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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS
CURSO DE HISTÓRIA
ELISANGELA PEREIRA GOMES
O MESTIÇO NAS OBRAS DE CELSO MAGALHÃES E ALUÍSIO AZEVEDO
São Luís 2007
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ELISANGELA PEREIRA GOMES
O MESTIÇO NAS OBRAS DE CELSO MAGALHÃES E ALUÍSIO AZEVEDO
Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Estadual do Maranhão - UEMA, para obtenção do grau de Licenciatura Plena em História. Orientadora: Prof.ª Maria de Lourdes Lauande Lacroix
São Luís
2007
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RESUMO
Este trabalho aborda o estudo do mestiço no Maranhão oitocentista, a partir da
representação que os literatos Celso Magalhães e Aluísio Azevedo fazem em suas obras,
respectivamente, Os Calhambolas e O Mulato.
Na análise literária dessas obras, pode-se perceber a influência das teorias raciais
nelas contidas, bem como o olhar da literatura sobre a sociedade maranhense.
Palavras-chave: Mestiço – Celso Magalhães – Aluísio Azevedo – Análise Literária
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RÉSUMÉ
Ce travail aborde l’étude du métis au Maranhão du XVIIIe siècle à partir de la
représentation que les littérateurs Celso Magalhães et Aluísio Azevedo font dans leurs
oeuvres respectivement, Os Calhambolas et O Mulato.
Dans l’analyse de ces oeuvres, on punt percevoir l’influence des théories raciales
qu’elles contiennent, en plus du coup d’oeil littéraires sur la société du Maranhão.
Paroles-clés: Métis – Celso Magalhães – Aluísio Azevedo – Analyse Littéraire
16
SUMÁRIO
P.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES...........................................................................................10
INTRODUÇÃO .............................................................................................................12
1. CELSO MAGALHÃES ...........................................................................................15
1.1 Do Nascimento à Vida Acadêmica ...........................................................................16
1.2 Influências Ideológicas .............................................................................................18
1.3 Trajetória Literária ...................................................................................................21
1.4 Atuação como Promotor Público ..............................................................................25
1.5 Notícias de seu Necrológio .......................................................................................28
2. ALUÍSIO AZEVEDO ................................................................................................35
2.1 A vida no Maranhão .................................................................................................36
2.2 Sua estada no Rio de Janeiro ....................................................................................39
2.3 Embates com o Clero ludovicense ............................................................................41
2.4 Produção Literária ....................................................................................................45
2.5 Carreira Consular .....................................................................................................48
3. O MESTIÇO NA REPRESENTAÇÃO DE CELSO MAGALHÃES EM OS
CALHAMBOLAS E ALUÍSIO AZEVEDO EM O MULATO ..........................................54
3.1 O Mestiço.................................................................................................................55
3.2 Influência das Teorias Raciais no Brasil e no Maranhão ...........................................57
3.3 Os Calhambolas de Celso Magalhães .......................................................................69
3.4 O Mulato de Aluísio Azevedo ..................................................................................74
3.5 O papel dos Romances na Sociedade Maranhense Oitocentista.................................76
CONCLUSÃO ...............................................................................................................83
REFERÊNCIAS.............................................................................................................85
INTRODUÇÃO
O trabalho monográfico O Mestiço nas obras de Celso Magalhães e Aluísio
Azevedo trata de analisar como o mestiço é representado pela intelectualidade maranhense, no
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caso Celso Magalhães e Aluísio Azevedo através da literatura, reconstruindo-se o retrato da
sociedade maranhense oitocentista por meio da sensibilidade desses escritores.
O período em questão, 1870 a 1888, converge para o momento em que as teorias
raciais tornam-se um dos paradigmas explicativos para a idéia de superioridade racial
européia. No Brasil, o período situa-se na conjuntura de esgotamento da ordem escravocrata,
nos debates sobre a idéia de nação e na questão da mestiçagem.
Nesse sentido, o Maranhão escravista de então, torna-se um espaço assaz
interessante para se analisar a interação social entre esse mundo essencialmente híbrido, onde
negros, índios, brancos e mestiços vivenciam diferentes experiências.
O estudo literário tem sua importância para a história, pois é a expressão da
sociedade. Com os romances históricos Os Calhambolas de Celso Magalhães e O Mulato de
Aluísio Azevedo, pode-se abstrair diversos elementos da sociedade maranhense do final do
século XIX, bem como avançar em relação à compreensão da postura ideológica e formação
acadêmica do autor, sendo um fator decisivo para a análise das fontes, conforme o alvo ou a
intenção de quem escreve.
Para tanto, a metodologia utilizada nesta monografia será com base no discurso de
representação de Roger Chartier, um dos expoentes da História Cultural. O estudo das
representações que os escritores maranhenses fazem em suas obras é tão significativo não só
para reconstruir, sob o olhar do escritor, aspectos do Maranhão escravista, como para
compreender os mecanismos de dominação que vão sendo elaborados pela elite, a fim de
assegurar sua supremacia política e econômica.
O primeiro capítulo faz um esboço da vida e obra de Celso Magalhães. Conta-se
onde e como ocorreu o nascimento do literato, em qual escola estudou, sua formação
acadêmica na cidade de Recife, até assumir o posto de promotor público na capital
ludovicense. Mais ainda: as obras que escreveu e seus últimos momentos de vida.
No segundo capítulo, apresenta-se a vida e obra de Aluísio Azevedo. Começando
pela vida no Maranhão e a origem familiar; depois, o período em que esteve no Rio de Janeiro
ao lado de seu irmão Artur Azevedo e, após dois anos, o retorno a São Luís onde trabalhou
como cronista nos jornais, alcançando notoriedade graças ao polêmico romance realista, até o
momento em que ingressou na carreira de Cônsul e faleceu em solo estrangeiro.
A escolha desses escritores maranhenses deve-se muito às suas produções
literárias Os Calhambolas e O Mulato que tiveram repercussão no regime imperial, seja na
divulgação através dos jornais e na venda dos impressos. Eles também possuem seu mérito,
18
pela trajetória de vida, atuação na história do Maranhão por suas atitudes revolucionárias e o
legado das letras deixadas por eles, apesar de alguns manuscritos terem se perdido.
O terceiro capítulo aborda precisamente as obras de Celso Magalhães e Aluísio
Azevedo, no que diz respeito à leitura que fazem do mestiço. Antes disso, faz-se uma
discussão do mestiço no período imperial, relacionando-o à questão da identidade nacional na
perspectiva das idéias européias vigentes nesse momento, bem como a influência dessas
teorias no Brasil e, sobretudo no Maranhão. Em seguida, foi feita a análise literária de Os
Calhambolas e O Mulato, considerando a visão dos literatos sobre o mestiço, as influências
das doutrinas que surgem nesse momento e a própria sociedade maranhense.
19
Ilustração 1 – Celso Magalhães. In: Livro do Sesquicentenário de Celso Magalhães, de Jomar
Moraes.
20
1. CELSO MAGALHÃES
“A rápida biografia de Celso Magalhães conterá ainda alguns lapsos. Mas a sua
figura não é produto da lenda, e sim uma vítima dos amnésicos”. 1 É com esta frase que se
inicia o primeiro capítulo sobre Celso Magalhães, essa figura notável da literatura
maranhense. Contar sua vida e falar de sua obra ou fazer um breve esboço de alguns aspectos
pertinentes de sua existência, é resgatar e rememorar seu papel na sociedade ludovicense e
vianense e, sobretudo, na História do Maranhão.
Celso Magalhães nasceu em berço nobre. Freqüentou universidade na vida
estudantil e escreveu textos. E mais, aqueles que conviveram com ele ou renderam-se à sua
literatura testemunham que era um homem de agudeza espiritual tanto no captar o que ocorria
ao seu redor e transpô-lo ao papel, quanto na capacidade de observar. Enfim, versado
culturalmente, acabou conquistando fama. Fama essa, porém, graças ao triste episódio da
baronesa de Grajaú.
Em termos de referência bibliográfica, serão mencionados alguns autores que
buscaram já conhecer o intelectual de quase trinta anos vividos. Estes autores são: Antonio
Lopes da Cunha, sobrinho do literato e autor de um artigo sobre a vida do tio no jornal
Pacotilha; Graça Aranha que, em O meu primeiro romance, registrou uma situação verídica
presenciada quando criança com Celso Magalhães; Josué Montello que, em Os tambores de
São Luís, fez uma reconstituição do processo criminal de Ana Rosa e da atuação de Celso
Magalhães como promotor público; Washington Cantanhêde, que escreveu Celso Magalhães:
um perfil biográfico; Joaquim Vieira da Luz, em Fran Paxeco e as figuras maranhenses, que
relatou detalhadamente sobre Celso Magalhães; Jean Yves Mérian, que escreveu Celso
Magalhães, poeta abolicionista; Jomar Moraes que, em Livro do sesquicentenário de Celso
Magalhães, como homenagem ao aniversário de cento e cinqüenta anos de nascimento de
Celso Magalhães; Fran Paxeco, no seu discurso de posse que se encontra na Revista da
Academia Maranhense de Letras2, por ocupar a cadeira de nº. 5 de Celso Magalhães; e, por
fim, a contribuição das fontes hemerográficas, os necrológios no jornal O Tempo, incluindo os
1 LUZ, Joaquim Vieira da. Fran Paxeco e as figuras maranhenses. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, S.A. Edições Dois Mundos, 1957. p. 246. 2 ACADEMIA MARANHENSE DE LETRAS. Perfis Acadêmicos. São Luís: SIOGE, 1986. p. 22.
21
comentários de outros jornais: Paiz, Diário do Maranhão, A Flecha e o Publicador
Maranhense.
1.1 Do Nascimento à Vida Acadêmica
Celso Tertuliano da Cunha Magalhães nasceu em 11 de novembro de 1849, no
município de Viana3 (Maranhão). De família aristocrática, foram seus pais o tenente-coronel
José Mariano da Cunha e D. Maria Quitéria de Magalhães Cunha. “Ele, filho de Antonio da
Cunha Mendonça; ela, filha do português Manuel Lopes de Magalhães, médico pela
Universidade de Coimbra, e de Maria Cecília Duarte Magalhães”. 4
Durante o parto de sua mãe, houve algumas complicações, tanto que uma ama-de-
leite teve que dar à criança os primeiros cuidados necessários. Desse nascimento assistido
pelo avô materno Manuel Lopes de Magalhães, firmou-se um acordo entre filha e médico de
que o recém-nascido seria educado por ele. Depois, já grande e por vontade própria, quis o
menino - com a permissão do pai - ser registrado com o sobrenome Magalhães. Esse fato foi
relatado por Antonio Lopes, sobrinho de Celso Magalhães:
Esteve à morte quando deu à luz, sendo operada pelo cirurgião seu pai. Por algum tempo arrastou-se a convalescença, após uma perturbação séria das meninges, dando isto motivo a que o assistente, muito de caso pensado, conduzisse a criança da localidade onde ocorrera o nascimento para a sua fazenda próxima do ‘Descanso’, onde aquela bebeu o primeiro leite em peitos estranhos. [...] E não só esta circunstância, como a existência de um compromisso, entre filha e pai, de dar aquela a este o primeiro filho varão, que o velho queria educar, concorreram para indissoluvelmente ligar o avô ao neto, que, por vontade própria e com a devida licença paterna, acabou por acrescentar ao nome o sobrenome de Magalhães. 5
Com menos de dois meses de idade, Celso Magalhães foi batizado em 6 de janeiro
de 1850, na igreja matriz de Nossa Senhora da Conceição, em Viana, por frei Ricardo do
Santo Sepulcro, sendo padrinhos o avô paterno Antonio da Cunha Mendonça e a avó materna
3 SEREJO, Lourival. Sesquicentenário de Celso Magalhães. O Estado do Maranhão, São Luís, 25 abr. 1999, p.5. Nesse artigo há uma divergência quanto ao seu nascimento, atribuído na fazenda Descanso, então município de Viana, e hoje de Penalva. 4 CANTANHÊDE, Washington Luiz Maciel. Celso Magalhães: um perfil biográfico. São Luís: AMPEM, 2001. p. 35. 5 CUNHA, Antonio Lopes da. Celso de Magalhães. Pacotilha, São Luís, 10 nov. 1917, p. 1.
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D. Maria Cecília Duarte Magalhães. Tal evento encontra-se registrado no livro de batismos,
número 3, na folha 158, desse lugar, e publicado no jornal já citado.
Passou a infância, até a década de 1868, no lugar natalício, recebendo instrução
primária dos avós maternos, o médico português Manoel Lopes de Magalhães e D. Maria
Cecília, o que lhe possibilitou prestar os exames preparatórios para a Faculdade de Direito,
em Recife (Pernambuco). Nesse intervalo de tempo, estudou na capital maranhense
“humanidades no colégio do educador Perdigão e colaborou em várias folhas juvenis, entre as
quais O Domingo, de Artur Azevedo” 6. Depois, ele escreveu também em outros jornais, tais
como: Semanário Maranhense, O País, O Tempo, todos de São Luís; Gazeta de Notícias, Rio
de Janeiro e Jornal do Recife, de Recife.
Naquele tempo, as famílias ricas costumavam mandar seus filhos estudarem fora
da província, almejando, assim, um futuro promissor ou contínuo para sua descendência, visto
que o trabalho intelectual, sinônimo de projeção social, era bem quisto. No caso de Celso
Magalhães não foi diferente.
Enquanto estudante aproveitou bastante o tirocínio recebido, pois buscava crescer
na profissão e expandir seu conhecimento intelectual. No mesmo ano da morte do avô, Celso
Magalhães viajou para Recife, cidade em que ingressaria na vida acadêmica. Faltava-lhe,
porém, perante o diretor da Instrução Pública fazer as provas para que pudesse se inscrever na
academia da capital pernambucana. Aprovado aos 19 anos, passaria daí em diante, a
freqüentar por cinco anos o curso de Direito.
Aprovado matriculou-se na Faculdade de Direito de Recife, aos 12 de março de 1869. As aulas abriram-se a 15 desse mês e terminavam a 15 de outubro. A 23, seguiram-se os exames, que se estendiam até novembro. Fez exame do 5º ano, passando com plenamente, e recebeu, na mesma ocasião, o grau de bacharel em direito, a 22 de novembro de 1873. 7
Na revista da Academia Maranhense de Letras, Fran Paxeco fez um esboço
bibliográfico desse intelectual no período imperial, detalhando o rigor das melhores
faculdades do país - Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Recife - no tocante ao ingresso nelas e
às disciplinas exigidas por elas. “Os atos em questão cingiam-se à geografia, história do
6 Ibid. 7 LUZ, op. cit., p. 235.
23
Brazil e bíblica, aritmética, geometria plana, retórica, latim, francêz, inglêz, filozofia. Nem
sequer havia prova de portuguêz.” 8
Decerto, Celso Magalhães tinha muito incentivo e disposição para o saber,
demonstrando interesse em aprender as letras e motivação para conhecer profundamente as
ciências. Segundo Joaquim Luz, “era Celso Magalhães dotado dum pronto talento de
observação, tendo-se educado com estudos fortes e variados”. 9 Tudo o encaminhava para a
jurisprudência, e, cada vez mais, tornava-se um homem culto, versátil e de vocabulário
aguçado. “Detestava o palavreado baloufo, e tinha um estilo condensado, manifestando as
suas idéias com rara lucidez”. 10 Daí a razão pela qual respondeu com êxito aos critérios de
seleção para aqueles que poderiam intelectualmente dar seguimento à profissão no campo
jurídico.
1.2 Influências Ideológicas
Celso Magalhães vinha de uma prole cuja inclinação política era para o Partido
Conservador. Na juventude, lera alguns clássicos como Alfred de Musset, Sand, Victor Hugo,
Lamartine e Almeida Garrett, que muito contribuíram para despertar sua veia poética. Mas,
além da poesia, enveredou também por outros gêneros, como o romance, a novela, o drama, a
crônica, a prosa e a crítica literária.
Em Recife, quando ainda era acadêmico do curso de Direito, entusiasmou-se pela
estética realista, ou melhor, pela maneira como ela encarava cientificamente e com
objetividade a sociedade; pelas ciências naturais, sobretudo a do evolucionismo darwiniano,
para o qual o mundo era concebido como processo de crescimento e evolução; pelo
pensamento filosófico-positivista e pelas teorias raciais importadas do estrangeiro.
Influenciado por essas idéias, ele as transpôs para a capital maranhense, enraizada em seus
costumes e práticas coloniais.
Fervoroso seguidor das teorias de Darwin, Comte e Taine, chocou o ambiente acanhado da São Luís provinciana que modorrava num superado
8 Cf. REVISTA DA ACADEMIA MARANHENSE DE LETRAS (1916-1918). Celso Magalhães: estudo lido a 11 de novembro de 1917, em sessão pública da Academia Maranhense. São Luís: Imprensa Oficial, jan. 1919. p. 79. 9 LUZ, op. cit., p. 241. 10 LUZ, loc. cit.
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romantismo literário e defendia a manutenção da escravatura como principal sustentáculo econômico de uma elite reacionária e preconceituosa. Positivista, lutou contra o clero e a escravidão. 11
Desde cedo, insurgira-se contra o regime escravista, defendendo a abolição e a
instauração da República. Como atitude concreta, em 1869, aos 20 anos, Celso Magalhães
convencera o pai para que libertasse os escravos da fazenda, promovendo-os em trabalhadores
assalariados. A exemplo de Gonçalves Dias e João Francisco Lisboa, que abordaram em seus
escritos o tema escravidão, ele inspirou-se na revolta dos escravos de sua cidade natal para
produzir o poema Os calhambolas. Esta postura em defesa dos desvalidos, na luta contra as
injustiças, se expressa na obra literária Versos, publicada em 1870. Nela está o poema citado.
Em 1870, no teatro recifense - o Recreio Acadêmico -, Celso Magalhães
demonstrou ousadia e coragem ao expor poeticamente sua indignação contra o império e a
base de sustentação econômica. Era a ocasião da visita do general Osório, herói da Guerra do
Paraguai. Estavam presentes: “o fiel amigo do Imperador, o presidente da província, o chefe
de polícia e toda a esfera oficial pernambucana” 12, que ouviram o jovem poeta recitar versos
homenageando o soldado. Entretanto, o conteúdo dos versos também era de crítica ao
imperador D. Pedro II por não libertar os escravos, mesmo ciente de muitos deles derramarem
seu sangue em defesa da pátria.
Maior quem é? Dize-o: O soberano? Não! De grande não tem título Quem nutre a escravidão. A Monarquia? Egrégio Não pode ser o braço Que tem na garra trêmula A ponta do balaço, Que o dente aguço, esquálido, Para morder aguça E tem sob os pés, pálido, Um povo que soluça. Maior quem é? Dizei-o, Maior que a majestade De Osório – o vulto heróico; Só Deus e a Liberdade!13
11 MORAES, Jomar. Apontamentos de Literatura Maranhense. São Luís: SIOGE, 1976. p.125. 12 LOPES, Antonio. Estudos Diversos. São Luís: SIOGE, 1973. p.78. 13 LOPES, loc. cit.
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Contudo, pode-se observar em Celso Magalhães certo paradoxo, porque, se de um
lado, ele lutava pela liberdade dos negros e o fim do trabalho escravo no Maranhão e no
Brasil, de outro lado, sustentava, com base no conhecimento galgado no cientificismo da
época, o complexo de superioridade cultural e racial do europeu em relação às outras etnias,
especialmente os africanos por sua condição jurídica no plano social. Devido a isso,
considerava relevante o estudo da raça.
Para nós, em literatura como em política, a questão de raça é de grande importância, e é ela o princípio fundamental, a origem de toda a história literária de um povo, o critério que deve presidir ao estudo dessa mesma história. 14
No final de 1873, Celso Magalhães voltou novamente à cidade de São Luís, onde
se tornou um dos líderes intelectuais da juventude e bastante conhecido na sociedade, seja
como jurista, seja como escritor. Seus escritos de cunho literário estavam tanto em alguns
periódicos que circulavam na capital, quanto nos que circulavam fora dela. “A fama de que
vinha precedido colocava-o numa evidência sem par, entre os rapazes de seu tempo” 15.
A Celso Magalhães estaria reservado o papel de guia de muitos jovens maranhenses, entre eles, Aluísio Azevedo, Paulo Duarte, João Afonso do Nascimento, Eduardo Ribeiro, Agripino Azevedo e o português Manuel de Bethencourt, a quem depois coube exercer grande influência sobre a geração seguinte, a de nosso terceiro ciclo literário. 16
Pondo-se em defesa das idéias novas, ele era também anticlericalista. Com efeito,
a Igreja opunha-se à doutrina filosófico-positivista que, caracterizada pela orientação
antimetafísica e antiteológica afirmava como critério unicamente válido de verdade a
admissão de conhecimentos fundados em fatos e dados empíricos. Por causa disso, ele foi um
dos principais instigadores da “polêmica com o padre Raimundo Alves da Fonseca, que lhe
replicara pelas colunas do Diário do Maranhão”. 17
A respeito do padre Raimundo Alves da Fonseca18, sabe-se que foi presbítero
secular na diocese de São Luís. Recebeu, por merecimento, uma carta patente com o selo
imperial e assinada por D. Pedro II, em 20 de novembro de 1874, nomeando-o a capelão
14 MAGALHÃES, Celso da Cunha. A poesia popular brasileira. Maranhão: Departamento de Cultura do Estado, 1966. p. 22. 15 CUNHA, loc. cit. 16 MORAES, op. cit., p.119. 17 MONTELLO, Josué. Os tambores de São Luís. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. p.493. 18 Essas informações sobre o padre Raimundo Alves da Fonseca encontram-se no documento nº. 6812, de 24 dez. 1881., do Arquivo da Arquidiocese do Maranhão (Arquivo Público do Estado do Maranhão).
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tenente do Corpo Eclesiástico do Exército. Sete anos depois, ocupou a vaga de mestre da
escola da Igreja da Catedral, por falecimento do cônego Luiz Raymundo da Costa Leite, em
24 de dezembro de 1881.
Através do jornal O País, Celso Magalhães debatia idéias positivistas que eram
replicadas pelo clero católico no Diário do Maranhão. Isso inspirou outros jovens escritores,
por exemplo Aluísio Azevedo. Anos mais tarde, esse travaria a grande polêmica entre o jornal
que escrevia O Pensador, e A Civilização, órgão pertencente à Igreja Católica.
“As metódicas indagações de Celso Magalhães representavam uma novidade nos
centros cultos do seu país”. 19 Realista, acreditava na superioridade da raça branca. Defendia a
bandeira do liberalismo, no sentido de que o trabalho dignificava o ser humano, sem acepção,
como para os negros, os quais através da labuta poderiam conquistar sua dignidade como
cidadãos brasileiros. Tal pensamento encontra-se expresso na obra Versos. “Este jogo de
influências explica nele a tendência para o real e humano e o equilíbrio que atesta a sua
organização estética”. 20
1.3 Trajetória Literária
Pode-se dizer que a produção literária de Celso Magalhães é densa pela qualidade
e originalidade de seus escritos. Meritoriamente, pelo trabalho que desenvolveu, tornou-se
pioneiro dos estudos folclóricos no Brasil, sendo citado por Sílvio Romero21, em 1888, nos
estudos sobre a Poesia Popular do Brasil e na História da Literatura Brasileira.
Nem o diploma de bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela faculdade de
Recife distanciou esse homem erudito do mundo artístico. Dedicou-se à carreira como os
outros jovens aristocráticos dessa fase, e também à literatura como poeta, romancista,
novelista, cronista e prosador crítico.
Em termos quantitativos, Celso Magalhães produziu pouco em comparação a
outros intelectuais de notabilidade desse momento, a saber: Aluísio Azevedo, Artur Azevedo,
Nina Rodrigues, Dunshee de Abranches, etc. Por mais ou menos dez anos fez arte,
19 LUZ, op. cit., p. 245. 20 CUNHA, loc. cit. 21 Teórico racial do século XIX que defendia a homogeneização da sociedade brasileira, a partir do mestiço. Destacou-se como crítico e historiador da literatura brasileira. Sua principal obra História da Literatura Brasileira foi publicada em 1888.
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produzindo poesias, romance, contos, crônicas de teatro, artigos para a imprensa, folhetins,
críticas, descrições, em meio à ocupação do cargo público.
No livro Fran Paxeco e as figuras maranhenses, Joaquim Vieira da Luz agrupou
as principais produções do escritor vianense, sendo que as primeiras composições poéticas,
ainda na fase escolar, datam de 1867, seguindo até meados de 1876, quando já era promotor
público.
� 1867 – Poesia: Vem, não tardes, Para ela, O Desânimo, O currupira, Adeus, O
Escravo, O Avaro, Lembras-te, no jornal Semanário Maranhense; publicação
do livreto Poesias, segredos e traduções, com os seguintes versos: Que vida!,
À (Protestos), Fantasia, O meu amor, Lembrança, Desânimo, Encantos da
natureza (tradução de Quinault), Escuta, O gongorista, Cerração em terra e
Desejos.
� 1868 – Poesia: À..., O menino cego (versão de Gout Desmartres) e A minha
casaca, de Sedaine no jornal Semanário Maranhense.
� 1869 – Comédia: Cerração no bolso; Artigo: A liberdade religiosa, inserido no
Oiteiro democrático de Recife.
� 1870 – Poesia: Ela por ela (cenas do campo), usando o pseudônimo de
Giácomo de Martorelo, no jornal maranhense País; tradução da Pórcia, de
Musset; Um pouco de música, de Victor Hugo, no jornal Correio
Pernambucano; Romance: Versos (obra compilada na tipografia B. Matos por
M. F. Pires, na Rua da Paz, 5 e 7, São Luís); Folhetim: Conto (a Artur de
Oliveira), Eumélia e Conto (a Estevão de Carvalho); Crítica: Dois perfis de
mulher - livro de José de Alencar; Uma carta bibliográfica a Plínio de Lima;
Minaturas de Gonçalves Crespo; Novela: Ela por ela, publicada no jornal
País, com o mesmo nome suposto.
� 1871 – Poesia: A Alda, de Viana, Flôres do Natal (A D.Narcisa Amália) e
Angustiosa no jornal Pacotilha; A Ernesto Rossi, Andorinhas e História de
Mário no jornal Correio Pernambucano; Folhetim: A vôo de ave nesse
periódico; Crônica: Uma crônica teatral, sobre Jugar com fuego.
� 1872 – Poesia: Dúvidas, no jornal maranhense Domingo, de Artur Azevedo;
Romance incompleto: Um estudo de temperamento (publicado na Revista
Brasileira em 1881, sobre motivos sertanejos, descritivo e realista, ambientado
em Viana); Folhetim: Carranquinhas, no jornal País; Crônica: Crônica interna
no jornal Movimento; Crônicas de teatro no Jornal do Recife.
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� 1873 – A Poesia Popular Brasileira (estudo lançado no jornal O Trabalho, de
Recife, e no jornal Domingo); Drama: O processo Valadares (anunciada uma
parte na revista Ateneida, em 1912) e prólogo ao drama O Evangelho e o
Sílabus, de Rangel de S. Paio; Novela: Pelo correio, em folhetim no jornal
Diário do Maranhão e no jornal Domingo; Contos: aparentados a romances
portugueses – Jesus mendigo, A madrasta, Jabuti e Saúbas, republicadas no
jornal citado.
� 1874 – Poesia: A Pororoca e No álbum, de Afonso H. A. Melo, no jornal
Correio Pernambucano; Fantasia no jornal País; Folhetim: Caretas (A mulata
recolhida) no jornal País, usando o nome falso de Balcofrio; Artigo: A mulher
e A toilett, extensas notas de viagem.
� 1875 – Poesia: Amor caricato, no jornal maranhense Pacotilha.
� 1876 – Folhetim: Folhetins humorísticos; Questão médico-legal, no jornal
País.
� Indefinição Cronológica - Drama O padre Estanislau e O habeas-corpus
perderam-se os manuscritos de ambos.
A influência romântica perdurou até, mais ou menos, em 1873, quando Celso
Magalhães lançou a obra “A Poesia Popular Brasileira” de tendência antisentimental,
seguindo a estética do realismo em que predominava a ciência na literatura.
Outros autores, como Jomar Moraes e Washington Cantanhêde também nomeiam
as obras do escritor com base em Joaquim Vieira da Luz que oferece uma lista mais detalhada
sobre o que o intelectual escreveu nesse tempo e publicou nos jornais.
Das obras citadas, certamente a de maior expressividade naquela conjuntura tenha
sido o poemeto Versos. A coleção artística constituída de vários poemas, entre eles “Os
calhambolas”, com uma composição de 85 laudas, o autor concentrou seu discurso versífico
nas agruras da escravidão, mais concretamente na luta dos negros por liberdade, discurso esse
inspirado no episódio da sublevação dos escravos na cidade de Viana, em 1867. Contudo,
defendeu a integração da negritude na civilização dos brancos, ignorando a contribuição
cultural do elemento africano.
Apesar da sua atitude de aristocrata defensor da teoria da diferença entre as raças e as críticas muito duras que ele fez contra os índios e os negros, Celso
29
Magalhães simbolizava a luta pela abolição da escravidão como jornalista, como poeta, como promotor e como advogado. 22
Elogios não lhe faltaram no lançamento desse livro. Com efeito, nos jornais da
época, como: A Reforma, do Rio de Janeiro, Americano e Correio Pernambucano, do Recife
e País, do Maranhão, o escritor foi bem considerado. Prova disso é que recebeu boas críticas
pelo seu trabalho. O jornal A Reforma, por exemplo, dizia assim: “Versos chama o modesto
autor, Sr. Celso Magalhães, a essa coleção de inspirados cantos, verdadeira poesia, composta
ao ardor do sol equatorial. As pátrias letras muito esperam do jovem maranhense”. 23
Ainda restam, porém, mais escritos a serem descobertos. O que já foi recolhido,
“e não é pouco, bastará para se ajuizar da imensa perda sofrida, com o precoce apagamento
dêsse onímodo espírito, cuja sêde de saber se manifestava insaciável” 24. Pode-se observar
pela datação das obras compiladas, dois momentos na sua trajetória literária: um, de 1867 a
1873, de intensa produção literária quando era ainda estudante; e outro, de 1874 a 1876,
quando concomitante à carreira pública de promotor, escreveu alguns folhetins, artigos e
algumas poesias.
Pelo visto, as obras desse literato podem expressar o seu perfil: versátil, por ter
produzido arte em diversos estilos literários, como romance, comédia e conto; interessado, por
ter traduzido de poesias de origem estrangeira; cuidadoso, por preocupar-se em adaptá-las à
nossa linguagem, à cultura popular; observador e crítico da realidade social, por ter abordado
a temática da escravidão em seus escritos.
O legado das letras também vem desvelar do intelectual seus anseios e
pensamentos, sua crença, seu trabalho social, sua visão de mundo, enfim, sua postura adotada
frente à sociedade de denúncia ou legitimação da ordem vigente. O uso de pseudônimos em
suas obras, tais como: Giacomo de Martorelo, Balcofrio e Simeão da Rua Grande, dava-lhe
um estilo todo interessante.
Celso Magalhães foi um dos mais destacados e requisitados intelectuais de sua
época. O curto espaço de tempo em que viveu desperta admiração pela considerável produção
e pela influência marcante que teve em sua geração.
22 MÉRIAN, Jean Yves. Celso Magalhães, poeta abolicionista. São Luís: Fundação Cultural do Maranhão, 1978. p. 21. 23 A Reforma. In: LUZ, op. cit., p.240. 24 Ibid, p. 254.
30
1.4 Atuação como Promotor Público
Em 1874, Celso Magalhães assumia a promotoria da comarca de São Luís. Para
cumprir os trâmites burocráticos, dirigiu-se respeitosamente, como de praxe, em 8 de março,
ao então Presidente de Província José Francisco de Viveiros, a quem o tinha em relevância,
não só pela origem aristocrática, como também pelo talento promissor. Eis suas palavras:
“Comunico a V. Exa. que entrei no exercício do cargo de Promotor da Justiça desta capital,
para o qual fui nomeado por Portaria de 16 de fevereiro, no dia 7 do corrente mês”. 25
No exercício, então, já de suas funções jurídicas, viajou, nesse mesmo ano, para o
município de Turiaçu. Ao lado, porém, de seu compromisso jurídico, mostrou aptidão pela
música, cantando como barítono, de voz intermediária entre o tenor e o baixo, e sendo muito
requisitado em saraus lírico-musicais.
Este pendor é registrado por seu condiscípulo Alfredo Saldanha num artigo do
jornal maranhense O País sobre a paixão do literato pela música e de como era bem recebido
e requisitado em qualquer lugar que freqüentava. 26
No final de 1876, sua vida profissional passou por transformações significativas
que marcaram a capital da província do Maranhão. Ele causou escândalo ao intervir no caso
do assassinato do escravinho Inocêncio, cuja autoria desse crime foi atribuída à senhora Ana
Rosa Viana Ribeiro (esposa do chefe do Partido Liberal). O motivo teria sido por
desconfiança de que o menino fosse fruto do relacionamento de seu marido com uma escrava
de sua senzala.
Pelo visto, o promotor não se intimidou perante a influência das pessoas citadas
no processo criminal, isto é, se era escravocrata ou não. Seu princípio era, sim, a
aplicabilidade da lei por meio de um julgamento coerente dos fatos. Sobrevindo de uma
estirpe que muito logrou com o trabalho escravo, pensava diferente com relação aos escravos.
Em se tratando da escravidão, “era a favor da liberdade dos negros, e não escondia o seu
pensamento”. 27
O ano de 1877 foi decisivo na carreira pública de Celso Magalhães. Tomou
providências em relação a D. Ana Rosa Viana Ribeiro, mulher da fidalguia maranhense
envolvida em processo criminal. Ele recorreu junto “ao Tribunal da Relação, que em 13 de
25 Trecho citado por Celso Magalhães oficializando a nomeação do cargo ao Presidente de Província vigente. Pode ser encontrado no Arquivo Público, na seção de documentos avulsos. 26 SALDANHA, Alfredo apud LUZ, Joaquim Vieira da. Op. cit., p.242. 27 MONTELLO, loc. cit.
31
fevereiro reforma a sentença recorrida, por entender, unanimidade, que há veementes indícios
contra a acusada”. 28
Transcorreu o julgamento de D. Ana Rosa Viana Ribeiro, em “22 de fevereiro,
pelo júri popular”. 29 Sobre o momento da audiência civil, Josué Montello, em Os tambores
de São Luís, retratou poeticamente a apreciação do homicídio cometido por essa senhora de
escravos, a defesa da ré e a postura corajosa do promotor Celso Magalhães.
A respeito da declaração da ré fidalga D. Ana Rosa Viana Ribeiro, esta começou
“por declarar seu nome, ter quarenta anos de idade, ser casada, natural do Maranhão, sabendo
ler e escrever. Quanto ao crime de que era acusada, negou que o houvesse praticado,
atribuindo a acusação a inimigos seus e de seu marido”. 30 Demonstrando recato, acusada
perante o júri, afirmou ser inocente de tal atrocidade. Por sua vez, a promotoria manifestou-se
refutando as colocações da outra parte e, ao mesmo tempo, garantindo a intencionalidade do
fato em questão.
A Justiça Pública, pela palavra de seu promotor aqui presente, acusa a ré, dona Ana Rosa Viana Ribeiro, de ter morto o seu escravo Inocêncio, de nove anos de idade, infligindo-lhe sevicias, castigos e maus-tratos, e usando para isso cordas, chicotes e instrumentos contundentes, de que resultaram os ferimentos e ofensas, descritos no corpo de delito. Afirma ainda a promotoria, com base no que consta destes autos, que a ré cometeu o crime com premeditação, isto é, decorrendo mais de 24 horas entre o desígnio e a ação, visto como os castigos aludidos foram repetidamente feitos, com uma intenção que denota insistência contínua em praticá-los. 31
Para convencer o corpo de jurados, a oratória do ilustre promotor público não foi
satisfatória a ponto de driblar as expectativas da defesa. A sorte estava lançada! Mais uma vez
as convenções sociais estiveram acima da justiça, ou melhor, mascaradas de verdade. A ré D.
Ana Rosa Viana Ribeiro terminou por ser eximida da culpa que lhe fora atribuída, vencendo
por concordância de voto dos jurados presentes na sessão.
Em vista da decisão do júri, absolvo a ré dona Ana Rosa Viana Ribeiro da acusação que lhe foi intentada; mando que se risque seu nome do rol dos culpados; que se lhe passe alvará de soltura, se por tal não estiver presa. Pagas as custas pela Municipalidade. 32
28 MORAES, Jomar. Livro do Sesquicentenário de Celso Magalhães. São Luís: AML, 1999. p.13. 29 MORAES, loc. cit. 30 MONTELLO, op. cit., p. 526. 31 Ibid., p.529. 32 Ibid., p.534.
32
Insatisfeito com o veredicto em favor da escravocrata, Celso Magalhães recorreu
da decisão judicial, porém sem êxito. “No dia 7 de agosto: o Tribunal da Relação julga
improcedente a apelação do promotor público Celso Magalhães, mantendo, assim, a decisão
do júri popular”. 33
Tal acontecimento representou a vitória da aristocracia maranhense sobre as
classes subalternas. O caso do escravinho Inocêncio revelou a desigualdade na elucidação dos
crimes envolvendo senhores de escravos e escravos. Quando o escravo era réu, simplesmente
bastava declaração do dono para a condenação imediata; se vítima, buscavam-se prerrogativas
ou afrouxamento na punição do dono da peça. Sobre esse processo criminal, expressava-se
assim com indignação o jornal O Imparcial:
A despeito, porém, da independência do caracter e da nobreza de sentimentos de Celso Magalhães, a política, ou melhor, essa política lha de província, sempre mal intencionada e sempre nauseante nos seus intentos de ódio e de vingança, não se arreceiou de ofender, de macular a dignidade de um cidadão zeloso, dos seus deveres e foi arrancar, iníqua a apaixonada, das mãos do honrado obreiro da justiça, o officio no cumprimento do qual elle não media sacrifícios, sob o pretexto esfarrapado e carnavalesco, digamos, assim, de “conveniência de serviço publico”.34
Celso Magalhães lançou-se como candidato às eleições de deputados gerais de 5
de setembro de 1878, representando o Partido Conservador. Segundo Antonio Lopes, ele teria
sido apontado por Gomes de Castro para ser deputado na chapa das eleições para a
Assembléia Geral do Império35, mas não obteve sucesso.
Para seu contentamento, casou-se com D. Maria Amélia Leal, filha de Abel
Francisco Correia Leal, viúva do despachante alfandegário Rodolfo Pereira de Castro. Da
importância desta mulher para o intelectual, Alfredo Saldanha fez um artigo necrológico, no
jornal País, a 8 de julho de 1879, revelando um pouco da intimidade do casal e, sobretudo, do
sentimento que nutriam um pelo outro, no seguinte trecho: “Casado faz bem pouco tempo
com uma senhora a quem se enlaçara por sincero afeto, encontrava, nas santas alegrias do lar,
conforto e refúgio contra os dissabores que lhe infligiam.”36
Para espairecer do sortilégio que o anuviara, Celso Magalhães refugiou-se com a
família fora da capital para tentar esquecer a causa perdida. Antonio Lopes relata que ele
“retirou-se, pois, com a esposa para Viana e ali se demorou largos meses, regressando à
33 MORAES, loc. cit. 34 DAMASCENO, Rubens. Celso de Magalhães. O Imparcial, São Luís, 11 nov. 1928, p. 8. 35 CUNHA, op. cit, p.1 36 SALDANHA, Alfredo apud LUZ, Joaquim Vieira da. Op. cit., p.254.
33
capital em 1879, e aqui abriu uma banca de advogado”. 37 Mesmo com o apoio do cônjuge,
sua vida tomaria um rumo sem volta por conta enfermidade.
1.5 Notícias de seu Necrológio
Quando Celso Magalhães veio a falecer, não havia chegado aos trinta anos.
Consorciado há pouco tempo com D. Maria Amélia Leal de Magalhães, não deixou filhos. O
intelectual vianense morreu de febre perniciosa em São Luís, em 9 de junho de 1879, em sua
residência, número 23, um sobradinho situado à Rua das Hortas.38 Antes das circunstâncias de
seu óbito, atesta Antonio Lopes que,
Adoeceu às 5 horas da manhã e expirou às 11 do mesmo dia 9 de junho de 1879. A causa de sua morte foi, sem a menor dúvida, um acesso de febre perniciosa. De uma organização franzina e delicada, abalada por um contínuo esforço mental, não resistiu ao mal, cedendo-lhe à ação do primeiro embate. 39
Com os sintomas característicos da tuberculose, que aos poucos o conduziram à
morte, encontrava-se ele em estado de saúde bastante delicado. Na flor da juventude, partira
Celso Magalhães! O que poderia ter contribuído para abreviar a vida do homem culto, do
poeta e bacharel?
Primeiro, o processo criminal imputado à baronesa Ana Rosa Viana Ribeiro,
acusada pelo assassinato do escravinho Inocêncio, foi um caso delicado para ele. Isso pelo
fato de o processo criminal ter chamado a atenção da sociedade maranhense, haja vista o
embate entre a fidalguia local, sentindo-se desmoralizada, e os excluídos (pobres, mestiços,
negros, etc.), que lutavam por um ambiente social mais justo e humano.
Segundo, a enfermidade abatia o literato. Com base na narrativa do romance
histórico Tambores de São Luís, de Josué Montello, Celso Magalhães estava doente fazia
tempo e com o último trabalho judicial, no qual perdeu a causa, seu estado de saúde passou a
requerer mais cuidados. Na obra supracitada, pode-se saber que, depois do julgamento, o
negro Damião (personagem do romance) chegou à casa de Celso para visitá-lo.
37 CUNHA, loc. cit. 38 MAGALHÃES, op. cit., p. 7. 39 CUNHA, op. cit, p.1
34
No dia seguinte ao julgamento, tinha ido à casa do Dr. Celso, com a intenção de visitá-lo. A mulata gorda, que sempre o recebia, viera ao seu encontro, ao meio do corredor, com a notícia de que o doutor chegara com febre, quase de madrugada, e que estava passando o dia na cama, por ordem do Dr. Jauffret. (...) Apanhei esta febre em Viana, ano passado – esclareceu o Dr. Celso. – De vez em quando ela volta. Ontem, a hora em que falava o Dr. Paulo Duarte, senti os primeiros arrepios. Ela voltou, e voltou forte, ameaçando-me com uma vertigem. Cheguei em casa batendo o queixo. E continuo com febre. 40
Em O meu próprio romance, Graça Aranha rememorou como testemunha ocular
dos fatos ocorridos em torno do processo criminal da baronesa. Ao referir-se a ele, citou
carinhosamente um detalhe que não passava despercebido em seu vestuário, sendo sua marca
registrada. Também faz uma descrição física desse intelectual, por ocasião do período em que
esteve envolvido no julgamento polêmico da esposa do chefe do Partido Liberal. Tal
produção literária constitui-se de um relato memorialista de alguém que o conhecera bem de
perto, reconstituindo aquele ambiente de tensão que pairava na cidade.
Os políticos vinham repousar e esperar a sentença na companhia de meu pai, figura considerável do Partido Conservador. Ainda vejo a cena, que eu espiava ardendo de curiosidade. Vejo a figura atraente, fascinante, de Celso Magalhães, o promotor público. Em torno dele, uma admiração entusiástica, comovida, que eu não compreendia, mas cuja intensidade me avassalava. Das impressões que então recebi, ficou-me a imagem de um rapaz muito magro, feio, ossudo, encovado, móvel e falador. Não me lembro como se trajava, apenas me recordo de que trazia na botoeira do paletó uma flor vermelha, lágrima-de-sangue, que por muito tempo se chamou no Maranhão A Flor do Celso. 41
Terceiro, em 1878, a derrota dos conservadores nas eleições para o Partido Liberal
foi desfavorável à carreira pública de Celso Magalhães. De fato, no mesmo ano, com a
ascensão do Partido Liberal ao poder constatou-se que “por ato de 29 de março, o marido de
D. Ana Rosa, Dr. Carlos Fernando Ribeiro, que, na qualidade de 2º vice-presidente da
Província, assumira o Governo no dia anterior, demitiu Celso Magalhães”. 42
As disputas partidárias entre liberais e conservadores não se centravam nos seus
ideais frente ao Estado, mas nas relações com os grupos de famílias que dominavam a vida
política e utilizavam os partidos para satisfazer seus interesses pessoais. A cada nova eleição,
se o Partido da situação fosse derrotado havia renovação no quadro de funcionários. Com a
vitória dos liberais, além da demissão de Celso Magalhães foram exonerados de seus cargos:
40 MONTELLO, op. cit., p. 542. 41 GRAÇA ARANHA, José Pereira da. O meu primeiro romance. São Luís: ALUMAR, 1996. p. 80. 42 MORAES, loc. cit.
35
“o delegado de polícia do Termo da Comarca da Capital, Antonio José da Silva e Sá, e o 3º
suplente do mesmo, Antonio Joaquim Ferreira de Carvalho”. 43
Pode-se dizer que a exoneração do cargo de promotor público foi a resposta dada
pela parte acusada - no caso a família Ribeiro, no julgamento do homicídio do escravo - à
ousadia de Celso Magalhães por ter exposto uma senhora da elite, enfim, por ter tido a
coragem de assumir uma atitude humanitária e de adesão à causa anti-escravista, bem como
uma retaliação política, conforme a representação de Montello.
E quem está por baixo, agora, é o nosso promotor – replicou o Policarpo, com um semblante apreensivo, já no largo de São João. O Dr. Carlos Ribeiro, numa roda do Largo do Carmo, bem defronte de minha farmácia, disse bem alto, para quem quisesse escutar que o seu primeiro ato, assim que assumisse a presidência da Província, era exonerar o Dr. Celso da promotoria, e a bem do serviço público. 44
Essa ação premeditada, de acordo com o trecho do romance (na afirmativa do
personagem Policarpo), trouxe dissabores para a vida de Celso Magalhães. Além de ser
demitido da promotoria, ele enfrentou diversas barreiras para o exercício profissional dentro e
fora da capital, pondo à prova o prestígio e a boa reputação que conquistara com ardor e
honestidade, com a recusa aqui e ali para advogar. Terminado o fim de sua vida terrena,
recebeu uma despedida inesquecível do povo maranhense, sobretudo das classes subjugadas
pelo governo provincial, como pode novamente ser retratado na referida produção literária:
O ataúde do Dr. Celso sai pela porta do sobrado, trazido por seis crioulos robustos, para ser posto no alto da imponente carreta negra, que duas parelhas vistosas, de guizos no pescoço e plumas na cabeça, vão lentamente puxar na direção do cemitério, na tarde de junho esplêndida de sol, já crispada pelo si-si-si das primeiras cigarras. (...) Toda gente caminha de cabeça descoberta, o chapéu na mão, a fisionomia pesarosa, com a sensação nítida de que ocorreu na cidade uma catástrofe, e são professores, deputados, senadores, jornalistas, poetas, comerciantes, alunos do liceu, homens e mulheres do povo, e, sobretudo muitos negros, estes na cauda do cortejo, vindos sem que ninguém os chamasse. 45
Notícias de seu falecimento foram publicadas em alguns jornais da época. Criado
em 1878, de propriedade de: Gomes de Castro, Moraes Rego, Manoel Ribeiro da Cunha e
Abílio Ferreira Franco, o jornal político ludovicense O Tempo, uma semana depois do
ocorrido, precisamente em 16 de junho de 1879, homenageou o literato pela contribuição
43 CANTANHÊDE, op. cit., p. 69. 44 MONTELLO, op. cit., p. 547. 45 Ibid., p.549.
36
jornalística para o periódico, bem como pela sua atuação no campo das letras e da justiça.
Segundo o jornal, foram de importância capital para a província. O fragmento abaixo não
deixou de enfatizar também o abalo profundo que tivera o literato e a mudança de
comportamento por ter sido afastado do serviço público.
Concluio em 1873 o curso jurídico, em que era graduado, e durante elle à estampa um volume de poesias, que foram devidamente apreciadas. Restituído à província, assumio a redacção da parte litteraria do Paiz e seus escriptos revelaram um talento robusto e copiosa instrucção. Nomeado promotor publico da comarca da capital, exerceu com inexcedível zelo o espinhoso cargo (...). Arrancaram-lhe o emprego, que tão dignamente exercia, e como se não fora bastante para punir-lhe a independência do caracter, deram por pretexto à demissão a conveniência do serviço publico! A injuria magoou cruelmente o brioso mancebo. (...) Trouxe-o a reflexão para as fileiras do partido conservador, e honrando-os com a sua companhia na redacção do Tempo, depoz a penna quando a mão gelada não podia mais empunha-la. 46
O mesmo periódico, na página seguinte, registrou o comentário dos jornais da
província do Maranhão: Paiz, Diário do Maranhão, A Flecha e o Publicador Maranhense, a
respeito do famigerado finado, reconhecendo-lhe a competência, o compromisso e a labuta
diária.
De cunho comercial, paulatinamente abrindo espaço para a política e literatura, o
jornal Paiz escreveu sobre o tempo em que Celso Magalhães colaborou no referido periódico,
distribuindo-lhe elogios, como o caráter incólume no cumprimento da lei sem distinção de
clientela.
Era Celso de Magalhães um vigoroso talento, um nobilíssimo caracter. Exercendo por muitos annos o cargo de promotor, jamais teve a justiça sacerdote mais devotado. Para o rico, para o pobre, para o desvalido, para o potentado foi sempre o mesmo, e embora levantassem-se contra si os protestos dos desgostosos, elle cumpria impassível o seu dever, porque comprehendia a justiça. Também o Paiz, onde muitas vezes o talento do chorado escriptor brilhou como folhetinista, ou em romances originaes, ou em typos tão primorosamente desenhados, ou em paginas traçadas ao capricho de uma rica phantasia, também nós sentimos a mais intima e intensa dor. 47
O jornal Diário do Maranhão, criado em 1855, com publicações de notícias
oficiais do governo da província e transcrições da imprensa estrangeira e nacional, e voltado
para o comércio, indústria e lavoura, frisou o valor dele como jornalista para a imprensa da
46 Celso Magalhães. O Tempo, São Luís, 16 jun. 1879, p.1. 47 Ibid., p.2.
37
província e como escritor para a literatura nacional, lamentando sua morte: “Perdeu a
redacção do Tempo um robusto talento e a imprensa maranhense e as lettras patrias um de
seus mais distinctos cultores. Associamo-nos à dor dos colegas do fallecido, e sobre seu
ataúde depomos a nossa coroa de saudades”. 48
Por sua vez, o periódico literário A Flecha fez o seguinte comentário: “A redacção
da Flecha, cheia de profunda magoa, registra o lamentável fallecimento do talentoso Dr. Celso
da Cunha Magalhães, e sentimenta por isso à illustrada redacção do Tempo e à Exm. Família
do finado”. 49
Criado em 1852, a gazeta oficial, política, literária e comercial, assim nomeava-se
o jornal Publicador Maranhense limitou-se às seguintes linhas: “Faleceu ante-hontem,
proveniente de uma febre perniciosa, sendo hontem sepultado, o Dr. Celso da Cunha
Magalhães, que exerceu o cargo de promotor publico da capital, e ultimamente tinha
escriptorio de advocacia nesta cidade. Sentimentamos aos parentes do finado”. 50 Pelas
informações deste jornal, terminara o bacharel seus últimos tempos advogando.
Literato e promotor público, Celso Magalhães constitui uma história de vida que
se observava com freqüência na província: jovem casado, não deixou filhos e subitamente
faleceu. Sua forma de pensar reflete-se nas obras que escreveu. Seu pensamento era o
pensamento dos intelectuais da época (os que seguiam a carreira na faculdade de direto de
Recife).
Celso Magalhães foi um intelectual de atitudes firmes, ao mesmo tempo anti-
escravistas e segregacionistas. Apesar do mórbido preconceito que carregava sua província
natal, não se deixou intimidar pelas circunstâncias, nem se vendera aos influentes e nem se
deixou corromper por eles como já foi dito anteriormente. Colocou seu caráter, suas
aspirações, sua dignidade acima do status.
Assumira uma postura redentora e abolicionista em prol dos escravos, ao discursar
sobre a liberdade, escrever em jornais sobre o assunto e defender a causa do negro perante o
tribunal. No processo da baronesa de Grajaú, a justiça prevaleceu para a classe senhorial
independentemente da culpa atestada ou não do crime cometido. Isso vem confirmar a
influência do poder e dos costumes coloniais sobrepondo-se a quaisquer nuances,
demonstrando tal julgamento, o reflexo de uma sociedade escravagista, decadente e debruçada
48 Ibid. 49 Celso Magalhães. O Tempo, loc. cit. 50 Ibid.
38
em suas práticas colonialistas, suas convenções sociais, nos mandos e desmandos dos que têm
posses, prestígio social e que com sua influência podem tudo.
Enfim, Celso Magalhães é um homem bastante lembrado pelas academias atuais,
por seu legado literário e sua atuação pública no Maranhão. Ele é patrono da cadeira nº. 05 da
AML (Academia Maranhense de Letras) e da cadeira nº. 16 da AMLJ (Academia Maranhense
de Letras Jurídicas). Segundo Carlos Lima, pela lei municipal nº. 345, de 14 de janeiro de
1924, uma rua da cidade de São Luís antes conhecida como Rua do Veado, levou seu nome:
Rua Celso Magalhães, localizada entre a Rua da Imprensa (Barão de Itapary) à Avenida Silva
Maia. 51. Sem dúvida, ele deixou sinais impagáveis nas letras maranhenses, na imprensa
escrita e no serviço público como advogado e promotor.
51 LIMA, Carlos de. Caminhos de São Luís: ruas, logradouros e prédios históricos. São Paulo: Siciliano, 2002. p. 170.
39
Ilustração 2 – Aluísio Azevedo. In: Aluísio Azevedo: vida e obra (1857-1913), de Jean Yves
Mérian.
40
2. ALUÍSIO AZEVEDO
O estudo sobre Aluísio Azevedo é interessante para se entender um pouco da
história do Brasil, sobretudo do Maranhão monárquico. Neste segundo capítulo, tem-se um
breve esboço da vida e obra desse literato, ressaltando os principais aspectos que exprimem
objetivamente o que ele representou para a sociedade da época.
Aluísio Azevedo não foi um aristocrata. Filho de comerciante e uma costureira,
ele não freqüentou faculdade. Despertou cedo o hábito de ler por incentivo dos pais e o talento
para a pintura. No Rio de Janeiro, conquistou fama ao lado de seu irmão Artur Azevedo, seja
produzindo peças teatrais, seja fazendo caricaturas para os jornais da época.
Tornou-se referência no estilo realista, com o lançamento de O Mulato. No
Maranhão, travou embates com o clero principalmente por conta desse romance E seguiram-
se outras obras nessa vertente literária. Quando assumiu as funções de vice-cônsul, sua vida
de escritor mudou completamente. Passou a fazer viagens internacionais, cumprindo os
deveres que o cargo exigia. Depois de algum tempo, morreu na Argentina.
Alguns autores escreveram sobre Aluísio Azevedo e sua produção literária,
destacando: Jean Yves Mérian, em Aluísio Azevedo: vida e obra (1857-1913), que faz um
estudo minucioso dos cinqüenta e seis anos vividos pelo escritor maranhense; Domingos
Barbosa, em A vida de Aluísio Azevedo, fundador da cadeira nº. 2 na AML; Joaquim Vieira da
Luz, em Aluísio Azevedo: discurso pronunciado por Joaquim Vieira da Luz, a 14 de abril de
1921; José Ribeiro de Sá Valle, em Anthologia Maranhense; Raimundo de Menezes, em
Escritores na intimidade; Jacyntho José Lins Brandão, em Presença maranhense na literatura
nacional e Dunshee de Abranches, em O cativeiro, que rememora um detalhe da vida da mãe
de Aluísio Azevedo. E a contribuição de jornais como Pacotilha, Publicador Maranhense, O
Pensador, Suplemento Literário de “A Manhã”, O Imparcial e O Estado do Maranhão.
Diante disso, não é fácil escrever sobre o literato indomável, corajoso e
revolucionário que era Aluísio Azevedo. Isso para dizer, o quanto é extenso e profundo as
informações referentes a ele, sem mencionar as obras do escritor.
Antes, Aluísio Azevedo não era bem-vindo em sua terra natal pela reação ao
realismo, ao positivismo e ao racionalismo impregnados no que escrevia, contrapondo-se aos
costumes da época e ao poder clerical. Em contraposição, foi ovacionado em outros lugares
pelos escritos literários. Agora, ele é motivo de orgulho para os maranhenses, por ser
referência nacional como o foram Gonçalves Dias e João Francisco Lisboa.
41
2.1 A vida no Maranhão
Aluísio Tancredo de Azevedo, ou simplesmente Aluísio Azevedo nasceu em 14
de abril de 1857 na cidade de São Luís (Maranhão). Foram seus pais David Gonçalves de
Azevedo e Emília Amália Pinto de Magalhães, ambos portugueses.
Quando os pais de Aluísio Azevedo se conheceram, já haviam tido outro
relacionamento. David Gonçalves de Azevedo tinha “aproximadamente 22 anos quando
chegou ao Brasil”. 52 Era viúvo e não tinha filhos, até constituir uma segunda família, da qual
saiu o ilustre escritor. A profissão que ele exercia era de comerciante, por sinal “muito
estimado e respeitado, não só pela comunidade portuguesa, mas por toda a sociedade
maranhense” 53, pelo papel que havia desempenhado durante a guerra civil da Balaiada,
chefiando as tropas portuguesas. Recebeu o título de vice-cônsul de Portugal em 14 de maio
de 1859. Essa designação que lhe foi conferida só trazia prestígio, porém, não garantia uma
vida luxuosa para si e seus familiares.
Já Emília Amália Pinto de Magalhães foi uma mulher que desafiou os costumes
da época. Ela tinha 15 anos quando veio de Portugal com seus pais Custódio José Pinto de
Magalhães e Maria José Magalhães. Teve uma educação primorosa e um casamento imposto
com Antônio Joaquim Branco, passando a ser chamada de Emília Branco. O casal tinha
muitos problemas que só aumentaram com o nascimento da filha. Emília Branco sofria com a
infidelidade do marido que “tinha como amante uma escrava negra com quem aparecia em
público até mesmo na presença da esposa”. 54
Não suportando mais tal infâmia, Emília Branco fugiu com sua filha, constituindo
tal ato um mau exemplo para as mulheres da sociedade que teriam de conformar-se com o
adultério de seus maridos em silêncio e com resignação. Dignamente, educou e sustentou sua
filha como costureira. Dunshee de Abranches relatou em O cativeiro como e por quem ela foi
acolhida, no caso a família Abranches, depois desse triste infortúnio.
Em certa manhã de maio de 1880, tive assim a felicidade de ser apresentado a D. Emília Branco, amiga dos primeiros anos de minha tia Amância. Tinha esta por ela uma piedosíssima amizade. Conhecera-a no dia mesmo da sua chegada ao Maranhão; e, depois, tendo de acompanhar o seu pai ao exílio, só
52 MÉRIAN, Jean Yves. Aluísio Azevedo: vida e obra (1857-1913). Rio de Janeiro: Tempo e Espaço Banco Sudameris – Brasil; Brasília: INL, 1988. p. 27. 53 Ibid., p. 25. 54 Ibid., p. 30.
42
pôde revê-la muito mais tarde. Estava então no apogeu da sua fulgurante formosura. Vivia requestada, perseguida e adulada nas recepções da aristocracia de São Luís. Acompanhou depois com profunda dor as suas desventuras e adversidades dramáticas. E, ao se revoltar contra ela quase toda a sociedade maranhense, não a abandonou com a sua caridosa assistência nesses dias amargurados de sua queda quando alvejava o desprezo de muitos que haviam sido os verdadeiros culpados da sua desgraça. 55
Alguns anos depois, os pais de Aluísio Azevedo resolveram viver juntos. Eles
viveram modestamente, enfrentando barreiras e hostilidades da própria sociedade. Dessa
união, “provieram, além de Aluísio e duas filhas, Artur Nabantino Belo de Azevedo e
Américo Garibaldi Gonçalves de Azevedo”. 56 Segundo Mérian, “seus filhos testemunham
que eles foram um casal exemplar”, 57 educando-os na moral e nos bons valores, mesmo com
poucos recursos.
Sobre a vida estudantil de Aluísio Azevedo, recebeu os primeiros ensinamentos
no convívio familiar. Sua mãe foi a grande incentivadora na leitura. Além disso, “dispunha de
uma boa biblioteca e, sobretudo dos livros do Gabinete Português de Leitura cujo presidente
era o próprio David Gonçalves de Azevedo”. 58Em virtude da dificuldade econômica em que
passava sua família, não teve oportunidade de freqüentar a universidade de Recife ou do Rio
de Janeiro, a exemplo de alguns jovens maranhenses como Celso Magalhães, de famílias
abastadas, que estudavam nesses centros de ensino.
Cursou o ensino primário com os professores Raimundo Joaquim Cezar e José
Antonio Pires. Matriculou-se, depois, em 1870, no colégio Liceu Maranhense onde estudou
até os 13 anos. Lá, o ensino de desenho e pintura ministrados pelo professor italiano
Domingos Tribuzzi despertou-lhe grande interesse, razão pela qual pensou seguir a profissão
de pintor. Percebia-se que ele tinha talento para a arte e era necessário investir nele.
“Infelizmente não tinha meios para ir estudar na Itália, em razão da precária situação
financeira do pai”. 59 Segundo o suplemento literário de A Manhã, ele requereu
insistentemente uma pensão à assembléia maranhense para partir para a dita cidade européia,
a fim de aperfeiçoar seus estudos de pintura, mas isso lhe foi negado. 60
55 ABRANCHES, Dunshee de. O cativeiro. São Luís: ALUMAR, 1992. p. 76. 56 LUZ, Joaquim Vieira da. Aluísio Azevedo: discurso pronunciado por Joaquim Vieira da Luz, a 14 de abril de 1921. São Luís: Edição da Legião dos Atenienses, 1921. p.16. O texto desse autor também consta no jornal O Ateniense, números 6 e 7, de março e abril de 1921. 57 MÉRIAN, op. cit., p. 32. 58 Ibid., p.41. 59 Ibid., p.46. 60 Notícia sobre Aluísio Azevedo. Autores e Livros: suplemento literário de “A manhã”, ABL, v. 2, 5 abr. 1942. p. 167.
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Aluísio Azevedo não foi uma criança tímida ou fechada, sem ter amigos nos
momentos de brincadeira e descontração. “No Maranhão”, um conto autobiográfico que faz
parte do seu livro de contos Demônios (1893) relata um pouco da sua infância. Sem dúvida,
era um menino alegre, cheio de vida, curioso e audacioso para aprender algo. Apreciava o
litoral maranhense e divertia-se, quando menino, em companhia das crianças Luiz e Rosa no
sítio Boa-Vinda, situado à margem do rio Anil, de propriedade dos pais deles Cunha e
Mariana que mantinham boas relações com a família Azevedo, como confirma Sá Valle em
Anthologia Maranhense, onde consta o conto mencionado.
Estes passeios a Boa-Vinda constituíam um dos maiores encantos da minha infância. Criado a beira mar na minha ilha, eu adorava a água; aos doze annos era já valente nadador, sabia governar um escaler ou uma canoa, amainar com destreza a vela num temporal, e meu remo não se deixava bater facilmente pelo remo de pá de qualquer jacumahuba pescador de piabas. Sahiamos quase sempre no segredo da primeira madrugada e chegávamos ao sitio ao repontar do sol. Ah! Que deliciosos passeios! Que bellas manhãs frescas, deslisadas por entre os mangaes, sentindo-se rescender forte o odor salgado das marezias!61
O jovem Aluísio Azevedo teve seu primeiro emprego aos 12 anos como caixeiro
no escritório de um despachante da Alfândega de São Luís, colocado pelo pai. 62Dedicar-se ao
comércio era o caminho para aqueles em que as condições materiais impossibilitavam sonhar
com uma carreira brilhante. Aparentemente, era o caso da família Azevedo. Mas, “a mãe de
Aluísio teria gostado que seus filhos pudessem terminar os estudos secundários”. 63 Em
conseqüência disso, sua formação intelectual ficou interrompida por um tempo.
Até 1875, Aluísio Azevedo permaneceu em sua cidade natal, exercendo os ofícios
de “mestre escola, despachante de alfândega, guarda-livros, desenhista de jornal, cenógrafo,
professor de desenho em casas particulares, jornalista, retratista, e até gerente de hotel” 64. E
também lecionou português no colégio Feillon. Com o apoio da mãe, decidiu transferir-se
para a capital do Império, onde já se encontrava seu irmão Artur Azevedo, a fim de fazer
carreira no mundo das Artes. E é nesse ano, segundo Mérian, que nasceu o interesse em
Aluísio pelo romance. 65
61 Cf. SÁ VALLE, José Ribeiro de. Anthologia Maranhense. São Luís, 1937. p.20. 62 BARBOSA, Domingos. A vida de Aluísio Azevedo. Maranhão: Departamento de Cultura do Estado, 1966. p. 3. 63 MÉRIAN, op. cit., p. 49. 64 MENEZES, Raimundo de. Escritores na intimidade. São Paulo: Livraria Martins, s.d., 1958. p.37. 65 MÉRIAN, op. cit., p. 87.
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2.2 Sua estada no Rio de Janeiro
Em 1876 aos 19 anos, Aluísio Azevedo desembarcou no Rio de Janeiro. Lá,
permaneceu por mais ou menos dois anos. Durante um ano, estudou na Academia Imperial de
Belas Artes, com o pensamento de aperfeiçoar-se em desenho e pintura. Mas, ele freqüentou
essa escola como ouvinte, pois já havia encerrado o período de matrícula. No Maranhão, ele
já demonstrava talento para as artes pictóricas que, sem conhecer ainda regras elementares de
desenho, “pintou – a óleo! – uma truculenta, uma pavorosa cena de barricada, a que não
faltava imaginação, e em que abundavam cores berrantes“. 66
Para isso, exerceu principalmente a atividade de caricaturista “no Fígaro, no
Mequetrefe e na Revista Ilustrada” 67, além de fazer comentários em tom humorístico nas
legendas das caricaturas. Alguns desenhos seus foram publicados em A comédia popular, na
Vida fluminense e no Zig-Zag. O que ele recebia pelos desenhos não era suficiente para
manter-se, vindo a passar por algumas dificuldades; dificuldades essas amenizadas com a
presença e auxílio de seu irmão Artur Azevedo, já estabelecido há dois anos no Rio de
Janeiro.
Artur Azevedo teve uma grande influência sobre Aluísio, tanto no campo do
teatro quanto na leitura. Desde crianças, eles faziam peças teatrais juntos, sendo Aluísio quem
se encarregava da pintura e dos arranjos do cenário. Com o passar do tempo, o irmão de
Aluísio Azevedo acabou por conquistar fama na Corte, como teatrólogo. Isso abriu caminho
para que o jovem Aluísio tivesse espaço naquela sociedade e até conseguir trabalhos nos
jornais.
Assim era o ambiente que Aluísio Azevedo viveu no Rio de Janeiro: modesto,
sem luxo e com pouquíssimos móveis. Segundo Joaquim Luz, no cômodo onde ele morava
havia “uma sala vazia, ao canto uma cama desfeita, uma pequena mêza; do lado oposto, um
vistozo biombo. Eram esses todos os domínios de Aluísio, nesse tempo o intelectual focado, o
romancista da moda, em pleno triunfo fruindo um radiozo êxito”. 68
Em A vida de Aluísio Azevedo, Domingos Barbosa registrou a boa acolhida que
Aluísio Azevedo teve do público fluminense, por ocasião da representação da peça “A filha
de Maria Angú”, de Artur Azevedo.
66 BARBOSA, op. cit., p. 4. 67 Ibid. 68 LUZ, op. cit., p.24.
45
Aproveitando a sua “récita de autor” e as estrondosas homenagens que então recebia Artur, chamado várias vezes à cena, travou, em uma delas, da mão de Aluísio, que se achava nos bastidores, levou-o ao palco, e disse à platéia: “Apresento ao generoso público fluminense (naquele tempo ainda não se dizia “carioca”) Aluísio Azevedo, irmão do pai da filha de Maria Angú”. E a platéia ovacionou freneticamente os dois. 69
Entre 1876 e 1877, Aluísio Azevedo colaborou na imprensa do Rio de Janeiro,
fazendo ilustrações com temáticas muito comuns naquele momento: escravidão, monarquia, o
próprio imperador, abolição, república. Ele utilizou-se de alguns pseudônimos, tais como:
Pitribi, Lhinho, Vitor Leal, Gisoflê e Samicúpio dos Lampeões, a fim de não se expor
abertamente como era costume entre aqueles que trabalhavam em jornais e revistas,
denunciando certos problemas da sociedade brasileira.
As caricaturas de Aluísio Azevedo deram-lhe suporte para a produção de textos
literários. Pois, a construção da narrativa e das personagens perpassava pela idealização de
como seriam, pelo desenho e observação de seus movimentos, do aspecto psicológico, enfim,
se eram boas ou más no comportamento e nas atitudes. Era dessa forma que ele escrevia seus
romances. Conforme Jacyntho Brandão:
É sabido como Aluísio costumava, antes de escrever, desenhar suas personagens. E à vista desses retratos é que passava a montar o enredo e os caracteres. A figura, pois, tinha para ele suma importância. E, então, os ideais do Realismo vieram perfeitamente a calhar com suas tendências, já que, baseados nos estudos de Lombroso e dos positivistas, intentavam estabelecer uma correlação entre conformação física e caracterológica. 70
Assim como Celso Magalhães, Aluísio Azevedo era convicto abolicionista,
anticlericalista ardoroso e defensor das idéias positivistas. Através das caricaturas e dos textos
que produzia, ele expressava tais pensamentos. No Rio de Janeiro, em contato com outros
escritores, intelectuais, artistas e homens políticos, especialmente Teixeira Mendes, Lopes
Trovão e José do Patrocínio, “ele aprofundou seu conhecimento da filosofia positivista e
fortaleceu suas convicções abolicionistas e republicanas” 71, já adquirido em São Luís do
Maranhão.
69 BARBOSA, op. cit., p.5. 70 BRANDÃO, Jacyntho José Lins. Presença maranhense na literatura nacional. São Luís: UFMA / SIOGE, 1979. p.49. 71 MÉRIAN, op. cit., p. 96.
46
Para os moldes da época, Aluísio Azevedo tomou uma atitude ousada na Corte,
algo novo para o Brasil, bem como para qualquer parte do mundo: a de montar um escritório
exclusivamente para a profissão de escritor, como aponta Jacyntho Brandão. 72 Quem se
dedicava à atividade literária, faltava-lhe incentivos para publicar as obras, a maioria da
população era analfabeta e havia a concorrência das obras portuguesas e francesas.
Dessa forma, pode-se perceber que a necessidade de reconhecimento do
intelectual que publicava obras, escrevia crônicas, romances e folhetins enquanto profissional,
já constituía uma preocupação desde o período imperial no Brasil e um anseio dos homens de
letras que queriam ser reconhecidos e respeitados como tais.
Além de caricaturista, ele desenvolveu também outras atividades no Rio de
Janeiro: “pintou, de colaboração, um pano de boca do theatro Gymnasio, parte do scenario da
Petite mariée do theatro Alcazar, e lecionou em diversos collegios e externatos desenho e
grammatica portuguesa”. 73
Quando Aluísio Azevedo já estava sendo reconhecido pelos trabalhos como
caricaturista pelo público do Rio de Janeiro, recebeu a notícia da morte súbita de seu pai, em 8
de agosto de 1878. Segundo Mérian, ele e seu irmão só tomaram conhecimento do
falecimento dele, 15 dias depois e através da imprensa. 74 Então, decidiu retornar para São
Luís, mesmo não gozando de boa situação financeira, para ajudar sua mãe e seus irmãos a
superar essa grande tristeza.
Voltava ao Maranhão sem emprego e sem apoio, só com a formação intelectual e
a experiência adquirida para alcançar destaque na imprensa ludovicense. Nesse tempo, afirma
Menezes que Aluísio Azevedo “tinha, então, 20 anos: era delgado, elegante, lindo. Vestia-se
bem. E amava e dominava todas as morenas. Nas ruas, nas sociedades, nos bailes, seu
convívio era disputado com interesse pelas suas formosas patrícias”. 75
2.3 Embates com o Clero ludovicense
Aluísio Azevedo, recém-chegado do Rio de Janeiro, encontrou sua cidade São
Luís com o mesmo quadro sócio-econômico característico desde sua partida: produção
72 BRANDÃO, op. cit., p. 52. 73 CARVALHO, Adherbal de. Esboços Literários. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1902. p. 107. 74 MÉRIAN, op. cit., p. 140. 75 MENEZES, op. cit., p. 38.
47
agrícola instável, mão-de-obra escrava, uma população analfabeta na sua maioria e conflitos
partidários entre famílias. O acontecimento que alterou o marasmo existente na capital da
província foi o assassinato do escravinho Inocêncio e o conseqüente processo criminal
movido pelo promotor público e escritor Celso Magalhães. Outra turbulência foram as
disputas religiosas, que, posteriormente, terminou se envolvendo.
Ingressou como jornalista, inicialmente, no jornal A Flecha em 1879, redigindo
uma seção humorística com o pseudônimo de “Pitribi”. Fundou esse periódico juntamente
com Paulo Duarte, Eduardo Ribeiro, Agripino Azevedo e João Afonso do Nascimento. Nele
faziam críticas a D. Pedro II, aos parlamentares e, especialmente, ao clero católico. Era
também um veículo de propagação das idéias positivistas, na mesma linha dos jornais
Pacotilha e O Pensador.
O jornal Pacotilha, com o subtítulo “Hebdomadário Crítico e Noticioso”, de
cunho propagandista da abolição e da República, foi também fundado em 1880, por Aluísio
Azevedo que redigia resenhas críticas com o pseudônimo de “Lhinho” e Vitor Lobato (filho
de sua irmã do primeiro casamento de D. Emília). Ele demonstrou seu anti-clericalismo, ao
escrever o poema “A Egreja”, em que expressa a máxima naturalista, ao humanizar a
instituição religiosa, dando-lhe características depreciativas.
Eil-a velha, solitária, rabugenta, Rheumatica, infelis, desamparada, Sempre a ralhar, phrenetica, ralada - um pingo cáe não cáe de cada venta; Pelo canto da bocca desdentada Uma baba viscosa e fedurenta Está sempre a escorrer na macilenta E descahida carne da papada. Entanto – áqueles pés, que um’erysipela A linda forma um dia transformara E agora envoltos dormem na flanela, Já muita gente boa suspirara, Já muito olho de lei vio-se em barrela - supplicando de amor a graça rara. 76
Por sua vez, o jornal O Pensador, “de um grupo de moços (e cujo título ficou
sendo a antonomásia pela qual era vulgarmente conhecido Eduardo Pinheiro, que se faria
76 AZEVEDO, Aluísio. A Egreja. Pacotilha, São Luís, 12 dez. 1880. p. 4.
48
engenheiro militar e seria governador do Amazonas)” 77, apresentava-se como “Órgão dos
Interesses da Sociedade Moderna” desde 1880. Aluísio Azevedo fazia parte deste jornal como
cronista, assinando seu próprio nome nas crônicas, em vez de pseudônimos e seguindo a linha
de pensamento anticlericalista. A natureza desse periódico se faz expressar no trecho da seção
Nós e o Malho:
Ser pensador é ter abertos ante os olhos todos os horizontes que o espírito humano pode devassar. Ser pensador é procurar por todos os meios fazer rebentar idéias do cérebro humano. Ser pensador é mergulhar no passado, no presente e no futuro em busca das grandes verdades que o Universo guarda ao homem. Ser pensador é ser homem, finalmente, e ser homem é assumir todos os aspectos d’esse ser zoológico bípede que tem por arma – a razão.78
Pelo visto, as idéias positivistas pautadas na racionalidade constituíam a vertente
principal do jornal O Pensador. “A Igreja e a escravatura eram, aos olhos dos progressistas, as
duas instituições responsáveis pela decadência do Maranhão”. 79
Nesse sentido, a Igreja justificava o sistema escravocrata por vários motivos.
Entre eles: acumulou vastas extensões de terras ao longo do tempo, adquiriu muitos escravos,
recebia doações de fazendeiros e senhores de escravos e exercia uma forte influência
ideológica sobre as mulheres, no que diz respeito à manutenção da moral, do casamento e da
educação dos filhos.
Através da imprensa, os jovens positivistas como Aluísio Azevedo e a Igreja
travaram discursos inflamados que só aumentaram com o aparecimento do jornal anticlerical
O Pensador em contraposição ao jornal Civilização, da Igreja Católica.
O jornal Civilização que assim denominava-se “Órgão dos Interesses Católicos”,
surgiu em 14 de agosto de 1880 pelo bispo Dom Antônio Cândido Alvarenga. Tinha o
objetivo central de recuperar a credibilidade que a Igreja estava perdendo junto aos fiéis,
especialmente, os jovens maranhenses. Mas também de reanimar a fé e combater aqueles que
questionavam o papel da Igreja na sociedade.
As tensões entre os jornais Civilização e O Pensador tiveram seu ponto máximo,
quando Aluísio Azevedo publicou o romance O Mulato em 9 de abril de 1881. Um romance
naturalista e anticlerical que revelava aspectos pertinentes da sociedade maranhense:
preconceito racial, um clero corrompido, desigualdade social, comerciantes gananciosos e
77 BARBOSA, loc. cit. 78 Nós e o Malho. O Pensador, São Luís, 10 out. 1880. p.4. 79 MÉRIAN, op. cit., p. 155.
49
empregados corruptos, passando tal obra a ser uma acusação do estado caótico da província.
Era um livro polêmico que atraía o público curioso para ter acesso a seu conteúdo.
A Civilização apenas disse isso do Mulato e tanto bastou para que desse livro de escândalo, que não respeitava a religião, se vendessem dois milheiros, dentro dum curto período. É que a província já se manifestava curiosa, como somos hoje, como foram e serão, em todas as épocas, os povos, especialmente dos livros tidos por maus. Com o Mulato, repetiu se o caso daquela anedota: - Não olheis para ali, que ficareis cegos... – Eu arrisco um... Muita gente, naquele tempo, só leu o Mulato, para se certificar se realmente Aluísio teve a coragem de escrever o que se espalhava a boca pequena do povo. 80
O livro era vendido na redação do jornal O Pensador, como destacavam os
principais jornais de São Luís: Paiz, Diário do Maranhão e Publicador Maranhense. Em
letras graúdas, dizia assim o jornal Publicador Maranhense, de propriedade de Ignacio José
Ferreira, na seção de anúncios: “Grande successo do dia! O Mulato. Romance maranhense de
Aluísio Azevedo. Vende-se na redacção do Pensador. Preço – 3$000 réis”. 81
Mas também o anúncio do dito romance saiu no próprio jornal O Pensador, na
seção “Echos da Rua”: “Sahio hontem O Mulato do nosso festejado chronista Aluízio
Azevedo – Quem quiser conhecer o cônego Diogo, aquelle tratante que tanto se parece com
João Gadelhudo, agora é ocasião. Vende-se no nosso escriptorio á Rua da Palma”. 82
Esse romance O Mulato foi calorosamente acolhido pela imprensa do Rio de
Janeiro e de outras províncias. Entretanto, em sua terra natal não teve a mesma receptividade,
por ser de denúncia social e ir de encontro à Igreja Católica. O jornal Civilização, através do
jornalista e professor de filosofia do Liceu Maranhense, o padre Raimundo Alves da Fonseca
(o mesmo que digladiou ideologicamente com Celso Magalhães), fez duras críticas sobre a
obra em questão e seu autor (referindo-se a Aluísio Azevedo pelo nome de “Zote”), que foram
registradas na seção “Chronica” de O Pensador.
O Mulato é um trabalhosinho alambicado servil imitação estrangeira; é um monte de retalhos de vários auctores; o mais é do Zote (...). Segundo o descabelado espírito aphrodisaco, que audazmente levanta o focinho em todo o romance, cremos que o Zote não tem a mais fraca idea dos novos intuitos e processos da escola realista. Para que o Zote nos desse a medida exacta do seu realismo, devia abandonar essa vidinha peralvilha, de pó de arroz e escrevinhadelas tolas contra a vida alheia: vá para a foice e o machado. Elle que tanto ama a natureza, que não crê na metaphisica nem na Religião, que
80 LUZ, op. cit., p. 21-22. 81 Annuncios. Publicador Maranhense, São Luís, 10 abr. 1881. p.3. 82 Echos da Rua. O Pensador, São Luís, 10 abr. 1881. p.3.
50
só tem enthusiasmo pelos bifes, banhos, pela saúde do corpo, n’uma palavra: pelo real sensível ou material, devia abandonar essa vidinha de vadio e ir cultivar as nossas uberrimas terras.83
Certamente, Aluísio Azevedo não se intimidou com tais palavras proferidas por
um representante do clero, recomendando-lhe que dedicasse o tempo para a lavoura, ao invés
das letras. Seguiram-se insultos, provocações e discursos exaltados na imprensa, campanhas
panfletárias, caricaturas, sermões e toda sorte de meios de combate para clericais e
anticlericais, marcando a história de São Luís em fins do século XIX.
2.4 Produção Literária
A produção literária de Aluísio Azevedo é bem diversificada quanto ao estilo,
reflexo de uma época e da sociedade da qual fez parte seu autor. Sua vocação para as letras é
incontestável. Leu muito, conquistando fama pela excentricidade e jeito próprio de exprimir a
realidade, através dos escritos publicados em jornais e revistas.
O romantismo presente em algumas de suas obras deveu-se a uma fase que, para
sobreviver da escrita, seguiu o modismo da época de fazer romances-folhetins, os quais
terminavam ora em tragédia ora em um final feliz, atraindo boa parte do público leitor. Até
então, a sua cultura literária baseava-se nos autores românticos, Chateubriand, Ponson du
Terrail, Almeida Garrett, Júlio Diniz, Camilo Castelo Branco, etc.
Na então Corte elle foi produzindo constantemente ora artigos ligeiros, contos, folhetins etc., ora comedias e dramas de pequena monta, e publicando nos jornais diários de grande circulação, romances escriptos sobre a perna (...) mais para satisfazer o interesse das folhas que lhe pagavam miseravelmente, (quando elle não o fazia de graça), do que para ser agradável aos numerosos leitores de rodapés, e dando a luz, outrossim, bellos trabalhos de experimentalismo litterario, em nada inferiores a muitos dos mestres francezes. 84
Com a leitura dos livros de Eça de Queiroz e dos naturalistas franceses e russos,
especialmente Émile Zola, e a aplicação das regras do estilo realista sem muitas inovações, o
literato maranhense tornou-se referência nacional. A nova tendência literária que surgia
apresentava as seguintes características: anti-romantismo, antimonarquismo, objetividade, 83 Chronica. O Pensador, São Luís, 30 jul. 1881. p.4. 84 CARVALHO, op. cit., p. 113-114.
51
racionalismo científico, materialismo, positivismo, encarava com o presente todo e qualquer
conflito do homem com seu ambiente e denúncia da realidade social.
O escritor maranhense fez literatura por mais ou menos 26 anos, produzindo
livros, peças de teatro, contos e crônicas para jornais. Com base em Autores e Livros –
Suplemento Literário de A Manhã, a bibliografia de Aluísio Azevedo está dividida em três
estilos literários: romance, conto e teatro.
� Romance
- 1880 – Uma lágrima de mulher (H. Garnier, Rio de Janeiro);
- 1881 – O Mulato (Tip. do jornal País, Maranhão);
- 1882 – O Mistério da Tijuca ou Girândola de Amores (saiu primeiramente na
Folha Nova, H. Garnier, Rio de Janeiro); Memórias de um condenado, folhetins da
Gazetinha (terceira edição com o título de Condessa Vésper, H. Garnier, Rio de
Janeiro, 1902);
- 1884 – Casa de Pensão (Tip. Militar de Santos e Cia.); Filomena Borges (Gazeta
de Notícias);
- 1887 – O Homem (Tip. de A. de Castro Silva);
- 1890 – O Coruja; O Cortiço (ambos, H. Garnier, Rio de Janeiro);
- 1894 – A mortalha de Alzira (apareceu primeiramente na Gazeta de Notícias,
assinado com o pseudônimo de Victor Leal, Fauchon e Cia.);
- 1895 – Livro de uma sogra (Tip. de Domingos Magalhães);
- Indefinição Cronológica – A filha de S. Excia.
� Conto
- 1893 – Demônios (S. Paulo Teixeira e Irmão);
- 1898 – Pegadas (H. Garnier, Rio de Janeiro).
� Teatro
- 1879 – Os Doudos (comédia em três atos, em colaboração com Artur Azevedo
em verso; alguns fragmentos segundo Velho da Silva, saíram na Revista dos
Teatros, em 1º de julho do mesmo ano);
- 1882 – Casa de Orates (colaboração com Artur Azevedo, comédia no Teatro
Sant’Ana); Galeria Teatral, A flor de Liz (ópera acomodada à cena brasileira por
Artur e Aluísio Azevedo; música de Leão Vasseur, Domingos de Magalhães,
editor);
- 1884 – Filomena Borges (comédia em um ato, representado no Teatro Príncipe
Imperial); O Mulato (drama em três atos, representado no Recreio Dramático);
52
- 1885 – Venenos que curam (comédia em quatro atos, em colaboração com
Eugenio Rouède, representada no Teatro Lucinda);
- 1887 – O sonhadores, Macaquinhos no sótão (comédia em três atos,
representada no Teatro Santana);
- 1889 – Fritzmack (colaboração de Artur Azevedo, revista fluminense de 1888,
em prosa e verso, um prólogo, três atos e 17 quadros, música de Leocadio Rayol;
Luiz Braga Junior, editor);
- 1890 – A Republica (revista de ano com Artur Azevedo, representada no mesmo
teatro);
- 1891 – Um caso de adultério (drama em três atos, com Emilio Rouede,
representada no Teatro Lucinda);
- 1893 – Demônios (S. Paulo Teixeira e Irmão);
- 1901 – Em flagrante (comédia em um ato, com Emilio Rouede, representada no
Teatro Lucinda);
- 1905 – Fluxo e refluxo (facécia em três atos no Almanaque Garnier);
- Indefinição Cronológica – “Pegadas” (H. Garnier, Rio de Janeiro); A Mulher
(drama fantástico); As Minas de Salomão (fantasia em cinco atos); O Inferno
(fantasia em três atos, colaboração de Emilio Rouède).
Mas em Panorama da Literatura Maranhense, Mário Meireles acrescentou outras
obras no currículo literário do literato maranhense: 1885 - Mattos, Malta ou Matta?; 1886 -O
Caboclo - drama traduzido de Emilio Rouède; 1890 - Paula Matos – romance; 1891 - O
Esqueleto, Mistérios da Casa de Bragança, O mulato – drama, Em flagrante delito - comédia
traduzida de Emilio Rouède; 1896 - O Crime da Rua Fresca – romance; 1898 -Pegadas –
conto; 1910 - O touro negro e Cartas – crônicas; indefinição cronológica: Daí Nippon -
poesia; e Japonesas e Norte Americanas.
Considerando o tempo em que esteve trabalhando como cônsul do Brasil em
outros países, Aluísio Azevedo paulatinamente deixou de produzir literatura, à medida que foi
se intensificando o itinerário de diplomata.
O teatro ficou em segundo plano na vida de Aluísio Azevedo. Ele adquiriu sua
formação teatral na prática e em parceria com Artur Azevedo. Na perspectiva realista,
desejava abrir um teatro ou montar peças em São Luís do Maranhão. Um projeto malogrado
que ele apostava como forma de instruir e despertar o senso crítico na população maranhense.
53
Segundo Mérian, ele “tinha três preocupações: favorecer o surgimento de atores maranhenses,
educar o público, promover o teatro realista”. 85
A transição do Romantismo para o Realismo é bem evidenciada com a publicação
de seus dois primeiros romances, Uma lágrima de mulher, escrito em 1879 e lançado em
1880 e O Mulato, publicado em 1881. Além deste, Casa de Pensão, O Homem, O Coruja, O
Cortiço e Livro de uma sogra representam juntos a fase realista do escritor.
Sem dúvida, a obra-prima de Aluísio Azevedo que lhe proporcionou destaque
nacional foi O Mulato. Nele se exprime o interesse pelas camadas mais baixas,
especificamente, o mulato e sua posição dentro da sociedade. “O Mulato, algo carregado em
tintas, quando trata do cônego Diogo, dadas as idéias do seu autor, perseguido na campanha
da Civilização, é verdadeiramente um livro esplêndido, para um escritor de 23 anos”. 86
De acordo com Raimundo de Menezes, antes de escrever esse romance, Aluísio
Azevedo havia narrado para dois amigos de infância: Fernando Perdigão e Virgilio
Cantanhede. Ao primeiro, contou a história do mulato quando passeavam em direção ao
Cutim; ao segundo, em Alcântara, na ocasião da festa do Divino Espírito Santo. 87
Tal romance denuncia o preconceito racial, seu ponto central, na província do
Maranhão, mas também mostra, através da interação das personagens, aspectos pertinentes
daquele ambiente social: escravidão, corrupção do clero, casamento, papel da mulher, etc.
O livro é, pois, um marco na evolução do romance brasileiro, abrindo um novo
período. Com ele fixa-se nas letras brasileiras a preocupação com a realidade objetiva, a
pintura documental da vida, a representação do cotidiano, o determinismo no desenvolver dos
acontecimentos e na caracterização dos temperamentos.
2.5 Carreira Consular
De 1896 a 1913, Aluísio Azevedo exerceu a carreira consular. Viajou pela
Europa, Ásia e América. Por esse tempo, entre satisfações e desilusões, dedicou-se muito
mais aos compromissos do cargo de cônsul do que a profissão de escritor. Não que a essa
altura estivesse avesso às letras.
85 MÉRIAN, op. cit., p. 174. 86 LUZ, op. cit., p. 34. 87 MENEZES, loc. cit.
54
Na verdade, ele “aspirava a uma função burocrática, a uma profissão alimentícia
que o libertasse da necessidade de escrever dia a dia”. 88 O trabalho de escritor não lhe
propiciava uma vida estável e equilibrada. Além de sua profissão ser marginalizada, ele estava
sujeito ao sucesso ou fracasso da literatura que produzia.
Em 1895, Aluísio Azevedo prestou concurso para cônsul de carreira na Secretaria
do Exterior, conseguindo plena vitória. Para tanto, “teve que estudar matérias que teria
cursado se tivesse completado os estudos secundários e ingressado na universidade” 89, já que
teve de interromper o aprendizado pela má situação financeira de sua família, contentando-se,
por algum tempo, com a atividade comercial.
A carreira de cônsul deu-lhe a oportunidade de conhecer vários lugares do mundo,
especialmente o continente europeu que tanto sonhara. Além disso, a chance de publicar
textos literários e reeditar romances, a exemplo do romancista e cônsul português Eça de
Queirós que, “nas várias cidades por onde havia passado, continuava a publicar romance e
colaborava nos jornais e revistas de Portugal e do Brasil”. 90
Se bem que durante os 16 anos no consulado, Aluísio Azevedo produziu pouca
literatura, em virtude das novas condições de vida da carreira de diplomata. Ele passou pelos
consulados de Vigo, Yokohama, La Plata, Salto Oriental, Cardiff, Nápoles, Assunção e
Buenos Aires, nessa ordem, com algumas viagens curtas pelo Rio de Janeiro.
Em Vigo (Espanha), Aluísio Azevedo permaneceu durante dois anos como vice-
cônsul, a partir de 22 de março de 1896. Ocupou seu tempo essencialmente na resolução de
problemas de emigração para a América, sobretudo, no envio de colonos para o Brasil,
atraídos pelo progresso da Amazônia com a crescente produção de borracha.
Em Yokohama (Japão), Aluísio Azevedo foi nomeado vice-cônsul do Brasil em
17 de abril de 1897. Ele deparou-se com o Extremo-Oriente, um novo mundo que o fascinou.
“O romancista integrou-se o mais que pôde na sociedade japonesa, adotando os costumes do
país, o quimono e a culinária japonesa”. 91Na estada de dois anos, ele preocupou-se mais em
produzir algo sobre o Japão, os japoneses em seus aspectos mais íntimos, do que com sua
função diplomática. Segundo Domingos Barbosa, ele guardara uma agradável lembrança da
terra do sol nascente.
88 MÉRIAN, op. cit., p. 595. 89 Ibid., p.51. 90 Ibid., p.596. 91 Ibid., p.609.
55
Em cujo retrato a aquarela, pintado em seda, e que não saía de cima de sua banca de trabalho, se viam um “kimono” bordado de crisântemos, e uns doces olhos amendoados. Recordação de uma suave figura japonesa, a quem se ligou em Yokohama, e que não o quis acompanhar mundo afora, no desejo de não deixar só os pais, velhinhos e encarquilhados, para os quais eram indispensáveis o seu sorriso de “geisha” e a sua meiguice de “mussmé”. 92
Em La Plata (Argentina), Aluísio Azevedo foi nomeado cônsul em 1º de janeiro
de 1900. “Sem nenhum salário, seus rendimentos estavam condicionados ao volume das taxas
e impostos diversos percebidos pelo consulado pelas transações comerciais entre o Brasil e a
Argentina que se efetuassem através do porto de La Plata”. 93 Contudo, o comércio entre os
países era prejudicado quando chegavam aos argentinos, notícias sobre ocorrência de
epidemia, real ou suposta, de febre amarela no território brasileiro. Consequentemente, ele
passou algumas dificuldades financeiras para manter-se na cidade argentina.
Numa correspondência de 3 de dezembro endereçada a Lúcio de Mendonça, que
fizera parte da comitiva do presidente brasileiro Campos Salles de visita à Argentina, Aluísio
Azevedo relatou em um trecho da carta a vida difícil na cidade de La Plata, solicitando a
transferência imediata para outro consulado, o do Porto ou de Salto Oriental.
Ouve, meu Lucio, e dirás depois qual de nós dois é o urso malcriado: O nosso amigo Cyro de Azevedo, impressionado com a minha posição aqui, deseja a muito tempo melhorá-la, e agora, sabendo ele que vão vagar infalivelmente dos consulados simples, mais efetivos e de vencimentos fixos, um no Porto e o outro em Salto, escreveu logo ao meu ministro, dr. Olinto de Magalhães, pedindo-lhe que me nomeasse para uma dessas duas vagas, dando preferência à do Porto, porque isso, segundo a optimista opinião do solicitador, traria a vantagem de poder eu imprimir lá o meu livro já pronto sobre o Japão. (...) Se conseguires a minha nomeação para o Porto, ou para o Salto, farme-ás o melhor a que hoje tenho aspirado em minha vida. (...) - Acode-me! – Teu Aluízio Azevedo. 94
Em Salto Oriental (Argentina), Aluísio Azevedo ficou apenas seis meses,
assumindo o consulado desta cidade em 16 de junho de 1903. Nesse meio tempo, resolveu
problemas de terras, bem como interviu nos casos de roubo ou crimes de homicídios
envolvendo brasileiros. De lá, dirigiu-se ao Rio de Janeiro (Brasil) onde passou uma curta
temporada.
92 BARBOSA, op. cit., p. 12. 93 MÉRIAN, op. cit., p. 610. 94 Notícia sobre Aluísio Azevedo. Autores e Livros: suplemento literário de “A manhã”, op.cit., p. 170.
56
Em 1904, Aluísio Azevedo encontrou um Rio de Janeiro bem diferente de quando
havia partido para o Maranhão, tanto na geografia como nas relações sociais. Visitou seu
irmão Artur Azevedo e seus amigos da boemia. No início de março do mesmo ano, deixou a
capital brasileira para assumir seu posto em Cardiff em 1º de abril.
Em Cardiff (Inglaterra), Aluísio Azevedo ocupou o cargo de cônsul durante três
anos. Aprendeu a língua inglesa para bem exercer suas funções. Observando a cidade que se
instalara, ele fez duras críticas às mulheres inglesas “sobre a ausência de feminilidade, sua
falta de elegância, seu ar estúpido e sua falta de educação”. 95 De vez em quando, viajava para
Paris, sua cidade preferida. Deixou esse consulado para assumir o de Nápoles em 13 de março
de 1907.
Em Nápoles (Itália), Aluísio Azevedo recordou que anos anteriores desejava
conhecer o país pelo interesse que tinha em estudar pintura. Ao contrário da cidade de Cardiff,
ele adaptou-se bem ao ambiente “que correspondia ao seu temperamento e a seus hábitos de
latino”. 96 Durante sua estada na cidade italiana, continuava a manter contato com Brasil, no
que diz respeito à ABL (Academia Brasileira de Letras) e a vida literária. Após visitar
algumas cidades turísticas européias, embarcou definitivamente para a América do Sul.
Nem os vários lugares que visitou no estrangeiro lhe deram tanta inspiração como
o Brasil para produzir suas obras literárias. Segundo Joaquim Luz, “as paisagens alheias não
ofereciam ao magnífico romancista-pintor o que aqui tanto o impressionava. Foi um
verdadeiro nacionalista, no seu realismo másculo!”. 97
Retornou ao Rio de Janeiro em 1910 a fim de tratar dos seus direitos autorais
vendidos por Graça Aranha a Garnier. Nessa época, Artur Azevedo e seus amigos mais
íntimos já tinham morrido, tais como: José do Patrocínio e Machado de Assis. Em 14 de
dezembro, ele redigiu seu testamento, “cujos principais beneficiários eram a governanta
Pastora Luquez e seus dois filhos Pastor e Zulema, que conviviam com o escritor desde a
época em que fora cônsul em La Plata”. 98
Em 30 de dezembro, Aluísio Azevedo foi promovido a cônsul para Assunção
(Paraguai). Por mais ou menos um ano, exerceu o cargo nessa cidade com dificuldades
materiais que o impediram de retomar seu trabalho de escritor. Ele foi transferido a contento
para Buenos Aires, agora como adido comercial do Brasil para as repúblicas da Argentina, do
Paraguai, do Uruguai e do Chile, em 30 de setembro de 1911.
95 MÉRIAN, op. cit., p.615. 96 Ibid., p.619. 97 LUZ, op. cit., p. 30. 98 MÉRIAN, op. cit., p.621.
57
Buenos Aires não era, no espírito de Aluísio, uma cidade de passagem; ele instalou-se para o que esperava que fosse uma longa estada; ele até resolveu formar uma verdadeira família. Solteiro era, solteiro ficou, mas deu início às providências necessárias para adotar o filho de sua governanta, Pastor, então com 17 anos. (...) Durante os dez anos de vida em comum, Aluísio sempre tivera uma grande afeição pelos filhos de Doña Pastora e tinha com eles um relacionamento de pai. 99
Aluísio Azevedo não queria o casamento. Só tinha a intenção de adotar um filho
que não se concretizou, devido aos trâmites da legislação argentina e da ausência de
representação brasileira no consulado de Buenos Aires que retardaram o processo de adoção.
Esperava na Argentina passar um bom tempo. Contudo, em agosto de 1912, sofreu um grave
acidente. Ele foi atropelado por um carro que lhe deixou seqüelas.
Em 21 de janeiro de 1913 na cidade de Buenos Aires, Aluísio Azevedo faleceu de
uma crise cardíaca como conseqüência dos traumatismos sofridos durante o atropelamento.
Três anos depois, o governo brasileiro, por intermediação de alguns escritores como Coelho
Neto e Olavo Bilac, solicitou a remoção dos restos mortais do literato para São Luís do
Maranhão.
Em comemoração ao sesquicentenário de Aluísio Azevedo, o jornal O Imparcial
publicou um artigo sobre a vida e obra do literato maranhense. Esse jornal ressaltou a
importância do romancista como “um homem que cultivava as letras, como expressão do
inconformismo da forma como se comportava, e ainda se comporta a sociedade brasileira”. 100
Por sua vez, o jornal O Estado do Maranhão rememorou a repercussão do
romance O Mulato, em 1889 no prefácio de terceira edição, do sucesso que teve em todo o
país, com exceção no Maranhão. A indiferença de sua terra natal se devia não ao valor
literário do romance, “e sim contra o anticlericalismo evidenciado na obra pelo recorte
impiedoso do vilão, o cônego Diogo e a hipocrisia das sinhás que torturavam os escravos e
depois iam comungar às missas”. 101
Na ABL102 (Academia Brasileira de Letras), Aluísio Azevedo foi um dos sócios-
fundadores e primeiro ocupante da cadeira nº. 4, pertencente a Basílio da Gama, poeta
brasileiro do Arcadismo. Na AML103 (Academia Maranhense de Letras), ele é patrono da
cadeira nº. 2, cujo fundador é Domingos Quadros Barboza Álvares.
99 Ibid., p.623. 100 Reverências a Aluísio de Azevedo. O Imparcial, São Luís, 29 out. 2007, p.4. 101 Aluísio Azevedo e “O mulato”. O Estado do Maranhão, São Luís, 10 jun. 2007, p.5. 102 MEIRELES, Mário M. Panorama da literatura maranhense. São Luís: Imprensa Oficial, 1955. p. 141. 103 ACADEMIA MARANHENSE DE LETRAS, op. cit., p.15.
58
A rua que leva o nome do escritor é mais conhecida como “Rua das Flores, tem
início na Rua do Alecrim (Euclides Faria) e acaba na Rua Grande (Oswaldo Cruz)”. 104 Mas,
homenagear o autor de O Mulato dessa maneira pode ser considerado pouco diante da
importância que teve para Brasil, como precursor de um estilo literário e do legado artístico
até hoje revisitado. Conhecer esse escritor, seja buscando autores que escreveram sobre sua
vida como lendo suas obras, é uma forma de reconstruir um pedaço da história do Maranhão e
do Brasil em fins do século XIX.
104 LIMA, op. cit., p. 130.
59
3. O MESTIÇO NA REPRESENTAÇÃO DE CELSO MAGALHÃES EM OS
CALHAMBOLAS E ALUÍSIO AZEVEDO EM O MULATO
Os Calhambolas e O Mulato foram obras literárias que refletiram na história do
Maranhão oitocentista. Elas repercutiram na época de suas publicações e seus autores Celso
Magalhães e Aluísio Azevedo ganharam destaque nacional. Neste terceiro capítulo, tais
produções serão objeto de análise literária, particularmente, da representação que os literatos
fazem do mestiço.
Para isso, far-se-á um breve esboço sobre o mestiço enquanto segmento social
durante o Império e dos critérios de cidadania estabelecidos pelo governo monárquico que
alicerçavam a hierarquia social. Depois, a influência das teorias raciais no Brasil e no
Maranhão, apresentando suas principais idéias, além disso, temas como: raça, identidade
nacional, escravidão e abolição serão mencionados no decorrer deste capítulo.
Em seguida, a análise literária de Os Calhambolas e O Mulato, considerando o
contexto histórico, a partir de 1870. Tais obras coincidiram com a inserção das idéias
européias. Segundo Damatta, “o marco histórico das doutrinas raciais brasileiras é o período
que antecede a Proclamação da República e a Abolição da Escravatura, momento de crise
nacional profunda, quando se abalam as hierarquias sociais”. 105
Depois de tudo é importante se fazer algumas considerações sobre história e
literatura, visto que a corrente historiográfica que norteia a temática é a história cultural, com
o conceito de representação de Roger Chartier. Segundo Ronaldo Vainfas, “o social só faz
sentido nas práticas culturais e as classes e grupos só adquirem alguma identidade nas
configurações intelectuais que constroem, nos símbolos de uma realidade contraditória
representada”. 106
O dilema de que haveria uma aproximação ou uma separação entre história e
literatura teve grande expressividade no século XIX, momento em que o estatuto de ciência
era perseguido por diversas áreas do conhecimento. Como período marcado pelo
materialismo, pela busca de retratar o real com mais veemência, ciência e arte se separam e,
desta forma, história e literatura se tornaram campos distintos: a primeira, pretendendo a
representação do real e a segunda, o verossímil.
105 DAMATTA, Roberto. Relativizando: Uma introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Zahar, 1987. p. 69. 106 CARDOSO, Ciro F. & VAINFAS, Ronaldo (org). Domínios da História: ensaios da teoria e metodologia. Rio de Janeiro, 1997. p. 155.
60
As semelhanças entre as duas áreas do conhecimento superam as diferenças. O
diálogo é permanente e dinâmico, visto que para Dosse, “Clio e história literária caminham
num mesmo ritmo em seus avanços e recuos”. 107 Toda forma de conhecimento contém
elementos de imaginação e ficção. A partir desse pressuposto, não haveria distinção entre
história e literatura, tornando-se possível se fazer história, através da literatura produzida.
Segundo Hayden White, “(...) tem havido uma relutância em considerar as narrativas
históricas como o que elas mais manifestamente são: ficções verbais, cujos conteúdos são tão
inventados como descobertos, e cujas formas têm mais em comum com suas contrapartidas na
literatura do que na ciência”. 108
A relação entre história e literatura abstraídas de Hayden White e François Dosse
contribui no estabelecimento de um profícuo diálogo, já que ambas tiveram uma importância
crucial na propagação dos ideais deterministas e evolucionistas, fazendo-se conhecer os
discursos e as interpretações dos intelectuais sobre a realidade brasileira.
3.1 O Mestiço
A palavra “mestiço” vem do latim mixticius, que significa misturar, nascido de
pais de raças diferentes. 109 Nesse sentido, o processo de miscigenação de etnias diferentes, da
qual resultou o elemento mestiço, se deu de forma natural desde o período colonial. Primeiro,
o contato entre índios e portugueses; depois, a chegada dos negros, trazidos da África. Todos
interagindo entre si, seja de forma de violenta ou estabelecendo uma supremacia de um povo
sobre os demais, trocaram experiências culturais que podem ser vistas nos dias atuais. Como
exemplo disso, a feijoada dos escravos, a dança portuguesa e o costume indígena de dormir
em rede.
O encontro de três povos, a princípio: índio, africano e português, inspirou
diversas produções nas áreas de conhecimento, como: Antropologia, Sociologia, Medicina,
História, Língua Portuguesa e Literatura, que discutiam, dentre outros temas: nação,
mestiçagem e cidadania brasileira. Particularmente, no caso da literatura oitocentista, tem-se:
107 DOSSE, François. A história à prova do tempo: da história em migalhas ao resgate do sentido. São Paulo: UNESP, 2001. p. 268. 108 WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios e crítica da cultura; tradução de Alípio Correia de franca Neto. São Paulo: Editora da USP, 1994. p.98. 109 CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p.516.
61
Iracema, de José de Alencar, A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, A escrava Isaura,
de Bernardo Guimarães, O bom crioulo, de Adolfo Caminha, etc.
No século XIX, o mestiço era mais uma categoria social excluída da sociedade
brasileira. Praticamente, ele não tinha direito a participar das decisões políticas, bem como de
votar, de usufruir da riqueza produzida no país e de exercer cargos públicos, ocupados
predominantemente por portugueses. “Do ponto de vista racial, os mulatos perfaziam cerca de
42% da população, os brancos 38% e os negros 20%”110, de acordo com o recenseamento
nacional de 1872.
Segundo dados do IBGE111, a província do Maranhão, também em 1872,
apresentava um contingente populacional estimado em aproximadamente 360.640 habitantes.
Destes, 103.513 brancos, 255.527 pretos e pardos e 1600 de cor não declarada. Quanto à
instrução, 68.643 sabiam ler e escrever, 290.397 eram analfabetos e o restante de instrução
não declarada. Comparando os números de habitantes pretos e pardos com os números de
analfabetos, pode-se afirmar que a população não letrada correspondia aos negros e mestiços.
Os critérios de cidadania eram estabelecidos por uma minoria branca que detinha
o poder estatal. Tais critérios definiam que o termo “cidadão brasileiro” se atribuía a todos os
portugueses nascidos no Brasil ou não, a partir de 1822. Contudo, “escravos e índios, no novo
pacto, estavam fora da categoria cidadãos, com a ressalva de que poderiam ser posteriormente
integrados, especialmente os segundos, depois de civilizados”. 112 Essas restrições de acesso à
cidadania, elaboradas pelos grupos de mando, foram mecanismos de exclusão social que
suscitaram conflitos com o passar do tempo, especialmente, por parte de negros e mestiços,
que constituíam a maioria no país.
Nesse momento, os mestiços procuraram lutar contra a concentração de
privilégios nas mãos dos brancos. Eles tinham como principal ideal eliminar as restrições que
afastavam as pessoas de cor dos cargos administrativos. Mais ainda: “abolir as diferenças de
cor branca, preta e parda, oferecer iguais oportunidades a todos sem nenhuma restrição”. 113
Sobre o mestiço, alguns aspectos são pertinentes para se compreender situações
herdadas dessa época ainda presentes no cotidiano brasileiro, a citar: preconceito de cor e
110 FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. p. 134. 111 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Recenseamento Geral do Brasil: Estado do Maranhão, 1 jul. 1872 . 112 SLEMIAN, Andréa. O nascimento político do Brasil: as origens do Brasil e da nação (1808-1825). Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 104. 113 COSTA, Emilia Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. São Paulo: UNESP, 1999. p. 34.
62
racismo. Qual a relação das novas ideologias que surgem no século XIX com o mestiço? Que
representação fazem os literatos Celso Magalhães e Aluísio Azevedo do mestiço em suas
obras, respectivamente, Os Calhambolas e O Mulato?
3.2 Influência das Teorias Raciais no Brasil e no Maranhão
As teorias raciais do século XIX acentuaram as diferenças que já existiam na
sociedade brasileira. Com os critérios de cidadania estabelecidos, tais idéias justificaram o
domínio político-social dos portugueses, seja na língua portuguesa, no sistema educacional,
na religião católica e nos costumes, bem como contribuíram na formação de uma identidade
nacional, tomando como modelo a cultura européia.
Nesse sentido, “as identidades nacionais não são coisas com as quais nós
nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação”. 114 A
problemática da identidade nacional, na qual o mestiço também é objeto de discussão, se
reflete no Brasil miscigenado dos dias atuais, pois os brasileiros ainda têm sua identidade por
descobrir. No recenseamento de 1980, os não brancos brasileiros assim responderam sobre
sua cor aos pesquisadores do IBGE:
Acastanhada, agalegada, alva, alva-escura, alvarenta, alva-rosada, alvinha, amarelada, amarela-queimada, amarelosa, amorenada, avermelhada, azul, azul-marinho, baiano, bem branca, bem clara, bem morena, branca, branca avermelhada, branca melada, branca morena, branca pálida, branca sardenta, branca suja, branquiça, branquinha, bronze, bronzeada, bugrezinha, escura, burro-quando-foge, cabocla, cabo verde, café, café-com-leite, canela, canelada, cardão, castanha, castanha clara, cobre corada, cor de café, cor de canela, cor de cuia, cor de leite, cor de ouro, cor de rosa, cor firme, crioula, encerada, enxofrada, esbranquicento, escurinha, fogoió, galega, galegada, jambo, laranja, lilás, loira, loira clara, loura, lourinha, malaia, marinheira, marrom, meio amarela, meio branca, meio morena, meio preta, melada, mestiça, miscigenação, mista, morena bem chegada, morena bronzeada, morena canelada, morena castanha, morena clara, morena cor de canela, morenada, morena escura, morena fechada, morenão, morena prata, morena roxa, morena ruiva, morena trigueira, moreninha, mulata, mulatinha, negra, negrota, pálida, paraíba, parda, parda clara, polaca, pouco clara, queimada, queimada de praia, queimada de sol, regular, retinha, rosa, rosada, rosa queimada, roxa, ruiva, russo, sapecada, sarará, saraúba, tostada, trigo, trigueira, turva, verde, vermelha, além de outros que não declararam a cor.115
114 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. p. 48. 115 MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1988. p. 63.
63
Pode-se dizer que essas atribuições de cor da pele, que os brasileiros fizeram de si
no recenseamento, foram geradas desde a criação do Brasil, sobretudo no regime imperial
com a inserção das idéias européias.
Dentro da discussão de teorias raciais, se faz necessário mencionar também
algumas considerações sobre o termo raça, visto que fora uma herança do Brasil oitocentista e
ainda se faz presente na mentalidade nacional. A raça é uma categoria discursiva,
[...] organizadora daquelas formas de falar, daqueles sistemas de representação e práticas sociais (discursos) que utilizam um conjunto frouxo, frequentemente pouco específico, de diferenças em termos de características físicas – cor da pele, textura do cabelo, características físicas e corporais, etc. – como marcas simbólicas, a fim de diferenciar socialmente um grupo do outro. 116
No século XIX, o termo raça teve uma conotação biológica, reforçando a divisão
de classes existente, ao distinguir um povo do outro. E ainda serviu de base para que os
grupos dirigentes legitimassem seu poderio. Por isso, “a sua principal utilização foi e ainda é a
classificação dos indivíduos na suposição de diferenças no fenótipo são sinônimos de
variações no intelecto e habilidades”. 117
As principais teorias raciais eram: o positivismo, o evolucionismo e o
darwinismo. Tais correntes de pensamento reforçaram as atitudes da sociedade estratificada e
miscigenada, na medida em que a intelectualidade aplicava aquelas proposições que melhor se
ajustassem em solo nacional. Elaboradas na Europa em meados do século XIX, essas teorias,
distintas entre si, podem ser consideradas sob um aspecto: o da evolução histórica dos povos.
O positivismo de Auguste Comte caracterizava-se, sobretudo, pela aquisição do
conhecimento com base em fatos e dados empíricos para chegar à verdade, contrariamente ao
pensamento dogmático do catolicismo. Por sua vez, o evolucionismo pressupunha a
existência de uma ordem imanente na história da humanidade, concebendo-a como uma série
de estágios sucessivos de desenvolvimento social, na qual os povos ditos primitivos figuram
como os remanescentes de etapas mais atrasadas, e as sociedades européias como o ápice da
evolução humana.
Já o darwinismo fundamentava-se na obra A Origem das Espécies (1859), de
Charles Darwin. Essa doutrina propõe a seleção natural como fator decisivo na evolução das
116 HALL, op. cit., p.63. 117 GUIBERNAU i BERDUN, Maria Monteserrat. Nacionalismos: O Estado Nacional e o Nacionalismo no século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. p. 95.
64
espécies, de modo que o condicionamento do meio se manifestaria na escolha dos mais fortes
e no repúdio aos menos resistentes.
Na Europa, o mestiço era visto como peça indesejável nas relações sociais.
Defendia-se que a raça pura, no caso a do europeu, era sinônimo de desenvolvimento cultural
e que a miscigenação levaria ao declínio. Como exemplo, o teórico racial francês Arthur
Gobineau “via o mestiço como um mal, pois ia apagando as qualidades do negro, do índio e
do branco, formando um tipo híbrido, indefinido e deficiente em energia física e mental”. 118
Em 1855, ele escreveu o Ensaio sobre a Desigualdade da raça humana, considerada a bíblia
do racismo moderno, em que defendia a miscigenação como causa da decadência das nações.
No âmbito nacional, o Brasil de fins do século XIX passou por transformações
significativas, tais como: o problema da mão-de-obra e a campanha abolicionista. E é
justamente nesse momento que as teorias raciais chegaram ao Brasil tardiamente, em relação
ao contexto internacional. Segundo Lilia Schwarcz, “1871 é um ano chave na desmontagem
da escravidão, já que a Lei do Ventre Livre anunciava a derrocada de um regime de trabalho
havia muito arraigado”. 119
No âmbito regional, a partir de 1870, a produção açucareira entrou em crise por
conta do despreparo dos engenhos maranhenses e, mais uma vez, a concorrência internacional
que oferecia o produto em larga escala e de melhor qualidade. Segundo Jalila Ribeiro, “a
indústria açucareira não foi a solução para a economia maranhense, pois, assim como o
algodão, o açúcar encontrava sérios concorrentes no mercado internacional”.120
Antes mesmo da abolição da escravatura negra, já ocorria a redução do
contingente de escravos para atender principalmente as lavouras cafeeiras na região sudeste
do Brasil, ainda que continuasse sendo expressivo o número de braços existentes que
desenvolviam diversas atividades, seja no campo, seja nos centros urbanos da província do
Maranhão.
Dependente das flutuações do mercado externo, a economia maranhense cresceu
timidamente, apresentando uma economia latifundiária e instável, obtendo mais gastos do que
lucros, com a conseqüente desvalorização das propriedades rurais, aliada ao agravamento da
situação social.
118 GOBINEAU, Arthur apud DAMATTA, Roberto. op. cit., p.71. 119 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 14. 120 RIBEIRO, Jalila Ayoub Jorge. A desagregação do sistema escravista no Maranhão. Recife, 1983.p. 53.
65
De modo geral, escravos, ex-escravos, fugidos ou alforriados participaram
ativamente na desestruturação do escravismo. A pressão externa, sobretudo dos ingleses, foi
um elemento importante nesse processo, dado que o regime de escravidão não condizia com a
dinâmica do mercado capitalista, assentado no trabalho assalariado.
Além disso, os cafeicultores, insatisfeitos com a carestia da mão-de-obra escrava,
já buscavam alternativas como a mão-de-obra do imigrante. E a classe senhorial que relutava
contra o solapamento do sistema escravocrata, com a abolição, viu-se abalada. Para Emília da
Costa, “a abolição afetou apenas os setores que se mantinham apegados ao trabalho escravo e
estes, na década dos oitenta, constituíam a parcela menos dinâmica do país, pois os setores
mais progressistas já se preparavam para a utilização do trabalho livre”. 121
Sem dúvida, a campanha abolicionista foi a maior crise do império, visto que suas
prerrogativas estavam naquilo em que se alicerçava: o braço escravo e a monocultura cafeeira.
A luta abolicionista culminou-se com a promulgação da lei de 13 de maio de 1888. A partir
daí, uma fase de desestruturação interna que resultara, na “aniquilação de fortunas,
desorganização do trabalho de um cálculo de 40 a 50% da colheita de 1888 que deixou de ser
feita, além do êxodo para as cidades. Hipotecas garantidas por escravos deixaram de ser
válidas”. 122 Segundo Fernandes, “ao se findar o Império, com o advento da República, em 15
de novembro de 1889, o Maranhão iniciava a nova ordem de coisas com péssimas
probabilidades financeiras e econômicas”. 123
Os principais intelectuais que debatiam as idéias raciais do século XIX eram:
Sílvio Romero, Manuel de Oliveira Viana, Raimundo Nina Rodrigues, Tobias Barreto, João
Baptista Lacerda, Euclides da Cunha, Edgard Roquette Pinto, Herman von Ihering, Oswaldo
Cruz, Miguel Pereira e Azevedo Sodré. Eles discutiam, sobretudo nos centros acadêmicos,
mestiçagem e a difusão do ideário de uma nação branca, bem como a possibilidade ou não do
branqueamento gradativo da população brasileira, com a predominância das características
européias, tomando o mestiço como fase de transição. De acordo com Lilia Schwarcz,
[...] as teorias raciais se apresentam enquanto modelo teórico viável na justificação do complicado jogo de interesses que se montava. Para além dos problemas mais prementes relativos à substituição da mão-de-obra ou mesmo à conservação de uma hierarquia social bastante rígida, parecia ser preciso estabelecer critérios diferenciados de cidadania. 124
121 COSTA, op. cit., p.328. 122 MOTA, Carlos Guilherme (org). Brasil em perspectiva. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 143. 123 FERNANDES, Henrique Costa. Administrações maranhenses: 1822 - 1929. São Luís: Instituto Geia, 2003. p. 37. 124SCHWARCZ, op. cit., p. 18.
66
Nesse sentido, o Brasil seguia a moda estrangeira como forma de se destacar, em
termos de civilidade, de outros países. Copiar e adaptar o que vinha de fora foi sendo o
trabalho da minoria abastada. De acordo com Luiz Alencastro, “as teorias cientificistas
combinam-se com a hierarquia social preexistente para também justificar o escravismo: as
novas idéias ratificam a prática e os argumentos tradicionais”. 125
Sob a influência do determinismo biológico, intelectuais como Sílvio Romero,
Oliveira Viana e Nina Rodrigues postularam raça e meio como fatores internos para explicar a
realidade brasileira. A estrutura social, que privilegiava uma minoria, e o sistema econômico,
baseado no trabalho escravo e dependente das oscilações do mercado externo, seriam
determinantes para o desenvolvimento psíquico e moral do europeu sobreposto às raças ditas
não-brancas. Para Renato Ortiz, “o mestiço enquanto produto do cruzamento entre raças
desiguais encerrava, para os autores da época, os defeitos e as taras transmitidas pela herança
biológica”. 126
O ideal de ser branco foi utilizado como estratégia de dominação da elite
brasileira sobre a maioria da população, a fim de assegurar sua supremacia política e
econômica. Segundo Thomas Skidmore, “a ideologia do branqueamento ganhava foros de
legitimidade científica, de vez que as teorias racistas passavam a ser interpretadas pelos
brasileiros como confirmação das suas idéias de que a raça superior acabaria por prevalecer
no processo de amalgamação”. 127
Sobre esses intelectuais, Sílvio Romero salientou-se como crítico e historiador da
literatura brasileira. Sua principal obra, a História da Literatura Brasileira foi publicada em
1888. Oliveira Viana foi pioneiro na sistematização das idéias raciais, sendo Populações
Meridionais do Brasil (1920), uma de suas obras mais conhecidas. Já o maranhense Nina
Rodrigues, como cientista não acreditava na possibilidade do clareamento de pele a partir do
cruzamento de raças. Ele publicou as obras: As raças humanas e responsabilidade penal no
Brasil (1957) e Os africanos no Brasil (1962).
Por mais que as características fenotípicas sobre as raças distintas fossem bem
visíveis e a possibilidade de uma nação totalmente branca fosse remota, os intelectuais raciais
Sílvio Romero e Oliveira Viana tomaram o mestiço como ponto de partida para a idealização
125 ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org). História da vida privada: Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, v.2.p. 82. 126 ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 21. 127 SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1976. p. 63.
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do brasileiro do futuro, com ares de europeu, a partir do branqueamento da população, o que
seria um processo gradual e lento, uma estimativa de três a quatro séculos, até que
desaparecesse por completo, a influência sanguínea do negro e do índio. Nesse sentido, o
porvir unitário do homem branco brasileiro se fazia pela destruição e esquecimento dos traços
físicos e mentais, que individualizam índios e negros, para que surgissem apenas os traços que
individualizariam o branco. 128
Já o maranhense Nina Rodrigues discordava da tese do branqueamento, no que
diz respeito à homogeneização da sociedade brasileira, com a predominância biológica e
cultural branca e o desaparecimento dos elementos não-brancos. O cruzamento das raças
promovia o enegrecimento, já que pela distribuição espacial do país, a diversidade tanto racial
quanto cultural era cada vez mais crescente. Ele também não via no mestiço um caminho para
um Brasil branco:
Não acredito na unidade ou quase unidade étnica, presente ou futura, da população brasileira, admitida pelo Dr. Sílvio Romero. Não acredito na futura extinção do mestiço luso-africano a todo território do país, considero pouco provável que a raça branca consiga predominar o seu tipo em toda população brasileira. 129
Dizer que o Brasil não tinha futuro porque era um país miscigenado poderia ser
interpretado como um modo de rejeitar, de criticar a hierarquia estabelecida pelos grupos de
mando e que permitia a interação social entre negros, índios, brancos e mestiços, vivendo
múltiplas experiências, sem ameaçar-lhes a ordem.
Apesar dos diferentes pontos de vista acerca da mestiçagem, esses teóricos raciais,
no geral, partilhavam da premissa de superioridade do europeu e de que o próprio sistema
econômico se encarregava de manter o mestiço numa posição inferior. Segundo Nina
Rodrigues, “o mestiço era um contraste e qualquer que fossem as condições sociais, estaria
condenado pela sua própria morfologia e fisiologia a jamais poder se igualar ao branco”. 130
Para Oliveira Viana, “essa tentativa do mestiço em ter posição específica na sociedade é
provisória e ilusória, porque o branco superior, de classe alta, o repele”. 131
Quanto às teorias raciais no Maranhão, essas foram divulgadas, sobretudo,
através da imprensa escrita. No contato com os jornais, podem-se encontrar textos
128 ODALIA, Nilo. As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagem e Oliveira Viana. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1994. p. 105. 129 RODRIGUES, Raimundo Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. Salvador: Livraria Progresso Editora 1957. p. 90. 130 Id. Os africanos no Brasil. São Paulo: Nacional, 1982. p. 268. 131 VIANA, Oliveira apud MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Rio de Janeiro: Vozes, 1999. p. 65.
68
estrangeiros traduzidos com pensamentos de exaltação das qualidades psíquicas do homem
branco, poemas de escritores nacionais, debates filosóficos sobre a origem da humanidade,
segundo pensadores europeus e norte-americanos.
Nesse sentido, os jornais da época como A Opinião Pública, A Mocidade, O
Viannense e O Commercio de Caxias também expressaram o pensamento de superioridade
racial, de desdenha e depreciação para com os mestiços, disseminando através da escrita, que
cada indivíduo estava determinado a uma condição: a de mando ou submissão.
Em 1870, o jornal político A Opinião Pública apresentou o soneto “Retrato”, em
que fez uma descrição de alguém de forma depreciativa e discriminatória, atribuindo-lhe
adjetivos gerais que se aplicariam aos de sua categoria social. O autor assinou pelo
pseudônimo de O Zé Corso com uma visão estereotipada, que se verifica nos termos: “moreno
escuro e bem fechado, molato”, fazendo uma referência ao mestiço.
Moreno escuro e bem fechado, bigode preto os lábios seos lhe touca, vós fanha, não intelligivel e rouca, de acções indigno e mui safado. Impostor intruso, burro e attrevido, audacioso, vingativo e de má intenção por ser presunçoso, pouco querido. Eis o burrêgo. Que poucas verdades que tem por ser molato mil paixões, assim fez seu retrato livre de vaidades. 132
Em 1875, o jornal literário A mocidade publicou a reportagem “Antiguidade da
raça humana provada pela Anthropologia, Archeologia, Paleontologia e Geologia”, onde
refletiu o embate ideológico da época, a despeito da origem da raça humana em que os
diferentes povos viriam de um tronco comum; no trecho do jornal, estaria na Ásia a origem da
humanidade, e não na África como é conhecido.
Reconhecidas as planícies da Ásia Central como berço do gênero humano, como concordam todos os naturalistas, é lá que se devia proceder a investigação nos terrenos tertiarios. Ora sendo elle nascido na Ásia, nas planícies férteis e uberrimas do Oriente, para que abandonasse esses climas, era necessário que um excesso de propagação o levasse para outras regiões. Tal excesso de propagação só podia ser determinado por um longo decurso de tempo, e, portanto já havia muito que a raça humana habitava na Ásia. 133
132 Retrato. A Opinião Pública, São Luís, 13 jun. 1870. p. 3. 133 Antiguidade da raça humana provada pela Anthropologia, Archeologia, Paleontologia e Geologia. A Mocidade, São Luís, 10 dez. 1875. p. 2.
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Em 1877, o jornal literário O viannense apresentou como reportagem principal o
poema “A mucama”, de autoria de Arthur Azevedo, escrito no Rio em 1874 e publicado neste
jornal três anos depois. O autor representou a mucama como: a mulata acompanhante da sinhá
branca, aquela conformada com a situação de amante do esposo de sua dona, já que era
inaceitável o casamento entre brancos e mestiços, e reforçando a ordem social que excluía os
indivíduos, seguindo os critérios da cor da pele. De fato, era uma situação recorrente nessa
época, a exemplo do que aconteceu com Emília Branco, a mãe de Aluísio Azevedo.
Mas, a nhan-nhan em sahindo, a namorada era eu; por minha causa é que o moço tanto perigo correu! Ella julgava ser dona daquilo que era só meu.
Pedi a nosso benzinho que se casasse com ela, - Eu sou mulata, lhe disse, seja embora uma donzela – - Qu’ importa seres molata, respondeu, si és assim bella?
– Você não casa commigo, commigo branco não casa; mas uma vez que o benzinho a nhan-nhan arrasta a aza, si desposal-a... Percebe? Ficamos todos em caza... Dicto e feito: meu sanctinho pediu a mão de nhan-nhan: o papá não pôz embargo, não pôz embargo a maman; e se casaram na Lapa faz anno e meio amanhan.
A’ noite, quando dormindo socegadinha na cama, sinto uma mão que me bole, ouço uma voz que me chama... Quem hade de ser? Elle mesmo que vem fallar co’a mucama.134
O mesmo jornal publicou em 1881, a respeito das influências das idéias européias
no pensamento do maranhense. Tais idéias iam ao encontro dos interesses da elite
134 AZEVEDO, Artur. A Mucama. O Viannense, São Luís, 7 nov. 1877. p. 1.
70
maranhense, pois reforçaram os mecanismos de cerceamento existentes no bojo dessa
sociedade. Eram elas: preconceito racial, perfectibilidade do europeu e, conseqüentemente, a
degeneração e a inferioridade atribuídas aos índios, negros e mestiços, mas também a idéia
recorrente de que todos os indivíduos descenderiam de um único tronco, de acordo com a
visão cristã, onde o branco estaria pela escala evolutiva no patamar superior.
A religião e a rasão nos ensinam que todos os homens descendem de um tronco, e um exame philosophico da espécie humana mostra claramente que os europeus, pela excellencia de sua organização, e elegância de suas formas, suas, são os que mais se assemelham àquelle tronco primordial, que devemos suppôr como perfeito em sua natureza. Em todos os séculos tem a raça chamada branca gosado da preeminência, e é hoje incontestável que os europeus dominam o universo. E se algumas nações há nos confins da Ásia, ou em África, livres do seu império, é porque rasões políticas tem embaraçado a sua sujeição, ou porque a natureza do clima tornaria a sua conquista de pouca importância. 135
Nesse período de debates sobre o evolucionismo, as opiniões estavam divididas
entre a intelectualidade nacional sobre a origem do homem. De um lado, a visão monogenista,
que era baseada na doutrina cristã em que a humanidade “teria se originado de uma fonte
comum, sendo os diferentes tipos apenas um produto”. 136 De outro lado, contestando a
posição monogenista da Igreja, a visão poligenista das ciências naturais, baseada “na
existência de vários centros de criação que corresponderiam, por sua vez, às diferenças raciais
observadas”. 137
Outro jornal do período, O Commercio de Caxias, de caráter econômico,
apresentou o poema “Morena”, cuja autoria é atribuída a Guerra Junqueira, onde se exaltam
as qualidades da mulher mestiça, ressaltando a discriminação que sofre por conta da
aparência, fazendo também menção de alguns elementos da religião cristã: Jesus e Maria.
Não negues, confessa, que tens certa pena que as mais raparigas te chamem morena. Mas, olha, as violetas que, sendo umas pretas, o cheiro que tem! Vê lá que seria si Deus as fizesse morenas também. Há rosas dobradas e há as singelas; mas, são todas ellas azues, amarelas, de cor de açucenas de muita outra cor; mas, rosas morenas, só tu, linda flor. E olha quem foram morenas e bem as moças mais lindas de Jerusalém; e a virgem Maria não sei... mas
135 A cor dos negros. O Viannense, São Luís, 9 abr. 1881. p. 1. 136 SCHWARCZ, op. cit., p. 48. 137 Ibid.
71
seria morena também. Moreno era Cristo, vê lá depois disto se ainda tens pena que as mais raparigas te chamem morena!138
De modo geral, os jornais A Opinião Pública, A Mocidade, O Viannense e O
Commercio de Caxias expressaram em poemas, sonetos e discursos, a influência das idéias
européias na mentalidade maranhense e a questão da mestiçagem sendo negativizada por essa
sociedade oitocentista que posicionou o mestiço, bem como índios e negros, no patamar
inferior.
Além disso, as elites do Maranhão que detinham o poder estatal ou tinham acesso
a ele, também reproduziram o discurso de superioridade do europeu, ao mesmo tempo que
rebaixavam negros, índios e mestiços, negando seus costumes e modo de vida. A essa
ideologia, se misturava uma postura humanitária, tão presente na literatura e nos textos
jornalísticos da época, de se amenizar os castigos aplicados aos escravos e de se promover a
abolição gradual da mão-de-obra escrava para a assalariada. De acordo com Regina Faria:
A força das idéias evolucionistas ajudava a manter a representação dos negros de um modo em geral, como integrantes de uma espécie num estágio inferior da evolução humana. A redentora humanização contida nas poesias convivia com antigo discurso da inferioridade intelectual, agravado pelo preconceito racial. 139
Esses discursos de superioridade racial européia, da mestiçagem como
degeneração ou conduzindo ao branqueamento da população influenciaram indubitavelmente
no comportamento e nas atitudes da sociedade brasileira no século XIX. No Maranhão, a
presença desses discursos entre os intelectuais maranhenses, refletiu o apego aos paradigmas
europeus, às idéias do racionalismo científico, do positivismo de Augusto Comte, do
evolucionismo de Charles Darwin, entre outros.
Mário Meireles oferece uma lista bastante extensa dos intelectuais maranhenses
que escreveram sobre o assunto no período de 1870 a 1888. Entre eles, Euclides Faria, Enes
de Sousa, José Antônio de Freitas, Marcelino Bara, Celso da Cunha Magalhães, Juvêncio
Pereira, Oscar Galvão, Teixeira de Sousa, José Henrique Vieira da Silva, José Augusto
Corrêa, Teófilo Dias, Teixeira Mendes, Artur Azevedo, Fernando Mendes de Almeida,
Aluízio Azevedo, Hugo Leal, Higino Cunha, Hemetério dos Santos, João Batista Corrêa,
Américo Azevedo, Raimundo Corrêa, Sá Viana, Almin Nina, Belford, Nina Rodrigues,
138 Morena. O Commercio de Caxias, São Luís, 1 jan. 1888. p. 2. 139 FARIA, Regina Helena Martins de. “Escravos, livres pobres, índios e imigrantes estrangeiros nas representações das elites do Maranhão oitocentista”. In: COSTA, Wagner Cabral de (org). História do Maranhão: novos estudos. São Luís: EDUFMA, 2004. p. 97.
72
Pacífico Bessa, Dunshee de Abranches Moura, Fábio Morais Rego, Augusto Rodrigues,
Coelho Neto, etc. 140
De acordo com as obras Panorama da literatura maranhense, de Mário Meireles
e Apontamentos de literatura maranhense, de Jomar Moraes, o grupo literário que
contemplou esse período pertence à segunda geração, posterior à de Gonçalves Dias e de João
Francisco Lisboa. Nascidos entre 1850 e 1860, a maioria dos literatos fez carreira na
Faculdade de Direito de Recife (PE), cuja tendência ideológica e cultural era para o
darwinismo social e o determinismo biológico. Segundo Jomar Moraes
A Faculdade de Direito de Recife representou um grande laboratório em que tais idéias fermentaram e se desenvolveram às mãos de brilhantes mestres que trabalharam a inteligência de uma juventude febril que lê e discute Buffon, Lamark, Taine, Cuvier, Kant, Buckle, Schopenhawer. 141
Sob a inspiração das idéias européias, através da escrita em prosa, nos poemas e
discursos, a intelectualidade maranhense caracterizava os não-brancos como atores sociais de
segunda categoria que precisavam do exemplo do europeu de progresso e civilidade, seguindo
o exemplo da intelectualidade nacional que projetava a construção de uma nação homogênea.
Segundo Schwarcz, “é através da produção literária que a moda cientificista entra no país e
não da ciência mais diretamente”. 142
Destacaram-se nesse período, os literatos Celso Magalhães e Aluísio Azevedo que
deixaram uma considerável produção literária sobre a sociedade maranhense do final do
século XIX. Celso Magalhães produziu o poema Os calhambolas, que faz parte de seu livro
“Versos” (1870), focalizando a revolta de escravos ocorrida em sua terra natal. Aluísio
Azevedo inaugurou o estilo realista no Brasil com o romance “O Mulato”, onde denuncia o
preconceito de cor, ao branquear seu personagem central, o mulato Raimundo, e a situação do
escravo na sociedade maranhense, discutindo as diferenças raciais que já faziam parte da
mentalidade local.
140 MEIRELES, 1955, passim. 141 MORAES, op. cit., p.118. 142 SCHWARCZ, op. cit., p. 32.
73
Ilustração 3 – Folha de Rosto da obra Versos, na qual consta o poema Os Calhambolas. In:
Livro do Sesquicentenário de Celso Magalhães, de Jomar Moraes.
74
3.3 Os Calhambolas de Celso Magalhães
O poema Os Calhambolas143 faz parte da obra Versos do literato Celso
Magalhães. Ambientado na cidade de Viana (Maranhão), constitui-se de uma narrativa
ritmada e memorialista da insurreição de escravos de 1867 que aconteceu naquela localidade.
Tal insurreição de escravos foi deflagrada pelos quilombolas que habitavam no
quilombo São Benedito do Céu, localizado nas cabeceiras do rio Bonito, a três dias e meio de
viagem a pé de Viana.
Os quilombolas travaram uma guerra com os brancos, no intuito de obter a
liberdade dos cativos. Para tanto, munidos de armamentos ocuparam diversas fazendas de
Viana, tais como: Santo Inácio, Santa Bárbara, Timbó, Vila Nova de Anadia e São José.
Essa revolta de escravos constituiu-se em um movimento assustador, pois os
negros, além de desafiarem as autoridades (inclusive o poder provincial de Franklin Américo
de Meneses Dória), tomaram senhores de escravos como reféns, para sorte de alguns que
conseguiram escapar, e, por onde percorriam, gritavam pela liberdade. Direto do engenho de
Santa Bárbara, os negros comandavam o movimento, espalhando o medo em alguns lugares,
na ânsia de alforria para os escravos. Segundo Magno Cruz,
O medo correu regiões Da Baixada do Ocidente Pinheiro, Alcântara, Guimarães Santa Helena e São Vicente A fazenda Santa Bárbara Virou quartel-general Os negros viraram cabras De um exército sem igual Compete então o comando Ao líder negro Daniel Vindo lá do Quilombo São Benedito do Céu Um ofício foi escrito Por Daniel e João Mulato Liberdade pros cativos Esse era o ultimato
143 Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurelio: O Minidicionário da Língua Portuguesa. Curitiba: Positivo, 2004. p. 550. O termo Calhambolas refere-se a quilombola, que é a designação comum aos escravos refugiados em quilombos.
75
Nós vamos Viana invadir Usando mil armas de fogo Se o governo não cumprir Dos negros ficarem forros. 144
Do começo ao fim do romance, a palavra que se repete é “liberdade”. Celso
Magalhães faz uma descrição minuciosa dos lugares, dos objetos, no estilo realista, fazendo o
leitor sentir-se na história. O mestiço aqui não é representado de forma explícita, mas
sutilmente em alguns trechos que serão analisados adiante.
No início do romance Os Calhambolas, Celso Magalhães tem a intenção de
preparar o leitor (desavisado) para o conteúdo da obra, expresso sinteticamente na epígrafe,
dando-lhe a escolha de prosseguir ou não com a leitura. Isso por se tratar de um assunto que
incomoda ou choca: a escravidão. Durante todo o percurso do poema, o autor é um narrador
onisciente e, ao mesmo tempo, interage com os fatos que estão sendo narrados.
A história se passa no meio das matas. Cem calhambolas reunidos em torno de
seu chefe, negro, robusto e de estatura alta, aguardando seu discurso. Ele pronuncia-se
preocupado e apreensivo, a respeito do esconderijo dos negros, o mocambo, suspeitando já ser
de conhecimento dos brancos.
Enquanto isso, alguns calhambolas estão posicionados, vigiando ao redor da
mata, para alertar ao grupo de um possível ataque dos brancos. O chefe do quilombo diz aos
negros que devem ter coragem para juntos lutarem pela liberdade e não aceitarem a
escravidão com resignação, procurando sempre reagir contra o cativeiro. Mais ainda, que a
plena liberdade não está em viver no quilombo.
A partir daí, o chefe calhambola narra o seu sofrimento desde criança. Nascido no
Brasil, ele sentia-se como “caça” do branco “caçador”. Às vezes, sem motivo algum,
apanhava para que o filho do senhor de escravos parasse de chorar. Era constantemente
torturado, mas agüentava conformado. Pois, não se considerava mais dono de si e, sim,
propriedade de outrem.
Esse negro revelou que conheceu um homem branco diferente, com quem
aprendeu a ler e a escrever. Ele resolveu fugir com seu filho, ao perceber como era dura a vida
de escravo. Mas, ele foi capturado novamente pelo seu proprietário e açoitado juntamente
com a criança. Com o pensamento de encontrar a liberdade, conseguiu fugir outra vez para
bem longe.
144 CRUZ, Magno. Vivas à Liberdade: a saga heróica da Insurreição em Viana. São Luís: Coleção Negro Cosme, 1998. Trecho da Literatura de Cordel.
76
Se os animais, as plantas e os demais seres vivos desfrutavam de liberdade, por
que os negros não? – o chefe calhambola questionando-se. Ele queria que os brancos
reconhecessem e respeitassem os negros como indivíduos, não os tratando mais como peça ou
mercadoria.
Retomando o discurso inicial aos calhambolas, o chefe convoca o grupo para uma
luta armada contra os brancos, daqui a três dias. Alguns negros (no caso do calhambola
Bento) se organizaram para o confronto, levando consigo o rosário, em sinal de fé e
esperança, na luta pela liberdade.
Eles se concentraram em uma casa abandonada, embrenhada nas matas, próximo a
uma encruzilhada. No intuito de invadir a fazenda Tauá, chamam outros negros para unirem-
se nesse propósito. Com os escravos na lavoura e o feitor acompanhando-os, os calhambolas
aproveitaram para invadir a Casa Grande. Ao adentrarem no local, avistaram uma sinhá por
nome Severa e seu irmão que imediatamente deu-lhes um intimato para que deixassem sua
fazenda.
Os negros estavam ali, motivados pelo sonho de livrar-se do jugo da escravidão,
que as correntes se rompessem para sempre. E os brancos, ao contrário, sonhando com os
lucros que iriam obter com a mão-de-obra escrava.
A família que estava na Casa Grande conseguiu fugir atemorizada pelo rio, com a
ajuda de um escravo. Os calhambolas, ao saírem da fazenda, se deslocaram para o seu arraial.
Agora, os acontecimentos a seguir culminam na cidade, mais precisamente na casa de
detenção.
Uma tropa de soldados havia seguido para o arraial, a fim de prenderem os negros
pelo atrevimento de atacarem os fazendeiros de Tauá. Os negros foram vencidos, depois de
travarem um combate com os brancos. Muitos não resistiram e morreram, outros se evadiram
do local. Apenas o chefe calhambola permaneceu lá, sendo capturado pela milícia e levado
para a cadeia da cidade.
Assim conclamou o capitão da milícia sobre o triunfo obtido no quilombo e da
prisão do dito líder dos negros. Em visita à fazenda invadida, o capitão comentou novamente
o assunto com sinhá Severa. Ela mostrou-se interessada a ponto de pedir para ver o negro na
cadeia.
Lá, ela teve um breve diálogo com o chefe dos negros. Mostrou-se compassiva,
compreendendo a luta do negro pela liberdade, mas não lhe dava razão pelos atos cometidos
contra os senhores de escravos. A atenção dada pela senhora ao negro encarcerado, despertou-
77
lhe um amor platônico pela moça; até então, união inaceitável entre um negro e uma mulher
branca dentro dos padrões da sociedade daquela época.
Outro negro calhambola chamado Antonio Corta Mato visitou secretamente o
chefe prisioneiro. Na ocasião, contou-lhe do plano que tinha articulado para libertá-lo. O
negro Corta Mato guiaria os soldados à procura do quilombo; só que os despistaria no
caminho para que desse tempo aos negros de saírem do local e libertarem seu líder.
Tudo procedeu como o negro Corta Mato havia planejado, a não ser pelo chefe
negro não querer mais seguir com os companheiros. Contudo, orientou ao negro guia que
fosse para longe e fundasse um novo quilombo, carregando consigo o desejo de que não
houvesse mais cativeiro.
Os negros calhambolas estavam em um rancho bem afastado da cidade. No
interior da habitação existia um altar com flores. Eles festejavam São Benedito. Em
comemoração, dançavam também a crioula, que não lhe faltara elogios em versos.
De repente, chegou ao rancho o negro Corta Mato, depois de ter retardado os
soldados. E seguiu como novo líder levando os calhambolas para outro lugar onde pudesse
cultivar o sonho de liberdade.
O poema encerra-se com o moribundo chefe dos calhambolas, em seus últimos
momentos de agonia encarcerado. Ele profetizou o dia da redenção, isto é, da concretização
do sonho do povo africano livre do jugo da escravidão.
79
3.4 O Mulato de Aluísio Azevedo
O Mulato é o primeiro romance no estilo realista de Aluísio Azevedo e o primeiro
no Brasil, no qual se reflete muito a vida do escritor, embora não seja uma interpretação de
sua existência e problemas pessoais, mas uma expressão literária da experiência vivida. Ele
deixa claro essas impressões tidas na sociedade ludovicense no prefácio da terceira edição de
1889. O termo “mulato” corresponde ao antigo mulo, que é filho de pai branco e mãe preta ou
vice-versa. 145
A publicação de O Mulato em 1881 tornou-se um sucesso no Rio de Janeiro e em
outras províncias do país, exceto no Maranhão. Aliás, tal obra gerou polêmica entre os
maranhenses por se apresentar anticlericalista. Alguns impressos do livro chegaram a ser
vendidos na ocasião, àqueles movidos pela curiosidade do que estava sendo tratado.
Tal obra de Aluísio Azevedo tem como cenário a cidade de São Luís em 1881. Do
ponto de vista econômico, o Maranhão ainda estava em progresso econômico com a produção
açucareira, tendo por base o elemento servil: os escravos. A não ser pela perda de mercados
compradores do Piauí, Ceará e Pará, que passaram a se abastecer diretamente na Europa, bem
como da diminuição de estabelecimentos mercantis na capital da província.
São Luís era uma cidade predominantemente portuguesa, com seus traços
coloniais, conservando seus casarões, sobrados e azulejos. No que diz respeito ao social, “a
sociedade de São Luís preservava seus foros de fidalguia, de opulência, de luxo, de origem,
que a situação econômica ainda permitia”. 146
Nessa época, a província do Maranhão era governada por Cincinato Pinto da
Silva, do Partido Liberal. Segundo João Cordeiro, foi “um período de relativa calma
administrativa, embora por vezes a própria governança da Província se visse envolvida, direta
ou indiretamente, nas lutas entre clericais e anticlericais”. 147 Os jornais O Pensador dos
jovens positivistas e Civilização do clero católico protagonizaram essa ferrenha batalha
ideológica que se intensificou com o lançamento do dito romance.
O enredo em torno do mulato dá sensação de esquemático, de dureza na
montagem, onde todos os elementos são pensados rigorosamente a fim de que nada fosse
extrapolação ou que algum episódio viesse a prejudicar a unidade do romance. Os principais
145 CUNHA, op. cit., p.537. 146 CORDEIRO, João Mendonça. O mulato: cem anos de um romance revolucionário. São Luís: EDUFMA, 1987. p. 103. 147 Ibid., p. 105.
80
personagens do romance são: Raimundo, Ana Rosa, Manuel Pedro, Luís Dias, cônego Diogo
e Maria Bárbara.
O romance inicia com uma descrição do ambiente citadino onde se passa os
acontecimentos e o movimento das personagens. Caracteriza-se o cotidiano da Praia Grande e
alguns logradouros, tais como: Praça da Alegria, Alto da Carneira, São Pantaleão, Praia de
Santo Antônio, Rua Grande, Praça do Mercado, Rua das Crioulas, Largo dos Remédios,
Caminho Grande e Cutim; o comércio com suas mercadorias que iam de alimentos a escravos,
o clima, enfim, os sobrados e o contato entre os diversos segmentos sociais.
Manuel Pedro da Silva, mais conhecido por Manuel Pescada, era um viúvo
comerciante que morava em um sobrado na Rua da Estrela. Ele tinha uma filha chamada Ana
Rosa e com eles morava sua sogra Maria Bárbara. Manuel Pedro sonhava um bom casamento
para sua filha. Mas esta, pelos conselhos da mãe morta, queria contrair matrimônio com
alguém que amasse de verdade e não somente pelas convenções sociais.
Era a oportunidade de Luís Dias, de origem portuguesa, que trabalhava com seu
pai como caixeiro. Seu patrão o tinha em bom conceito e isso facilitava os seus planos de
casar-se com Ana Rosa, pois desta forma obteria uma posição social melhor e tornar-se-ia
rico.
A harmonia dos planos é quebrada por um elemento de fora, o Dr. Raimundo, que
nasceu numa fazenda escravos na Vila do Rosário. Filho do português José da Silva (irmão de
Manuel Pedro) e de uma negra por nome Domingas, era mulato pela cor e aspectos de cabelo.
Quando criança, Raimundo foi alforriado. Com os recursos do pai, ele teve a chance de
estudar em Lisboa, onde se formou em Direito.
Assim que o jovem bacharel Raimundo, mulato de olhos azuis, desembarca em
São Luís, procura investigar suas origens familiares e os misteriosos recursos que sustentaram
os seus longos estudos em Portugal. Apesar de sua pele clara, ele desperta o preconceito racial
dos provincianos e, ao mesmo tempo, a paixão histérica de Ana Rosa.
Com reservas é aceito pela sociedade, mas quando pretende o amor de Ana Rosa,
a sociedade o suprime. Mesmo não sabendo que Ana é sua prima, Raimundo evita-a
completamente. Mais tarde, (e de maneira inexplicável) ele acabará por pedi-la em casamento,
porém Manuel Pedro lhe negará a mão da filha, ainda que tio e tutor desconhecido do rapaz.
A negativa corresponde à percepção do racismo em relação ao mulato. Como resposta,
Raimundo e Ana resolvem enfrentar o mundo e se amam fisicamente, disso resultando a
gravidez da moça.
81
Os lances melodramáticos, mesclados com candentes denúncias sociais,
acentuam-se com a descoberta de vários crimes: o assassinato do pai do mulato, também ele
rico comerciante português, a loucura de sua mãe negra, induzida por bárbaras torturas
escravagistas por parte da esposa de José da Silva, a senhora Quitéria, ao saber da existência
do mulatinho, etc. E o responsável pelo terror é o cônego Diogo, padre devasso e racista.
Ao perceber que Raimundo encontrara o fio da meada, o cônego convence o
caixeiro Luís Dias, ex-namorado de Ana Rosa, a matá-lo, para assim libertar a cidade de sua
presença indesejada. O mulato é liquidado e a jovem, ao ver o amante, morto, tem uma crise
histérica e aborta o filho.
Por fim, a narrativa projeta-se para seis anos depois. O assassinato fica impune e
ninguém lembra mais do mulato Raimundo. Luís Dias e Ana Rosa estão bem casados,
prósperos e com três filhos.
3.5 O papel dos Romances na Sociedade Maranhense Oitocentista
Os Calhambolas de Celso Magalhães e O Mulato de Aluísio Azevedo foram
romances de forte impacto na sociedade maranhense em fins do século XIX, por suas
abordagens serem de caráter histórico-social.
O primeiro, cujo espaço geográfico é Viana, apresentou os seguintes temas:
liberdade, abolição e escravidão. Já o segundo, ambientado em São Luís, abordou o
preconceito de cor, a proibição de casamento inter-racial, maus tratos de escravos e igreja.
De modo geral, os discursos presentes nesses romances sobre o mestiço refletem
uma exclusão social por parte da sociedade maranhense, fato que não era único, pois era
recorrente no resto do Brasil, e de uma negação de uma formação social híbrida. No caso do
poema Os Calhambolas, o mestiço não é retratado de forma exclusiva, só em alguns trechos,
até porque o tema central é a liberdade. Quanto em O Mulato, o mestiço é evidenciado como
um indivíduo com boa posição social e que é vítima de racismo por parte dos maranhenses.
Em Os calhambolas, Celso Magalhães apresentou um discurso de superioridade
racial do europeu em detrimento de outros povos, quando o negro faz uma exaltação das
qualidades do homem branco, ressaltando sua capacidade intelectual por ter lhe ensinado a ler
e escrever. Ele incorporou o discurso de liberdade na negritude dando-lhes a possibilidade de
82
sonhar um futuro melhor. O autor preocupou-se também com a integração dos negros na
civilização dos brancos, ignorando a contribuição cultural do africano, como se confirma no
seguinte trecho:
Um dia ouvi um mancebo fallar, e o moço era branco, porem que nobreza d’alma, e que caracter tão franco! Fallou-me da liberdade! Eu estava nessa idade em que a mente é vigorosa. Plantada a pingue semente, brotou logo de repente robusta, forte e viçosa. Achava tanta doçura ouvindo as palavras d’elle! Que pensamentos sublimes! Meu Deus, que moço era aquelle! Com elle aprendi a ler, depois também a escrever, e tudo elle me ensinou! O que a elle devo não posso dizer-vos... Aquelle moço depois de Deus me salvou. 148
Em O Mulato, o discurso de superioridade racial de um povo sobre o outro, é
expresso, por exemplo, na ocasião em que o mulato Raimundo residia em Lisboa, ao saber da
visão dos estudantes europeus sobre o Brasil. “Já faziam as suas palestras; os companheiros
não se cansavam de pedir-lhe informação sobre o Brasil. Como eram os selvagens?... E se a
gente encontrava pelas ruas, mulheres despidas; e, se Raimundo nunca fora varado por
alguma flecha dos caboclos”. 149
Por outro lado, em Os Calhambolas têm-se as barreiras e a discriminação que os
negros podem sofrer ao integrar-se na sociedade. A mãe que recrimina o filho por querer ser
senhor, deixando a entender que o negro jamais poderá ascender socialmente, assumindo uma
postura de conformismo perante o europeu, que se considerava portador do progresso e da
civilização.
Tem mais nobre coração. Sabes? Não quero somente ser livre; por teu amor eu te juro, oh mãe amada, quero também ser senhor! Cala-te, filho, que cousas são essas feias e más? Um homem amante dos outros não diz isso e menos faz. Livrar-nos, sim, é direito, o mais não, o mais é crime. Ficas accaso contente si o branco chega e te opprime? 150
Na obra O Mulato, Aluísio Azevedo escancara a indiferença dos maranhenses em
relação ao personagem Raimundo, por sua cor de pele. Mais precisamente, o autor mostra a
discriminação racial, embora o mulato seja um homem letrado, bem trajado e educado nos
costumes europeus.
148 MAGALHÃES, Celso da Cunha. Versos: 1867-1870. São Luís: Typ. B. de Matos, 1870. p. 18. 149 AZEVEDO, Aluísio. O Mulato. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 65. 150 MAGALHÃES, op. cit., p. 25.
83
Não lhe chegara às mãos um só convite para baile ou para simples sarau; cortavam muita vez a conversação quando ele se aproximava; tinham escrúpulo em falar na sua presença de assuntos, aliás, inocentes e comuns; enfim, isolavam-no, e o infeliz, convencido de era totalmente antipatizado por toda a província, sepultou-lhe no seu quarto e só saía para fazer exercício, ir a uma reunião pública, ou então quando algum dos seus negócios o chamava à rua. 151
A narrativa de Os Calhambolas desloca-se para o quilombo escondido entre a
mata quando o capitão chegou com um séqüito de homens armados onde travaram uma luta
com os calhambolas, culminando com a prisão de seu chefe. O capitão que liderava a
operação de busca de escravos, após a vitória, fazia duras críticas aos negros por ter se
deixado derrotar tão facilmente, dando a entender que os negros provinham de um estágio
inferior de evolução.
Não tenho culpa, pois que a disciplina, arte de guerrear, táctica, tudo dos pretos estivesse em tanto atrazo, a ponto de ficarem derrotados logo ao primeiro choque. Tenho culpa que o medo d’elles se apossasse tanto? Que surdos não ouvissem a voz do chefe chamando-os á peleja?152
Em O Mulato, esse discurso evolucionista se apresenta na descrição da escravaria
da residência de Manuel Pescada, ao referir-se aos negros que faziam trabalhos domésticos
como indivíduos que tinham pouca ou nenhuma eficiência e habilidade na execução das
tarefas.
A criadagem de Manuel e Maria Bárbara contava, além de Brígida e Benedito, de uma cafuza já idosa, chamada Mônica, que amamentara Ana Rosa e lavava a roupa da casa, e mais de uma preta só para engomar, e outra só para cozinhar, e outra só para sacudir o pó dos trastes e levar recados à rua. Pois, apesar desse pessoal, o serviço era sempre tardio e malfeito. 153
O chefe calhambola em cárcere, ao rever uma mulher branca por nome Severa,
lhe desperta amor, o qual não pode ser concretizado, visto que a sociedade não aceitava a
união de raças diferentes.
O coração que dormia hoje forte despertou. Vejo bem que esta doença não tem remédio, é mortal; não tenho a força precisa para evitar este mal. Mas, olha, é tão santa e boa... Não lhe pude resistir; minha vontade foi fraca e deixou-me sucumbir. Ouve segredo... Aqui dentro tenho uma voz a dizer-me
151 AZEVEDO, op. cit., p. 101. 152 MAGALHÃES, op. cit., p.62. 153 AZEVEDO, op. cit., p. 76.
84
qu’eu sou infame e cobarde por deixar assim prender-me – por uma filha da raça que tanto nos mortifica. Mas, dize, n’um caso d’estes sempre calma a razão fica?154
Em relação a isso, Celso Magalhães defendeu uma concepção preconceituosa e
pessimista quanto às uniões entre raças diferentes. Ele acreditava que o elemento africano
tinha pouco ou nenhum valor, tampouco no produto do seu cruzamento com o branco: o
mestiço. Ele afirma em A poesia popular brasileira que “este cruzamento não podia trazer
bem algum. Trouxe mal. Deturpou a poesia, a dança e a música”. 155
No romance O Mulato, a resposta de Manuel Pescada ao pedido de casamento de
Raimundo à sua filha Ana Rosa, representa a visão segregacionista e preconceituosa da
sociedade na união entre pessoas de etnias diferentes (ainda mais, se tinham alguma
descendência negra), já que era uma prática comum desde a chegada dos portugueses ao
Brasil.
O senhor, porém, não imagina o que é por cá a prevenção contra os mulatos!...Nunca me perdoariam um tal casamento; além do que para realizá-lo, teria de quebrar a promessa que fiz a minha sogra, de não dar a neta senão a um branco de lei, português ou descendente direto de portugueses! O senhor é um moço muito digno, muito merecedor de consideração, mas... foi forro à pia, e aqui ninguém o ignora.156
Dessa forma, a sociedade maranhense reprimia o indivíduo que tivesse sangue
africano nas veias. Era um insulto habitual que o português fazia ao mestiço, o uso de termos,
de maneira pejorativa, tais como: bode e cabra. Como se observa em O Mulato, no seguinte
discurso: “-Um cabra! - concluiu a velha com um berro – E um filho da negra Dominga!
Alforriado à pia! É um bode! É um mulato!”157 Segundo Abranches, “casar com bode
(mulato) ou pardo era um ato desonroso e que comprometeria a descendência”.158
O ideal de branqueamento da raça, através da miscigenação se faz nitidamente
presente na obra de Aluísio Azevedo, onde se percebe o apego da elite dominante aos
paradigmas europeus, ajudando a manter-se com privilégios e inferiorizando o mestiço. O
cruzamento entre as raças era considerado um ato vergonhoso para quem o fizesse, ganhando
o repúdio da sociedade. Manter as aparências para o resto da sociedade era um recurso
154 Ibid., p. 70. 155 MAGALHÃES, op. cit., p.32. 156 AZEVEDO, op. cit., p. 195. 157 Ibid., p. 267. 158 ABRANCHES, op. cit., p.35.
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freqüente. No caso de José da Silva, português que teve um filho (o mulato Raimundo,
personagem central) com a escrava Dominga:
José prosperou rapidamente no Rosário; cercou a amante e o filho de cuidados; relacionou-se com a vizinhança; criou amizades, e, no fim de pouco tempo, recebia em casamento a senhora dona Quitéria Inocência de Freitas Santiago, viúva, brasileira, rica, de muita religião e escrúpulos de sangue, e para quem um escravo não era homem, e o fato de não ser branco só por si só um crime. 159
De outro modo, o preconceito figurava porque “parecer branco consistia em
caracterizar, a qualquer preço, escravidão como um estatuto exclusivamente reservado aos
negros, aos pretos e pardos”. 160 De acordo com Abranches, “as mestiças queriam se passar
por brancas, desprezando os de sua raça, queriam fazer parte das famílias de sangue puro e
consorciavam os filhos, buscando as semelhanças com os pretendentes”. 161
Em O mulato, percebe-se isso no diálogo entre as portuguesas Maria do Carmo e
Bárbara sobre as mulatas, ao observarem Brígida, uma mulata corpulenta que trabalhava na
casa do comerciante Manuel Pescada: “E entravam a conversar sobre o escândalo das mulatas
se prepararem tão bem como as senhoras. Já não se contentavam com a sua saia curta e
cabeção de renda, queriam vestido de cauda; em vez de chinelas, queriam botinas! Uma
patifaria!”162 Segundo Chartier, “as percepções do social não são de forma alguma discursos
neutros: produzem estratégias e práticas que tendem a impor uma autoridade à custa de
outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador”. 163
Sobre o cotidiano do quilombo, Celso Magalhães faz uma descrição das pessoas
que nele habitam, especialmente, a mulher calhambola, a mulher mestiça: a crioula, a cafuza,
mas também o cabra, referindo-se ao mulato.
- Creoula, minha creoula, minha flor de manacá, guarda bem este suspiro que o meu coração te dá. Chorei tanto quanto foste que, tendo as fontes seccado, se encheram todas de novo com o meu pranto derramado. – Cafuza, dá-me o teu lenço, e também teu cabeção; quero tel-os de companha commigo no frio chão. Eu sou cabra resigueiro, eu não respeito a ninguém, quando bolem com a creoula que dansa tanto e tão bem. 164
159 AZEVEDO, op. cit., p. 51. 160 ALENCASTRO, op. cit., p. 87. 161 ABRANCHES, op. cit., p.33. 162 AZEVEDO, op. cit., p. 75. 163 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1988. p. 17. 164 MAGALHÃES, op. cit., p.76-77.
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Mais uma vez, Celso Magalhães, chama a atenção também para a origem da
humanidade, antes da condição social ser imposta pelos grupos de mando. Nesse trecho, o
chefe negro lamenta a situação de penúria do negro, na perspectiva de que todos os seres
humanos vieram de um único lugar, caracterizando a tese monogenista da Igreja Católica.
Escravo! E pode um homem ser escravo? Todos nós de um só pae filhos nascemos, de Deus, dispensador de eternas graças. Com que título, pois um homem a outro, que é seu irmão da mesma natureza, diz: - Tu és meu escravo? – Oh! Maldição sobre o povo que ainda no seu seio alimenta este crime tão nefando! Seja este nome escravo suprimido da lista dos vocábulos! Lave-se a nodoa infame que marêa o refulgente nome do Brazil; e, se o sangue somente lavar pode essa mancha odienta e vergonhosa, venha o sangue, por Deus, venha a revolta! 165
O poema Os calhambolas termina com as últimas palavras do chefe dos
calhambolas, antes de falecer na prisão, justamente com a esperança de um dia os negros
serem livres: “Tende esperança; essa virgem formosa e pura me diz que a hora da redempção
da nossa raça infeliz não longe vem que a tortura em breve se há de acabar, que um futuro
mais risonho para vós há de chegar”. 166
Ainda na narrativa de O Mulato, a idéia de raça superior, limpeza e conduta do
português asseguravam sua influência social e excluíam os não-brancos. O que não poderia se
esquecer era que por mais que se tentasse construir uma identidade com elementos
exclusivamente europeus, e mesmo não havendo mestiços, as raças trocariam conhecimentos
entre si e utilizariam o que tinham de melhor, sejam termos lingüísticos, culinária, vestuário,
danças, etc. No caso das amas-de-leite que os portugueses davam a seus filhos, presumia-se
pelo contato a assimilação consciente ou não, de hábitos de ambas as raças:
As negras, principalmente as negras!... São umas muruxabas, que um pai de família tem em casa, e que dormem debaixo da rede de suas filhas e lhes contam histórias indecentes!É uma imoralidade! O pior é que elas contam às suas sinhazinhas tudo que praticam aí por essas ruas! Ficam as pobres moças sujas de corpo e alma na companhia de semelhante corja!167
Como tal romance procurou denunciar as mazelas do sistema escravista, o autor
também faz uma descrição dramática das agruras, dos maus tratos e castigos que a classe
senhorial aplicava aos seus escravos. É o caso da escrava Domingas, da senhora Quitéria
(esposa de José da Silva): 165 Ibid., p. 81. 166 Ibid., p. 84. 167 AZEVEDO, loc. cit.
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Estendida por terra, com os pés no tronco, cabeça raspada e mãos amarradas para trás, permanecia Domingas, completamente nua e com as partes genitais queimadas a ferro em brasa. Ao lado, o filhinho de três anos gritava como possesso, tentando abraçá-la, e, de cada vez que ele se aproximava da mãe, dois negros, a ordem de Quitéria, desviaram o relho das costas da escrava para dardejá-lo contra a criança. Domingas, quase morta, gemia, estorcendo-se no chão. 168
Segundo Chartier, as representações elaboradas pela intelectualidade, nesse caso
sobre o mestiço “são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam”. 169 As
obras Os Calhambolas de Celso Magalhães e O Mulato de Aluísio Azevedo refletiram a
postura de seus autores; ambos anticlericalistas, defensores das idéias evolucionistas e da
causa abolicionista. Como crítica ao estilo literário do Romantismo, seus romances
apresentaram um final trágico para seus personagens principais, o chefe do quilombo e
Raimundo, bem característico do estilo realista.
Enfim, esses discursos presentes nas produções literárias de superioridade racial
européia, de preconceito racial e de exaltação dos valores sócio-culturais do branco se fizeram
presentes no pensamento maranhense, ajudando a manter os demais segmentos sociais, entre
os quais o mestiço, num estágio inferior da raça humana.
168 AZEVEDO, op. cit., p. 52. 169 CHARTIER, loc. cit.
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CONCLUSÃO
O estudo sobre o mestiço constitui um aspecto significativo da historiografia
brasileira, sobretudo maranhense, no que diz respeito não só a questão da mestiçagem, mas
também das influências das teorias raciais na mentalidade maranhense.
A análise literária dos romances Os Calhambolas e O Mulato são fundamentais no
campo histórico para se entender os acontecimentos no Maranhão durante a crise do Império e
a própria sociedade preconceituosa e arraigada aos costumes coloniais. Essas obras registram
também a percepção dos literatos no espaço social vivido por eles, assim como valores, carga
ideológica e postura crítica daquilo que observaram e converteram para a ficção.
Nesse sentido, através das produções literárias Os Calhambolas (1870) de Celso
Magalhães e O Mulato (1881) de Aluísio Azevedo, pode-se repensar a imposição cultural do
europeu numa sociedade predominantemente escrava, bem como da negação de uma
formação social híbrida, visto que esses romances tiveram repercussão na época de suas
publicações pela denúncia social e também pelo talento de seus autores que já eram
conhecidos pelo trabalho desenvolvido nos jornais.
Os Calhambolas e O Mulato representaram as sociedades da época, vianense e
ludovicense, com todas as suas mazelas: escravidão, discriminação racial, mestiçagem,
desigualdade social, etc. Como obras ficcionais e de cunho histórico, essas produções
reforçaram os problemas apontados por elas, os quais ainda estão presentes nos dias atuais. Os
escritores tiveram o mérito de desvelar de forma romanesca o retrato daquela sociedade
maranhense de fins do século XIX, mostrando-se parciais e objetivos em seus discursos.
Em relação a essas produções oitocentistas que fazem referência ao mestiço e de
outros segmentos sociais excluídos, pode-se perceber que estas reproduziram a historiografia
tradicional, isto é, a visão da classe dominante sobre os grupos marginalizados.
Existem poucos registros produzidos pelos segmentos inferiorizados durante o
governo de D. Pedro II, os quais descreveram uma atitude reacionária por parte desses grupos,
e não apenas de submissão e passividade como apontaram os documentos oficiais.
Com certeza, houve uma reação do mestiço por espaço na sociedade e na luta para
amenizar as desigualdades sociais. Alguns mestiços, embora timidamente, lutaram para
desconstruir ideologias, atitudes e esteriótipos da estética branca dominante, cada um à sua
maneira, seja na literatura ou envolvidos em movimentos de contestação à ordem vigente.
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Como exemplo: os maranhenses Gonçalves Dias e Maria Firmina, Luís Gama, Cruz e Sousa e
Lima Barreto.
Este trabalho monográfico foi muito enriquecedor, desde o levantamento das
fontes, da bibliografia até a escrita. Uma das dificuldades encontradas durante a pesquisa foi
na disponibilidade de fontes do período oitocentista fazer referência mais às preocupações da
classe senhorial com a escravidão, à campanha abolicionista, e, sobretudo, com as oscilações
da produção agrícola maranhense, do que com a temática da mestiçagem e das idéias raciais.
Por fim, deve ser dada continuidade na temática abordada, sob o prisma da
história e literatura, uma vez que há ainda muito a ser estudado e descoberto na história do
Maranhão no período imperial.
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