Post on 07-Feb-2021
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM
William de Oliveira Tognolo
Romances à venda: leilões de livros no Rio de Janeiro (1836-
1868)
CAMPINAS
2018
William de Oliveira Tognolo
Romances à venda: leilões de livros no Rio de Janeiro (1836-
1868)
Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto
de Estudos da Linguagem da Universidade
Estadual de Campinas como parte dos requisitos
exigidos para a obtenção do título de Mestre em
Teoria e História Literária, na área de História e
Historiografia Literária
Orientadora: Profa. Dra. Márcia Azevedo de Abreu
Este exemplar corresponde à versão
final da Dissertação defendida pelo
aluno William de Oliveira Tognolo
orientado pela Profa. Dra. Márcia
Azevedo de Abreu.
Campinas
2018
BANCA EXAMINADORA
Márcia Azevedo de Abreu
Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira
Jefferson Cano
IEL/UNICAMP
2018
Ata da defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no
SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria de Pós Graduação do
IEL.
Agradecimentos
Agradeço ao meu pai, minha mãe, meus irmãos e minha esposa por todo o apoio
que vocês deram a mim em toda a minha trajetória acadêmica. Sem vocês seria impossível
realizar o trabalho aqui escrito. Vocês foram fundamentais no êxito desse projeto e
obrigado por compartilharem a existência comigo.
Agradeço também a Deus, pela saúde e oportunidades que foram oferecidas a mim
durante todo esse período.
Não poderia deixar de agradecer a todos os participantes do projeto A Circulação
Transatlântica de Impressos, pois, seja com conversas, debates, conselhos etc., também
ajudaram de forma substanciosa. Dentre os participantes, quero deixar registrado meu
agradecimento ao Leandro Thomaz de Almeida e ao Alexandro Paixão, que além de
participarem da minha banca de defesa da monografia, embrião dessa dissertação, sempre
me ajudaram dando conselhos, discutindo conceitos, ampliando minha visão sobre vários
assuntos. Muito obrigado.
Tenho que destacar também a grande ajuda da Taís Franciscon, da Beatriz
Gabrielli e da Larissa de Assumpção. Elas leram e releram minha dissertação, auxiliando
capítulo a capítulo este trabalho. Vocês foram um auxílio ímpar na realização desse
trabalho. Deixo aqui registrada a minha gratidão.
Agradeço muito também ao professor Jefferson Cano e à professora Tânia
Bessone. A leitura, as críticas e os conselhos da qualificação foram fundamentais para a
continuação e a conclusão desta dissertação. Muitíssimo obrigado.
A professora Márcia Abreu foi essencial para o meu desenvolvimento acadêmico,
desde a graduação na iniciação científica até a conclusão desta dissertação. Fazendo jus
ao título de professora, teve muita paciência comigo nos momentos em que eu errava ou
não compreendia algo, sempre esteve disposta a explicar e trocar ideias e assim partilhar
o seu conhecimento. Em diversos momentos foi luz onde parecia só haver trevas. Muito
obrigado, professora.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) e do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
RESUMO
Dentre os estudos da História do Livro e da Leitura, diversas formas de compra e venda
de livros foram analisadas, no entanto, um importante modo de comercialização de
impressos não foi examinado detidamente: os leilões de livros. Este é o propósito desta
dissertação, que analisa essa forma de acesso a impressos no Rio de Janeiro entre os anos
de 1836 e 1868. Para realizar este estudo, recorreu-se aos anúncios de leilões presentes
em três diários, Jornal do Commercio, Diário do Rio de Janeiro e Correio Mercantil,
examinados via Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, que facultou o acesso às
edições digitalizadas. Esta dissertação tem como objetivo apresentar essa forma de
compra e venda de impressos, aquilatar sua relevância, saber quais obras foram postas
em circulação através dos pregões e avaliar a importância dos romances em meio às outras
obras anunciadas. Esta pesquisa intenta também analisar o perfil socioeconômico dos
proprietários que puseram seus acervos em leilão, a fim de conhecer uma parcela dos
sujeitos que possuíam livros nessa época, identificar parte dos livros que eles tinham e
pensar correlações entre os proprietários e a posse de impressos, focando a análise de
modo particular nos romances. Pretende-se, ainda, avaliar a importância dos leiloeiros em
seu papel de mediadores culturais. Foi possível perceber que os leilões eram frequentes
no período e os livros tinham presença mediana entre as mercadorias anunciadas. As
obras abarcaram diversas línguas, com destaque maior às latinas e ao inglês. Houve
muitas menções aos livros históricos, de medicina, direito, mas principalmente aos
literários. Diversos autores constaram nas propagandas de leilões, com destaque para
Voltaire, Shakespeare, Walter Scott, Alexandre Dumas e Paul de Kock. Numerosos
títulos também foram mencionados, sobressaindo-se a Bíblia, Os Mistérios de Paris,
Enciclopédia e Dom Quixote. Romances foram amplamente anunciados, mormente, os
franceses e os folhetinescos, havendo clara conexão entre os mais mencionados e os livros
mais vendidos na França. Os anúncios indicam que tanto os membros da elite quanto os
sujeitos dos estratos médios da sociedade tinham romances, porém as bibliotecas da elite
concentravam os romances mais antigos e conhecidos, enquanto os acervos dos estratos
médios tinham obras modernas e principalmente folhetins. Finalmente, foi possível
perceber que a atividade leiloeira era essencial para a circulação dos impressos.
Palavras-chave: Leilões de livros; Século XIX; Romances; Rio de Janeiro.
ABSTRACT
Among the studies of "History of the book and reading", different types of buying and
selling books were analysed, however, one important mode of printed materials
commercialisation was not examined closely: the book auctions. This is the purpose of
this dissertation, which analyses this type of accession to printed materials in Rio de
Janeiro between 1836 and 1868. To accomplish this study, it was used the auction ads
present in three dailies, Jornal do Commercio, Diário do Rio de Janeiro e Correio
Mercantil, examined via Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, which provided
access to the digitised editions. The goal of this dissertation is to present this type of
buying and selling printed materials, assess its relevance, get to know which compositions
were put into circulation by the auctions and evaluate the importance of the novels amid
the other advertised compositions. This research also tries to analyse the socio-economic
profile of the owners selling their collections in auctions, in order to know a parcel of the
book owners in this period, identify part of the books they held and think about
correlations between the owners and the possession of printed materials, mainly focusing
on the analysis in the novels. It is also the intention of this dissertation to evaluate the
importance of the auctioneer in their role of cultural mediators. It was possible to perceive
that the auctions were frequent in the period and book auctions had a medium presence
among the goods advertised. The advertised compositions covered many languages, with
a significant presence of the Latin ones and English. There were many mentions of books
related to history, medicine, law, but mainly literary. Several authors appeared in auctions
advertisements, notably Voltaire, Shakespeare, Walter Scott, Alexandre Dumas and Paul
de Kock. An also high number of compositions were mentioned, standing out the Bible,
The Mysteries of Paris, Encyclopedia e Don Quixote. Novels were largely advertised,
mostly, the French and leaflets, having a clear connection between the most mentioned
novels and the best seller books in France. The advertisement indicates that both the
members of the elite and the middle stratum of society had novels. However, the libraries
of elite members used to concentrate the most ancient and notorious, while the collection
of middle stratum had modern compositions and mainly leaflets. Finally, it was possible
to perceive that the auctioning activity was essential for the circulation of printed
materials.
Key words: Auctions of books; nineteenth century; Novels; Rio de Janeiro.
Sumário
Introdução......................................................................................................................10
Capítulo 1 – Os leilões....................................................................................................22
1.1. Imagens....................................................................................................................23
1.2. Relatos de viajantes.................................................................................................30
1.3. Romances.................................................................................................................33
1.4. Imagens, relatos e romances...................................................................................44
Capítulo 2 – Os leilões de livros.....................................................................................46
2.1. Os agentes de leilões como responsáveis pelos anúncios.......................................50
2.1.1. Quem são os pregoeiros e como era o ofício de leiloeiro?...................................53
2.1.2. Como os leiloeiros compunham seus anúncios?.................................................63
2.2. Os anúncios de leilões de livros enquanto formas de publicidade........................68
2.2.1. Os leilões eram comuns no Rio de Janeiro em meados do século
XIX?................................................................................................................................68
2.2.2. Havia livros nos leilões realizados no Rio de Janeiro em meados do século
XIX?................................................................................................................................76
2.2.3. Quais informações podem ser encontradas nos anúncios de leilões de
livros?..............................................................................................................................83
2.3. Leilões de livros como fonte de informações sobre os impressos em
circulação........................................................................................................................85
2.3.1. Que motivos levaram as pessoas a venderem seus livros em leilão?..................86
2.3.2. Quais foram as principais línguas mencionadas nos anúncios?........................93
2.3.3. Quais temas foram preponderantemente propagandeados?............................96
2.3.4. Quais autores foram mais mencionados?.........................................................100
2.3.5. Quais obras foram vendidas nos leilões de livros?...........................................105
Capítulo 3 – Proprietários e Romances......................................................................112
3.1. A presença dos romances nos anúncios de leilões de livros.................................112
3.1.1. Quais eram os romances e romancistas mais anunciados?..............................112
3.1.2. Os romances e romancistas anunciados em leilão também o foram em outras
formas de acesso a livros?............................................................................................124
3.2. Proprietários de romances e quais romances eles possuíam..............................129
Conclusão.....................................................................................................................148
Referências...................................................................................................................155
Anexos...........................................................................................................................164
10
Introdução
Robert Darnton em Os best-sellers proibidos da França pré-revolucionária ao
discutir livros que tiveram multidões de leitores há duzentos anos, mas atualmente caíram no
esquecimento, disserta sobre uma importante disciplina na área de humanidades:
A História do Livro como uma nova disciplina das “ciências humanas” permite
adquirir uma visão mais ampla da literatura e da História da Cultura em geral. Ao
identificar os livros que passavam pelas mãos de uma sociedade inteira, ao descobrir
(pelo menos até certo ponto) em que medida os leitores conseguiam compreendê-los,
podemos estudar a literatura como parte de um sistema cultural geral1.
Para resolver os diversos questionamentos propostos pela disciplina, alguns deles
apontados na citação acima, uma grande quantidade de investigadores se envolveram, e ainda
se envolvem, em pesquisas científicas em diversas áreas das ciências humanas como
Sociologia, História, Literatura, Educação etc.
Vários grupos de pesquisa foram desenvolvidos em torno destas e de outras
questões advindas da História do Livro e da Leitura. Um exemplo pode ser o projeto temático
A Circulação Transatlântica de Impressos – a globalização da cultura no século XIX (1789-
1914), cujo escopo foi
conhecer os impressos e as ideias em circulação entre Inglaterra, Portugal e Brasil, no
“longo século XIX” (1789-1914), identificando e analisando as práticas culturais
inerentes aos processos de circulação dos impressos e ideias em escala transnacional.
Seu interesse é, também, analisar as apropriações dessas ideias nos quatro países, por
meio da observação dos escritos e das ações dos letrados, bem como das atividades
de censores, editores, impressores e livreiros.2
Este grupo de pesquisa era composto por 34 docentes oriundos do Brasil, de
Portugal, da França e da Inglaterra, coordenados pela professora Márcia Abreu (Universidade
de Campinas) e pelo professor Jean-Yves Mollier (Université de Versailles Saint-Quentin).
Dentre os núcleos de pesquisa presentes no projeto, um deles se preocupava mais detidamente
com
a circulação das belas-letras, com destaque para o romance e para o teatro, cuja presença tinha grande relevo nas trocas transatlânticas (...) considerando não apenas
os leitores profissionais (como críticos e censores), mas também os leitores anônimos
que frequentavam gabinetes de leituras e bibliotecas3
1DARNTON, 1998. p.13. 2ABREU, 2011, p.115. 3Idem, p.127.
11
Dentro desse projeto e mais especificamente nesse núcleo de pesquisa foi gestada
a dissertação aqui exposta. Ela se propõe a estudar os anúncios de leilões de livros em meados
do século XIX (1836-1868) no Rio de Janeiro por intermédio de três jornais do período: o
Correio Mercantil (1848-1868), Jornal do Commercio (1827-2016) e o Diário do Rio de
Janeiro (1821-1878). A escolha dos jornais se deu graças ao fato de os três publicarem
regularmente anúncios de produtos à venda, serem diários, terem uma tiragem expressiva e
gozarem de relevância social e até política no período. Já o intervalo de tempo escolhido deve-
se ao fato de que no ano de 1836 surgiram na França os primeiros romances em forma de
folhetim, o que abalou o sistema literário mundial a médio-longo prazo4. Assim, começar o
período de análise da dissertação por 1836 permite que a história inicial do romance folhetim
seja de algum modo acompanhada por intermédio dos anúncios de leilões de livros, saber se
esta nova forma de escrever romances, que parece ter cativado boa parte dos leitores franceses
e brasileiros do século XIX5, esteve presente nas propagandas de pregões e, se sim, de que
maneira. Em minha monografia para receber o diploma de licenciatura em letras, também
estudei pregões de livros, no entanto, detive-me somente nos anúncios de leilões dispostos no
Correio Mercantil6, mas na dissertação optamos por trazer para análise mais dois periódicos de
peso da época e alargar o período da pesquisa. Assim, para poder analisar os três maiores jornais
em circulação no Rio de Janeiro simultaneamente, foi necessário encerrar o período da pesquisa
em 1868, ano em que o Correio Mercantil fechou suas portas.
No leque de objetos de estudo priorizados pela História do Livro e da Leitura,
alguns têm ganho mais atenção que outros, como por exemplo, as pesquisas sobre editores ou
livreiros7, bibliotecas8 e best-sellers9. Já os leilões de livros parecem ter passado ao largo das
preocupações dos pesquisadores da área no Brasil, posto que os únicos estudos que se servem
de forma relevante dessa fonte são os trabalhos de Tânia Bessone10 e Daniela Montenegro de
Souza11.
Tânia Bessone em seus trabalhos emprega os leilões de livros como fonte, pois
compreende as vendas de impressos em hasta pública como sendo mais uma opção para
4MEYER, 1996. 5Idem. 6TOGNOLO, 2015. 7Cf., por exemplo, MOLLIER, 2010; DONEGÁ, 2013; GRANJA, 2016; GODOI, 2016. 8Cf., por exemplo, PAIXÃO, 2012; SCHAPOCHNIK, 1999; ROCHA, 2011; BESSONE, 1999. 9Cf., por exemplo, DARNTON, 1998; LYONS, 1990; MORETTI, 2003. 10BESSONE, 1999, Cap.1 p.54-80; BESSONE, 2000. 11Cf. SOUZA, 2014.
12
compreender as práticas culturais existentes na capital imperial brasileira no Oitocentos12. Os
pregões de livros, em conjunto com outras fontes como os inventários post mortem, propiciaram
à pesquisadora uma análise fecunda das bibliotecas privadas de médicos e advogados do final
do século XIX no Rio de Janeiro. Bessone expõe a composição destes acervos, fortemente
marcados pela presença de obras de cunho profissionalizante e das Belas-Letras13, como
também a significativa assiduidade de autores franceses14. A investigação sugere até mesmo
que os donos de sebos, bibliófilos, além de consumidores comuns, formariam o público possível
de tais vendas de livros15. Nesta dissertação levamos em consideração esses resultados obtidos
por Tânia Bessone, ainda que sua investigação tenha como início a década de 1870, período
posterior à data limite desta pesquisa, que encerra seu arco temporal em 1868.
Já Daniela Montenegro centrou sua dissertação em verificar a existência e a
trajetória dos romances ingleses no início do século XIX no Rio de Janeiro, servindo-se de
diversos tipos de anúncios da Gazeta do Rio de Janeiro e do Diário do Rio de Janeiro,
utilizando também anúncios de leilões de livros16. No entanto, o ano de 1831 foi o último
estudado pela pesquisadora, ou seja, o seu período de análise é anterior ao deste trabalho e a
investigadora não se aprofundou nas vendas em hasta pública, como pretendemos fazer nesta
dissertação.
Assim, este trabalho visa, por meio dos anúncios dos três principais diários cariocas
do período, verificar a relevância dessa forma de compra e venda de livros em meados do século
XIX na capital brasileira da época, saber se os leilões de livros eram corriqueiros ou raros nesse
período e entender como essa atividade de venda se encaixava no mercado livreiro observando
quais impressos e de que forma eram leiloados. A pesquisa tem como objetivo também saber
quais obras eram postas em circulação por intermédio dos leilões e qual a relevância dos
romances em meio às outras obras postas à venda, tendo em vista a importância do gênero no
período tanto em escala nacional quanto internacional17. Para entender melhor os leilões de
livros em meados do XIX, os dados coletados serão comparados com outras formas de
circulação de impressos como acervos de bibliotecas públicas e anúncios de livreiros. Outro
objetivo da pesquisa é analisar o perfil socioeconômico dos proprietários de livros na capital
12BESSONE, 1999, p.68. 13Idem, p.79. 14Idem, p.31-32. 15Idem, p.78. 16SOUZA, 2014. 17ABREU, 2008a; ABREU, 2016.
13
imperial nessa época, de modo a compreender melhor parte dos sujeitos que possuíam livros,
quais livros, e tentar estabelecer correlações entre os proprietários e a posse de impressos,
especialmente romances. Cabe ainda a esta dissertação compreender a importância dos
leiloeiros, que ao anunciar e realizar os pregões de livros operavam como agentes culturais
Para realizar tal pesquisa foi imprescindível a utilização da Hemeroteca Digital
Brasileira18, que é uma plataforma digital da Biblioteca Nacional que congrega milhares de
periódicos, documentos e imagens dos séculos XIX e XX. Foi por intermédio dela que tivemos
acesso aos três jornais selecionados. Ela é um recurso importantíssimo para as pesquisas
históricas, no entanto, embora apresente potencialidades marcantes, também tem algumas
limitações.
A Hemeroteca permite ao pesquisador estar em contato com o periódico em questão
de modo mais amplo ou pormenorizado. Se o usuário quiser ter uma visão mais geral sobre os
periódicos desejados, ele poderá saber, por exemplo, por quantos anos cada jornal circulou e
quantas edições anuais cada diário teve. Mas se o pesquisador pretender ter resultados mais
específicos, ele conseguirá acessar todas as edições dos jornais, dia a dia. Selecionando uma
data, é possível ainda utilizar outras ferramentas como o zoom, facilitando a identificação de
letras miúdas ou apagadas, ou permitindo que o arquivo seja baixado para posteriores
investigações off-line.
Além desses recursos, outra ferramenta que atua de modo marcadamente benéfico
aos profissionais e curiosos é o Optical Character Recognition (OCR), que é uma tecnologia
cujo funcionamento permite reconhecer caracteres a partir de imagens. Desse modo, por
intermédio do OCR, podemos utilizar a busca por palavras, proporcionando a quem se serve
desta ferramenta selecionar um período, um local ou uma quantidade de periódicos e, em
seguida, efetuar a procura por determinada palavra nas páginas de tais jornais. O resultado
aparece em uma listagem de registros por jornal e viabiliza que o pesquisador investigue em
cada uma das ocorrências encontradas.
Embora a Hemeroteca capacite o pesquisador ou o curioso a realizar um trabalho
apurado, ela também tem alguns limites. Algumas edições dos periódicos estão faltando, outras
apresentam-se mutiladas, atrapalhando a análise correta do material, ou até mesmo ilegíveis.
Sobre o OCR e a busca por palavras, há de ser dito que a ferramenta não capta todos os registros
18A Hemeroteca Digital pode ser acessada no link: hemerotecadigital.bn.br.
14
da palavra selecionada, dado que a qualidade de alguns caracteres nas imagens está prejudicada
e eles encontram-se apagados, escritos com hífen, ou em formatos que impedem a ferramenta
de perceber aqueles caracteres como a palavra desejada.
Por isso, para realizar esta pesquisa, optamos pela leitura dia a dia em cada um dos
jornais, edição após edição. O resultado final foi que averiguamos 28.610 edições de jornais,
publicadas durante os 33 anos estudados, em busca dos anúncios de leilões de livros. Não
utilizamos o OCR dado que seus registros de buscas da palavra “Leilões” nos três periódicos e
no nosso período ficaram aquém da real presença de leilões nesses anos. A título de exemplo,
podemos citar o caso de janeiro de 1836, no qual a pesquisa por OCR deixou de registrar sete
dias nos quais encontramos anúncios de leilões. Alguns destes anúncios não registrados pelo
OCR continham livros.
Os três jornais aqui estudados tinham uma seção específica chamada LEILÕES,
geralmente em destaque, na qual eram arrolados os pregões que ocorreriam no mesmo dia da
edição ou nos subsequentes. Outros anúncios de vendas em hasta pública poderiam ser
encontrados em outras partes dos periódicos, na seção de AVISOS principalmente, entretanto,
optamos por não utilizar esses dados, tendo em vista que eles eram esparsos e, à primeira vista,
poucos. Coletar todos os anúncios de leilões de livros publicados nas seções AVISOS ou
ARREMATAÇÕES, por exemplo, triplicaria o trabalho de levantamento de dados e
acreditamos que não trariam uma quantidade relevante de anúncios de leilões de livros.
Os dados extraídos dos jornais foram inseridos no CITRIM, o banco de dados do
projeto Circulação Transatlântica dos Impressos, no qual se arrolam as informações levantadas
pelos pesquisadores do projeto temático19. Inicialmente, as obras ganham registros aos quais
vão se incorporando outras informações sobre de quais formas aqueles livros circularam
(publicação, tradução ou adaptação) e quais são os indícios de que aquelas obras tenham
circulado (anúncios em jornais, catálogos de livreiros, lista de censores, catálogos de
bibliotecas, espetáculos, críticas, anúncios de leilões de livros etc.). Os dados ficam à disposição
de todos os pesquisadores, que podem utilizar ferramentas de buscas dentro do banco ou até
mesmo cruzar as informações que desejarem.
As vantagens de usar um banco de dados construído de modo coletivo e com as
oportunidades que o CITRIM oferece são determinantes, pois há a possibilidade de estocar uma
19Disponível no endereço http://www.circulacaodosimpressos.iel.unicamp.br/ (acessado em: 22/07/2017)
http://www.circulacaodosimpressos.iel.unicamp.br/
15
quantidade muito grande de dados e esmiuçá-los de acordo com as necessidades das pesquisas.
Por intermédio da ferramenta de Busca Avançada é possível, a título de exemplo, saber quantas
edições, em quais línguas e em quais formatos um romance específico circulou em uma cidade
como o Rio de Janeiro em determinada época. Ou, por meio de anúncios de livreiros, leilões,
catálogos etc., saber se um autor estipulado era conhecido no período e a forma pelas quais suas
obras poderiam chegar às mãos dos leitores. Todos esses dados e seus prováveis
entrelaçamentos podem ser posteriormente listados e postos na forma de gráficos e tabelas,
facilitando a visualidade dos resultados finais.
A etapa seguinte da pesquisa foi o levantamento do perfil socioeconômico dos
leiloeiros ou agentes de leilões, como eram conhecidos na época, e de parte dos proprietários
que tiveram seus livros anunciados na seção LEILÕES. Alguns indivíduos citados nos
anúncios como possuidores de bibliotecas eram pessoas conhecidas, como por exemplo o
Visconde do Uruguai, tornando simples realizar o levantamento de seus perfis socioeconômicos
recorrendo a livros e artigos disponíveis online ou em bibliotecas. Já para os sujeitos menos
conhecidos, recorreu-se principalmente à internet para reunir informações sobre eles. O Google
foi o principal site de busca utilizado nessa etapa. Nele foram inseridos os nomes dos
proprietários e a partir daí alguns resultados surgiram, principalmente no Google Books20, o
que permitiu ler os trechos nos quais os nomes eram citados e verificar a obra integralmente
posteriormente off-line. No entanto, a principal fonte de dados foi a Hemeroteca Digital que,
por intermédio do OCR, possibilitou inserir o nome dos proprietários na busca por palavras e
encontrar informações relevantes sobre eles e sobre os leiloeiros em uma fonte contemporânea
a eles mesmos. Os jornais do século XIX no Rio de Janeiro continham seções sobre o
movimento de passageiros nos portos, obituários, sessões da câmara, boletins judiciários,
avisos, anúncios, notícias em geral e outras, que permitiram coletar dados sobre o perfil desses
sujeitos, por exemplo, os obituários normalmente continham a causa da morte, a idade e a
nacionalidade do falecido.
As informações destacadas nos anúncios forneceram elementos preciosos para
analisar questões pertinentes ao estudo da História do Livro e da Leitura no século XIX, como,
por exemplo, a composição das bibliotecas privadas entre 1836-1868, quais títulos, autores,
gêneros literários e áreas do saber estavam contidas nos acervos particulares do período. Os
anúncios de leilões de livros traziam dados que suportariam responder de forma parcial algumas
20Disponível em: https://books.google.com.br
16
dessas questões, uma vez que alguns deles indicam títulos, autores, gêneros e áreas do saber.
No entanto, não são todos os anúncios que indicam se os livros citados são apenas parte da
biblioteca de determinado proprietário ou se são a sua versão integral, ou seja, ao citar vinte
títulos, por exemplo, por vezes não sabemos se o proprietário tinha somente essas obras ou se
elas representavam somente uma fração de seu acervo. Assim, os pregões de livros podem servir
como peças de um quebra-cabeça maior que seria a composições dos acervos privados cariocas
no período.
Os anúncios de venda em hasta pública possibilitaram ainda observar parte das
línguas predominantes nas coleções pessoais, pois mesmo não tendo acesso a todos os idiomas
que compunham os acervos, alguns eram comumente destacados nos reclames.
Alguns anúncios estipulavam a quantidade de obras presentes nas bibliotecas a
serem leiloadas, indicando qual a ordem de grandeza das bibliotecas privadas cariocas na
metade do século XIX. Evidentemente, o proprietário não era obrigado a se desfazer de todas
suas obras, porém alguns anúncios informam a quantidade de livros que o acervo continha,
permitindo um discernimento aproximado de um padrão comum às bibliotecas privadas do
período, centenas, dezenas ou milhares de livros.
Outra informação relevante contida nos anúncios de leilões de livros é o motivo
alegado pelos quais as bibliotecas privadas eram postas em leilão. Esse elemento nos ajuda a
pensar a relação que as pessoas da época tinham com suas obras, se as viam como meros objetos
a serem vendidos para angariar fundos ou, pelo contrário, somente vendiam seus livros em
situações incontornáveis, como por exemplo, viagens para a Europa nas quais eram deixados
para traz os móveis, joias, escravos e outros bens de valor.
Por vezes os anúncios citavam os nomes dos proprietários dos livros a serem
leiloados, permitindo desse modo correlacionar os livros e as pessoas, saber quem era parte dos
possuidores de bibliotecas em meados do Oitocentos na capital imperial. No entanto, há de ser
dito que livros de diversos membros de uma família poderiam ser arrolados sob o nome de um
proprietário no momento de divulgação do leilão. Além disso, tais proprietários podem ser no
máximo enquadrados como possíveis leitores, estando vedada a correlação direta entre posse
de livros e leitura ou uma percepção do gosto literário de tais sujeitos. Esta limitação se dá
graças à incerteza em relação à efetiva leitura das obras anunciadas e a frágil ligação entre posse
de livros e predileção literária, uma vez que as bibliotecas eram formadas por livros comprados
17
em livreiros ou até leilões, mas também poderiam ser herdados ou recebidos de presente, bem
como poderiam também pertencer a vários membros da família21. Assim, os anúncios não nos
oferecem muitos elementos para pensar sobre perfis individuais de leitores, mas podem ser
ferramentas muito importantes na detecção de padrões e tendências. Ao elencar os livros
localizados em diversas bibliotecas do período podemos começar a perceber a presença
marcante de alguns gêneros literários, em determinadas línguas e formatos, podendo até mesmo
correlacioná-los com o perfil socioeconômico de seus proprietários.
Como veremos mais detalhadamente adiante, as propagandas de leilões de livros
provavelmente foram eventos elaborados pela mente dos leiloeiros. Diferentes dos catálogos de
leilões, os anúncios tinham que ser mais enxutos, dado que eram apenas reclames cujo objetivo
era informar acerca da venda, atrair público e, eventualmente, chamar a atenção para a
existência de um catálogo com o arrolamento detalhado dos títulos, que seria distribuído junto
com os jornais ou disponibilizado nos armazéns dos próprios leiloeiros. Pesa ainda sobre a
brevidade dos anúncios o fato de que os jornais cobravam pelo espaço da propaganda. Assim,
os agentes de leilões, se viam na necessidade de operar recortes no todo, destacando aquelas
obras que trariam certo público a seus pregões. Essa condição particular posta aos leiloeiros é
de suma importância para este estudo, pois mostra a forma como os pregoeiros do período viam
o mercado livreiro e permite perceber as estratégias por eles empregadas para atrair as pessoas
aos leilões. Se os livreiros editores eram responsáveis por revelar autores, fazer circular as
novidades impressas vindas de outros países, tentar incutir no público alguma predileção por
determinada obra ainda desconhecida, o mesmo não vale para os leiloeiros. Ao contrário dos
livreiros, eles lidavam com um conjunto limitado e diverso de títulos a cada vez que realizavam
o leilão, e não poderiam selecionar o que seria posto à venda, o que provavelmente exigiria
ainda mais tino comercial para captar o que despertaria o interesse do público naquele acervo
específico e materializar em forma de anúncio uma fórmula que atrairia as pessoas ao pregão.
Os agentes de leilões tinham tempo limitado para propagandear o pregão, semanas ou até
mesmo dias, logo, não poderiam se dar ao luxo de fazer anúncios recorrentes por grandes
períodos como os livreiros faziam. Os pregoeiros tinham que estar sintonizados com as obras
já demandada pelo público. Nesse sentido, os leiloeiros, pela sua prática e experiência, podem
servir como uma espécie de termômetro de quais livros potencialmente tinham apelo de público
21ABREU, 2013b.
18
nesse período, o que se torna ainda mais interessante, pois podemos ter uma noção de como
esses sujeitos percebiam o mercado livreiro na época.
É necessário salientar que nesta dissertação tivemos o cuidado de recorrer aos três
principais jornais em atividade na capital imperial em meados do século XIX, a saber: Correio
Mercantil, Diário do Rio de Janeiro e Jornal do Commercio. Nesta parte iremos apresentar
brevemente esses três jornais.
Nelson Werneck Sodré em História da imprensa no Brasil aponta que o Correio
Mercantil, cuja existência data de janeiro de 1848 a novembro de 1868, “pertencia a Joaquim
Francisco Alves Branco Muniz Barreto, que entregou a sua direção ao genro, Francisco
Otaviano de Almeida Rosa”22. Neste jornal, teria Francisco Otaviano reunido “os melhores
intelectuais do tempo”23, entre eles estariam Manuel Antônio de Almeida, cuja obra Memórias
de um sargento de milícias foi publicada em folhetim no mesmo periódico, José de Alencar,
que escrevia crônicas no rodapé aos domingos24, e Machado de Assis25. Ainda segundo Sodré,
uma particularidade importante do Correio Mercantil era o fato de adotar um posicionamento
político alinhado aos liberais26.
Já o Diário do Rio de Janeiro teve sua primeira edição no dia 1º de junho de 1821,
fundado e regido por Zeferino Vito de Meireles. Anos depois, o fundador do periódico foi alvo
de um atentado pelo qual não sairia vivo, sendo sucedido por Antônio Maria Jourdan27. O diário
contou com diversos colaboradores ilustres, como, por exemplo, José de Alencar, que ocupou
cargo de redator-chefe e publicou diversas obras na seção destinada aos folhetins28, Saldanha
Marinho, Quintino Bocaiuva29 e Machado de Assis30.
Por último vamos abordar brevemente aquele periódico que Laurence Hallewell,
em O livro no Brasil: sua história, classificou como “o mais importante jornal carioca”31: o
Jornal do Commercio.
22SODRÉ, 1999, p.190. 23Idem, Ibidem. 24Idem, Ibidem. 25Idem, p.268. 26Idem, p.190. 27Idem, p.51. 28 Idem, p.191, 29Idem, p.259. 30Idem, p.268. 31HALLEWELL, 1985, p.70.
19
O fundador do periódico foi o francês Pierre Plancher, que emigrou para o Brasil
por motivos políticos. O diário veio à luz pela primeira vez no dia 1º de outubro de 1827 e
encerrou suas atividades no dia 29 de abril de 2016, alegando problemas financeiros32,
tornando-se assim o jornal mais antigo em circulação na américa latina33.
Pierre Plancher retornou à França e deixou o jornal a cargo de Emil Seignot, que o
vendeu a Julius de Villeneuve e Reol de Mongenot. Após Villeneuve comprar a parte de
Mongenot, ele se junta a Francisco Antonio Picot, parceria essa que duraria até que em 1890
José Carlos Rodrigues adquiriu a propriedade do diário. A folha ficou marcada pela sua
preocupação em fornecer relevantes informações comerciais e políticas, sendo comumente
retratada como um periódico conservador34. Diversos letrados importantes do período
participaram do Jornal do Commercio, como, por exemplo, Joaquim Manuel de Macedo35 e
Raul Pompéia36.
Os três jornais, cada um a seu modo, tiveram relevância literária, política,
quantidade destacada de anúncios, qualidade notável, ao menos de alguns de seus
colaboradores, e, tendo em vista que a maior parte dos jornais do período tinha circulação
efêmera37, esses periódicos se destacaram pela quantidade de anos que estiveram em atividade
no disputado mercado de periódicos da capital imperial no século XIX.
O aspecto físico dos três impressos é muito semelhante. Todos eles contêm em
média quatro páginas, salvo os dias nos quais os diários são acompanhados de algum
“suplemento”. A primeira página deles apresenta em letras garrafais o nome do periódico, o dia
e o número daquela edição, bem como os preços das assinaturas de cada um deles. São
compostos por textos divididos em colunas verticais e segmentados por diversas seções, como,
por exemplo, “Declarações”, “Avisos Marítimos”, “Parte Commercial”, “Noticias Diversas”,
“Annuncios”, entre outras.
32Conferir a notícia do fechamento do jornal em: http://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2016-04-28/jornal-do-
commercio-fecha-as-portas.html {acessado em: 20/07/2017} 33Cf. Disponível em: http://www.diariosassociados.com.br/home/veiculos.php?co_veiculo=35 (acessado em:
20/07/2017) 34SODRE, 1999, p.109-111, 190. 35Idem, p.244. 36 Idem, p.265. 37HEINEBERG, 2008, p.500.
http://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2016-04-28/jornal-do-commercio-fecha-as-portas.htmlhttp://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2016-04-28/jornal-do-commercio-fecha-as-portas.htmlhttp://www.diariosassociados.com.br/home/veiculos.php?co_veiculo=35
20
Para realizar esta dissertação nos focamos exclusivamente na seção intitulada
“Leilões”. Ela se encontrava, principalmente, na segunda ou terceira páginas em todos os
periódicos e carregava o título LEILÕES, em caixa alta e negrito.
Anúncio 1: Título da seção “LEILÕES”. Correio Mercantil. 13 de janeiro de 1850.
Esta dissertação será dividida em três capítulos e uma conclusão. No primeiro
capítulo será apresentada a venda por leilões. Discutiremos rapidamente os leilões em vários
registros, em imagens, em relatos de viagens e até mesmo obras de ficção.
No segundo capítulo traremos os dados extraídos dos anúncios de leilões,
informando sua quantidade total, quantos continham livros, quais os campos de saber mais
presentes nos anúncios, quais os autores e as obras mais marcantes, bem como quais as línguas
mais presentes nos reclames. Abordaremos também o perfil dos agentes de leilões, investigando
sua origem nacional, sua atuação profissional e parcerias comerciais, analisando o modo como
eles se utilizavam dos anúncios como forma comercial para atrair público aos leilões, buscando
compreender, por intermédio das escolhas efetuadas por eles na composição dos anúncios,
como estes homens viam o mercado livreiro do período e sua atuação enquanto passeurs
culturels38.
O terceiro capítulo será destinado a analisar a presença dos romances e romancistas
nos anúncios de leilões, devido ao fato de o romance ser um gênero em ascensão no século XIX
e um importante elemento do mundo editorial brasileiro e europeu39. O objetivo é perceber qual
a importância da prosa ficcional nos anúncios de leilões de livros e comparar com outras formas
de circulação de impressos no período, tais como vendas em livrarias e acervos de bibliotecas.
Uma parte do capítulo abordará o perfil socioeconômico dos proprietários cujas bibliotecas
continham romances e foram a leilão. Desse modo, analisaremos a posse de livros buscando
padrões e tendências nos acervos e nos perfis estudados.
38COOPER-RICHET, 2013. 39ABREU, 2008a.
21
A conclusão tentará responder aos questionamentos iniciais, que deram origem a
esta dissertação, tais como: os leilões eram comuns no Rio de Janeiro nesse período? Os pregões
que continham livros eram comuns? Quais livros foram anunciados para serem vendidos em
hasta pública? Qual a presença dos romances entre as obras postas à venda? Quem fosse aos
leilões encontraria as mesmas obras que constavam nas bibliotecas públicas e privadas ou em
livrarias? Quem eram os sujeitos que possuíam romances em suas bibliotecas na capital
imperial? Qual o papel do pregoeiro enquanto mediador cultural?
22
Capítulo 1
Os Leilões
Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três, vendido! Quem nunca ouviu esta sentença
que atire a primeira pedra. Todos nós, em nossas vidas, já entramos em contato de alguma forma
com leilões, já ouvimos falar, lemos notícias sobre ou até mesmo participamos de tais eventos.
O dicionário online Michaelis fornece algumas definições do que são tais eventos: “1 Evento
público em que são vendidos objetos a quem oferece o maior lance; hasta, leiloamento, pregão
(...) 2 JUR V. hasta pública. 3 Venda de um conjunto variado de prendas que, geralmente em
quermesses e festas religiosas, são oferecidas para auferir dinheiro em benefício da instituição
que promove o evento”40.
Nos dias de hoje podemos nos deparar com diversas formas de vendas de produtos
e bens na forma de leilões. Como exemplo, podemos citar os leilões de carros, casas e outros
itens advindos, principalmente, de bancos ou do governo que tomam as propriedades das
pessoas que não conseguem pagar suas dívidas com essas instituições. Museus e proprietários
de obras artísticas muito requisitadas comumente recorrem aos pregões para comprar ou vender
quadros e outros objetos, vendas estas que alcançam facilmente a casa dos milhões de reais.
E há também pregões de livros. Realizando uma pesquisa rápida na internet,
podemos ter acesso a diversos sites que fornecem datas de leilões já ocorridos ou que ainda
estão por vir41. Nestas ocasiões são postas à venda, na maioria das vezes, edições raras,
autografadas ou antigas, podendo ser arrematadas, a depender do leilão, de forma presencial ou
até mesmo online.
Se temos uma noção de como são os leilões do século XXI, o mesmo não acontece
com os pregões no século XIX. Um dos objetivos deste primeiro capítulo é ambientar o leitor
em relação a como eram as vendas em hasta pública neste período, em que locais eram feitas,
de que modo, quem eram seus possíveis arrematadores, que bens eram leiloados etc. Esta
ambientação será importante para a compreensão dos anúncios de leilão de livros que serão
discutidos no segundo e terceiro capítulos.
40Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/leil%C3%A3o/
(acessado em: 20/05/2017) 41Por exemplo: http://www.veranunesleiloes.com.br/ (acessado em: 12/02/2017)
http://www.babelleiloes.com.br/leilao.asp?Num=6587 (acessado em: 12/02/2017)
http://michaelis.uol.com.br/busca?palavra=hasta&expressao=hasta%20pública&r=0&f=0&t=0http://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/leilão/http://www.veranunesleiloes.com.br/http://www.babelleiloes.com.br/leilao.asp?Num=6587
23
Para aproximar o leitor dos leilões de livros realizados no século XIX, recorreremos
a três formas de representações desses acontecimentos: imagens, relatos de viajantes e
romances. Infelizmente, essas fontes não são muito abundantes, por isso, alargamos o período
e o espaço considerados para dar um panorama da atividade, incluindo dados sobre Estados
Unidos e Europa ao longo de todo o século.
1.1. Imagens
Para começar a discutir a forma como eram realizados os leilões no XIX,
começaremos analisando uma representação de leilão domiciliar:
Imagem 1: “An Auction of splendid household furniture, to be sold without reserve” [Leilão de esplêndido
mobiliário doméstico, a ser vendido sem nenhuma reserva]42
.
A ilustração está presente no periódico norte americano Harper’s Weekly. A
Journal of Civilization no dia 03 de abril de 185843. A imagem é uma representação de parte de
42Disponível em: https://archive.org/stream/harpersweekl00bonn#page/208/mode/2up/search/april (acessado em:
05/08/2017) 43Harper’s Weekly. A Journal of Civilization. New York, Vol. II, No. 66, 3 de abril de 1858, p.209.
https://archive.org/stream/harpersweekl00bonn#page/208/mode/2up/search/april
24
uma história, talvez fictícia, contada por um narrador anônimo sobre suas experiências em
comprar mobílias em leilão. Em seu relato ele explica que na necessidade de mobiliar sua nova
casa optou, junto com sua esposa Carrie, por recorrer às vendas em leilão para arrematar alguns
itens de mobiliário a preços cômodos. No entanto, depois de ir a três pregões ele percebeu que
essas vendas na realidade eram falsas, uma vez que diziam tratar de móveis deixados por
famílias ricas que se mudaram ou pelo falecimento de um cidadão importante, mas na realidade
eram móveis advindos de fabricantes da vizinhança, sem nunca ter existido nem famílias nem
o indivíduo falecido. Além da mentira em relação ao motivo do leilão, parte da audiência era
formada por pessoas contratadas para inflamar as ofertas dos itens à venda. Essa história expõe
um problema que aparentemente era comum em Nova York em meados do século XIX44 e
mostra certa desconfiança em relação às vendas em hasta pública.
A imagem ilustra o primeiro leilão no qual o casal comprou alguns itens. Este
pregão foi localizado por Carrie ao ler um jornal que anunciava a data e o local do evento. O
próprio narrador nos conta o modo como percebeu a ocasião, logo ao chegar, adjetivando o
leilão como uma multidão variada como há tempos ele vem observando45. Relata que na
multidão havia homens idosos, alguns casais jovens como ele e sua esposa, judeus, irlandeses
e algumas pessoas “chiques”46. Aponta também alguns itens à venda, como “taças de vinho
quebradas”, “tapete de Bruxelas”, um “relógio fino francês” etc47. Pela quantidade de pessoas
destacadas na imagem, bem como pelo aparente acidente representado no lado esquerdo no qual
uma senhora deixa cair uma pilha de pratos, parece que a cena ilustra um ambiente um tanto
quanto caótico. Percebe-se ainda um tom satírico na imagem quando é posta em contraste com
a própria legenda e o anúncio do leilão. O anúncio visto por Carrie e seu marido indicava que
o pregão dizia respeito a “toda a mobília de uma família rica que se muda para a Europa”48, já
a legenda da imagem usa o adjetivo “esplêndido”49 para qualificar o próprio evento. No entanto,
tanto a imagem, que apresenta miudezas como xícaras, pratos quebrados etc., quanto a
descrição dos itens à venda, taças de vinho quebradas, porcelanas “reais da Sevres chinesa”50
Disponível em: https://archive.org/stream/harpersweekl00bonn#page/208/mode/2up/search/april (acessado em:
05/05/2017) 44Cf: http://www.nytimes.com/1860/10/03/news/swindling-auction-shops.html (acessado em: 05/05/2017) http://www.librarycompany.org/shadoweconomy/section7_4.htm (acessado em: 05/05/2017) 45Harper’s Weekly. A Journal of Civilization. New York, Vol. II, No. 66, 3 de abril de 1858, p.209. 46“fancy” {Todas as traduções contidas nessa dissertação são minhas, exceto quando o nome do tradutor for
explicitamente indicado}. Idem, Ibidem. 47“broken wine-glasses” “Brussels carpet” “fine French clock” Idem, Ibidem. 48“the entire forniture of a wealthy family going to Europa” Idem, Ibidem. 49“Splendid” Idem, Ibidem. 50“real Sevres china” Idem, Ibidem.
https://archive.org/stream/harpersweekl00bonn#page/208/mode/2up/search/aprilhttp://www.nytimes.com/1860/10/03/news/swindling-auction-shops.htmlhttp://www.librarycompany.org/shadoweconomy/section7_4.htm
25
etc., o próprio nome do “bem conhecido” 51 leiloeiro “D...Hombug”52, servem de contraponto
irônico ao anúncio e à legenda.
Em todo o desenho encontram-se diversos itens sendo inspecionados pelos
arrematadores, um casal examina o que poderia ser um balanço para bebês, duas senhoras na
parte de baixo do quadro avaliam mais de perto algumas miudezas que parecem ter sido
arrematadas. Gostaríamos de destacar a presença de um senhor de cartola no canto direito da
imagem:
Imagem 2: Detalhe de “An Auction of splendid household furniture, to be sold without reserve” [Leilão de
esplêndido mobiliário doméstico, a ser vendido sem nenhuma reserva].
Este senhor dedica-se à leitura de um volume que ele provavelmente retirou do
armário de livros à sua frente. Este móvel, que está de portas abertas, parece comportar uma
quantidade considerável de livros. Levando-se em consideração que este homem está
manuseando uma dessas obras, podemos supor que tais volumes também estariam sendo postos
em pregão e, a julgar pelo aparente interesse deste senhor de cartola, parece que já há um
possível comprador.
51“Well-known” Idem, Ibidem. 52 Humbug, como explana o Cambridge Dictionary, seria alguém que fala, escreve ou se comporta de modo
desonesto na tentativa de enganar as pessoas. Disponível em:
https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/humbug
https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/humbug
26
Imagem 3: “Une vente d’esclaves, à Rio-de-Janeiro” [Uma venda de escravos no Rio de Janeiro]
A Imagem 3 também se refere a um pregão realizado no interior de uma residência,
no entanto, esse quadro merece especial atenção, por ser uma imagem de E. Riou representando
um leilão relatado pelo francês François-Auguste Biard enquanto visitou o Rio de Janeiro entre
os anos 1858 e 185953. Homens brancos de cartola e bem vestidos perambulam pela casa, em
sua maioria conversando entre si. O leiloeiro, em cima de uma cadeira, levanta com sua mão
direita seu martelo de madeira e com a esquerda aponta uma pequena criança negra agarrada,
provavelmente, à sua mãe. Nem só os cativos estão sendo vendidos, outros objetos povoam a
imagem, um móvel, um instrumento musical, um relógio, um vaso, pratos e ao menos dois
livros. Como será melhor explicado no capítulo 2, leilões nos quais eram postos à venda
diversos bens como na figura eram frequentes na capital no período. Nesta imagem podemos
ver que alguns prováveis arrematantes examinam algumas propriedades em leilão, por exemplo,
um homem agachado investiga algum objeto, outro averígua os dentes de uma escrava. Na
Imagem 1 também podem ser notadas algumas pessoas que observam atentamente
determinados objetos, como já citado, as duas mulheres no canto inferior da imagem olham
xícaras e miudezas, um casal que parece inspecionar o que parece ser um balanço para bebês e
ao fundo um homem manipula um volume provavelmente retirado da estante de livros.
53
BIARD, 1862.
27
Notando-se, desse modo, em ambas as imagens, uma preocupação com a qualidade e o aspecto
material dos bens postos em leilão. A Imagem 3 também pode ser interpretada no registro da
caricatura, tendo em vista a excessiva precariedade do local, a centralidade dada ao exame da
escrava disposta no centro da imagem, e da própria característica do ambiente retratado por
Biard. Ele afirmou em seu relato de viagem ter participado de duas vendas de escravos no
mesmo dia, estabelecendo que a única diferença entre elas foi que em uma o leiloeiro estava
em cima de uma cadeira e na outra o negociante realizava a venda de pé sobre uma caixa de
queijo54.
Os livros, no entanto, como apontam algumas figurações de leilões, também
ganhavam pregões exclusivos para eles. A casa de leilões Sotheby’s, fundada no século XVIII
na Inglaterra, é representada na Imagem 4.
Imagem 4: “A Book-Sale at Sotheby’s Auction-Room”. [Venda de livros na sala de leilões da Sotheby’s]
55
54Idem, p.97. 55A Book-Sale at Sotheby’s Auction-Room. The Graphic, London: 26 de Maio de 1888. Gravura em madeira. Disponível em: http://www.quaritch.com/services/commissions/ (acessado em: 22/05/2017) https://www.georgeglazer.com/prints/business/bookauct.html (acessado em: 22/05/2017)
http://www.quaritch.com/services/commissions/https://www.georgeglazer.com/prints/business/bookauct.html
28
Diferentemente das Imagens 1 e 3 nas quais os pregões ocorriam dentro da casa de
particulares, na representação acima temos a ilustração de um leilão de livros transcorrido na
sala de pregões de uma casa de leilões inglesa. Na cena podemos notar que o leiloeiro está atrás
de um púlpito e ao seu lado direito encontra-se uma bancada de madeira na qual se encontra
um funcionário da casa fazendo anotações das vendas. Observando a sobriedade do ambiente,
a organização, a ausência de itens improvisados como um leiloeiro em cima de uma cadeira ou
de uma caixa de queijo, podemos notar mais claramente as características satíricas e caricaturais
das duas imagens precedentes. A Imagem 4 representa uma clientela composta por homens
adultos, salvo um garoto em primeiro plano, brancos, barbudos, bem vestidos e em sua maioria
sentados em uma mesa ovalar que contém alguns papéis. A sala é circundada por estantes
repletas de volumes que talvez estivessem em leilão. Um provável funcionário da empresa
utiliza uma escada para retirar um livro destas mesmas estantes. No centro da imagem um
senhor avalia atentamente uma obra em suas mãos, provavelmente um exemplar recentemente
arrematado ou por arrematar, indicando novamente a importância dada ao manejo e averiguação
dos objetos a serem comprados nessas vendas.
Acreditamos ser importante adicionar uma quinta imagem às já aqui discutidas. A
peculiaridade desta imagem está no fato de que ela é uma representação das vendas em leilão
por vezes disponibilizada por alguns jornais brasileiros no século XIX, sendo posta ao lado dos
anúncios de leilões do dia, como segue:
29
Imagem 5: Diário de Pernambuco. 05 de julho de 1853.
A imagem, trazendo ao fundo a representação de navios, bem como a presença de
caixas amontoadas e o leiloeiro, ao ar livre, aparentemente em cima de algum púlpito
improvisado, provavelmente traria à mente dos leitores a associação com uma outra forma de
leilões, aqueles realizados no porto. Normalmente eram mercadorias chegadas de outros países,
como no anuncia acima, bem como itens avariados durante o trajeto percorrido pela embarcação
ou, ainda, vendas em leilões públicos dos próprios barcos e dos bens que eles continham.
Podemos perceber ao fundo da imagem as velas de algumas embarcações e no canto direito o
leiloeiro de pé em cima de algum tablado ou algo parecido que o ponha em destaque em relação
aos prováveis arrematantes dispostos na parte de baixo da imagem. Na parte superior da
representação nossos olhos são guiados para o braço direito estendido do leiloeiro que segura
seu martelo, enquanto seu braço esquerdo está abaixado apontando algumas caixas que,
aparentemente, são os produtos em leilão ou o que elas contêm está à venda.
Avaliando as imagens percebemos que vários elementos compunham a imaginação
destes artistas em relação ao que poderia estar à venda nos pregões em espaço público ou
privado: escravos, louças, móveis e livros. A recorrência apresentada nos quadros de que os
livros poderiam ser postos em leilão conjuntamente com outros bens ou ter vendas em hastas
públicas próprias pode indicar, a priori, que tais itens poderiam ser comumente requisitados
30
nesses eventos. Pela quantidade de pessoas representadas nas imagens, tal modalidade de
compra e venda de itens parecia ser bem frequentada no século XIX. Também se destaca nessas
imagens que os arrematadores manuseavam e inspecionavam os itens à venda, tanto escravos
quanto livros. Percebemos ainda que, segundo as ilustrações, os leiloeiros parecem ocupar
posição de destaque, visto que em todas as quatro imagens de leilões ele está representado e em
posição proeminente.
1.2. Relatos de viajantes
Outra manifestação na qual podem ser encontradas representações de leilões de
livros no século XIX, desta vez mais detidamente sobre o Rio de Janeiro, são as descrições de
estrangeiros que viveram por algum tempo nessa capital brasileira. Destacaremos os relatos de
um norte americano e um inglês que puseram no papel suas experiências com leilões nessa
cidade, mais especificamente pregões que tinham livros como seu principal e único produto.
Daniel Kidder nasceu nos Estados Unidos em 1815 e esteve no Rio de Janeiro em
duas ocasiões, de 1836 a 1837 e de 1840 a 1842. Ao retornar para casa escreveu um relato de
suas memórias vividas no Brasil, intitulado Sketches of residence and travels in Brazil,
embracing Historical and geographical notices of the empire and its several provinces, em
184556.
Nesta obra o norte americano tece considerações sobre diversos aspectos da vida
dos cariocas do período e sobre várias instituições e costumes da época. Os livros e os leitores
não passaram desapercebidos pela percepção deste viajante, criticando o relativo desprezo dos
brasileiros em relação à leitura57. Sobre a Biblioteca Nacional e Pública ele elogia o ambiente
e o acervo, mas acrescenta que “apesar de todos esses atrativos nunca vimos o salão cheio; ao
contrário, frequentemente vimo-lo vazio”58.
Continuando sua crítica ao modo como os cariocas se relacionam com os livros,
Kidder assevera que há um período de decadência literária em Portugal dado o ataque à pureza
da língua por intermédio do uso dos galicismos. Diz também que novelas baratas dos folhetins
parisienses necessitam ser traduzidas para surgir em Lisboa ou no Rio de Janeiro. Esta literatura,
que ele adjetiva como “inútil” e “prejudicial”, inibe a busca pelas obras originais e
56KIDDER, 1845. 57Sobre a relação dos viajantes com a cultura letrada brasileira, conferir ABREU, 2006. 58KIDDER, 2001, p.103.
31
substanciosas. Assim, ele indica tais motivos como principais explicativos do estoque de livros
franceses nas livraria e bibliotecas cariocas59.
Ainda sobre esse tema, Daniel Kidder diz que em
Quase todos os navios procedentes do Havre trazem grandes quantidades de livros
para serem vendidos em leilão, sendo bastante frequentes tais vendas. Os europeus
que regressam às suas pátrias ou os brasileiros que vão para o estrangeiro, em geral
dispõem de suas bibliotecas ao correr do martelo. Faz pena, às vezes verificar-se, em
tais ocasiões, como é grande a quantidade de livros profanos em circulação. As obras
de Voltaire, Volney e Rousseau são quase diariamente oferecidas aos que fazem
maiores lances, e, para elas, há sempre compradores60
.
Este depoimento é muito importante para termos acesso a uma visão sobre essa
forma de compra e venda de livros no Rio de Janeiro recém independente. Ele demonstra um
tipo de comércio livreiro não levado em conta tradicionalmente quando se estuda os modos de
vendas de obras nesse período e nessa época, que geralmente acabam centrando-se somente nas
livrarias e menos frequentemente em lojas diversas que também tinham livros entre os itens a
serem vendidos. O americano explicita ainda que não eram eventos esparsos e simples,
comportavam muitos livros, eram frequentes e “quase todos” os navios do Havre realizavam
esses pregões, provavelmente, no porto. Ou seja, parecia ser uma atividade importante de
compra e venda de impressos nesta época.
Em seguida Kidder sublinha ainda que os estrangeiros que retornavam às suas
respectivas pátrias lançavam mão dos leilões de livros. Os anúncios de leilões de bibliotecas
privadas analisados nesta dissertação corroboram com essa percepção, indicando que este era
um dos motivos preponderantes pelos quais livros eram postos à venda em hasta pública, como
se verá adiante.
Sobre os livros postos em leilão, o norte americano guarda suas críticas mais
ferrenhas. Afirmando que obras “profanas” eram postas “diariamente” à disposição de
compradores, Kidder parece estar fazendo uma advertência aos seus leitores. Logo em seguida,
ele assinala que tais obras “profanas” são identificadas com os filósofos iluministas,
asseverando que para elas sempre havia público certo. Esta passagem deixa transparecer as
concepções religiosas e políticas do autor, que era um missionário metodista, cuja expedição
em terras brasileiras era em parte para espalhar a mensagem dos evangelhos no Brasil. Logo,
fica claro o tom de censura ao se referir aos autores iluministas, à medida que, ao criticar as
59Idem, Ibidem. 60Idem, Ibidem.
32
obras “profanas”, Kidder se posiciona como contrário a elas e, ao afirmar o acolhimento de tais
livros por parte dos leitores cariocas, ele está reiterando a importância de seu trabalho
evangelizador em solo brasileiro.
O segundo viajante que também teceu alguns comentários sobre livros leiloados foi
John Luccock, um comerciante inglês que esteve no Brasil entre os anos 1808 e 1818.
Em seu livro Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil o viajante
relembra quando tomou conhecimento de uma venda de leilões:
Em 1818, em um leilão de livros, as obras inglesas, assim como algumas latinas, foram
bem vendidas; mas poucas, creio eu, caíram em mãos brasileiras. Livros franceses são
procurados, mas foi impossível, por quaisquer meios, vender uma edição de Glasgow
da Iliada de Homero, em Grego, a Septuaginta e O Novo Testamento na mesma
língua, nem mesmo os Lexicons de Hederic e Schrevelius, nem sequer um Saltério
hebraico com tradução latina encontrou um comprador61
.
O relato de John Luccock se assemelha em parte ao de Daniel Kidder. Luccock
também concorda que os livros franceses são visados pelo público, no entanto, relata a venda
de obras inglesas e “algumas latinas”. Porém, com aparente infelicidade, ele destaca cinco
livros, três em grego e dois em latim, línguas consideradas elevadas, que foram deixados de
lado pelos compradores. Assevera ainda que as obras vendidas na ocasião caíram em mãos de
estrangeiras, indicando um possível público dos leilões no Rio de Janeiro na época.
Logo, segundo os depoimentos dos dois viajantes, os leilões de livros eram
correntes no Rio de Janeiro até meados do século XIX. Os livros em francês ganhavam a
preferência do público arrematante, em oposição aos clássicos gregos e latinos. Os estrangeiros
dispunham de seus bens em leilão para retornar às suas pátrias e provavelmente seus livros
iriam parar nas mãos de outros estrangeiros que moravam em solo brasileiro – elementos que
são, parcialmente, ratificados pelas análises dos anúncios publicados em periódicos
fluminenses, como se verá a seguir.
No entanto, os dois relatos de viagens no Rio de Janeiro não podem ser tomados
como representações fiéis da realidade fluminense, à medida que ambos vêm de formações
61“In 1818, at a Sale of Books, English Works went off well, as did some Latin ones; but few, I believe, fell into
Brazilian hands. French Books are in demand; but it was impossible, by any means, to sell the Glasgow Edition of
Homer’s Iliad, in Greek; thw Septuagint and New Testament in the same language, Hederic’s nor even
Schrevelius’s Lexicons; nor did a Hebrew Psalter, with a Latin Translation, find a customer” (LUCCOCK, 1820,
p.574-575).
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culturais específicas, são religiosos e estrangeiros, o que proporciona uma espécie de filtro e
crítica do que seus olhos viam, como nos explica Márcia Abreu:
Pensando encontrar aqui uma não-Europa, os viajantes vão apagar, diminuir ou
desqualificar sinais de cultura erudita ou letrada com que se depararem. O contato
com o mundo das letras no Brasil, avaliado a partir de critérios próprios aos grandes
centros europeus, inevitavelmente pareceria irrelevante62
.
Assim, todos os depoimentos desses dois viajantes, bem como a própria Imagem 3
feita a partir dos relatos de François-Auguste Biard, devem ser tomados com extrema cautela.
O segundo depoimento, por exemplo, no qual consta que os livros franceses nessa época eram
preferidos em relação aos clássicos latinos e gregos, carece ainda de maiores dados que
comprovem essa perspectiva. Tomar os textos dos viajantes como fontes do que realmente eram
os pregões de impressos no século XIX, de forma isolada, enfraqueceria o esforço de saber
como eram os leilões de livros em meados do século XIX no Rio de Janeiro. Porém, ao cruzar
as percepções desses estrangeiros com os quadros que ilustravam essa forma de compra e
venda, as representações de pregões contidas em romances e os próprios anúncios analisados
nesta dissertação, chegaremos a uma ideia mais objetiva de como eram os leilões de livros em
meados do XIX na capital imperial.
1.3. Romances
Encontramos representações de leilões em alguns romances do século XIX. Aqui
recorreremos a cinco exemplos que deem uma noção de como poderiam ser esses eventos, o
que poderia ser posto à venda, quem seriam seus prováveis compradores etc. Como também
nos interessa sublinhar que as vendas em hasta pública aconteciam em outras partes do mundo,
traremos dois exemplos estrangeiros por intermédio dos romances A dama das camélias e Judas
o obscuro, e alguns outros livros em prosa ficcional brasileiros que tratam diretamente de leilões
no Rio de Janeiro.
Um romance farto de referências às vendas em leilão é A dama das camélias. A
obra de Alexandre Dumas, filho, publicada em 1852, conta a história de amor entre Armand
Duval e Marguerite Gauthier, uma conhecida cortesã parisiense que morre de tuberculose.
O leilão se encontra logo no início do romance e serve como o evento provocador
de toda a trama. O narrador da história nos conta que
62ABREU, 2006, p.253.
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No dia 12 de março de 1847, li na rua Laffite, num grande cartaz amarelo, o anúncio
de um leilão de móveis e de ricos objetos curiosos. Era decorrência de um espólio. O
cartaz não trazia o nome da pessoa morta, mas a venda dos bens deveria ocorrer na
rua d’Antin, nº9, no dia 16, do meio-dia às cinco horas.
O cartaz dizia, além disso, que poderia, nos dias 13 e 14, ver o aposento e os
móveis”63
.
No trecho ficamos sabendo que o narrador ao transitar pela rua Lafitte, em Paris,
tem sua atenção atraída por um cartaz, talvez pela cor amarela chamativa, no qual o público é
convidado a participar de um “leilão de móveis e objetos curiosos”. O cartaz apresenta várias
informações importantes sobre o evento: quando ocorrerá, dali a quatro dias; o que estará à
venda, “móveis” e “ricos objetos curiosos”, sem expressar quais móveis e quais objetos, indica
tratar-se de itens de qualidade, pelo qualificativo “ricos”, e bens peculiares, tendo em vista o
adjetivo “curiosos”; indica o motivo da venda, “Espólio”, ou seja, o leilão é fruto de um
conjunto de bens deixados por algum falecido; o local e a hora em que ocorrerá o pregão; e por
último indica que o aposento e os móveis em leilão poderiam ser apreciados pelo público nos
dois dias que antecederiam o leilão. Todas essas informações são muito frequentes nos anúncios
de jornais.
Em seguida o narrador reflete: “Sempre gostei de curiosidades. Prometi a mim
mesmo não perder a oportunidade, senão de comprá-las, ao menos de vê-las”64. Assim, o cartaz
parece estar alcançando seu objetivo de atrair clientes ao leilão. O narrador se sentiu motivado
a participar do pregão pela curiosidade que a propaganda despertou nele, além de afirmar se
tratar de objetos “curiosos” o anúncio deixa em suspenso também quem seria o antigo dono de
todos esses itens. Para sanar a curiosidade dos possíveis compradores, está indicado no cartaz
que as pessoas poderiam antecipadamente conhecer os itens à venda. E é exatamente isso que
o narrador faz.
No dia seguinte, quem nos relata a história vai até o local indicado. Logo cedo já
havia pessoas no local, mulheres e homens com carros elegantes, vestidos com tecidos finos
olhavam com espanto o luxo dos bens à venda. Observando os itens, o narrador percebe que se
trata do espólio de uma cortesã e pensa que as mulheres que tinham comparecido à casa
tinham por desculpa, se necessário, a circunstância de um leilão sem saber de quem
se tratava. Leram os cartazes, queriam visitar o que eles prometiam e escolher de
antemão o que lhes agradava; nada mais natural; o que não as impedia de procurar, no
63DUMAS, 1996, p.13-14. 64Idem, p.14.
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meio de todas aquelas maravilhas, os traços da vida de uma cortesã de quem lhes
haviam feito, sem dúvida, tão estranhos relatos65
.
Nesse trecho o narrador aponta que “os cartazes” também despertaram a
curiosidade em outros transeuntes. Ao saber que se tratava de uma conhecida cortesã, as pessoas
tentavam buscar por intermédio dos objetos ter acesso aos “traços da vida de uma cortesã”.
Assim, tal excerto nos apresenta uma particularidade das vendas em leilão, o fato de que os
objetos ganham valor e significação de acordo com a qualidade material, visto a importância
de ir ver os objetos com antecedência, mas também segundo quem era/é o proprietário dos itens
em leilão.
O narrador relata a qualidade dos móveis, das roupas, das joias etc. e fica sob a mira
do olhar de um guarda que o observa para ver se ele não está roubando nada. Travando diálogo
com o vigilante, o narrador consegue mais informações sobre a falecida e o leilão. Descobre
que a mulher morrera há três semanas e se chamava Marguerite Gauthier, tinha muitas dívidas,
mas os credores acreditavam que a venda em hasta pública supriria a necessidade e ainda
sobraria para a família da cortesã. Ou seja, o motivo dos bens em leilão são antigos credores de
Marguerite, que, logo após sua morte, viram a possibilidade de receber seu dinheiro de volta
por intermédio de um pregão, o que geraria até dividendos para os herdeiros da falecida. O
guarda responde, ainda, ao narrador que os credores permitiram a entrada das pessoas nos
aposentos da senhora Gauthier, o que geraria um “efeito” nos possíveis compradores e “isso
estimula a compra”66. Assim, percebemos uma espécie de rede estratégica em torno do leilão.
O cartaz promete bens de qualidade, mas oculta o nome da proprietária e indica se tratar de
objetos “curiosos”, para em seguida fisgar o cliente indicando que tais bens estariam à mostra
nos dias subsequentes.
À uma hora da tarde o narrador compareceu ao leilão. Do portão já se ouvia o grito
dos leiloeiros e o aposento estava cheio de “curiosos”, celebridades “do vício elegante”,
mulheres célebres que queriam entrar em contato com a cortesã, a Duquesa de F... e o Duque
d’Y...67.
Ria-se muito; os leiloeiros gritavam a valer; os comerciantes, que haviam invadido os
bancos dispostos diante das mesas com os objetos à venda, tentavam em vão impor
65Idem, Ibidem. 66Idem, p.17. 67Idem, p.24.
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silêncio, para fazer os seus negócios tranquilamente. Nunca houve uma reunião mais
variada, mais ruidosa68
.
Na cena do leilão temos acesso a alguns elementos com os quais Alexandre Dumas
Filho construiu a sua representação de um leilão. Aparentemente, trata-se de um ambiente
tumultuado, aposento lotado, pessoas tentando impor silêncio, reunião “ruidosa” etc. Tentando
dar andamento às vendas, buscando se sobrepor ao barulho, o leiloeiro procede a venda aos
gritos. O narrador também aponta quem seriam os possíveis compradores dos itens ali à venda:
curiosos, Duquesas, Duques, celebridades e, os mais ávidos pelos objetos em leilão,
comerciantes.
Continua ainda:
De repente ouvi gritarem:
- Um livro, perfeitamente encadernado, com filetes de ouro, intitulado: Manon
Lescaut. Há algo escrito na primeira página. Dez francos.
- Doze – disse uma voz depois de bastante tempo.
- Quinze – disse eu.
Por quê? Eu não sabia. Provavelmente por causa do algo escrito.
- Quinze. – repetiu o leiloeiro.
- Trinta – exclamou o primeiro arrematante, num tom que parecia desafiar que se
lançasse mais.
Aquilo estava se tornando uma luta.
- Trinta e cinco! – gritei, então, no mesmo tom.
- Quarenta.
- Cinquenta.
- Sessenta.
- Cem69
.
Na passagem percebe-se que os leilões não eram somente ocasiões simples de
compra e venda, e sim eventos nos quais os objetos à venda mais do que serem somente
comprados, eles poderiam ser também disputados. Essa peculiaridade do leilão é que propiciou
que mesmo um livro que inicialmente valia dez francos pudesse ser vendido a um preço dez
68Idem, p.25. 69Idem, p.26.
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vezes maior, explicando também a fé dos credores de que um leilão pagaria a dívida e ainda
sobraria para a família70.
Esta cena é de particular interesse para esta dissertação, uma vez que representa
uma compra direta de um livro por intermédio de um leilão. Percebe-se pela chamada do
leiloeiro que a materialidade do objeto é de suma importância, sendo que o pregoeiro afirma,
antes de tudo, tratar-se de um volume “perfeitamente encadernado, com filetes de ouro”, ou
seja, era um tomo que recebeu particular cuidado de confecção. Em seguida o leiloeiro indicou
o título da obra em questão, tratava-se de Manon Lescaut, obra publicada em 1731 por Antoine
François Prévost que conta a história do amor entre o cavaleiro de Grieux e a jovem Manon
Lescaut. Talvez para aumentar ainda mais a curiosidade dos presentes, o pregoeiro deixou em
suspense que “Há algo escrito na primeira página” e, se foi essa a intenção, ele teve êxito, pois
o narrador entrou em um embate ferrenho para arrematar a obra, mesmo nem ele sabendo ao
certo o motivo, presumindo que “provavelmente pelo algo escrito”. Desde quando viu o cartaz
a curiosidade moveu o narrador até o ato final da compra; foi ela que o impeliu a ir ver os
móveis e os bens à venda e o impulsionou à compra, mas toda essa curiosidade só foi possível
graças ao anúncio do leilão afixado em papel amarelo. Por fim, há de ser dito algumas palavras
sobre o preço da obra no leilão: “dez francos”. Recorrendo ao CITRIM encontramos o registro
de um anúncio da obra Manon Lescaut pela livraria Charpentier no dia 27 de junho de 1847,
mesmo ano em que se passa a história e na mesma cidade. A obra anunciada no jornal La Presse
é caracterizada como “belle édition” e em 1 volume, custando 3,50 francos71. O requinte da
obra posta em leilão em contraposição à obra da livraria Chapentier pode ser uma hipótese
explicativa da diferença entre os preços, mas fica muito claro que os 100 francos dispendidos
pelo narrador foi um valor bem acima do mercado, com ele daria para comprar 29 livros de
Manon Lescaut iguais aos anunciados no La Presse. Assim, esta cena deixa claro que os leilões
não necessariamente eram lugares para comprar livros de forma barata, uma vez que disputas
com outros interessados poderiam elevar o preço das obras às alturas.
Saindo de Paris, voltamo-nos agora para o interior da Inglaterra, onde ambienta-se
o romance de Thomas Hardy Judas, o Obscuro, publicado em 1896. Nessa obra também
70O que de fato aconteceu. O leilão rendeu 150 mil francos, indo dois terços para os credores e um terço para a
família. A irmã de Marguerite Gauthier ficou estupefata ao saber que ficara “rica” (Idem, p.30-31). 71http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k4307046/f4.item (acessado em 14/06/2017)
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k4307046/f4.item
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podemos encontrar diversas e interessantes referências às vendas realizadas por intermédio de
leilões.
A história conta a vida de Judas Fowley, garoto pobre nascido em uma aldeia
inglesa fictícia chamada Marygreen. Judas é apaixonado pelo saber e anseia desde garoto a
entrar para a Universidade, onde acredita estar contido o centro do conhecimento, e para isso
teve ajuda de seu professor Richard Phillotson. No entanto, o seu objetivo de entrar para a
Universidade em Christminster, também fictícia, é frustrado quando seu professor muda de
cidade e Judas se apaixona e casa com Arabella, uma mulher que o trai e o trata com desprezo.
O personagem principal irá encontrar conforto somente nos braços de sua prima, Sue, porém
entre eles e o professor Phillotson cria-se um triângulo amoroso.
No romance, Judas Fowley e o professor Richard Phillotson possuem bens
adquiridos em leilão. Aquele comprou, por “oito libras”, um cavalo que “sacudia
constantemente a cabeça”, com o qual busca ganhar algum dinheiro entregando pão72; e este é
proprietário de um piano “rústico” que comprara quando lhe “acometera a ideia de aprender
música instrumental”73.
Os pais de Arabella, então mulher de Judas, vão emigrar para a Austrália e a filha
decide ir junto com eles, deixando seu marido para trás. Os pais dela decidem fazer leilão dos
bens da família antes de ir embora:
Um dia, numa vitrina, [Judas] viu o anúncio da venda dos bens de seu sogro. Tomou
nota da data. Contudo, esta chegou e passou sem que ele se aproximasse do local
indicado e sem que notasse que o tráfego, ao sul de Alfredson, aumentara por causa
do leilão. Alguns dias mais tarde, entrou numa loja de antiguidades da rua principal
da cidade, e, de permeio com uma série de caçarolas, cavaletes, candelabros de cobre,
espelhos e outros objetos, evidentemente provenientes de um leilão, deparou com uma
pequena fotografia enquadrada, que não era outra senão o seu próprio retrato. (...) -
Oh – disse o antiquário, ao vê-lo apanhar o quadro, e sem perceber que era o seu
retrato. – É um lote de velharias que me coube num leilão que teve lugar lá para os
lados de Marygreen. O quadro pode ser bem útil, se o senhor tirar a fotografia. Por
um xelim pode levá-lo74
.
Alguns elementos chamam atenção nesta citação. Mesmo um leilão de donos de
porcos, profissão dos pais da mulher de Judas, que aparentemente não tinham bens de valor, foi
capaz de movimentar o tráfego da cidade, ou seja, não eram somente pregões chiques como o
de A Dama das Camélias que atraiam as pessoas. Na cena tomamos conhecimento de um dos
72
HARDY, 1971, p.37. 73Idem, p.11. 74Idem, p.82.
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arrematadores dos objetos, um comerciante de antiguidades da rua principal da cidade, bem
como dos itens que foram postos à venda: objetos como caçarolas e candelabros, porta-retratos
etc., itens que o antiquário classificou como “velharias”, logo, em uma única cena estamos
conhecendo a representação de um possível comprador das vendas em hasta pública e quais
bens poderiam ser vendidos nestas ocasiões. Judas, assim como o narrador de A Dama das
Camélias, também fica sabendo do leilão por meio de um cartaz que também indicava o local
e a data do evento, porém, ao contrário do romance francês, o anúncio visto por Judas indicava
o proprietário dos bens à venda, seu sogro.
Quase ao fim do livro, Judas e sua mulher, Sue, também se veem na necessidade de
realizar um leilão pelo fato de não estarem em boas condições financeiras e o nome de Judas
não ser bem visto no local onde moram:
Acumularam-se contas, e um problema se colocou: que fim poderia Judas dar à velha
e pesada mobília de sua tia, se deixasse a cidade para viajar daqui para ali e dali para
mais adiante? Isso e a necessidade premente de dinheiro compeliram Judas a fazer um
leilão, apesar de preferir guardar aqueles móveis veneráveis75
.
Dois motivos obrigam os Fowley a vender seus bens em hasta pública: a falta de
dinheiro e a impossibilidade de viajar e levar “a velha e pesada mobília de sua tia”. Tais
problemas talvez tenham perturbado grande parte dos proprietários analisados nessa
dissertação, haja vista a quantidade de leilões cujo motivo são financeiros e o volume de
anúncios de pregões afirmando se tratar de famílias que se mudavam para a Europa e
provavelmente percebiam a impossibilidade de carregar consigo seus móveis em uma travessia
transatlântica. Quem sabe, como Judas, esses proprietários gostassem de seus móveis e livros,
mas, por força das circunstâncias, foram impelidos a se desfazerem deles.
No dia do leilão, Sue não se sentia muito bem e não queria sair de casa, as