países, de planos, programas e projetos que permitam o
aproveitamento racional dos recursos naturais”.
Mas tal medida não foi suficiente para estancar a insatisfação da Bolívia,
especialmente após a concessão da licença prévia, em meio a toda a polêmica de
que o EIA/RIMA era falho. Após ameaças do governo boliviano de recorrer a
todos os organismos internacionais para barrar o empreendimento, Brasil e
Bolívia reataram as discussões sobre o complexo hidrelétrico do Rio Madeira,
formando várias comissões para dar seguimento aos estudos sobre os impactos na
Bolívia, embora tais comissões não contem com a participação da sociedade civil.
Em agosto de 2008, a Bolívia enviou cartas96 ao governo brasileiro com a
95 Esta informação consta do relatório elaborado e publicado pelas ONG’s Amigos da Terra e Brasil Ecoa – Ecologia e Ação, intitulado O maior tributário do Rio Amazonas ameaçado, p. 11-13. Disponível em: < www.internationalrivers.org/files/Livreto%20Portugues.pdf>. (Acesso em 15 de fevereiro de 2009)
96 Tais missivas foram enviadas pelo Ministro do Meio Ambiente boliviano, Juan Pablo Ramos Morales e endereçadas ao presidente do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), ao Ministro do Meio Ambiente Carlos Minc e ao Presidente do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Roberto Messias Franco,. O conteúdo das mesmas está disponível no site < http://www.amazonia.org.br >. Ultimo acesso em 28 de agosto de 2008.
260
solicitação formal de que fosse reconsiderada a decisão sobre o licenciamento
ambiental das hidrelétricas do Rio Madeira até que houvesse uma demonstração
efetiva da inexistência de impactos no território boliviano. Na ocasião, todavia, o
ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, limitou-se a esclarecer que a
licença de instalação da Usina de Santo Antônio não autorizaria ações de
monitoramento ambiental fora do território brasileiro e que o Projeto Básico
Ambiental (PBA) seria de responsabilidade exclusiva do consórcio Madeira
Energia S/A (Mesa), na tentativa de mudar o foco da discussão e isentar o
governo federal de responsabilidades.97
Em razão da omissão do governo brasileiro, a construção das usinas
hidrelétricas do Rio Madeira foi denunciada junto ao Tribunal Latinoamericano de
Água (TLA), por violação dos direitos dos povos indígenas que habitam a área de
impacto das usinas. Após o julgamento, ocorrido nos dias 11 e 12 de setembro de
2008, o tribunal censurou o governo brasileiro e recomendou a suspensão das
licenças de instalação das usinas, concedidas pelo Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama).98.
Portanto, a ausência (desde o início de todo o processo) de uma discussão
adequada quanto aos impactos em território estrangeiro e, por outro lado, de
abertura para a manifestação de outros países (tanto autoridades, como sociedade
civil), no próprio processo de licenciamento ambiental marcam a inobservância do
princípio da participação pública em tal processo.
Pode-se concluir assim que, sob o ângulo da sociedade civil organizada,
há, no caso do Rio Madeira, verdadeira sociedade reflexiva, com a presença de
manifestações organizadas dos movimentos sociais e ambientais, no sentido tanto
de fazer oposição aos interesses inerentes à construção do empreendimento,
quanto de esclarecer a população sobre as conseqüências da construção das
barragens no local.
No entanto, tais manifestações não são hábeis a influir nas decisões
político-administrativas tomadas durante todo o processo decisório de
implantação das hidrelétricas, que inclui o processo de licenciamento ambiental.
97 O conteúdo da referida carta esta disponível no site < http://www.amazonia.org.br >. Ultimo acesso em 28 de agosto de 2008. 98 Ata da Audiência Pública em Antigua, Guatemala, disponível em:< Fonte http://www.riomadeiravivo.org/>. (Acesso em 10 de fevereiro de 2009)
261
Fica evidenciada, ainda, a grave violação dos direitos humanos relativos à
população local que será diretamente atingida (riberinhos), bem como dos povos
indígenas situados no Brasil e nos países limítrofes. Nenhum deles teve chance de
opinar e influenciar na decisão da implantação do Complexo. Contudo, isso
acarretará em drástica mudança em sua subsistência, no desenvolvimento do
trabalho, na saúde, na manutenção das referencias culturais e familiares, valores
estes expressamente protegidos pelos Tratados e Convenções de Direitos
Humanos.
Pode-se também destacar, no processo em análise, uma atuação
diferenciada do Ministério Público, em relação ao caso Barra Grande. Aqui, de
forma sistemática, buscou o Ministério Público atuar na defesa dos interesses
socioambientais, seja no âmbito meramente administrativo, funcionando nas fases
de licenciamento ambiental, seja na esfera judicial.
No entanto, sob a perspectiva do poder público, verifica-se uma clara
convergência de interesses entre o governo federal e a iniciativa privada no
sentido de ver-se concretizar o projeto de implantação das hidrelétricas. O poder
executivo federal, como ente totalmente interessado na construção destas, cujas
obras foram previstas no Plano de Aceleração do Crescimento – PAC -, interferiu
diretamente no processo de licenciamento ambiental, realizando pressões sobre o
Ministério do Meio Ambiente e sobre o IBAMA para dar um andamento célere ao
licenciamento ambiental. Esta interferência não se coaduna com o papel que deve
desempenhar, de estar sempre aberto ao debate e disposto a admitir a efetiva
participação da generalidade social plural, com a apresentação, inclusive, de novas
propostas, alternativas ao projeto apresentado.
Por outro lado, a atuação do governo federal não se mostrou próxima,
receptiva e acessível aos diretamente atingidos pelo empreendimento e também
aos cidadãos que questionaram, em vários fóruns de discussão e em diversas
esferas, a forma de condução do processo decisório para implantação do
Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira pelo poder público. A falta de canais e
espaços propiciados pelo próprio poder público, para o debate e crítica, inclusive
para a participação dos outros países que serão impactados com o
empreendimento, ficou bastante clara. Isso gerou como conseqüência - e último
recurso - a ida ao Poder Judiciário.
262
Em resumo, a falta de debates sobre questões de natureza técnica e
política; de publicidade adequada dos atos oficiais (EIA/RIMA incompleto e não
acessível a todos); e de informações claras e precisas em muito contribuiu para a
inexistência de uma participação pública efetiva e mais eficaz. A ausência de uma
troca de informações contínua, verídica, tempestiva e transparente entre poder
público, iniciativa privada e sociedade civil, com a produção e ampliação do
conhecimento sobre o empreendimento e todos os seus impactos, prejudicou
sobremaneira o pleno exercício da cidadania ambiental.
No que diz respeito à observância do princípio do desenvolvimento
sustentável, algumas considerações devem ser realizadas.
A primeira observação a partir da qual a análise deve se assentar é a de que
o projeto do complexo hidrelétrico do Rio Madeira foi concebido pelo governo
federal brasileiro e inserido como um dos objetivos do Plano de Aceleração do
Crescimento (PAC), na área de desenvolvimento de projetos de infra-estrutura.
Por outro lado, este projeto possui forte vinculação com a política de integração
regional sul-americana - IIRSA. Como já ressaltado anteriormente, trata-se de
consolidar um processo de integração regional sul-americana, com o objetivo de
lançar as bases para uma interdependência econômica em âmbito regional dos
países da América do Sul, através de acordos preferenciais e políticas de abertura
e desregulamentação para aumentar a competitividade dos países da região no
cenário global.
Esta política de integração regional prioriza, em última análise, a
intensificação de apenas alguns segmentos da atividade econômica, sendo que, na
Região Norte e Centro-oeste, uma das atividades que mais vem se expandindo é a
do agronegócio, com a finalidade de produção de gêneros agrícolas para
exportação.
Portanto, é preciso lembrar que o projeto hidrelétrico do Rio Madeira tem
como uma de suas premissas, além da geração de energia elétrica, a concretização
da integração regional.
De maneira clara, portanto, o governo federal impõe, como meta, o
crescimento econômico do país e, para tanto, as hidrelétricas do Rio Madeira
fazem parte deste plano, sendo que o licenciamento ambiental destas passa a ser
considerado como mera etapa ou simples formalidade a ser cumprida para que o
projeto se efetive dentro dos “parâmetros ambientais exigidos”. Em outras
263
palavras, a decisão sobre o a efetivação do projeto já está tomada e, previamente,
já há uma predisposição para licenciá-lo, independentemente de questionamentos
sobre a sua viabilidade ambiental. O processo de licenciamento ambiental serviria
somente para dar-lhe legalidade, ajustando-o, formalmente, às exigências
previstas pela legislação ambiental.
Esta forma de condução do processo privilegia uma atuação
unidimensional, pois somente visualiza o projeto sob o ponto de vista econômico:
por certo, haverá aumento da produção de energia e integração regional, com a
possibilidade futura da implantação de eclusas, bem como a transformação do
local em hidrovias, estrutura fundamental para escoamento de produções agrícolas
em direção ao Atlântico e ao Pacífico.
O licenciamento ambiental é, de maneira freqüente, mas errônea, taxado
como um entrave ao desenvolvimento econômico do país. Por sua vez, os
impactos socioambientais decorrentes da implantação dos projetos, especialmente
no caso das hidrelétricas, são subdimensionados, com a previsão de medidas
mitigadoras e compensatórias, de eficácia duvidosa, mas, ainda assim, aceitas pelo
órgão licenciador, de forma a poder dar continuidade ao processo de
licenciamento. Não se permite efetivamente, nesta fase do processo, repensar as
alternativas para a produção energética no local e discutir a viabilidade
socioambiental do projeto. No caso do Rio Madeira, essa realidade não se altera.
Assim, fica evidente que o desenvolvimento de que se trata é,
essencialmente, o econômico, sem levar em conta as exigências quanto à
sustentabilidade socioambiental. Portanto, a tradução deste discurso aponta para
uma sustentabilidade fraca, que assume o risco de dar ensejo à degradação
ambiental, mesmo de caráter irreversível, em prol da expansão do parque gerador
de energia e, consequentemente, da intensificação das atividades econômicas que
dela dependem.
Na equação que considera a sustentabilidade como capital total constante
que equivale à soma dos três fatores-chave (capital natural, trabalho e capital
produzido), aceita-se a perda do capital natural, desde que este declínio seja
progressivamente compensado por acréscimos proporcionais dos outros dois
fatores – trabalho e capital produzido.99
99 Vide comentário sobre a teoria de Robert Solow no Capítulo 4, item 4.3.1 - Algumas teorias econômicas sobre o desenvolvimento sustentável.
264
A crítica que se faz ao processo de licenciamento ambiental das usinas do
Rio Madeira se assenta no sentido de que a licença prévia e a de instalação foram
concedidas sem que os requisitos legais para sua concessão fossem plenamente
atingidos. As questões próprias a cada uma das fases – como a definição sobre a
localização da usina e discussão sobre a viabilidade ambiental do projeto, na fase
de licença prévia - ficaram relegadas para discussão em momento posterior, o que
demonstra uma falta de comprometimento efetivo com a sustentabilidade
socioambiental.
Privilegia-se, mais uma vez, o crescimento econômico em detrimento da
preservação ambiental.100 Inúmeras questões não foram debatidas e solucionadas a
contento, tais como a da existência de impactos socioambientais de natureza
irreversível, como a extinção de determinadas espécies de peixes migradores, que
teriam de transpor o obstáculo da barragem para poder se reproduzir rio acima; a
possibilidade de inundação de trecho fora do território brasileiro, em razão do
nível da água no reservatório e da quantidade de sedimentos depositados; a perda
da possibilidade de desenvolvimento de atividades econômicas locais, como a
pesca e a agricultura de várzea; a perda da biodiversidade local, incluindo a fauna
aquática, o que interfere negativamente também na atividade pesqueira a jusante
do empreendimento; a possibilidade de impactos causados pela metilação de
mercúrio e sua bioacumulação nos peixes, gerando danos à saúde pública, entre
outras. Várias dúvidas sobre a possibilidade de reversibilidade de certos impactos
ainda remanescem, apesar de já ter sido concedida a LI para os dois
empreendimentos.
As incertezas são tantas que o próprio órgão licenciador não conseguiu
dirimi-las suficientemente, após a emissão do Parecer Técnico 14/2007 que
concluiu pela inviabilidade ambiental do projeto. A solução encontrada foi a
contratação de técnicos independentes (fora dos quadros do próprio IBAMA) para
produzirem novos pareceres técnicos sobre determinadas questões, como a dos
sedimentos, do mercúrio e da ictiofauna. No entanto, outros pontos polêmicos e
de extrema importância não foram devidamente analisados, como por exemplo, a
questão da extensão dos impactos ao território de outros países; do impacto
causado a comunidades indígenas situadas na área de influência do projeto e,
100 VEIGA, Jose Eli da. Desenvolvimento Sustentável. O desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2006, p. 123.
265
também, do aumento populacional no ordenamento do território e na infra-
estrutura das cidades.
Infere-se, daí, que o princípio do desenvolvimento sustentável, segundo a
noção que exige a integração entre elementos ecológicos e a economia em um
Estado de Direito Ambiental, não vem sendo observado.
Recordemos aqui a lição de Ignacy Sachs (2004): o desenvolvimento
sustentável deve ser harmonizado com objetivos sociais, ambientais e
econômicos, tendo a sua sustentabilidade que ser verificada em suas várias
dimensões: social, cultural, ecológica, ambiental, territorial, econômica política
nacional e internacional.
Todavia, o que se constata até agora, no processo do complexo do Rio
Madeira, é que a dimensão econômica é a prevalecente. Vem, inclusive, ditando
as decisões tomadas pelo órgão licenciador, em detrimento de todas as outras
dimensões acima referenciadas.
No processo em exame, imprescindível seria a mudança de postura do
órgão licenciador de maneira a se fazerem respeitar os princípios e regras acerca
da defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado, ditadas pelo legislador
constituinte. Diante do parecer, assinado por oito técnicos com especialidades
distintas, que atestaram a inviabilidade ambiental do projeto, caberia ao IBAMA
no pleno exercício de suas atribuições e do poder de polícia ambiental, negar a
concessão de licença prévia ao empreendimento.
Importante recordar que a observância da sustentabilidade ambiental tem,
como objetivos, a preservação do potencial da natureza para a produção de
recursos renováveis; a limitação do uso de recursos não renováveis; e o respeito e
estímulo para a capacidade de autodepuração dos ecossistemas naturais, em
respeito, inclusive, à solidariedade entre gerações presentes e futuras. Assim, a
existência de danos de natureza irreversível seria motivo suficiente para o não-
licenciamento do empreendimento hidrelétrico em questão.
Ora, se os estudos elaborados pelo empreendedor não estavam adequados,
deveria o IBAMA ou tê-los rejeitado ou, então, determinado a realização de novos
estudos para aprofundamento das questões não adequadamente tratadas, como
medida de precaução, diante da inviabilidade ambiental atestada inicialmente.
Inaceitável, assim, a postura do órgão ambiental em conceder a licença prévia,
mesmo com falta de conhecimento completo e preciso sobre impactos graves, e
266
dar prosseguimento regular ao processo, autorizando, ao final, uma licença de
instalação “parcial”, cuja previsão legal é inexistente, para permitir a construção
do canteiro de obras da UHE Jirau.
Nesta última parte que se segue, daremos relevo à realização da avaliação
ambiental estratégica, analisando os efeitos positivos (e negativos) para o
processo de licenciamento ambiental em tela.
Na fase de planejamento, o Consórcio Furnas/Odebrecht, de forma
espontânea, apresentou estudo que denominou avaliação ambiental estratégica,
elaborado pela empresa Arcadis Tetraplan101.
Tal estudo, conforme afirmado pelo Consórcio102 teve a finalidade de dar
uma visão macro do empreendimento e complementar as informações constates
do EIA/RIMA.
A primeira observação a ser feita em relação a este documento - intitulado
avaliação ambiental estratégica - é que ele não representa, verdadeiramente, o
processo de avaliação ambiental estratégico, ora analisado no presente trabalho,
conforme detalhado no item 5.1 deste capítulo.
Como visto, a avaliação ambiental estratégica constitui instrumento de
política ambiental que se apresenta na forma de um processo, dividido em várias
etapas, cujo objetivo é auxiliar os tomadores de decisão na formulação, análise e
efetiva execução de planos, políticas ou programas.
A doutrina referida identifica oito etapas integrantes de tal processo, sendo
elas: a de seleção de propostas de decisão estratégica que importem em
conseqüências ambientais significativas para sua implementação (screening); a de
estabelecimento de prazos para as etapas de formulação, avaliação, tomada de
decisão e implementação dos planos, políticas e programas; a da definição do
conteúdo da avaliação ambiental estratégica e da avaliação dos impactos
101 Relatório final da Avaliação Ambiental Estratégica do Complexo do Rio Madeira, maio de 2005, Arcadis/Tetraplan. Disponibilizado por Luis Augusto Biazzi da empresa Tetraplan, através do link < https://www.yousendit.com/transfer.php?action=batch_download&send_id=649604704&email=919b2789733cff851cf1235a6d2900ea >. Último acesso em 05 de fevereiro de 2009. 102 Segundo o assistente da Superintendência de Empreendimentos de Geração (SG.T) do Consórcio, Márcio Porto, a AAE, foi um documento adicional, oferecido à Aneel e ao IBAMA, que teve, como finalidade, fornecer subsídios aos órgãos decisórios para a avaliação do projeto, segundo a visão de cenários de longo prazo, nas vertentes ambiental, social, econômica e institucional. Cf. FURNAS. Projeto Madeira. Avaliação ambiental busca visão macro do Projeto Madeira. Revista de Furnas. Ano XXX Nº 312, SETEMBRO /2004, p. 10.
267
estratégicos; a da documentação e informação; a da revisão e controle da
qualidade ambiental; a da decisão propriamente dita pela autoridade competente
sobre a implantação de determinado plano, política ou programa; e a fase final de
acompanhamento e monitoramento da qualidade ambiental do plano, política ou
programa implantado.
Apesar da importância de todas as fases mencionadas para o conjunto do
processo, pela especificidade de cada uma delas, é na 3ª e 4ª etapas - de definição
de conteúdo da avaliação e de análise dos impactos estratégicos – que se tomam
medidas cruciais para o prosseguimento do processo. Nestas fases são
identificadas as questões socioambientais relevantes e os impactos respectivos da
implantação de tais programas, políticas e planos, levantadas as alternativas
possíveis – alternativas de qualquer natureza, seja em relação a investimentos,
localização de ações, projetos, empregos de tecnologia, somente para citar -, e
definição de procedimentos de acompanhamento e monitoramento. Ainda neste
momento é realizada uma análise comparativa das alternativas, com vistas ao
estabelecimento de prioridades estratégicas. Também é nesta fase que se verifica a
participação pública.
O relatório final elaborado pelas empresas Arcadis/Tetraplan representou
apenas a documentação de uma parte do referido processo. Este detalhe foi
inclusive abordado na própria apresentação do documento103, onde se lê:
A Avaliação Ambiental Estratégica é um processo que não se encerra com a finalização deste relatório. Definições, ainda, são necessárias a respeito das responsabilidades no processo de planejamento e de implementação de ações e programas ao longo do tempo - a partir de um cronograma estabelecido conforme demandas ambientais, sociais, econômicas e institucionais no curto, médio e longo prazo. Também deverá haver um monitoramento: são desejáveis atualizações e revisões de informações que alimentem novas discussões e tomadas de decisões de forma transparente, em fóruns, reuniões, etc., contribuindo para constantes avaliações e ajustes. É assim que se apresenta o documento “Avaliação Ambiental Estratégica do Complexo do Rio Madeira”, relato da etapa inicial desse macro processo.
De forma mais minuciosa, a estrutura do referido documento foi dividida
em seis capítulos. No capítulo 1, foram apresentados os conceitos referenciais de
103 Relatório final da Avaliação Ambiental Estratégica do Complexo do Rio Madeira, maio de 2005, Arcadis/Tetraplan. Disponibilizado por Luis Augusto Biazzi da empresa Tetraplan, através do link < https://www.yousendit.com/transfer.php?action=batch_download&send_id=649604704&email=919b2789733cff851cf1235a6d2900ea >. Último acesso em 05 de fevereiro de 2009, p. 01.
268
apoio e as motivações para a aplicação do instrumento avaliação ambiental
estratégica ao Complexo do Rio Madeira. No capítulo 2, foram fornecidas as
características físicas do Complexo e de outros empreendimentos previstos para a
região; foi realizada também a delimitação da região de estudo e feita uma análise
do quadro referencial básico das condições de sustentabilidade ambiental,
econômica, social e institucional. No capítulo 3, foi feita uma espécie de avaliação
do projeto, com sua inserção nas políticas setoriais de energia e de transportes e
na política ambiental voltada para a Amazônia. No capítulo 4, foram expostos os
pressupostos - condições assumidas como fundamentos necessários - para
sustentar a identificação e a análise dos efeitos de longo prazo da implantação do
Complexo do Rio Madeira. No capítulo 5, foi relatada a experiência da
participação social para a elaboração de tal documento. E o capítulo 6, por fim,
apresentou os subsídios para tomada de decisão.
Assim, de início cabe o esclarecimento de que a avaliação ambiental
estratégica, corporificada no documento entregue à ANEEL e ao IBAMA, não
pode ser encarada efetivamente como a concretização do processo de avaliação
ambiental estratégica objeto da presente investigação. Elementos fundamentais
para a caracterização de tal processo não foram identificados, conforme será por
nós a seguir abordado.
A referida avaliação ambiental não contou com a participação do órgão
licenciador, para sua realização. Isto significa dizer que o estudo foi elaborado
sem ter por base o termo de referência elaborado e aprovado pelo órgão
licenciador, definindo o seu escopo e sua abrangência, bem como fixando
diretrizes para sua realização, o que seria indicado, diante da ausência de previsão
legal para a AAE. Este, em verdade, tem sido o procedimento adotado para a
realização tanto da avaliação ambiental estratégica, como para estudos
complementares (avaliação ambiental integrada e estudo integrado de bacia
hidrográfica) para o caso de implantação de hidrelétricas, como pode ser visto no
caso de Barra Grande104, Bacia do Rio Chopin105 e das usinas do Sudoeste
Goiano106.
104 No caso da UHE Barra Grande, através do termo de compromisso assinado entre o Ministério Público Federal e o empreendedor, com a participação do IBAMA, MMA e MME, o empreendedor assumiu o compromisso de elaborar avaliação ambiental integrada da bacia do Rio Uruguai, após a apresentação do termo de referência pelo IBAMA.
269
A seu turno, o estudo foi elaborado para a avaliação da implantação de um
projeto que, embora de grande complexidade e amplitude, já estava previamente
concebido. A idéia do Complexo do Rio Madeira, que envolve, além da
construção da usinas hidrelétricas, a viabilização de hidrovias e a implantação de
linhas de transmissão para interligar as usinas ao Sistema Interligado Nacional
(SIN), já havia sido formulada e, inclusive, a implantação das hidrelétricas já
estava prevista no plano decenal de expansão. Conclui-se que o escopo da
realização da avaliação ambiental estratégica no sentido de auxiliar na própria
formulação de planos, programas e políticas, não foi de longe atingido, pois o
projeto, ainda que em contornos gerais, já estava preconcebido.
A iniciativa do empreendedor partiu, então, da premissa equivocada da
necessidade de revisão do projeto por meio do instrumento da avaliação ambiental
estratégica. Ocorre que este não é o real objetivo do referido instrumento, que
deve ser usado para auxiliar na formulação de planos, programas e políticas e,
não, para submeter os já formulados à sua revisão.
Importante destacar o teor de outras premissas levadas em consideração na
avaliação ora analisada.
O aludido estudo trabalhou com o conceito de “efeitos” e não o de
“impactos” para “designar mudanças significativas em processos instaurados em
uma dada região, diferentemente de análises de impactos propriamente ditos,
típicos de estudos ambientais de projetos (EIA/RIMA).”107
105 Para a análise dos empreendimentos hidrelétricos previstos para a Bacia do Rio Chopin, o Instituto Ambiental do Paraná (IAP), órgão licenciador estadual, exigiu a elaboração de avaliação ambiental estratégica da Bacia do Rio Chopim, ocasião em que foi contratada uma empresa de consultoria ambiental, a SOMA, para a realização da avaliação, com base no Termo de Referência aprovado pelo IAP em junho de 2002. Cf. BURIAN, Paulo Procópio. Avaliação Ambiental Estratégica como instrumento de licenciamento para hidrelétricas – o caso das bacias do rio Chopim no Paraná. Disponível pelo site < http://www.anppas.org.br/encontro_anual/encontro2/GT/GT06/paulo_burian.pdf>. Ultimo acesso em 25 de agosto de 2008. 106 O termo de ajustamento de conduta celebrado entre os Ministérios Públicos Estadual e Federal e o órgão licenciador estadual, Agência Goiana de Meio Ambiente e Recursos Naturais, em julho de 2004, previu a realização de estudos integrados de bacia hidrografica previamente à concessão de licenças prévias a todo e qualquer empreendimento hidrelétrico, sejam de grandes usinas (UHE’s) ou de pequenas usinas hidreletricas (PCH’s), determinando que o EIBH seguisse as diretrizes do termo de referência anexo ao termo de ajustamento de conduta, sem prejuizo da inserção de novas exigências técnicas ou legais definidas pelo órgao licenciador. (Cláusulas primeira e terceira ) 107 Relatório final da Avaliação Ambiental Estratégica do Complexo do Rio Madeira, maio de 2005, Arcadis/Tetraplan. Disponibilizado por Luis Augusto Biazzi da empresa Tetraplan, através do link <
270
E acrescenta, ainda:
Ao se concentrar em grandes efeitos que o capital físico e institucional irá aportar à região em análise, procurou-se averiguar sucessivas alterações que se propagam em circuitos de natureza econômica, social, ambiental e institucional e suas respectivas formas de sustentabilidade, objeto de avaliação no bojo de uma AAE.
Porém, a legislação brasileira em vigor, para todo o tipo de avaliação de
impacto ambiental, inclusive para a avaliação ambiental estratégica, espécie
daquela, leva em consideração a noção de impacto ambiental. Nos termos da
Resolução CONAMA 01/86, cuja interpretação deve estar em consonância com a
norma constitucional inserta no art. 225 da CF/88, e ainda do teor do Decreto
99.274/1990, cabe ao CONAMA fixar os critérios exigidos para os estudos de
impacto ambiental. Estes deverão conter, entre outros, a previsão, identificação e
análise de impactos significativos, positivos e negativos.
Neste particular, impactos ambientais são as alterações profundas,
produzidas por ações antrópicas, nas estruturas e nos fluxos do sistema ecológico,
social ou econômico, de natureza positiva ou negativa.108
Não há qualquer definição normativa a respeito de “efeitos” e o relatório
final da AAE do Rio Madeira também não foi preciso e explicito na definição
destes, deixando de citar, por exemplo, fontes doutrinárias ou trabalhos científicos
que tomassem tal “conceito” como base para a avaliação pretendida.
Isto, por si só, já demonstra a fragilidade conceitual do documento.
Além disso, o relatório não apresenta de forma prévia e clara a
metodologia utilizada para a previsão, identificação e posterior avaliação dos
chamados “efeitos”, razão pela qual não se pode saber, ao certo, como o relatório
concluiu por uma avaliação prospectiva dos “efeitos” decorrentes da implantação
do Complexo do Rio Madeira.
No tocante à metodologia, importante esclarecer que, não havendo
previsão legal do instituto, é imprescindível que esta seja claramente delineada em
uma avaliação ambiental estratégica.
https://www.yousendit.com/transfer.php?action=batch_download&send_id=649604704&email=919b2789733cff851cf1235a6d2900ea >. Último acesso em 05 de fevereiro de 2009, p. 05. 108 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Impacto Ambiental. Aspectos da legislação brasileira. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2008, pp. 40-43.
271
Burian109, em estudo realizado sobre a avaliação ambiental estratégica
realizada na Bacia do Rio Chopin assevera a relevância de tal questão,
esclarecendo que, na referida bacia, foi usada metodologia semelhante a dos
inventários hidrelétricos. Segundo o método adotado, foi elaborado o diagnóstico
ambiental, contemplando quatro “componentes-síntese”: uso e qualidade da água,
ictiofauna, ecossistemas terrestres e modos de vida, contribuindo para tal enfoque
as áreas de influência de cada empreendimento. Após, tal identificação, em cada
um dos “componentes-síntese”, para cada trecho próximo aos cursos d’água, foi
realizada a identificação de pontos de fragilidade ambiental, formando o que
chamou de “manchas de fragilidade ambiental”, para as quais foram atribuídas
notas de 1 a 5.
Em seguida, foi feita a sobreposição dos mapas de fragilidade de cada
componente-síntese, “identificando-se áreas ou trechos que são homogêneos em
termos de criticidade, visando identificar a viabilidade ambiental maior ou menor
de absorver os empreendimentos previstos no inventário hidrelétrico.”
Denominou-se “criticidade” esta sobreposição dos mapas de fragilidade de cada
componente síntese. Assim, foi possível avaliar a viabilidade ambiental da área,
na absorção dos empreendimentos previstos no inventário hidrelétrico.
Ao final, dos doze empreendimentos previstos no inventário hidrelétrico
da bacia do Rio Chopin, dois foram classificados como de pequeno potencial de
impacto ambiental; nove como de médio potencial de impacto ambiental; e um
inviável ambientalmente (um daqueles que apresentavam um dos maiores
reservatórios que afetaria remanescentes florestais na região mais baixa da bacia).
Todavia, dos nove empreendimentos considerados de médio impacto, dois seriam
praticamente inviáveis também, tendo a AAE recomendado o condicionamento do
licenciamento ambiental de cada um a alterações no projeto em relação ao nível
dos reservatórios e localização das barragens.
Assim, repita-se, não houve a apresentação da metodologia utilizada para a
previsão, identificação e análise dos “efeitos” causados pelo Complexo do Rio
Madeira no relatório apresentado pelo consórcio.
109 BURIAN, Paulo Procópio. Avaliação Ambiental Estratégica como instrumento de licenciamento para hidrelétricas – o caso das bacias do rio Chopim no Paraná. Disponível pelo site < http://www.anppas.org.br/encontro_anual/encontro2/GT/GT06/paulo_burian.pdf>. Ultimo acesso em 25 de agosto de 2008.
272
Ainda que careça de metodologia o processo aplicado, cabe trazer alguns
comentários sobre os “efeitos” previstos no relatório do Complexo do Rio
Madeira, no último Capítulo. Eles foram classificados de acordo com a dimensão
econômica, institucional, social e ambiental, conforme se observa a seguir:
Efeitos na dimensão econômica:
1. Ganhos de acessibilidade e redução dos custos de transportes - maior integração
aos mercados
2. Provisão de energia elétrica confiável e generalizada
3. Atração de atividades econômicas diversificadas e maior valor agregado
4. Consolidação de Porto Velho como o principal centro regional
5. Aumento da produtividade agropecuária
6. Expansão do PIB total de longo prazo, crescendo acima da média histórica dos
últimos anos
7. Concentração da estrutura fundiária e de renda
8. Homogeneização do uso e ocupação do espaço - expansão de monoculturas
9. Fortalecimento do eixo Porto Velho - Rio Branco em direção ao Pacífico
Efeitos na dimensão institucional:
1. Fortalecimento da presença do Estado com maiores chances de sucesso no uso
de instrumentos ordenadores do espaço
2. Modernização e ampliação dos sistemas de regularização fundiária, de
normatização e de fiscalização do uso do solo
3. Desajustes estruturais nas finanças municipais, pressão sobre a despesa anterior
ao aumento da receita orçamentária
4. Dificuldades das prefeituras para acompanhar as múltiplas necessidades
institucionais da inserção regional do Complexo
5. Chances de aumento de atividades ilegais através das fronteiras: tráfico de
drogas, garimpo, contrabando de recursos naturais
Efeitos na dimensão social:
273
1. Maior geração de renda e emprego e melhorias nos serviços públicos
2. Aumento da Receita Orçamentária própria (ISS, IPTU entre outros) com
reflexos positivos nos gastos sociais dos governos locais.
3. Ganhos dos produtores rurais melhoram os salários médios, porém a
distribuição de renda não melhora significativamente.
4. Alterações sócio-culturais nas comunidades tradicionais.
5. Aumento da taxa de urbanização e dos déficits de saneamento. Risco de
“periferização”.
6. Estímulo à concentração fundiária favorecendo concentração de renda e
exclusão social
7. Desflorestamentos ilegais induzindo um novo ciclo de conflitos sociais
Efeitos na dimensão ambiental:
1. Maiores chances de alavancar o desenvolvimento sustentável regional
2. Desflorestamentos e fragmentação da cobertura vegetal por mecanismos de
ocupação informal
3. Ocupação de áreas de cabeceiras de bacias hidrográficas
4. Aumento de urbanização gerando pressão sobre ambientes urbanos e
conseqüentemente deterioração da qualidade ambiental das cidades
5. Expansão agropecuária pressionando as Savanas de Beni
6. Pressão sobre áreas protegidas e sobre Terras Indígenas
7. Modificação das comunidades aquáticas com reflexos nos recursos pesqueiros
8. Homogeneização do uso e ocupação do espaço - expansão de monoculturas
Relatou o aludido documento, ainda, que tais efeitos foram discutidos com
a sociedade, através da realização de eventos – workshops -, em que
representantes de entidades públicas e privadas foram convidadas para a
participação.
Assim, a participação foi limitada ao número de representantes
convidados, não se coadunando com o princípio da gestão democrática que prevê
a participação ampla e irrestrita a todos aqueles interessados no debate das
questões levantadas.
274
Desta forma, o relatório assim descreveu110:
A dinâmica proposta consistiu em sessões dirigidas, com a participação de técnicos e representantes de instituições públicas e privadas, representantes de comunidades interessadas, governamentais e não-governamentais. Procurou-se restringir o número de representantes de cada entidade a dois, para garantir representatividade e diversidade nos trabalhos de cada uma das sessões realizadas. Na etapa inicial de cada sessão, procedia-se à apresentação dos conceitos da AAE aplicados ao Complexo do Rio Madeira, das informações referentes a esse capital físico e de sua região de implantação, abordando as principais questões evidenciadas no estudo. Na segunda etapa, realizavam-se as discussões sobre os efeitos e sobre as recomendações para a inserção do Complexo na região, no médio e longo prazo. Em cada uma das sessões, com o intuito de propiciar ambiente adequado ao debate e, dessa forma maximizar os resultados das discussões, os participantes eram divididos em grupos de cinco a oito pessoas, organizados de acordo com os temas com os quais tinham maior familiaridade, procedendo-se o debate de um conjunto de questões preparadas na forma de questionário ou de afirmativas sintéticas. Após esses debates, cada grupo realizava uma síntese dos principais aspectos abordados, que eram apresentados e discutidos em plenária. Os resultados finais compunham opiniões e sugestões a respeito dos efeitos do Complexo do Rio Madeira na Região de Estudo, bem como as recomendações, objetos do capítulo 6.
Com relação à análise dos efeitos acima como desejáveis ou indesejáveis,
realizada após os workshops, informou o relatório que os efeitos econômicos
prevaleceram como desejáveis enquanto os efeitos das dimensões social e
ambiental concentraram a maioria dos indesejáveis. Sugeriu, ainda, o relatório que
a avaliação dos efeitos econômicos teria peso preponderante, pois os efeitos
positivos, do ponto de vista social e institucional, poderiam reverter o quadro dos
efeitos ambientais adversos. Assim, concluiu111:
A percepção geral, portanto, é de que a vinda do Complexo pode ser fator de transformação e de indução de novas possibilidades de desenvolvimento. Por outro lado, os receios de efeitos indesejáveis evidenciados são, em sua maioria, advindos de processos já em curso. A adequada articulação social e institucional poderá reverter essas tendências, tornando o Complexo fator indutor de transformações no sentido desejado, com o controle dos efeitos adversos e a valorização do potencial de resultados benéficos. ( g. n. )
Portanto, a finalidade atribuída ao processo de avaliação ambiental
estratégico no setor elétrico, no sentido de contribuir para a inclusão efetiva da
110 Relatório final da Avaliação Ambiental Estratégica do Complexo do Rio Madeira, maio de 2005, Arcadis/Tetraplan. Disponibilizado por Luis Augusto Biazzi da empresa Tetraplan, através do link < https://www.yousendit.com/transfer.php?action=batch_download&send_id=649604704&email=919b2789733cff851cf1235a6d2900ea >. Último acesso em 05 de fevereiro de 2009, p. 121. 111 Ibid, p. 139.
275
dimensão ambiental nos processos decisórios de tal setor, não foi alcançada neste
caso.
Outra questão que merece maior atenção diz respeito aos pressupostos
adotados no referido estudo.
No item 4.2112, o documento chama a atenção para os dez pressupostos
usados na análise e identificação dos efeitos de longo prazo da implantação do
Complexo do Rio Madeira. Seriam eles:
1 – O empreendimento foi classificado como altamente transformador. Neste ponto,
o papel do conjunto de empreendimentos com vistas à geração e energia foi enaltecido,
no sentido de demonstrar sua capacidade de transformar “a dinâmica econômica,
constituindo o pressuposto básico de todo o trabalho.” Segundo o relatório, a implantação
do complexo estaria convergindo na mesma direção de uma maior integração comercial e
produtiva entre a região amazônica e as demais regiões do pais.
2 – O papel relevante das bacias hidrográficas amazônicas na geração elétrica, dada
a “expectativa e necessidade de crescimento econômico da economia brasileira para as
próximas décadas”113 que impõe a emergência da expansão da oferta de energia elétrica.
3 – O papel suplementar das fontes alternativas na provisão de energia elétrica,
pouco expressivo e limitado para o atendimento da demanda nacional.
4 – A inserção do Complexo como “novo paradigma tecnológico”. Através da
utilização de turbinas-bulbo para a geração de energia pelo aproveitamento do volume e
velocidade das águas do rio Madeira, haveria maiores “ganhos ambientais”, pois não seria
exigido grandes desníveis para geração de energia, reduzindo as áreas alagadas.114
5 – O papel estruturante de hidrovias na Região Amazônica. A navegabilidade pelas
hidrovias previstas no complexo propiciaria um melhor ordenamento territorial.
6 – A inexorável integração física da América do Sul, permitindo “alternativas
bioceânicas” de interligação física de energia, de transportes e de comunicações. Esta
integração permitiria a expansão da articulação comercial entre os países da América
Latina.
7 - O inexorável avanço da ocupação territorial, já constatado através da ocupação
extensiva associada aos grãos, à pecuária e à ação dos grileiros. Isto ensejaria a
necessidade da tomada de “atitudes pró-ativas dos diversos atores institucionais
112 Ibid, pp. 115-118. 113 Ibid, p. 115. 114 Ibid, p. 116.
276
envolvidos, no sentido do planejamento e da efetiva implementação das ações
planejadas.”115
8 – A crescente valorização dos serviços ambientais dos ecossistemas, fazendo
menção à adoção de métodos de uso de matérias florestais com “sistemas inovadores de
tecnologia que agregam valor a esses produtos”, como a produção e comercialização de
produtos certificados (madeira, borracha, etc).
9 – O fortalecimento de processos de participação e de compromisso social, pois a
aplicação da avaliação ambiental estratégica exigiria uma forte participação pública na
discussão das questões ambientais, socioeconômicas e institucionais para a região
amazônica.
10 – A necessidade de incremento da segurança nacional, sendo que a implantação das
atividades do Complexo do Rio Madeira importaria na maior presença econômica e
institucional na região de fronteira, “incrementando a Segurança Nacional e permitindo
melhor gestão do território tendo, como conseqüência, maior controle de atividades
ilegais.”116
A partir do exame de tais pressupostos, podemos tirar algumas conclusões.
A primeira delas, no sentido de que tais pressupostos indicam que o modelo de
desenvolvimento sustentável priorizado está mais preocupado com as questões de
integração regional e econômica do que com a sustentabilidade socioambiental.
Não se verifica em nenhum dos pressupostos uma preocupação real e
efetiva com os grandes impactos socioambientais causados pelo Complexo do Rio
Madeira. Aliás, pela sua leitura, é como se eles não existissem.
O estudo acima apontado foi realizado, em grande medida, para enaltecer
os pontos positivos e as vantagens advindas com a implantação do projeto, sob
uma ótica que privilegia o crescimento econômico mesmo diante dos altos custos
socioambientais. Tal lógica admite a degradação ambiental, se utilizando de
medidas tecnológicas para mitigar ou compensar os impactos causados pelo
empreendimento. Portanto, a avaliação ambiental estratégica não pode ser tida
como tal, pois o seu enfoque sobre as “questões relevantes” do Complexo do Rio
Madeira não foram examinadas sob o enfoque ambiental e nem estratégico.
Neste sentido, podemos destacar alguns pontos tratados na chamada
“avaliação ambiental estratégica” realizada.
115 Ibid, p. 117. 116 Ibid, p. 118.
277
No que diz respeito ao processo de integração regional dos países da
America do Sul, o estudo apontou que o Complexo do Rio Madeira contribuiria,
de forma inconteste, para a integração regional, pois a construção das hidrovias
(cerca de 4.200 km) seria viabilizada pela implantação de eclusas nos
aproveitamentos hidrelétricos. Por outro lado, a existência de tais hidrovias seria
uma forma de incentivo à expansão das atividades econômicas na região, pois
haveria redução de custos com o escoamento da produção.
Outro ponto positivo assinalado foi que a construção das hidrelétricas
traria para a região um incremento de recursos, permitindo um novo padrão de
ocupação regional do solo e de organização da vida urbana. Possibilitaria,
também, um melhor aparelhamento do poder público local, com a melhoria dos
serviços públicos prestados, especialmente na cidade de Porto Velho, que se
consolidara como centro regional. A redução de custos de transportes fortaleceria
a competitividade regional e, ademais, a confiabilidade no fornecimento
energético serviria para atrair capitais produtivos (indústrias e serviços) regionais
e cadeias transnacionais, com aumento também da produtividade nas áreas hoje já
exploradas (Centro-Sul de Rondônia, Noroeste de Mato Grosso e vale do rio
Acre).
No entanto, não ficou evidenciado no referido estudo que, em
contrapartida a tais “efeitos positivos”, outros de natureza negativa e irreversível,
como o avanço das fronteiras do agronegócio com o conseqüente desmatamento
florestal na região e a perda da rica biodiversidade local, seriam passíveis de
acontecer.
Com relação à infra-estrutura, acentuou-se que os aproveitamentos
hidrelétricos do rio Madeira elevariam o patamar de flexibilidade e confiabilidade
do sistema interligado nacional, já que a integração física propiciada pela
implantação do projeto tende a intensificar trocas comerciais (articulação
comercial), podendo levar a trocas de capitais produtivos (integração produtiva).
Sob o enfoque institucional, os estudos de AAE anteciparam que a gestão
territorial enfrentaria desafios e oportunidades, pois a geração de receitas próprias
para o poder público municipal acabaria por fortalecer as instituições públicas
municipais, permitindo uma melhor gestão territorial com a presença mais efetiva
do Estado, o que se refletiria em melhorias na oferta de bens e serviços públicos.
278
Todavia, o estudo não abordou a questão polêmica sobre o destino da
energia gerada pelas usinas do Complexo do Rio Madeira. Assim, não houve
nenhuma discussão sobre se seria viável admitir tantos impactos socioambientais
para a região amazônica na produção de energia destinada ao incremento da
produção econômica de empresas localizadas na região sudeste do país.
Sob o enfoque ambiental, os estudos aferem particular interesse às formas
inovadoras de uso sustentável das áreas florestadas, com aumento da certificação
de produtos florestais e com a conversão de áreas degradadas com sistemas
agroflorestais e valorização dos serviços ambientais. O surgimento de novas redes
transnacionais de comunicações deverá repercutir em uma maior difusão da
informação e do conhecimento na região. No entanto, não se discute onde tais
atividades seriam permitidas, pois caberia ao Zoneamento Ecológico-Econômico
definir a amplitude e a repercussão da adoção de tal modelo de desenvolvimento
de atividades econômicas, cuja tendência é a de transformar os recursos
ambientais em mercadorias.
Pode-se dizer, ainda, que os efeitos positivos enaltecidos pelo
empreendedor, do ponto de vista ambiental, não se caracterizam como aqueles
diretamente decorrentes da implantação do empreendimento. Seriam
conseqüências, talvez desejadas por determinados setores da economia. Todavia,
para serem concretizadas, dependem de outras medidas públicas, fora do âmbito
do próprio projeto do Rio Madeira - exigem, por exemplo, a implantação de
outros instrumentos, como o zoneamento ecológico-econômico da região
amazônica.
No mais, segundo afirmado no relatório técnico formulado pelo Ministério
Público de Rondônia117, a avaliação ambiental estratégica realizada somente
serviu para dar subsídios à caracterização da área de abrangência regional,
solicitada no termo de referência do IBAMA.
Recordando as definições trazidas pela doutrina especializada no tema
(Vide item 5.1 deste capítulo), foi observado que a AAE constitui instrumento de
política ambiental que tem por objetivo auxiliar, antecipadamente, os tomadores
de decisões no processo de identificação e avaliação dos impactos e efeitos, a
117 MINISTÉRIO PÚBLICO. Relatório de Análise do Conteúdo dos Estudos de Impacto Ambiental (Eia) e do Relatório de Impacto Ambiental (Rima) dos Aproveitamentos Hidrelétricos de Santo Antonio e Jirau, no Rio Madeira, Estado de Rondônia, realizado pela empresa Cobrape – Cia. Brasileira de Projetos e Empreendimentos, em outubro, 2006. Parte A, p. 41.
279
respeito da implementação ou não de uma política, um plano ou um programa.
Portanto, não se pode esquecer que a natureza do instituto é de planejamento de
política ambiental e não econômica, sendo fundamental que os diversos setores
sobrelevem a dimensão ambiental nas discussões sobre a implantação de planos,
programas ou políticas setoriais, como no caso das hidrelétricas.
Por outro lado, a AAE permite ampliar a capacidade de avaliação do
projeto, por levar em consideração os impactos cumulativos e sinérgicos de
determinado plano, programa ou política em relação aos outros empreendimentos
já localizados ou previstos para a região. Tal instrumento contribui, ainda, para
que as questões ambientais ganhem importância similar a que é dada a outros
aspectos do desenvolvimento na tomada de decisão, estimulando o decisor a
articular os objetivos ambientais com os objetivos sociais, institucionais e
econômicos.
No entanto, repita-se: no caso do Rio Madeira, tais objetivos, sequer de
longe, foram atendidos. O estudo elaborado, de forma voluntária e espontânea,
teve como escopo único o de reunir informações complementares ao EIA/RIMA,
com o intuito de maximizar os efeitos positivos do projeto na economia da região
e do país, bem como na integração regional sul-americana.
Em verdade, a aplicação da AAE no planejamento do setor elétrico poderia
se dar em duas etapas: no plano decenal de expansão e no estudo de inventário de
bacia hidrográfica. Todavia, no caso-referência ora analisado, os estudos da AAE
foram realizados por ocasião da apresentação do projeto, ou seja, bem depois do
Plano Decenal de Expansão ( 2006-2015 ) e, também, posteriormente à etapa do
estudo de inventário hidrelétrico – este foi aprovado pela ANEEL118, em
16/12/2002.
Teoricamente, se, em um esforço de imaginação, a AAE fosse implantada
no momento oportuno, trataria de identificar os principais problemas
socioambientais ocasionados pelos empreendimentos constantes do complexo do
Rio Madeira, possibilitando a discussão e a antecipação de eventuais outras
soluções, o que, atualmente pela legislação em vigor, não teria como ser realizado.
De acordo com a normativa vigente, somente caberia a realização do estudo de
118 ANEEL. Despacho ANEEL nº 817 publicado no Diário Oficial da União em 17 de dezembro de 2002 que aprova o Estudo de Inventário do Rio Madeira. Disponivel pelo site <http://www.aneel.gov.br/hotsite/hotsite_ver2/default.cfm#xxx>. Ultimo acesso em 16 de janeiro de 2009.
280
impacto ambiental, de maneira isolada, em cada projeto individual para avaliação
e licenciamento ambiental de cada hidrelétrica119.
Por ter sido realizada fora do momento próprio e sem priorizar a dimensão
socioambiental, a AAE - realizada no licenciamento ambiental do Complexo do
Rio Madeira - não teve efetivamente uma abordagem estratégica.
Esta é a conclusão a que chegou o próprio IBAMA, no Parecer Técnico nº
141/2005-COLIC/CGLIC/DILIQ/IBAMA, ao analisar o teor do EIA/RIMA e
da AAE apresentada pelo empreendedor:
O trabalho, como um todo, não deve ser descartado, pois o mesmo levantou uma série de dados econômicos e sociais para a região de inserção do Complexo do Rio Madeira, caracterizando-o de forma sócio-econômica. Entretanto, como descritor das variáveis ambientais que serão modificadas e para propor alternativas para o desenvolvimento sustentável ele é bastante falho. Além do mais, a parte ambiental não foi considerada de forma apropriada no estágio inicial da tomada de decisão. Desta forma, perde o seu valor como avaliação estratégica. Vale a pena salientar, entretanto, que uma Avaliação Ambiental Estratégica é sem dúvida uma forte ferramenta para o planejamento de Políticas, Programas e Projetos. Portanto, deveria ser adotada como prática comum pelos definidores destes. ( g. n. )
Assim, levando-se em consideração os princípios e regras, bem como os
objetivos da AAE e as razões para a sua adoção, tópicos abordados pela doutrina
estrangeira e mencionados no item próprio, pode-se concluir que o estudo
elaborado no caso em tela não atingiu a sua finalidade última.
119 SANCHEZ, Luis Enrique. Avaliação ambiental estratégica e sua aplicação no Brasil. Disponível no site < http://www.iea.usp.br/iea/aaeartigo.pdf. Ultimo acesso em 30 de dezembro de 2008.